Louvação a Olinda

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LOUVAÇÃO A OLINDA Antônio Campos



A Graรงa que me ilumina do alto, faรงa com que eu bem exprima meus conceitos. Dante Alighieri



Mas podem ter sido possíveis visto jamais terem sido? Ou era só possível o que não veio a ser? Tece, tecelão do vento. James Joyce



Monet ĂŠ apenas um olho, mas que olho! Paul CĂŠzanne



Em magia só existe um dogma: o visível é a manifestação do invisível. Eliphas Levi


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ste não é um guia sentimental e histórico de Olinda. Muitos, antes de mim, com engenho e arte, já cometeram essa proeza, destacadamente o mestre Gilberto Freyre. Mas não exclui por inteiro a memória de fatos reais, eles estão presentes em certos momentos. 11 |


O meu projeto envereda com mais empenho e fervor para um olhar inaugural sobre a cidade, na sua intimidade histórica e poética quase invisível: o cruzamento reversível do visível e do invisível. Um olhar para a cidade que existe somente no meu íntimo miradouro, embora não tenha me limitado somente a isso. Ninguém verá Olinda do alto de um balão tendo em suas mãos este livro. Olinda é uma solicitação permanente aos devaneios, demarca um campo onde se comungam dois tempos inseparáveis: o que vem do passado, as suas heranças, e a causa de pertencimento, tendo como referência o orgulho de se fazer presente a si mesmo, quando os litígios se mostram insolúveis.

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Para se fazer entender melhor a proposta deste livro, quero evocar uma tela de Canalleto, que se encontra no Museu de Parma. Nela estão representados apenas alguns breves lugares de Veneza, não cenas panorâmicas com os seus encantos e singularidades únicas, de modo a produzir uma figuração alterada da paisagem original da cidade. Procurei descrever uma Olinda real, sim, mas nos devaneios da minha imaginação, com os olhos fixos na luz que a cidade irradia e nos sortilégios de alguns figurantes. Este é um grande apelo para quem deseja, como eu, mergulhar na sua paisagem urbana. A descrição, a maioria, do que não houve, mas deveria ter acontecido. Mas sem euforias. A partir das janelas, que se entregam aos ventos do mar de Olinda, procurei descrever a forte carga poética que a cidade inspira, evitando carregar palavras com alegorias óbvias. Não me estenderei sobre os seus heróis, respeitando tudo o que já foi dito sobre eles e suas datas históricas. Nem sobre a cidade como centro jurídico nacionalmente exaltado no passado, como núcleo de estudos do Sagrado, nem sobre o seu Carnaval que, para mim, é o melhor do mundo. Atento a uma série de quadros de Monet, que vi fora do Brasil, visitas para mim enriquecedoras, dei um passo adiante no que desejo para os livros das Louvações, iniciados com o traçado amoroso que fiz do Recife. O projeto iniciado com o livro “Louvação ao Recife” envolve a descrição de uma cidade, em muitos aspectos, que a gente quanto mais anseia ver e dela amorosamente se aproxima, ela mais se esconde, a sua atmosfera, as suas aparências, como o 13 |


cinema noir, mas não em preto e branco. Nenhuma cidade com o corpo e alma de mulher, como Olinda, se entrega facilmente. Não escondo o prazer de estar diante desse desafio, inspirado no verso de Carlos Pena Filho: Olinda: “é lá que eu vejo”. O que Pena Filho via (um ziguizagueante itinerário do olhar) era a transparência do diáfano, que procurei traduzir. Foi dele um olhar dotado de surpreendente poder de síntese sobre a aura da cidade. “Ocorre com as cidades, diz Calvino em As Cidades Invisíveis: o mesmo que nos sonhos: tudo o que se imagina pode ser sonhado”.

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A talvez carga poética do livro LOUVAÇÃO A OLINDA, se assim me exprimo em algumas páginas, está na descrição do invisível. O que é de mais belo em certas cidades, seja qual for, pode estar em sua invisibilidade. Nesta hora, meu dogma é o de Voltaire no verbete “Preconceito”, do seu Ditionnaire Philosofique: “Não é algo curioso que nossos olhos nos enganem sempre (...)”. Voltaire foi um homem que aprendeu a olhar. Depois dele, de Descartes ao próprio Foucault (A fascinação de Foucault pelo visual está presente desde o início de sua carreira, como se pode notar lendo a biografia escrita por Didier Eribon. Foucault é aquele que tem paixão pelo ver, segundo Deleuze). E mais: Merleau-Ponty, Sartre, Derrida (Muito pertinente o seu Pensar em não ver), Barthes, Lyotard, Sarah Koffman, Louis Marin, Deleuze, Starobinski, entre outros.

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Para uns, a simetria é o segredo matemático da beleza. Lados igualmente proporcionais resultam na harmonia do objeto visualizado. O altar da abadia barroca do Mosteiro de São Bento, de Olinda, é um exemplo de imponente beleza simétrica. Não é o meu caso, este livro é intencionalmente assimétrico, sonda o impenetrável no cotidiano e o cotidiano no impenetrável, projeto que envolve duas etapas, ora iniciada neste Louvação a Olinda. As cidades, como os sonhos, estão construídas de desejos e aspirações. O meu sonho e meu desejo é para que cada morador, filho natural ou adotado, tenha por esta cidade — célula-mãe germinadora de outras cidades — o compromisso de amar o seu rico legado histórico e artístico. Olinda é o reduto de tudo o que ficou marcado num tempo pernambucano que deve ser preservado. Uma pedra do seu sítio histórico, um tijolo das suas paredes seculares, uma folha sequer do seu patrimônio verde natural serão removidas, tocadas. Olinda deve ter clara prioridade. A fotografia de Marcus Prado complementa esse intuito desafiador das singularidades nunca antes experimentadas num só projeto editorial: Olinda, a liturgia de um duplo olhar, contemplando o que ainda não ganhou visibilidade. Dou com este livro o testemunho do meu amor a Olinda e o sentimento de gratidão pela honraria que me foi concedida, em 2013, tornando-me cidadão honorário dessa cidade. Antônio Campos 16 |


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