Jornal Público, 8 de maio de 2021

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Público • Sábado, 8 de Maio de 2021 • 51

Cultura ADRIANO MIRANDA

Três perguntas a Joaquim Moreno Qual a principal dificuldade na montagem da exposição? A história que se faz e que se investiga tem de ser verificada e de ser substantiva. E tem de falar com a comunidade, de se pôr em debate. Aqui tivemos também de activar um arquivo e de encenar essa activação para que ela pertença a muita gente. Se não, não há debate nem representação. Depararam-se com alguma descoberta inesperada? O nome de Portugal escrito na fachada do Pavilhão da Finlândia foi uma surpresa. E toda a parte da pré-história, com o Pancho Guedes. Veneza foi fundamental para a afirmação internacional da arquitectura portuguesa? Foi fundamental para passar da promoção à diplomacia, para se ser parte do debate e estar em comunhão com os outros. Hoje a arquitectura portuguesa é o um actor de pleno direito no debate internacional.

das Artes, apresentar o projecto Metaflux, que, sob a curadoria de Pedro Gadanho e Luís Tavares Pereira, daria a conhecer duas gerações de arquitectos, entre as quais se encontravam nomes como Inês Lobo e Nuno Brandão Costa, ao lado dos ateliers Promontório e S’A Arquitectos. Pancho Guedes regressaria a Veneza em 2006, em parceria com Ricardo Jacinto, com a instalação Lisboscópio, seguindo-se-lhes, em 2008, Souto de Moura, com Ângelo de Sousa e o seu espelho-monumento Cá Fora, numa curadoria do lósofo José Gil e do actual curador de Radar Veneza. Quatro casas, dos Aires Mateus (2010); Lisbon Ground, de novo, também, com Inês Lobo (2012); e, já nos anos da “troika”, Homeland, um jornal com “notícias de Portugal”, em versão de austeridade (2014), representaram o país nas edições seguintes. Siza e Souto de Moura, presenças sempre recorrentes em Veneza, voltariam a marcar os anos a seguir. O primeiro, regressando ao seu projecto de habitação social no Campo de Marte, na Giudecca, pelas mãos de Nuno Grande e Roberto Cremascoli, com Neighbourhood: When Alvaro Meets Aldo (2016); Souto de Moura arrecadando o Leão de Ouro de 2018 com a sua intervenção na Herdade de São Lourenço do Barrocal, na mesma edição em que desenhou também uma capela para o Pavilhão do Vaticano. Ainda nesse ano, a representação o cial esteve a cargo de Nuno Brandão Costa e Sérgio Mah, com o projecto Public Without Rhetoric. Já no corrente ano, e depois do adiamento provocado pela pandemia, o atelier portuense depA está a duas semanas de apresentar em Veneza o seu projecto In Conflict, numa edição que será certamente ainda muito condicionada pelas regras de con namento na Europa. Em paralelo com esta cronologia e as entrevistas que a pontuam — e com um programa que incluirá ainda a edição de um catálogo e um calendário de debates, entre Junho e Setembro —, o visitante é também convidado a percorrer os “desenhos levantados” em armações metálicas vermelhas que reproduzem as arquitecturas e instalações portuguesas realizadas em Veneza ao longo destes anos. “Decidimos, para memória futura, desenhar e animar a exposição com uma técnica do século XVIII, quase como a das casas de bonecas, num papel com superfícies rebatidas”, diz Joaquim Moreno. No nal, poder-se-á car com a sensação de que esta é uma história ainda em curso, e que tenderá a crescer. Esse é também també o propósito dos curadores, consc conscientes de que, ao longo dos próximo próximos cinco meses, e no futuro, “vão aparecer mais coisas”. E os arquivos ar servem para isso. “São matéria, evidências, “Sã que é preciso sempre estuqu dar e comunicar”, diz d JJoaquim Moreno.

Esta antologia quer amplificar as vozes de poetas imigrantes DR

Mariana Duarte

Volta Para Tua Terra: Uma Antologia Anti-racista/ Antifascista de Poetas Estrangeirxs em Portugal é apresentada hoje no Porto Quarenta e nove poemas de 49 autores oriundos de nove países, entre eles Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Colômbia e Itália, compõem Volta Para a Tua Terra: Uma Antologia Anti-racista/ Antifascista de Poetas Estrangeirxs em Portugal, lançada pela Editora Urutau. O título é, só por si, uma declaração de intenções que sintetiza aquilo que mobilizou os brasileiros Wladimir Vaz, editor da Urutau, e Manuella Bezerra de Melo, escritora e investigadora, a criarem este projecto. “O Wladimir partilhou comigo a vontade de fazer algo relacionado com o crescimento do fascismo e da extrema-direita em Portugal, onde ambos vivemos. Juntos, chegámos à conclusão de que seria uma antologia de escritores imigrantes”, explica Manuella Bezerra de Melo ao PÚBLICO, em vésperas da apresentação o cial do livro no hotel/ bar Selina, no Porto, pelas 14h30 de hoje. Este olhar que se pretende simultaneamente “literário e político” sobre o que os organizadores da antologia acreditam ser “um re exo da ascensão da extrema-direita que vem ocorrendo a nível global, sobretudo desde a vitória de Donald Trump”, coloca o foco nas intersecções entre o legado colonial português, o racismo e a xenofobia. “Em Portugal, há muitas feridas abertas e mal resolvidas sobre a memória colonial e isso possibilita o fortalecimento de lógicas fascistas”, considera Manuella, que é também autora do prefácio e de um dos poemas desta antologia. “Essa memória colonial atinge os corpos imigrantes através de comportamentos de ódio.” Daí a escolha da expressão “volta para a tua terra”, um dos ataques racistas e xenófobos “mais recorrentes no quotidiano dos imigrantes em Portugal”, mas também no dos portugueses afrodescendentes — basta lembrar o caso do assassinato de Bruno Candé, ou mesmo o comentário de André Ventura nas redes sociais sobre “devolver” Joacine Katar Moreira “ao seu país de origem”. “Falar sobre isto não é dizer que é um problema exclusivo de Portugal, mas nós somos estrangeiros aqui e estamos aqui”, assinala Manuella Bezerra de Melo. Não se trata de “ir contra Portugal”, reforça a escritora. “Pelo contrário: a gente ama este país e quer

A antologia reúne 49 autores oriundos de nove países que a sua democracia seja fortalecida. Para tal acontecer, temos de levantar questões que precisam de ser resolvidas.” Residentes em vários pontos do país, como Braga, Porto, Coimbra ou Lisboa, os autores reunidos nesta antologia foram seleccionados a partir de um open call lançado pela Urutau, editora com tentáculos no Brasil, em Portugal e na Galiza. Receberam cerca de 160 textos de poetas provenientes de mais de duas dezenas de países, com destaque para o Brasil — o que se re ecte no resultado nal, em que 60% dos nomes são brasileiros. “O facto de a editora ter nascido no Brasil faz com que a nossa capacidade de alcance em relação a imigrantes de outros países seja mais limitada, apesar de não ter sido essa a nossa intenção”, reconhece a co-organizadora da iniciativa. Ainda que numa microescala, é possível, através das biogra as incluídas na antologia, identi car alguns per s daquela que é a maior comunidade imigrante em Portugal, sobretudo entre as camadas mais jovens: por exemplo, a forte presença de estudantes e investigadores. “Da psicologia à biologia, passando pelas artes, há de facto uma grande diversidade”, a rma Manuella Bezerra de Melo. Vários destes autores são praticantes de poetry slam, um tipo de poesia assente na oralidade e na performa-

“O mercado literário já é difícil para pessoas do próprio país, então para imigrantes é mais complicado ainda”

tividade com uma grande tradição no Brasil, e que tem vindo a crescer por cá, em boa parte alavancada por imigrantes brasileiros. “Temos também a Ellen Lima e a Samara Ribeiro, que são duas poetisas indígenas de duas nações diferentes e que trabalham muito com a oralidade”, aponta Manuella. Esta publicação não é ocupada por autores nem artistas consagrados, destaca ainda a escritora. Há alguns nomes que poderão ser mais reconhecíveis — como o do poeta e músico Luca Argel, o do escritor, ensaísta e crítico brasileiro Ronaldo Cagiano ou o da artista e curadora Hilda de Paulo —, mas a maior parte está fora do círculo habitual da produção artística. Pelo menos metade dos autores, nota Manuella, “nunca tinha publicado nada”. “Há, inclusive, operários como o Salazar Crioulo, que vive de trabalhos temporários em Lisboa.” O facto de haver tantas estreias “torna a coisa mais interessante”, acrescenta. “A gente sabe que o mercado literário já é difícil para pessoas do próprio país, então para imigrantes é mais complicado ainda.” Um dos objectivos deste projecto é, de resto, tentar contribuir para uma maior democratização “do acto literário”, ampli cando “as vozes de poetas estrangeiros” e as potenciais oportunidades de publicação. Para prosseguir com essa meta, a Urutau está já a planear um segundo volume da antologia. “Queremos debater o carácter elitista da literatura. Normalmente pensamos que só pessoas especiais se podem expressar através dela, o que é uma grande mentira. A literatura vem do povo, vem da oralidade”, defende Manuella. Também por isso, os responsáveis pretendem que o segundo capítulo possa abranger “mais nacionalidades, inclusive fora da língua portuguesa, e mais classes sociais”.


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