Angelo Issa - Sentido Obrigatorio

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sentido

obrigat贸rio Angelo Issa



sentido

obrigat贸rio Angelo Issa

Belo Horizonte, abril de 2014


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O Cine Theatro Brasil Vallourec abre o calendário de exposições

No momento de reflexão para escrever este texto, parei por um

2014, no dia 8 de abril, com as exposições de Angelo Issa e

instante e senti o peso da responsabilidade de fazer a curadoria e

Miguel Gontijo.

produção do artista e amigo Angelo Issa que abre o calendário de exposições 2014 do Cine Theatro Brasil Vallourec, um imponente

As exposições documentam a trajetória de dois artistas mineiros

edifício da década de 30, reinaugurado após sua restauração, com

movidos, antes de tudo, pela paixão às artes. Essas mostras propõem

a obra máxima de Portinari: os painéis Guerra e Paz. A importância

uma constante releitura do mundo, a partir de suas experiências

de tudo isso, aliada à confiança da Vallourec e do Cine Brasil,

e de acontecimentos, triviais ou insólitos, que impulsionam seus

enche meu peito de orgulho e certamente renova o espírito.

insaciáveis desejos da busca de novos significados.

Robson Soares Curador da exposição

Ao colocar esse espaço à disposição do público, a Fundação Sidertube e o Cine Theatro Brasil Vallourec reafirmam seu apoio às iniciativas artísticas, a bem do surgimento de novos valores, da formação de novas plateias e como caminho preferencial para democratizar o acesso à cultura. Alberto Camisassa Diretor Presidente do Cine Theatro Brasil Vallourec, e Superintendente executivo da Fundação Sidertube e Lavor.

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“O espetáculo é a ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna” Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo, proposição nº 213

Mário Vargas Lhosa, em seu ensaio “A Civilização do Espetáculo”, amplia o conceito de espetáculo nas manifestações culturais e mostra que as manifestações artísticas mais representativas de nossa época, não passam uma maneira leve, ligeira e fácil de mostrar as coisas: a arte light.

Light, porque uma das características dela é o empobrecimento das ideias como força motriz da vida cultural - arte que não exige concentração intelectual, posicionamento ou comprometimento. Arte que não questiona, não leva a uma reflexão ou introspecção e que propõe, acima de tudo, e sobretudo, divertir, entreter ou enfeitar. Mas a vida não é só diversão, é também drama, dor, mistério e frustração. Assim sendo, a arte não deve ficar restrita apenas ao entretenimento. Ela precisa também considerar a vida à sua volta. Precisa preocupar, alarmar e induzir à reflexão. A mostra “Sentido Obrigatório” sai do ambiente light e mostra o lado heavy de meu trabalho. Fala de pessoas pressionadas pelo caráter obrigatório e proibitivo de nossas leis. Pessoas responsáveis que são encurraladas por leis oportunistas, na maioria das vezes aprovadas por interesses particulares, sem qualquer estudo prévio de sua aplicabilidade ou consequência. Pessoas que perderam


a credibilidade em nossas autoridades e que se sentem ameaçadas

declara agir em defesa de sua liberdade individual” - descreve Dias Gomes,

pela crescente corrupção e fragilizadas pelo excesso de leis.

autor da peça.

Mesmo sendo uma democracia, o atual sistema procura valorizar mais

Como no “Pagador de Promessas”, o atual sistema utiliza leis para guiar

o movimento light do que o movimento heavy. Nossas autoridades

os cidadãos, argumentando que está agindo em defesa de sua liberdade

se posicionam instintivamente contra tudo o que é insurgência e

individual. Estas leis estão, na maioria das vezes, no campo do obrigatório/

reivindicação de direitos. O que fere a ordem estabelecida é um problema.

proibido, tratando o cidadão como um ser acéfalo, incapaz de tomar as

O que agita incomoda.

próprias decisões, incapaz de contribuir com suas ideias. Assim, mesmo numa democracia, o cidadão não tem permissão para quase nada.

O atual sistema prefere uma sociedade letárgica de homens e mulheres resignados, mudos, preocupados apenas com o entretenimento e que aceita

“(Na época da ditadura militar) achávamos que poderíamos tudo; só não

tudo sem se opor. Por isso, a sociedade do espetáculo vem se desenvolvendo

tínhamos liberdade. Hoje temos liberdade, mas não podemos fazer quase

cada vez mais em nossos dias.

nada.” - Arnaldo Jabor.

Foi ainda adolescente que li “O Pagador de Promessas”. A peça é uma crítica à

Nossa população é essencialmente jovem. O jovem é por natureza um

incapacidade do sistema capitalista de conviver com pessoas que raciocinem

inconformista, uma pessoa cheia de sonhos e ilusões, com um desejo imenso

e questionem o sistema.

de contribuir e participar dos acontecimentos. E esse jovem encontrase enjaulado no meio de tantos obrigatórios e proibidos, desiludido com o

“O homem, no sistema capitalista, é um ser que luta contra uma engrenagem

descaso de nossas autoridades, sem um grande ideal a seguir, sem uma grande

social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e

visão a inspirar, sem sonhos e sem esperança.


Em junho de 2013, milhares de jovens saíram às ruas para protestar. Saíram não

de amordaçar a voz dos jovens sob a alegação de que não existe como impedir

apenas nas grandes metrópoles, mas nos diversos recantos do Brasil, mesmo

a violência, a não ser usando mais violência.

nos mais escondidos. Mostraram grande insatisfação com o sistema, com a apatia e o cinismo dos políticos, com a corrupção, com a falta de segurança.

Na peça “O Pagador de Promessas”, o personagem principal também foi

Estes jovens saíram às ruas sem qualquer incentivo da mídia convencional,

demonizado e desintegrado pelo sistema. Mas, no final, a população, num

sem nenhuma liderança, sem um tema definido e sem saber direito contra o

ato de revolta, toma o corpo do “herói”, coloca-o sobre a cruz e, sob o olhar

que estavam se manifestando.

impotente das autoridades, invade o templo.

De repente, aconteceu.

Amordaçar os manifestantes pelo medo impedirá o crescimento do movimento? Ou vai represar ainda mais uma energia, que no final culminará com a invasão

Mas interesses diversos começaram a desestimular as manifestações.

do templo, como na obra de Dias Gomes?

Nos anos 70, aqueles que se opunham ao governo eram chamados de comunistas e subversivos. Hoje, os que se manifestam são considerados

Angelo Issa

vândalos. Por isso, o interesse em deixar que os manifestantes irresponsáveis

Artista Plástico e autor das obras

depredem os bens públicos e privados, pois, quanto mais depredarem, mais desmoralizarão os manifestantes pacíficos, justificando assim a violência usada para reprimí-los. Como no “Pagador de Promessas”, existe uma tentativa de demonização dos manifestantes, taxando-os como vândalos, sem distinção. Percebe-se o desejo

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Olho por Olho 1,40 x 1,75 m - 2013 AcrĂ­lica sobre tela


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Proibido o Uso de Máscaras 1,40 x 1,75 m - 2014 Acrílica sobre tela


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Sentido Obrigat贸rio 1,40 x 1,75 m - 2012 Acr铆lica sobre tela


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Proibido Animais em Locais Públicos 1,40 x 1,75 m - 2013 Acrílica sobre tela


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Liberdade de Expressão 1,40 x 1,75 m - 2013 Acrílica sobre tela


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A preocupação com o contexto político-social é um ponto forte da obra de Angelo Issa. E o que o valoriza é o fato de ele conseguir abordar este contexto numa postura apartidária. Na mostra Acerca de, realizada no ano passado, ele aborda o tema da tortura estabelecendo um diálogo entre a pintura e o suporte, colocando o dedo em uma ferida aberta, sem definir um período exato de nossa história. Pelo contrário, ele mostra a tortura presente no decorrer de toda a história do Brasil. De 1720 ao tempo presente. Através de pinturas, pedaços de madeira e arame farpado faz a denúncia de que a tortura nunca acabou e que continua existindo e sendo tolerada pela sociedade. Sua obra defende a tese de que a tortura sempre foi e continua sendo um valor para a nossa civilização. Torturadores são condecorados, eleitos e homenageados, enquanto os que sofreram a tortura se escondem como se fossem os culpados. Confesso que na época achei que Angelo fora longe demais. Achei que não era bem assim, até que três eventos, acontecidos depois da mostra, chamaram-me a atenção. O primeiro deles foi em maio, quando Amado Batista, no programa Frente a

Frente com Gabi, contou que havia sido torturado durante o regime militar. E então, surpreendendo a todos nós, completou: “ Mas eu mereci ser torturado”.

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Ao ver Marília Gabriela assustada, ele tentou corrigir: “Eu acho que mereci. Eu

Mesmo vivendo em uma democracia, estamos sob a influência de leis que não

fiz coisas erradas, então eles me corrigiram, assim como a mãe corrige um filho.”

reconhecem a nossa dignidade ou a nossa individualidade. Leis que obrigam ou proíbem as atividades do cidadão. E não leis que direcionam.

O segundo evento ocorreu no mês de julho: o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza desapareceu após ter sido preso para averiguação. O caso já

“Tutelados são aqueles que se encontram incapazes de fazer

havia sido dado como encerrado quando vários protestos e manifestações,

uso da própria razão independentemente da direção de outrem.

estimulados pela campanha “Onde está o Amarildo”, exigiram uma apuração

É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de

mais detalhada do caso, o que trouxe à tona a realidade: vários policiais foram

uma deficiência do entendimento mas da falta de resolução e

indiciados pelo crime de tortura seguida de morte e ocultação de cadáver.

coragem para se fazer uso do entendimento independentemente da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso

O terceiro evento veio à tona no final do ano: os jornais trouxeram as barbaridades cometidas no presídio de Pedrinhas no Maranhão, ao que um

da tua própria razão! “ Immanuel Kant

deputado federal partiu em defesa da tortura, justificando aos brados: “A única coisa boa do Maranhão é o presídio de Pedrinhas. É só você não estuprar, não

Kant afirma ainda que é difícil para o homem sozinho livrar-se dessa

sequestrar e não praticar latrocínio que tu não vai para lá”.

menoridade, pois ela se apossou dele como uma segunda natureza. Aquele que tentar sozinho terá inúmeros impedimentos, pois seus tutores sempre tentarão

Esses três fatos, ocorridos em menos de um ano, mostraram que Angelo

impedir que ele experimente tal liberdade. Para Kant, são poucos aqueles que

tinha razão. A tortura está presente no nosso dia-a-dia, consentida, aceita e

conseguem, pelo exercício do próprio espírito, libertar-se da menoridade.

escondida de nossa percepção. A obra de Angelo não é uma obra tutelada, mas uma denúncia e por isso Nessa nova mostra, Sentido Obrigatório, ele traz à tona um novo tema:

incomoda, instiga, alarma. Diante de sua obra, restam-nos o silêncio e a reflexão.

Leis que aprisionam o cidadão, tirando a sua soberania, considerando o cidadão um tutelado.

Leandro Gabriel

Escultor

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Horário Político Obrigatório 1,40 x 1,75 m - 2012 Acrílica sobre tela


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Voto Obrigat贸rio 1,40 x 1,75 m - 2013 Acr铆lica sobre tela


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Contribuição Sindical Obrigatória 1,40 x 1,75 m - 2014 Acrílica sobre tela


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Dedico esta exposição à minha esposa Magali e às minhas filhas Aninha e Marina, que sempre compartilharam comigo o inconformismo diante das restrições de liberdade.

Curadoria: Robson Soares Design Gráfico: Ideiário - Clara Gontijo Fotografias: Juninho Mota Textos: Angelo Issa Leandro Gabriel Revisão: Magda Roquete

© Copyright 2014, Angelo Issa Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização do artista. [Forbidden reproduction in whole or part without the artist’s permission]




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