O Contencioso do Suco de Laranja entre Brasil e Estados Unidos na OMC

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O Contencioso do Suco de Laranja entre Brasil e Estados Unidos na OMC Christian Lohbauer O artigo apresenta o processo que marcou o contencioso do suco de laranja entre Brasil e Estados Unidos na OMC iniciado em agosto de 2009 e concluído em junho de 2011. O painel examinou a legalidade das medidas antidumping aplicadas pelos Estados Unidos sobre as importações de suco de laranja brasileiro e se posicionou a favor das teses da defesa brasileira. A análise também apresenta os antecedentes do processo, as características da produção e dos produtos exportados, o funcionamento da cadeia industrial de suco de laranja brasileiro, seu desenvolvimento, mercados importadores e perspectivas de crescimento. O setor citrícola brasileiro A laranja chegou ao Brasil com os portugueses que a trouxeram da Ásia no século XVI. No Brasil encontrou melhores condições climáticas e de solo para se desenvolver do que no local de suas origens. Apesar de ter se adaptado a várias regiões do país, foi no Rio de Janeiro que surgiu o primeiro núcleo produtor da fruta que buscava suprir o consumo in natura dos centros urbanos de Rio de Janeiro e São Paulo. Entre a década de 20 e a de 40 a produção nacional de laranjas decuplicou. Expandiu-se para o Vale do Paraíba e nos anos 50 chegou ao interior de São Paulo, em regiões como os arredores de Araraquara, Matão e Bebedouro, onde encontrou condições ideais de desenvolvimento. O aumento da produção superou a demanda interna da fruta e a alternativa da industrialização tornou-se oportunidade. Em 1959 foi instalada a primeira fábrica de suco de laranja do Brasil, mas foram as geadas de 1962 na Flórida, nos Estados Unidos, que induziram os brasileiros a produzir suco e exportar para o maior produtor de laranja e suco de laranja do mundo até então. Em 1963 o Brasil exportou 5,5 mil toneladas de suco de laranja concentrado congelado. Quinze anos depois, em 1978, exportou 335 mil toneladas. De um universo de 17 milhões de árvores em 1963 chegou a quase 100 milhões de árvores em 1978. Foi nos anos 80, no entanto, que o Brasil tornou-se absoluto na produção da fruta e do suco. Geadas sucessivas na Flórida em 1981, 1983, 1985 e 1989 castigaram a produção norteamericana. Os impactos na produção dos Estados Unidos garantiram a expansão da indústria brasileira. A citricultura com tecnologia cada vez mais desenvolvida e a indústria cada vez mais eficiente colocaram o Brasil na primeira posição mundial da produção de suco de laranja em 1984. A queda na produção da Flórida fez os preços da fruta e do suco atingirem níveis recordes, incentivando a expansão de área plantada e garantindo aumento das exportações de suco, ao mesmo tempo em que provocou aumento do consumo da fruta no mercado interno. Na década de 1990 o parque citrícola da Flórida finalmente se recuperou, migrando para regiões mais ao sul do Estado com temperaturas mais elevadas. A produção que havia caído para níveis como 104 milhões de caixas na safra de 1984/85 alcançou 224 milhões de caixas na safra de 1997/98. Na década de 2000 a recuperação da produção na Flórida e o crescimento permanente da citricultura paulista e brasileira juntaram-se a outros fatores complicadores: as baixas taxas de crescimento do consumo de suco de laranja nos principais mercados e uma queda significativa do consumo nos Estados Unidos, gerando uma estagnação das exportações brasileiras na última década. Assim, o quadro do mercado de suco de laranja que se viveu até o


início dos anos 90 mudou radicalmente nos últimos quinze anos. Uma combinação explosiva de aumento significativo da produção de laranja no Brasil e nos Estados Unidos somado à estagnação do mercado de consumo e ao aumento geral dos custos de produção transformaram um mercado pujante em um mercado tenso e acirrado. Este cenário contribui, e muito, para explicar os contenciosos que acabaram surgindo entre Brasil e Estados Unidos no setor.

Mil Toneladas de FCOJ Equivalente a 66 o Brix

Evolução da Produção Mundial de Suco de Laranja 3.000

2.500

2.000

2.814

2.781 2.328

1.954

2.421

2.391

2.080

2.664 2.422

2.332

2.236

2.330 2.049

1.969

2.626 2.433

2.441

2.284

2.441

2.282

2.225

2.096 1.895

2.145

2.014

1.947

1.818

2.019

1.865 1.627

1.500

1.051 858

1.006

817

982

854 960

644

577

783

653

1.024

732

563

1.133

1.065

1.001

1.000

500 1.096

1.098

1.340

1.153

1.324

1.089

895

1.430

1.072

1.369

1.165

1.369

1.363

-

Produção São Paulo & Triângulo Mineiro

Produção Flórida

Produção Mundial

Fonte: FAVA NEVES, Prof. Dr. Marcos. O Retrato da Citricultura Brasileira. Elaborado por Markestrat a partir de CitrusBR.

A plataforma exportadora de suco de laranja brasileiro O Brasil exporta 98% do suco de laranja que produz. Embora os brasileiros sejam apreciadores do suco de laranja, consomem o suco fresco em função da oferta abundante de fruta. O brasileiro consome aproximadamente doze litros per capita/ano de suco de laranja dos quais apenas um litro é de suco industrializado. No Brasil consome-se o suco que qualquer outro mercado sonharia em consumir: o suco fresco produzido na hora para consumo, seja em restaurantes ou nos domicílios. Por esta razão a indústria brasileira desenvolveu-se e viabilizouse em torno de uma cadeia altamente eficiente e orientada aos mercados externos. Atualmente, cerca de 35% dos pomares que fornecem laranja para processamento pertencem às próprias indústrias processadoras e possuem altos níveis de produtividade. As principais fábricas processadoras somam atualmente quatorze plantas e pertencem a quatro empresas que são responsáveis por mais de 90% do suco produzido e exportado pelo país. As quatro empresas, Citrosuco - Grupo Fischer, Citrovita - Grupo Votorantim, Sucocítrico Cutrale e Louis Dreyfus Commodities, investiram e desenvolveram um sofisticado sistema logístico de exportação de suco a granel. De suas fábricas caminhões tanque transportam suco de laranja concentrado congelado (Frozen Concentrate Orange Juice – FCOJ) e suco refrigerado (Not From Concentrate – NFC) para tanques de estocagem (tank farms) no porto de Santos, onde permanecem até serem bombeados para navios de transporte a granel. São dezenas de milhares de toneladas de suco de laranja transportadas por via marítima aos principais mercados consumidores. São os países desenvolvidos com alta renda per capita e hábitos de consumo


favoráveis a sucos de frutas que consomem o suco exportado pelo Brasil. Nos Estados Unidos, União Europeia, Japão e Austrália, terminais portuários administrados pelas empresas brasileiras recebem o suco importado. Para outros mercados ainda menores como China, Coreia do Sul e Emirados Árabes, por exemplo, a exportação é feita em tambores. Com exceção da década de 80, os países da Europa ocidental sempre foram os principais importadores de suco brasileiro. Atualmente a Europa – compreendendo a União Europeia com seus 27 membros e a Suíça - respondem por mais de 70% das importações de suco de laranja brasileiro, algo em torno de um milhão de toneladas de suco concentrado equivalente anuais1. Os Estados Unidos, por sua vez, são o maior consumidor de suco de laranja do mundo. Consomem praticamente todo o suco que produzem e ainda tem que importar cerca de 20% de seu consumo de vários países com destaque para o Brasil, além de México, Costa Rica, e outros pequenos produtores. Em 2009 o consumo norte-americano de suco foi de 850 mil toneladas, aproximadamente 30% do consumo mundial. O Brasil, por sua vez, é o maior exportador do mundo com uma parcela de aproximadamente 85% das exportações mundiais, sem dúvida o setor exportador brasileiro com maior share do mercado mundial. A participação dos norteamericanos como mercado consumidor das exportações brasileiras vem caindo desde a década de 80 e chegou a 13% em 2009.

Destino do FCOJ brasileiro por continente e década 100%

3%

2% 2%

90%

2%

3%

4%

9%

11%

13%

80%

60%

Outros continentes

43%

70% 64%

Ásia

63% 70%

50%

71% Europa

40% 30% 20%

53% 33%

26%

10%

América do Norte 16%

13%

Década 2000

Em 2009

0% Década 1970

Década 1980

Década 1990

Fonte: FAVA NEVES, Prof. Dr. Marcos. O Retrato da Citricultura Brasileira. Elaborado por Markestrat a partir de Cacex, Banco do Brasil e Secex/MDIC.

Dadas as condições de queda do consumo mundial, o negócio da produção e exportação de suco de laranja brasileiro enfrenta o desafio da ampliação de mercados. Apesar do crescimento dos países asiáticos, com destaque para a China, não existem grandes possibilidades de ampliação do mercado consumidor a curto ou médio prazos. Isso ocorre por duas razões: o alto preço do produto para o consumidor final e os diferentes hábitos de consumo. O suco de laranja é um produto caro para ser consumido em países em desenvolvimento ainda com renda per capita baixa e índices de consumo em expansão. O mercado da China, por exemplo, apresenta 1

Suco de laranja concentrado e congelado equivalente é uma medida criada para evitar distorções nas estatísticas de volumes de suco de laranja exportados, uma vez que desde a década de 2000 as exportações de suco não concentrado vêm crescendo. Transformando o volume de suco não concentrado – que ocupa um volume seis vezes maior - em suco concentrado, pode-se avaliar o volume exportado considerando a quantidade de suco efetivamente consumido pelos mercados importadores.


crescimento lento. Quando os preços da tonelada de suco alcançam determinado nível, as empresas engarrafadoras cessam as importações, cientes da dificuldade que terão em repassar o suco engarrafado aos varejistas. Além disso, a tradição em consumir bebidas quentes, chás e sucos de fruta frescos (a China é a maior produtora de tangerinas do mundo e a segunda maior de laranjas) ainda faz do suco de laranja um produto para centros urbanos e para chineses com maior renda. Outros mercados como a Rússia ou os países do leste europeu são consumidores de néctares e refrescos, isto é, sucos recondicionados com água e açúcar e com porcentagem de suco de laranja menor do que 100%. Assim, a capacidade brasileira de expandir mercados mundo afora ainda é baixa. Em função da estagnação da exportação brasileira e da paulatina queda nos principais mercados consumidores de suco de laranja, é cada vez mais evidente a disputa pelos mercados entre empresas produtoras. E é compreensível o esforço que os produtores norte-americanos empregam para garantir a produção de laranja e suco de laranja dos Estados Unidos, já que o suco brasileiro sempre foi mais competitivo. Para enfrentar este problema, os norte-americanos criaram uma tarifa de importação para o FCOJ brasileiro, existente desde o Tariff Act de 1930, à época no valor de 70.00 cents per gallon. A partir de 1948, com a rodada do GATT em Genebra, e principalmente após a conclusão da Rodada de Uruguai, a tarifa vem sendo reduzida de 35.00 cents per gallon (19481988) para 29.72 cents per gallon (2000-2011), valor este que se aproxima dos atuais US$ 416 por tonelada incidentes sobre o suco concentrado. Se a tarifa atual fosse transformada em ad valorem, seria algo em torno de 25% sobre o valor de exportação, o que dá uma ideia da capacidade de proteção que tem o produto norte-americano. As empresas brasileiras por sua vez, cientes da dura política comercial dos Estados Unidos para o suco do Brasil, partiram para a aquisição de fábricas naquele país com o objetivo de produzir suco localmente. No final dos anos 90, a Sucocítrico Cutrale adquiriu duas fábricas da Minute Maid - Coca-Cola no Estado da Flórida, assim como fizeram a Citrosuco – Grupo Fischer e a Louis Dreyfus Commodities adquirindo uma fábrica cada uma. Em função dos altos custos de produção, da especulação imobiliária dos anos 2000 e da incidência de doenças como o greening, a produção de suco no Estado da Flórida também caiu significativamente. Em 2010 permanecem naquele Estado nove fábricas de suco de laranja, sendo três brasileiras e uma francesa (esta última fortemente dirigida pela operação brasileira). Como consequência, a tensão dos produtores de suco nos Estados Unidos com a produção e importação do Brasil é cada vez mais frequente.

300,0

1.200,0

250,0

1.000,0

200,0

800,0

150,0

600,0

100,0

400,0

50,0

200,0

-

00/01

01/02

02/03

03/04 04/05

Produção de Laranjas Fonte: Elaborado por CitrusBR a partir de dados do USDA

05/06

06/07 07/08

08/09

Produção de Suco

09/10

Mil toneladas a 66° Brix

Milhões de caixas de 40,8 kg

Produção de Laranjas e de Suco de Laranja na Flórida


O Brasil permaneceu praticamente toda a década de 2000 exportando o mesmo volume de suco de laranja para o mundo, um volume médio de 1,3 milhão de toneladas de suco concentrado equivalente. A queda de consumo verificada principalmente nos Estados Unidos garantiu o equilíbrio das exportações brasileiras, tanto pelo fato da produção norte-americana ter caído quanto pelo mercado asiático ter consumido um pouco mais. Os custos de produção, no entanto, continuaram subindo – com destaque para os custos de mão-de-obra. Isso somado a outros fatores de custo Brasil e ao câmbio da moeda brasileira cada vez mais apreciado em relação ao dólar, afeta dramaticamente a competitividade de toda a cadeia.

Quantidade em mil toneladas

3.000

$3.000 $2.507

2.500

$2.255

1.261

1.015

2.000

1.079

975

929

961

720

$1.676 $1.375 $1.137

851

$2.000

$1.839

$1.500

665

1.500 1.000

$2.500

962

$1.172

$1.229

$1.273

1.314

1.403

$1.000

$986

500

$500 1.277

1.348

1.215

1.362

1.310

1.416

1.291

1.301

FCOJ + NFC equivalente 66o Brix

Demais Produtos*

2009

2008

2007

2006

2005

2004

2003

2002

2001

$0

2000

0

Valor exportado milhões de US$

Quantidade e valor financeiro exportado pelo setor citrícola

Valor exportado

Fonte: FAVA NEVES, Prof. Dr. Marcos. O Retrato da Citricultura Brasileira. Elaborado por Markestrat a partir de Cacex, Banco do Brasil e Secex/MDIC. *Inclui óleo essencial de laranja, farelo de polpa cítrica, d-limoneno, terpeno cítrico, entre outros

Antecedentes do contencioso comercial na OMC Foi em 2005 que o Departamento de Comércio dos Estados Unidos (USDOC) começou a aplicar medidas ainda mais duras e muitas vezes de conteúdo técnico questionável para o suco importado do Brasil. Quatro indústrias e uma associação de produtores da Flórida pediram a investigação de dumping ao USDOC: A. Duda & Sons (Citrus Belle); Citrus World, Inc.; Peace River Citrus Products, Inc.(que depois se retirou como peticionária); Southern Garden Citrus Processing Co. e Florida Citrus Mutual, esta última a principal associação de produtores da Flórida. O USDOC enviou um questionário para ser respondido pelas empresas brasileiras Sucocítrico Cutrale, Citrosuco - Grupo Fischer, Louis Dreyfus Commodities, Cargill Citrus e Montecitrus, sendo que a Citrovita, do Grupo Votorantim, foi excluída desta investigação por já ter na ocasião um processo de dumping em andamento. O processo da Citrovita – Grupo Votorantim foi encerrado no final de 2005, o que a liberou de nova investigação em função das regras processuais do USDOC, as quais determinavam que um novo processo não poderia ser iniciado se empresa já estivesse sendo investigada. O período analisado na investigação inicial foi o de outubro de 2003 a setembro de 2004, período que abrange a safra de laranja da Flórida (a título de comparação, o ano-safra no Brasil vai de julho a junho do ano seguinte). Os dados analisados foram: (a) custos de produção do


suco de laranja no Brasil, (b) vendas no mercado interno no Brasil e (c) vendas no mercado americano do suco de laranja produzido no Brasil. Para determinar dumping, segundo as regras da OMC, foram feitas duas análises: (1) Comparação para verificar se as vendas no mercado interno no Brasil foram a preços superiores aos custos de produção. O valor do custo de produção é o do período anual, portanto um critério diferente do preço médio das vendas, que é mensal. As vendas avaliadas como inferiores ao custo são eliminadas para cálculo do preço médio de venda, de forma que o preço médio resultante acabará sendo aumentado. (2) O preço médio mensal apurado no item anterior (que é o preço de venda no mercado interno brasileiro) é então acrescido dos custos de transporte rodoviário e portuário entre a fábrica no Brasil e o distribuidor do produto nos Estados Unidos, chegando-se ao que é denominado Valor Normal ou Valor Justo (Normal Value ou Fair Value). O Valor Normal é, finalmente, comparado com o preço médio de venda mensal no mercado americano excluindo-se os impostos. Nesta comparação, se os preços médios das vendas no mercado americano estiverem abaixo do Valor Normal, há a caracterização da prática de dumping. Os questionários enviados foram respondidos somente por duas empresas, Sucocítrico Cutrale e Citrosuco - Grupo Fischer. Em agosto de 2005, após analisar as respostas, o USDOC informou ter encontrado margens de dumping de 24% a 60% nas vendas realizadas no período de outubro de 2003 a setembro de 2004. Posteriormente estes percentuais por empresa foram revisados, ficando em 19% para a Sucocítrico Cutrale e 14% para a Citrosuco - Grupo Fischer. A Montecitrus não respondeu o questionário, e o USDOC usou as informações fornecidas pelos peticionários, o que manteve sua margem em 60%. O fato é que a Montecitrus decidiu abandonar o mercado norte-americano, o que também foi feito pela Louis Dreyfus Commodities assim que foram determinadas as margens, em agosto de 2005. As margens de antidumping identificadas passaram a ser exigidas como depósitos em todas as exportações para os EUA a partir de agosto de 2005. Não se tratava de um custo definitivo, mas de uma determinação preliminar. Futuros depósitos dependeriam de como as vendas fossem feitas no mercado americano a partir daquela data. Desde então, se os preços fossem avaliados como superiores ao Valor Normal, o que seria determinado em uma revisão do processo de dumping, os depósitos já efetuados seriam devolvidos totalmente, ou no valor que excedessem o cálculo final da margem. Da mesma forma, se a margem final calculada para o novo período fosse maior, deveria ser recolhido valor adicional. A primeira revisão administrativa do processo ocorreu em 2007 e abrangeu o período entre agosto de 2005 a fevereiro de 2007, pois o USDOC considerou que o melhor período para apurar os custos de uma safra de laranja no Brasil seria entre março e fevereiro do ano seguinte. Nesta revisão, as margens finais foram: Sucocítrico Cutrale, 0,51% e Citrosuco - Grupo Fischer, 3%. Os valores excedentes depositados foram devolvidos com juros. As empresas aceitaram as determinações, por serem baixas, mas de imediato começaram a se preocupar com a metodologia do USDOC denominada “zeroing”. A segunda revisão administrativa ocorreu em 2008 e considerou o período de março de 2007 a fevereiro de 2008. A margem final desta revisão foi de 2% para a Sucocítrico Cutrale e de zero para a Citrosuco - Grupo Fischer. Apesar de estas margens também serem baixas, as empresas previram grandes dificuldades adiante, pois os preços do suco de laranja, que tinham alcançado


valores recordes no período 2005 a 2007 em função da quebra da safra da Flórida provocada por sucessivos furacões em 2005 e 2006, estavam em forte queda. Esta redução de preços do suco e, principalmente, a sua forte oscilação tornavam imprevisíveis os cálculos de margem de dumping, tanto pela aplicação do “zeroing” quanto pela periodicidade com que são comparados preços de venda e custos de produção. Atualmente, já em sua quinta revisão administrativa, as taxas calculadas pelo USDOC oscilam entre zero e 8%. No entanto, não tivesse sido aplicado o “zeroing”, as taxas de dumping simplesmente não existiriam. Tendo em vista algumas decisões da OMC condenando a prática da metodologia do “zeroing” pelo USDOC, as empresas procuraram então o Ministério das Relações Exteriores, que após algumas considerações se dispôs a abrir consultas para um painel na OMC. Na disputa que levou ao painel entre Brasil e Estados Unidos na OMC em 2009, o Brasil contestou o levantamento de medidas antidumping realizado nas revisões administrativas conduzidas pelo USDOC ao suco de laranja brasileiro nos períodos de 2005-2007 e 2007-2008. A contestação incluiu principalmente o uso sistemático do "zeroing" em sucessivas investigações de dumping do suco brasileiro. O zeroing é termo que se refere à controvertida metodologia utilizada pelas autoridades norte-americanas para calcular tarifas antidumping contra produtos estrangeiros. O preço do produto no mercado doméstico do país de origem (foreign domestic price) é comparado com o preço de importação nos Estados Unidos com a subtração do transporte e desembaraço aduaneiro. Na metodologia do zeroing estabelece-se em zero as diferenças negativas, isto é, quando o preço do produto importado está acima do preço do produto no mercado doméstico. Os críticos da metodologia (e o Brasil não foi o primeiro2) alegam que com a exclusão das diferenças negativas o resultado do cálculo se revela uma margem de dumping irreal. O Brasil fez referência a dois tipos de “zeroing”: a utilização do “zeroing” (simple zeroing) e o seu uso contínuo em procedimentos antidumping sucessivos (model zeroing). Na alegação brasileira, o conceito de “dumping” estaria relacionado ao exportador e, portanto, deveria ser compreendido em relação ao “produto como um todo” (product as a whole). Desta forma, a margem de dumping que viesse a ser calculada deveria considerar a totalidade dos resultados intermediários das comparações entre o valor normal e o preço do suco exportado. O descarte dos resultados em que o valor de exportação do suco é maior do que o valor normal no mercado doméstico, e a proibição da compensação destes resultados com aqueles em que há preço de exportação abaixo do preço doméstico, faz com que o zeroing superdimensione a margem de dumping ou mesmo identifique dumping onde ele não existe. O Brasil considerou que a metodologia feria os Artigos 2.4, 2.4.2 e 9.3 do Acordo de antidumping assim como o artigo VI:2 do Acordo do GATT de 1994. Questões substantivas – análise jurídica Em relação à utilização do zeroing (simple zeroing), o Brasil alegou que ao calcular as margens de dumping com o objetivo de estabelecer multas (cash-deposit rates, “CDR’s”) e sobretaxas específicas de importação (importer-specific assessment rates, ISAR’s) para as empresas 2

Além do Brasil, Canadá, Coreia do Sul, Equador, Japão, México, Tailândia, União Europeia e Vietnã abriram contenciosos contra os Estados Unidos no mesmo tema na OMC. O número de contenciosos demonstra como a metodologia utilizada pelos Estados Unidos foge dos princípios do comércio justo. O número sistêmico de contenciosos sobre o zeroing também encorajou o Brasil a abrir o seu, acreditando que seus argumentos de defesa seriam aceitos pelo Órgão de Solução de Controvérsias (DSB, na sigla em inglês).


brasileiras Sucocítrico Cutrale e Citrosuco - Grupo Fischer, durante a primeira e segunda revisões administrativas, o USDOC agiu de forma inconsistente com os artigos 2.4 e 9.3 do acordo antidumping e com o artigo VI:2 do acordo do GATT (o painel acabou exercendo economia processual (judicial economy) em relação ao artigo 9.3 do acordo antidumping e em relação ao VI:2 do acordo do GATT). No dia 21 de agosto de 2009, o Brasil solicitou ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC o estabelecimento de um painel contra os EUA para investigar medidas antidumping adotadas pelo USDOC em relação à importação de suco de laranja concentrado e de suco de laranja refrigerado do Brasil. O painel foi estabelecido em 25 de setembro de 2009. Nele se registrou a alegação brasileira que buscou esclarecimento para a seguinte questão: como o acordo antidumping define “dumping”? Na concepção brasileira, “dumping” é um conceito relacionado à performance total dos preços exportados, que devem ser compreendidos como um “produto como um todo” (product as a whole). Na concepção norte-americana, cada transação específica poderia configurar “dumping”. O painel então fez a primeira análise da definição de dumping no artigo VI:1 do acordo do GATT e no artigo 2.1 do acordo de antidumping. Concluiu que ambos os artigos estão escritos com terminologia geral e que davam interpretação às duas concepções expostas. Em seguida examinaram o texto à luz do contexto e objeto do acordo de antidumping, levando em consideração que os artigos 3,5.8, 6.10, 8.1, 9.1, 9.3 e 9.5 do mesmo acordo não dispunham de orientação para esclarecer o conceito de dumping. No que se refere a dumping como um conceito “específico do exportador” ou “específico do importador”, o painel concordou que “dumping” é um conceito relacionado ao “comportamento dos preços de um exportador individual”. No entanto, comunicou que o conceito “diz pouco sobre como determinar dumping e se o foco de tal determinação deve ser relativo ao produto como um todo ou na base de cada transação específica”. Nos artigos VII:3 do acordo do GATT, bem como nos artigos VI:1 do mesmo acordo e nos artigos 2.2 e 2.3 do acordo de antidumping o significado da palavra “produto” poderia referir-se a uma transação específica no contexto de valoração aduaneira, o que por sua vez não excluiria a percepção do significado da palavra “produto” nos artigos 2.1 e artigo VI:1. No que se refere à maneira de aplicar multas em processos em andamento, o painel entendeu que aplicar a abordagem de um “produto como um todo” ao processo não estaria de acordo com a maneira tradicional das operações, embora o acordo de antidumping não tenha uma descrição completa de como devem ser as operações. Em relação aos temas “das comparações entre as transações de exportação” no artigo 2.4.2 e da “equivalência matemática”, o painel não encontrou orientação conclusiva. Finalmente, por uma questão de antecedentes históricos, o painel demonstrou simpatia pela percepção de que a noção de dumping em uma transação específica foi tradicionalmente reconhecida pelas partes contratantes no acordo do GATT 1947 como a menos permissiva sob o artigo VI. Após extensa análise sobre a exclusividade de um único entendimento sobre o conceito de dumping baseado nas regras da Convenção de Viena sobre a interpretação de tratados comerciais definida no final da Rodada Uruguai, o painel entendeu que: embora fosse difícil de aceitar que o acordo de antidumping tratasse apenas de uma definição exclusiva de dumping, não haveria dúvida que em relação ao zeroing todos os relatórios do órgão de apelação que trataram do assunto foram aceitos pelo Órgão de Solução de Controvérsias, condenando o zeroing de forma legitima e sistemática. O painel então orientou que “a única interpretação para


a definição de dumping contida no artigo 2.1 do acordo de antidumping, de relevância para todo o acordo, é a de que o entendimento de dumping poderia ser determinado exclusivamente pela definição de “produto como um todo e não para cada transação comercial individual”. Finalizada a posição em relação ao caráter de transação não específica no conceito dumping, restava a análise do artigo 2.4 do acordo de antidumping em que o Brasil também alegava descumprimento pelo USDOC. O artigo coloca que: “Uma comparação justa deve ser feita entre o preço exportado e o valor normal. Esta comparação deve ser feita no mesmo nível da transação comercial, normalmente a partir do preço pós-fábrica, e relacionada a operações de venda em tempo mais próximo possível. Sob permissão pode ser feita caso a caso para situações em que diferenças possam afetar a comparação de preços, incluindo diferenças nas condições de venda, tributação, níveis de comércio, quantidades, características físicas do produto, e qualquer outra diferença que tenha efeito sobre a comparação dos preços. Nos casos estabelecidos no parágrafo 3, permissões para custos, incluindo tarifas e tributos incidentes entre importação, revenda e lucros correspondentes também devem ser calculados. Se nestes casos a comparação de preços for afetada, as autoridades podem estabelecer o valor normal no nível do comércio equivalente ao nível de comércio do preço de exportação construído, ou devem fazer sob permissão conforme é garantida no mesmo parágrafo. As autoridades devem indicar às partes as informações necessárias para assegurar uma comparação justa e não impor uma carga irracional de comprovações às partes.” (tradução do autor) O Brasil questionou o requisito da comparação justa (fair comparison) explicitado na primeira frase do referido artigo. Na visão brasileira a comparação justa aplicava-se não somente à comparação de preços, mas também à comparação em si. A frase faria referência à natureza da comparação. O painel concordou com o Brasil e estabeleceu que um método de comparação no qual são ignoradas operações que, caso incluídas no cálculo, resultariam em menor margem de dumping, deveria ser considerado injusto e, como consequência, incompatível com o Artigo 2.4. No caso do suco de laranja a decisão do Painel foi ainda mais arrojada. Julgou o zeroing incompatível com o Artigo 2.4 também em situações nas quais a cobrança final de direitos antidumping não foi acima da margem antidumping, contrariando a jurisprudência oriunda de casos anteriores no mesmo tema, nos quais a decisão pela injustiça do zeroing era resultante de cobranças de direitos superiores à margem de dumping. Conclusão do contencioso e perspectivas Assim, o painel decidiu que os Estados Unidos atuaram de forma inconsistente com o que rege o artigo 2.4 do Acordo de antidumping no momento em que o USDOC utilizou o "zeroing" para determinar as margens de dumping bem como quando determinou as referências específicas de importação. O painel também concluiu que era desnecessário fazer investigações adicionais para sustentar as alegações brasileiras e recomendou ao Órgão de Solução de Controvérsias que solicitasse aos Estados Unidos medidas para entrar em conformidade com as obrigações estabelecidas no Acordo de antidumping. A decisão do painel endereçou, assim, dois temas: a aplicação do zeroing em si e o seu uso sistemático. Em relação ao seu uso sistemático o painel considerou que a alegação do Brasil era muito similar, senão idêntica, às medidas alegadas pela União Europeia contra os Estados Unidos. Em abril de 2011, Brasil e Estados Unidos solicitaram ao Órgão de Solução de Controvérsias que adotasse a decisão de estender os 60 dias estipulados no artigo 16.4 do mesmo organismo para 17 de junho de 2011. Finalmente, nesta data, os dois países notificaram


o Órgão de Solução de Controvérsias sobre seu comum acordo em torno do período de tempo para implementação das recomendações do Órgão de Solução de Controvérsias: 9 meses. Assim, em 17 de março de 2012 encerra-se o período de implementação pelas autoridades dos Estados Unidos. É difícil saber o rumo que a política comercial norte-americana deverá determinar para o uso do zeroing na prática de cálculo da margem de dumping em suas futuras revisões administrativas. Tudo indica que após a derrota do painel do suco de laranja e da desistência em apelar para uma última instância como fez em junho de 2011, o USDOC inicie modificações no regulamento das revisões administrativas. No entanto, permanecem dúvidas sobre a real implementação das recomendações pelos Estados Unidos e quanto aos efeitos da proposta normativa no contencioso. O uso de lacunas dentro da proposta ou mesmo de outros sofisticados instrumentos de defesa comercial não podem ser descartados. Como foi apresentado, o quadro de produção de consumo de suco de laranja nos Estados Unidos não apresenta possibilidade de expansão e seu futuro como mercado importador também não se mostra promissor. Por isso, pode-se concluir que o contencioso foi necessário para combater uma prática ultrapassada de defesa comercial norte-americana cuja função é claramente proteger um setor de competitividade decrescente. Em 2012, ocorrerá a realização do processo de “sunset review”, procedimento quinquenal definido no acordo antidumping oriundo da conclusão da Rodada Uruguai que, diferente das revisões anuais, impõe limite temporal para imposições de direitos de defesa comercial. É a chance de concluir e encerrar definitivamente práticas injustas de proteção do mercado dos Estados Unidos contra o suco de laranja do Brasil.

Bibliografia Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos. A Indústria Brasileira de Suco de Laranja. CitrusBR/Apex-Brasil, 2011. FAVA NEVES, Marcos. O Retrato da Citricultura Brasileira. FEA/USP, 2010. HASSE, Geraldo. A Laranja no Brasil. A História da agroindústria Citrícola Brasileira, dos quintais coloniais às fábricas exportadoras de suco do século XX. Edição Duprat & Iobe, Frutesp S/A, 1987. WorldTradelaw.net Dispute Settlement Commentary (DSC) – Panel Report – United States – Anti-Dumping Administrative Reviews and Other Measures Related to Imports of Certain Orange Juice from Brazil – WT/DS382/R – wto.org./English/tratop_e/disput_e/cases_e/ds382_htm

Christian Lohbauer, doutor em Ciência Política pela USP, é membro do Gacint/USP desde 1999. É presidente executivo da Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos – CitrusBR. O estudo contou com o auxílio de Letícia Caritá, graduanda em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo/USP e Larissa Popp Abrahão, Bacharel em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo/USP.


Artigo publicado na revista Política Externa, vol. 20 n.2, “O Papel do Brasil na América do Sul: estratégias e percepções mútuas”, editora Paz e Terra. Veja aqui como adquirir um exemplar.


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