O mundo do trabalho no cinema

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O MUNDO DO

TRABALHO NO CINEMA




O MUNDO DO TRABALHO NO CINEMA Organização Carolina Maria Ruy Colaboração Alexandre de Melo Ricardo Flaitt Edição e texto introdutório José Carlos Ruy Revisão Edson Baptista Colete Diagramação e capa Andocides Bezerra e Cláudio Gonzalez (Movimento Web Artes Gráficas) Edição da coluna eletrônica “Filmes relacionados ao mundo do trabalho” Fabio Casseb


Carolina Maria Ruy (org.)

SĂŁo Paulo 2015


AGRADECIMENTOS Aos presidentes e diretores dos sindicatos filiados ao Centro de Memória Sindical: João Batista Inocentini, Almir Munhoz, Antonio de Sousa Ramalho, Augusto Adriano de Barros Neto, Carlos Andreu Ortiz, Claudio Magrão de Camargo Crê, Jorge Nazareno, José Francisco Campos, José Luiz Ribeiro, José Pereira dos Santos, Mônica Lourenço Veloso, Ricardo Patah, Ronaldo Mota, Sérgio Luiz Leite e Sérgio Marques.

Agradecemos também aos amigos, entusiastas da cultura e memória sindical: Altamiro Borges, André Azenha, Antonio Castilho Diniz, Antonio Rogério Magri, Argemiro Antunes, Carina Flaitt, Carmen Lucia Evangelho, Carolina Muniz Gonçalves, Cássio Muniz Gonçalves, Cláudio Nascimento, Dalva Ueharo, Daugliesi Giacomasi, Débora Gonçalves, Diógenes Sandim Martins, Eduardo Pavão, Eraldo Cavalcante Nascimento, Francisco Sales (Chico), Gleides Sodré, Hugo Martinez Perez, João Franzin, João Guilherme Vargas Neto, Jorge Luiz Pires, José Aparecido Pereira, José Gaspar Ferraz de Campos, Leandro Nunes dos Santos, Luciana Cristina Ruy, Marcelo Duarte Jatobá, Marco Antônio Motta, Marcos Perioto, Marisa Gonzalez, Maurício Louro, Mauro Ramos, Plínio Sarti, Renata Grota, Rita de Cássia Vianna Gava, Roberto Paris, Robson Gazzola, Rodrigo Telmo Lico, Roniwalter Jatobá, Sérgio Gomes (Serjão) e Val Gomes. In memoriam: José Ibrahin e Padre Agostinho Pretto As resenhas dos filmes V de Vingança e O Emprego foram escritas pelo jornalista Alexandre de Melo. As resenhas dos filmes Alphaville, Queimada, Sacco & Vanzetti, Estado de Sítio, A Árvore dos Tamancos, O Homem que Virou Suco, 1984, Daens – Um Grito de Justiça, O Castelo, As Cinzas de Ângela e No, foram escritas pelo jornalista Ricardo Flaitt. As demais resenhas foram escritas pela jornalista Carolina Maria Ruy. As imagens que ilustram os textos sobre os filmes “Oscar Niemeyer, a Vida é um Sopro” e “Vaidade” foram cedidas pelo diretor dos mesmos, Fabiano Maciel. As demais imagens foram adquiridas através de veículos de divulgação e promoção dos filmes.


FORMAÇÃO SINDICAL, CULTURAL E POLÍTICA

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Miguel Torres, presidente da Força Sindical

os dias de hoje os líderes sindicais exercem um papel fundamental na luta pelos direitos trabalhistas. E também com relação às demandas da sociedade civil. Neste sentido, a Força Sindical entende a necessidade de qualificar os trabalhadores, investindo na formação sindical, cultural e política. O processo de formação, de ampliação do conhecimento e da capacidade de raciocínio deve ser um dos pontos nevrálgicos da entidade sindical, uma vez que são seus dirigentes que estarão na linha de frente das lutas da categoria que representam. Cabe a estes sindicalistas compreenderem, de forma ampla e profunda, as variadas situações que se colocam como desafios em seu dia a dia. Cabe a eles propor e buscar soluções. Por isto o dirigente sindical precisa de uma grande bagagem intelectual. Precisa estar preparado para conseguir visualizar os caminhos possíveis e, sobretudo, distinguir

o melhor deles em períodos de crise. Daí a importância do conhecimento. O cinema pode ajudar muito na formação do pensamento crítico, estimulando o imaginário e abordando conteúdos e valores de maneira alternativa. Usar o cinema como ponto de partida para o debate sobre o mundo do trabalho não é algo inédito, mas a diversidade de gêneros de filmes, propostos sem preconceitos, é o que há de novo neste livro desenvolvido pelo Centro de Memória e pela Força Sindical. Esta é uma iniciativa que nos ajuda, enquanto sindicalistas, a nos aproximarmos dos trabalhadores e a sensibilizá-los para a causa. É um projeto que interessará pessoas de qualquer setor da sociedade, como estudantes, sindicalistas, formadores, jornalistas, imprensa sindical e pesquisadores, entre outras.

CINEMA COMO LAZER E REFLEXÃO

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João Carlos Gonçalves, “Juruna”, secretário-geral da Força Sindical

ideia de cria uma coluna, no site da Força Sindical, com resenhas que relacionam filmes ao mundo do trabalho, surgiu, casualmente, em 2008, a partir da nossa paixão pelo cinema. Vale registrar que, há tempos atrás, na década de 1970 quando trabalhava na Refinaria Presidente Bernardes, da Petrobrás, fui incentivado pelo companheiro Argemiro

Antunes, a encarar o cinema não apenas como uma prazerosa atividade de lazer, mas também como um momento de reflexão que deve ser levado a sério, seja qual for o filme. Um dos aspectos mais interessantes deste livro é sua liberdade em misturar filmes de diversos tipos, nacionalidades e períodos aleatoriamente. Isso é possível


porque a intenção é usar o cinema para falar sobre o trabalhador, e não criar uma classificação cinematográfica. Neste sentido, nos 88 anos que separam O Encouraçado Potemkin de Dossiê Jango, vislumbramos uma fantástica evolução tecnológica, bem como transformações ideológicas que marcaram o período. Com este grande acúmulo de resenhas, conside-

ramos que era ora de publicá-las em um livro. E eis aqui o resultado deste projeto. Esta ideia que surgiu por acaso, em 2008, se manteve viva e em expansão. Novos colaboradores se juntaram ao projeto voluntariamente. Nossa maneira de assistir os filmes se aprimorou. A expectativa é que possamos proporcionar esta transformação à você também!

UM OLHAR CRÍTICO SOBRE O CINEMA

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Milton Baptista de Souza (Cavalo), presidente do Centro de Memória Sindical

cinema, lazer e entretenimento, muito comuns na vida do trabalhador, faz parte do dia a dia da maioria das pessoas, seja através da televisão, de dispositivos de vídeo, internet ou nas salas apropriadas para a execução das filmagens. Histórias, personagens, trilhas sonoras, figurinos, paisagens e diálogos procedentes da sétima arte estão cravados no nosso imaginário. São lembranças que, por vezes, confundem-se até mesmo com a nossa própria história. Entretanto, o cinema pode ser bem mais do que simplesmente diversão e afetividade. Mesmo o cinema voltado ao consumo das massas – tido como comercial –, e não apenas as obras que trazem em seu enredo acentuado teor crítico, traz uma visão sobre o trabalho. Isto porque no mundo moderno, capitalista, todas as relações sociais estão impregnadas pela lógica do trabalho produtivo. E este fato reflete-se na subjetividade e no modo de vida das pessoas. Reflete-se na mentalidade do cineasta, na interpretação dos atores, nas demandas do público e, consequentemente, no re-

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sultado nas obras. Cabe ao expectador buscar decifrar seus códigos. Neste sentido a intenção deste livro, lançado pelo Centro de Memória Sindical, é justamente fomentar um olhar crítico sobre o cinema. As resenhas do livro contemplam diversas épocas e países. Aspectos dos filmes, nem sempre os principais, demonstram concepções sobre o mundo do trabalho, além de retratar determinadas formas de produção. Diversos ângulos da questão sobre o que é trabalho, e o que é trabalhador, são abordados. Para ressaltar a questão social embutida nos filmes destacamos palavras-chave que justificam o porquê ela estar nesta seleção, como introdução no mercado, trabalho informal, aposentadoria, movimentos sociais, gênero, competição, relação capital/trabalho, conceito de trabalho. Com isto, acreditamos que o processo de formação teórica, ou o simples gosto pelo conhecimento, podem acontecer também de forma leve, irreverente e criativa. Seja individual ou coletivamente.


TRABALHO E CINEMA: UM TEMA NECESSÁRIO

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Giovanni Alves

livro “O mundo do trabalho no cinema”, organizado por Carolina Maria Ruy, com apoio da Força Sindical e do Centro de Memória Sindical, é uma notável contribuição para explorarmos o tema Trabalho e Cinema. É um importante guia para professores, pesquisadores e formadores sindicais que queiram utilizar o filme como meio para reflexão crítica do mundo do trabalho. Mais do que nunca, a formação sindical precisa inovar na metodologia de ensino-aprendizagem. A utilização do filme como recurso pedagógico torna-se indispensável para o formador sindical e político. O tema Trabalho e Cinema explorado pelo livro é um tema candente no século XXI. Devido à expansão do fetichismo da mercadoria, cada vez mais o mundo do trabalho é invisível para a sociedade. Por isso, explorá-lo através do cinema torna-se uma tarefa política fundamental. O cinema, a Sétima Arte, é a arte propícia para ser utilizada como experiência crítica. É com o cinema que se põe a pergunta: para que serve a arte? Para nós, marxistas, como salientou Walter Benjamin, a arte deve ser politizada no sentido de que o cinema deve tornar-se experiência crítica. A utilização do cinema como experiência crítica visa formar sujeitos humanizados capazes de resgatar o sentido da experiência humano-genérica desefetivada pela relação capital. Sob o capitalismo, só a arte realista é capaz de nos redimir da barbárie social. Na medida em que o filme realista é um reflexo antropomorfizado da vida social, ele é um meio propício para a experiência crítica hermenêutica como autoconsciência da humanidade. Nesse caso, realiza-se o sentido da obra de arte que, segundo Georg Lukács, é

ser memória, “autoconsciência do desenvolvimento da humanidade”. A experiência crítica hermenêutica através da obra de arte como o cinema, arte total do século XX, permite uma forma de apropriação do mundo capaz de formar (ou enriquecer) a práxis singular das individualidades pessoais de classe. Um dos veios temáticos mais prolíficos para discussão crítica através do cinema é o nexo temático “Trabalho e Cinema”. Primeiro, trabalho é categoria fundante (e fundamental) do ser social. Como observou mais uma vez Georg Lukács, o homem é um animal tornado homem através do trabalho. Eis o sentido ontológico da categoria trabalho. Entretanto, no mundo do capital, ocorre uma inversão categorial fundante (e fundamental) no processo civilizatório. No modo de produção capitalista, o homem tornado homem através do trabalho se desumaniza na medida em que o trabalho alienado o animaliza. Como salientou Karl Marx, o homem, nas condições do trabalho assalariado, não se sente mais livremente ativo senão em suas funções animais. No mundo do capital subsumido à lógica do trabalho assalariado, torna-se impossível uma vida plena de sentido, tendo em vista que o homem passa a fazer do trabalho assalariado tão somente meio de subsistência voltado para a fruição do consumo alienado, invertendo, deste modo, a relação que teria com o trabalho como atividade produtiva. O trabalho estranhado aliena o homem de seu próprio ser genérico, isto é, mortifica seu corpo e arruína seu espírito. Esta é a condição de proletariedade que se dissemina no mundo do trabalho como mundo do capital. O drama humano da proletariedade é o drama candente de inúmeras narrativas fílmicas clássicas. O

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cinema nasceu expondo o mundo do trabalho. Como arte suprema da modernidade do capital em sua etapa tardia, o cinema nasce como registro documental do cotidiano da proletariedade moderna. Um dos primeiros registros do cinema intitulou-se La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (“A Saída da Fábrica Lumière em Lyon”). Produzido em 1895 por Auguste Lumière e Louis Lumière, “A Saída da Fábrica Lumière”, e outros nove pequenos filmes, foram exibidos para divulgar, em Paris, o cinematógrafo, invento dos irmãos Lumière. A exibição teve boa publicidade e entradas pagas. O primeiro filme exibido pelo cinematógrafo expõe uma pequena multidão de operárias saindo da fábrica Lumière após cumprir a jornada de trabalho. Neste primeiro registro documental do cinema, o mundo do trabalho é exposto num momento glorioso: a pequena multidão de mulheres operárias sai da fábrica circunspecta, apressada e feliz, com seus vestidos longos e chapéus da belle époque, indiferentes à câmera do patrão que registrava a saída da fábrica. Trata-se de um registro documental singelo, mas significativo no plano simbólico. O cinema nasceu expondo imagens do cotidiano da proletariedade, do mundo, do capital, cujas contradições sociais imprimem a sua marca na imagem em movimento. Por isso, as narrativas fílmicas da proletariedade (documentais ou ficcionais) contêm, muitas vezes nos detalhes, em si e para si, a verdade da razão histórica do mundo do capital. Na primeira exibição do cinematógrafo, Georges Méliès esteve presente e interessou-se logo pela exploração do aparelho. Enquanto os irmãos Lumière inauguram o cinematógrafo produzindo registros documentais do cotidiano da vida burguesa, Georges Méliès percebeu o valor do cinema como meio de produção de imagens de espetáculo. Deste modo, com Méliès temos os rudimentos do cinema como indústria cultural da sociedade do espetáculo – eis a marca indelével da nova linguagem humana que nascia com o cinematógrafo, e que seria desen-

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volvida à exaustão no século XX. Do cinematógrafo dos irmãos Lumière às gadgets tecnológicas que produzem vídeos no século XXI (filmadoras portáteis e telemóveis de última geração), temos pouco mais de cem anos. A linguagem audiovisual que nasceu com o cinematógrafo tornou-se, hoje, meio indispensável no processo de subjetivação humana. Por isso, coloca-se cada vez mais, nas condições da sociedade do espetáculo e nos marcos do capitalismo, a necessidade radical do cinema como experiência crítica. O drama humano da proletariedade seria exposto pelo cinema no decorrer do século XX em inúmeros filmes clássicos. Na França, onde surgiu o cinematógrafo dos Lumière e o cinema-espetáculo de Méliès, salientamos, por exemplo, “A Nós a Liberdade”, de René Clair (de 1933), crítica genial do americanismo e do fordismo. Este filme de René Clair foi precursor de “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin (de 1936). Antes, na Alemanha, temos o clássico “Metrópolis”, de Fritz Lang (de 1927), alegoria trágica da República de Weimar que expressa, nos seus detalhes, o mundo do capital em sua fase de crise orgânica. Na URSS pré-stalinista, temos o experimentalismo clássico e genial de Serguei Eisenstein: “A greve” (de 1925). O neorealismo italiano seria pródigo em expor a condição de proletariedade moderna. Salientamos, dentre outros, “Ladrões de Bicicleta” (de Vittorio De Sica) e “A Terra Treme” (de Luchino Visconti), ambos lançados em 1948. Nos EUA da grande depressão, temos o genial “Vinhas da Ira”, de John Ford (de 1941), baseado no romance de John Steinback. Muitos cineastas no século XX trataram, direta ou indiretamente, do drama trágico da proletariedade, expondo, com suas obras fílmicas, visões da modernidade do capital com suas candentes contradições sociais, que dilaceram o ser genérico do homem. Seria temerário expor uma lista exaustiva de nomes de diretores do cinema mundial que contribuíram com filmes realistas capazes de permitir a apro-


priação do cinema como experiência crítica a partir do eixo temático Trabalho e Cinema. Salientamos, dentre outros, René Clair, Charles Chaplin, Serguei Eisenstein, Vittorio De Sica, Luchino Visconti, Bernardo Bertolucci, Jacques Tati, Georges Henri-Clouzot, Stanley Kubrick, Elio Petri. Poucos jovens conhecem hoje estas obras-primas do cinema mundial. Antes, o acesso a elas estava restrito às cinematecas das metrópoles. Mas hoje, a disseminação das novas mídias permite que possamos nos reapropriar delas para promover exercícios de reflexão crítica sobre o drama humano da proletariedade exposto no cinema. Na última metade do século XX, inúmeros filmes de cinema iriam tratar com desenvoltura da condição de proletariedade, trabalho alienado, luta de classes e suas repercussões no plano da consciência social, não ___________________________

apenas no plano ficcional, mas no plano documental. É interessante que o documentário pioneiro do cinema do século XX – “Nannok do Norte”, de Robert Flaherty (de 1922) – tenha exposto o mundo do trabalho de esquimós em seus vínculos orgânicos com o mundo da vida. Deste modo, mais uma vez, o eixo temático Trabalho se impõe na história do cinema moderno. Enfim, uma apresentação minuciosa do vínculo Trabalho e Cinema no século XX seria impossível nos marcos deste prefácio para o interessante livro de Carolina Maria Ruy. Mas posso dizer que o eixo temático Trabalho e Cinema não é apenas um tema de reflexão crítica entre outros, mas é o tema fundante (e fundamental) do cinema como experiência crítica capaz de nos redimir da barbárie social que aflige, hoje, a civilização do capital nos marcos da crise do capitalismo global.

Giovanni Alves é professor da UNESP – (Campus de Marília), livre-docente em teoria sociológica, pesquisador do CNPq, coordenador do Projeto Tela Crítica (www.telacritica.org) e Projeto CineTrabalho (www.projeto cinetrabalho.org). É autor de “Trabalho e Cinema: o mundo do trabalho através do cinema” (Editora Praxis), em 4 volumes; “A condição de proletariedade” (Praxis, 2009); “Trabalho e Subjetividade” (Boitempo, 2011), “Dimensões da Precarização do Trabalho” (Editora Praxis, 2013) e “Trabalho e Neodesenvolvimentismo” (Editora Praxis, 2014). E-mail: giovanni.alves@uol.com.br; home-page: www.giovannialves.org

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O CINEMA, O TRABALHO E AS CONTRADIÇÕES DO CAPITALISMO

que pode haver de comum entre filmes como Tempos Modernos, 2001: Uma Odisseia no Espaço, A Classe Operária vai ao Paraíso, O Diabo Veste Prada ou o desenho animado Ratatouille? Aparentemente nada, a não ser o fato de serem obras de ficção que servem ao deleite dos telespectadores. Foram produzidos em tempos diferentes, e distantes: de 1936 (Tempos Modernos) a 1968 (2001: Uma Odisseia no Espaço) ou 2007 (Ratatouille). E tratam de temas diversos, voltados a públicos variados. A argúcia dos organizadores deste livro (e da sessão Filmes do site da Força Sindical) descobriu que há mais em comum entre eles do que supõe a vã expectativa de passar momentos agradáveis ao assisti-los. Este traço comum é o mundo do trabalho. São obras de arte que revelam aspectos da atividade e do cotidiano dos trabalhadores. A vida humana é marcada, determinada, pela atividade prática que transforma a natureza e produz coisas úteis e belas. Essa atividade é o trabalho do qual, hoje, prevalece a concepção capitalista, que impõe seu exercício a troco do salário para garantir a sobrevivência do trabalhador e sua família. Mas o trabalho alienado vigente no capitalismo aparece como uma danação da qual o trabalhador foge sempre que pode. Isto já fora denunciado por Karl Marx nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844, onde descreveu essa distorção que avilta o trabalho e o trabalhador. O cinema oferece um amplo leque de situações que ilustram esta verdade formulada há mais de século e meio. O cinema registra também outros aspectos liga-

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dos ao mundo do trabalho, e eles ajudam a compreender contradições que hoje são, no essencial, as contradições do mundo capitalista. Toda obra de arte é um instrumento do conhecimento. “Foi nas obras artísticas que os povos depuseram as concepções mais altas para exprimir suas visões de mundo e os problemas enfrentados na vida”, sugeriu o filósofo alemão Hegel (Curso de estética: o belo na arte). Neste sentido o cinema, que não existia na época do filósofo (ele viveu entre 1770 e 1831), constitui uma espécie privilegiada de obra de arte que mobiliza, em sua realização, o conjunto das outras artes. Algumas antigas, como o teatro, a literatura, a pintura, a arquitetura ou a música; outras modernas, como a fotografia e o som gravado. O cinema resume a contribuição de todas numa síntese que tem a virtude de reproduzir o real, o vivido, com força que não era possível imaginar no passado; apenas a ópera, que surgiu no final do Renascimento, pode ser palidamente comparada a ele. Arte do século 20 por excelência, o cinema incorporou-se de tal modo à vida contemporânea, sobretudo à cotidiana, que é muitas vezes visto apenas como diversão, como lazer, deixando num segundo plano e quase sempre mal percebido seu caráter essencial de arte que resume e amplifica formas anteriores, e exprime visões de mundo contemporâneas. De certa maneira, visto assim, o cinema transformou-se no veículo privilegiado da visão de mundo que resume, e repercute, o chamado senso comum, uma visão partilhada pela maioria como sendo “natural”, de tal forma que seus conteúdos acabam sendo absorvidos


e incorporados de maneira quase “indolor” e sem crítica pelas pessoas que assistem aos filmes. É o caráter de “diversão” que o cinema assumiu que permite essa incorporação quase imperceptível de seus conteúdos, fazendo desta arte um instrumento de educação das massas e difusão ideológica de eficiência inigualável. O cinema foi transformado nesse instrumento de educação de massas típico do capitalismo devido, sobretudo, à aparente “leveza” com que aborda questões do dia a dia, com uma apresentação quase imperceptível dos problemas cotidianos e de soluções tipicamente burguesas para eles. São conteúdos que ajudam a legitimar e difundir a forma de vida típica do capitalismo, a vida burguesa e suas vicissitudes. Há um uso explicitamente político do cinema como foi feito, por exemplo, pelo governo dos EUA sob Franklin Roosevelt (presidente de 1933 a 1945, no período da Grande Depressão e, depois, da Segunda Grande Guerra). Os filmes foram usados como ferramentas privilegiadas, naquele seu governo, para difundir o american way of life (modo de vida americano) no período crucial da crise econômica da década de 1930. E para educar as massas dos EUA e, sobretudo, do mundo, de acordo com as necessidades da hegemonia burguesa e, depois, para naturalizar o domínio imperialista. Ainda no campo da burguesia e do imperialismo, precisa o exemplo do nazismo (1933-1945), que usou o cinema para difundir ideias pretensamente científicas da superioridade da raça alemã e da inferioridade de todas as demais, sobretudo dos judeus. E para condenar todos os democratas, os socialistas e os comunistas, que se opunham ao domínio nazista e lutavam contra ele. O efeito educativo, que favorece e fortalece a hegemonia burguesa, talvez seja mais eficiente em filmes produzidos pelo “mercado”, pela iniciativa privada (daí o sucesso do cinema dos EUA), do que os filmes pro-

duzidos diretamente por governos ou agências oficiais. Em filmes produzidos fora do domínio direto do Estado, a naturalização das narrativas adequadas à educação das massas no sentido burguês é fortalecida pela apresentação, nos enredos, de contradições do cotidiano que são resolvidas “didaticamente” através de um ponto de vista capitalista e burguês, que fica disfarçado pela aparente naturalidade do desdobramento das histórias apresentadas. O cinema aparece então como a culminância do senso comum e disfarça, com êxito, toda intenção interessada dos produtores; fica melhor ainda quando nem mesmo os produtores têm consciência desse interesse de classe. Somente um olhar crítico permite flagrar, nestes filmes, as contradições submersas no enredo. Ao fomentar o debate sobre elas, esse olhar é o móvel do efeito didático e pedagógico que mesmo filmes “enquadrados” permitem. E leva a um processo de educação das massas no qual é possível denunciar as contradições da vida capitalista por meio da explicitação delas e de sua natureza social. Este livro é rico na apresentação de filmes produzidos a partir de uma perspectiva não crítica pelo “mercado”, mas que são instrumentos poderosos para um debate que aponte as contradições do capitalismo e da vida contemporânea. Entre eles peças como Doutor Jivago (1965), Os Embalos de Sábado à Noite (1977), Wall Street, Poder e Cobiça (1987), Mississippi em Chamas (1988), Vida de Solteiro (1992), O Diabo Veste Prada (2006), Ratatouille (2007), Gran Torino (2008), Sex and the City – o Filme (2008), O Mágico (2010), e por aí vai... Melhor que eles, mais precisos e objetivos como instrumentos poderosos para a educação popular, são os filmes produzidos a partir de uma perspectiva crítica clara e definida. O cinema torna possível a crítica à vida capitalista e burguesa ao apresentar de maneira realista e efetiva a possibilidade de novas e mais avançadas

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formas de vida. Permite a descoberta e a denúncia, em situações descritas como de “vida real”, das contradições do capitalismo. E aponta, de maneira pedagógica, caminhos para superar as contradições da vida burguesa e suas limitações e impasses. Lênin, como o líder da construção da primeira experiência socialista prolongada da história – aquela que se seguiu à Revolução Russa de 1917 – percebeu com argúcia as perspectivas de educação popular oferecidas pelo cinema. “De todas as artes, o cinema é a mais importante”, disse ele em fevereiro de 1922, “e será o principal instrumento cultural do proletariado”. Ele orientou o Comissário de Educação do novo regime, A. V. Lunacharsky, a usar o cinema como educação popular para forjar a consciência socialista (as declarações de Lênin foram publicadas no jornal Sovietskoye Kino nº 1-2, 1933). Da mesma forma que outros chefes de estado de regimes burgueses, como nos EUA ou na Alemanha nazista, Lênin reconheceu a importância do cinema. Não como instrumento de educação das massas para reforçar e legitimar o domínio de classe, mas como ferramenta para a construção de uma consciência nova e mais avançada, a consciência socialista. Há um conjunto enorme de filmes resenhados neste livro que apontam nessa perspectiva avançada. Eles vão à descrição direta da luta operária, como Norma Rae (1979), Eles não Usam Black-tie (1981), O Germinal (1993), Peões (2004), ou Lula, o Filho do Brasil (2009). Mas passam também por clássicos que descrevem as vicissitudes da vida operária, entre eles Tempos Modernos (1936), Ladrões de Bicicleta (1948) ou A Classe Operária vai ao Paraíso (1971). Ou que abordam questões que se podem chamar de “ontológicas” sobre o desenvolvimento do trabalho e as transformações positivas ou negativas ligadas a ele; bons exemplos, neste caso, são 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e O Caçador de Androides (1982).

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Os filmes podem ser ferramentas fundamentais para a educação dos trabalhadores. Não apenas como instrumentos pedagógicos, mas sobretudo como meios, agradáveis, para o debate da situação operária e das contradições do capitalismo e da vida burguesa. Este livro é um guia para isto. Seu objetivo é despertar e aprofundar a consciência de classes do proletariado. Por isto não é um livro isento, mas que tem lado, e seu lado é o lado dos trabalhadores e de sua luta.

Boa leitura!


SUMÁRIO O Encouraçado Potemkin

25

Sindicato de Ladrões

38

Tempos Modernos

28

Doze Homens e uma Sentença

40

As Vinhas da Ira

30

Jeca Tatu

43

Ladrões de Bicicleta

33

Spartacus

Cantando na Chuva

36

O Homem que Matou o Facínora

46

48


Os Companheiros

51

Alphaville

53

Kes

70

Doutor Jivago

56

M.A.S.H.

72

São Paulo Sociedade Anônima

59

A Classe Operária vai ao Paraíso

74

2001: Uma Odisseia no Espaço

61

Sacco & Vanzetti

76

Era uma Vez no Oeste

64

Estado de Sítio

79

14

Queimada

67


O Poderoso Chefão 2

82

Os Embalos de Sábado à Noite

98

Nosso Amor de Ontem

85

A Árvore dos Tamancos

100

O Espantalho

87

Braços Cruzados Máquinas Paradas

103

Um Dia de Cão

89

A Vida de Brian

106

Taxi Driver

92

Norma Rae

109

Testa de Ferro por Acaso

95

Os Irmãos Cara-de-Pau

111


Eles não Usam Black-tie

114

O Homem que Virou Suco

116

1984

132

O Caçador de Androides

119

Brazil – O Filme

135

Linha de Montagem

122

O Cavaleiro Solitário

138

Tootsie

125

O Sol da Meia-Noite

141

127

Wall Street, Poder e Cobiça

144

Cabra Marcado para Morrer

16

Jango

129


Colors, as Cores da Violência

147

Daens – Um Grito de Justiça

161

Mississippi em Chamas

149

Hoffa, um Homem, uma Lenda

164

Conduzindo Miss Daisy

152

Vida de Solteiro

167

Rosalie vai às Compras

154

Filadélfia

169

O Poderoso Chefão – Parte 3

156

O Germinal

172

159

O Carteiro e o Poeta

174

The Commitments Loucos pela Fama


O Indomável Assim é Minha Vida

176

Ou Tudo ou Nada

191

Tiros na Broadway

178

Boleiros, Era Uma Vez o Futebol

193

As Pontes de Madison

180

Como Enlouquecer Seu Chefe

195

Mentes Perigosas

182

As Cinzas de Ângela

198

Páginas da Revolução

185

História Real

201

188

Hurricane: O Furacão

203

O Castelo

18


Mauá – O Imperador e o Rei

205

24 Horas

221

O Céu de Outubro

208

O Homem que Copiava

224

Billy Elliot

211

Segunda-Feira ao Sol

227

Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento

213

Camelos Também Choram

229

Mar em Fúria

215

Escola de Rock

231

Pão e Rosas

218

Moça com Brinco de Pérola

234


Vaidade

236

O que Você Faria?

250

Fahrenheit 9/11

238

Terra Fria

253

Peões

241

V de Vingança

256

Ray

Botinada – A Origem 243 do Punk no Brasil

259

A Luta pela Esperança

245

À Procura da Felicidade

262

247

O Diabo Veste Prada

265

Dois Filhos de Francisco

20


Zuzu Angel

267

O Diário de Uma Babá

284

Caro Sr. Horten

270

Oscar Niemeyer – A Vida é um Sopro

287

Conversas Com Meu Jardineiro

273

Ratatouille

290

Leões e Cordeiros

276

Tropa de Elite

292

Mad Men

278

Zodíaco

295

281

João Saldanha, uma Vida em Jogo

298

O Banheiro do Papa


Linha de Passe

301

WALL-E

318

Dúvida

304

À Procura de Eric

321

Gran Torino

307

UP – Altas Aventuras

324

O Emprego

309

Amor Sem Escalas

327

O Lutador

312

Baarìa – A Porta do Vento

329

Sex and the City – O Filme

315

Bem-Vindo

331

22


Capitalismo: Uma História de Amor

333 Trotsky: A Revolução

350

Gigante

336

A Chave de Sarah

352

Invictus

339

A Rede Social

355

Jean Charles

342

Conflito das Águas

358

Julie & Julia

345

O Mágico

361

Lula, o Filho do Brasil

347

Começa na Escola

Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro

363


Um Doce Olhar

Heleno

380

A Dama de Ferro

Batman: O Cavaleiro 368 das Trevas Ressurge

383

Histórias Cruzadas

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No

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Lições de um Sonho

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Capitão Phillips

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Sem Limites

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Dossiê Jango

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Django Livre

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O ENCORAÇADO POTEMKIN


1925

O ENCOURAÇADO POTEMKIN (BRONENOSETS POTYOMKIN)

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União Soviética, 1925 Direção: Serguei Eisenstein Elenco: Aleksandr Antonov, Vladimir Barski, Grigori Aleksandrov, A. Levchin, Mikhail Gomorov Palavras-chave: comunismo, greve, história, marinheiros, Revolução Russa, Sindicato, trabalhadores

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m 2015 o filme O Encouraçado Potemkin completa 90 anos e continua atual, sendo assistido com proveito pelos trabalhadores. Não foi somente seu tema que o tornou um clássico do cinema mundial, mas também a maneira revolucionária de sua realização pelo cineasta soviético Serguei Eisenstein (1898-1948). Seu tema quase exemplifica a forma como se desenvolve a consciência de classe: marinheiros maltratados pelos oficiais que os comandam, em condições de trabalho profundamente degradadas, revoltam-se e acompanham a revolução proletária que ocorria em Odessa, na Rússia tzarista, em 1905. A história foi narrada de maneira inovadora por Eisenstein, o grande mestre da montagem cinematográfica que baseia a narrativa na maneira como as imagens são usadas. A tecnologia ainda não havia desenvolvido maneiras de unir filme e som; o cinema era mudo, e tudo o que havia para transmitir a mensagem desejada eram as próprias imagens em movimento, reforçadas em certos momentos por letreiros projetados na tela junto com o filme, e pela música tocada fora do filme por músicos postos ante a tela onde o filme era projetado. Sendo o cinema mudo, as imagens precisavam falar. E a ferramenta para fazer as imagens transmitirem o que o cineasta pretende é a montagem. Em seu livro O sentido do cinema (Sergei M. Eisenstein, El Sentido del cine, México DF, Siglo Veintiuno Editores, 1974), Eisenstein descreveu a montagem de maneira simples: “Suponhamos, por exemplo, um túmulo e uma mulher de luto chorando. Dificilmente alguém deixará de chegar a esta conclusão: uma viúva”. A inspiração vinha dos ideogramas chineses, que Eisenstein estudou


para desenvolver esta técnica, ao lado de autores como Leonardo da Vinci e suas anotações sobre o uso da perspectiva; ou da literatura russa (Tolstói, sobretudo); e mesmo Karl Marx (de quem cita a frase: “Não apenas o resultado, mas também o método são parte da verdade. A investigação da verdade deve ser verdadeira em si mesma; a verdadeira investigação é a verdade desdobrada, cujos membros deslocados se unem no resultado”). Este esforço teve o objetivo de compreender como o pensamento se forma no cérebro por meio da justaposição de imagens, traduzidas em palavras. No cinema ele buscava traduzir os sentidos que o cineasta pretendia transmitir. Por exemplo, em chinês, a justaposição de um ideograma que significa “telhado” ao lado de outro que significa “esposa” resulta em outro, que significa “lar”. Um exemplo do uso dessa técnica narrativa pode ser visto, em O Encouraçado Potemkin, na célebre cena da escadaria, que justapõe imagens de luz (alegria) a outras da repressão tzarista contra os revoltosos na es-

cadaria (ela própria um signo da hierarquia social existente então). Naquela cena, o horror é traduzido pelo assassinato de uma mãe e a descida, escada abaixo, do carrinho com o bebê que ela conduzia. Esta é uma das cenas mais famosas de toda a história do cinema, tendo sido lembrada no filme Os Intocáveis (1987), de Brian de Palma, que faz referência a ela. A revolta contada no filme realmente aconteceu; o encouraçado Potemkin era um navio da frota do Mar Negro da Rússia. Construído em 1898, ele estava em serviço desde 1904. A revolta ocorreu em junho de 1905, motivada pelas más condições impostas aos marinheiros. O encouraçado chegou a estar em serviço sob os bolcheviques, depois da Revolução Russa de 1917, ainda em plena I Guerra Mundial; foi capturado pelos alemães em 1918 e entregue aos aliados em 1919, que explodiram o navio para impedir que, depois da guerra, voltasse a ser utilizado pelo governo bolchevique. O que sobrou do navio foi desmontado em 1922.

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TEMPOS MODERNOS

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1936

TEMPOS MODERNOS (MODERN TIMES)

N

EUA, 1936 Direção: Charles Chaplin Elenco: Charlie Chaplin, Paulette Goddard, Henry Bergman, Stanley Sandford, Chester Conklin Palavras-chave: alienação, crise de 1929, exploração, indústria, produção em série

a década de 1930 a produção em série industrial era a imagem da modernidade, impondo um estilo de vida que se baseava no tempo de trabalho, na hierarquia do sistema produtivo e no poder de consumo que cada camada desta hierarquia passou a ter. Em Tempos Modernos Charles Chaplin satiriza a linha de produção do sistema fordista. Um clássico do tema do trabalho, o filme se passa no período imediatamente posterior à depressão econômica de 1929, decorrente da quebra da Bolsa de Nova Iorque, quando o desemprego atingiu em cheio a sociedade norte-americana. Nele a “modernidade” figurada na sociedade industrial, urbana, na linha de montagem e na especialização do trabalho, é alvo da crítica. No filme o operário, ao conseguir emprego numa grande indústria, transforma-se em líder grevista e é perseguido por suas ideias “subversivas”. O filme trata também das desigualdades entre a vida dos pobres e das camadas mais abastadas. Embora o cinema falado já existisse há nove anos, Charles Chaplin insistia em realizar filmes mudos – Tempos Modernos foi o último deles. Demorou três anos para ficar pronto (entre 1933 e 1936) e seu pano de fundo é o desemprego e a miséria galopantes decorrentes da crise de 1929, que desorganizou profundamente a indústria nos EUA. O tema do filme é a vida numa sociedade capitalista moderna, industrial, e os males decorrentes da concentração da riqueza, por um lado, e das formas alienadas e alienantes do trabalho sob o fordismo, onde a máquina e os processos de produção dominam o operário e impõem-se a ele. Horário de alimentação, movimentos exigidos pela produção, o tempo livre do operário, tudo isto deve obedecer à lógica capitalista representada pela máquina. Tempos Modernos é uma crítica pungente e eficiente da modernidade capitalista. Quando foi lançado, em 1936, o filme chegou a dar prejuízo. Mas, ao longo da história, consolidou-se como um dos principais filmes jamais produzidos.

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AS VINHAS DA IRA

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1940

AS VINHAS DA IRA (GRAPES OF WRATH)

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EUA, 1940 Direção: John Ford Elenco: Henry Fonda, Jane Darwell, John Carradine, Shirley Mills, John Qualen, Eddie Quillan Palavras-chave: crise de 1929, empobrecimento, estado, migração, sonho americano

asas abandonadas e a terra devastada onde antes havia famílias de trabalhadores e plantações a perder de vista. O que houve? A atmosfera rural que predominou nos Estados Unidos até os anos 1930 foi derrubada pelo vendaval da crise da bolsa de Nova Iorque de 1929. Tal cenário foi retratado por Steinbeck em seu livro As Vinhas da Ira e, em 1939, por John Ford, no filme homônimo. O filme conta a saga da família Joad: da expropriação das terras onde viviam à longa viagem de Oklahoma à Califórnia, pela Rota 66, movidos pela ilusão de que as plantações de laranjas garantiriam emprego fácil. Logo no início vemos a angústia do primogênito Tom Joad (Henry Fonda) que, ao retornar para casa após cumprir quatro anos na prisão (em liberdade condicional), encontra um cenário desolador no lugar de seu antigo lar. A amargura da cena é reforçada pela figura do ex-pregador Casy Muley, um antigo morador que perdeu tudo, inclusive a fé, e ficou louco. É ele quem informa Tom sobre a triste sina que se abatera sobre a família Joad. Inicia-se então a dura jornada para a Califórnia. Todos, a mãe, a irmã, o cunhado e os avós atravessam os EUA percorrendo o caminho dos conquistadores do Oeste, em uma clara referência ao sonho americano (o “american dream”) em expandir-se para aquelas terras. Em determinado momento a família para em um bar para comprar comida. As crianças querem um doce, mas não têm dinheiro suficiente. A garçonete forja um preço mais baixo que permite que as crianças possam comprar o doce. O interessante é que, logo a seguir, após os Joad saírem do bar, dois trabalhadores caminhoneiros deixam com a garçonete um troco a

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mais, como gorjeta. Este singelo detalhe mostra um tipo de ajuda das categorias de trabalhadores mais organizadas, como os caminhoneiros, aos trabalhadores mais pobres. Ao deixarem o troco, os trabalhadores da estrada, que na década de 1930 tinham forte organização sindical, “financiaram” indiretamente as crianças da família Joad. Cenas como esta são sutilmente pinceladas no filme, revelando solidariedade entre os homens a despeito das atrocidades impostas pelo mundo do capital e do mercado. Na chegada ao tão sonhado destino começa a desilusão. Entram em contato com o mundo de miséria por trás da prosperidade capitalista. Aos trancos e barrancos descobrem fazer parte do imenso contingente de trabalhadores expulsos de suas terras, desesperados por qualquer tipo de colocação nas novas formas de emprego que se estabelecem. Depois de muito sofrimento chegam a um acampamento estatal, do Ministério da Agricultura, o único local em que encontram dignidade social. O diretor John Ford, nesta cena, passa a mensagem da importância do Estado para organizar a sociedade, fazendo clara referência ao New Deal do então presidente Frank. D. Roosevelt, para tirar o país da crise. No romance As Vinhas da Ira, John Steinbeck mostra o contraste entre o velho mundo dos pequenos

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agricultores, que preservava uma sociabilidade tradicional, e o novo mundo da grande empresa marcado pela ganância, desconfiança e indiferença. Mesmo sem conhecer a nova realidade, a sabedoria da mãe Joad pressentia a lógica perversa da ordem social nascente. No diálogo final dela com Tom, a mãe expõe o que mais teme: “Eles podem matá-lo e eu não saberei. Eles podem machucá-lo. Como vou saber?”. E Tom responde: “Onde houver uma luta para que os famintos possam comer, eu estarei lá. Onde houver um policial surrando um sujeito, eu estarei lá. Estarei onde os homens gritam quando estão enlouquecidos. Estarei onde as crianças riem quando estão com fome e sabem que o jantar está pronto. E quando as pessoas estiverem comendo o que plantaram e vivendo nas casas que construíram, eu também estarei lá”. Ao final, Ma Joad, compreendendo as palavras de seu filho, conclui: “Não podem acabar conosco. Não podem nos varrer. Vamos continuar para sempre. Pois nós somos o povo”. O filme é um retrato trágico e belíssimo dos Estados Unidos da primeira metade do século vinte. As paisagens amplas, os rios largos, plantações enormes e estradas longínquas são elementos que embelezam o filme. Mas, por outro lado ele mostra o avesso da ostensiva sociedade estadunidense.


LADRÕES DE BICICLETA 33


1948

LADRÕES DE BICICLETA (LADRI DI BICICLETTE)

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Itália, 1948 Direção: Vittorio De Sica Elenco: Enzo Staiola, Lamberto Maggiorani, Lianella Carell Palavras-chave: empobrecimento, pós-guerra, proletarização

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m dos filmes mais marcantes do neorrealista italiano, Ladrões de Bicicleta expõe o drama do desemprego logo após Segunda Guerra Mundial em uma Itália derrotada e em profunda crise econômica. Não há trabalho e o povo está imerso na pobreza. A primeira cena do filme já mostra o contingente de desempregados, amontoados ao redor de um funcionário público em busca de uma vaga. Os empregos oferecidos exigiam uma qualificação que a maior parte daqueles proletários não tinha. O protagonista, Antonio Ricci, consegue uma das poucas vagas para uma função mais simples: de colador de cartazes. Mas, para isto, precisa de uma bicicleta. Vemos, nas entrelinhas dessa cena, a ascensão e a especialização da indústria metalúrgica, demandando técnicos como torneiro mecânico, e também a ascensão da indústria de entretenimento, já que os cartazes são para a divulgação de eventos culturais. Ricci tem uma bicicleta, mas ela está empenhada. Maria, sua mulher, decide, então, trocá-la no penhor pelos lençóis do enxoval do casal, tal era o grau de miséria em que viviam. Diante de situações de carência extrema o trabalhador dispõe até de objetos de valor sentimental, como o próprio enxoval, abrindo mão de suas histórias de vida. Com a bicicleta em mãos, eles encontram um passe para a inclusão social. Em todo momento o mundo do trabalho se afirma. Antonio Ricci ao sair, pela manhã, é acompanhado pelo pequeno filho Bruno, de cerca de oito anos, que trabalha como engraxate de rua. Ocorre que, no exercício de sua função, Ricci tem a bicicleta roubada. Imerso na dor e na angústia pela perda do instrumento de trabalho, ele tenta encon-


trá-la com a ajuda do filho. Eles vivem, a partir daí, o pesadelo de procurar os pedaços da bicicleta nas feiras de Roma, pois a prática dos ladrões é desmontar o objeto para vender as peças. Embora seja um homem decente, honesto e trabalhador, tais circunstâncias levam Ricci a cometer um ato insano: quando percebe que não conseguirá recompor sua bicicleta, ele caminha com o filho até as proximidades do Estádio Nacional e tenta furtar outra bicicleta. Mas fracassa em sua tentativa desesperada de manter o emprego.

Ao detê-lo, na presença do pequeno Bruno, a polícia sente compaixão e deixa o caso de lado. A tragédia moral se abate sobre ele. Ao perder seu trabalho, sua moral e seus valores, Ricci perde também a si próprio. O drama de Antonio Ricci é de cunho social. Exige a ação política e social que transcende o cotidiano de indivíduos. O filme mostra que os “despossuídos”, agindo sozinhos, não conseguem se incluir na vida social. Sozinho, o operário se difunde como mais um na multidão.

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CANTANDO NA CHUVA 36


1951

CANTANDO NA CHUVA (SINGIN’ IN THE RAIN)

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EUA, 1951 Direção: Stanley Donen e Gene Kelly Elenco: Gene Kelly, Jean Hagen, Debbie Reynolds, Donald O’Connor Palavras-chave: arte, costumes, indústria cultural, juventude

m uma época dourada da vida urbana, a chuva ainda era símbolo de transparência, transcendência, de infância, e Gene Kelly se permitia brincar. Ao pisar no tapete vermelho, rodeado por fãs e por fotógrafos, Don Lockwood (Gene Kelly), famoso astro do cinema mudo em Hollywood, conta como iniciou sua carreira, passando por dublê até chegar ao estrelato. Mas as imagens, apresentadas em flash backs, mostram como ele distorce a realidade a seu favor. Don diz que sempre foi o mocinho, mas esconde que passou por maus momentos. O que ele ainda não sabe é que uma novidade mudará totalmente sua profissão: a introdução da fala no cinema. Com sua colega Lina Lamont, Don se vê diante de novas tecnologias que propiciam a inserção de ruídos e diálogos nos filmes. Quando a voz passou a ser um elemento importante, a beleza física sozinha já não era suficiente. Neste sentido o filme aborda, ainda que grosso modo, a equação “aparência X essência”, tema pueril e recorrente no escopo moral da cultura hollywoodiana, sobretudo da década de 1950. Neste contexto, a simples e singela Kathy Selden surge como uma nova mulher, com talentos que vão além de sua beleza angelical. Mais do que tratar da passagem do cinema mudo para o cinema falado, Cantando na Chuva é, em si mesmo, parte da história do cinema. Leve e bem humorado, ele brinca com a metalinguagem revelando bastidores, cenários e gravações dos filmes. E trata com graça dessa difícil transição do cinema, vivida na década de 1920. Cantando na Chuva é um filme que tem o dom de rir de si mesmo.

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SINDICATO DE LADRÕES 38


1954

SINDICATO DE LADRÕES (ON THE WATERFRONT)

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EUA, 1954 Direção: Elia Kazan Elenco: Marlon Brando, Karl Malden, Eva Marie Saint Palavras-chave: comunismo, macarthismo, portuários, sindicato, sindicalismo

indicato de Ladrões mostra a corrupção em uma organização sindical dos portuários estadunidenses, na década de 1950, e o processo de conscientização social do jovem Terry Malloy. Desgarrado do grupo, ele compreende a importância da união dos operários e se volta contra o sindicato corrupto. Terry Malloy é um ex-boxeador que, em queda, se junta à máfia do porto de Nova York. Depois de participar da agressão a um trabalhador, que morre, ele se sente culpado. E seu remorso é agravado quando ele se apaixona pela irmã do trabalhador morto. O filme foi produzido em meio ao clima de histeria anticomunista que marcou os EUA na época do macarthismo. Nesse sentido, Sindicato de Ladrões está cercado pela lenda da traição, nas telas e fora delas. O protagonista Terry, por exemplo, foi traído pelo irmão advogado, Charlie. Nos bastidores, o diretor Elia Kazan, que havia sido membro ativo do Partido Comunista dos EUA, foi acusado pelo Comitê de Atividades Antiamericanas no Congresso, que movia o macarthismo anticomunista, e acabou por delatar antigos camaradas do partido. Um deles era o dramaturgo Arthur Miller, que trabalhava no roteiro do filme mas o abandonou quando foi pressionado para descrever como comunistas os vilões e gangsters do filme. Desde então Elia Kazan foi visto e apontado como um dos principais delatores do macarthismo.

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DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA 40


1957 DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA (TWELVE ANGRY MEN)

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EUA, 1957 Direção: Sidney Lumet Elenco: Henry Fonda, Martin Balsam, Lee J. Cobb, Jack Warden, E.G. Marshall Palavras-chave: direito, justiça, lógica, opinião pública, persuasão

vida está em suas mãos. A morte em suas cabeças! (Life is in their hands. Death is on their minds!) foi o slogan de lançamento do filme Doze Homens e uma Sentença. Trata-se de uma charada sobre responsabilidades no que se refere à vida das pessoas no ato de julgá-las. Todo o filme se passa em uma sala. Mas mesmo assim ele é dinâmico. O instigante debate entre os doze jurados para proferir a sentença contra um jovem porto-riquenho acusado de assassinar seu próprio pai, resultou em uma obra cinematográfica de grande valor humanista. Logo na primeira cena o juiz deixa claro: “Um homem está morto. A vida de outro está em jogo. Se houver dúvida razoável sobre a culpa do acusado, devem entregar-me o veredito de inocente. Se, entretanto, não houver, devem, em sã consciência, declarar o acusado culpado. A sentença de morte é compulsória neste caso. Estão frente a grande responsabilidade”. Ao entrar na sala, antes do debate, a maioria dos doze homens já está convencida da culpa do garoto que, deveria, então, ser condenado à cadeira elétrica. Mais do que julgar à primeira vista, eles demonstram querer livrar-se logo daquele encargo. Preocupados com outras coisas os onze jurados relutam em ficar ali, com um caso cuja solução lhes parecia óbvia. Entretanto, o décimo segundo jurado – o arquiteto Davis –, pondera que se trata de decidir sobre a vida de um jovem e afirma que teme tomar a decisão errada. Assim, mesmo que a contragosto da maioria, inicia-se o debate. Cada prova é debatida. A persistência de Davis traz à tona as peculiaridades de cada indivíduo. Precon-

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ceitos de raça, de classe, geração, idade e profissão transparecem na discussão. Muito além de um julgamento, as reações dos jurados, os conflitos de personalidades e os temperamentos diferenciados dos personagens provocam reflexões sobre o comportamento humano e sobre a formação social e cultural da consciência. Interessante ressaltar a questão da responsabilidade sobre o outro e a importância de uma ação individual dentro de um grupo: a responsabilidade social. Trabalhar coletivamente a opinião de uma pessoa, mesmo que contrária a todas as outras, pode fazer a diferença. Comumente a cultura e a ideologia dominantes

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estão impregnadas de preconceitos e de uma apresentação tendenciosa dos fatos, no sentido de “fazer a cabeça” da maioria. E só o exame detalhado dos fatos, da política, dos movimentos sociais etc. pode levar a conclusões diferentes daquilo que é apresentado como verdade. Há uma poderosa máquina de persuasão ideológica, formada pela imprensa, que manipula os fatos de acordo com interesses privados das forças dominantes, e que só mostra ao seu público aquilo que considera verdade. Cabe ao trabalhador refletir sobre o encadeamento dos fatos, ou a falta de encadeamento. Cabe ao trabalhador compreender a ação coletiva, dentro da qual sua opinião é de grande responsabilidade.


JECA TATU

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1959

JECA TATU

J

Brasil, 1959 Direção: Milton Amaral Elenco: Amácio Mazzaropi, Roberto Duval, Agnaldo Rayol, Cely Campello Palavras-chave: agricultura, caipira, costumes, história do Brasil, modo de produção, urbanização

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eca Tatu é o estereótipo da origem do povo paulista. Sua história mostra as relações que se estabeleceram na zona rural de São Paulo, entre imigrantes, donos de terras e o caipira. E também com o mundo urbano que crescia. De origem tupi, a palavra caipira é usada, desde os tempos coloniais, para designar o morador da roça, os mestiços de branco e índia, os mamelucos que no século XVIII eram recenseados como “bastardos”, os considerados racialmente impuros da mestiçagem indígena com o português. No filme Jeca Tatu é um bicho do mato, um caipira preguiçoso e simplório que vive na zona rural do Interior de São Paulo. Ignorante e ingênuo, Jeca, na interpretação singular de Mazzaropi, salda dívidas na mercearia dos “italianos” com pedaços de sua terra. Mas, assim como em geral acontece com o povo pobre do meio rural, Jeca é forçado a deixar sua terra, com sua família, e seguir, de carroça, em busca de sobrevivência. Eles se destinam a São Paulo, que, naquela época, já tinha os contornos de uma cidade grande. Beneficiada pela economia do café, a capital vivera intenso processo de urbanização que a elevou ao posto de maior centro urbano brasileiro. E nela ocorre o confronto da cultura caipira e a urbanização. De forma bem-humorada e irônica, o filme mostra os males das relações de colonato e coronelismo que marcaram a zona rural brasileira na década de 1950. E insinua que na cidade grande as pessoas “urbanizadas” se aproveitavam para “crescer” em cima do atraso e da desigualdade que permeava todas as relações. O personagem de Monteiro Lobato incomodou a elite intelectual de sua época, acostumada a uma visão


romântica do homem do campo. Jeca Tatu representa o trabalhador rural paulista abandonado pelos poderes públicos, vivendo nas doenças, no atraso e na indigência. Entretanto o personagem “evoluiu” na obra de Lobato acompanhando a evolução das campanhas sanitaristas. Ele, que surgiu como um parasita inadaptável ao meio urbano, com o tempo se transformou em um novo símbolo de brasilidade. Um símbolo assimilado e reinventado por Amácio Mazzaropi. Diz-se que Monteiro Lobato estigmatizou o cai-

pira tomando-o como paradigma. Mas o Jeca de Mazzaropi tem outra influência, a do caipira “branco”, com ascendência italiana. E retrata o trabalhador rural ingênuo do Estado de São Paulo. Mazzaropi é um dos maiores símbolos da cultura paulista. Da cultura de um povo do interior, autônomo, isolado e sacrificado pelo progresso avassalador da metrópole. Ele extrai humor de situações tristes. Brinca com o realismo, propondo uma visão singela, imediata e material dos fatos.

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SPARTACUS

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19 60

SPARTACUS (SPARTACUS)

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EUA, 1960 Direção: Stanley Kubrick Elenco: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Peter Ustinov, John Gavin, Jean Simmons, Charles Laughton, Tony Curtis Palavras-chave: escravidão, história, império

urante o Império Romano o trabalho escravo atingiu proporções de extrema crueldade e exploração do homem. Spartacus retrata esta situação através da história de um escravo, condenado à morte por morder um guarda em uma mina na Líbia. É uma história clássica da rebelião escrava. Spartacus foi o maior líder escravo durante toda a história do Império Romano, tendo vivido provavelmente entre 120 a.C e 50 a.C. Transformado em gladiador pelo lanista (negociante e treinador de gladiadores) Lentulus Batiatus, em cuja escola de gladiadores foi treinado, na proximidade de Capua. Em 73 a.C. ele liderou um levante de 74 gladiadores, cujo exército foi crescendo e atingiu toda a Itália, entre Roma e a Sicília. O poder dos rebeldes foi subestimado pelos generais romanos que, entretanto, precisaram tomar medidas bélicas radicais ante a capacidade de resistência dos revoltosos. Inicialmente as legiões romanas subestimaram seus adversários e foram todas massacradas por homens que não queriam nada de Roma, além de sua própria liberdade. Até que, quando o Senado romano toma consciência da gravidade da situação, decide reagir com todo o seu poderio militar O filme, gravado em Madrid, na Espanha, e na Califórnia (EUA), foi baseado no romance homônimo do escritor comunista norte-americano Howard Fast. Curiosidade: o herói foi citado seu preferido por Karl Marx na lista de “Confissões”, que preencheu para sua filha Jenny, em 1865.

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O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA 48


19 62 O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (THE MAN WHO SHOT LIBERTY VALANCE)

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EUA, 1962 Direção: John Ford Elenco: John Wayne, James Stewart, Lee Marvin, Edmond O’Brien, Vera Miles, Andy Devine Palavras-chave: costumes, direito, Estado, gangsterismo, urbanização

chegada do idealista e literato Ransom Stoddard a um território sem lei, típico do fim do século 19 nos EUA, representa o conflito entre os valores do Velho Oeste e o advento do progresso. Em 1910, o senador Ransom Stoddard chega a uma pequena cidade para o funeral de uma lenda de outros tempos, Tom Doniphon. No filme, passado em flash back, Stoddard resgata histórias de sua juventude em entrevista ao repórter Maxwell Scott. O funeral o recorda da época em que era advogado na cidade e desejava usar a lei, e não a força, para deter o terrível pistoleiro Liberty Valance. Ele se lembra de como conhecera Doniphon, respeitado caubói que insistia na lei do revólver. Doniphon e Stoddard eram dois opostos. Dois lados da mesma moeda. Um pela força, outro pela lei, ambos buscavam a justiça. Ambos ansiavam por dias melhores para aquele esquecido vilarejo. E ambos compartilhavam o interesse pela mesma mulher. Tom Doniphon era o único homem cuja força e coragem eram reconhecidas por Liberty Valance. Mas a chegada do advogado Stoddard trouxe novos ares. Quando começa a dar aulas para o povo da cidade, Stoddard assume como lema: “A educação é a base para a lei e a ordem”. Ele desejava transformar o lugar em um distrito, mudança contrária aos interesses de Valance. Mas a parceria de Stoddard e Doniphon, mesmo tensa, seria a solução para aplacar o facínora. O surpreendente duelo final marca a evolução social do lugar e a fundação de uma cidade. Aquele território sem lei faz parte do imaginário estadunidense uma vez que, até a década de 1820,

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a maior parte dos territórios a oeste dos Montes Apalaches não era povoada. Ao longo da primeira metade do século 19, milhares de americanos e imigrantes europeus passaram a mover-se para o oeste, em direção aos novos territórios obtidos pelos Estados Unidos da Inglaterra, após a guerra da independência, e da França, após a compra da Louisiana. No fim do século 19, época em que se passa a história contada no filme, imperava

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o domínio pela lei das armas, realidade ainda comum na conquista do Oeste dos Estados Unidos. Voltando a 1910. Ao final da entrevista para o jornalista Maxwell Scott, Stoddard revelou quem realmente matara Valance e pergunta: “Vai usar essa história, Mr. Scott?”. O jornalista, então, responde: “Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda antecede os fatos, publique-se a lenda”.


OS COMPANHEIROS 51


1963

OS COMPANHEIROS (I COMPAGNI)

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Itália, 1963 Direção: Mario Monicelli Elenco: Marcello Mastroianni, Annie Girardot, Renato Salvatori, Bernard Blier, Folco Lulli Palavras-chave: exploração, luta de classe, proletarização, sindicalismo

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o fim do século 19, a indústria europeia crescia a todo vapor, e a exploração do trabalho operário não tinha limites. Foi neste contexto que, nas imediações de Turim, Itália, a chegada do professor Sinigaglia coincide com a data de um desastre que mobilizou os operários: um trabalhador, exausto devido sua carga de 14 horas diárias, descuida e perde um braço na máquina que operava. O fato faz os demais operários questionarem suas condições e, sobretudo, a jornada de trabalho. Mas, sem experiência, aqueles trabalhadores não conseguem agir organizadamente, e a chegada de Sinigaglia os ajuda. Não foi por acaso que ele desembarcou naquela região industrial, conhecida pela degradação ao trabalhador. Seu objetivo era justamente organizar a classe trabalhadora e formar sindicatos. O professor, então, começa se aproximar dos operários e a participar de suas assembleias. Com conhecimento teórico e eloquência ele se destaca como uma liderança. E orienta os demais a criar um fundo de greve, negociar, fazer piquetes e manter sempre o ânimo elevado. Mas suas teorias não funcionam e a situação fica cada vez mais caótica. Sem saída, Sinigaglia clama aos operários a ocupar a fábrica. Num choque de realidade, o protesto tem um desfecho trágico. Fica a questão: as massas precisam de um intelectual, que venha de fora, sem experiência com o trabalho na fábrica, para aprender a se organizar? O tom documental do filme insere-se no rescaldo do neorrealismo italiano do final da Segunda Guerra Mundial. Os Companheiros mostra situações reais. E o ponto crucial da crítica de Monicelli é o conflito entre a tomada de consciência do operariado a partir de sua própria situação e a necessidade de um “instrutor” que venha de fora para organizar os trabalhadores. Hoje, mais de quarenta anos após sua estreia, Os Companheiros ainda instiga um debate atual e procedente.


ALPHAVILLE

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1965

ALPHAVILLE (ALPHAVILLE)

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Itália/França, 1965 Direção: Jean-Luc Godard Elenco: Eddie Constantine, Anna Karina, AkimTamiroff Palavras-chave: censura, controle social, tecnologia, sociedade

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magine uma sociedade em que um computador controla todos os movimentos sociais e sentimentais de um povo. Esse é Alpha 60, computador de Alphaville, máquina que faz projeções e cálculos para todos os destinos e ações sociais. Alpha 60, inventado pelo cientista Von Braun, faz parte de uma cidade fictícia, totalmente tecnicista, em que as pessoas têm de abrir mão de sua expressão individual em função de uma sociedade mecânica, lógica, científica. Foi para destruir Alpha 60 que o detetive Lemmy Caution se infiltrou na cidade, um mundo novo onde o pensamento é proibido e sociólogos, professores, poetas, filósofos, pensadores em geral, são relegados à marginalidade e vivem na clandestinidade. Numa das cenas, um personagem conta ao detetive que o poder estabelecido ordena a retirada de palavras dos dicionários. São aquelas que podem desencadear sentimentos e sensações que podem vir a se tornar sementes contra o sistema da sociedade técnica. Alphaville é um filme que mistura ficção científica e policial noir. Em preto e branco, a ausência de cor também retrata o tom da sociedade e daquelas vidas mecânicas. O detetive Lemmy Caution infiltra-se nas esferas do poder de Alphaville e, como todo “estrangeiro”, é submetido a avaliações de perfil para que não infecte a sociedade criada pela máquina. Mas, por meio dessas entrevistas, ele vai corrompendo o sistema lógico de Alpha 60. Ele usa metáforas e outras figuras de linguagem que a máquina Alpha 60 não pode compreender, embora seja um ultracomputador capaz de executar milhões de análises por segundo. Afinal, são os homens


que projetam os computadores e, como já disse Picasso, “computadores não podem sonhar como os homens”. No final de Alphaville, o impiedoso computador Alpha 60 diz, com voz rouca, uma frase de Borges (Nova Refutação do Tempo) que poderia ser uma resposta: “O tempo é a substância mesma da qual sou feito. O tempo é o rio que me carrega, mas eu sou o rio; é o tigre que me rasga, mas eu sou o tigre; é o fogo que me consome, mas eu sou o fogo…”. O computador chega ao seu limite ao tentar

compreender trechos de poemas. Por mais que processe, analise os sentimentos humanos, é incapaz de combinar elementos e sensações que escapam às máquinas. As sociedades projetadas nas obras de arte, em obras ficcionais, já se formam sob uma realidade irreversível, como mostra a história da Foxconn, maior fabricante mundial terceirizada de celulares, manipuladora dos trabalhadores e do público em geral. Este é um desafio para os homens e os movimentos ligados em defesa do trabalhador. Ricardo Flaitt

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DOUTOR JIVAGO 56


1965

DOUTOR JIVAGO (DOCTOR ZHIVAGO)

A

EUA/Itália, 1965 Direção: David Lean Elenco: Omar Sharif, Geraldine Chaplin, Julie Christie Palavras-chave: comunismo, ideologia, Revolução Russa, guerras

Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917 servem de cenário para a história de amor entre o jovem médico aristocrata Yuri Jivago e Lara Antipova, uma enfermeira plebeia. Um amor embalado pelo inesquecível “Tema de Lara”, mega hit na época do compositor francês Maurice Jarre. Yuri Jivago e Lara Antipova se conhecem na época do império czarista e se reencontram por acaso no atendimento às vítimas da Primeira Guerra Mundial. Ao voltar para casa Jivago percebe que sua vida não é mais a mesma. A Revolução Russa havia posto fim à propriedade privada “socializando” a bela casa que o médico dividia com a esposa Tonya e o sogro. O filme parte do ponto de vista do drama da elite russa que, de uma hora para outra, se vê em decadência na recém-criada União Soviética. A cena que mostra pessoas do povo apropriando-se dos bens da alta sociedade é uma caricatura do pesadelo que assombra a burguesia na sociedade capitalista. Nesta cena uma senhora afirma a Jivago que aquela era uma casa grande o suficiente para treze famílias. O narrador, que conta a história em flash back, pondera logo no início: os homens que querem ir para a batalha, seja a guerra, seja a revolução, são os homens infelizes. Os felizes, realizados no amor, na família e no trabalho, esperam que não sejam lembrados na hora da convocação, e ficam contentes se algum motivo os impede de ir a campo. Esse comentário traz a ideia de indivíduo e seu universo particular, que é cara ao embate ideológico entre capitalismo e socialismo. O que estava em questão, para a burguesia russa, eram seus hábitos e suas idiossincrasias. E a justiça social não estava neste horizonte.

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Por outro lado, há certa legitimidade na crítica de Pasternak ao regime no qual até a arte se tornou propaganda oficial, descartando expressões subjetivas. Em muitos aspectos Doutor Jivago é um filme anticomunista. Mas, é importante ressaltar que ele é abordado a partir da visão de alguém que sofreu na pele as transformações radicais e o endurecimento necessário para a instauração do regime. Não se trata de uma visão ampla, distanciada, que pondera o efervescente movimento internacional de então, ou a precariedade da vida popular

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na Rússia sob o poder dos czares. Neste sentido pode-se dizer que Doutor Jivago trata do sacrifício de alguns por uma grande transformação. Seu cenário é um grande acontecimento histórico, que se estendeu por mais de setenta anos, e que trouxe uma nova perspectiva social para o mundo. Doutor Jivago, baseado no romance homônimo de Boris Pasternak, evita criticar diretamente o socialismo soviético, conferindo à obra um teor romântico. Mesmo assim o filme foi censurado.


SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA 59


1965 SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA

A

Brasil, 1965 Direção: Luís Sérgio Person Elenco: Walmor Chagas, Eva Wilma, Darlene Glória, Otello Zeloni, Etty Fraser, Sérgio Hingst Palavras-chave: classe social, costumes, indústria, modo de produção, urbanização

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instalação de indústrias automobilísticas estrangeiras no Brasil na euforia desenvolvimentista, no final dos anos 1950, trouxe grandes mudanças na sociedade e na organização do trabalho. Em São Paulo S.A., Carlos, um jovem da classe média paulistana, começa a trabalhar numa grande empresa e ascende na profissão, tornando-se gerente em uma fábrica de autopeças. Seu patrão é um canalha, sonegador de impostos e tem várias amantes. Mas parece que isto não importa, e Carlos torna-se um típico chefe de família da sociedade burguesa: trabalha muito, ganha bem, consome bens da indústria, mas vive insatisfeito. Um chefe de família típico de classe média, que não é nem bom filho, bom marido, bom amante ou bom pai. Perambulando pela represa Guarapiranga, pela praia de São Vicente, pelo Interior e centro de São Paulo, ou pela fábrica da Volkswagen na beira da Rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP), Carlos pode ser visto como o protótipo do profissional de classe média, insosso e sem graça, que se submete a tudo para “vencer na vida”. Ajuda o patrão, o ítalo-brasileiro Arturo, em suas falcatruas para sonegar impostos, burlar a legislação trabalhista, a manipular os empregados – tudo dentro de uma típica estratégia de acumulação capitalista primitiva. O filme retrata o começo do sonho do “Brasil Grande”, do desenvolvimento vivido sob Juscelino Kubitschek (entre 1957 e 1961), depois aprofundado pela ditadura de 1964, com base no arrocho salarial, no desprezo aos direitos dos trabalhadores e na rendição às imposições do capital estrangeiro. Embora bem-sucedido, Carlos dá sinais de que entende que aquela riqueza material é vazia de sentido se for desprovida de aspirações mais profundas nessa vida. Em diversos momentos ele parece ser um mero espectador de sua própria vida. Sem um projeto de vida ou perspectivas para fugir da condição que rejeita, só lhe resta fugir.


2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO 61


1968

2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO (2001: A SPACE ODYSSEY)

N

EUA, 1968 Direção: Stanley Kubrick Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester Palavras-chave: guerra fria, materialismo, práxis, préhistória, tecnologia

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a ficção científica de Stanley Kubrick a imagem do futuro não virou uma fantasia. 2001 é conduzido por uma austeridade e por uma percepção do caminho que o homem já começava a perseguir nos anos de 1960. O filme conta a história de uma missão espacial em Júpiter, antes mesmo de o homem chegar à Lua (em 1969). Não por acaso, pois foi rodado em plena guerra fria, numa época em que os Estados Unidos e a União Soviética disputavam os avanços armamentistas empenhando-se nas missões espaciais. O ritmo arrastado de seu enredo nos introduz em um clima lento e impreciso, simulando a falta da pressão da força da gravidade. A sobriedade e clareza dos personagens, os olhares atentos, o som da respiração dos astronautas no vazio, enfim, tudo é pensado de modo a recriar um ambiente dominado pela física e pela matemática. Sua extrema racionalidade, entretanto, está longe de ser desencantada. Ao contrário, a dança das formas, das cores, dos sons e do silêncio se traduz numa vertigem hipnotizante. Exaltando a beleza das formas geométricas e da música clássica o filme explora os limites da técnica, da perfeição e da harmonia. O filme é uma reflexão sobre o homem, sobre sua relação com a natureza e sobre o conceito essencial do trabalho. Se seu objetivo fosse apenas mostrar máquinas engenhosas e uma previsão do futuro, qual seria o significado de abordar a pré-história do homem, quando nossos ancestrais começaram a manusear objetos e usá-los para suas necessidades diárias? E, ainda, se a intenção fosse somente expor os avanços tecnológicos, por que a história enveredaria por uma tensão entre o computador e o homem, quando o su-


percomputador HAL 9000 decide se vingar da tripulação ao notar que seria desligado? Ao representar o momento em que os primatas passam a usar pedaços de madeira e ossos como ferramentas, que revelam as primeiras demonstrações concretas de consciência e de planejamento, e ao saltar destes primeiros passos evolutivos para uma avançada sofisticação tecnológica, que permite ao ser humano explorar além dos limites de seu próprio planeta, o filme trata, fundamentalmente, da capacidade humana de raciocinar, elaborar e criar. Ao descobrir a possibilidade de usar objetos rudimentares como ferramentas o homem deu um passo no sentido de desenvolver habilidades físicas e cognitivas e criar equipamentos mais complexos. A criação da roda, por exemplo, possibilitou, muito mais tarde, a criação do automóvel, que se sofisticou em inúmeras outras criações que podemos ver hoje. Esta capacidade de elaborar que o homem desenvolveu está na base do conceito do trabalho. Isto pode parecer estranho, pois a ideia de trabalho hoje em dia remonta a um sistema consolidado, que muitas ve-

zes distancia o trabalhador do que se pode chamar de elaboração e processo criativo. O trabalho, dentro do modo de produção capitalista, evoluiu para uma forma alienante, em que o trabalhador é colocado como uma peça em um processo que não domina. Mas a ideia de trabalho também está sempre ligada ao esforço humano de inventar e produzir. Mesmo neste trabalho alienado e injusto há um processo produtivo em curso. O trabalho não é apenas o esforço repetitivo e cansativo de uma linha de produção. Em suas múltiplas facetas ele pode ser um ato criativo e de emancipação humana. 2001: Uma Odisseia no Espaço coloca no centro de sua argumentação o conceito mais elementar de trabalho e o quociente da responsabilidade do homem pela sua própria evolução. Hoje, muito do que está no filme se verificou na prática. A tecnologia foi ainda muito mais longe do que Kubrick imaginou. O homem, entretanto, continua a ficar perplexo ante o desconhecido. O futuro não significou um completo conhecimento da realidade e domínio da natureza. Ao contrário, muitas outras questões surgiram e a natureza cobra pela ganância humana.

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ERA UMA VEZ NO OESTE

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1968

ERA UMA VEZ NO OESTE (C´ERA UNA VOLTA IL WEST)

T

Itália/EUA, 1968 Direção: Sergio Leone Elenco: Charles Bronson, Henry Fonda, Jason Robards e Claudia Cardinale Palavras-chave: ferrovia, gangsterismo, infraestrutura, recursos naturais, urbanização

ransformador, selvagem e violento, o processo de ocupação do Oeste nos EUA é um tonel de lendas e de histórias. Histórias de honra e de traições mas, acima de tudo, histórias de mudanças, do advento de novos tempos, do início de novas histórias. O Oeste imaginário é alaranjado pelo encontro do sol com a terra no vazio. É distante, vasto, desconhecido. É o que restou de intocado do Novo Mundo. Por outro lado, o Oeste inspira oportunidades, empreitadas, tomadas de posse. Inspira trabalho por fazer, lapidação da pedra bruta. Mantém ares de Eldorado. Em Era uma Vez no Oeste, Sergio Leone traduziu este espírito para o cinema. Seu enredo é elementar: a ex-prostituta de New Orleans, Jill, larga a vida na cidade grande para casar com Brent McBain, dono da fazenda Água Doce, no vazio do Oeste. Ao chegar à fazenda ela se depara com a mais crua verdade daquele lugar sem lei. Sua nova família jaz morta sobre as mesas de sua festa de casamento. A questão é: quem foi o mandante? E por quê? Algumas possibilidades se revelam e a narrativa se desenvolve. Jill toma a frente dos negócios de seu ex-noivo e percebe que está diante de um projeto com grande potencial, pois, quando construída, a ferrovia deveria passar necessariamente por sua propriedade, já que ali havia água. Mas o empreendimento deflagra um processo de choques de interesses, contra o qual Jill deve lutar. Ela simboliza a prosperidade do local. Simboliza os novos tempos. A tradução correta do título em italiano (C´era una volta il west), que significa Era uma Vez o Oeste, faz alusão ao fim do Oeste e à vinda do progresso. E

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o Oeste em questão corresponde à parte ocidental dos EUA, a partir do Mississippi, do período anterior à Guerra Civil Americana até a virada do século XX. O western (que significa ocidental) refere-se à fronteira do Oeste norte-americano durante a colonização. Evoca o tempo da ocupação de terras, do estabelecimento de grandes propriedades de criação de gado, das lutas com os índios e a sua segregação, das corridas ao ouro na Califórnia etc.

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Com o tempo, a fronteira converteu-se num mito nos Estados Unidos. A conquista do Oeste passou a figurar como referência a certos valores do país, como a criação de oportunidades, o pragmatismo, a capacidade de inovação e o esforço orientado para o progresso. Para o bem e para o mal este mito é a base do self-made man típico dos EUA. Tanto para o empreendedor visionário e idealista quanto para o sanguinário justiceiro.


QUEIMADA 67


1968

QUEIMADA (QUEIMADA)

Q

Itália, 1968 Direção: Gillo Pontecorvo Elenco: Marlon Brando, Renato Salvatori, Norman Hill, Evaristo Marquez, Tom Lyons Palavras-chave: escravidão, colonialismo, revolução

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ueimada é uma das centenas de ilhas das Antilhas. Tem esse nome porque, para vencer a resistência dos índios, os portugueses tiveram que queimar a ilha. Quase todos os nativos foram mortos. E escravos africanos foram levados para trabalhar nos canaviais. A bordo de um navio, um tripulante explica ao diplomata inglês Willian Walker as características da ilha. Assim começa Queimada, filme de Gillo Pontecorvo. Todos os movimentos do homem são muito bem pesados e medidos. Não existe nada aleatório no jogo político mundial. Willian Walker chega a Queimada com a missão de mudar a ordem do poder local, quebrar o monopólio português sobre a cana-de-açúcar para atender aos interesses da Coroa Inglesa. Mas como alterar a ordem estabelecida em Queimada? Para isto, Walker tem de encontrar/forjar um líder entre a população para deflagrar a revolução. Vê essa possibilidade no escravo José Dolores, cujo anseio de liberdade incita, levando-o à condição de revolucionário. Com o discurso de que sua intenção é acabar com a exploração dos negros, Walker manipula José Dolores e sua liderança para alcançar os interesses econômicos da Inglaterra. Hábil, astuto, maquiavélico, une dois interesses: o anseio dos negros pela liberdade e, ao mesmo tempo, a mudança do centro do poder da ilha. Com José Dolores consolida a revolução. Os negros depõem o governo, mas o ex-escravo descobre que não seria ele o governante do país. Indignado, assume o poder à força. Mas seu “mandato” não dura muito, pois governar não é tão simples como os sonhos dos românticos e dos idealistas. Willian Walker questiona o então presidente de Queimada, José Dolores: “Quem serão seus ministros? Com quem você irá negociar?...”.


Ou seja, como comandar o país e seus inúmeros interesses que permeiam? Com olhar perplexo, Dolores se vê perdido, sem a dimensão de que governar é preciso muito preparo. Em outro diálogo carregado de ironia, Walker fala a Dolores: “A civilização é muito complicada”. Diante desse impasse, Dolores resolve fazer um pacto. Concorda que o país seja governado por outro representante, desde que sejam feitas algumas mudanças, como a libertação dos escravos. Nove anos mais tarde Willian Walker retorna a Queimada, que agora vive sob uma ditadura. Dolores já não estava no poder e voltara a ser um revolucionário. Mas agora Walker não “precisa” de Dolores, pois aqueles que estão no poder obedecem à Coroa Inglesa. A resistência de Dolores precisa ser eliminada; ele precisa ser morto e passa a ser caçado como inimigo do Estado. Cabe aqui perfeitamente uma declaração de Maquiavel: “Os homens mudam de governantes com grande facilidade, esperando sempre uma melhoria. Essa es-

perança os leva a se levantar em armas contra os atuais. E isto é um engano, pois a experiência demonstra mais tarde que a mudança foi para pior”. Os governantes fazem com que o povo acredite que ele ocupará o poder e terá oportunidade de decidir seu destino, mas ao final constata-se, no círculo vicioso da História, que o povo, ainda que sob uma nova roupagem, continua a ser “massa de manobra” daqueles que detêm o capital e o conhecimento, já que o saber também é uma forma de poder. Queimada é uma aula de política, envolve temas sobre um determinado período da história (inclusive do Brasil) e a relação do homem e seus interesses. Essencial para se entender os mecanismos do mundo. Queimada não tem a pretensão enfadonha de narrar uma história romântica dos oprimidos. É um grande filme porque mostra como o funciona o mundo. Não defende opressores nem oprimidos, mas mostra com inteligência como as coisas operam na política, com todos os seus jogos e interesses. Ricardo Flaitt

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KES

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1969

KES (KES)

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Inglaterra, 1969 Direção: Ken Loach Elenco: David Bradley, Brian Glover, Freddie Fletcher, Lenny Perry Palavras-chave: desigualdade, exploração, juventude, mineração, proletarização

m Kes a extração de minérios é a única alternativa no bairro pobre onde vivem mineiros ingleses. E o menino Billy sente que esse triste destino pesa em seus ombros desde a vida escolar, na passagem da infância para a adolescência. Billy é um garoto tímido, com temperamento de artista. Ele não encontra acolhimento no mundo ao seu redor: em sua família, na escola e no ambiente de trabalho que o aguarda. Seu talento, atenção, persistência e habilidade são despendidos na criação e no treinamento de um filhote de falcão chamado Kes. É uma tarefa rara, ressalta-se. Mas o garoto se dedica a ela, conquista a confiança do animal e é bem-sucedido. Um ofício raro, uma arte! Naquele contexto, entretanto, não há espaço para a beleza da natureza selvagem de Kes e de Billy. A pequena ave Kes é símbolo da força da liberdade e da natureza. Sua história mostra a dor de uma infância desperdiçada, dos sonhos perdidos e do encarceramento subterrâneo. O filme é baseado no conto A Kestrel for a Knave, de Barry Hines (1968), e, como o livro, traz uma amostra da vida operária nas regiões mineradoras de Yorkshire. Ambientado em Barnsley, manteve o dialeto local nos diálogos, e os atores usaram o autêntico sotaque Yorkshire. O principal cenário da escola foi o de St. Helens School, Sul de Athersley, depois com o nome mudado para Edward Sheerien School.

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M.A.S.H.

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1970

M.A.S.H. (M.A.S.H.)

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EUA, 1970 Direção: Robert Altman Elenco: Donald Sutherland, Sally Kellerman, Elliott Gould, Tom Skerritt, Robert Duvall Palavras-chave: guerra fria, história, juventude, medicina

filme mostra, de maneira inusitadamente leve e descontraída, o trabalho dos médicos cirurgiões no socorro aos feridos na Guerra da Coreia (1950 a 1953). Os protagonistas, os jovens cirurgiões Duke e Hawkeye, demonstram como relações de trabalho, hierarquia, turnos etc. se mantêm mesmo em meio à guerra. O humor irônico surge como um subterfúgio dos doutores diante do horror da situação. No ano em que o filme foi lançado, 1970, a agressão dos Estados Unidos contra o Vietnã já se arrastava por mais de uma década. De forma velada, uma vez que foi contextualizado na Guerra da Coreia, M.A.S.H. foi o primeiro filme a abordar questões relacionadas àquela guerra. Denunciou as batalhas sangrentas, que fizeram milhares de vítimas entre os soldados norte-americanos, e deu notoriedade ao diretor, Robert Altman, que até então havia dirigido filmes e programas de televisão sem muito destaque. O filme se passa, ficcionalmente, na Guerra da Coreia, mas a referência ao Vietnã era implícita e indisfarçável. A história se passa no 4.077º Hospital Cirúrgico Móvel do Exército Americano, na Coreia, e relata as aventuras amorosas dos cirurgiões do Exército, que inventam as mais hilariantes aventuras e procuram, assim, manter a cabeça em ordem em meio a um mundo que, em virtude da guerra, desabava.

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A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO 74


1971 A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO (LA CLASSE OPERAIA VA IN PARADISO)

S

Itália, 1971 Direção: Elio Petri Elenco: Gian Maria Volonté, Mariangela Melato, Gino Pernice, Luigi Diberti, Donato Castellaneta Palavras-chave: linha de produção, luta de classe, metalúrgico, operariado, sindicalismo

ubir na carreira, ascender socialmente e almejar pequenas tentações da sociedade de consumo ou arriscar-se na luta por um mundo mais justo? Este impasse ideológico de muitos trabalhadores é o mote de A Classe Operária vai ao Paraíso. O filme conta a história de Lulu, um metalúrgico tão dedicado que chega a ser adorado por seus patrões e odiado por seus colegas. Considerado alienado e despolitizado, ele não se envolve em protestos sociais e vive sonhando com aquilo que imagina que o dinheiro lhe permitirá consumir. Eis que um acidente reverte esta história. Ao operar sua máquina de trabalho Lulu perde um dedo. Sentindo-se injustiçado, descobre a vida sindical. Ao se politizar ele ainda tropeça nos desejos pela sociedade de consumo. Neste processo de conscientização política ele se vê entre o radicalismo do movimento estudantil e o pragmatismo do movimento operário, e procura o velho companheiro Militina, operário que enlouquece devido às condições do trabalho na fábrica. Perder o dedo é um choque de realidade que faz com que Lulu perceba que a vida propagada pelo mercado capitalista não está ao seu alcance. Ele, então, passa a se ver como parte de uma classe social, a classe operária. Um dos temas principais do filme é o despertar da consciência operária. Ela não ocorre em condições ideais, como muitos imaginam; ocorre devido às contradições concretas do modo de produção capitalista e das mazelas às quais a classe operária é submetida. O filme mostra o fordismo, sistema técnico organizacional do capital, então dominante nas fábricas e empresas, levado ao seu limite, subordinando os trabalhadores à máquina, com seu séquito de desvalorização da força de trabalho, degradação do trabalhador e a consequente resistência operária. O filme reflete as profundas mudanças do capitalismo na década de 1970 e a crescente contestação do padrão fordista dominante.

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SACCO & VANZETTI 76


1971

SACCO & VANZETTI (SACCO & VANZETTI)

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Itália, 1971 Direção: Giuliano Montaldo Elenco: Gian Maria Volonté, Riccardo Cucciolla, Cyril Cusack, Milo O’Shea Palavras-chave: anarquismo, imigração, idealismo, socialismo

a história da humanidade não se morre e se mata apenas por meio de guerras, bombas, balas e espadas. No mundo dos homens, permeado por interesses de poder, morre-se, também, pelos ideais. A América do Norte recebeu, entre a metade do século XIX e as três primeiras décadas do século XX, milhões de imigrantes europeus, que chegaram praticamente sem nada para trabalhar nas indústrias, sendo parte do processo de industrialização, expansão e consolidação do sistema capitalista. Ao aportarem nos Estados Unidos, os imigrantes italianos traziam a ambição de conquistar a América, fazer fortuna e retornar a sua pátria. Mas o estilo de vida americano, vendido nos cartazes divulgados na Europa (que buscavam mão de obra barata), não condizia com as reais condições que os imigrantes encontraram. Na América sofreram grande discriminação, tendo que viver em aglomerados sendo observados como forasteiros. Porém os italianos, embora tenham trazido pouco, ou quase nada, chegaram à América com uma grande bagagem de ideias oriundas de um longo processo das relações conflituosas entre capital e trabalho, já secular na Europa. No momento histórico do filme, alguns países passavam por grandes transformações políticas. O medo do socialismo, inspirado pela Revolução Bolchevique (1917), aumentou a vigilância e a repressão em diversos pontos do globo. Movimentos como o anarquismo e o socialismo, que propunham um modo de produção alternativo ao capitalismo, eram reprimidos com violência. No filme, diante da exploração extrema, o peixeiro Bartolomeu Vanzetti encontra nas ideias anarquistas as explicações alternativas para um sistema mais justo

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e com oportunidades para todos. É numa reunião do movimento anarquista que Vanzetti conhece o sapateiro Nicola Sacco. Foi no combate a essas ideias opostas ao capitalismo que o Departamento de Polícia de Boston realizou uma batida num bairro habitado principalmente por italianos. Em meio à violência, invasões de domicílios e repressão ao Círculo Italiano do Trabalho (onde se realizam as reuniões), Sacco e Vanzetti fogem levando material anarquista. Num trem são parados por policiais que, ao os revistarem, encontraram duas armas. É neste contexto de afirmação do capitalismo diante da opção socialista que se desenrola a história verídica dos dois imigrantes operários italianos, acusados de roubar e assassinar, em 5 de maio de 1920, na cidade de Soupt Brainter, no Estado de Massachussetts, o contador Frederick Parmenter e o guarda-costas Berardelli quando saíam da fábrica de calçados Slater & Morril com 15 mil dólares referentes ao pagamento semanal dos operários. Como o sistema necessitava de bode expiatório para dar resposta aos atentados contra as autoridades americanas, e usá-los como exemplo aos demais anarquistas, atrelaram as armas de Sacco e Vanzetti ao crime ocorrido na fábrica de calçados. Da acusação formal na delegacia à inquisição no tribunal, o que se pôde ver foi a mão do sistema fazendo valer as regras que ele mesmo estabelece. Para incriminar os imigrantes, foi nomeado o promotor Katzmann, que inventou, manipulou e ocultou dados importantes no processo, que vão de testemunhas às armas. Movidos por racismo e pelo medo do socialismo, em uma cena-chave o promotor Katzmann discursa no Tribunal: “Dói o coração ver aqueles coitados, vindos das terras mais distantes, na miséria, incivilizados. Italianos, gregos, poloneses, porto-riquenhos, chilenos. Dá pena, é verdade. Pensar em seus esforços sobre-humanos para

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lançar raízes numa civilização superior, para se adequarem aos nossos costumes, a nossa mentalidade.” Em resposta o advogado de defesa, Moore, revolta-se: “Racismo!”. Mas Katzmann prossegue em seu discurso de ódio: “Membros do júri, quer pior racismo de quem, como a defesa quer contrapor a leais cidadãos americanos, a testemunhas corretas e conscienciosas, uma massa de pobres imigrantes, que nada sabe dos nossos princípios nacionais, dos grandes ideais da democracia e de justiça, que regulam nossa livre sociedade. Indivíduos que nem falam a nossa língua!”. O julgamento se estendeu de 1920 a agosto de 1927. A acusação sem fundamentos virou notícia. A tragédia de Sacco e Vanzetti moveu e comoveu multidões nos Estados Unidos e em diversos países. Com a repercussão do caso já não estavam mais sendo julgados por terem ou não roubado ou matado, mas sim por se tornarem símbolos dos oprimidos em todo o mundo. Diante da situação imposta pelo Estado, a melhor defesa seria encontrar os verdadeiros autores do crime, e o advogado de defesa descobre os verdadeiros criminosos; apesar disso, Sacco e Vanzetti foram condenados. O consciente Vanzetti, no tribunal, ao constatar a manipulação e a distorção completa dos fatos diz: “Estou aqui sendo julgado pela luta contra a exploração Ricardo Flaitt do homem pelo homem”.


ESTADO DE SÍTIO

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1972

ESTADO DE SÍTIO (ÉTAT DE SIÈGE)

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França/Itália/Alemanha Ocidental, 1972 Direção: Costa-Gavras Elenco: Yves Montand, Renato Salvatori, Jacques Weber, Jean-Luc Bideau Palavras-chave: América Latina, ditadura, guerra fria

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a década de 60 o mundo vivia uma guerra silenciosa entre dois polos com interesses e modos de vida diferentes. De um lado, um bloco encabeçado pelos Estados Unidos, símbolo maior do sistema capitalista, e, de outro, o bloco da União Soviética e o regime socialista. Nesse jogo de xadrez num tabuleiro mundial, as peças eram povos e nações. Os Estados Unidos comandaram a ofensiva para barrar os avanços do socialismo usando variados e inescrupulosos recursos, que vão do marketing e do controle da mídia a ações diretas, invadindo e ocupando os países à força e depondo governos legítimos. Contra essa ofensiva, a União Soviética apoiou governos de esquerda e progressistas. Na América Latina nem todos os países foram dominados pela guerra. A batalha que se travou ocorreu de forma dissimulada, no campo da política. Assim, as peças que não interessavam aos Estados Unidos e ao bloco dos países capitalistas não precisaram de muita força militar para aplicar os golpes de estado que, depois de consolidados, impunham sistemas ditatoriais. Para isto os norte-americanos forneceram recursos financeiros, bélicos e agentes para treinar as polícias políticas, com objetivo de reprimir as manifestações contrárias às ditaduras que surgiam. Este é o contexto do filme Estado de Sítio, de Costa Gavras. Baseado numa história real ocorrida no Uruguai, denuncia a história do sequestro do agente americano Dan Mitrione, morto pelos Tupamaros (grupo de resistência ao regime ditatorial). O real Dan Mitrione, no filme Phillip Michael Santore, foi morto pelos Tupamaros em 10 de agosto de 1970. Era um agente americano responsável por treinar os agentes da


repressão, inclusive com aulas de tortura. Passou pelo Brasil, onde recebeu até nome de rua em Belo Horizonte durante o período militar, “honraria” retirada após a redemocratização. Gavras, a partir do sequestro e execução de Mitrione, entrelaça todos os movimentos das ações praticadas pela esquerda (Tupamaros) e direita (governo/ americanos). A ação dos Tupamaros envolveu também o sequestro do embaixador brasileiro. A partir do sequestro de Mitrione o governo tomou medidas para encontrar e condenar os responsáveis. O que estava em jogo não era só a vida do agente americano, mas também a demonstração de poder da ditadura contra qualquer iniciativa de grupos da resistência. Para os Tupamaros, a vida de Mitrione era uma moeda de troca para obter a libertação de companheiros presos, além de outros direitos.

Gavras consegue entrelaçar diversas situações que se desencadeiam a partir do sequestro. A posição do governo, que tinha de manter o controle sobre os grupos de resistência, os movimentos clandestinos para se organizar e reivindicar direitos e a verdadeira guerra política travada no Parlamento. Estado de Sítio nos dá parâmetros, próximos da realidade, de como as ditaduras implantadas na América Latina agiam e, ao mesmo tempo, como era a reação de grupos que lutavam pela volta do estado democrático. Ainda que uma situação transcorrida no Uruguai, Estado de Sítio é uma síntese perfeita desse período de instalação da ditadura em diversos países da América Latina, seus desdobramentos, consequências e as reações de oposição ao sistema que suprimia os direitos e tentava controlar o povo. Ricardo Flaitt

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O PODEROSO CHEFÃO 2 82


1972

O PODEROSO CHEFÃO 2 (THE GODFATHER 2)

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EUA, 1972 Direção: Francis Ford Coppola Elenco: Robert De Niro, Al Pacino, Diane Keaton Palavras-chave: imigração, capitalismo, gangsterismo, máfia, poder

o debate sobre o trabalho como fenômeno sociológico, cabe uma reflexão sobre a formação destas macroestruturas. Neste sentido The Godfather 2 dá sua contribuição demonstrando o jogo através do qual elas se formam. Entre o século XVII e meados da década de 1980 europeus migraram em massa para os Estados Unidos. Marcada por guerras, conflitos e pobreza, a Europa foi deixada por uma enorme quantidade de pessoas que cruzaram o Atlântico. No final do século XIX, os anglo-saxões foram superados pelos imigrantes do Sul da Europa, em sua maioria italianos. Entre 1870 e 1980 entraram 5,3 milhões de italianos nos Estados Unidos. Foi daí que resultou o “novo” povo americano, sujeito de uma sociedade fresca e jovial, com passado recente frente à anciã Europa. Valendo-se deste contexto de imigração, e da pecha de “fazer a América”, The God Father, uma das mais bem-sucedidas trilogias da história do cinema, conta a saga dos Corleone desde a fuga do pequeno Vito, da Sicília, sul da Itália, até a consagração do poder da família nos Estados Unidos da América. É uma verdadeira novela sobre a era de ouro da máfia, com muitos personagens, uma densa carga dramática e tramas que correm em paralelo ao enredo central. Enquanto o primeiro filme apresenta a família, a personalidade de Don Vito Corleone, seu rol de “negociações” e as idiossincrasias de cada filho, o segundo, o mais denso e violento da série, revela a formação e as entranhas daquele império, desde o insight do podre e tolo Vito, que tomou o poder do mafioso local, até a tentativa de legalização, uma geração depois, dos negócios da família.

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The God Father 2 intercala dois momentos: o presente, com Michael Corleone à frente dos negócios, e o passado, quando o jovem Vito foge da Sicília e vai para a América, no início do século XX. Esta digressão é a parte mais interessante de toda a trilogia. Vito chega à América praticamente como um indigente. Ao se tornar adulto consegue emprego em uma importadora de azeite e acaba se aproximando de um vizinho bandido. Ao contrário de sua aparência pacata, Vito está atento aos acontecimentos e nota que, para virar aquele jogo, deve atacar o homem que se impõe à força como uma espécie de patrão – não de padrinho – da comunidade, Black Hand Fanucci. A tomada de poder é um gesto de artimanhas e de espertezas. A cena em que isto ocorre é muito simbólica, e mostra como Vito tornou-se o

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Poderoso Chefão. Ele passa então a conceder “favores” à comunidade, que passa vê-lo como um “padrinho”. É a própria história da América. No presente, o caçula Michael Corleone planeja abrir cassinos em Havana (Cuba), para onde viaja no réveillon de 1958 e 1959. A agitação das ruas por insurgentes cubanos, dispostos a derrubar o governo de Fulgêncio Batista que, entre outras coisas, era permissivo com a Máfia, mostra a Revolução Cubana a partir dos olhos do conservador e mercenário Michael. A saga do Poderoso Chefão ilustra a história de uma América jovem, relutante e em constante transformação. Uma história que vai resultar em filhos tipicamente americanos, que buscam liberdade e caminhos alternativos, como se vê na terceira parte da trilogia, a mais reflexiva de todas.


NOSSO AMOR DE ONTEM 85


1973

NOSSO AMOR DE ONTEM (THE WAY WE WERE)

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EUA, 1973 Direção: Sydney Pollack Elenco: Barbra Streisand, Robert Redford, Bradford Dillman, Lois Chiles Palavras-chave: guerra fria, idealismo, juventude, macarthismo, militância

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uvenil e nostálgico, Nosso Amor de Ontem conta a história de amor entre Katie Morosky, uma ativista política e o atleta, rico e protestante Hubbell Gardiner, em 1937. A história atravessa vários anos. Cada um segue seu caminho e, quando se reencontram, os contrastes acerca da visão de mundo dos dois fica evidente. A maior parte do filme se passa na época do macarthismo, e a dura empreitada anticomunista. Durante a era de Joseph McCarthy, no fim da década de 1940, os Estados Unidos sofreram, e exportaram ao mundo capitalista de então a perseguição política e o desrespeito aos direitos civis. O macarthismo promoveu uma verdadeira “caça às bruxas” até seu desgaste, com o repúdio da opinião pública, em meados da década de 1950. Como uma forma de contar a verdadeira história muitos filmes foram produzidos sobre este contexto de repressão. Nosso Amor de Ontem é um deles. Sydney Pollack usou do romantismo para falar de transformações políticas e sociais. O filme ilustra a crise do moralismo e do Sonho Americano do pós-guerra, que já não empolgava a juventude. Katie encarna o espírito da segunda metade dos anos 50, época que já prenunciava a década posterior, marcada pela literatura beat de Jack Kerouac, pelo rock de garagem à margem dos grandes astros do rock e pelos movimentos de cinema e de teatro de vanguarda. Vale ressaltar que Nosso Amor de Ontem foi feito no início dos anos 1970, época de efervescência política e cultural, em que as posições ideológicas eram radicais e as revoluções comportamentais da década anterior, como o surgimento do feminismo e os movimentos civis em favor dos negros e homossexuais, se consolidavam. Temos, desta forma, dois personagens muito bem caracterizados: Katie e Hubbell, representando, na verdade, a luta entre o conservadorismo e um comportamento avançado. Do ponto de vista da segunda década do século 21, o filme ainda é atual e traz importantes questões acerca da mulher, da militância política, da integridade moral e da liberdade e autonomia como direitos civis.


O ESPANTALHO 87


1973

O ESPANTALHO (SCARECROW)

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EUA, 1973 Direção: Jerry Schatzberg Elenco: Gene Hackman, Al Pacino, Dorothy Tristan e Ann Wedgeworth Palavras-chave: empreendedorismo, companheirismo, indústria, urbanismo

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espantalho não assusta. Provoca risos e pena nos corvos. Esta é a tese na qual se assenta o filme O Espantalho. O tema é o encontro de dois vagabundos na estrada para a Califórnia: Max, um homem durão, esquentado, que foi preso várias vezes devido ao seu temperamento difícil, e Lion, um ex-marinheiro irresponsável e negligente. Eles são homens comuns, que topam qualquer trabalho, que vivem de “bicos” e que têm sonhos e ambições. Os dois se conhecem por acaso. E planejam se tornar sócios em um negócio de lavagem de carros quando chegarem a Pittsburgh, na Pensilvânia. O objetivo de Lion é chegar a Detroit para conhecer seu filho, que ele nunca viu, e fazer as pazes com sua esposa Annie. Max concorda em fazer esse desvio no caminho. A supremacia da indústria automobilística, no início dos anos de 1970, faz com que prevaleçam os trabalhos ligados a este ramo e dá o tom da paisagem árida e poluída. Não à toa o grande projeto de Max é construir um lava-rápido e tornar-se um empresário em prestação de serviços. Mas o filme os associa à imagem triste do espantalho. Desempregados e “informais”, Max e Lion são o retrato da marginalização provocada por um sistema que não abrange e ao mesmo tempo não liberta. O Espantalho, desta forma, retrata a condição do trabalhador, sua alienação inerente e sua constante busca por si mesmo. Os dois amigos compartilham uma realidade fragmentada, cultivando pedaços de vida, de percepção e de mundo. Mas esses homens guardam dentro de si sentimentos e valores íntegros e invioláveis. Ao mesmo tempo engraçado e comovente O Espantalho nos faz parar para prestar atenção em um mundo que pode estar a nossa volta.


UM DIA DE CÃO 89


1975

UM DIA DE CÃO (DOG DAY AFTERNOON)

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pretexto de uma trama policial Lumet aborda com genialidade a desmedida e intangível disposição da imprensa em brincar com a opinião

EUA, 1975 Direção: Sidney Lumet Elenco: Al Pacino, John Cazale, Chris Sarandon, Charles Durning Palavras-chave: indústria cultural, opinião pública, sensacionalismo

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pública. Quando Sonny decidiu sair do carro para assaltar o banco, ele não imaginava que protagonizaria um episódio sensacionalista, que atrairia tantos olhares. Mas, com o banco tomado, os reféns nas mãos dos infratores e o cerco policial, a imprensa fez daquele assalto sua principal atração e deu o tom das negociações. “Attica! Attica!” foi a resposta de Sonny à exploração midiática, referindo-se à Rebelião de Attica, em Nova Iorque (EUA), em 9 de setembro de 1971, quando detentos daquela penitenciária tomaram carcereiros como reféns para exigir, entre outras coisas, o fim da censura, melhor atendimento médico e carcereiros negros e latinos. Com cinco dias de tensão a rebelião acabou com um banho de sangue promovido pela polícia. Mas o curioso é que cada passo, cada diálogo e o trágico desfecho chegavam às residências dos cidadãos, como um reality show, transmitido pela TV em tempo real. No filme, o grito “Attica!” fez alusão ao abuso da mídia e da banalização da violência. Sonny aproveitou seus poucos minutos de fama sem perceber que, naquela situação, ele é mais vitima do que algoz. Tal sensacionalismo não nasceu em 1971. Ele vem com a própria produção em série da notícia e sua cooptação pela indústria cultural, massificada, no pós 2ª Guerra, contexto em que a imprensa foi abatida pela necessidade de se vender. O crime que cometia, a tensão policial, reféns, a veracidade dos fatos, nada disto determina o resultado da confusão armada por ele e seu “comparsa”. A


cobertura da imprensa que, desde Attica, até aquela situação, aprimorou seus mecanismos de transmitir o trágico de forma romanceada e teatral, é o que orienta o desfecho. Ora a mídia defende os bandidos, humaniza-os, ora reverte a história, revelando ao público a face per-

versa destes bandidos e tornando “aceitável” uma ação repressiva violenta contra eles. A pretexto de uma trama policial, Lumet coloca em debate o poder da imprensa, sobretudo da televisão, de entrar na cabeça das pessoas e moldar o senso comum em favor da ideologia do status quo.

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TAXI DRIVER 92


1976

TAXI DRIVER (TAXI DRIVER)

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EUA, 1976 Direção: Martin Scorcese Elenco: Robert De Niro, Cybill Shepherd, Peter Boyle, Jodie Foster, Harvey Keitel Palavras-chave: cidade, individualismo, neoliberalismo, taxista

uando se assume um trabalho, você se torna aquilo que o trabalho faz de você. Esta frase, do filme Taxi Driver, caracteriza o protagonista Travis Bickle. Ninguém está falando em traçar um perfil do ofício do taxista. Mas para Paul Schrader, roteirista do filme, esta profissão foi uma boa pista para uma história sobre a violência urbana e psicológica. Taxi Driver gira em torno das angústias de Travis, um homem sozinho, de 26 anos, originário do Meio-Oeste dos Estados Unidos e veterano da Guerra do Vietnã. Atormentado pela falta de perspectivas, ele sofre com a insônia e assume dois turnos como motorista de táxi de frota; trabalha à noite no violento bairro do Harlem, em Nova York. Em suas incursões noturnas, alimenta um sentimento de revolta pela miséria, vício e prostituição que observa do seu carro. As luzes que brilham na noite de Nova York refletem o crescimento das metrópoles do fim dos anos 1970. O retrato da cidade aparece muitas vezes distorcido pelo espelho retrovisor do táxi. No espelho gotejado pela constante chuva ácida, estouram as luzes, conferindo uma graça especial ao filme. A esta cuidadosa fotografia se acrescentam os acordes do saxofone, e a trilha sonora de Bernard Herrmann, criando um clima de glamour decadente tipicamente urbano. Travis é um desajustado. Quando não está trabalhando ele costuma frequentar um cinema pornográfico trash. E ao conseguir convencer sua cobiçada Betsy, que trabalha no comitê eleitoral do senador Palantine, a sair com ele, é para lá que ele a leva. Isto mostra sua inconsciência social, sua inadequação, sua formação confusa e diluída. Se de um lado ele não percebe o quanto está

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sendo inconveniente com Betsy, por outro não poupa discriminações e discursos moralistas. Com a prostituta adolescente que ele se empenha em salvar, fazendo justiça com as próprias mãos, mais uma vez revela sua dubiedade. Seu altruísmo é realizado de forma socialmente desengajada. Sua inconsciência e incapacidade de se expressar marcam todo o filme. Ele quer acertar, quer construir algo e ser uma “pessoa normal”, mas parece não ter instrumentos para chegar a isto. Os poucos momentos de empatia que protagoniza são seguidos de situações patéticas e diálogos esdrúxulos, que não estabelecem nenhuma comunicação positiva.

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Travis é fruto da sociedade liberal e reflete os conflitos psicológicos desta sociedade. Seu trabalho como taxista simboliza as diversas possibilidades de destino e o desenraizamento social. A liberdade e a transitoriedade estão longe de sugerir a leveza e a autonomia do ir e vir. Neste caso, levadas ao extremo, mostram um homem ensandecido e sem rumo certo. O filme mostra a violência que se sentia nas ruas na década de 1970, daí a força que teve em sua estreia. Três décadas depois ele soa um tanto clichê. A estetização do submundo, que influenciou muitas outras obras, não produz mais o impacto que já produziu em outros tempos. Mas, como uma obra consagrada, e que fez escola, ainda desperta interesse e incita debates.


TESTA DE FERRO POR ACASO

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1976

TESTA DE FERRO POR ACASO (THE FRONT)

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EUA, 1976 Direção: Martin Ritt e Walter Bernstein Elenco: Woody Allen, Zero Mostel, Herschel Bernardi, Michael Murphy, Andrea Marcovicci Palavras-chave: comunismo, guerra fria, liberdade, macarthismo, repressão

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debate sobre a guerra fria é permeado pelo radicalismo e pelo sectarismo. Enquanto a URSS levantou a bandeira da igualdade social, os EUA levantaram a da liberdade e da social democracia. Mas na prática elas não se realizaram. Howard Prince, um mero operador de caixa de restaurante, vê sua vida mudar quando o velho amigo Alfred Miller lhe pede para ser seu “testa de ferro”. Renomado roteirista de novelas e programas de televisão, ele se vê impedido de exercer seu trabalho após o acirramento do macarthismo nos Estados Unidos. Sua única saída é contar com um amigo, no caso Howard, para assinar e vender seus textos. Como muitos escritores estadunidenses Miller flertava com ideais socialistas entre as décadas de 1940 e 1950. Naqueles anos, entretanto, o governo dos EUA disseminou o comunismo e a espionagem em sua sociedade. Durante o macarthismo, a acusação de ”comunista” era grave. E o governo perseguiu, ameaçou e isolou suspeitos, impossibilitando-os de exercer suas profissões. Comumente o conchavo era feito com as cúpulas das instituições, que seguiam a instrução de não contratar ou demitir quem tinha o nome na chamada “lista negra”. Em consequência, foi instituído um clima de histeria, delações e vigilância. Como mostra o filme, a pressão era tanta que levou muitos ao suicídio. Na área cultural, o macarthismo realizou o que alguns denominaram de “caça às bruxas”, atingindo atores, diretores e roteiristas. Esta situação se arrastou até o ponto em que o povo estadunidense, indignado com as flagrantes violações dos direitos individuais, pressionasse pelo fim desses atos.


Muitos filmes foram produzidos como forma de documentar e denunciar esse período sombrio da história dos EUA. Entre eles Boa Noite e Boa Sorte, dirigido por George Clooney, O Nosso Amor de Ontem, de Sydney Pollack, e este, dirigido por dois autores que tiveram seus nomes inclusos na lista negra do macarthismo. Nele, Howard Prince passa de um rapaz alienado a um artista politizado, contestador

da repressão e da censura. Ele sente que a ordem política se infiltra em todos os poros de sua vida. Sente que a liberdade e a garantia aos direitos civis proclamadas não passam de fantasia imposta a seus conterrâneos como se fossem verdades absolutas. Verdades que, como ele nota, se desfazem quando esbarram nos interesses políticos e econômicos dos governantes.

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OS EMBALOS DE SÁBADO À NOITE 98


1977 OS EMBALOS DE SÁBADO À NOITE (SATURDAY NIGHT FEVER)

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EUA, 1977 Direção: John Badham Elenco: John Travolta, Karen Lynn Gorney, Barry Miller, Joseph Cali Palavras-chave: juventude, desigualdade social, idealismo

* New York Post, em junho de 1976.

nova geração corre alguns riscos; se forma no colégio, procura um emprego, resiste aos problemas. E uma vez por semana, nas noites de sábado, ela explode”. Assim se referiu o jornalista Nik Cohn aos jovens do distrito de Bay Ridge, no Brooklyn, Nova York, em sua matéria Tribal Rites of the New Saturday Night (Ritos Tribais da Nova Noite de Sábado), inspirando o filme Os Embalos de Sábado à Noite. Embora seja lembrado principalmente pelas danças e pela música Stayin Alive (do grupo Bee Gees – ícone da discoteca dos anos 1970), Os Embalos de Sábado à Noite retrata o drama dos jovens trabalhadores em busca de identidade, inserção social e integração ao imponente mundo da moda. A imagem inicial do filme, a ponte do Brooklyn, que conecta os bairros nova-iorquinos Brooklyn e Manhattan, simboliza o abismo social que diferenciava os dois lados. Do lado pobre da ponte o protagonista Tony Manero é um vendedor em uma loja de tintas que se torna o rei da disco dance nas noites de sábado. Jovem idealista, Tony não questiona, em princípio, seu dia a dia opressor, a incompreensão da família e a obrigação do trabalho brutalizante e mal pago. Ele é um otimista. E demonstra todo o seu otimismo quando se sente prestigiado pelo patrão ao receber um irrisório aumento salarial de dois dólares, em uma passagem que ressalta os contrastes do filme. O Tony dançarino é o grandioso ídolo, exemplo de beleza e de estilo, cobiçado por todos que estão a sua volta. O Tony trabalhador é um humilde funcionário, sem posses, que, ao se contentar com pouco, parece começar do zero a construir sua vida profissional. Quando ridicularizado pelo pai ele rebate dizendo que o que mais importa não é o dinheiro em si, mas o reconhecimento. Mas ele enfrenta situações que o levam a uma autoconsciência e a um amadurecimento. As limitações do mundo de Tony Manero começam a pesar sobre ele e suas aspirações são redirecionadas. Os Embalos de Sábado à Noite mostra a jornada rumo à mudança de status.

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A ÁRVORE DOS TAMANCOS 100


1978

A ÁRVORE DOS TAMANCOS (L´ARBERO DEGLI ZOCCOLI)

A

Itália/França, 1978 Direção: Ermanno Olmi Elenco: Luigi Ornaghi, Francesca Moriggi, Omar Brignoli, Antonio Ferrari, Teresa Bresciani, Giuseppe Brignoli Palavras-chave: capitalismo, feudalismo, história, modo de produção

transição do feudalismo para o capitalismo começou a partir do século XI. Neste processo, o sistema de produção, bem como da vida da grande massa populacional, foi se transformando de forma abrupta. Com as mudanças nas relações comerciais, econômicas, de poder (políticas), o mundo foi adotando novos valores e composições sociais. Com isto, as pessoas foram perdendo o contato com antigos valores. Há que se considerar que o homem, no modo de produção feudal, também sofria os efeitos da exploração. No modo de produção capitalista, o homem perde a propriedade dos bens de produção, do controle do seu tempo e da sua força de trabalho. O sistema capitalista, em sua velocidade, aliena o homem, afasta-o de sua natureza e de si mesmo. Quando não se submetiam à venda de sua força de trabalho, os trabalhadores ocupavam as terras em sistemas de parceria da produção. Nela o meeiro, numa das formas de parceria, tinha de viver com o que recebia da venda de parte do que produzia nas terras do senhorio. O ápice dessas transformações/revoluções no modo de se produzir e de se viver aconteceu no século XVIII, como consequência da Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra. Com objetivo de retratar no cinema a relação entre homem e trabalho, o diretor Ermanno Olmi, em A Árvore dos Tamancos, faz um recorte histórico, metonímico, onde enfoca a vida de famílias na região da Lombardia, norte da Itália, e suas dificuldades para sobreviver como meeiros nas terras do senhorio. Como forma narrativa, no roteiro, também assina-

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do por Olmi, a história apresenta fragmentos dessas famílias, formando, ao final, um grande painel de como era a vida dos trabalhadores rurais no final do século XIX. O mosaico de Olmi é formado de histórias que se entrelaçam, como o surgimento do amor entre um casal de jovens camponeses; o trabalhador idoso que pensa como fertilizar os tomates antes da época para buscar maior ganho; as diferenças entre as famílias; a disputa pela produção; e a força da religião, que permeia a todos e alimenta suas almas. O título, A Árvore dos Tamancos, é talhado a partir da história emocionante de um casal de trabalhadores que luta para não transferir ao filho pequeno o legado de suas duras vidas no campo, do trabalho incessante e da falta de acesso ao conhecimento. Porém, a vontade dos pais em ver o filho estudar esbarra nas dificuldades práticas da vida. A escola localiza-se a quilômetros da fazenda e os recursos são parcos, a ponto de terem dificuldade de comprar sapatos ao menino. Numa sequência emocionante e trágica, em uma dessas longas caminhadas à escola, o menino vê seu sapato de madeira rachar. O pai, então, resolve cortar uma árvore para fazer, madrugada a dentro, um novo par de sapatos para que o filho não perca os estudos. Olmi, de forma poética, ilustra os desafios do casal para encaminhar o menino aos estudos. Coloca-nos a pensar sobre a condição do acesso ao conhecimento para a grande massa operária e o saber como instrumento de dominação. Contrapondo-se ao conhecimento, o filme enfoca também o papel e o peso da religião na comunidade como uma forma de explicar os desencontros do mundo social. A força de A Árvore dos Tamancos está em sua atemporalidade e universalidade. O retrato das vidas dos trabalhadores da Lombardia pode ser o retrato de milhões de trabalhadores no mundo atual.

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Mudam os artefatos, as tecnologias, a exploração do homem pelo homem, porém a equalização das desigualdades ainda representa um grande desafio para o sistema capitalista, que cada vez mais caminha, de forma vertiginosa, para uma vida tecnicista e alienante. Ricardo Flaitt


BRAÇOS CRUZADOS MÁQUINAS PARADAS 103


1978 BRAÇOS CRUZADOS MÁQUINAS PARADAS

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Brasil, 1978 Direção: Roberto Gervitz e Sérgio Toledo Narração: Othon Bastos Palavras-chave: ditadura militar, metalúrgicos, sindicato

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raços Cruzados Máquinas Paradas fala sobre o enfrentamento de três chapas nas eleições para a direção do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Naquele ano o movimento sindical acordava de uma década de ressaca. A dura repressão às greves de 1968 (Contagem, MG, e Osasco, SP) sufocou as grandes manifestações dos trabalhadores. Mas a diminuição das lutas não refletia falta de problemas. No fim dos anos de 1970 o arrocho salarial, a falta de liberdade e o desemprego castigavam a população. A estrutura sindical vigente dificultava a organização, pois, entre outras coisas, não possibilitava a reunião das diversas categorias, previa que o dissídio coletivo fosse em dias diferentes e não permitia que o dinheiro do Sindicato fosse usado para a criação de um fundo de greve. Como esse sistema havia sido criado por Getúlio Vargas, o filme faz uma digressão mostrando imagens da Era Vargas e apontando Getúlio como um presidente que ludibriava o povo instituindo leis trabalhistas que, na verdade, mascaravam o controle autoritário sobre os sindicatos. Mas esta é uma visão unilateral. Se por um lado Vargas exerceu de fato um governo autoritário, por outro ele rompeu com oligarquias e implementou o desenvolvimento urbano no Brasil. Interessa aqui, entretanto, a parte que diz que, na Era Vargas, a organização sindical ficou atrelada ao governo. Situação que favoreceu os militares, que, depois do golpe de 1964, mantiveram a estrutura sindical criada por Vargas e levaram a ferro e fogo este atrelamento. Braços Cruzados Máquinas Paradas faz bem em relacionar a difícil situação sindical durante o regime militar a uma estrutura criada décadas antes, também


em um contexto repressivo. Desta forma, o filme desfaz a falsa ideia de que a ditadura surgiu como um câncer em um corpo saudável. Mas não se trata de um filme neutro em relação aos metalúrgicos de São Paulo. Ele defende o ponto de vista da tendência que se apresentava como oposição sindical. Seguindo esta linha ele se apresenta em oposição à diretoria do Sindicato de então. As imagens da agitação dos trabalhadores no prédio histórico do Sindicato, na Rua do Carmo, centro de São Paulo, trazem memórias de um tempo que já parece longínquo. As entrevistas com Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, algoz da radical Chapa 3, são dos poucos registros que se tem dele. Mais uma lacuna na história do movimento operário brasileiro (ainda não há um bom levantamento histórico sobre este importante sindicalista). O filme mostra fraudes escancaradas na reeleição da chapa da situação, com governo e patrões presentes na posse. Protestos, provocações, comício e repressão po-

licial. Nesta confusão, o presidente reeleito Joaquinzão proclama que os trabalhadores brasileiros devem criar sua própria liberdade, fazendo uma crítica à defesa da incorporação abstrata de modelos estrangeiros prontos. Como nas greves do ABC, o tempo mostrou que, mais do que a justa reivindicação pelo salário, aquele era um movimento político, de superação da ditadura e de avanço do sindicalismo. Entre erros e acertos, aqueles embates representaram uma tomada de consciência e um valioso aprendizado que fortaleceu o trabalhador brasileiro. Depois daquele período intenso de greves, os militares não puderam mais conter os trabalhadores. A virada democrática que se avizinhava contemplou, ainda que de forma embrionária, a pluralidade de posições e ideologias. A orquestração desta diversidade se desenvolve até os dias de hoje, quando podemos, enfim, nos debruçar sobre obras deste tipo e concluir que, a despeito de uma visão unilateral, havia mais de uma possibilidade de reação ao regime.

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A VIDA DE BRIAN 106


1979

A VIDA DE BRIAN (LIFE OF BRIAN)

A

Inglaterra, 1979 Direção: Terry Jones Elenco: Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle Palavras-chave: alienação, dogma, política, religião, sociedade moderna

Vida de Brian ironiza a sociedade moderna tendo como pretexto a história de Jesus Cristo. Através dela, trata dos dogmas que regem as relações sociais e, sobretudo, dos intermináveis meandros da política, que acabam por se sobrepor a sua causa fundamental. No ano 33, na Judeia, Brian vive uma vida paralela à de Jesus Cristo, e sofre por ser confundido com ele. A confusão começa quando ele finge ser um pregador para fugir da guarda romana, e é levado a sério ganhando uma horda de seguidores. Para escapar daquele problema Brian se alia a um grupo de oposição ao “imperialismo” romano. Ao contar sua saga, o filme busca recriar os hábitos cotidianos da época: apedrejamentos públicos (nos quais o povo se divertia), sermões, pregações, leprosários, milagres, castigos divinos, crucificações etc. (qualquer semelhança com linchamento moral na mídia, fetiche do consumo e a fé cega no dinheiro é mera coincidência. Ou não!). Por exemplo: a fila para crucificação é organizada por uma espécie de funcionário público que registra os condenados para o controle – e a burocracia – social. Em outra situação um “ex-leproso” se queixa por ter sido salvo por um “maldito milagre” e perder, assim, seu ganha pão, que era pedir esmolas. No filme, religião e política se misturam. A religião é vista de maneira política e a política tratada como religião – com seu ideário de verdades absolutas. Sua ironia mais bem acabada, neste sentido, é a organização de grupos, similares a partidos, que, embora lutem por uma mesma causa, disputam entre si. Tais grupos fazem ferrenha oposição ao imperia-

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lismo romano, a exemplo de partidos ultrarradicais que se opõem, hoje, ao imperialismo estadunidense. Mas eles perdem o foco (a ferrenha oposição ao imperialismo romano) quando se dedicam mais ao embate entre si, e o ódio aos outros grupos radicais, do que à causa primordial. Por exemplo, no filme a única coisa que a Frente do Povo Judeu odeia mais do que aos romanos é a concorrente Frente Judaica do Povo – embora às vezes eles mesmos confundam as siglas. E há também a Frente

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Popular, outro grupo que luta pela mesma causa, mas que já não merece tanto ódio, pois se encontra representada por um único velho remanescente. A Vida de Brian aborda, com humor, a questão da alienação da massa disposta a seguir e repetir dogmas de forma cega. Considerado uma blasfêmia por alguns setores, o filme dividiu opiniões. Enquanto alguns viram nele um desrespeito à religião, outros o avaliaram como uma genial crítica à sociedade.


NORMA RAE 109


1979

NORMA RAE (NORMA RAE)

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EUA, 1979 Direção: Martin Ritt Elenco: Sally Field, Beau Bridges, Ron Leibman, Pat Hingle Palavras-chave: fábrica, indústria têxtil, militância, mulher, sindicalização, sindicato

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e em alguns filmes o debate sociológico fica subjacente, em outros ele aparece como sua própria linha condutora. A construção do enredo do filme Norma Rae, por exemplo, está cravada no trabalho e na sindicalização em uma indústria de tecidos nos EUA. Exibido a partir de 1979, época da Guerra Fria e de grande efervescência nas organizações de esquerda, pode-se imaginar o impacto que o filme causou. A obra se consagrou como um dos clássicos sobre o mundo do trabalho. Sally Field, que vive a personagem que dá nome ao filme, figurou como modelo para militantes de esquerda da época. Os primeiros momentos do filme mostram o barulho ensurdecedor das máquinas, o pó que levanta dos tecidos, a sujeira das engrenagens, a tensão, a alienação na linha de produção. Fora da fábrica as relações parecem romper os ditames da sociedade. Aos trinta e um anos Norma Rae tem dois filhos de pais diferentes, é solteira e vive com seus pais. Neste cenário surge Reuben Warshowsky, um sindicalista judeu e novaiorquino. Apesar de sofrer duplamente o preconceito, por ser sindicalista e judeu, junto com a nova amiga, a rebelde Norma Rae, que logo se engaja na luta sindical, ele consegue ser ouvido pelos trabalhadores, que são convencidos da necessidade do sindicato. O filme cumpre seu papel na exposição das ações sindicais, mas não se aprofunda nos conflitos que marcavam o interior das próprias organizações e mostra os sindicalistas e militantes como salvadores, desprovidos de incertezas. Até mesmo seus erros parecem enaltecê-los. Enquanto Norma Rae veste a carapuça de heroína dos tempos modernos, Reuben não vacila em ditar “verdades e lições”. Norma Rae é baseado na história real de Crystal Lee Sutton, que liderou uma campanha contra as condições de trabalho oferecidas pela J.P. Stevens Mill.


OS IRMÃOS CARA-DE-PAU

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1980

OS IRMÃOS CARA-DE-PAU (THE BLUES BROTHERS)

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EUA, 1980 Direção: John Landis Elenco: John Belushi, Dan Aykroyd, Carrie Fisher, John Candy Palavras-chave: escravos, músicos, trabalhadores

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blues nasceu da voz dos escravos nos campos de algodão do Sul dos Estados Unidos. Eles cantavam para aliviar a dureza do trabalho nas plantações. O blues nos EUA, como o samba no Brasil, surgiu das condições dos trabalhadores dos baixos escalões, dos excluídos, dos considerados marginais, dos negros, dos pobres. Ainda que tenha sido capitalizado pelas classes dominantes, ele não poderia ter nascido delas; não teria sentido e, mesmo nos salões nobres, o blues carrega a marca forte do trabalhador. No blues o trabalhador expressa nitidamente sua autoconsciência e a legitimidade de sua dor. Nele, também, o trabalhador pode se reconhecer, encontrar seus símbolos, seus refúgios e sua própria beleza. O filme The Blues Brothers, que homenageia o blues e satiriza a sociedade americana, é, neste sentido, um convite para pensar e relaxar. Mesmo sendo despretensioso, irônico e absurdo ao provocar no expectador riso e diversão, The Blues Brothers traz, a reboque, revestidas de ironia, críticas ao mundo do dinheiro e do trabalho. Na história, “Joliet Jake” Blues, ao sair da prisão, fica sob a custódia de seu irmão Elwood. Os dois são cheios de estilo, vestem roupas e chapéus pretos, além dos imprescindíveis óculos escuros. Elwood convence Jake a visitarem o orfanato cristão onde eles cresceram. Depois de uma “conversa” com a diretora do orfanato, a irmã Mary Stigmata (apelidada de “Pinguim”), eles ficam sabendo da situação financeira difícil da instituição, que deve uma grande quantia em impostos (na realidade, as Igrejas de Illinois são isentas, o que causou algumas reações contra


a cena). A religiosa recusa energicamente (distribuindo pancadas) dinheiro roubado oferecido pelos irmãos. Mais tarde, ao irem a uma Igreja evangélica, Jake tem um insight e se convence de que eles só conseguirão os fundos por meio da apresentação da sua legendária banda de t. Mas enfrentam muitos percalços: perseguições da polícia, brigas com neonazistas e a fúria de uma ex-namorada de Jake, uma mulher misteriosa e armada até os dentes. Os irmãos blues fogem a todas as regras: de trân-

sito, de trabalho, de relacionamentos. Eles representam o avesso das regras sociais. E são ovacionados por uma multidão com seu blues contagiante, fruto de uma vida pra lá de intensa. O filme é estrelado pela dupla John Belushi e Dan Aykroyd, famosos comediantes do programa de TV Saturday Night Live, e tem a participação de grandes nomes da música norte-americana, como James Brown, Cab Calloway, Aretha Franklin, Ray Charles e John Lee Hooker.

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ELES NÃO USAM BLACK-TIE 114


1981

ELES NÃO USAM BLACK-TIE

A

Brasil, 1981 Direção: Leo Hirszman Elenco: Gianfrancesco Guarnieri, Fernanda Montenegro, Carlos Alberto Riccelli, Bete Mendes Palavras-chave: ditadura militar, greve, metalúrgico

lém de seu valor artístico e estético, o filme registra, através da história fictícia sobre a relação entre o operário e líder sindical Otávio e seu filho, o jovem operário Tião, a vida operária e a ocorrência da greve dos metalúrgicos de São Paulo em 1979, no período final da ditadura militar no Brasil (1964/1985). O momento era apropriado. O Brasil vivia as grandes greves operárias do final da década de 1970, que colocaram em xeque o projeto de abertura controlada da ditadura militar. O novo protagonismo operário foi fundamental para a derrota da ditadura. O filme é baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, que havia estreado no Teatro de Arena, em São Paulo, em 1958. Mas a luta operária, que muda de acordo com as circunstâncias históricas de cada época, permanece a mesma em seus traços essenciais, e reproduz contradições semelhantes. O tema de Eles Não Usam Black-Tie é a luta de classes, a exploração da mão de obra e a velha contradição entre o capital e o trabalho, mostrando vidas em que o trabalho pesado e o dinheiro escasso dão base para a história. E também a contradição que existe na luta operária; no filme, por exemplo, ela gira em torno da relação entre o operário, dirigente sindical e líder grevista Otávio, e seu filho, o jovem operário Tião. Um fura-greves submetido à lógica patronal.

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O HOMEM QUE VIROU SUCO 116


1981

O HOMEM QUE VIROU SUCO

A

Brasil, 1981 Direção: João Batista de Andrade Elenco: José Dumont, Célia Maracajá, Denoy de Oliveira, Ruth Escobar, Barros Freire, Rafael de Carvalho, Renato Master, Ruthnéia de Moraes Palavras-chave: identidade, imigração nordestina, repressão

cidade, constituída pelas ações dos homens, nos espreme até extrair o suco de nossas almas. Esse é o mote de O Homem que Virou Suco, filme que narra a história de Deraldo José da Silva, um poeta nordestino que vem a São Paulo para tentar ganhar a vida vendendo sua literatura de cordel. O concreto da cidade comprime os homens. O concreto também pode ser compreendido pela ganância, pelo excesso de burocracia, pela desumanização e pelas contradições da vida urbana em relação a nossa natureza. A cidade, constituída pelas ações dos homens, mói, arranca as raízes, desvirtua sonhos, reduz ou, simplesmente, os espremem. Morando na extrema periferia da cidade, assim como milhões daqueles que chegam a São Paulo, Deraldo parte para o centro da cidade para vender seus livros de poesia e garantir “o de comer”. Mas ele é reprimido pela polícia; não poderia ganhar dinheiro com sua obra, pois não tinha documentos nem autorização para utilizar um espaço que é público. As coisas pioram quando Deraldo é confundido com um operário que esfaqueia o patrão. Perseguido pela polícia, e com rosto estampado nas capas dos principais jornais, a cidade de São Paulo se reduz ainda mais para ele. De poeta a procurado pela polícia, Deraldo vaga em busca de emprego e encontra refúgio na construção civil, como descarregador de sacos, como mordomo e outros subempregos. Mas Deraldo não é um homem comum. Não se resume a um simples imigrante que chega à cidade somente para vender sua força de trabalho. É culto,

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sabedor das coisas e dos seres, sabe ler e escrever, tem conhecimentos sobre a arte da literatura e, sobretudo, tem a capacidade e a sensibilidade para enxergar o modus operandi da sociedade. Deraldo, tratado pelo sistema como “mais um Silva que desce do Norte”, tem a alma inquieta e não aceita a forma como os menos favorecidos são tratados. Justamente por isso não dura muito tempo nos empregos. A razão o faz aceitar o trabalho, mas a alma não aceita passivamente os desmandos e as humilhações a que seres humanos são submetidos e expostos. Ele encontra nova oportunidade nas obras do Metrô. Durante o processo de seleção, dezenas de imigrantes participam. Muitos ainda com as malas chegadas de viagem. Eis que entra em cena um diretor da empresa que fala sobre a dureza do trabalho que enfrentarão, das responsabilidades implícitas e que na cidade grande existem normas e procedimentos, tais como obedecer às regras e respeitar os superiores. Como a maioria não sabia ler, então a empresa exibe uma animação para passar o recado de forma mais fácil. Ela mostra o comportamento de Virgulino (o mesmo nome de Lampião), que, trazendo seus costumes do Nordeste não consegue se adaptar à rotina de trabalho, e vira motivo de chacota para os demais companheiros. Na mesma sequência o diretor potencializa a exploração do ser humano e sintetiza a condição dos trabalhadores no momento em que Deraldo, para chegar ao refeitório, passa por um “corredor” construído com madeiras, muito semelhante aos feitos para o manejo do gado. Deraldo, interpretado magistralmente por José Dumont, começa a imitar os sons e trejeitos de um boi. Perde a condição de humano, animaliza-se. Reflexo de como a sociedade o trata. O homem não é de ferro, mas sente a sociedade o corroer. Não é laranja, mas sente a sociedade o espremer.

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O Homem que Virou Suco sintetiza a vida de milhões de trabalhadores brasileiros que lutam por melhores condições de vida, por cidadania plena, com direito à educação de qualidade, saúde, trabalho decente, transporte, moradia e segurança. Em suma, por dignidade. É daí que vem o vigor e a força da mensagem de O Homem que Virou Suco, filme que, depois de ter sido premiado em Moscou, foi valorizado pelo público e a crítica. Ricardo Flaitt


O CAÇADOR DE ANDROIDES

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1982

O CAÇADOR DE ANDROIDES (BLADE RUNNER)

B

EUA, 1982 Direção: Ridley Scott Elenco: Harrison Ford, Rutger Oelsen Hauer, Sean Young, Daryl Hannah Palavras-chave: civilização, contradições sociais, ecossistema, identidade, memória, tecnologia

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lade Runner reflete sobre a condição humana no mundo moderno. O cineasta Ridley Scott imaginou que no ano de 2019 a Terra seria um lugar hostil. Com sua natureza corrompida pela ação humana, nosso planeta seria abandonado pelas classes dominantes, que migrariam para uma nova vida interplanetária. O futuro, neste caso, teria viagens para outros planetas. Novo Eldorado, as colônias espaciais seriam mantidas pela força de trabalho de seres criados a partir da amplamente disseminada engenharia genética (outra aposta futurista). Los Angeles de 2019 nada mais seria do que um beco poluído. Uma paisagem marcada pela lataria velha de equipamentos obsoletos, encoberta pela chuva ácida. O mundo do trabalho de Blade Runner, dominado pela mais precária “informalidade”, se resumiria a um imenso bazar de serviços, parafernálias e entretenimento barato. Neste cenário triste, a vida natural seria um bem raríssimo. E as pessoas, excluídas das leis sociais, conviveriam com androides de diversos tipos, criados em laboratórios ou em qualquer oficina sumária. Nas terras douradas os privilegiados contratariam como força de trabalho os sofisticados humanoides Nexus 6. Suprassumo dos androides, o Nexus 6 seria muito próximo do ser humano, com qualidades reforçadas (beleza, força, agilidade etc.) e um dispositivo de segurança que lhe dava uma vida útil de apenas quatro anos. Mas não foi previsto que estas criaturas, destinadas apenas ao trabalho, tomassem consciência de si próprias e se rebelassem, tornando-se seres hostis à ordem social.


Desta forma, em Blade Runner força de trabalho constituída artificialmente, consciência e rebelião figuram como uma alegoria das contradições do capitalismo. No vasto terreno das contradições que embalam o filme, muitas vezes os androides mostram-se mais sensíveis do que os humanos. Ao fim, o líder rebelde

esbanja sabedoria e amor à vida ao salvar seu próprio caçador. Talvez o futuro de Ridley Scott seja mais sombrio que a realidade. Mas os extremos ressaltam mazelas de um sistema disfuncional e desumano que se arrasta para além de seu tempo.

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LINHA DE MONTAGEM

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1982

LINHA DE MONTAGEM

N

Brasil, 1982 Direção: Renato Tapajós Palavras-chave: automobilística, ditadura militar, greve, sindicalismo

o ano de 1981, sindicalistas liderados por Luiz Inácio Lula da Silva comentam e refletem sobre as históricas greves ocorridas em São Bernardo do Campo, entre 1978 e 1980. Aquelas greves, realizadas no período de transição da ditadura para a democracia, marcaram o surgimento de forças e personagens no movimento sindical e político. Atraídas pelo acesso estratégico ao mercado consumidor (São Paulo) e ao porto de Santos, muitas montadoras de automóveis se instalaram na cidade de São Bernardo do Campo na década de 1950. Mercedes-Benz, Karmann-Ghia, Scania e, sobretudo, a imensa fábrica da Volkswagen, passaram a dar o tom do cotidiano local. Vilas, mercados, transportes se organizaram em torno das fábricas e milhões de trabalhadores se instalaram em suas proximidades. Mas, de saída, as condições de trabalho oferecidas pelas fábricas eram precárias, e a remuneração era baixa. E, após o golpe militar (31 de março de 1964), a situação piorou. Piorou porque, no coração do capitalismo, o movimento operário foi o primeiro alvo do golpe. Para impor um projeto econômico atrelado ao capital estrangeiro, que gerou grave inflação e arrocho salarial, a ditadura instituiu a censura e a repressão, podando a liberdade de organização e reivindicação. O estopim do desgaste veio em 1977 quando o Dieese divulgou que os dados da inflação de 1973 haviam sido manipulados, reduzindo, desta forma, o reajuste nos salários dos trabalhadores (que se baseava no índice de inflação). Aquela descoberta deflagrou um grande movimento pela reposição salarial, que sintetizou o descontentamento dos trabalhadores contra o

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governo desde 1964. Depois disso o movimento cresceu e não se intimidou perante a repressão. O documentário Linha de Montagem expõe o desenvolvimento daquelas manifestações. O então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Inácio Lula da Silva, define o período das grandes greves do ABC como um processo que começou em 1977, com a campanha pela reposição salarial, e se concluiu com a greve de 1980. Para Lula, como não havia espaço na imprensa para o movimento sindical, Linha de Montagem serviu para divulgar o movimento. Rico em detalhes, o documentário contextualiza a região de São Bernardo do Campo no fim da década de 1970, que contava com cerca de 140 mil operários nas indústrias automobilísticas. Naquele contexto, maio de 1979, os metalúrgicos interromperam a produção das fábricas deflagrando uma greve geral por 11% de aumento salarial. A cassação da diretoria e a intervenção da ditadura no sindicato deram um sentido maior àquela manifestação. Mais do que o salário, os trabalhadores reivindicavam seus direitos políticos e a restituição da diretoria eleita. Mas, mesmo sem conseguir seus objetivos, a greve representou uma vitória política; o movimento ganhou em consciência e organização. Frente às dificuldades políticas e econômicas, surgiu a necessidade de buscar soluções alternativas. Foi instituído, então, o fundo de greve e criada a Associação Beneficente e Cultural dos Metalúrgicos do ABC e Diadema, instâncias nas quais o

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movimento passou a se apoiar. Este foi o saldo positivo da greve de 1979. Sustentado por esta estrutura, em março do ano seguinte os metalúrgicos iniciaram outra greve por 15% de aumento salarial, agora com mais experiência. Mas a repressão policial, em estado de alerta com relação ao Sindicato de São Bernardo, foi ainda maior, e os diretores do sindicato foram presos e processados pela Lei de Segurança Nacional. A greve de 1980, que acabou no dia 12 de maio sem atingir seus objetivos econômicos, foi antes de tudo uma afronta à ditadura militar. O que estava em jogo era o fim do regime e a abertura democrática, um processo mais complexo, longo e, desta vez, bem-sucedido. Segundo Lula, naqueles três anos houve uma valiosa conscientização e a organização da classe operária, que se posicionou como agente social e sujeito da história. Ele falou da necessidade de criação de um partido, e que os partidos existentes, mesmo com seus militantes tendo forte atuação e liderança nas greves, não atendiam suas concepções políticas e ideológicas. Justificou, desta forma, a criação do Partido dos Trabalhadores. E, naquele ano de 1981, quando se realizou o 1º Conclat, afirmou a necessidade da criação de centrais sindicais como forma de organizar aquele movimento que estava crescendo e se fortalecendo. O filme foi lançado pela primeira vez em 1982, mas logo censurado pelo governo federal. Foi restaurado e relançado em 2008.


TOOTSIE

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1982

TOOTSIE (TOOTSIE)

A

EUA, 1982 Direção: Sidney Pollack Elenco: Dustin Hoffman, Jessica Lange, Sydney Pollack, Bill Murray Palavras-chave: relações de trabalho, superação

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senhora Dorothy Michaels, a Tootsie, no filme que leva seu nome, ilustra como a ousadia é necessária na vida profissional. Entende-se por ousadia não a inconsequência, mas a superação de padrões estáticos e normas rígidas. A representação do trabalho de um ator em um filme, uma metalinguagem, tem o potencial de demonstrar de forma irreverente e simbólica situações que cabem a qualquer profissão. Isto porque, devido à versatilidade das artes dramáticas, o ator pode assimilar as diversas situações e os diversos perfis. O filme Tootsie traz elementos ricos para se pensar sobre o indivíduo no mundo do trabalho. Trata-se da história do ator Michael Dorsey. Ele assusta todos os produtores de Nova York com sua natureza exigente e sua teimosia. Segundo seu agente, se ele não mudar ninguém irá contratá-lo. Mas, como precisa de dinheiro, Dorsey precisa ser quem ele não é para se estabelecer na sua área de trabalho. A grande chance aparece quando ele acompanha uma amiga a um teste para uma telenovela. Convencido de que possui o perfil para aquele trabalho, o ator se transforma na simpática Dorothy Michaels, a Tootsie, e consegue o papel. Engraçado, inteligente e sensível, Tootsie é um filme pontuado pelas relações de trabalho e pelos detalhes da vida profissional. No papel de Tootsie Michael Dorsey demonstra que o segredo está em não apenas executar bem suas tarefas, mas superar-se e abrir o caminho com as próprias mãos.


CABRA MARCADO PARA MORRER

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1984 CABRA MARCADO PARA MORRER

E

Brasil, 1984 Direção: Eduardo Coutinho Palavras-chave: campesinato, ditadura militar

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m fevereiro de 1964, Eduardo Coutinho iniciou seu projeto, intitulado Cabra Marcado para Morrer, que consistia em levar aos cinemas a história de João Pedro Teixeira, líder da liga camponesa “Sociedade Agrícola e Pecuária de Plantadores de Pernambuco (SAPPP)”, assassinado em 1962. Para encenar o filme, o diretor convidou moradores do engenho da Galileia, da cidade de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, em vez de atores profissionais. Após o Golpe Militar de 31 de março daquele ano, entretanto, a política e a economia brasileiras tomariam outros rumos, o que também interferiu na cultura. Neste contexto a filmagem de Cabra Marcado para Morrer foi interrompida em 1964, sob a vaga alegação de “prática comunista”. A história de João Pedro Teixeira ficou em suspenso ao longo dos vinte anos de vigência do regime. Mas Coutinho não desistiu dela e, em 1984, retomou seu trabalho sob um novo enfoque. Ele transformou o drama real, que se deu no início das filmagens, em uma rica demonstração de como o governo não apenas destruiu um movimento crescente e promissor como também desagregou famílias e desestruturou vidas de pessoas comuns. A proeza do diretor foi conseguir reunir os mesmos técnicos depois de tanto tempo para procurar cada pessoa que apareceu na película. A história de cada um naquele período se tornou, desta forma, o enredo do filme, e o destino do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 1962, demonstrou que a repressão no campo já existia muito antes de 1964. O intuito de relatar no cinema quem foi João Pedro se desdobrou em um flagrante de realidade nua e crua. Neste sentido, e naquele contexto, o Cabra Marcado para Morrer é o próprio povo brasileiro.


JANGO

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1984

JANGO

J

Brasil, 1984 Direção: Sílvio Tendler Palavras-chave: Campanha da Legalidade, ditadura militar, história do Brasil, sindicalismo

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ango conta a trajetória política de João Belchior Marques Goulart, o 24° presidente brasileiro, deposto pelo golpe militar em 1º de abril de 1964. O documentário captura a efervescência da política brasileira durante a década de 1960 e narra os detalhes do golpe. Produzido em 1984, último ano da ditadura militar, o documentário não conta com diversos fatos que foram descobertos desde então. Sobretudo envolvendo a misteriosa morte do ex-presidente. Gaúcho de São Borja, Rio Grande do Sul, nascido em 1º de março de 1919, filho de um estancieiro e coronel da Guarda Nacional e de uma dona de casa, Jango, como era conhecido, ingressou na carreira política em 1945, por influência de um ilustre amigo da família: Getúlio Vargas. Dali para que ele se tornasse ministro do Trabalho foram oito anos. De orientação progressista, o nome de Goulart no Ministério ajudava Vargas a lidar com os trabalhadores que, desde a posse de Getúlio, em 1950, manifestavam-se contra o alto custo de vida. Como ministro Jango tomaria uma medida radical que custaria seu cargo: em janeiro de 1954 enfrentou a pressão dos trabalhadores por um reajuste salarial de 100%, e também a rejeição dos empresários. Como o desfecho foram os 100% pleiteados pela classe trabalhadora, Jango sofreu uma forte pressão dos empresários e da imprensa, o que o levou a renunciar ao cargo. Em 1955 Goulart foi eleito vice-presidente do Brasil na chapa PTB/PSD, tendo obtido mais votos que o presidente eleito, Juscelino Kubitschek (naquela época, as votações para presidente e vice eram separadas). Na eleição de 1960 ele foi novamente eleito vice-presidente, concorrendo pela chapa que fazia opo-


sição ao eleito, Jânio Quadros. Só que o Brasil não esperava que o excêntrico Jânio Quadros, pouco tempo depois de assumir a Presidência, renunciasse ao cargo, em agosto de 1961, o que abriu uma das maiores crises políticas de nossa história quando os ministros militares, contrariando a Constituição, vetaram a posse de Jango na Presidência. Diziam que ele encarnava a ameaça comunista. Começou então, liderada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, a Campanha da Legalidade. Brizola, que mobilizou uma cadeia de mais de cem emissoras de rádio para conclamar o povo a sair às ruas em defesa daquilo que estava previsto na Constituição: a posse de Jango. A crise foi contornada pela adoção do parlamentarismo, com parte do poder presidencial deslocada para um primeiro-ministro. Desta forma Jango assumiu a Presidência em oito de setembro de 1961, sendo Tancredo Neves seu primeiro-ministro. Desde o início Jango teve uma atuação peculiar. Sua inclinação progressista acirrava a efervescência política e cultural vivida no Brasil nos primeiros anos da década de 1960. No famoso Comício da Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, realizado em frente ao Edifício Central do Brasil, no Rio de Janeiro, cerca de 150 mil pessoas ouviram o presidente anunciar uma série de medidas, que instituiriam as reformas de base. Mas, se por um lado os movimentos sociais e os partidos de esquerda se fortaleciam, por outro a direita se organizava. E a ultraconservadora Marcha da Família com Deus pela Liberdade tomou as ruas, em 19 de março, manifestando-se contra o governo de Jango. Naqueles dias ocorreu também a revolta dos marinheiros e fuzileiros navais no Rio (28 de março de 1964). Incentivados pelo filme soviético O Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein (1925), aqueles trabalhadores lutaram contra

os baixos salários e as más condições de trabalho, transformando tais reivindicações trabalhistas em um autêntico ato político. A assembleia foi chefiada por José Anselmo dos Santos, mais conhecido como Cabo Anselmo, que era (descobriu-se depois) um agente policial infiltrado no movimento social. O fato de Goulart ter se recusado a punir os insubmissos, provocou a indignação dos oficiais da Marinha. Em 30 de março, em discurso na festa promovida pela Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no Automóvel Clube do Brasil, Jango denunciou a existência de uma forte campanha contra seu governo. Isto era um fato concreto. Na madrugada do dia seguinte o general Olímpio Mourão Filho iniciou a movimentação de tropas de Juiz de Fora (Minas Gerais) em direção ao Rio de Janeiro. Foi o início do golpe que derrubou o governo de João Goulart. Leonel Brizola ainda sugeriu que Jango resistisse, mas ele não acatou, para evitar “derramamento de sangue” (uma guerra civil). João Goulart teve seus direitos políticos cassados após a publicação do Ato Institucional Número Um (AI-1). Exilado no Uruguai e, mais tarde, na Argentina, onde faleceu em 1976, Jango só voltou para o Brasil em seu funeral. Aclamado pelo povo, seu caixão foi carregado por milhares de pessoas já cansadas do regime repressivo submisso ao FMI dos ditadores. O filme relata, através de depoimentos e de documentos históricos, como vídeos, áudios e fotos, as atrocidades cometidas pela ditadura até o ano de 1976. Com as informações que poderiam ser obtidas naquela época, o filme é um primoroso e melancólico documento sobre a história do Brasil. Mas o tempo nos mostrou que a ditadura militar, além de anos de chumbo, representou anos de segredos de estado. E ainda há muito a ser revelado sobre esta história.

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1984 132


1984

1984 (NINETEEN EIGHTY-FOUR)

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Inglaterra, 1984 Direção: Michael Radford Elenco: John Hurt, Richard Burton, Suzanna Hamilton, Cyril Cusack, Gregor Fisher Palavras-chave: governo, informatização, poder, sistema, sociedade

uem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. Com essas palavras começa o filme 1984, de Michael Radford, baseado na obra George Orwell. Mas o que esta frase significa? Trocando em miúdos, sintetiza as relações de poder na sociedade. Quem está no poder transmite e descreve fatos históricos de acordo com a sua conveniência para garantir a permanência de um regime político. 1984 narra a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, vinculado ao governo da Oceania e membro do partido que comanda o país. Smith está inserido num sistema completamente burocrático. Em Oceania, as pessoas não podem ter sentimentos, nem desejos sexuais, nem opinião. O que se busca na sociedade de Oceania é um homem-matemático, quase robô, tecnicista, sem sentimentos, que deve colocar todos os seus anseios, seus desejos e sua vida à disposição de um bem maior: o partido e seus ideais. Para controlar a sociedade há a ação do Grande Irmão (Big Brother), que tem os olhos para todos, vigia as casas, controla cada passo do indivíduo para que ele não desvirtue e corrompa o sistema implantando. Como parâmetro para o controle absoluto sobre o cidadão, Winston Smith trabalha no Ministério da Verdade, que tem a função de filtrar todas as informações recebidas. Smith é vítima e, ao mesmo tempo, gerador de informações distorcidas. Assim se faz o controle do passado. As informações são avaliadas, pesadas, medidas, para depois serem retransmitidas aos cidadãos. A informação positiva de-

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termina também os índices de aprovação daqueles que estão no comando da nação. Com televisores espalhados por todos os cantos e lugares, o governo transmite suas mensagens distorcidas da história. Controlando os meios de comunicação, os cidadãos de Oceania só têm essa TV interna como canal direto para compreender o que acontece lá fora. Essa paranoia de controle total sobre todos chega ao absurdo quando os comandantes de Oceania reveem, permanentemente, as palavras dos dicionários. A intenção é banir todas aquelas que possam suscitar sentimentos ou ações e, consequentemente, colocar o regime de Oceania em risco. Diariamente, todos os funcionários devem também xingar, por dois minutos, Goldstein, grande vilão e inimigo público número um de Oceania. Para o governo o homem de Oceania precisa apenas agir, sem questionamentos. Em uma cena marcante, dois funcionários do governo conversam sobre a nova revisão do dicionário Novilíngua. “É uma coisa bela a destruição de palavras”. O personagem principal, Winston Smith (interpretado com grandeza por John Hurt), começa a entrar em colapso, pois o que ele reproduz no dia a dia não condiz mais com os seus ideais e os seus sentimentos. Ele mantém um diário secreto, escondido entre tijolos de seu quarto cinzento. Funcionário do Ministério da Verdade, onde tem a função de censurar as notícias desagradáveis ao sistema, Smith compreende que o mundo pintado pelo governo é muito diferente do mundo vivido. Assim, enquanto os demais funcionários de sua repartição repetem bovinamente o cotidiano, Smith passa a questionar o sistema em que está inserido. E não era mais o mesmo, “uma vez que uma árvore é cortada e transforma-se numa canoa, nunca mais uma canoa volta a ser árvore”. Em crise, Smith se apaixona por uma funcio-

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nária do governo. Mas para ter uma relação era preciso autorização oficial. O envolvimento com Julia abre para ele as portas da percepção para os sentimentos reprimidos. Com ela dá vazão ao amor, às relações sexuais, e começa a ter aquele sentimento do ser humano em constituir uma família. Tudo o que o sistema reprime. Mas como o Big Brother tem olhos para tudo, os governantes percebem que Smith está saindo do eixo e tendo um caso amoroso. Sadicamente, é convidado por um alto executivo para receber a nova edição do dicionário Novilíngua. Chegando ao departamento do diretor, depara-se com uma sala imensa; é recebido com vinho, móveis novos, uniformes, contrastando o mundo insalubre a que os funcionários são submetidos. Ao encontrar o diretor O´Brien, recebe o dicionário, mas descobre que há um outro livro sobre a capa e entre as folhas: o livro de Goldstein, principal inimigo do governo. A corda foi dada. Ao folhear o “dicionário”, Smith depara-se com os fundamentos de Goldstein, totalmente contrários ao sistema, e gosta do que lê, pois reafirma o seu novo sentimento perante a vida. O livro de Goldstein representa a resistência. Porém, fica a pergunta: será que Goldstein existia mesmo ou era mero artifício? Num mundo onde se controla totalmente a informação, guerras podem ser inventadas, inimigos gerados, tudo para manter o estado do jeito que está e beneficiar uma minoria. Enquanto assistimos a verticalização do mundo digital sobre nós, internet, TVs com conexão, câmeras, tablets e a busca pelo controle total, 1984 nos faz refletir sobre a sociedade que está sendo construída e reafirma preceitos históricos, como o de que controlar a informação é controlar as massas. Ou, simplesmente, de que informação é poder. Até que ponto somos protagonistas em nossa História e nosso tempo? Ricardo Flaitt


BRAZIL – O FILME 135


1985

BRAZIL – O FILME (BRAZIL)

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Inglaterra, 1985 Direção: Terry Gilliam Elenco: Jonathan Pryce, Robert De Niro, Katherine Helmond, Ian Holm, Bob Hoskins, Michael Palin, Ian Richardson Palavras-chave: autocracia, burocracia, nazismo, sociedade

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lássico de Terry Gilliam não tem ligação direta com imagens brasileiras, a não ser pela burocracia, que é universal. Brazil – O Filme segue a mesma linha de filmes como Laranja Mecânica e 1984, onde as pessoas vivem sob um sistema social opressor, vigilante e tecnicista. Ao contrário do que possa parecer, Brazil leva esse nome porque é embalado pela música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. A história se desenvolve a partir de uma falha na digitação (que trocou o T pela letra B), fazendo com que o departamento de repressão do governo aprisione um simples sapateiro, acusado de terrorismo contra o sistema. Paralelamente, o filme mostra a vida do funcionário do governo Sam Lowry, interpretado por Jonathan Pryce, afundado numa repartição, que sonha escapar desse mundo burocrático e que tem sonhos escapistas por uma linda mulher, Jill Layton. As histórias da mulher e do funcionário vão se entrelaçar, pois Jill é filha do sapateiro acusado injustamente de terrorista. Coexistem no mundo dos sonhos, mas na realidade são antagônicos, pois Jill pertence a um grupo de resistência ao sistema, enquanto Sam é uma engrenagem dessa máquina governamental. O diretor Terry Gilliam (autor também de Monty Python) faz referências, entre outras coisas, ao Estado Nazista e aos modelos de sociedades autoritárias, como a soviética. E também às histórias em quadrinhos, por meio de cenários e personagens, motivo pelo qual foi muito criticado ao fazer uma “salada” de signos. Se o riso vem da calamidade, o diretor extrai risos por meio de um roteiro nonsense, potencializando os níveis de burocracia e tecnicismo da sociedade,


criando situações surreais, mas que estão próximas da nossa realidade. Outro ponto da crítica de Gilliam é a preocupação exagerada com a aparência. A eterna busca pela juventude em detrimento dos valores morais. O que também é predominante no mundo em que vivemos e que todos nós sonhamos, em uma vida mais simples, mais próxima de nossos sonhos. O diretor de arte de Brazil – O Filme criou um futuro sombrio, entre o moderno e o antigo, como

computadores feitos de partes de máquinas de escrever e de monitores. Mescla o moderno com o arcaico de forma propositada, para mostrar que, apesar de novas tecnologias, o sistema estatal é burocrático e ineficiente. Brazil – O Filme, dentro de seu roteiro aparentemente sem sentido, mostra de forma criativa que vivemos mesmo sob uma sociedade absurdamente burocrática, opressora, que contradiz os instintos humanos. Ricardo Flaitt

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O CAVALEIRO SOLITÁRIO 138


1985

O CAVALEIRO SOLITÁRIO (PALE RIDER)

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EUA, 1985 Direção: Clint Eastwood Elenco: Carrie Snodgress, Clint Eastwood, Michael Moriarty Palavras-chave: comunidade, exploração, garimpo

Cavaleiro Solitário não aborda diretamente a questão operária, nem usa os termos típicos das narrativas das obras que a abordam. Mas pode-se dizer que um sindicalista experiente logo pode identificar situações muito familiares, como a coletividade e a ação conjunta. Na primeira cena a paisagem serena das Montanhas Rochosas, no Noroeste dos Estados Unidos, contrasta com o barulho da cavalaria dos bandoleiros que atormentam a comunidade a mando de um poderoso banqueiro. O pó vermelho que levanta da terra ressecada, e o intenso movimento, anunciam o conflito iminente. Para explorar a região em busca de pedras preciosas, o banqueiro usa de todos os meios para forçar os moradores a irem embora. Sua potente estrutura de prospecção equivale a uma indústria mercenária e poluidora. Ávida por lucro, ela não respeita as normas sociais, trabalhistas ou ambientais. O Cavaleiro Solitário é, então, invocado na floresta e surge como uma criatura espiritual, entre as montanhas. Ele é um estranho que logo se coloca na defesa dos moradores injustiçados – e ganha a simpatia de todos. Sua presença, mais do que garantir a segurança, incentiva a organização entre as pessoas da comunidade na luta contra o inimigo comum: o banqueiro saqueador. Western, ou o faroeste, como gênero cinematográfico, refere-se, de forma romanceada, ao processo de colonização na fronteira do Oeste estadunidense (a partir da linha do Mississippi), desde o período que precede a Guerra da Independência dos Estados Unidos (Guerra da Secessão) até a virada do século XX. O Cavaleiro Solitário é um clássico do faroeste que, em-

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bora não se limite apenas à rixa entre o mocinho e o bandido, é fiel ao gênero, apresentando uma história linear, com uma moralidade bem definida (o antagonismo entre o bem e o mal) e uma imagem imponente da natureza. Em certo momento já avançado do filme, há uma reunião entre os garimpeiros, que discutem uma oferta em troca de sua saída daquelas terras. Apesar da generosidade da oferta, no debate surgem outros valores que

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fazem com que eles defendam a permanência e a luta. Valores impagáveis como o apego ao lugar e à memória dos que já se foram em nome da mesma batalha. Ressalta-se, desta forma, que não se trata apenas de interesses materiais. Este é um ponto muito interessante para se comparar aos típicos movimentos de trabalhadores. Parafraseando o compositor Arnaldo Antunes, o trabalhador não quer só comida ou salário, ele quer também diversão e arte, ele quer a vida como a vida quer.


0 SOL DA MEIA-NOITE 141


1985

O SOL DA MEIA-NOITE (WHITE NIGHTS)

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EUA, 1985 Direção: Taylor Hackford Elenco: Mikhail Baryshnikov, Gregory Hines, Geraldine Page, Isabella Rossellini Palavras-chave: guerra fria, história, perseguição política

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m uma das frases mais emblemáticas de O Sol da Meia-Noite, o bailarino Nikolay Rodchenko diz que é russo, mas não soviético. Assim, ele se coloca claramente contra o regime comunista iniciado em 1917. Já nos últimos anos de existência da União Soviética, época de acirramento da guerra fria, Rodchenko, um famoso bailarino russo que desertou de seu país, vive nos Estados Unidos. Mas, por um azar do destino, em meio aos deslocamentos impostos pelas suas apresentações, ele literalmente cai em sua terra natal e acaba em uma base militar da URSS. Na tentativa de driblar o cerco, ele rasga seus documentos e se declara de origem francesa, já que, em outros tempos, a França primava pela diplomacia e pela garantia às liberdades individuais. Mas seu rosto famoso o condena e logo os agentes da KGB desfazem a farsa. Rodchenko, então, torna-se prisioneiro político, sob constante vigilância dos agentes e do dançarino estadunidense, também desertor de sua pátria, Raymond Greenwood. O filme coloca, desta forma, o encontro de dois refugiados em tempos de guerra fria. Greenwood não é um espião, nem tampouco um militar. Ele é dançarino de sapateado. Mas, para manter-se em terras soviéticas, é obrigado a colaborar com o regime. Veterano da Guerra do Vietnã, Greenwood também é desiludido com seu país, os EUA. Além das atrocidades da guerra, ele, sendo negro, julga o forte racismo e a precária condição de vida a que ele estava condenado antes de buscar refúgio na oponente URSS. Os dois artistas iniciam um convívio conturbado, que posteriormente se torna uma grande amizade. O filme


é interessante por parodiar a guerra fria, brincando com a dualidade. Um russo branco e um americano negro, o balé clássico e o sapateado. Opostos que acabam por se encontrar em situação similar, a exemplo dos países dominantes na ordem bipolar, União Soviética e Estados Unidos, que, com o fim da Segunda Guerra Mundial, disputam pela

instauração de um determinado modo de produção. Mesmo sendo anticomunista o filme oferece a possibilidade de uma reflexão sobre os meandros percorridos pela política na história recente. Uma política que se infiltra em todos os poros da vida pública. Como na arte, belamente exposta em O Sol da Meia-Noite.

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WALL STREET, PODER E COBIÇA 144


1987 WALL STREET, PODER E COBIÇA (WALL STREET)

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EUA, 1987 Direção: Oliver Stone Elenco: Michael Douglas, Charlie Sheen, Daryl Hannah Palavras-chave: corretagem, enriquecimento, especulação, mercado financeiro

all Street, de Oliver Stone trata da ética no sistema financeiro. A trama foi inspirada na história real do especulador Michael Milken, que terminou preso depois que a Securities & Exchange Commission (SEC), gigante do mercado acionário norte-americano, descobriu que ele usava uma rede secreta e manipulava informações para negociar suas ações na bolsa. O contexto da época estava favorável aos especuladores: por volta de 1985, o mercado financeiro dos Estados Unidos viveu sua época de maior alta. Com grande movimentação e elevada taxa de especulação, a Bolsa entrou em colapso em outubro de 1987, acarretando uma enorme crise no mercado. Wall Street mostra o lado dos que ganham com a crise econômica, o cinismo dos grandes especuladores e o deslumbramento de sua corte de yuppies (de yup: young urban profesional), recém-enriquecidos jogando na Bolsa com dinheiro alheio. Reflete, assim, o “trabalho” e a vida desses rapazes, cujo consumismo descarado imprimiu também uma marca forte no modo de ser de muita gente em nossos dias. A história gira em torno do corretor da bolsa de Nova York, Bud Fox, cujo objetivo na vida é ganhar muito dinheiro. Admirador e discípulo dedicado do bilionário Gordon Gekko, Buddy é obstinado e bem vestido, como manda o figurino dos yuppies que proliferaram na década de 1980. Ele aproxima-se de Gekko e descobre os caminhos ilícitos para a riqueza fácil. Sua fórmula de enriquecer não se baseia no lucro sobre a venda de produtos, mas na valorização e na taxa de juros de ações de empresas na Bolsa de Valores. Lógica que tira da jogada o processo produtivo e, consequentemente, não precisa de trabalhadores, apenas da especulação.

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Em contraposição, o pai de Buddy, Carl Fox, um líder sindical, faz o discurso oposto, enaltecendo o trabalho produtivo e a união entre os trabalhadores. Mesmo com as perspectivas deslumbrantes oferecidas pela fortuna ambicionada pelo garoto, Carl, o pai, não se deixa enganar, e se recusa a participar de seus jogos financeiros. Neste emaranhado de interesses e ideologias, a história se desenrola com diálogos densos e complicados. É um filme para se ler, para se estudar, para se debruçar sobre ele. Em certo momento, quando perguntado sobre quanto dinheiro é o bastante, Gekko diz: “Não é uma

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questão de ser o bastante. É como um jogo. O dinheiro em si não se faz, é simplesmente transferido. Como mágica. (...) Eu não crio nada. Eu sou o proprietário”. Com isto, ele mostra assim a lógica da corrupção no sistema financeiro ultraliberal. As contravenções do sistema financeiro são sofisticadas e de difícil compreensão. O ultraliberalismo de Gekko passa ao largo de qualquer regra moral. É o novo modelo da classe dominante: o bilionário moderno não é um mero detentor dos meios de produção, ele é um poderoso homem de negócios, que manipula os mecanismos de valorização e especulação financeira.


COLORS, AS CORES DA VIOLÊNCIA

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1988 COLORS, AS CORES DA VIOLÊNCIA (COLORS)

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EUA, 1988 Direção: Dennis Hopper Elenco: Sean Penn, Robert Duvall, María Conchita Alonso, Trinidad Silva Palavras-chave: gangsterismo, grupo, juventude

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senso de pertencimento a um grupo pode ser um traço positivo da juventude frente ao individualismo que a sociedade capitalista impõe. Mas a dedicação obstinada a este grupo pode levar a um radicalismo que é, no limite, segregador e disseminador da violência. O problema maior se dá quando este é o único caminho viável que um jovem vê a sua frente. O tema do trabalho de uma divisão especial, voltada ao controle de gangues, da polícia de Los Angeles, poderia facilmente resultar em um filme que se limita a opor bandidos e mocinhos, onde os bandidos são as gangues e os mocinhos a polícia – ou vice-versa. Contudo, Dennis Hopper foi esperto o suficiente para não fazer de Colors um filme moralista. Em um contexto em que a existência dessa divisão especial da polícia é necessária, não há a figura do bem e do mal. O que há é uma disseminação de gangues e do tráfico de drogas como possibilidade de ascensão em uma sociedade marcada por dois anos de recessão econômica e pelo aumento da desigualdade social. A dupla Robert Hodges/Danny McGavin, como parceiros policiais incompatíveis, opõe modelos de atuação. O novato Danny traz eficiência às ações, mas tem muito que aprender com Bob. Aprender que a fria relação de causa e efeito deve ser relativizada por uma concepção assistencial, que visa uma recuperação daquela juventude. O filme foi gravado em South Los Angeles, e relata os conflitos entre os policiais e as gangues Bloods e Crips, que agiam em Los Angeles.


MISSISSIPPI EM CHAMAS

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1988

MISSISSIPPI EM CHAMAS (MISSISSIPPI BURNING)

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EUA, 1988 Direção: Alan Parker Elenco: Gene Hackman, Willem Dafoe, Frances McDormand Palavras-chave: direitos civis, discriminação, fanatismo, Ku Klux Klan, racismo, segregacionismo

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té a década de 1960, os negros ainda eram tratados de forma desumana, violenta e discriminatória, com anuência do Poder Público, no Sul dos Estados Unidos. Traços desta cultura fascista ainda são perceptíveis. Mississippi em Chamas conta, de maneira fictícia, a história verídica da investigação do FBI sobre o brutal assassinato de três ativistas dos direitos humanos (dois brancos e um negro), em 1964. No filme, dois agentes do FBI, Alan Ward e Rupert Anderson, são enviados ao Mississippi para realizar a investigação. Ward e Anderson se infiltram na comunidade e conseguem as informações que precisam para montar o quebra-cabeças que desvendará o crime. Mas a temporada no Mississippi mostra que o problema é mais fundo. O clima de violência e opressão contra os negros domina o local. Mais do que uma postura voluntariosa de uma elite atrasada e preconceituosa, esta violência, como o filme mostra, é organizada através da tenebrosa Ku Klux Klan. Esta seita fascista, criada no Tennessee em 1865, após o final da Guerra Civil americana, oscilou entre momentos de grande atividade e longos períodos de ostracismo. Seu objetivo inicial, e o principal deles, perseguido ao longo de toda sua história, foi o de impedir a integração social dos negros, embora a Ku Klux Klan também fosse contra católicos, judeus, asiáticos e outros imigrantes. A organização, conhecida por ações extremamente violentas, chegou a ter quatro milhões de adeptos na década de 1920, incluindo autoridades. No fim da década de 1960 eles entraram em declínio e não chegaram a ser mais do que grupelhos neonazistas. Segun-


do a revista Time (1965), “os crimes que a KKK cometeu até sua proibição, sobretudo nos estados do Sul dos Estados Unidos, são tão variados e numerosos, tão cuidadosamente velados, e tão intimamente amalgamados com as singularidades da vida pública naqueles estados, que nunca seria possível abranger a todos”. Ambientado na década de 1960, época da insurgência do movimento pelos direitos civis, que tinha Martin Luther King como um de seus principais exponentes, Mississippi em Chamas é um filme que denuncia o vergonhoso e devastador racismo americano. O dogma da supremacia do homem branco protestante sobre os demais permeou, por muito tempo, a organização social, política e cultural daquela região. Contra seus efeitos ainda temos muito a lutar. O filme foi precedido, em 1975, pelo documentário Ataque ao terror: o FBI versus a Ku Klux Klan, que narrou o mesmo episódio.

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CONDUZINDO MISS DAISY

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1989

CONDUZINDO MISS DAISY (DRIVING MISS DAISY)

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onduzindo Miss Daisy aborda com graciosidade temas como longevidade, aposentadoria e relações humanas. A professora, judia e aposentada, Miss Daisy, do alto da sociedade norte-americana, na Geórgia de 1948, nos leva a refletir sobre a vida na idade avançada, após a idade de trabalho ativo. Através de uma história simples, ela mostra como a capacidade de transformação e de superação se mantém e se aprimoram na velhice, pois são realizadas com mais “sabedoria” e mais “maturidade”. Ressentida com a ideia de não ser mais inteiramente capaz de se cuidar, Daisy recusa o novo motorista e cuidador contratado pelo filho: Hoke Colburn, um homem viúvo e negro. Mas os dois, a senhora rabugenta, idosa e rica, e o trabalhador pobre, negro e semianalfabeto, descobrem que podem aprender e crescer, muito, um com o outro. Com mais de vinte anos o primaveril Conduzindo Miss Daisy se mantém sempre pertinente. Sua graça está em tocar pequenos detalhes que permitem uma boa convivência humana.

EUA, 1989 Direção: Bruce Beresford Elenco: Morgan Freeman, Jessica Tandy, Dan Aykroyd, Patti LuPone, Esther Rolle Palavras-chave: aposentadoria, longevidade

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ROSALIE VAI ÀS COMPRAS 154


1989

ROSALIE VAI ÀS COMPRAS (ROSALIE GOES SHOPPING)

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Alemanha, 1989 Direção: Percy Adlon Elenco: Marianne Sägebrecht, Brad Davis, Judge Reinhold, Erika Blumberger, Alex Winter Palavras-chave: consumismo, especulação, mercado financeiro

osalie vai às Compras mostra situações inusitadas sobre o consumismo, e passa ao largo da equação “trabalho, produção, salário, consumo e capital”. Se o trabalhador não comprar, não aquece o comércio, esfriando a indústria. Se a indústria não produz, não tem emprego. Não há saída viável. Mas a economia, ao colocar como fundamental a necessidade do consumo, acaba criando um risco para si mesma – o calote. O filme aborda, de forma irônica, a contradição entre o consumismo e o poder aquisitivo do trabalhador. A frase usada para a promoção do filme era bastante sugestiva, e de arrepiar os cabelos de qualquer economista: “Quando você deve cem mil dólares é um problema, mas, quando é um milhão, o problema é mais do banco do que seu!”. Rosalie, uma dona de casa alemã que vive no Arkansas, interior dos Estados Unidos, é exageradamente consumista, mas foge das contas e dos pagamentos. Ela compra tudo o que a família deseja, gastando muito além do que a renda familiar permitiria. Pagar a conta, entretanto, não é o problema. Cheques e cartões de crédito falsificados, e uma infinidade de cartões que pagam um ao outro, mascaram a dívida. O filme fala, de maneira cômica, da inadimplência. Este é o reverso da máquina socioeconômica. E assim é o nosso tempo histórico. O ato de adquirir algum produto não é o fim do processo produtivo, mas uma forma de sustentar um sistema maior e de difícil definição. Rosalie vai às Compras suscita uma reflexão sobre os atos de ter coisas e de pagar – ou não – por elas.

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O PODEROSO CHEFÃO PARTE 3 156


1990

O PODEROSO CHEFÃO – PARTE 3 (THE GODFATHER – PART 3)

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EUA, 1990 Direção: Francis Ford Coppola Elenco: Al Pacino, Andy Garcia, Diane Keaton, Sofia Coppola, Franc D’Ambrosio Palavras-chave: hierarquia, Igreja, máfia, poder

terceiro filme da saga sugere que negócios escusos do Banco do Vaticano destituiu um papa que poderia salvar a Igreja. Sua morte súbita desencadeou décadas de conservadorismo na doutrina católica, com a perseguição e o desmonte de comissões pastorais e de grupos políticos em seu interior. Do alto de um soberbo patrimônio, aos 59 anos de idade Michael Corleone sente o peso dos crimes que comandou à frente de sua famiglia. Seu destino, entretanto, fora traçado desde quando ele se revelou o único homem da família preparado para assumir o lugar do pai. Um destino feito de sangue, do qual ele não pôde fugir. Como Godfather, Michael se esforça para “lavar” os negócios construídos por seu pai com base em favores ilícitos e na construção e controle de cassinos em Las Vegas. É notório que “na vida real” os primeiros cassinos instalados em Vegas eram gerenciados ou financiados por figuras como Benjamin Bugsy Siegel e Meyer Lansky, entre outros mafiosos. Apropriando-se desta história Al Pacino, como Michael, encena, nos dois primeiros filmes, o poderoso mafioso que manteve o império do jogo. Agora, na maturidade, seu sentimento de culpa se exprime em seu semblante cansado e descrente, em sua postura pesada e em sua saúde que dá sinais de fragilidade. À parte questões subjetivas, a trama do filme toca em assuntos polêmicos e sensíveis da política internacional. O terceiro Poderoso Chefão insere à história original de Mario Puzo versões que ligam a família Corleone a eventos reais, como a súbita morte do papa João Paulo I e o escândalo do Banco Ambrosiano.

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Logo no início da história um fato explicitará a relação dos Corleone com a alta cúpula do clero: após fazer uma doação de US$ 100 milhões à Igreja, Michael recebe um dos maiores títulos concedido por ela, a Ordem de San Sebastian. Com isto o filme aborda os jogos de poder que permeiam a hierarquia católica. E o Poderoso Chefão III vai ainda mais longe. Referindo-se às fraudes do Banco Ambrosiano, um dos principais bancos privados católicos italianos, cujo principal parceiro era o Banco do Vaticano, explora a tese de que operações ilegais estariam ligadas à súbita morte do papa João Paulo I, que governou a Santa Sé apenas por um mês, até a data da sua morte, em 28 de setembro de 1978.

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A morte daquele papa fomentou o surgimento de várias teorias conspiratórias. Uma das mais contundentes é a do escritor britânico David Yallop, autor do livro In God’s Name (1984), no qual defende que João Paulo I morrera porque estava prestes a descobrir os escândalos financeiros supostamente envolvendo o Vaticano. O filme reafirma esta tese, demonstrando os efeitos dos negócios escusos entre o Banco Ambrosiano e o Banco do Vaticano. Tais negócios, que talvez estejam envolvidos com a morte do papa, desencadearam décadas de conservadorismo na Igreja Católica, com a perseguição e o desmonte de comissões pastorais e de grupos políticos em seu interior, como aqueles ligados à Teologia da Libertação.


THE COMMITMENTS LOUCOS PELA FAMA 159


1991 THE COMMITMENTS – LOUCOS PELA FAMA (THE COMMITMENTS)

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EUA/Reino Unido, 1991 Direção: Alan Parker Elenco: Robert Arkins, Colm Meaney, Andrew Strong, Maria Doyle Palavras-chave: juventude, cultura, operariado, músicos

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jovem Jimmy Rabbitte quer levar a soul music para Dublin. Para isto ele forma uma banda de negros irlandeses. Só que esses negros são europeus brancos, loiros e de olhos claros. Para ele, ser negro é um estilo de vida, uma cultura e uma história. Não a cor da pele. A soul band formada por Rabbitte, The Commitments, sintetiza a identidade operária da periferia dublinense. E a fotografia do filme, que capta a estética underground dos guetos da cidade, corrobora a força desta matéria-prima para a produção cultural. Com isto o filme mostra que a pobreza financeira, promovida pelo capitalismo, é universal. A forma como se organizam os trabalhadores das classes mais baixas, com suas grandes famílias, é similar em Dublin, em Chicago ou em São Paulo. Em qualquer um destes lugares as necessidades urgentes demandam duas qualidades fundamentais: improviso e criatividade. O operariado está além dos costumes que definem e diferenciam as elites no âmbito histórico e geográfico. Ele é, mesmo sem buscar por isto, uma cultura própria. Uma cultura tão concreta quanto as leis da natureza. Por isto suas expressões artísticas e culturais, como, neste caso, o blues, o jazz e o soul, são ao mesmo tempo específicas e universais. E, por isto, uma verdadeira banda de soul, formada no bojo da cultura de um povo sofrido, faz sentido para o público. Daí o sucesso repentino dos Commitments no filme. Jimmy defende seu sonho em montar uma banda de música negra afirmando uma frase que define o filme: “Os irlandeses são os negros da Europa e os dublinenses são os negros mais negros da Irlanda”. Mas é justamente nesta tentativa de definição que a obra escorrega. A combinação das imagens, das músicas e dos hábitos, já passa a mensagem de Jimmy. E o faz de forma elegante e inteligente. O excesso de discurso do protagonista torna o filme didático e infantilizado. Ela não precisava explicar aquilo que o soul já deixa claro.


DAENS UM GRITO DE JUSTIÇA 161


1992

DAENS – UM GRITO DE JUSTIÇA (DAENS)

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Bélgica/França/Holanda, 1992 Direção: Stijn Coninx Elenco: Jan Decleir, Gerard Desarthe, Antje de Boeck, Michael Pas, Karel Baetens, Julien Schoenaerts, Wim Meuwissen Palavras-chave: exploração do trabalho, modo de produção, operariado, Revolução Industrial

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segunda metade do século XIX é marcada pela consolidação do modo de produção capitalista. Considerado por historiadores como a Segunda Revolução Industrial, este período apresentou grande avanço tecnológico e científico. Com isto, naturalmente, o mundo do trabalho também sofreu profundas transformações. Sob essa nova ordem socioeconômica, homens, mulheres e crianças, para sobreviver, viram-se obrigados a vender o único bem que lhes restavam: sua força de trabalho. Como engrenagens do sistema, as pessoas eram submetidas a desumanas jornadas de trabalho de até 16 horas diárias, em locais insalubres, tendo de repetir incessantemente (divisão do trabalho) o mesmo movimento nas máquinas. Não existiam leis e garantias trabalhistas, o que dava margem a terríveis abusos patronais, como assédios morais e sexuais. O filme Daens – Um Grito de Justiça narra a história do padre belga Adolf Daens, que se transfere para a cidade de Aalst, no final do século XIX. Chegando lá, depara-se com a degradação em que a população era submetida nesse processo agudo de industrialização. Sensível e esclarecido homem de seu tempo, Daens indigna-se ao deparar com as constantes mortes por acidentes nas indústrias, pela fome, pelo frio e demais causas devido às condições miseráveis em que viviam as famílias operárias. Em Aalst, Daens instala-se na casa do irmão Peter, dono do jornal local, O Operário, onde publica o artigo “Chega de Crianças Mortas em Aalst”, que denuncia a exploração do trabalho infantil nas fábricas.


O artigo mexe com as estruturas da cidade, constituídas pelos burgueses (empresários), a Igreja, políticos, a massa trabalhadora oprimida e correntes políticas como os socialistas e os radicais (reacionários oriundos da massa). A partir do instante em que Daens passa a interferir na ordem estabelecida, os burgueses/empresários iniciam uma articulação para calar o padre que buscava justiça social e, evidente, seguia no sentido contrário à lógica do sistema de maximização dos lucros e competitividade, mesmo ao custo de vidas humanas. Sendo Daens parte da Igreja Católica, a ação/ pressão burguesa envolve, então, o cerceamento da propagação dos seus ideais recorrendo aos superiores na hierarquia eclesiástica. Na primeira esfera, o bispo convoca-o/intima-o para avaliar o caso, saber se realmente há um número excessivo de mortes de crianças e, sobretudo, para cercear a atuação do padre. Neste ponto é necessário compreender as relações entre a doutrina católica de justiça, a relação com a burguesia e o crescimento dos ideais socialistas/comunistas. A Igreja, sob o contexto das relações, tinha a missão de apascentar a massa operária para o bom funcionamento do sistema. Porém, contraditoriamente, via-se obrigada a seguir suas doutrinas pelo bem-estar social de todos. A Igreja enxergava as atrocidades cometidas nas fábricas, no entanto, compactuava com a burguesia pela soberania das almas em suas paróquias e, consequentemente, para frear qualquer propagação dos ideais socialistas que negavam a fé e a doutrina católica. A atuação de Daens estabeleceu um desafio eclesiástico: como conciliar os interesses burgueses/empresariais sem perder a alma dos operários católicos? No plano político, o Parlamento belga, sob pressão popular, decidia sobre o sufrágio universal, que acabara sendo aprovado aos maiores de 25 anos.

Com esta decisão, Daens encontra uma brecha para fugir ao cerceamento, candidatando-se a uma vaga no Parlamento. Se de um lado a burguesia se articulava com a Igreja para manter-se no centro das decisões políticas, em contrapartida Daens compunha com as massas operárias, os socialistas e alguns empresários liberais. Composição necessária, uma vez que a massa não possuía outro representante, e tanto burgueses liberais quanto socialistas não congregavam força suficiente para ocupar uma cadeira. Unificados, elegem Daens, que apresenta o quadro de exploração extrema nas fábricas de Aalst no Parlamento. Assim, Daens passa a incomodar ainda mais. A burguesia reagrupa-se, rearticula-se e encontra um novo mecanismo para sufocar o agora parlamentar Daens: levar o caso do padre para ser julgado pelo papa Leão XIII, no Vaticano. O bispo tem plena consciência da exploração nas indústrias e as condições de miséria em que viviam os trabalhadores. No entanto a Igreja, sendo uma entidade política, precisava manter os laços estreitos com o poderio político-econômico burguês para afastar os ideais socialistas que negavam a fé cristã e enfraqueciam sua influência. Em Roma, Leão XIII determina que Daens deveria se ocupar basicamente das atividades católicas ligadas à Igreja, sem qualquer forma de interferência na ordem social, e com a missão de apenas “manter a paz e a ordem social”. Com a proibição vinda do Vaticano, o padre parlamentar Daens retorna à Aaslt. Mesmo assim prossegue sua luta em defesa dos menos favorecidos. Acaba sendo suspenso de suas atividades sacerdotais, em 1898, por Antoine Stillmans, bispo de Ghent. Mas seu grito por justiça nunca se calou. Elegeu-se para mais um mandato no Parlamento, onde ampliou sua voz em defesa dos oprimidos. Ricardo Flaitt

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HOFFA, UM HOMEM, UMA LENDA 164


1992

HOFFA, UM HOMEM, UMA LENDA (HOFFA)

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EUA, 1992 Direção: Danny DeVito Elenco: Jack Nicholson, Danny DeVito, Armand Assante, J.T. Walsh, John C. Reilly Palavras-chave: sindicalismo, caminhoneiro

m dezembro de 1975 a TV norte-americana noticiou o desaparecimento do sindicalista James Riddle Hoffa, de 62 anos. Hoffa foi visto pela última vez no estacionamento do restaurante Machus Red Fox, em Detroit, no final de julho daquele ano. Seu sumiço foi extensivamente investigado nos anos seguintes, inclusive pelo FBI. Nunca se chegou a alguma conclusão. Seu corpo nunca foi encontrado e, em 30 de julho de 1982, ele foi declarado morto. Desde então esta é uma ferida aberta na história dos EUA. Combatente incansável, turrão, disposto a tudo para defender os trabalhadores, Jimmy Hoffa sumiu na véspera de retornar ao posto de presidente da International Brotherhood of Teamsters – IBT (Irmandade Internacional dos Caminhoneiros). Desde a década de 1930 ele esteve envolvido com os teamsters. Entre 1958 e 1971, foi presidente daquele sindicato desempenhando um papel de grande importância. Durante sua liderança a IBT se tornou a maior organização de trabalhadores dos Estados Unidos, com mais de 1,5 milhão de filiados. Dezessete anos após sua morte, o ator e diretor Danny DeVito, resolveu jogar um pouco de luz nesta passagem obscura da história dos trabalhadores estadunidenses com o filme Hoffa, um Homem, uma Lenda. Para isto contou com a ajuda do experiente Jack Nicholson para dar vida ao personagem. Dar vida ao personagem é, neste caso, mais que uma figura de linguagem. Interpretando Hoffa, Nicholson, expõe a trajetória do sindicalista às novas gerações. Uma história que, acima de tudo, revela a repressão e o cerceamento com que os Estados Unidos tratam as organizações de trabalhadores.

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Como se trata de um caso sem desfecho, DeVito deu liberdade ao roteirista David Mamet (de Os Intocáveis, 1987), que combinou realidade com ficção. Mas o que é realidade e o que é ficção quando se trata de Jimmy Hoffa? Com uma vida marcada

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pela dubiedade, pela luta pelos trabalhadores, por relações escusas com a máfia, marcada pelo heroísmo e por atitudes suspeitas nos jogos de poder, o sindicalista tornou-se uma lenda no imaginário de seu país.


VIDA DE SOLTEIRO 167


1992

VIDA DE SOLTEIRO (SINGLES)

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EUA, 1992 Direção: Cameron Crowe Elenco: Bridget Fonda, Campbell Scott, Kyra Sedgwick e Matt Dillon Palavras-chave: comunicação, cultura, emprego, juventude

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través da história de jovens casais, Singles traz sinais interessantes sobre a juventude de uma época. Modernidade, despojamento, irreverência, juventude e liberdade estão no DNA do estilo grunge demonstrado em Singles. Um estilo que se expandiu da pacata e fria cidade de Seatle para o mundo. Muitas vezes, ainda mais quando pensamos no liberalismo econômico que dominou os anos de 1990, o ar de descaso com o mundo no estilo de vestir, falar e se portar é forte sintoma da falta de perspectiva da juventude. Um dos maiores ícones grunge, Kurt Cobain, vocalista da banda Nirvana, é a imagem fugaz e conturbada do movimento musical. Smells like team spirit, sucesso que fez com que o Nirvana de Kurt Cobain estourasse nas paradas, sintetizava a alma daquela geração. A música baseou-se em uma referência ao cantor que dizia: Kurt cheira ao espírito adolescente (Kurt Smells like team spirit) e foi considerada um hino da politicamente apática Geração X. No entanto a banda cresceu desconfortável com o sucesso e teve um desfecho trágico. O grunge não foi o primeiro movimento a escancarar uma rebeldia descrente da política e da organização social. Ele é herdeiro do punk, da década de 1970. O filme mostra, de forma bem-humorada, as alegrias e os riscos de uma liberdade, já velha conhecida, conquistada em gerações anteriores. Vemos também pipocar novas preocupações como a sustentabilidade, que surge tênue como fumaça no discurso da protagonista. Isto tudo em uma trama simples, protagonizada por jovens na casa dos vinte e trinta anos com seus dilemas clássicos: um bom emprego, um lugar para morar e um amor. Aos olhos de hoje chama à atenção a falta do telefone celular e da internet, que fariam toda a diferença, mas que ainda não eram disseminados. A fita cassete em secretárias eletrônicas, e a hegemonia do telefone fixo na vida de jovens modernos viviam seus últimos suspiros. Singles ganha por tratar de temas delicados com humor, leveza e inteligência. Com a distância do tempo ganhou a graça da nostalgia. É daqueles filmes que nos faz pensar em quando tudo isto começou.


FILADÉLFIA 169


1993

FILADÉLFIA (PHILADELPHIA)

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EUA, 1993 Direção: Jonatham Demme Elenco: Tom Hanks, Denzel Washington, Jason Robards, Antonio Banderas, Joanne Woodward, Robert W. Castle Palavras-chave: corporativismo, corporação, direito, empresa, homossexualidade, homofobia

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m Filadélfia, um advogado recém-formado é contratado por uma megaempresa de advocacia estadunidense e rapidamente torna-se o queridinho do chefe. Mas, ao contrair o vírus da Aids, o advogado teme assumir a doença e sua homossexualidade. Nesta trama tanto a situação do protagonista quanto o ofício dos personagens giram em torno do exercício do direito em contraposição aos preconceitos sociais. O ponto crucial do filme é o contraste da forma com que o advogado Andrew Beckett é tratado antes e depois do surgimento dos sintomas de sua doença. A mudança de postura de seus patrões na empresa Wyant Wheeler, que chegam a demiti-lo alegando desempenho insatisfatório, explicitam a forte discriminação em relação à homossexualidade e à Aids. Esta discriminação é acentuada quando Andrew, ciente de que foi vítima de um boicote, decide processar a empresa e sai em busca de um advogado. Todos os nove profissionais procurados rejeitam a causa. Ele, então, começa a preparar sua autodefesa, alegando demissão imotivada. Até que, por acaso, o advogado de pequenas causas Joe Miller flagra Andrew sendo discriminado em uma biblioteca. Seu senso de justiça faz com que ele, a partir daquele momento, se solidarize com Andrew, assuma sua defesa e os dois passem a trabalhar de forma incansável para enfrentar a poderosa força da Wyant Wheeler. A história mostra a dificuldade em assimilar, na prática, os tais direitos civis. Vastas teorias discorrem sobre os princípios que regem a dinâmica entre a sociedade e a chamada “natureza humana”. De Thomas Hobbes a Jean Jacques Rousseau, as filosofias modernas desdobraram-se nas noções contemporâneas de indivíduo e civi-


lidade. O processo de conseguir a igualdade perante a lei para todas as camadas da população, independente de cor, raça, religião ou opção sexual, é um fato histórico novo que ainda dá margem a interpretações dúbias. Ao não aceitar a homossexualidade de Andrew, e julgá-lo por sua doença, os empresários refletem o preconceito que é artificialmente construído na formação de cada um. Hoje o direito, como matéria que rege o convívio social, se ampliou e se tornou complexo. Mas, se teoricamente a liberdade, a sobrevivência e a integridade humana são protegidas por lei, na prática isto muitas

vezes demanda um embate judicial ríspido que pode se arrastar ao longo de muito tempo. De tudo isto vem o trabalho do advogado, um profissional autorizado pelas instituições competentes a exercer a representação dos legítimos interesses das pessoas, para a administração da justiça e para assegurar a defesa dos interesses das partes em juízo. No filme o julgamento fica à mercê do bom senso do júri. Pautados pela percepção, pela sensibilidade e pela experiência humana, as pessoas comuns detêm o poder de sentenciar processos. São passos, erros e descobertas que promovem a evolução da raça humana.

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O GERMINAL 172


1993

O GERMINAL (GERMINAL)

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França, 1993 Direção: Claude Berri Elenco: Miou-Miou, Renaud, Gérard Depardieu, Jean Carmet, Judith Henry, Jean-Roger Milo Palavras-chave: exploração, mineração, sindicalismo

um cenário de extrema miséria e degradação humana, O Germinal relata a realidade dos operários franceses nas minas de carvão, no final do século XIX. Com 550 metros de profundidade, a mina Voreux era formada por diferentes andares. Lá, a exploração do trabalho era contínua. A chegada de Etienne (interpretado por Gerard Depardieu), um novo operário, promove importantes mudanças no cenário nas minas de carvão. O mineiro recém-chegado se espanta com a precariedade das condições de trabalho e incentiva os operários a prepararem uma greve. Juntos, eles percorrem as minas da região, chamando outros trabalhadores a juntarem-se ao movimento. A greve se expande. Contra ela, a empresa ameaça fazer demissões, e a fome dos trabalhadores aperta. Alguns querem voltar ao trabalho enquanto outros decidem continuar a greve, nem que para isto tenham que dar a vida. Mas tudo é em vão. Etienne é expulso da vila por ser o culpado de inculcar nas pessoas ideias de revoluções e esperanças. Os mineiros retornam quietos ao trabalho. O Germinal nos mostra as relações de exploração entre capitalistas e operários e a maturação do movimento sindical.

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O CARTEIRO E O POETA

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1994

O CARTEIRO E O POETA (IL POSTINO)

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Itália, 1994 Direção: Michael Radford Elenco: Massimo Troisi, Philippe Noiret, Maria Grazia Cucinotta, Linda Moretti, Renato Scarpa Palavras-chave: carteiro, luta social, pesca, poesia

Carteiro e o Poeta mantém o ar de clássicos que fizeram escola. Ao analisá-lo encontramos uma referência essencial ao filme Ladrões de Bicicleta (1948), obra obrigatória em qualquer filmografia sobre o mundo do trabalho. Assim como na obra de De Sica, o protagonista de O Carteiro e o Poeta, Mario Ruoppolo, é um desempregado que encontra uma oportunidade de trabalho para o qual é imprescindível possuir uma bicicleta. A história se passa na década de 1950, em uma ilha do Mediterrâneo onde a pesca é a principal e uma das únicas atividades econômicas. Ruoppolo foge da sina de ser pescador. Logo na primeira cena, num casebre onde vive, confessa ao pai que tem enjoos quando sai no barco de pesca. Por ocasião do exílio político do poeta chileno Pablo Neruda surge o trabalho provisório de exclusivo entregador de cartas ao poeta, e o fato de saber ler qualifica Ruoppolo para a função. A história de desenvolve a partir do contato do carteiro, com suas idiossincrasias de homem simples, com o poeta e sua habilidade com as palavras. Apesar da rusticidade de seu mundo Mario é um homem em busca de si mesmo. E as conversas com Neruda despertam nele questões que ele tentava, sem sucesso, formular. O carteiro aprende a falar sobre seu amor e, além da poesia, tal qual seu mestre, começa a prestar atenção nas desigualdades sociais e envolve-se com a política. A amizade é dramaticamente encerrada pela história política mundial. O filme é marcado pelo drama daqueles que foram reprimidos por lutarem por um mundo mais justo. O Carteiro e o Poeta é essencialmente nostálgico. Ele romantiza uma profissão que, embora essencial, muitas vezes passa despercebida. A estrela do filme não é o poeta. Em sua humildade o carteiro é quem brilha. Ele representa a beleza de uma simplicidade que muitos que a têm nem sequer imaginam.

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O INDOMÁVEL ASSIM É MINHA VIDA 176


1994 O INDOMÁVEL – ASSIM É MINHA VIDA (NOBODY´S FOOL)

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EUA, 1994 Direção: Robert Benton Elenco: Paul Newman, Jessica Tandy, Melanie Griffith, Philip Seymour Hoffman, Pruitt Taylor Vince Palavras-chave: construção civil, família, terceira idade

inguém é bobo” é a tradução do título original. Donald “Sully” Sullivan, o protagonista, um trabalhador da construção civil que chegou aos sessenta anos com dificuldades financeiras, precisa se dobrar a um empregador desonesto e arrogante, que é seu único contato profissional. Ele renunciou à família e não tem nenhum amor. Sully, entretanto, é o tipo que passa a impressão de quem assume seus riscos. Consciente de sua situação e de suas escolhas, ele consegue olhar a vida com otimismo e ser feliz com as coisas simples. Por isso Donald Sullivan é humilde, mas não é bobo. O inesperado reencontro com seu filho dá a ele a oportunidade de rever a família, resgatar suas posses e dar outro rumo a sua história. Ele se reconstitui como pessoa e recompõe seus pedaços deixados no caminho. Mas, mesmo feliz em ter seu filho e neto por perto, Sully não quer mudar de vida. O Indomável quer ser dono de seu tempo e de suas decisões. E a cena do velho Paul Newmann (Sully) confortavelmente acomodado na poltrona da pensão em que vive, da já octogenária Miss Beryl ( Jessica Tange), sugere que a vida do indomável Sully continuará sendo assim. Assim é minha vida é como a vida de muitos dentre nós, e esta é a sua graça. Nele o trabalhador pode se espelhar e, mesmo que não se identifique com o protagonista, é possível que identifique situações familiares.

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TIROS NA BROADWAY 178


1994

TIROS NA BROADWAY (BULLETS OVER BROADWAY)

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EUA, 1994 Direção: Woody Allen Elenco: John Cusack, Dianne Wiest, Chaz Palminteri, Jennifer Tilly, Mary-Louise Parker Palavras-chave: arte, criação, interpretação, realização

umor e inteligência são os aspectos mais marcantes dos filmes de Woody Allen. Através deste verniz ele aborda, de forma recorrente, o tema da produção cultural como um ofício. Em Tiros na Broadway este tema se desenvolve através do paradoxo entre a liberdade de criação e a necessidade de enquadramento no mercado. Enquanto o dramaturgo profissional, formado, não consegue ir além daquilo que aprendeu na escola, o gangster, de autêntico espírito livre, não cogita a possibilidade de concretizar seu potencial criativo, transformando-o em arte. Na Nova York dos anos 20, David Shayne é um dramaturgo que não aceita “se vender”, submeter-se às regras do mercado. Numa certa altura, um gangster se propõe a financiar uma peça sua, com a condição de que a namorada do fora da lei, Olive, tenha um papel nela. E os problemas se acumulam: a falta de talento da atriz, suas exigências descabidas etc. E, nesse desenvolvimento, o mafioso acaba se revelando um artista do primeiro time, dando várias e valiosas sugestões para a peça. O filme Poucas e Boas, de 1999, do mesmo diretor, complementa esta ideia, discorrendo sobre a vida de um músico com talento único para extrair do violão as mais belas canções, com invejável naturalidade, mas que, sendo um excêntrico, um desajustado por natureza, não consegue levar sua carreira muito adiante. Trata-se de um dilema universal que contrapõe a criação, no sentido mais amplo, para além do sentido artístico, e a capacidade de realização de projetos. Tiros na Broadway trata, portanto, de inventividade e senso prático: duas qualidades fundamentais para o avanço da humanidade, para a hominização do homem. Qualidades que nos desafiam a combiná-las.

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AS PONTES DE MADISON 180


1995

AS PONTES DE MADISON (THE BRIDGES OF MADISON COUNTY)

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EUA, 1995 Direção: Clint Eastwood Elenco: Clint Eastwood e Meryl Streep Palavras-chave: dona de casa, fotógrafo, maturidade

o visitar o Estado de Iowa (EUA) para fotografar as famosas pontes cobertas para a revista National Geographic, o fotógrafo Robert conhece a dona de casa Francesca Johnson. Ela, ao se casar com um soldado americano, trocou a Itália pela América, e tem sua vida resumida a cuidar da casa e criar os filhos. As Pontes de Madison é uma ode à simplicidade. Neste ponto o fotógrafo e a dona de casa concordam. Ninguém melhor do que eles para expressar tal beleza. Como Francesca afirma, a certa altura, ela vive uma vida de “detalhes”. Detalhes estes que não escapam à percepção de Robert. Com seu olhar treinado de fotógrafo ele percebe a sedutora mulher que há em Francesca quando ela, do alto de sua maturidade, prepara o chá, seleciona os legumes, fala de si e dos seus com paciência e pudor. O encontro de Robert e Francesca é comovente e profundo. A despeito dos seus contrastes – a provinciana dona de casa que não conhece muito além da cidade em que vive e o fotógrafo cosmopolita da National Geographic, com uma rica bagagem de experiências pelo mundo –, o filme nos convence de que eles foram feitos um para o outro. Uma doce melancolia atravessa toda a história. Os pés no chão, o senso de responsabilidade e a pesada consciência das condições concretas deixam no ar a ideia de que já não há mais tempo para este amor. Ele chegou tarde. O filme mostra o fotógrafo no exercício de sua profissão. Através dele vemos que tal atividade requer um envolvimento pessoal com cada projeto, e que, por ser um trabalho de concentração e individualidade, é fortemente marcado pelas idiossincrasias de cada profissional. Como contraponto, o filme mostra também uma mulher moldada pela vida como uma exímia dona de casa, condição esta que também é aprendida e que também tem suas peculiaridades. As Pontes de Madison é uma adaptação do famoso romance The Bridges of Madison County, de Robert James Waller, que seria baseado em uma história real.

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MENTES PERIGOSAS 182


1995

MENTES PERIGOSAS (DANGEROUS MINDS)

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EUA, 1995 Direção: John Smith Elenco: Michelle Pfeiffer, George Dzundza, Courtney B. Vance, Robin Bartlett, Beatrice Winde Palavras-chave: desigualdade social, educação, escola, juventude, periferia, professor

roduzido em meados da década de 1990, Mentes Perigosas se passa em um contexto em que de um lado há uma alta taxa de desemprego, sentida fortemente entre os jovens e, do outro, há um expressivo aumento do contingente de alunos regularmente matriculados em escolas. Ao assumir uma classe “especial”, daquelas com alunos com problemas de disciplina, a professora LouAnne sente que não está preparada para o desafio. Com a convivência, ela percebe que a indisciplina está atrelada ao histórico sociocultural de cada aluno, o primeiro obstáculo que surge entre sua vontade de ensinar e a incapacidade de aprender dos alunos. No fundo, a própria instituição escolar mostra que é incapaz de assimilar alunos com diversos perfis, culturas e origens sociais. LouAnne desafiará todas as regras, criando o seu próprio currículo e recorrendo a recompensas (chocolates, passeios, jantares) por bons resultados em sua matéria. No decorrer da trama ela incentiva a classe a ver o conhecimento como uma arma intelectual que os prepara para os obstáculos da vida, e mostra que o próprio aprendizado é a principal recompensa. Com esta dinâmica o filme mostra que todos aprendem: alunos e professor. Mas ele ainda deixa muitas questões no ar. LouAnne foi negligente ao associar o aprendizado a um ganho material imediato? Onde fica a luta pela melhoria da instituição? É possível ganhar um aluno só pela força das ideias? Parece consenso dizer que a escola, como uma instituição, carece de ajustes. A famigerada indisciplina é um mar de equívocos. É recente o fato de as classes sociais mais pobres frequentarem em massa a escola. As

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desigualdades sociais, marcadas antes pelos escolarizados e não escolarizados, se fez sentir no interior da própria escola, que criou seus próprios meios de discriminação e marginalização dos alunos. No filme, a família de um dos alunos (o personagem Raul) afirma que ele será o primeiro a concluir a high school (o equivalente ao ensino médio no Brasil). Em outro momento a mãe de dois alunos tira-os da escola alegando que ela não está criando “doutores”, e sim trabalhadores, e que tem de pagar contas. São passagens que mostram o choque

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com esta nova realidade em que os filhos podem frequentar a escola. A educação suscita debates que envolvem diversos setores da sociedade. Cem minutos de ficção não podem fechar a questão. A história é baseada em fatos reais, registrados pela verdadeira LouAnne Jonhson no livro My posse don’t do Homework. O diretor John Smith misturou atores não profissionais com profissionais, dando mais credibilidade ao filme.


PÁGINAS DA REVOLUÇÃO 185


1996

PÁGINAS DA REVOLUÇÃO (SOSTIENE PEREIRA)

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França/Itália/Portugal, 1996 Direção: Roberto Faenza Elenco: Marcello Mastroianni, Joaquim Almeida, Daniel Auteuil, Stefano Diosini, Nicoletta Braschi Palavras-chave: comunismo, ditadura, fascismo, jornalismo, juventude

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arcello Mastroianni, em seu antepenúltimo papel, interpreta Pereira, editor da página de cultura do jornal Lisboa. O ano é 1936. Portugal está sob o governo do ditador Antonio de Oliveira Salazar. Na vizinha Espanha começava a Guerra Civil, que durou até abril de 1939, levando à ditadura do generalíssimo Francisco Franco. O nazismo alemão e o fascismo italiano já impregnavam a Europa; Hitler e Mussolini deram apoio a Franco e Salazar, reforçando o extremismo de direita. Entre Portugal e Espanha revolucionários ultrapassam as fronteiras para driblar a repressão. Alheio a tudo isto, o jornalista Pereira segue sua pacata vida. Viúvo e com problemas cardíacos, ele é amigável e não desperta desconfianças. Em sua ingenuidade Pereira acredita que seu jornal é “independente”, não defendendo nenhuma posição política. Mas, com a discrição e as artimanhas que o contexto exigia, seus amigos – o médico, o padre, o garçom – davam a ele sinais de que seu editor, nas entrelinhas do jornal, colocava-se a serviço do regime. Considerado inofensivo, Pereira tinha total liberdade em sua página cultural. E começa a preparar necrológios de personalidades ainda vivas, para, como diz, “não ser pego de surpresa”. Sua vida muda quando conhece o jovem Monteiro Rossi. Admirado com uma de suas crônicas, o convida para trabalhar em seu novo projeto. O que o jornalista não sabe é que Monteiro pertence à juventude revolucionária, antisalazarista, e que pretende usar o espaço dos necrológios para manifestar seus pensamentos revolucionários. Pereira logo percebe que, devido a censura, ele


não poderia publicar aquele conteúdo, mas mantem o jovem no emprego. Ele tenta instruir Rossi sobre o que espera de seu trabalho e estabelece com ele uma relação paternal. A partir desta relação, e da perseguição política ao jovem, Pereira se dá conta da gravidade da situação política e da posição do jornal em que trabalha.

Baseado no livro Sostiene Pereira, do escritor italiano Antonio Tabucchi, Páginas da Revolução nos leva a refletir sobre as ditaduras direitistas que promoveram, em diversos países, um massacre aos movimentos sociais. Mais do que isto, o filme fala do envolvimento pessoal com as lutas políticas e ressalta a importância das amizades neste processo.

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0 CASTELO

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1997

O CASTELO (DAS SCHLOSS)

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Alemanha/Áustria, 1997 Direção: Michael Haneke Elenco: Ulrich Mühe, Susanne Lothar, Frank Giering, Felix Eitner Palavras-chave: alienação, burocracia, poder político

homem edificou a sociedade por meio de mecanismos burocráticos. Viver é se perder entre títulos, nomenclaturas, símbolos, siglas, carimbos, legislações, normas etc. Com isto, o ser humano afastou-se de si. Tantos “sentidos” e atribuições sociais parecem ter feito com que se perdessem também os sentidos humanos. O aparelhamento estatal, como forma de organização das pessoas em comunidade, ao mesmo tempo em que propõe um padrão para se viver em sociedade também oprime, no instante em que o homem se perde de si, aliena-se, distancia-se de suas raízes. O Castelo é baseado no livro homônimo e inacabado de Kafka, lançado postumamente em 1926. Retrata a trajetória de um homem que chega a uma aldeia para executar um serviço, mas não consegue falar com o conde, supostamente o contratante. O personagem principal, com o nome reduzido a apenas uma letra, K., busca alternativas para se comunicar com os representantes locais. No entanto, para as pessoas da aldeia os poderes constituídos são quase que imaginários. Sabem da existência de um poder denominado O Castelo, mas que praticamente ninguém tem acesso. Assim, é como se não existisse. A obra de Kafka, muito bem convertida em imagens pelo diretor Haneke, utiliza-se da potencialização de situações absurdas para mostrar o distanciamento dos aldeões em relação ao sistema, o nonsense da vida, dos mecanismos burocráticos, da alienação. Recurso que também fora utilizado pelos autores do “absurdo”, como Samuel Beckett, Albert Camus, e com transições do existencialismo de Sartre.

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Os aldeões resumem-se em viver, beber, dançar, sorrir e voltar para seus lares, como se todo sistema fosse algo natural e não algo inventado por outros homens. K., que se diz agrimensor, começa sua busca pelo conde que supostamente o contratara. O máximo que chega é a um homem, ligado ao Castelo, que verifica, numa pilha de documentos amontoados num armário, que realmente fora solicitado um agrimensor, mas há muito tempo... Com a sensação de estar preso dentro daquele labirinto burocrático, K. de fato não consegue sair da aldeia. Envolve-se num enlace amoroso e, perdido o seu porquê de estar na aldeia, contrariado – mas necessitado –, aceita o emprego de supervisor numa escola.

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O distanciamento de K. na aldeia é o distanciamento daqueles que estão à margem de uma sociedade que criou tantos mecanismos no sentido de aproximar, mas que acabou afastando os homens, onde as pessoas parecem viver de fato em um mundo real, mas sobretudo imaginário e sem sentido quando inseridos no labirintos do sistema. Perdido entre papéis, o homem perdeu o seu papel existencial. Ricardo Flaitt

CURIOSIDADES O título original do livro “Das Schloss” tem dois sentidos: castelo e, também, fechadura.


OU TUDO OU NADA 191


1997

OU TUDO OU NADA (THE FULL MONTY)

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Reino Unido, 1997 Direção: Peter Cattaneo Elenco: Robert Carlyle, Mark Addy, William Snape, Tom Wilkinson Palavras-chave: classe operária, desemprego, metalúrgico

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partir da década de 1970, na transição da indústria pesada para a automatizada, multiplicou-se o número de trabalhadores que não puderam mais ser absorvidos pelo sistema produtivo. O fechamento de indústrias das cidades da Inglaterra, no processo de desindustrialização, levou enorme contingente de operários ao desemprego. Ou Tudo ou Nada um retrato da crise que atingiu a classe operária inglesa. A história se passa em Sheffield, que já foi conhecida como Cidade do Aço (City of Steel) por abrigar uma poderosa indústria metalúrgica. Com a crise e o predomínio do neoliberalismo, ela entrou em acentuado declínio, com fechamento de fábricas e seu cortejo de desemprego – e desespero familiar. Neste cenário, um grupo de desempregados decide montar um show de strip-tease para mulheres, sendo eles próprios os dançarinos, embora não fossem exatamente o que se pode chamar de “modelos de beleza” para atrair o público feminino. Mas, sem nada a perder, eles tentam. O filme mostra seis homens, ex-metalúrgicos, sem perspectivas e desesperados por dinheiro, que se conhecem em uma agência de empregos e, como alternativa, concluindo que o único bem que possuem é o próprio corpo, decidem realizar um show de strip-tease.


BOLEIROS ERA UMA VEZ O FUTEBOL 193


1998

BOLEIROS, ERA UMA VEZ O FUTEBOL

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Brasil, 1998 Direção: Ugo Giorgetti Elenco: Rogério Cardoso, Adriano Stuart, Flávio Migliaccio, Lima Duarte, Otávio Augusto, Cassio Gabus Mendes, Marisa Orth, Denise Fraga, João Acaiabe, André Abujamra, Elias Andreato Palavras-chave: companheirismo, esporte, futebol, juventude

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oleiros é um filme que fala de vidas ligadas ao futebol: o jogador, o técnico, o juiz, o empresário de atletas, as esposas, os torcedores, além dos saudosistas e dos amantes desta arte. Num típico boteco paulistano, decorado com fotos de jogadores, seis amigos, profissionais e ex-profissionais do futebol, costumam manter longos papos e recordar velhos tempos. Cada observação remete a um folclore. Papo de bar. Casos pitorescos, lances e vinhetas ilustram a conversa. Histórias de juízes vendidos, sagas de jornalistas esportivos, do negócio que são as escolinhas de futebol, de transações milionárias da década de 1990 e de torcedores fanáticos, entre outras, mostram com humor e nostalgia o universo particular do futebol. O filme marca uma época em que o futebol assistiu a um processo de espetacularização. Mesmo que no campo sociocultural este esporte sempre representou um espetáculo, na década de 1990 houve uma explosão de comércio de bons jogadores, fabricação de celebridades do futebol, associação destes a grandes marcas, salários estratosféricos, enfim, um esgotamento comercial e midiático dos times e dos jogadores. Este glamour não atingiu, entretanto, futebolistas de clubes menores, que representam mais de 90% dos profissionais, que ralam por baixos salários e vivem em grandes dificuldades. A maioria dos meninos que ingressam nas divisões de base não alcança o profissionalismo. E, para os que o alcançam, a carreira tende a ser curta, pelo menos para os jogadores. Curtas e intensas, daí a abstinência que abala muitos antigos esportistas. O que o filme não diz é que, como a maioria das profissões, os futebolistas também têm representação sindical para defender suas reivindicações. No Brasil, o primeiro sindicato dos jogadores de futebol foi criado em 30 de junho de 1939, no Rio de Janeiro. Atualmente, as mulheres também têm ascendido à realização da profissão de futebolista em categoria exclusiva ao seu gênero. A alegria de Boleiros, é que ele pode se deleitar na certeza de que nada disso ofusca o brilho do esporte. Em sua lógica própria o futebol tem demonstrado que é, do “verbo ser”, sonho e arte.


COMO ENLOUQUECER SEU CHEFE

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1998

COMO ENLOUQUECER SEU CHEFE (OFFICE SPACE)

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EUA, 1998 Direção: Mike Judge Elenco: Ron Livingston, Jennifer Aniston, David Herman, Ajay Naidu, Diedrich Bader, Gary Cole, Stephen Root, John C. McGinley Palavras-chave: ambiente corporativo, tecnologia da informação

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squeça a sutileza das entrelinhas e a sofisticada linguagem cinematográfica. Como Enlouquecer Seu Chefe é um pastelão, simples e direto. Com seu estilo caótico o filme toca em pontos nevrálgicos do mundo do trabalho e seus atores, satirizando os proletários de “colarinho-branco” no Vale do Silício, na Califórnia. Quase toda a história se passa dentro da empresa Initech, que atualiza programas de computadores. Os outros cenários do filme, o carro parado no trânsito, o pequeno apartamento e a lanchonete como local de almoço, são quase como subprodutos dos cubículos delimitados pelas divisórias cinzas do escritório. O jovem Peter Gibbons é um programador imerso no trabalho abstrato, estressado pela rotina e oprimido pelo chefe. Durante as longas horas de seu expediente ele compartilha com seus colegas e os oito chefes, frequentes memorandos, as regras sem sentido, as habituais horas extras no sábado etc. Aos poucos verificamos que não apenas Peter, mas Joanna, a garçonete do fast food onde almoçam, e muitos outros, demonstram o mesmo tipo de insatisfação e desmotivação com o emprego. O trabalho como ato de criatividade e emancipação passa ao largo desta história. O ambiente é de tédio, tensão, anulação e invisibilidade. Em seu “tempo livre” Peter se submete às esdrúxulas sessões de hipnoterapia. E é em uma destas sessões que ele vive uma profunda transformação. O hipnotizador o leva ao estado máximo de relaxamento, mas não pode trazê-lo de volta à consciência normal pois morre de infarto no mesmo instante em que conclui a hipnose.


O antes tenso programador de softwares assume, agora, um comportamento profundamente tranquilo e despreocupado. No primeiro dia de trabalho após a hipnoterapia a Initech recebe um novo Peter. Ele agora passa a não se submeter a nada daquilo que é contra sua vontade. O inusitado é que, ao se rebelar, ele passa a ser mais valorizado pelos especialistas em produtividade. É como se surgisse ali o “modelo” das novas práticas empresariais de flexibilização do trabalho. Na primeira parte do filme o que vemos é a ten-

são e o desconforto de um escritório. Após a transformação do protagonista o clima é de libertação, emancipação e voluntarismo. A questão central é: como, e com quais objetivos, as pessoas se submetem aos tantos trabalhos estressantes e com regras inúteis que se proliferam na sociedade capitalista? Em posse deste questionamento somos levados a concluir que os rituais e as idiossincrasias do trabalho em escritórios parecem mesmo, muitas vezes, ridículos.

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AS CINZAS DE ÂNGELA

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1999

AS CINZAS DE ÂNGELA (ANGELA’S ASHES)

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EUA/Irlanda, 1999 Direção: Alan Parker Elenco: Emily Watson, Robert Carlyle, Joe Breen Palavras-chave: desemprego, emprego, juventude, pobreza

anseio de muitos na Europa, nas primeiras décadas do século passado, era partir para a América (EUA) em busca de emprego e, consequentemente, melhores condições de vida. O filme As Cinzas de Ângela, do diretor Alan Parker, se desenrola por um caminho inverso, pois retrata a saga de uma família pobre, que vive na América, e que depois da morte de uma filha resolve voltar à cidade de Cork, na Irlanda. Se as dificuldades na América eram expansivas, na Irlanda a miséria amplia-se, tornando-se ainda mais aguda e corrosiva, uma vez que a família retorna sem nada e tem de enfrentar um país onde emprego é coisa rara e, quando existe, se dá em condições degradantes. Os problemas são acentuados pelo temperamento do pai, Malachy, interpretado por Robert Carlyle, que não se fixa no emprego e sofre com os transtornos e distúrbios do alcoolismo. Sob esse contexto de miséria, quatro filhos, falta de emprego, alcoolismo e degeneração social, Alan Parker conduz seu fio narrativo por meio da vida e visão de um dos filhos, Frank, que analisa todas as situações vividas pela família e luta pela sobrevivência em meio ao caos familiar e social. A degradação da família, as humilhações, as mortes dos irmãos por desnutrição ou frio, até chegar ao ponto de mendicância da mãe, passam pelos olhos de Frank, que nunca desiste, luta pelos irmãos e apoia a família. Um dos momentos mais marcantes de As Cinzas de Ângela é quando o garoto Frank vai à escola sem a menor estrutura, com os sapatos furados, e depara-se com um professor linha-dura, mas completamen-

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te consciente e sensível em relação à situação daqueles meninos sob a realidade áspera da Irlanda. Frank então escreve um texto/redação com o tema “Jesus e o clima”, no qual retrata, de forma ingênua mas profunda (pois não tinha experiência de vida e não compreendia as entranhas sociais, mas vivenciava a desgraça), a sua situação de vida. O professor durão se espanta com o texto do menino, tanto que o convoca à sala da diretoria para saber se este texto é mesmo de sua autoria. Em cena memorável, todos os alunos estão reunidos na sala, e o professor, ainda com as palavras do texto de Frank na mente, diz: “Você pode morar num barraco, pode passar dificuldades, mas a sua mente sempre deve ser um palácio”. Se você alimenta sua mente com coisas boas, conhecimento, assim o mundo e a vida se projetam na e sobre a realidade. O professor sofre e indigna-se com a situação do país e os reflexos desse caos nos lares dos meninos, que futuramente formarão uma nova geração de irlandeses. Em outra marcante e profunda cena, o menino Frank, no momento de sua comunhão, com muita fome, mastiga a hóstia como se fosse um bife. A vida dos McCourt segue entre idas e vindas

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que, em realidade, não saem do mesmo lugar de miséria e dificuldades. Malachy, pai de Frank, sem conseguir arrumar emprego, parte para a Inglaterra. O filme apresenta momentos sublimes, de muita beleza e plasticidade, quando a miséria é deixada de lado para mostrar as brincadeiras de Frank com os irmãos pequenos em meio às dificuldades, o olhar infantil sobre o mundo e, numa segunda etapa, as descobertas, já adolescente, do amor, sexo, o primeiro emprego. Parker não se limita em retratar a vida de Frank e seus familiares. Do micro (vida de Frank) ao macro (sociedade irlandesa em Cork), o diretor mostra o sistema de vida na década de 30, na Irlanda, um país sem emprego, com milhões vivendo em condições desumanas e os deslocamentos humanos em busca de trabalho, bem como suas condições. Frank é a síntese de milhares de pessoas no mundo, que têm de conviver com as dificuldades do sistema, a opressão, a falta de perspectiva, o preconceito, a crueldade social. Mas, ao mesmo tempo, representa uma lição de superação e encantamento diante da vida, de superação, de escolhas, de determinação e força para transformar a realidade. Ricardo Flaitt


HISTÓRIA REAL

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HISTÓRIA REAL (THE STRAIGHT STORY)

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EUA, 1999 Direção: David Lynch Elenco: Richard Farnsworth, Sissy Spacek, Jane Galloway Heitz, Everett McGill Palavras-chave: campo, família, terceira idade

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sta é a história de uma viagem vivida lentamente. Em uma pacata cidade de Iowa, no Centro-Oeste americano, Alvin Straight, de 73 anos, vive com sua filha Rosie. Alvin é constante. Feito do barro e do sangue dos caubóis e dos soldados que habitam as entranhas da história daquele país. Em sua rusticidade, ele guarda a sabedoria dos velhos bem vividos. Homem reservado e de poucas palavras. Mas com olhos que entregam as dores e os prazeres de sua alma. Alvin vive a seu modo. Quando avisado que seu irmão Lyle – que mora em Wisconsin, a 510 quilômetros dali, e com quem não fala há dez anos – sofreu um derrame, ele sabe que, a seu modo, precisa estar ao lado do irmão. Uma viagem destas, em nosso tempo, poderia ser simples. Mas, sendo ele como é, parte, sem que ninguém possa impedi-lo, a bordo de um cortador de gramas motorizado. Trata-se do ano de 1994, pós-explosão e consolidação de rodovias e indústria automobilística. Trata-se de estar, por opção, na contramão da era da velocidade. O filme, desta forma, baseado em uma história real, faz uma reflexão sobre o tempo, o espaço e a vida. Não uma reflexão sobre uma ideia existencial e filosófica da vida. Mas sobre a vida material, que se concretiza no tempo sensível e no espaço sensível. O verdadeiro Alvin (1920-1996), segundo sua biografia, tinha de fato essa natureza. Sua viagem durou cerca de seis semanas.


HURRICANE O FURACÃO 203


1999

HURRICANE – O FURACÃO (THE HURRICANE)

R

EUA, 1999 Direção: Norman Jewison Elenco: Denzel Washington, Vicellous Reon Shannon, Deborah Kara Unger, Liev Schreiber, John Hannah Palavras-chave: direitos civis, racismo

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ubin Hurricane foi um famoso pugilista negro entre 1961 e 1966, acusado e preso pelas autoridades por um crime que nunca cometeu. Em 1967 Hurricane foi condenado, injustamente, à prisão perpétua, em uma época em que o apartheid era uma triste realidade e o racismo corria sem restrições. O júri que o condenou era composto por brancos, durante período de rebeliões raciais em Newark. Por ser negro Carter também deixou de receber o título que tinha conquistado: o cinturão de campeão peso-médio do boxe. Ele teve que aguardar décadas, gerações, mudanças de governos, mudanças na mentalidade social, para que todas estas injustiças fossem reparadas. Os movimentos sociais e as campanhas pelos direitos civis levantaram bandeiras pela revisão do processo e pela libertação de Hurricane. O crime só teve julgamento honesto 38 anos depois, e, ainda sim, somente um, entre os quatro verdadeiros culpados pelo crime, foi preso. O filme retrata o racismo cruel e autoritário, muito forte em algumas regiões dos Estados Unidos até o fim da década de 1980. A trajetória de Hurricane é exemplo para todos aqueles que, ainda hoje, sofrem com a contaminação do sistema judiciário por preconceitos e dogmas sociais.


MAUÁ O IMPERADOR E O REI 205


1999 MAUÁ – O IMPERADOR E O REI

F

Brasil, 1999 Direção: Sérgio Rezende Elenco: Paulo Betti, Malu Mader, Othon Bastos, Michael Byrne, Antônio Pitanga Palavras-chave: escravidão, empreendedorismo, história do Brasil

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ilme longo, entre o teatral e o professoral, e que trás muitas informações sobre a passagem do Império para a República no Brasil, Mauá – O Imperador e o Rei, conta a história de Irineu Evangelista de Sousa. Empreendedor e visionário, o Barão de Mauá nasceu Irineu Evangelista, em Arroio Grande, Rio Grande do Sul, em 28 de dezembro de 1813. Ao longo da vida foi empresário, industrial, banqueiro, político e recebeu os títulos nobiliárquicos de barão (1854) e de visconde com grandeza (1874) de Mauá. Embora gaúcho de nascença, é no Rio de Janeiro que sua história começa. O ano de sua chegada coincide com o da independência do Brasil (1822), no contexto da vinda da família real portuguesa para o Brasil. Entre os casarões erguidos sob terra batida do cenário fluminense Irineu contemplou a movimentação na capital do Brasil já pressentindo que profundas mudanças abalariam aquela realidade. Ao lado de outros objetos, negros eram expostos à venda e comprados por senhores e barões. A escravidão chocou o garoto, impressionado com tamanha violência. Escravidão, absolutismo, colônia, velhos barões e seus privilégios anacrônicos caracterizavam uma ordem dominante, que já não prosperava e que não fazia mais sentido para o mundo, a despeito da resistência de quem dela se beneficiava. Aquele era um contexto fértil para o crescimento do jovem Irineu. Com perfil moderno, afinado com a ideologia liberalista da Inglaterra, logo nos primeiros anos de trabalho revelou-se bom negociador e atraiu a atenção de grandes empreendedores. Irineu não viu dificuldades em ascender profissionalmente.


De desafio em desafio a vida social e profissional de Irineu andou de vento em popa. Sua astúcia era espantosa: em vez do reluzente ouro da nobreza, sonhava com a potencialidade do ferro e do carvão em criar indústrias e em alimentar uma rede de transportes que fizesse circular seus produtos. O sucesso do empresário sinalizava novos tempos e ameaçava o Império, encarnado, no filme, na oposição implacável do Visconde de Feitosa. Neste embate entre o velho e o novo, entre o atraso e o desenvolvimento, Irineu Evangelista, ou o Barão de Mauá, conseguiu feitos que marcaram nossa história. Entre outras coisas ele fundou a Companhia de Iluminação a Gás do Rio de Janeiro, organizou o segundo Banco do Brasil, inaugurou a primeira linha de bondes, investiu, em sociedade com capitalistas ingleses e cafeicultores paulistas, nas estradas de ferro de Pernambuco (Recife & São Francisco Railway Co.) e da Bahia (Bahia & São Francisco Co.), e criou a São Paulo Railway (depois Estrada de Ferro Santos-Jundiaí), a quinta ferrovia do País, em 16 de fevereiro de 1867, arcando com todos os custos. Entusiasta do liberalismo econômico e conhecido por defender o fim da escravidão, preconizou a valorização da mão-de-obra, do investimento em tecnologia, das transnacionais brasileiras, da internacionalização do comércio e das relações com outros países da América do Sul. O Barão de Mauá foi um progressista em uma época em que o capitalismo representava um avanço em relação à arcaica economia escravista. Idealista, sempre que não conseguia recursos, por meio de subscrições ou do apoio financeiro do governo, lançava mão das reservas de sua base de operações: o Banco Mauá & Cia. Alvo de enorme resistência, sofreu com várias intrigas dos conservadores. Suas instalações foram alvo de sabotagens criminosas e os seus negócios foram abalados pela legislação, que reduziu as taxas de importação sobre máquinas, ferramentas e ferragens

(tarifa Silva Ferraz, 1860). Com a falência do Banco Mauá, em 1875, pediu moratória por três anos, sendo obrigado a vender a maioria de suas empresas a capitalistas estrangeiros e ainda os seus bens pessoais para liquidar as dívidas. Como uma reflexão acerca de seu destino Irineu, falido, proclama que lutou para que tudo se movesse: os homens, as ideias, a economia. Reconhece sua perda, mas pondera que, ainda assim, a despeito da vontade do rei, o Brasil se moveu, seguindo a ordem natural das coisas. A história nos mostra que o Barão de Mauá conseguiu retomar as rédeas de sua vida e de seus negócios. Contudo, falece em 21 de outubro de 1889, não assistindo, por uma questão de semanas, aquilo que consagraria seus ideais: o fim do Império e a Proclamação da República, em 15 de novembro daquele ano.

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O CÉU DE OUTUBRO 208


1999

O CÉU DE OUTUBRO (OCTOBER SKY)

N

EUA, 1999 Direção: Joe Johnston Elenco: Jake Gyllenhaal, Chris Cooper, Laura Dern, Chris Owen, William Lee Scott, Chad Lindberg e Natalie Canerday Palavras-chave: educação, guerra fria, mineração, sindicalismo

a pequena cidade Coalwood, em West Virginia, o menino Hommer estava entre o risco de ter de ser minerador e o sonho com viagens espaciais. A dicotomia entre o espaço e o interior da terra perpassa todo o filme O Céu de Outubro, tanto pelos seus contrastes quanto pelas similaridades de seus rituais: esforço, dedicação, conhecimento, persistência, coragem e uma grande dose de paixão. A dura realidade das cidades economicamente dominadas por minas de carvão é tema recorrente no cinema. Não à toa tal atividade extrativista, executada largamente, sobretudo para obtenção de carvão como combustível, carrega em si grande potencial dramático. Potencial reforçado por contextos históricos de condições sociais extremadas, nos quais a mineração foi forte. Em filmes como Terra Fria, Kes, Billiy Elliot e O Germinal, a rudeza da mina era, antes de tudo, uma condenação. Consumação física do homem. Mineiros traziam nas mãos, no rosto, nas roupas e nos pulmões a maquiagem cor de chumbo que os definiam. Homens que se tornavam abstratos por, pouco a pouco, se confundirem uns com os outros por não se diferenciarem mais de suas rochas. Mas O Céu de Outubro, curiosamente, parece trazer algum alívio à pesada aura deste ofício. O elevador que desce para o fundo da Terra ainda é assustador. Os acidentes são devastadores e implacáveis. John Hickam, uma espécie de gerente da mina, entretanto, gosta do que faz, gaba-se de conhecer bem seu objeto de trabalho e quer iniciar seus filhos nesta carreira. Parece justo, uma vez que todo trabalho tem suas manhas e carrega algum sentido. Mas não anima os jovens da cidade, que sonham com a remota

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possibilidade de traçar um futuro longe da mina. Possibilidade concedida apenas aos poucos estudantes que recebem bolsa para a universidade por se destacarem no time de futebol. E futebol não é a praia de Homer Hickam Jr. Nem futebol nem mineração. Ele, que literalmente vivia com a cabeça nas nuvens, é justamente o filho que John tentará incentivar a ser mineiro. Mas a notícia de que o satélite soviético Sputnik cruzará os céus de Coalwood muda o rumo desta história. No bojo de sua angústia e falta de perspectivas, Homer contempla o satélite e se põe a sonhar com o

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espaço. É a guerra fria em sua dimensão subjetiva, envolvendo medos, orgulhos e motivações. Homer, que tinha seu destino traçado por aquela realidade, vê despontar no horizonte o advento de um novo tempo. Com o afinco que herdou de seu pai, a ajuda de amigos e o incentivo da professora, dedica-se à criação de foguetes. O ambiente do filme também é marcado pela atividade sindical, por greves e pelos riscos e acidentes na atividade de mineração. Curiosamente, o título October Sky é um anagrama de Rocket Boys, título original do livro autobiográfico de Homer Hickam Jr., em que o filme se baseou.


BILLY ELLIOT 211


2000

BILLY ELLIOT (BILLY ELLIOT)

B

Inglaterra, 2000 Direção: Stephen Daldry Elenco: Jamie Bell, Julie Walters, Jamie Draven, Gary Lewis, Jean Heywood, Stuart Wells, Nicola Blackwell Palavras-chave: balé, greve, mineração, sindicalismo, superação

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illie Elliot se passa na era Thatcher, em meio ao fechamento de muitas minas de carvão da Inglaterra, às greves dos mineiros de carvão e ao cotidiano da classe operária inglesa. O filme conta a história de um garoto de onze anos com talento para a dança. Seu pai, Willian Elliot, e seu irmão, Tony Elliot, são mineiros de carvão do Norte da Inglaterra, grevistas e piqueteiros. O garoto, obrigado pelo pai a treinar boxe, fica fascinado com os ensaios de balé, realizados na mesma academia. O conflito se estabelece quando ele começa a participar das aulas de dança de Mrs. Wilkinson. Entre os mineradores, sobretudo aqueles que estavam no fervor dos combates das greves, não era aceitável um garoto tornar-se bailarino. O estigma de feminilidade do balé torna-o alvo de muitos preconceitos. Elementos como a busca pela realização pessoal, a aceitação da diferença e a superação são colocados, com muita sensibilidade, neste filme. As situações de crise, tanto no trabalho quanto no nível das relações pessoais e familiares, apontam caminhos interessantes, marcados por um processo de amadurecimento. Billy Eliot toca em questões muito caras aos trabalhadores, que dizem respeito ao sutil contraste entre moral e falso moralismo.


ERIN BROCKOVICH UMA MULHER DE TALENTO 213


2000 ERIN BROCKOVICH – UMA MULHER DE TALENTO (ERIN BROCKOVICH)

E

EUA, 2000 Direção: Steven Soderbergh Elenco: Julia Roberts, Albert Finney, Aaron Eckhart Palavras-chave: advogado, direito, justiça, leis, meio ambiente, mulher, poluição

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rin Brockovich aborda o trabalho dos operários, os prejuízos causados pelas empresas e a situação da mulher no mercado de trabalho. Julia Roberts vive Erin Brockovich, uma mulher divorciada, pobre e com três filhos. Ao conseguir trabalho em um escritório de advocacia, recebe um voto de confiança. Mesmo sem o diploma de advogada, assume um caso que já estava dado como perdido. Ela se envolve tanto com a causa que descobre acidentes ocorridos por falhas de uma grande empresa, que não constavam no processo. Este acidente envolve casos de água contaminada, que causava graves doenças nos moradores das redondezas. A história é baseada em fatos reais. O acordo a que os advogados chegaram foi a maior indenização já paga num litígio direto na história dos Estados Unidos, cerca de US$ 333 milhões. O filme mostra um cotidiano duro de trabalho. Ele enfatiza o lado sacrificado de Erin ter de se manter longe de casa e dos filhos por causa do trabalho. O curioso é que quem fica para cuidar das crianças é o namorado George, um jovem habilidoso e carinhoso. Há aí uma clara inversão de papéis, que reforça o interesse pelo filme. Por fim, trazendo a análise para a lógica dos movimentos sociais, podemos dizer que Erin extrapola as exigências do trabalho tornando-se praticamente uma militante da causa. Sua ação civil, com base em ideais e valores, faz as vezes da ação sindical.


MAR EM FÚRIA 215


2000

MAR EM FÚRIA (THE PERFECT STORM)

O

EUA, 2000 Direção: Wolfgang Petersen Elenco: George Clooney, Mark Wahlberg, Diane Lanemais Palavras-chave: meio ambiente, empreitada, periculosidade, pesca

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utubro de 1991. Uma combinação rara de fatores climáticos gerou a maior tempestade registrada pelo homem. Espetacular demonstração da força da natureza. Metonímia da seleção natural grosseiramente aplicada à sociologia. Andrea Gail é o nome de uma embarcação de pesca comercial, construída na Flórida, EUA, em 1978, que se perdeu no mar durante a tempestade perfeita que ocorreu naquele ano na Costa Nordeste da América do Norte. Todos os seus seis tripulantes desapareceram após a tempestade, e a embarcação nunca foi encontrada. No filme, baseado no livro The Perfect Storm, de Sebastian Jungle, Billy Tyne, capitão do navio pesqueiro, era um pescador de sucesso. Fica claro que os novos pescadores o admiram e que sua produção alavancou, por diversas vezes, as contas da empresa para a qual trabalhava. Mas naquele ano a vida pessoal e financeira do capitão “atravessava uma maré baixa”. Nas águas em que costumava navegar já não havia mais peixes graúdos, comercialmente competitivos. Oprimido pela necessidade financeira ele toma uma decisão arriscada: navegar até uma área do alto mar, entre a Costa Nordeste dos Estados Unidos e do Canadá, conhecida tanto pela abundância de peixes quanto pela instabilidade do mar. A situação de perigo era agravada pela chegada do inverno, que trazia um movimento ainda maior de densas massas de ar. As análises meteorológicas feitas no momento daquela decisão já ilustravam o tamanho do risco a que se expunham o capitão Billy Tyne e sua tripulação. Mas a falta de perspectiva de ganhar dinheiro em


troca daquilo que se sabia fazer era um medo ainda maior. As leis do capital se faziam ainda maiores, e mais temíveis que os implacáveis furacões que se formavam no alto mar. Nesta aventura os navegantes travam uma luta inglória com a colossal força das águas. Mar em Fúria coloca em cena heróis rústicos, bravos e batalhadores. A história pode ser vista como uma metáfora da teoria de Darwin. Na seleção natural somente aqueles que se adaptam às condições naturais sobrevivem. No sistema capitalista só sobrevivem os mais competitivos. Esta comparação não é fortuita. Em sua essência, este

sistema absorveu a teoria da lei do mais forte a fim de naturalizar suas mazelas. Mas o capitalismo não é natural como as tempestades ciclônicas. É construído pelo homem. E pelo homem pode ser modificado. Pode ser superado. A questão é: o que é ser forte? O filme revela como muitas vezes se arriscam aqueles que trabalham por conta própria, que ganham por empreitada. Catadores, pescadores, extrativistas, garimpeiros, pedreiros e domésticas, entre tantos outros. Milhões de abnegados que, todos os dias, cada um em sua proporção, também se expõem aos riscos, oprimidos pela necessidade financeira.

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PÃO E ROSAS 218


2000

PÃO E ROSAS (READ AND ROSES)

C

Inglaterra, 2000 Direção: Ken Loach Elenco: Pilar Padilla, Adrien Brody, Elpidia Carrillo Palavras-chave: exploração, faxineira, imigração, mulher, sindicalismo

om uma protagonista feminina e sua difícil trajetória no mundo do trabalho capitalista, a questão da mulher salta aos olhos para quem assiste ao filme. O contexto é o processo clandestino de migração para os EUA. A referência a ele aparece já na abertura do filme, com o precário transporte que cruza a fronteira mexicana. Ela choca e trás à mente as mais vis misérias humanas. Por isto pode-se dizer que o filme trata essencialmente destes dois temas: a migração clandestina e a questão da mulher. Tema doloroso, a migração clandestina em geral se dá em busca de um trabalho decente, de um salário para bancar a família. É uma busca desesperada, na qual o migrante se submete a situações desumanas, esbarra na dureza das leis feitas para expulsar qualquer um que queira participar individualmente da economia de países mais ricos. O filme conta a jornada de Maya do México para Los Angeles (EUA), para onde vai para morar com sua irmã, Rosa, também clandestina. Ambas passam a trabalhar na mesma empresa, como faxineiras do turno da noite em um edifício de escritórios, ao lado de outros imigrantes ilegais, por salários humilhantes. Devido à irregularidade de seus empregos, eles não têm assistência médica, nenhuma proteção trabalhista e, ainda, têm de suportar um patrão abusivo. Neste universo surge Sam, um ativista americano que lidera uma campanha guerrilheira contra as grandes empresas e procura fazer com que os trabalhadores se unam. Contra essa atividade os patrões usam chantagens, assédio, tentativas de suborno, ameaças e pressões. Maya logo se aproxima de Sam e se engaja na militância sindical, enquanto Rosa faz o jogo

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dos patrões, por medo de ser descoberta ou de perder o trabalho. Um forte diálogo entre as duas mostra o confronto das diferentes visões e pontua o debate proposto pelo filme. Enquanto a militante engajada acusa a irmã de se corromper e se “vender”, esta se defende dizendo que, desta forma, conseguiu o dinheiro que sempre enviou à família, inclusive para Maya. O nome do filme faz referência a uma greve do setor têxtil em Lawrence, Massachusetts, que uniu dezenas de comunidades imigrantes e que foi, em grande parte,

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conduzida por mulheres, em janeiro-março de 1912, e ficando conhecida como “Greve das Rosas e do Pão”. Revela tanto a subjugação da mulher no mundo do trabalho quanto a complexa questão das migrações clandestinas e a precarização das relações de trabalho no modo de produção vigente, que é voltado, prioritariamente, à maximização gananciosa do lucro. Com sua aguda crítica a esta realidade, o filme ressalta as consequências drásticas do fato do homem não ser o objetivo final da máquina capitalista.


24 HORAS 221


2001

24 HORAS (24: LIVE ANOTHER DAY)

N

EUA, 2001/2010 Direção: Joel Surnow, Robert Cochran Elenco: Kiefer Sutherland, Carlos Bernard, Dennis Haysbert, Elisha Cuthbert, Mary Lynn Rajskub Palavras-chave: guerra ao terror, política internacional, serviço secreto, terrorismo, tortura

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as oito temporadas de 24: Live Another Day o agente da Unidade Contra Terrorista (CTU) Jack Allan Bauer enfrenta ameaças contra a segurança nacional dos Estados Unidos. Ameaças que, essencialmente, configuram-se em armas biológicas (disseminação de vírus letais em locais de alta propagação) e bombas nucleares (também com alto potencial de destruição em série). Os “vilões”, dispostos a promover uma matança em série, não são um grupo, uma pessoa ou um país. A estrutura da vilania se apresenta como um emaranhado de países, culturas e interesses diversos. A cada temporada um novo emaranhado. E comumente as etapas com que este se revela segue a ordem: primeiro a face estereotipada de um terrorismo islâmico, depois o QG de velhos inimigos, como Rússia e China, até chegar a grupos originários da Europa Ocidental ou, até mesmo, de dentro do governo federal. Ao longo da série vê-se criticas e “alfinetadas” com relação à inação de instituições como o FBI, a CIA e a ONU. Tais instituições, quando não se atrapalham com seu aparato burocrático, aparecem corrompidas por agentes infiltrados. Em 24 Horas é assim: o inimigo está em toda parte, pode ser qualquer um. Para desmontar planos bem intrincados contra a nação, a população e a soberania norte-americanas, Bauer usa de todo e qualquer recurso que esteja ao seu alcance, passando ao largo de leis, convenções e tratados nacionais e internacionais. E tudo é feito em 24 horas. Com isto a série não só exibe todo um complexo sistema de monitoramento e espionagem – praticados por analistas de dados – como também o uso extensivo


da tortura para obter informações que ajudem a combater supostos acontecimentos terríveis. Jack tortura e mata com a naturalidade de quem abre uma porta. E tanto a violação da privacidade quanto a violência física são destinadas não só aos inimigos externos. Ela também ocorre entre os próprios agentes, em nome de um “bem maior”. Todos os personagens correm riscos todo o tempo. Frases repetidas exaustivamente por toda a série dizem muito sobre o senso comum estadunidense quando o assunto é a ideia (de tão forte apelo e, ao mesmo tempo, tão abstrata) da “segurança nacional”. Três destas frases resumem os 192 episódios, ou as 192 horas mais difíceis na vida de Jack Bauer: “Esta era nossa única pista”, “Milhares de vidas estão em jogo” e, sobretudo, “Preciso fazer o que tem que ser feito”. O que tem que ser feito é, neste caso, o serviço sujo para solucionar o problema de forma rápida e eficaz. Seu verdadeiro sentido pode ser melhor entendido como “Vale tudo”. O valor de uma vida em comparação ao destino de milhares de pessoas, e o direito de decidir quem vai viver, são interrogações que pairam sobre a consciência perturbada do agente. Suas ações são bem articuladas, ambíguas e imorais. O personagem, entretanto, é forte, pois incorpora a metáfora do comportamento dos Estados Unidos diante de seus supostos inimigos internacionais, sobretudo ao longo do governo de George W. Bush (20 de janeiro de 2001 a 20 de janeiro de 2009 – em 24 Horas começou em novembro de 2001 e terminou em maio de 2010). O ataque às torres gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, ocorreu alguns meses depois do início da série. Isto pode ser surpreendente mas, embora a tragédia tenha endurecido as ações de ambos os lados, as guerras entre EUA e países do

Oriente Médio remontam há muitos anos antes. Remontam à crise do petróleo, à questão Palestina e às guerras no Golfo, no Iraque e no Afeganistão. Hoje se sabe que, nesses conflitos, sobretudo a partir do início da chamada “Guerra ao Terror”, articulada por Bush, a tortura e a violação aos direitos humanos foram praticadas em larga escala por instituições norte-americanas. Sabe-se ainda que, ao contrário do que a série demonstra, o uso da tortura não levou à obtenção de nenhuma informação útil à preservação da segurança nacional. E é aí que, mais do que fazer apologia, 24 Horas levanta polêmicas e mexe com valores americanos. Jack Bauer é o elemento ativo no centro de crises internacionais. A série, instigante, imprevisível, eletrizante, provocadora e inteligente é, mais do que qualquer coisa, um retrato das últimas décadas da história dos Estados Unidos da América, com seu ostensivo poderio e com seus erros que custam “milhares de vidas”.

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O HOMEM QUE COPIAVA 224


2002

O HOMEM QUE COPIAVA

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Brasil, 2002 Direção: Jorge Furtado Elenco: Lázaro Ramos, Leandra Leal, Luana Piovani, Pedro Cardoso Palavras-chave: emprego, juventude, poder aquisitivo

m O Homem que Copiava, André é operador de fotocopiadora em uma papelaria de Porto Alegre. Enquanto copia, ele lê fragmentos do que está copiando e coleciona palavras, frases e trechos dos mais diversos tipos e completamente desconexos. Logo no início do filme, André explica, com certo sarcasmo, todos os mecanismos de seu trabalho, ou seja, como funciona a máquina de xerox. A limitação de seu salário de R$ 290,00 (o salário mínimo, em 2002, era de R$ 200,00) fica demonstrada logo na primeira cena do filme, quando, no caixa de um supermercado, ele resolve o que vai e o que não vai levar. Angustiado com suas limitações ele começa a xerocar notas de cinquenta reais. Trata-se de uma ironia sobre tirar algum benefício pessoal mesmo do mais alienante dos trabalhos. Por trás da história de André e Silvia apresentam-se muitos desafios que se colocam para a juventude: o emprego alienante, a carga de responsabilidades com a família, famílias desagregadas, separações, aliciamento, o convite ao tráfico de drogas e a possibilidade de perder os horizontes. O filme mostra de maneira despretensiosa que o mundo do trabalho, na feroz sociedade do capital, costuma ser cruel com os jovens. Eles são obrigados a renunciar a seus anseios nesta fase de sonhos, aspirações e de ebulição hormonal, e se enquadrarem na “livre competição” que, com sorte, os enquadrará em algum tipo de trabalho.

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Mas, mesmo em situações difíceis, a juventude tende a preservar uma dimensão lúdica e imaginativa da vida, o que muitas vezes leva a comportamentos inesperados e soluções criativas. A alegórica “reprodução de capital” de O Homem que Copiava é sua válvula de escape e passaporte para a vida. Mas isto não passa de fantasia. A dura realidade, as linhas tortas que escrevem a história e o inusitado final demonstram que a felicidade, quando “roubada”, não é a que vale, mas que, por outro lado, a realização neste mundo não é impossível. Ela é um bem a ser conquistado.

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SEGUNDA-FEIRA AO SOL 227


2002

SEGUNDA-FEIRA AO SOL (LOS LUNES AO SOL)

S

Espanha, 2002 Direção: Fernando Leon de Aranoa Elenco: Javier Bardem, Serge Riaboukine, Luis Tosar Palavras-chave: desemprego, portuários

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egunda-Feira ao Sol trata do desemprego de longa duração, de ofícios que se tornam obsoletos, postos que tornam-se extintos etc. Simbolicamente, trata-se de homens e mulheres que não conseguem encontrar um lugar ao sol. O filme está contextualizado no período subsequente à década de 1980, quando uma nova divisão internacional do trabalho causou um impacto significativo em alguns setores industriais em países de capitalismo avançado, como Espanha e Reino Unido. O agudo processo de desindustrialização e de reconversão produtiva, que atingiu o mundo do trabalho, contribuiu para o aumento significativo do desemprego em massa e do desemprego de longa duração. Isto sem falar no processo de precarização do trabalho que gerou, que se traduziu em uma grave desvalorização da chamada mão de obra. Grande contingente de antigos operários, vítimas da globalização do capital e das mutações do capitalismo global, viu-se obrigado a buscar inserções precárias no mercado de trabalho do crescente setor de serviços. Aranoa representa, em suas personagens, subprodutos desta etapa excludente do capitalismo. Ambientado em uma cidade portuária ao Norte da Espanha (na região da Galícia), seu tema é a vida dos desempregados e subempregados de um antigo estaleiro que, comprado por investidores coreanos, foi transformado em um hotel de luxo. Trabalhadores que, à pergunta “Que dia é hoje?”, têm sempre a mesma e única resposta: Segunda-Feira ao Sol.


CAMELOS TAMBÉM CHORAM 229


2003

CAMELOS TAMBÉM CHORAM (GESCHICHTE VOM WEINENDEN KAMEL)

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Mongólia/Alemanha, 2003 Direção: Byambasuren Davaa e Luigi Falorni Elenco: Amgaabazar Gonson, Ariunjargal Adiya, Botok Baby, Chimed Ohin, Chuluunzezeg Gur Palavras-chave: agricultura, pecuária

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agricultura e pecuária familiar, a produção de matéria-prima anterior ao processamento industrial são as formas mais elementares de trabalho. Atividades agrícolas e pecuárias, aliás, são determinantes na diferenciação entre o homem e a natureza. Elas sintetizam a capacidade humana de contemplar, apreender e transformar por meio do uso da razão. Na reprodução do sistema econômico convivem modelos de produção primitivos e avançados. São conceitos essenciais, elementos que buscam aprofundar a concepção de trabalho. No filme Camelos Também Choram, no meio do vasto Deserto de Gobi, Sul da Mongólia, quatro gerações de criadores de ovelhas vivem numa pequena aldeia. É época da cria de camelos, animal bastante estimado na região, principal meio de transporte e provedor de lã. Uma das fêmeas tem dificuldades no parto e rejeita o filhote, que passa a ser cuidado pelas pessoas. Paisagens exóticas, lindamente desenhadas, enfeitam os cuidadosos rituais da família. É interessante ver como tudo sobrevive naquela cultura protegida pela aridez do clima. Os hábitos, as histórias, a sabedoria dos mais velhos, o respeito à infância, à mulher, à vida. Apesar de seu estilo ficcional, o filme é um trabalho documental, patrocinado pela National Geographic. A família é verdadeira, vive naquele ambiente e daquela maneira.


ESCOLA DE ROCK 231


2003

ESCOLA DE ROCK (SCHOOL OF ROCK)

N

EUA, 2003 Direção: Richard Linklater Elenco: Jack Black, Joan Cusack, Mike White, Sarah Silverman, Miranda Cosgrove Palavras-chave: cultura, educação, juventude, rebeldia

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o relativo avanço da humanidade no que diz respeito à cultura e à educação, é louvável que a rebeldia contestadora e transformadora de outros tempos seja resgatada, compreendida, cultuada e assimilada por um sistema social não tão subversivo nem tão submisso. Seja por causa da Aids, ou de duas décadas perdidas, seja por causa da crise do petróleo, da crise econômica ou da crise ambiental – qualquer que seja o fenômeno sociológico que pairou no inconsciente coletivo dos adultos das décadas de 1990 e 2000 –, o fato é que ele mexeu com os valores de uma geração. Aqueles que vieram ao mundo nos anos 60 e 70 logo perceberam que teriam que andar na linha e seguir algumas regras para alcançar sua escalada social. Foram convencidos, antes de tudo, que deveriam angariar uma escalada social. Os lemas “paz e amor” dos hippies e “faça você mesmo” dos punks, jovens de então, tornaram-se peças ilustrativas para o design ou para a publicidade, numa lógica perversa onde a própria contestação é incorporada e capitalizada pelo “sistema”. Ou pelo “cara”, como ensina Jack Black no papel do roqueiro Dewey Finn. Segundo ele o “cara”, representante-mor do “sistema”, é o que faz com que você ande na linha. É o agente opressor contra o qual, na visão de Dewey, a juventude deve se rebelar (juventude definida aqui por um estado de espírito e não por critérios etários). As máximas dos hippies e dos punks tornaram-se, enfim, folclores, e suas imagens apenas fotografias na parede.


Considerando que os filhos da geração yuppie chegaram ao mundo na década de 1990 (as crianças do filme, produzido em 2003, têm dez anos de idade), pode-se dizer que eles nasceram em um ambiente mais sóbrio e mais “preocupado”. Temos então um cenário em que os estudantes são moldados desde cedo, física, intelectual e psicologicamente, pelo compromisso de vencer no mercado de trabalho, ascender e estabelecer-se socialmente. Estes são os pré-adolescentes do filme que, por uma sorte do destino, começam a ter aulas com Dewey Finn, um roqueiro convicto e apaixonado, que nunca quis nada com a escola. Difusa, informal e desorganizadamente Finn assume a missão de ensinar seus alunos a “chutar o balde”. Até mesmo seu pretexto é incorreto e contra as regras. Ele não está lá para salvar. Está para se salvar. Para ganhar dinheiro exercendo uma profissão que não é a dele e, posteriormente, para usar seus alunos para retornar ao mundo da música. Seus atos simbolizam não uma falta de caráter, mas um desajustamento social. Uma atitude, acima de tudo, que contesta esta sociedade. Assim ele passa ao largo da gramática, da geografia e da matemática. Seu programa educacional baseia-se no passo a passo da rebeldia, na fórmula da subversão

e na didática do rock and roll. Vídeo clips, instrumentos musicais, CDs e imagens de shows fazem as vezes do material didático. O objetivo do curso é demonstrar, entre outras coisas, como Jimi Hendrix colocou sua alma na guitarra ou como Jimi Page desfiava suas paixões no palco. É buscar entender como aqueles gênios transformaram a realidade, recriaram os sentimentos e pularam de cabeça em suas artes, entregando seu sangue, plasma, corpo e alma. Com isto ele envolve sua turma em um projeto instigante, que os leva a buscar conhecimentos até então adormecidos. Um projeto musical que desperta o talento de cada um. O curioso é que, para aquelas crianças de pais temerosos, é preciso ensinar a essência do teen spirit (espírito adolescente), cantado por Kurt Cobain nos idos de 1992. Curioso também é o fato de que no fim até mesmo Dewey Finn se enquadra. Toda sua pureza roqueira é também incorporada ao sistema escolar. Pensando assim seria o próprio filme, como produto da indústria cultural, uma capitalização do rock? Não. No relativo avanço da humanidade, no que diz respeito à cultura e à educação, é louvável que essa rebeldia, tratada aqui, essencialmente contestadora e transformadora, seja resgatada, compreendida, cultuada e assimilada por um sistema social não tão subversivo nem tão submisso.

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MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA

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2003

MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA (GIRL WITH A PEARL EARRING)

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Inglaterra, 2003 Direção: Peter Webber Elenco: Colin Firth, Scarlett Johansson, Tom Wilkinson Palavras-chave: arte, família, modo de produção, trabalho doméstico

quadro do artista Johannes Vermeer chamado Moça com Brinco de Pérola, pintado entre os anos 1665/66, virou livro no século XXI e, depois, ganhou adaptação para o cinema. A partir do enigmático rosto da jovem retratada no quadro, a escritora Tracy Chevalier imaginou o contexto que levou o autor e a modelo a realizarem aquela obra. Sua história foi pontuada por pesquisas sobre a vida do pintor e sobre o contexto histórico em que viveu. Nas telas, o filme procurou traduzir tanto o mistério quanto a harmonia das cores da pintura. A trama gira em torno da relação que surge entre a jovem Griet e o artista Johannes Vermeer. Depois que sua família vai à falência Griet, com apenas dezessete anos, começa a trabalhar como empregada doméstica na casa de Vermeer. Ele vive numa casa cheia, com Catharina, sua esposa, a sogra e nove filhos, mas prefere isolar-se em seu estúdio na maior parte do tempo. O interesse da nova empregada pela pintura o deixa intrigado. O elo entre Griet e Vermeer cria um clima de tensão na casa. Apesar da excentricidade do artista, o filme mostra o ofício da pintura como um negócio. Pintar é o ganha-pão de Vermeer, e disso depende sua família. Na outra ponta deste trabalho está o patrocinador, Van Rujven, retratado no filme como um homem prepotente e autoritário. No século XVII a arte e a pintura eram profissões comuns. Os artesões eram autodidatas ou eram treinados por algum mestre, e tinham um sindicato para proteger seus interesses econômicos. Do ponto de vista do mundo do trabalho o que salta aos olhos em Moça com Brinco de Pérola, além do registro dos trabalhadores holandeses no século XVII, é a forma como eles, apoiados no status de seus respectivos cargos, se relacionam. A trama evidencia relações de poder. O quadro Moça com Brinco de Pérola está exposto no Museu dos Mauritshuis, na Holanda.

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VAIDADE 236


2003 VAIDADE

Brasil, 2003 Direção: Fabiano Maciel Elenco: Simara Palavras-chave: comerciante, trabalho autônomo

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documentário Vaidade fala de um tipo de trabalho comum, mas fora dos padrões. Um jeito alternativo e informal de ingressar no mercado de trabalho: revender cosméticos de porta em porta. Vaidade retrata, com charme, histórias de mulheres revendedoras de cosméticos na Amazônia. O filme não entra nos meandros escusos da economia das grandes empresas de cosméticos. Seu enfoque é o dinamismo deste comércio no Norte profundo do Brasil. Fiel ao tema da beleza, o documentário tem uma fotografia caprichada e uma leitura estética da forma e do gestual das mulheres que vivem da perfumaria. A escolha da região amazônica não se dá por sua distância inerente ou pelo seu isolamento encantado. Ao contrário, falar da venda de cosméticos na Amazônia é trazer à luz o crescimento exponencial desta economia, o sucesso nas vendas e a dedicação de seus comerciantes. A atividade é tão expressiva na região que pode passar de geração a geração. E esses produtos vão de grandes marcas, como a Avon, a Natura e o Boticário, até a fabricação caseira, beneficiada pela rica oferta local de produtos naturais. Em comum as revendedoras têm a vaidade e a necessidade de complementar o sustento das famílias. Para trabalhar, elas enfrentam dificuldades de locomoção, atravessam rios e estradas e desafiam os perigos da selva. As vendas só se realizam depois de muita caminhada. O caso da Amazônia é um exemplo da ferocidade com que o Brasil entra de cabeça quando o assunto é se embelezar. Em 2009, por exemplo, o País se tornou o maior mercado e o maior exército de revendedoras da Avon no mundo, desbancando a liderança dos Estados Unidos. Se por um lado a atividade confere sensação de autonomia e empreendedorismo, por outro esconde os ganhos baixos e a total ausência de assistência às trabalhadoras. E é neste contexto de negligência do Estado e do mercado formal que essas mulheres buscam incrementar a renda de forma criativa, fazendo bonito do jeito que dá. Com sua fluidez a perfumaria se infiltra nos cantos mais remotos do mundo, nos centros urbanos, passando, até, onde só se chega por água: nos confins da floresta amazônica.

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FAHRENHEIT 9/11 238


2004

FAHRENHEIT 9/11 (FAHRENHEIT 9/11)

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EUA, 2004 Direção: Michael Moore Palavras-chave: guerra, política internacional, terrorismo

pós o atentado de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas, em Nova Iorque (EUA), Michael Moore busca entender o motivo de o país ter se tornado alvo de terroristas e relaciona o fato ao comando das duas gerações da família Bush. Fahrenheit 9/11 faz referência ao livro “Fahrenheit 451 – 233°C”, que representa a temperatura em que arde o papel, escrito em 1953 por Ray Bradbury. Com isto ele simboliza a relação explosiva entre a família Bush, e pessoas próximas a ela, com membros de eminentes famílias da Arábia Saudita (incluindo a família de Bin Laden). Osama Bin Laden lutou pelos EUA, durante a guerra fria, para extirpar comunistas do Afeganistão. O ostensivo exército estadunidense foi, então, para ele, “escola” de guerra, de guerrilha e, principalmente, do terrorismo. Desta forma, Osama não passaria de um subproduto do terror promovido pelos EUA. Mas quais seriam as causas dos atentados de 11 de setembro, que levou à posterior invasão do Iraque. Quais são os reais vínculos entre as famílias do presidente George W. Bush e de Osama Bin Laden? São questões instigantes, para as quais provavelmente nunca teremos respostas claras. Mas que Michael Moore soube levantar com inteligência em um documentário revelador. Um dos nós da questão, talvez o principal, é a busca dos EUA por energia fóssil (petróleo). Abundante no Afeganistão e no Iraque, o petróleo, e não a paz mundial, teria movido o exército de Bush a invadir tais países respectivamente em 2001 e em 2003. Moore é incisivo em ressaltar que, ao contrário do que o governo americano alega, suas ações militares passam longe do interesse “humanitário” de disseminar

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a paz e a liberdade no mundo. O documentário defende que a guerra com o Afeganistão não teria como principal objetivo capturar os líderes da Al Qaeda, e sim favorecer a construção de um oleoduto, e que o Iraque não era, no momento da invasão, uma ameaça real para os Estados Unidos, senão uma fonte potencial de benefícios para as empresas norte-americanas. Com sua costumeira ironia Moore mostra um George W. Bush ridículo, cínico, descomprometido com questões sociais ou com qualquer causa humanitária. Para ilustrar este descaso, o filme mostra o momento em que o ex-presidente americano é informado de que o país está prestes a ser atacado. Bush não sobressalta. Ele permanece lendo um livro infantil a um grupo de crianças.

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Como contraponto o filme mostra o impasse e a realidade desoladora dos jovens “voluntários” que participaram na guerra do Iraque, persuadidos e recrutados por métodos curiosos, para não dizer “suspeitos”, usados pelas instituições militares dos EUA. Este é mais um filme com o qual Michael Moore monta o lado B da história dos EUA. Tecendo, com linha de aço, o que há por trás dos contos de fadas que assistimos pela TV.


PEÕES

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2004

PEÕES

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Brasil, 2004 Direção: Eduardo Coutinho Palavras-chave: fordismo, greves, metalúrgicos, sindicalismo

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eões conta a história pessoal de trabalhadores da indústria metalúrgica do ABC paulista que participaram do movimento grevista de 1978 a 1980, mas permaneceram em relativo anonimato. Eles falam da conciliação da atividade sindical com a vida pessoal, da dificuldade de recolocação em di­ver­sos setores da indústria metalúrgica, de sua participação no movimento e dos caminhos que suas vidas trilharam. Também exibem souvenirs das greves, recordam os sofrimentos e recompensas do trabalho nas fábricas, comentam o efeito da militância política no âmbito familiar e comentam sobre a trajetória do ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luís Inácio Lula da Silva, e dos rumos do País. Filmado entre 28 de setembro e 27 de outubro de 2002, o filme faz referências às greves de 1978 a 1980. E aprofunda a análise do descontentamento operário. Além do problema salarial, há outro fator a ser levado em conta: a opressão decorrente da forma objetiva como o trabalho era organizado nas grandes empresas. Era o fordismo, simbolizado pelas constantes críticas operárias à opressão da “esteira” e seu ritmo quase sempre desumano. Esteiras presentes na linha de montagem de empresas como a Volkswagen, a Ford e demais montadoras.


RAY

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RAY

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(RAY)

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EUA, 2004 Direção: Taylor Hackford Elenco: Jamie Foxx, Sharon Warren, Kerry Washington Palavras-chave: cultura, racismo, superação

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tema da discriminação racial já experimentou diversos tipos de camuflagens ao longo da história. Mas ele, uma hora ou outra, acaba reaparecendo. Deixa escapar o rabo, os chifres, o tridente. A vida do músico Ray Charles é bastante ilustrativa e inspiradora para esta discussão. Negro, pobre e cego, ele foi amplamente discriminado. O filme sobre sua vida mostra sua infância na Geórgia, Sul dos EUA, na década de 1930, e os cuidados da mãe, uma figura forte que trabalhava como lavadeira. A mãe, aliás, com quem o músico perde o contato, é uma lembrança que o acompanha ao longo de toda sua trajetória. É a mãe que o educa, mesmo na sua ausência, que o traz para a realidade, que não o deixa perder suas raízes. Mais inspirador que ilustrativo, trata-se de um enredo de superação entremeado pela devastação das drogas. Cruéis armadilhas para tantos músicos. Ray Charles era uma pessoa que tinha tudo para ser segregada pela sociedade, mas não se conformou. Ele passa de um menino pobre para um empregado com talento para a música, daí para um artista talentoso. Sendo um artista talentoso ele aprende o jogo e passa a dominá-lo. Seu passo seguinte é, além de fazer sua arte, gerenciar seus negócios. Ray Charles torna-se, então, um megaempresário, o dono da situação. Ele não chegou a ser um ativista pelos direitos civis, mas em dado momento se indigna com a discriminação e toma atitudes em prol da igualdade. Algo que faz com grande soberba, em um momento em que já contava com muito sucesso e prestígio. Mas, mais do que personificada na figura de Ray Charles, a questão do negro está impressa na batida forte do Rhythm and blues. A rica música negra traz em si, de forma simbólica, o sofrimento de séculos de exploração e dizimação das raízes africanas, a poesia dos escravos, o ritmo dos trabalhadores.


A LUTA PELA ESPERANÇA 245


2005

A LUTA PELA ESPERANÇA (CINDERELLA MAN)

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EUA, 2005 Direção: Ron Howard Elenco: Russel Crowe, Renée Zellweger, Joe Goul, Paul Giamatti, Max Baer Palavras-chave: crise de 1929, força de trabalho, pugilismo, superação

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ames J. Braddock representa duplamente o trabalhador. No sentido simbólico, como um pugilista, uma vez que o trabalho é ação física, material, corpórea, muitas vezes dura e sacrificada, e no sentido concreto, como um homem que tem de trabalhar para viver e que, mesmo com dificuldades, é batalhador e determinado. Braddock iniciou sua vida como pugilista profissional aos 21 anos, em 1926. Teve um início arrasador mas, como é típico da profissão, um acidente abalou seu sucesso. Daí para frente ele passa pelas piores situações, mas nunca perde a esperança de viver dignamente com a esposa e os três filhos. O filme A Luta pela Esperança mostra sua trajetória e seu amadurecimento. De forma inteligente, ele leva para o boxe valiosas lições de vida. As dificuldades e o trabalho duro o fortalecem. Interessante notar como, até mesmo no boxe, esta profissão calcada na brutalidade, a inteligência e o equilíbrio psicológico são bem-vindos. A história real de James J. Braddock parece mesmo um filme. E caiu como uma luva para os roteiros com finais felizes de Hollywood. No bojo da avassaladora crise de 29, que jogou na lama milhares de estadunidenses, Braddock foi do fundo do poço aos píncaros da glória. Não à toa ficou conhecido como o Homem Cinderela.


DOIS FILHOS DE FRANCISCO 247


2005

DOIS FILHOS DE FRANCISCO

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Brasil, 2005 Direção: Breno Silveira Elenco: Ângelo Antônio, Dira Paes, José Dumont, Márcio Kieling, Thiago Mendonça Palavras-chave: construção civil, cultura, meio rural, superação

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ois Filhos de Francisco mostra um Brasil belo, no qual pessoas batalhadoras conseguem realizar seus sonhos. Francisco Camargo é um lavrador que vive em uma casinha de adobe com sua mulher e seus nove filhos em Pirenópolis, Goiás, a horas distante do vilarejo mais próximo. Ele é um brasileiro sem instrução, dinheiro e, muitas vezes, sem ter o que comer. Mas que tem um grande sonho. E sua simplicidade é seu maior trunfo. Ele não mede esforços para transformar dois de seus filhos em uma dupla sertaneja. E, a partir do pouco que tem, cria meios para fazer com que os meninos ensaiem, se apresentem e se familiarizem com o mundo musical. Os filhos, então, participam de festas regionais e concursos. O pai os leva a fim de que mostrem o talento regado à dedicação, a sacrifícios e paixão. Ao longo do período em que se passa o filme, a vida daquela família sofre muitos reveses. Eles perdem a casa e são obrigados a migrar para a cidade. O pai e os irmãos mais velhos, acostumados ao meio rural, têm de se acostumar com o árido trabalho na cidade. Vale lembrar que, se hoje as condições de trabalho na construção civil nos centros urbanos chegam a ser atraentes para os jovens, naquela época, décadas de 1970 e 80, a realidade era bem diferente, e o elevado nível de desemprego no Brasil levava os trabalhadores a submeterem-se a situações precárias de trabalho. Mas o pai não desiste e seu filho mais velho, Mirosmar, acaba por tomar para si este sonho. Ele vira Zezé di Camargo e passa a contar com seu irmão Welson, que se torna Luciano, o parceiro com quem levará adiante a carreira musical.


Dai para frente a história é conhecida. O mais interessante no filme é que a consagrada dupla sertaneja é apenas um pretexto para contar a história do trabalhador rural apaixonado por música, Francisco Camargo. Dois Filhos de Francisco mostra como a carreira dos músicos Zezé di Camargo e Luciano é conquistada a base de muito esforço, humildade, ingenuidade e com uma criatividade que está para além da arte, que se revela na capacidade de driblar a miséria, a exclusão e a carência social.

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O QUE VOCÊ FARIA?

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2005

O QUE VOCÊ FARIA? (EL MÉTODO)

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Argentina/Espanha/Itália, 2005 Direção: Marcelo Piñeyro Elenco: Natalia Verbeke, Eduardo Noriega, Najwa Nimri, Eduard Fernàndez Palavras-chave: ambiente corporativo, disputa, multinacional

xistem muitos filmes interessantes que são elaborados, a partir de diversas óticas, para além do nosso mote central, que é o trabalho. São expressões poéticas e simbólicas da realidade que, comumente, transmitem mensagens e padrões. Esta estratégia de disseminar ideologias é amplamente difundida na nossa sociedade através não apenas da cultura (em seu caráter mais abrangente, incluindo aí programas de entretenimento, novelas etc), mas também com o uso da poderosa máquina da propaganda. A intenção aqui é pensar em como o trabalhador se encaixa nesta sociedade. Como ele, mola propulsora da economia, é retratado nos mais diversos aspectos que a arte permite. Se a ideia fosse a de simples classificação, seria óbvio falar do filme O que Você Faria? (ou El Método). O filme apresenta o universo (asséptico e fechado) corporativo. Daqui a duas ou três gerações este filme será um bom objeto de análise sobre tendências do comportamento humano nos anos 2000 a 2010. O filme chega a ser cínico. Ele enaltece o mais extremo e cruel individualismo e a forma mais nefasta de ambição. Ele coloca a condição sine qua non de ser frio e calculista para se alcançar o sucesso no ramo empresarial, mas a partir de uma abordagem crítica. Tudo se passa em Madri, na sala da multinacional espanhola onde sete candidatos disputam uma vaga de executivo. Concomitantemente, marchas de protestos contra a globalização e a política monetária do FMI passam pela rua do prédio onde ocorre a seleção. É um sutil contraponto ao foco do filme. A manifestação contra a política monetária é o outro lado do processo de seleção

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em uma multinacional, processo do qual o sistema se alimenta. O método, denominado Grönholm, é aplicado na seleção; trata-se de uma forma de analisar as reações dos candidatos em níveis altos de tensão. O grupo é deixado a sós em uma sala, sendo promovidos vários testes via computador que têm por objetivo analisar a interação entre eles. Nos jogos os próprios candidatos se eliminam. Aqui impera a dissimulação, e ela é tão eficaz que chega a criar graça e simpatia mesmo em um esquema de pura discriminação e injustiça social. Afinal, não é novidade que as regras do mercado de trabalho fizeram com que as pessoas aprendessem a encenar atitudes e situações para garantir seu lugar. Todo o filme transcorre na sala onde os personagens são testados e observados. É como se lá dentro, fechados, eles vivessem quase uma realidade paralela. O filme é baseado na peça de teatro El Método Grönholm.

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TERRA FRIA

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2005

TERRA FRIA (NORTH COUNTRY)

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EUA, 2005 Direção: Niki Caro Elenco: Charlize Theron, Thomas Curtis, Frances McDormand, Sean Bean Palavras-chave: assédio, extrativismo, machismo, mineração, mulher

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erra Fria conta a história de Josey Aimes, uma jovem e bela mulher que começa a trabalhar em uma mina para sustentar a família, sofre assédio sexual no trabalho e move a primeira ação de classe por assédio sexual da história. No início do filme as paisagens pálidas, mórbidas e estéreis prenunciam tempos difíceis. A conservadora e provinciana sociedade de Minnesota, Norte dos EUA, é um cenário contraditório para o fato de a região comportar a empresa que empregou, em 1975, pela primeira vez na história, uma mulher como mineradora. Contradições como estas provocaram violentos choques, como os vividos por Josey Aimes. Com dois filhos, e separada do violento marido, ela se muda para a casa dos pais e começa a trabalhar em um salão de beleza, o que não lhe dá condições de sustentar uma casa e sua família. Surge aí uma velha amiga, Glory, que sugere a ela buscar trabalho nas minas da fábrica de ferro Mesabi. Josey se anima com a oportunidade de ganhar mais dinheiro, “o mesmo que seu pai ganha”, enfatiza a amiga. Este dinheiro, entretanto, sairá bastante caro para Josey em um ambiente dominado por grosserias machistas. Os homens são abusivos e as mulheres vítimas silenciosas. Comentários maliciosos, brincadeiras sexuais, constrangimentos, investidas sexuais e retaliações a qualquer reclamação fazem parte do repertório do tratamento rude dispensado às mulheres pelos mineiros. Além da questão da política sexual, há também uma luta emocional que envolve as relações problemáticas de Josey com seu pai, Hank, e com seu filho adolescente, Sammy, que se constrange pela notoriedade da mãe.


Fica claro que o “sexismo”, ou seja, a ênfase na questão sexual e de gênero na conduta, o machismo, neste caso, está disseminado entre homens, que executam, e mulheres, que não se manifestam. Por outro lado a sensatez também é atributo dos dois gêneros. Há homens que se levantam em favor de Josey contra o assédio sexual de outros colegas. O debate de fundo é acerca do direito de a mulher exercer funções tradicionalmente designadas aos homens, como trabalhar na mina, ganhar dinheiro o suficiente para sustentar-se e a sua família e mover ações judiciais em defesa de sua classe. O filme traz a questão: a inclinação natural da mulher é (e deve ser mantida como) a maternidade e o cuidado com a casa?

Parece uma ideia ridícula, mas ela ainda está enraizada em muitas partes do senso comum e carece de constante elucidação. O debate sobre a mulher, assim como sobre os direitos humanos de modo geral, são recorrentes no cinema, nas artes, nos estudos acadêmicos etc. A luta pelos direitos civis vai na contramão de interpretações generalistas, subjetivas, estáticas e vacilantes sobre o papel e o lugar de cada um. Civil de civilidade, de civilização, é um conceito que se apoia justamente na evolução humana e na capacidade que as pessoas têm de se superar, de conviver socialmente de forma justa, o mais construtivamente possível.

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V DE VINGANÇA

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2006

V DE VINGANÇA (V FOR VENDETTA)

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EUA, 2006 Direção: James McTeigue Elenco: Natalie Portman, Hugo Weaving, Stephen Rea Palavras-chave: fascismo, história, mobilização

s ideias presentes na obra se espalharam em cada jovem que vai às ruas protestar usando a máscara com o sorriso irônico de Guy Fawkes. Hoje, V de Vingança é um símbolo pop mesmo falando sobre assuntos complexos como apologia ao terrorismo, homofobia, mobilização contra governos totalitários, anarquismo e fascismo. Por partes: Allan Moore, o bruxo doidão dos quadrinhos, juntou seu texto às ilustrações de David Lloyd e, em 1988 e 1989, publicou em versão colorida a graphic novel V de Vingança. O filme é baseado nesta HQ original de Allan Moore & David Lloyd. A história original da HQ se passa em 1997, em uma realidade alternativa. Após uma hecatombe nuclear, a Inglaterra vive sob domínio de um governo ditatorial fascista. O Estado controla a mídia e a liberdade do povo por meio de polícia secreta e campos de concentração destinados às minorias raciais e sexuais. Os departamentos do governo recebem nomes como boca, olhos, ouvidos, nariz e dedos. O personagem Adam Susan é o líder do partido Nosfire – e a semelhança com Hitler e o partido nazista não é mera coincidência. A história começa quando os agentes do dedo (polícia secreta) tentam violentar a jovem Evey, que levava a vida se prostituindo. Ela é salva por um misterioso homem usando uma máscara. Ele se identifica com o nome V, ou codinome V. Em tempo: a máscara do personagem V é inspirada no rosto de Guy Fawkes, que era contrário ao partido católico britânico e que comandou um malsucedido

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atentado em 5 de novembro de 1605, cujo objetivo era explodir o Parlamento inglês, conhecido por Conspiração da Pólvora. Fawkes foi condenado à morte. Na graphic novel V é um anarquista que pretende se vingar de atrocidades que sofreu por parte do governo e articula ataques terroristas. Evey se torna aliada e aluna de V. O filme foi dirigido por James McTeigue, com roteiro e produção dos Irmãos Wachowski (criadores de Matrix). A adaptação para o cinema tem algumas diferenças. O filme mostra o personagem V com habilidades quase de um super-herói, e com uma relação mais próxima de amante com Evey (em bela interpretação de Natalie Portman). Allan Moore, pai da história, não gostou desse aspecto da adaptação. No filme, uma multidão sai às ruas usando a máscara de Guy Fawkes no dia 5 de novembro, após o discurso de mobilização de V na televisão. Duas frases são o mote do filme: “O povo não deve temer seu governo. O governo é quem deve temer seu povo!” e “Atrás dessa máscara há uma ideia. E ideias são à prova de bala”. A trilha sonora é versátil: músicas feitas especialmente para o filme por Dario Marianelli, além da Abertura 1812, de Tchaikovsky, e canções associadas a protestos, como BKAB, de Ethan Stoller, em que foram adicionadas partes de discursos de Malcolm X e da feminista Gloria Steinem, e Street Fighting Man, dos Rolling Stones. Quadrinhos, cinema, trilha sonora cativante, além da reflexão política são os ingredientes para fixar no imaginário popular os dizeres da Conspiração da Pólvora: “Lembrai, lembrai-vos do 5 de novembro”. Parece que a cada protesto pelo mundo é difícil não lembrar as diverAlexandre de Mello sas referências do filme.

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BOTINADA – A ORIGEM DO PUNK NO BRASIL

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2006 BOTINADA – A ORIGEM DO PUNK NO BRASIL

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Brasil, 2006 Direção: Gastão Moreira Palavras-chave: anarquismo, contracultura

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evelado na cultura, sobretudo na música e na moda, o punk alçou na história seu posto de movimento social, pois resgatou os ideais anarquistas do início do século 20 e jogou luz sobre uma situação social que atingia a juventude. O punk no Brasil surgiu das mãos de jovens de famílias operárias, na segunda metade da década de 1970, sobretudo da Vila Carolina, Zona Norte de São Paulo. Segundo depoimento do músico Ariel, em entrevista para o filme Botinada, a Vila “Punk” Carolina, encravada entre o Bairro do Limão e a Freguesia do Ó, na periferia paulistana, era basicamente proletária, rodeada por fábricas e pelo comércio popular. Ariel justifica o nascimento do punk naquela região afirmando que “só nos restava o conformismo de ser como nossos pais ou ir contra a corrente que nos prendia a uma triste realidade”. E o grito de liberdade viria através da (difícil) importação de discos de bandas estrangeiras como The Stooges, Ramones, Sex Pistols e The Clash, espalhando-se por meio de cópias em fitas cassete. Aquelas bandas inglesas e estadunidenses, que plantaram na mente dos jovens o sonho de encarnar em si mesmos a possibilidade de mudança, mostraram que eles também podiam criar seus recursos e fazer rock a partir de suas angústias. Eles, que se pretendiam “destruidores”, surgiram da própria destrutividade do sistema capitalista, incorporando a capacidade de transformação. E era natural que a contracultura punk, mesmo importada, parecesse nascida e criada na Vila Carolina. Afinal, onde quer que estivessem, os punks eram frutos da pobreza, da falta de trabalho e da exclusão social. Por isto sua música desarmônica encontrava identificação em ambientes geograficamente tão afastados.


A força da cena punk dos anos de 1970 e 80 era embriagante. Mas o que havia por trás dela? O punk foi uma revoada de farrapos, mera diversão, cultura ou chegou ao patamar de um movimento social? Para o Clemente, da banda Os Inocentes, não chegou. Segundo ele não se tratava de um movimento que lutava pela justiça social. Para o punk, disse Clemente, o inimigo podia ser o vizinho ao lado, podia ser os punks de outras facções ou até o sistema social. Eles queriam “destruir” para “transformar”. Entretanto, apesar dessa opinião do músico, aquela revolta podia ser interpretada como uma postura política. Está claro que eles não estavam organizados em alguma instituição social reconhecida por órgãos oficiais. Não eram partidos, ONGs, sindicatos ou o que quer que o valha. Mas, se uma das características fundamentais do punk é a rebeldia, é legítimo que eles existissem enquanto movimento social, à revelia dos padrões sociais. Além disso, além dos modismos, os punks originais se identificavam pela forma como se colocavam na sociedade, repudiando as instituições e os códigos que segmentam as pessoas em classes. Seu rudimentar discurso anarquista definia, em última instância, uma visão de mundo e um ideal de transformação. Com isto podemos dizer que, mesmo não tendo surgido para ser um movimento, os punks se configuraram espontaneamente como um grupo nitidamente reconhecido na sociedade. A imagem agressiva da garotada era, antes de tudo, uma denúncia sobre as mazelas do mundo injusto em que viviam, mesmo que esta denúncia se fizesse de forma muito mais intuitiva do que intencional.

Eles não entraram na disputa, não defendiam grandes projetos nem almejavam aceitação. Nada entre os punks parecia ocorrer de forma organizada e linear. Sua própria origem no Brasil foi marcada pela rixa entre gangues e, naquela época, fim da década de 1970, diferenças entre os punks de São Paulo e os do ABC motivaram uma violência cega e inconsequente. Somente a partir do início da década de 1980, sobretudo depois do festival O Começo do Fim do Mundo, em 1982, no Sesc Pompeia (SP), o movimento começou a sair do gueto e assumir uma forma cultural. Isto tudo de um modo passional e desordenado. Longe, muito longe do politicamente correto ou da pecha de vítimas da sociedade. Em linhas tortas o punk cumpriu o seu papel: cuspiu na cara da sociedade, chutou o balde e escancarou a ironia que rege as relações sociais.

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À PROCURA DA FELICIDADE 262


2006

À PROCURA DA FELICIDADE (THE PURSUIT OF HAPPYNESS)

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EUA, 2006 Direção: Gabriele Muccino Elenco: Will Smith, Jaden Smith, Thandie Newton Palavras-chave: desemprego, mercado de trabalho, superação

cubo mágico, aquele quebra-cabeças tridimensional em que se deve encaixar as cores, é a metáfora da condição de Chris Gardner no filme Em Busca da Felicidade. Desempregado, abandonado pela mulher e com um filho para criar, Gardner luta obstinadamente para entrar no mercado de trabalho. A falta de dinheiro leva a que ele e o filho sejam despejados do apartamento e obrigados a dormir em abrigos, casas de banho ou qualquer local que sirva de refúgio para passar a noite. Apesar de todas as dificuldades, Chris continua a ser um pai carinhoso e cuidadoso. A confiança e o afeto do filho são a mola propulsora para seguir em frente. Depois de muitas amarguras, e devido a sua persistência, Chris Gardner força uma carona de táxi com um executivo da empresa de corretagem em que pleiteia um cargo. O acaso, então, dá a ele a chance de mostrar sua inteligência ao montar o cubo mágico que o executivo a tempos tentava montar em vão. Foi a senha para atrair a atenção de um possível empregador. Para Chris, alinhar as cores do quadrado não passava de uma brincadeira de criança. Seu desafio real era montar as peças de sua vida devastada pelo desemprego em um mercado competitivo e retraído. E voltar a ser um cidadão. Mas, tendo impressionado o executivo com sua habilidade em resolver problemas difíceis, ele consegue concorrer a uma vaga de estagiário na empresa. Tal estágio consistia em trabalhar de graça por seis meses, com a possibilidade futura de uma contratação. Ele aceita e, no fim, consegue se efetivar. Esta conclusão do filme é trabalhada com uma sensibilidade que torna o telespectador cúmplice e realmente contente com

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sua conquista. A maneira como o protagonista agarra sua grande chance prenuncia uma carreira de sucesso. De fato, conforme conta a história real, Chris Gardner, com o tempo e com uma trajetória calcada em muito esforço, abnegação e dedicação, tornou-se um profissional de sucesso, chegando a virar um dos acionistas da empresa. É uma historia de respeito. Mas o livro e o filme trazem implícita a ideia de que “vencer na vida” é apenas uma questão de correr atrás. O filme mostra com clareza a trajetória do self made man, explicitando a ideologia norte-americana do caminho individual, independente do Estado. Tanto é assim que o próprio título do filme tem origem em um princípio consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), que Thomas Jefferson tornou famosa: Life, Liberty and the pursuit of Happiness (Vida, Liberdade e a procura da Felicidade).

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Ora, o desemprego não é uma opção individual nem resultado de postura negligente e insolente perante à sociedade. O desemprego estrutural é um mecanismo próprio da sociedade capitalista, em que o desequilíbrio permanente entre a oferta e a procura (de trabalhadores), resulta das mudanças da estrutura da economia. Neste caso a história de Chris Gardner é muito mais um exemplo de caráter pessoal do que uma pista para superar o desemprego. O interessante do filme é observar como um homem encontra firmeza e determinação para ultrapassar as piores dificuldades. Observar a solidez do caráter. Interessante também é a construção da história, permeada por símbolos: a criança que perde seu Capitão América de plástico, em um momento de desconstrução de mitos, os carros conversíveis, com gente luxuosa que atravessa o caminho de Chris, o quebra-cabeças.


O DIABO VESTE PRADA

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2006

O DIABO VESTE PRADA (THE DEVIL WEARS PRADA)

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EUA, 2006 Direção: David Frankel Elenco: Meryl Streep, Anne Hathaway, Emily Blunt, Stanley Tucci, Gisele Bundchen, Adrian Grenier, Simon Baker Palavras-chave: ambiente corporativo, carreirismo, emprego, juventude, novas tecnologias

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esmo nos meios mais elitistas pode-se perceber a repetição da hierarquia e do modo de produção capitalista. É o caso da chamada “indústria da moda”, tema de O Diabo Veste Prada. A vida na revista de moda Runway Magazine é um retrato da vida em Nova York, o centro mundial do capitalismo. Para adaptar-se às exigências do trabalho, Andy transforma-se numa workaholic manipulada por sua abominável chefe. O filme mostra, por um lado, a cruel concorrência do mercado de trabalho e os abusos dos patrões contra os funcionários, e por outro, a preparação de uma funcionária pela sua chefa. A história gira em torno do dia a dia de uma funcionária recém-admitida por uma famosa revista de moda. São colocadas situações como: acirrar a competição, exigências do “mercado”, uso de tecnologias. E regras como: o que vestir, o que comer, com quem se relacionar, como e quando dirigir-se a sua superiora. O trabalho torna-se um estilo de vida. Com o uso do telefone celular, por exemplo, a editora aciona sua assistente a qualquer hora e por qualquer motivo. Implicações editadas pela poderosa Miranda Priestly, mas a assistente tem sérios problemas com as exigências do novo emprego, incluindo as tarefas absurdas ordenadas pela chefa. O filme foi baseado no romance homônimo da escritora norte-americana Lauren Weisberger.


ZUZU ANGEL 267


2006

ZUZU ANGEL

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Brasil, 2006 Direção: Sérgio Rezende Elenco: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Luana Piovani, Leandra Leal Palavras-chave: ditadura militar, movimento estudantil, perseguição política

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filme Zuzu Angel conta a história da luta de Zuleika Angel Jones, 30 anos depois de sua morte. Em sua harmonia técnica e estética, o filme equilibra e processa os horrores da ditadura para o gosto da classe média. Ao tratar do sumiço de Stuart Edgart Angel Jones, um estudante e militante de esquerda do grupo guerrilheiro revolucionário MR-8, sob os desmandos do Estado, o filme traz suas “faces secretas sob a face neutra (1)”, das quais cito três: A primeira é o encontro de Zuleika, a mãe do estudante Stuart, com o pai do capitão do Exército Brasileiro Carlos Lamarca, que desertou em 1969 tornando-se um dos comandantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Este breve momento do filme revela sutilmente duas das várias formas da resistência contra a ditadura: de um lado a mulher bela, sofisticada e arrojada, de outro o homem humilde, operário, resignado. De um lado o movimento estudantil, com seu ímpeto de luta contra a repressão. Do outro o movimento operário, com sua necessidade de luta contra a opressão. Duas realidades que se cruzam sob o mesmo drama, o sumiço de um filho nas mãos dos agentes do Estado e sua busca inglória pelos pais. A segunda face que se desprende do filme é a demonstração de como a “moda” pode ser tanto uma demonstração de status quanto uma atitude política e de rebeldia. Zuleika foi uma expressiva estilista brasileira e, à medida que se envolvia com a busca por pistas do paradeiro de Stuart, suas criações expressavam cada vez mais contestação e engajamento. Seu estilo original misturava tecidos, temas e estampas regionais, além de pedras bra-


sileiras e fragmentos de bambu. Assumir esta brasilidade na alta moda, em uma época em que o chic para a cafona elite nacional era copiar descaradamente as vestimentas dos habitantes dos países dominantes do capitalismo, era algo transgressor. E esta atitude iria ainda mais longe. Zuzu, que sempre abordou a alegria e a riqueza da cultura brasileira, criou, com o sumiço de seu filho, uma coleção estampada com manchas vermelhas, pássaros engaiolados e motivos bélicos. O anjo, uma das marcas de suas criações, aparecia agora ferido e amordaçado, fazendo referência ao filho. A terceira “face secreta” que cito é a canção Angélica, de Chico Buarque de Holanda. Abordo a música aqui como representação de todas as canções compostas de forma cifrada sobre situações geradas a partir da ditadura militar. Chico não apenas “usou” tal história para compor uma música. Ao contrário: ele usou sua música para contar uma história que lhe foi confiada. Isto porque uma semana antes da emboscada que causou sua morte, a estilista deixara na casa do músico um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse. Nele Zuzu afirmava que: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”. A previsão se confirmou na madrugada de 14 de abril de 1976, quando um suspeito acidente de carro na Estrada da Gávea, Rio de Janeiro, pôs fim à vida de Zuzu e a sua busca pelas explicações, pelos culpados da morte do filho. Como naquela época a censura impedia os artistas e jornalistas de descreverem situações que “manchassem” (de sangue) a fachada do governo militar, obras inteiras foram compostas com base em uma linguagem alegórica. Músicos, escritores e demais criadores comprometidos com a resistência à ditadura exerceram malabarismos teóricos, buscando formas de expressão, de combinações de sons, imagens e palavras que driblas-

sem os censores e transmitissem ao povo, da forma mais abrangente possível, o que de fato acontecia nos porões das instituições das altas patentes. Neste contexto, em 1977, Chico compôs Angélica, em homenagem à estilista. O elementar direito de uma mãe enterrar o corpo de seu filho morto, a simples notícia da morte e a insistência da mãe em repetir o relato daquela situação para um contingente de autoridades surdas a seus apelos foram crueldades relatadas nas entrelinhas dos versos: “Quem é essa mulher Que canta sempre o mesmo arranjo? Só queria agasalhar meu anjo E deixar seu corpo descansar.” E ainda, no verso “Só queria embalar meu filho Que mora na escuridão do mar” Chico insinua que, como acontecera com outros militantes, o corpo de Stuart fora atirado em alto mar. O que de fato aconteceu com o jovem estudante não se sabe. A versão mais conhecida e aceita de sua tortura e morte foi contada pelo ex-guerrilheiro Alex Polari, que assistiu da janela de sua cela as torturas sofridas por ele. Dele, os militares queriam a informação da localização do capitão Lamarca, o grande procurado pelo regime. Ambos, Stuart e Lamarca, foram assassinados no ano de 1971. O filme cumpre um papel. Ele levou, enfim, ao conhecimento da sociedade a luta de Zuleika, 30 anos depois de sua morte. Mas a verdade sobre o que fizeram os militares no governo brasileiro, entre 1964 e 1985, com vítimas como Zuzu e Stuart, ainda é um fato obscuro em nossa história. (1) Verso de Carlos Drummond em Procura da Poesia.

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CARO SR. HORTEN 270


2007

CARO SR. HORTEN (O’ HORTEN)

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Noruega/Alemanha/França, 2007 Direção: Bent Hamer Elenco: Baard Owe, Espen Skjønberg, Ghita Nørby, Henny Moan, Bjørn Floberg, Kai Remlow, Per Jansen Palavras-chave: aposentadoria, envelhecimento da população, maquinista

as tendências mundiais dos últimos quarenta anos, o envelhecimento da população merece atenção especial. Desde os anos de 1960 constatou-se que, em nível mundial, as pessoas passaram a ter menos filhos, ao passo que, com o aumento da longevidade, a média de óbitos também diminuiu. Como resultado desta equação tanto os países desenvolvidos como, de modo crescente, os países em desenvolvimento, passaram a contar com cada vez menos crianças e cada vez mais idosos. A Noruega, nação escandinava, berço dos vikings, de clima oceânico, continental, subártico e alpino, com uma população de cerca de 5 milhões de pessoas, tem uma taxa de crescimento populacional de 0.7% (dado de 2005). Com uma das mais elevadas taxas de expectativas de vida do mundo, não há dúvida sobre o envelhecimento da população norueguesa. Aposentados em plena atividade social povoam a demografia daquele país. O personagem Odd Horten, 67 anos, maquinista da linha de trem de Bergen, é portanto, um norueguês comum. Por meio de sua história pode-se sentir o ambiente de seu país, a formalidade, o agudo senso de dever, a contenção emotiva, a monotonia, a ordem que se perpetua através das gerações e um delicado e secreto anseio por aventuras e mudanças. Odd é um funcionário metódico, que fará a sua última viagem pelas montanhas antes de se aposentar (por idade – aos 67). Sua vida é previsível como o trajeto do trem que dirige diariamente. Após décadas de serviços prestados, ele próprio já se assemelha fisicamente a uma locomotiva, com bigodes que parecem limpa trilhos e um cachimbo sempre soltando fumaça.

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O filme nos leva, com muita sutileza, ao seu íntimo. Mas nada de grandes dramas, mesmo porque, à moda escandinava, estamos falando de uma comédia. Situações absurdas envolverão este homem, como ficar preso para fora da porta na festa de sua aposentadoria e acabar invadindo o apartamento vizinho, e ali ceder às chantagens de uma criança que o quer por perto até adormecer, ou conhecer um bêbado na rua e, ao prolongar amizade, descobrir as minúcias de sua vida e confortável situação financeira. Desolado pela falta de sua antiga rotina, o café da

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manhã, o serviço, os colegas, a volta para casa, Odd terá de aprender a conviver com outras pessoas, e coube a alguém que é o seu oposto, o outsider Trygye Sissener, proferir palavras inspiradoras para Odd buscar novos caminhos. Caro Sr. Horten chama a atenção para a longevidade nestes novos tempos em que o espaço urbano se consagrou e a família diminuiu. Mas enfatiza a situação peculiar de um país em que a solidão é comum e a intimidade nem tanto. O filme aborda, sobretudo, o universal poder de transformação que cada um traz dentro si.


CONVERSAS COM MEU JARDINEIRO

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2007

CONVERSAS COM MEU JARDINEIRO (DIALOGUE AVEC MON JARDINIER)

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França, 2007 Direção: Jean Becker Elenco: Daniel Auteuil e Jean-Pierre Darroussin Palavras-chave: desigualdade social, trabalho braçal

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interação entre pessoas de distintas classes sociais é um tema recorrente no cinema. Além de sociológica, a divisão econômica entre as pessoas é permeada por uma atmosfera simbólica e subjetiva. Em Conversas Com Meu Jardineiro, um artista plástico bem-sucedido retorna de Paris para a pequena cidade onde nasceu devido a morte de seus pais. Encontra a casa tomada pelas plantas e pelo mato que cresceram livremente, à mercê do abandono. Contrata, então, um jardineiro para fazer a limpeza. Ele só não contava que este novo empregado seria um velho amigo de colégio. Ambos estudaram na mesma escola, mas cada um trilhou um caminho diferente, de acordo com o que o contexto social permitiu. Este reencontro, cinquenta anos depois, se desdobra em uma rica troca de experiências, de conhecimentos, de recursos, de afetividade e amizade principalmente. O filme se assenta nos diálogos entre duas distintas experiências de vida. E, aos poucos, a realidade de cada um começa a interferir na vida do outro. O artista plástico, que se refugia no campo atrás de uma identidade perdida, é envolvido e passa a ter olhos para a questão social do jardineiro. Por um lado ele aprende o valor do conhecimento prático, e por outro se dá conta da precariedade dos serviços com os quais seu novo “velho” amigo conta, sendo a medicina o caso mais gritante. O despojamento, a sensibilidade e a disponibilidade que o pintor demonstra em relação ao jardineiro confere o tom humanitário que dá graça ao filme. E leva à dimensão de que somos todos humanos, acima de tudo. Mas, se isto conforta o ego, não resolve o problema.


Por mais conhecimentos práticos, teóricos e afetivos que o jardineiro tenha conquistado ao longo de uma vida de trabalho duro, por mais que ele tenha se tornado um homem maduro, íntegro e responsável, neste reencontro ele ainda é o empregado. E o artista um egocêntrico displicente que, antes de retomar o contato com o jardineiro, era incapaz de enxergar além de seu próprio nariz.

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LEÕES E CORDEIROS 276


2007

LEÕES E CORDEIROS (LIONS FOR LAMBS)

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EUA, 2007 Direção: Robert Redford Elenco: Robert Redford, Meryl Streep, Tom Cruise, Michael Peña, Peter Berg, Derek Luke. Palavras-chave: educação, guerra, jornalismo, política internacional

eões e Cordeiros entrelaça histórias de três profissionais – um congressista, um professor e uma jornalista – através da guerra do Afeganistão. São diferentes situações que levantam pontos de vistas divergentes acerca do papel e das responsabilidades da imprensa, do governo e da população nos rumos tomados pelos Estados Unidos. Em Washington D.C. o jovem e carismático senador Jasper Irving chama a jornalista Roth para lhe conceder uma entrevista especial. Ele quer que a imprensa divulgue amplamente a nova estratégia estadunidense na guerra em curso no Oriente Médio. Enquanto isto, nas montanhas geladas afegãs, uma patrulha de soldados realiza a primeira incursão ao país inimigo dentro desta nova estratégia. Os jovens soldados, em sua maioria de origem latina, passam por uma turbulência dentro do avião de guerra e dois deles, Arian Finch e Ernest Rodriguez, saltam de paraquedas em pleno território inimigo. No mesmo horário, do outro lado do país, o maduro Robert Redford, na pele do idealista professor universitário Stephen Malley, conversa com um de seus alunos sobre seu desinteresse pelos estudos de sociologia e busca fazer com que o jovem reflita sobre a situação mundial e suas capacidades. Leões e Cordeiros trata de profissionais idealistas, que buscam participar e influenciar na vida social – o político, o acadêmico, a jornalista. E a ideologia é revelada sob os prismas da execução, da conscientização, da informação e na formação de opiniões. O filme aborda questões de ordem política, ética e humanitária. Mas faz uma crítica aberta ao individualismo da juventude de classe média e à mídia.

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MAD MEN

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MAD MEN MAD MEN

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EUA, 2007 Direção: Matthew Weiner Elenco: Jon Hamm, Elisabeth Moss, Vincent Kartheiser, January Jones, Christina Hendricks Palavras-chave: identidade, consumo, mercado, publicidade

inconsistência da “verdade”, a linha tênue entre o real e o fantasioso e a busca inglória pela própria identidade perpassam as sete temporadas de Mad Men, propondo uma dose de reflexão muito rara em seriados para a TV. Mad Men não aborda grandes tramas. O pretexto em torno do qual se desenvolvem histórias é a criação publicitária na agência fictícia Sterling Cooper, localizada na Madison Avenue, em Nova York, na chamada “Era de Ouro da Propaganda”. A procura por contas de empresas para a agência, e o processo de criação artística para a venda de produtos, é muito interessante, e a transição da revista para o rádio, e do rádio para a televisão, marcam a permanente evolução na comunicação. Mas todo esse sistema coloca-se como uma grande metáfora da vida das pessoas da equipe liderada por Don Draper ( Jon Hamm). A vida dupla do protagonista, por exemplo, é como a dualidade essencial da propaganda, que manipula a realidade oferecendo uma fantasia que sustenta o universo do consumo. Don Draper, o publicitário outsider que cresceu profissionalmente com base em seu próprio talento (e não pelos meios formais), é genial ao brincar com as palavras e relativizar o valor e a função dos objetos. Logo no primeiro episódio, Smoke Gets in Your Eyes (Fumaça em seus olhos), fica claro que uma fumaça “imaginária” que embaça a visão estará sempre presente. E é justamente esta visão turva e hipnótica, criada e aprimorada cada vez mais pela publicidade, que permite sustentar, por exemplo, uma milionária indústria de cigarros como a Lucky Strike, mesmo quando pesquisas já demonstram os malefícios que o fumo causa à saúde.

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Se não pode vender saúde Don joga a pesquisa no lixo e vende a sensação de liberdade e onipotência. Afinal, a publicidade não pressupõe compromisso social. Ela se baseia em uma só coisa: felicidade. Ou a ideia de felicidade. E é com a mesma eficiência com que cria slogans e imagens atrativas que Don Draper cria um personagem de si mesmo, com uma história que não corresponde à realidade. Ele é uma propaganda de si mesmo. Mas, ao contrário do que possa parecer, ele não é um cínico, mas sim um solitário, atormentado pela busca da própria identidade. Esta também é a contradição da propaganda. Propaganda é arte? É cultura? É linguagem? Ou é mero esquema comercial? Publicidade é criação e pode inspirar arte, cultura ou até conhecimento. Mas, antes de tudo, ela está comprometida com a indústria e com o lucro. Símbolo maior da sociedade de consumo, da indústria cultural e da produção em massa, a propaganda apropria-se dos costumes e os devolve para a sociedade, moldados segundo os interesses das empresas capitalistas. O sonho que ela vende, da forma como vende, não pode se tornar realidade.

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O BANHEIRO DO PAPA

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2007

O BANHEIRO DO PAPA (EL BAÑO DEL PAPA)

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Brasil/Uruguai/França, 2007 Direção: César Charlone e Enrique Fernández Elenco: César Troncoso, Virginia Méndez, Virginia Ruiz, Mario Silva Palavras-chave: comércio, exclusão social, religião, trabalho informal

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Banheiro do Papa retrata o impacto da notícia sobre a visita do papa João Paulo II em Melo, cidade uruguaia próxima à fronteira com o Brasil, onde muitos habitantes vivem de pequenos serviços, como contrabandear produtos de Aceguá, no Rio Grande do Sul. O ano é 1988. O lugar é Melo, na zona rural, Uruguai. A força e as cores da natureza sul-americana são lindamente captadas no filme O Banheiro do Papa. Vacas, porcos e galinhas cruzam a tela. E a poeira avermelhada levanta da terra com o caminhar da população católica e muito pobre. Levanta com o pedalar das bicicletas que viajam duas, três vezes ao dia, ao largo da fiscalização, carregadas com mantimentos trazidos do Brasil para serem comercializados nas vendas locais. Frágeis negociações onde impera a informalidade. Neste ambiente apartado da institucionalidade socioeconômica, as pessoas criam suas próprias regras, como em um faroeste tardio no que sobrou de uma América já feita. Mas eis que Melo vira notícia. A cidade está inserida no roteiro da viagem do papa à América. E eles, já acostumados ao esquecimento, veem-se diante de ter de lidar com alguma atenção. O alarde da imprensa, que anuncia a vinda do pontífice, vende a ideia de que milhares de turistas estarão no evento. E, no intuito de agarrar a oportunidade, o povo prepara-se para o megaevento projetando para a cidade uma grande feira de bugigangas e pratos regionais. A visita do papa mexe com as aspirações do excluído povo de Melo. E este povo, do alto de sua ingenuidade, de seu alheamento e de sua boa-fé, joga toda sua esperança naquele evento.


Obra feita com parcos recursos, o filme O Banheiro do Papa, em sua simplicidade, retrata a exclusão social como um problema crônico. Situação que é acentuada por tratar-se de uma região, e não de uma pessoa ou uma família. Retrata também o descompromisso da grande imprensa, que nunca mede as consequências de seus excessos ou de suas omissões. Mas o melhor do filme é a alegria de quem, a despeito do papa, traz na pele a marca de possuir a estranha mania de ter fé na vida.

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O DIÁRIO DE UMA BABÁ 284


2007

O DIÁRIO DE UMA BABÁ (THE NANNY DIARIES)

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EUA, 2007 Direção: Shari Springer Berman e Robert Pulcini Elenco: Scarlett Johansson, Donna Murphy, Alicia Keys, Laura Linney, Chris Evans Palavras-chave: antropologia, desigualdade social, trabalho doméstico

no museu de antropologia que esta história começa e acaba. Este dado é muito importante para compreender o sentido do filme O Diário de Uma Babá. Nele, cenas e objetos do cotidiano são colocados em observação. A protagonista Annie Braddock, antropóloga recém-formada e ávida por decifrar o mundo, vive o papel de babá como se estivesse realizando uma pesquisa científica. Assim, como se observasse a história de fora, nos faz refletir sobre este trabalho. Quer e precisa trabalhar, mas o mercado para os antropólogos não parece aberto para ela. O acaso faz, então, com que ela salve de um atropelamento uma criança que corria pelo parque. Logo surge a mãe do menino, uma socialite inábil para lidar com ele. A admiração da mãe pelo gesto da antropóloga a leva a oferecer a Annie o trabalho de cuidar de seu filho, ainda que ela não esteja pleiteando o cargo. Como se tivesse, enfim, encontrado um caminho profissional, em sua imaginação Annie encarna Mary Poppins (musical de 1964 em que uma babá perfeita desce das nuvens segurando um guarda-chuva) e convence-se de que nasceu para isso. À primeira vista parecia fácil ficar naquela casa rica e cuidar de um adorável garoto, como constatou nossa heroína entre o meio e o fim do filme. Ledo engano. Ela não contava com as regras, com a pressão e com a subordinação. Aí está a graça da história. Ao adentrar o mundo do emprego doméstico o filme procura dar voz àqueles que nunca são consultados. O brilho da história não está no saguão principal, mas no quarto dos fundos.

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Apesar do tom água com açúcar, o filme proporciona reflexões interessantes ao colocar uma família da alta sociedade nova-iorquina como objeto de estudo. Vale destacar a palestra, para as socialites, sobre as dificuldades de relacionamento com as babás. Obviamente as empregadas não fazem críticas, mas as madames se queixam de coisas como o fato de muitas de suas funcionárias não dominarem o idioma inglês (tratam-se de mulheres migrantes que dependem de subemprego para se sustentar). É uma demonstração da desigualdade social sobre a qual se implantam relações de poder. Annie encarna verdadeiramente o constrangimento dos empregados frente aos seus patrões.

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OSCAR NIEMEYER

– A VIDA É UM SOPRO 287


2007 OSCAR NIEMEYER – A VIDA É UM SOPRO

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Brasil, 2007 Direção: Fabiano Maciel Palavras-chave: arquitetura, criação, história, idealismo, socialismo

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e conceitualmente o trabalho é a transformação da natureza, a arquitetura é uma de suas imagens mais emblemáticas. Além do ofício da arquitetura, A Vida é um Sopro mostra o lado criativo e prazeroso do trabalho. No filme, o já centenário Oscar Niemeyer, um dos melhores arquitetos do mundo, com mais de oitocentas obras, fala de seu trabalho com paixão e idealismo. Os noventa minutos de A Vida é um Sopro mostram Niemeyer falando sobre sua vida, seu ideal de uma sociedade mais justa e sobre como ele concebeu seus principais projetos. Sua fala é entrecortada por imagens originais de construções de suas obras, além de imagens de suas obras e depoimentos de figuras importantes como José Saramago, Eric Hobsbawn, Nelson Pereira dos Santos, Ferreira Gullar, Carlos Heitor Cony e Chico Buarque, entre outros. Filmado entre 1998 e 2007, o filme discorre sobre a clareza das linhas, o pensamento social de Niemeyer e suas inovações culturais e arquitetônicas. Inicialmente Niemeyer trabalhou com uma ideia tradicional de arquitetura, que apenas reproduzia, por meio do ensinamento das técnicas, o estilo existente. Influenciado por arquitetos que foram além dos limites da instrução formal, sobretudo Lucio Costa e Le Corbusier, ele percebeu que poderia inovar e transgredir as velhas fórmulas. A construção do edifício do Ministério da Educação e Saúde (atual Palácio Gustavo Capanema), entre 1936 e 1945, no Rio de Janeiro, por um grupo de arquitetos liderado por Lucio Costa, do qual participou Oscar Niemeyer, foi uma das ações que marcou o início da nova arquitetura no Brasil. O edifício aproveitou o ambiente natural e reforçou a integração entre arquitetura, paisagismo e artes plásticas.


Amadurecido, Niemeyer exaltou a plasticidade das formas paisagísticas brasileiras, opondo-se à rígida linha reta do estilo internacional. O resultado foi uma arquitetura sinuosa, que brinca com as formas e com a fantasia. Sua primeira grande criação foi a capela da Pampulha, em Belo Horizonte. De Pampulha até hoje, passando pela construção de Brasília, sua arquitetura seguiu a mesma liberdade e inventividade plástica. A elaboração do projeto e a construção de Brasília foram impulsionadas pelo entusiasmo do então presidente da República, Juscelino Kubitschek. Segundo Niemeyer a ideia de JK era que Brasília fosse uma cidade atualizada e moderna, representando a importância de nosso país. A capital foi inaugurada em 21 de abril de 1960 como uma monumental paisagem simbólica e surrealista. O espaço aberto para marchas e movimentos sociais em frente à Praça dos Três Poderes e ao Palácio do Planalto marcaram o idealismo de Niemeyer.

Entretanto, nos vinte anos em que a ditadura militar ocupou nosso país e a capital Brasília (1964 a 1985), Niemeyer exilou-se no exterior. Lá fez algumas das suas melhores obras: a sede do Partido Comunista Francês, a Bolsa de Trabalho, em Bobigny, o Espaço Oscar Niemeyer, no Havre, a sede da Fata Engineering, em Turim, a Mondadori, em Milão, as universidades de Constantine e Argel, na Argélia. Como ele próprio diz, sua arquitetura foi feita de coragem e idealismo. Mas este velho brasileiro ressalta que, a despeito de qualquer coisa, o importante é a vida, é buscar melhorar esse mundo injusto. Em suas palavras: as pessoas vão aprender que a vida é um sopro. Cada um vem, dá o seu recado e vai embora, as coisas desaparecem. O importante é a solidariedade, saber que estamos no mesmo barco.

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RATATOUILLE

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RATATOUILLE RATATOUILLE

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EUA, 2007 Direção: Brad Bird Palavras-chave: cozinheiro, emprego, juventude

lém de divertido e lúdico, o filme de animação Ratatoillie suscita uma reflexão sobre a situação contemporânea do mundo do trabalho. Sobretudo do trabalho dos jovens, que enfrentam a dura contradição entre a dificuldade e a necessidade em arrumar um emprego. Na história o rato Remy, este animal que comumente causa repugnância, principalmente quando relacionado à comida, sonha em ser um grande chef. Ele admira o mais famoso chef parisiense e, de maneira autodidata, aprende a fazer com maestria os mais sofisticados pratos. Após um inusitado encontro com o garoto Linguini (Lou Romano), que gostaria muito de aprender, mas não sabe cozinhar, é firmada uma parceria e Remy passa a trabalhar no restaurante, escondido sob o chapéu de Linguini. Os talentos do rato Remy garantem o emprego do desajeitado Linguini. Merece atenção as dificuldades enfrentadas na travessia dos ratos e a consequente busca de sobrevivência. A situação é análoga ao despejo e a migração. Em contrapartida, a trajetória do rato protagonista Remy (voz de Patton Oswalt) mostra a ousadia e o ímpeto da juventude em buscar novos caminhos e tornar possível o impossível. O filme fala sobre a dedicação e a persistência em buscar seus sonhos e sobre a realização pessoal. Fala sobre começar de baixo, enfrentar dificuldades e preconceitos e crescer pelo próprio esforço. Além disso, Ratatoullie louva a boa gastronomia. Neste caso, mais uma vez, mostrando a grandeza da simplicidade.

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TROPA DE ELITE

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Brasil, 2007 Direção: José Padilha Elenco: Wagner Moura, Fernanda Machado, André Ramiro, Caio Junqueira, Milhem Cortaz, Paulo Vilela, Fernanda de Freitas, Maria Ribeiro, Fábio Lago Palavras-chave: crime organizado, polícia, segurança

preciso coragem para mostrar no cinema as entranhas do trabalho da polícia, que para o bem ou para o mal, é um tabu na sociedade moderna. O policial é, antes de tudo, um conservador. No sentido literal da palavra. Sua função é manter a ordem, e a coexistência entre o crime e a justiça dentro da própria organização abalam valores sociais. Como contraponto, o filme Cidade de Deus (2002, direção de Fernando Meirelles), dos traficantes de drogas, deixa claro que foi na década de 1980 que o crime organizado se consolidou e o tráfico tomou conta da favela. Na mesma época a ditadura militar, que durante vinte anos perseguiu e reprimiu com violência seus opositores, chegava ao fim. Não é coincidência, mas sim uma passagem nebulosa da história. Com o desmonte do aparelho repressivo do DOI-Codi, seus agentes, os torturadores, passaram a atuar em setores privados e em negócios ilícitos. Desta maneira o know-how da repressão, como a extorsão e a tortura, passou para o crime organizado e para a própria polícia. Em Tropa de Elite o foco está no Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Policia Militar do Rio de Janeiro. Trata-se de um violento embate entre o tráfico de drogas e o Bope. São dois extremos de uma lança com um modus operandi similar. Cidade de Deus mostra de forma quase didática o rigoroso sistema de produção e venda das drogas, onde cada um exerce uma função e há uma espécie de “plano de carreira”. Em Tropa de Elite, o capitão Nascimento precisa treinar seu substituto para caçar os traficantes. O rigor e a disciplina, sem os quais a punição é implacável, dão a tônica do treinamento. Ambos se apoiam em uma concepção extremamente autoritária, arbitrária e violenta de sociedade.

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Em Tropa de Elite a corrupção dentro da PM é onipresente, e acordos com traficantes, subornos e chantagens entre os policiais são práticas recorrentes. O filme mostra policiais mal treinados e mal pagos, num esquema podre no qual quem não se corrompe dança. A tropa de elite do Bope aparece como a única instituição idônea, que une treinamento intensivo de guerra e foco total em combater os traficantes. Os policiais do Bope usam a tortura e o assassinato para combater o tráfico. Não se questiona a legitimidade destas ações. O Bope pode julgar quando é “necessário” torturar, ou quando se deve matar uma pessoa? O filme mostra que sim. São meios arraigados em uma cultura autoritária. A prática da polícia é atuar na repressão, e não na prevenção. Mesmo o preparado Bope atua naquilo que é visível, sem uma atuação planejada, enquanto quem comanda a lavagem de dinheiro, enfim, toda a direção do crime organizado, não é visível. Melhor não seria uma polícia bem paga, qualificada, bem informada e que seja preparada para combater o crime de cima para baixo: do grande para o médio, e do médio para o pequeno, e não só olhar para os efeitos visíveis do crime? O enfrentamento quase heroico mostrado em Tropa de Elite esconde a desvalorização do trabalho dos policiais que, mal preparados, são mantidos alheios aos planejamentos sociais, servindo como meros soldados do batalhão de choque das cidades.

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ZODÍACO

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2007

ZODÍACO (ZODIAC)

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EUA, 2007 Direção: David Fincher Elenco: Jake Gyllenhaal, Mark Ruffalo, Anthony Edwards, Robert Downey Jr., Brian Cox Palavras-chave: dedicação, investigação, método

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odíaco é um filme de suspense. Ele conta a história de crimes que ocorreram desde 1º de agosto de 1969, mobilizando a imprensa e inspetores da polícia por anos a fio. Na vida real, estes crimes geraram pânico em São Francisco (Califórnia, EUA), provocando as autoridades em quatro jurisdições, com códigos e cartas, durante décadas. O intrigante é que o assassino gostava de chamar a atenção e escrevia cartas à imprensa dando detalhes dos crimes e pistas das suas próximas ações. Essa história é contada sem correria e sem doses exageradas de terror, mas com muitos detalhes, charadas, diálogos e reflexões. E com uma boa reconstituição dos anos 1960 e 70. O filme é longo, arrastado e confuso. Ao que parece, este foi o tom da história real que chocou a população e se arrastou pelas décadas de 1970, 80, 90, levando consigo, além das vítimas, a sanidade e o sossego dos que se dedicaram a desvendá-la. Não é o personagem central, com suas artimanhas de assassino em série, o que nos interessa. Este filme contribui para o debate acerca do mundo do trabalho se analisado a partir dos três personagens que o circundam: o detetive David Toschi, o repórter do San Francisco Chronicle, Paul Avery, e o cartunista, também do San Francisco Chronicle, Robert Graysmith. A questão central desta análise é que os investigadores, pela sua experiência e intuição profissional, conseguiram descobrir quem era o assassino. Mas eles não souberam como comprovar que o suspeito era o culpado. Eles não conseguiram encaixar as peças do jogo. Durante todo o tempo a leviandade do criminoso estimulou o trabalho da investigação. De forma sarcástica o Zodíaco fomentou o surgimento de pistas falsas de modo


que a situação se transformou numa brincadeira de mau gosto que fugiu do controle de todos. O investigador se viu obrigado a seguir as pistas como uma cobra cega. O jornalista, por sua vez, tornou-se refém das ameaças do assassino, tendo que dedicar-lhe várias páginas de seu jornal. Os métodos investigativos da polícia não bastaram para um problema daquela envergadura. Nem para o jornalista. Não bastou sua dedicação, seu acúmulo de informações, nem mesmo sua audácia e seu despojamento. O mais interessante do filme é o fato de que quem conseguiu juntar as pontas da história foi o cartunista Robert Graysmith. Ele, que trabalhava com criação e com humor, descobriu a intenção oculta do assassino

através de uma referência que ele fez ao filme Zaroff, o Caçador de Vidas (1932). A partir de então se dedicou obstinadamente à investigação do caso. Aquilo fazia sentido para ele. Não que para os outros não fizesse. Mas ele não colocou o título “detetive” ou “repórter” acima de suas ações. Ele simplesmente queria esclarecer a história. Graysmith foi tão fundo que as tragédias provocadas por Leigh se tornaram a matéria para suas obras. É dele o livro Zodíaco, no qual foi baseado o filme de que falamos. A partir deste fato, conclui que a solução daquele problema exigia uma interação de habilidades, não só a experiência da polícia e o faro do repórter. Mas quem, comandado pela rigidez do “método”, daria ouvidos à mente imaginativa do cartunista?

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JOÃO SALDANHA, UMA VIDA EM JOGO 298


2008

JOÃO SALDANHA, UMA VIDA EM JOGO

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Brasil, 2008 Direção: André Iki Siqueira e Beto Macedo Palavras-chave: futebol, esporte, política, sindicalismo

memória de João Alves Jobin Saldanha, jornalista, comunista, escritor e ex-treinador da seleção brasileira, velho conhecido dos amantes da arte, vale para além do contexto futebolístico. Das disputas entre maragatos e chimangos no Rio Grande do Sul pré-Vargas ao frenesi das areias cariocas, João Saldanha era profundo conhecedor da alma de seu país. Foi militante e dirigente do Partido Comunista Brasileiro nas décadas de 1940 e 1950, tendo participado ativamente da “Greve dos Trezentos Mil” em São Paulo, em 1953. Apaixonado por futebol, foi treinador do Botafogo contando com jogadores do porte de Garrincha, Didi e Nilton Santos. Chegou ao posto de técnico da seleção brasileira, em 1969, cargo que exerceu com louvor. A seleção de Saldanha, com Tostão e Pelé, deu show mesclando jogadores dos times Santos, Botafogo e Cruzeiro. Mas, como ele era exatamente da forma como descrevera o amigo Nelson Rodrigues, “João sem medo”, e como futebol em época de Copa se torna assunto de interesse oficial, no primeiro entrave com o presidente Garrastazu Médici recebeu cartão vermelho da então CBD (Confederação Brasileira de Desportos), hoje CBF (Confederação Brasileira de Futebol), trocando compulsoriamente os gramados pela cabine de comentarista. O episódio em questão ilustra a personalidade irreverente, despojada e, ao mesmo tempo, incorruptível do jornalista.

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A crise começou com o boato de que Médici queria a convocação de Dario José dos Santos, o Dadá Maravilha. Mas o jogador, destituído do perfil das “Feras do Saldanha”, não estava cotado. Sem meias palavras o técnico respondeu ao presidente: “O senhor organiza o seu Ministério e eu organizo o meu time”. Dias antes, em sua passagem pelo México para acompanhar o sorteio das chaves, ele já havia dito à imprensa internacional que havia terríveis torturas no Brasil. Como não era fácil descartar um técnico querido e competente como aquele, a equipe do presidente ainda tentou organizar um jantar com Médici para amenizar o clima, ao que Saldanha respondeu: “Não vou. O cara matou amigos meus. Tenho um nome a zelar”. Treze meses depois, em 17 de março de 1970, Saldanha foi demitido e voltou a sua função de comentarista. O time, bem montado, foi entregue aos cuidados do treinador Mario Zagallo, que faturou o tricampeonato mundial. De volta ao jornalismo, Saldanha brilhou com seu estilo coloquial e irônico. A partir de meados da década de 1980 foi um dos maiores críticos da europeização e mercantilização do futebol. Nunca abandonou a política, sendo um vibrante defensor da redemocratização brasileira. Morreu na Itália, participando da cobertura da Copa de 1990 pela TV Manchete. Sua vida é contada no filme João Saldanha, uma Vida em Jogo, de André Iki Siqueira e Beto Macedo. Vale ressaltar o depoimento da dirigente sindical Maria Sallas Dib no filme, bem como as passagens pelo Sindicato dos Têxteis de São Paulo.

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LINHA DE PASSE

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2008

LINHA DE PASSE

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Brasil, 2008 Direção: Walter Salles Elenco: Sandra Corveloni, Vinícius Oliveira, João Baldasserini, José Geraldo Rodrigues, Kaíque de Jesus Santos Palavras-chave: frentista, motoboy, motorista, mulher, periferia, subemprego, trabalho doméstico

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e em Central do Brasil (1998) Walter Salles fez da fórmula miséria, humanidade, poesia e realidade igual a uma poção de beleza e um convite à reflexão, em Linha de Passe ele forçou a mão numa visão tacanha e preconceituosa sobre a vida na periferia paulistana. Linha de Passe é o típico filme que leva a classe média remediada aos cinemas e arranca dela o clássico comentário: “É um soco no estômago”. Como se um soco no estômago, igual ao que já recebemos aos montes, valesse alguma coisa. Verdade seja dita, trata-se de um filme que aborda a vida com austeridade. A cuidadosa fotografia, engrandecendo pequenos detalhes do cotidiano de uma cidade que nos desacostumamos a contemplar, também é louvável. Além disso, para uma filmografia sobre o mundo do trabalho, é um prato cheio. O trabalho perpassa todo o filme, como uma linha condutora não do enredo, mas da história dos personagens. Há a questão do trabalho da mulher, do subemprego, a busca da profissão, a injustiça social. Há a empregada doméstica Cleuza, há o frentista Dinho, que divide seu tempo entre o culto e o serviço, há o motoboy Dênis, há o aspirante a jogador de futebol Dario e há o menino Reginaldo, que mata aula para procurar, nos ônibus municipais, o pai que não conheceu, motorista de frota. Cada um tem um pai diferente. Todos são filhos de Cleuza, e ela está novamente grávida. Sem dúvida são ingredientes para compor uma obra de grande interesse. Seria de se esperar dela, então, diálogos e reflexões pertinentes, sobressaltos e uma delicada aproximação das pessoas, de modo a captá-las em sua essência, como o cinema sabe fazer muito bem.


Ao que parece Linha de Passe propõe uma ríspida releitura do neorrealismo, corrente artística alternativa que procurava expor cruamente um recorte da realidade e que se consagrou no cinema. Se esta hipótese se verifica, a questão é se o que está representado corresponde mesmo à realidade. É provável que alguns casos reais se espelhem neste filme. Mas trata-se de uma regra geral? O perfil típico do pobre habitante da periferia é mesmo o do jovem alienado, malandro, que busca só se beneficiar? Da família desunida, sem regras e sem valores? Em muitos casos pessoas com dificuldades sociais chegam a este ponto. Em muitos casos pessoas sem dificuldades sociais também chegam a este ponto. Em muitos casos pessoas com dificuldades sociais buscam outros caminhos. A corrupção do caráter não está condicionada ao fato de se ter mais ou menos dinheiro. No filme não há cumplicidade entre as pessoas. A “mãe” também não tem a força de uma mulher provedora de costumes e de ideias. Segundo o filme o serviço de motoboy, por exemplo, está impregnado com a criminalidade, de modo a contaminar todos os que exercem tal função. Não há solução. Também não há um problema definido. As dificuldades pairam no ar. Felizmente isto não é tudo o que se vê nos cantos remotos da imensidão urbana. No cinema, a novidade seria mostrar como aqueles que vivem longe dos centros urbanos, imersos nas dificuldades e nas carências levam com boa vontade a vida e procuram fazer o melhor. Isto sim valeria a pena.

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DÚVIDA 304


2008

DÚVIDA (DOUBT)

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EUA, 2008 Direção: John Patrick Shanley Elenco: Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams e Viola Davis Palavras-chave: dogma, religião, preconceito

oda instituição social tem suas regras. Seja religiosa, partidária, civil, estudantil ou sindical, a institucionalidade contempla, de uma forma ou de outra, estrutura, hierarquia, normas e valores. Um partido político, por exemplo, tem uma organização reconhecida por seus militantes. Esta organização é feita de acordo com a visão de mundo defendida pelo partido, suas divergências quanto à ordem social e de suas propostas de mudança. Comumente estas diretrizes se expressam como se fossem verdades absolutas, sem espaço para crítica ou dúvida. Ou seja, tornam-se dogmas. As instituições religiosas se utilizam, de forma emblemática, de tais dogmas. Sua rigidez e seus preconceitos se justificam em argumentações espirituais, subjetivas, sem necessariamente ter alguma lógica. Por isto na Igreja Católica o embate entre setores conservadores e setores progressistas, voltados a causas sociais, é muito acirrado e, em muitos momentos, ditam os rumos não apenas da própria organização, mas também da cultura ocidental. O filme Dúvida traz o debate sobre conflitos na Igreja entre diferentes visões de mundo. O que foi destacado em sua campanha publicitária foi a questão da pedofilia. Esta também é uma questão da maior seriedade e que deve ser combatida. Mas, ao assistir o filme, fica a impressão de que ele reforça muito mais a questão ideológica do que a do desvirtuamento moral. O padre irrita a diretora por quebrar a aura de autoridade que, segundo ela, ele deveria ostentar. Em seus sermões e em suas falas ele defende uma visão pro-

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gressista da Igreja, afirmando que a instituição deveria ser mais humana e menos autoritária, adequando-se ao tempo moderno. A diretora, por sua vez, defende manter os padrões rígidos da aristocracia, e que a modernidade é pura abstração a ser combatida pelos princípios bíblicos. Mas, para defender seus ideais, ela acha justo quebrar as regras. Afinal, até o trabalho sujo deve ser feito para zelar por aquilo que ela acha que é a vontade divina. Muitas instituições sociais estão também contaminadas por dogmas que travam o debate e o avanço das organizações. Tal qual o filme, muitas destas crenças fizeram sentido em outros tempos, mas não acompanharam o rumo da história. Tornaram-se então discursos idealistas e dogmáticos, que não convivem com as dúvidas.

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GRAN TORINO

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2008

GRAN TORINO (GRAN TORINO)

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EUA, 2008 Direção: Clinton Eastwood Elenco: Clint Eastwood, Bee Vang, Ahney Her, Christopher Carley Palavras-chave: aposentado, diversidade étnica, gangsterismo, metalúrgico, Guerra da Coreia, indústria automobilística, xenofobia

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m suas entrelinhas, o filme vai além da história de um aposentado rabugento, ex-operário da indústria automobilística e ex-combatente da Guerra da Coreia (1950-53) que, com a recente morte da mulher, se vê obrigado a lidar com os próprios filhos e com os vizinhos orientais. Quem leu o romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, pode se lembrar da angústia do rude Paulo Honório, que, ao fim da vida, sente o peso de seu passado. Formado em uma cultura machista, Honório aprendeu a ser “homem” à moda antiga, conforme o atraso cultural lhe ensinou. Seu desgosto se dá por sua inabilidade de lidar com as pessoas e, sobretudo, consigo mesmo, com suas emoções e com seus sentimentos. Embora, a diferença entre Walter Kowalski e Honório seja grande, foi nas resenhas sobre São Bernardo que encontrei o fio da meada para pensar em Gran Torino. Sobre o protagonista do filme, o macho provedor, que se vê na condição de lidar consigo mesmo, também pesam as histórias do passado. A figura do aposentado, ex-metalúrgico e veterano de guerra Kowalski, é moldada por uma trajetória de trabalho duro, contínuo e necessário. Seus modos, sua expressão facial, sua postura física, seus ensinamentos, tudo está orientado pela lógica de quem se formou na vida por meio do trabalho. Desta forma Gran Torino trata da vida e da subjetividade de um trabalhador. Diferente de Paulo Honório, Walter Kowalski busca seu próprio resgate. E descobre, de forma inusitada, que ainda pode ser útil ao proteger a família de descendentes da cultura hmong, etnia do Sudeste Asiático, do assédio das gangues do bairro. Surge aí outra importante mensagem do filme: a de que o homem se salva quando vence seus preconceitos, abre-se à diversidade étnica, cultural, social etc., e passa a contar com o outro para dar sentido a si mesmo.


O EMPREGO 309


2008

O EMPREGO (EL EMPLEO)

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Argentina, 2008 Direção: Santiago ‘Bou’ Grasso Palavras-chave: alienação, cotidiano, emprego

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Emprego é um curta-metragem argentino, de animação, que trata da relação das pessoas com o trabalho. Apesar de já ter sido premiado mais de cem vezes ao redor do mundo, o filme do diretor Santiago ‘Bou’ Grasso ficou mais conhecido recentemente graças à divulgação nas mídias sociais. Sobre ele é preciso destacar dois aspectos. Primeiro: trata-se de um filme argentino. Nossos hermanos têm uma produção cinematográfica invejável, bons roteiros e atores carismáticos, como Ricardo Darín. Não é nada estranho saber que mandam bem em outros formatos, como animações e curtas. Segundo: a animação é um bom exemplo da possibilidade de assistir bons filmes na internet. Os produtores independentes conseguem produzir e divulgar trabalhos audiovisuais com orçamento menor do que os gigantes de Hollywood, mas não chegam às salas de exibição dos cinemas. A solução encontrada é deixar os filmes disponíveis ao público pela internet. Talvez falte estímulo para que as pessoas assistam mais produções independentes por meio da internet. A indústria da música precisou reinventar a forma de produção e venda para não desaparecer. É possível que o cinema seja empurrado para um caminho semelhante em breve. Sobre o instigante O Emprego a sinopse dá pistas do que esperar: “Um homem realiza a sua rota habitual para o trabalho, imerso em um mundo onde a ‘utilização’ de pessoas é uma coisa diária”. Assim que se dá play no vídeo, surgem provocações poéticas. É provável que se pense no dia a dia no trabalho e como o ofício é útil para outras pessoas.


Aliás, como o trabalho do outro é valorizado e entendido? O desejo que as pessoas, pares de profissão ou o chefe percebam o trabalho de cada um é algo comum para muitos, mas nem sempre se dá conta da importância do trabalho alheio. No curta não há trilha sonora e diálogos. No entanto, a sonorização do alarme do relógio, dos passos apressados do personagem atrasado para pegar o ônibus e o som do sobe e desce do elevador garantem ritmo para o filme. O desconforto desse ritmo pode ter sido proposital. Pois é, o trabalho de cada um pode ser simples ou encarado pelo trabalhador como simples, mas com certeza movimenta a vida de outras pessoas e tem valor, sim. Ou se acha que não tem valor? Afinal, existem outros modos mais saudáveis de relação com o trabalho no capitalismo? Talvez surjam perguntas semelhantes ao ver O Emprego. Alexandre de Mello

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O LUTADOR 312


2008

O LUTADOR (THE WRESTLER)

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EUA, 2008 Direção: Darren Aronofsky Elenco: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood Palavras-chave: discriminação, esforço físico, força de trabalho

proposta de O Lutador não é falar da liturgia da luta livre, como foi com a sequência de Rocky Balboa e com The Champ, o dramático O Campeão, obras que retratam o boxe de maneira extremamente romanceada. O Lutador mostra a luta no dia a dia da vida, mais do que nos ringues. Trata-se da história de Randy “The Ram” Robinson, lutador profissional que fez muito sucesso durante os anos 1980 e, vinte anos depois, amarga ter de participar de lutas encenadas para conseguir algum dinheiro, apesar de seu corpo de cinquenta anos de idade já não aguentar. Randy sofre um ataque cardíaco e o médico o proíbe definitivamente de lutar. Além de seus colegas de trabalho, ele cultiva uma amizade (ou algo mais) com a stripper Cassidy. Devido ao diagnóstico médico passa a trabalhar em um balcão de frios de um supermercado. Neste esquema de total subordinação ele conclui que aquele não é o seu lugar e que, a despeito de seu frágil coração, deve voltar para os ringues. Em suma, o filme mostra crua e ordinariamente como se dá a luta livre como profissão. Os lutadores são, em geral, pessoas pobres que se entendem bem, as feridas existem, mas não são como parecem na hora do ato. Elas se acumulam ao longo dos anos de trabalho, degenerando pouco a pouco o corpo daqueles que o executam. O filme mostra, principalmente, que a data da validade desta profissão é muito curta. Com o envelhecimento, os praticantes são naturalmente excluídos do mercado.

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O uso do corpo como instrumento de trabalho é retratado na pele de Ram e da prostituta Cassidy. Dentro disto, surgem velhas questões da nossa sociedade mal resolvida: a valorização da aparência em detrimento da essência, da juventude em detrimento da maturidade e da experiência, o descarte, a decadência e a exclusão. Tanto a prostituição como a luta livre são práticas que marcam o corpo físico e causam estigma social. Neste sentido são exemplos extremos de como aqueles que vendem a força de trabalho, no sistema capitalista, é consumido por esta estrutura. Desta forma, pode-se dizer que

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o corpo doente e machucado do dócil e amigável Randy, o qual ele expõe continuamente à agressão, simboliza o sacrifício do corpo e do espírito pelo trabalho. Deslocados do contexto de apelo sensorial, a força física de Randy e a sensualidade de Cassidy se traduzem em fragilização humana. São corpos tristes que se expõem e se vendem. Vale ressaltar que o ator Mikey Rourke, através da sua própria tragédia pessoal, conseguiu mostrar o drama do personagem Randy. Ele teve o mérito de transformar sua fragilidade em arte, dando pujança ao filme e força a sua capacidade de atuar.


SEX AND THE CITY – O FILME 315


2008

SEX AND THE CITY – O FILME (SEX AND THE CITY: THE MOVIE)

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EUA, 2008 Direção: Michael Patrick King Elenco: Sarah Jessica Parker, Kim Cattrall, Kristin Davis, Cynthia Nixon, Chris Noth, Jennifer Hudson, Candice Bergen Palavras-chave: consumismo, liberalismo, trabalho abstrato

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aseado em uma série de televisão de mesmo nome, Sex and the City dá sequência às histórias sobre as relações íntimas e o modo de vida de quatro amigas novaiorquinas na casa dos quarenta anos de idade. Como não poderia deixar de ser, de acordo com a série o filme também trabalha com estereótipos. Carrie Bradshaw é a protagonista. Ela escreve uma coluna em um jornal em Manhattan denominada O Sexo e a Cidade. Vítima da moda, gasta fortunas com sapatos e roupas de grife. Samantha Jones, que trabalha como relações-públicas e promotora de eventos, é a liberada do grupo. Bela e sedutora, Samantha personaliza o culto ao corpo e o vale tudo pela eterna beleza e juventude. Charlotte York, a romântica, trabalha em uma galeria de arte e é a mais conservadora. Por fim, Miranda Hobbes é uma advogada bem-sucedida, formada pela Universidade de Harvard. Produzido exatamente depois de dez anos do início da série, o filme faz jus à data, mostrando a real passagem deste tempo para aquelas mulheres. Depois de idas e vindas, o amado Big decide se juntar oficialmente a Carrie. Mas a suntuosidade dos preparativos afugenta o noivo (despreparado para assumir compromissos afetivos). Abandonada no altar Carrie vive sua tragédia e parte, com suas três amigas, para a viagem ao México que seria sua lua de mel. O México, a Califórnia, o Brasil, não importa. Nunca, em Sex and the City, os lugares têm implicações políticas ou sociais. Tudo é glamour. O filme faz uma ótima caracterização da rapidez, diversidade e futilidade da vida em Nova Iorque. Conta, também, com apuradíssimo senso de moda, o que transformou as personagens em referências para as mulheres de sua geração.


Com a intensão de apresentar o comportamento típico da década de 2000, opõe-se ao tradicionalismo do casamento e da família burguesa. Segundo o modelo proposto, a vida das pessoas é perpassada pela liberdade e pela independência em todos os setores: afetivo, social e profissional. Tais aspectos são colocados todo o tempo como desafio e como prêmio. O desafio de ser responsável por si, o prêmio de não ter de responder a ninguém. Apontando a quebra de padrões o filme, subliminarmente, pressupõe a anulação do papel do Estado, das instituições, da coletividade e, consequentemente, dos movimentos sociais. Vale ressaltar que o problema não é o mundo da moda, enfatizado no filme. A moda em si, à parte seus agentes dominantes, que muitas vezes a subvertem apoiando-se na criação de preconceitos, em contradições sociais e em desastres ambientais, é beleza, harmonia, arte e cultura. A moda contempla a dimensão subjetiva do ser humano. Ela define identidades, reforça personalidades, estabelece comunicação e traz uma inspiração à rebeldia. Interessa aqui chamar a atenção para o fato de que, ao mesmo tempo em que o filme embala nesta fábula de cores e emancipação, ele impinge a essência da teoria do livre mercado. Sex and the City é uma vitrine do liberalismo em seu grau mais avançado. A liberdade da mulher se traduz em liberdade de mercado e em supremacia do capital. Perante o dinheiro todos somos iguais. No universo deste filme não há o trabalhador comum nem o exercício da produção fabril, que sustenta o consumo apresentado. Os objetos surgem prontos como que se tivessem sido geridos em outro mundo. O terceiro ou quarto mundo, talvez.

O capital, que permite as ostensivas compras, procede do trabalho abstrato, radicalmente liberal. A flexibilidade, informalidade e autonomia fluem sem obstáculos. Mas isto não pode ser um modelo universal. Onde o capitalismo não se desenvolveu plenamente a informalidade se traduz em precariedade. Sex and the City é um sonho liberal, que nos inspira mas que não funciona como modelo de sociedade.

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WALL-E

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2008

WALL-E (WALL-E)

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EUA, 2008 Direção: Andrew Stanton Palavras- chave: degradação ambiental, meio ambiente, tecnologia

m dia o consumismo e a produção de lixo chegarão, enfim, ao limite do insuportável. Esta é a premissa da qual parte a história do romântico robozinho WALL-E. Enquanto o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço remontava aos primórdios do trabalho humano na transformação da natureza, WALL-E, a seu modo, alerta para as consequências da falta de ponderação sobre os limites desta transformação. E coloca isto de forma simples e didática. Em sua fábula, o mundo, vítima da selvagem competição econômica, se encontra subordinado aos desmandos de uma única empresa, a BNL. Surge, já aí, uma sutil referência ao processo real de trustes, holdings e cartéis, que monopolizam alguns setores e, por vezes, acabam até por excluir nações inteiras da econômica global. Sem alternativas, frente ao lixo que devasta o planeta Terra, a empresa manda a humanidade para o espaço a bordo da nave Axiom, deixando máquinas identificadas como WALL-E (Waste Allocation Load Lifters – Earth-Class, em português Levantadores de Carga para Alocação de Lixo – Classe Terra) para limpar o planeta. A viagem deveria durar poucos anos. Logo que a limpeza fosse concluída e o mundo se tornasse habitável, todos voltariam. Mas a história começa após setecentos anos da partida da nave para o espaço. O protagonista da animação é o único dos robôs deixados que consegue se manter. Ele vaga pelo planeta nestes sete séculos realizando a tarefa para a qual foi programado: compactar o lixo. Seus semelhantes sucumbiram às pútridas condições do meio. Sozinho na Terra, o pequeno WALL-E desenvolveu grande interesse pela cultura de um povo que nunca encontrou, e respeito pela vida que conhece apenas na forma de um eventual broto ou de sua baratinha de estimação.

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Assim como um operário ele cumpre seu expediente, acorda cedo e tem seus hobbies. Ele coleciona artefatos humanos que encontra durante o trabalho, como um pedaço de plástico bolha, um cubo mágico, um isqueiro, uma embalagem de um anel de diamantes (o qual ele imediatamente joga fora), um aparelho de VHS e uma fita de seu filme favorito, Alô, Dolly, de 1969. Até que um dia a imensa nave Axiom deixa na Terra um novo e sofisticado robô: EVA (Examinadora de Vegetação Alienígena – EVE em inglês). Sua diretriz é procurar sinais que mostrem que a vida se tornou novamente possível. Enquanto a expressão de WALL-E contrasta com sua aparência de lataria, EVA tem um desenho arrojado, inspirado no estilo dos tocadores de MP3 iPod (a Pixar chegou a pedir assistência ao designer da Apple, Johnny Ive, para desenhá-la). Quando se vê diante de EVA, WALL-E busca estabelecer um relacionamento que idealizou a partir de seu “modelo” de interação humana: a sequência musical Put On Your Sunday Clothes, do filme Alô, Dolly. Animado com a visita o robô mostra a ela seu pequeno mundo. EVA é atraída pela chama do isqueiro, mas o objeto que muda o rumo da história é o pequeno caule de uma plantinha em crescimento, descoberta e cultivada pelo sensível amontoador de lixo. De volta à estação espacial, a nova robô leva consigo a prova cabal de que há um sinal de vida no planeta devastado. Desiludido pela partida de sua amada, WALL-E agarra-se à nave que a transporta para segui-la. A história muda do cenário apocalíptico do fim do mundo para o espaço moderno, artificialmente colorido e completamente tecnológico, da nave que carrega a humanidade. Um detalhe interessante é que, de acordo com a tendência mundial ao aumento da obesidade, o filme retrata os humanos do futuro como criaturas que não sabem mais andar, deformadas pela gordura e pelo sedentarismo.

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Desdobra-se, então, o embate entre o comandante que deseja voltar ao planeta e o computador central, que tem o controle da nave e não quer que as coisas mudem (uma referência a Hal-9000, citando 2001). No fim, o amor entre WALL-E e EVA consegue contornar os percalços e a pequena planta viabiliza a recolonização da Terra pela humanidade. A devastação apontada no filme, como conse­ quência de um sistema de produção desregulado e voltado a sua própria reciclagem – não às pessoas que o sustentam – não é só a devastação física da natureza. É também a deformação do corpo, dos ímpetos construtivos e da capacidade humana de fazer a história avançar. A barbárie, neste caso, é a apatia e a inatividade – a falta de sentido sobre a existência e sobre a vida. Muitas teorias já foram elaboradas sobre as possíveis superações do sistema político/econômico, com sua lógica de produção, consumo e acumulação. Incitar este debate é fazer pensar em nossa própria condição. Mesmo no cenário aterrador do fim dos tempos o romantismo sobrevive. E mesmo a menor forma de vida é capaz de dar força, esperança e reorientar o rumo da humanidade. Para mostrar a importância da vida o filme coloca-a em um cenário de artificialidade e destruição, delicada e incipiente, sob os cuidados daquele que é capaz de pressentir seu valor. Este não é um filme catastrófico. Ao contrário: ele mostra o fim para ressaltar o recomeço e a capacidade de recomposição.


À PROCURA DE ERIC

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2009

À PROCURA DE ERIC (LOOKING FOR ERIC)

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Bélgica/Espanha/França/Itália/Reino Unido, 2009 Direção: Ken Loach Elenco: Eric Cantona, Steve Evets, Lucy-Jo Hudson Palavras-chave: carteiro, comunidade, esporte

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m tempos de individualismo, a solidariedade parece algo inusitado. E o esporte é algo capaz de inspirar e promover um bom convívio social. Comunhão e esporte são preciosos trunfos de qualquer trabalhador. Dois Erics de personalidades opostas se encontram neste filme. O famoso jogador francês Eric Cantona, que ganhou fama jogando na Inglaterra pelo Manchester United, e o frágil carteiro, abalado pela síndrome do pânico, Eric Bishop. Eric Daniel Pierre Cantona interpreta a si mesmo. O filme mostra sua relação com um fã fictício, o carteiro Bishop. O francês, ou Rei Eric, como os torcedores dos Red Devils cantam até hoje, une qualidade técnica, personalidade e carisma. Altivo, ele, que foi um dos principais astros do futebol europeu, tem grande inclinação para as artes. Além de jogador e ator chegou a pintar telas com expressões marcantes, coloridas e mensagens agressivas. Muito diferente de seu xará, o tímido e inseguro Bishop. Eric Bishop é aquele que vacila diante de problemas domésticos. Aquele que desenvolveu ao longo de sua vida a “síndrome do pânico” e, consequentemente, enfiou-se em situações constrangedoras. Eric Bishop só encontra conforto na companhia dos amigos. Ao contrário do ídolo, Bishop é o homem comum. Mais do que isto, ele está um grau abaixo da média. É um pobre homem comum que vive sem amor, com dois enteados abandonados pela mãe, sua ex-mulher. Sua personalidade frágil não permite que faça valer as regras de seu lar, resultando, enfim, no envolvimento de um dos meninos, o mais velho, com uma gangue de traficantes. Eric, então, é posto à prova. Ele vê o menino, que criou como filho, à beira da ruína, antes mesmo de ser “alguém na vida”. Na confusão de tentar salvá-lo Eric se perde e conso-


me a maconha ilícita, objeto da transgressão daquele que tencionava ajudar. Ao se perder e chegar ao ponto de transgredir a ordem, Bishop tem a visão do ídolo Cantona, desprendendo-se do pôster que ostenta em seu quarto como um alter ego, dando-lhe coragem para buscar a melhor solução para salvar a si e aos seus. O encontro esotérico faz aflorar os mais profundos anseios de Bishop. Mais do que a importância de realizar atos heroicos, Cantona enfatiza a importância de buscar ajuda e de confiar nos amigos. Para ilustrar sua ideia diz que o momento mais brilhante de sua carreira não foi um gol (objetivo de qualquer jogador), mas um lindo passe para um de seus colegas no Manchester United que termina em gol. “É preciso confiar nos amigos de sua equipe”, profetiza o ex-jogador. Uma ode à vida social, o filme destaca as dificuldades cotidianas de diversos trabalhadores, o tráfico de drogas como principal veículo corruptor dos jovens na atualidade e a saída com base na amizade e na ajuda mútua. Mas, mais do que falar de como trabalhadores se organizam e resolvem seus problemas, À Procura de Eric fala do futebol como fonte de inspiração. Fala, enfim, do futebol como um forte agente social, com larga dimensão subjetiva, capaz de canalizar os ânimos e de elevar os espíritos dos homens em sociedade.

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UP – ALTAS AVENTURAS


2009

UP – ALTAS AVENTURAS (UP)

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EUA, 2009 Direção: Pete Docter Palavras-chave: amizade, aposentadoria, envelhecimento da população

m O Mundo Perdido, ficção de 1912 de Arthur Conan Doyle, os cientistas e concorrentes professor Challenger e Arthur Summerlee partem para uma viagem fantástica para ver se existem dinossauros na América do Sul. Eles chegam a uma floresta exuberante e misteriosa, cheia de seres selvagens e mitológicos e não encontram o que procuravam. Para sair de lá, sobem em um balão, mas enfrentam uma forte tempestade. O balão cai no planalto que esconde o “Mundo Perdido”, onde dinossauros e animais exóticos vivem livremente. Mais de um século depois a animação UP – Altas Aventuras resgata elementos da ficção de Doyle através da história de um idoso estadunidense. A casa do simpático personagem Carl Fredricksen, suspensa por milhares de bexigas coloridas, sobrevoando a selva de pedra em meio aos raios e trovoadas, arrastada no cume do Salto Angel, o mais alto do mundo, no Sudeste da Venezuela, ilustra situações extremas: lar e aventura, nostalgia e impulsividade. A companhia inicialmente indesejada do menino Russell, de oito anos de idade, dá o ar familiar da história. Juntos eles devem encarar aventuras na selva, combater inimigos e salvar os injustiçados. É o que a empresa de animação por computação gráfica da The Walt Disney Company, a Pixar, faz de melhor: criar empatia de modo a nos introduzir em qualquer história, por mais inusitada que ela seja. E o elemento aqui usado para nos aproximar da história é a trajetória de vida do senhor Fredricksen, antes e depois do momento em que ele, aos 78 anos, se abate profundamente por ter perdido sua amada companheira de tantos anos. Decompondo a aventura de Doyle, de 1912, UP – Altas Aventuras inova promovendo um retorno a uma relação básica e elementar.

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Centrar foco neste senhor, com todos os seus rituais, suas rabugices e seus hábitos, é o elemento. Um velhinho num grande produto da Pixar não é só um velhinho. Ele é alvo de atenções, de debates, ele inspira ideias e olhares. O que interessa aqui é ressaltar que o velhinho que protagoniza uma história não é mais o idoso debilitado e problemático. Está de acordo com a tendência mundial de que as pessoas vivem mais, e podem viver muito bem estes anos a mais. Enfatizando os hábitos do sistemático senhor Fredricksen, o filme mostra a perda de referências com o fim da atividade profissional e a morte da mulher. As excentricidades deste senhor se acirram quando ele entra nesta nova e misteriosa fase da vida. Por isto ele tem a ideia de fazer de sua casa um transporte aéreo para a ilha das cachoeiras, na Venezuela. Não é um filme que fala diretamente sobre o tra-

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balho. Mas chama a atenção para o fato de que as pessoas estão vivendo mais tempo e com boa disposição e saúde. Ao perder o chão, coloca-se para Fredricksen a questão: o que fazer agora? É uma pergunta que cabe à sociedade, que deve se ajustar a estes novos tempos de longevidade: o que fazer com e para este novo e crescente contingente de pessoas, potencialmente ativas, com mais de sessenta e cinco anos? Pode-se ainda fazer uma analogia entre o mundo perdido e a etapa que se inicia para a trajetória de Fredricksen, na qual ele se vê tendo que se refazer e buscar novos sentidos, como a amizade com o pequeno Russell. O fim da vida produtiva, imposto pelo mercado de trabalho, pode ser um bom recomeço. Essa é uma realidade cada vez mais comum. E é a melhor saída do mundo perdido.


AMOR SEM ESCALAS

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2009

AMOR SEM ESCALAS (UP IN THE AIR)

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EUA, 2009 Direção: Jason Reitman Elenco: George Clooney, Vera Farmiga, Anna Kendrick Palavras-chave: crise de 2008, desemprego

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mbora tenha de lidar com problemas dos outros, Ryan Bingham (Clooney) adora a liturgia de seu trabalho. Ele passa muito mais tempo viajando do que em seu apartamento. O movimento é sua terra firme, sua segurança e sua identidade. E, nesta transitoriedade, ele sabe como ninguém o valor da presença física nos momentos difíceis. Bingham é um conselheiro de transições de carreira. Ele é contratado por empresas para demitir funcionários. Conselheiro de transição é apenas mais um nome que dá o tom de cinismo do filme. Com a crise deflagrada em Wall Street, em 2008, muitos trabalhadores foram para a rua. Mas o desemprego é aqui algo circunstancial. O filme não se aprofunda nesta questão. Ele está mais para a psicologia do ato de demitir. O filme coloca novas relações de trabalho, delineadas pela modernidade tecnológica, capitalista. O filme vai mais longe e coloca nisso contradições entre a subjetividade de cada um e os meios cada vez mais frios e impessoais destas novas relações. Em certo momento a empresa para a qual Bingham presta serviço decide experimentar a demissão via videoconferência proposta pela recém-formada Natalie. Mas ele acredita em seu trabalho e defende que existe um método apropriado para lidar com as pessoas no momento de sua demissão. Por isto valoriza o contato, a presença, na hora da verdade nua e crua. Ele é um incentivador, não um derrotista e protesta quando o chefe começa a flertar com o uso fácil, barato e confortável da videoconferência. Paralelo a isto Bingham é cobrado por não ter o que o senso comum costuma chamar de “vida normal”. Mas ele quebra dogmas e rompe com o estereótipo do executivo frio e egoísta. Se o seu trabalho parecia cínico e desumano ele embutia naquilo um tanto de verdade e de pessoalidade. Se em sua vida ele parecia um homem autossuficiente, quando se apaixonou ele assumiu seu sentimento. A vida de Ryan era, para ele, normal. Neste sentido o filme aborda o conceito de “vida normal” no contexto da emergência de novas relações de trabalho.


BAARÌA – A PORTA DO VENTO

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2009

BAARÌA – A PORTA DO VENTO (BAARÌA)

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Itália/França, 2009 Direção: Giuseppe Tornatore Elenco: Francesco Scianna, Margareth Madé, Ángela Molina, Lina Sastri Palavras-chave: comunismo, história, Segunda Guerra Mundial

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onhecido pelo clássico Cinema Paradiso, de 1988, o cineasta italiano Giuseppe Tornatore retoma o mesmo tom nostálgico e sentimental em um filme autobiográfico, que perpassa quarenta anos de história. Em 1988 ele retratou a paixão pelo cinema. Neste, de 2009, ele releva sua paixão pela política e pela sua terra natal, a Baarìa, subúrbio de Palermo, na Sicília, Itália. Na década de 1930 o menino Peppino Torrenuova, da vila rural de Baarìa, cresce junto com sua terra, que ganha construções e organização urbana. Neste processo ele vivencia o drama da Segunda Guerra Mundial, com a emergência do fascismo na Itália e a ação do Partido Comunista Italiano: a luta pela reforma agrária, a organização dos operários, reuniões no Comitê Central e a visita a Moscou, numa época em que havia esta integração promovida pela Internacional Comunista. Sedutor, o filme trata de maquiar temas polêmicos ou debates acalorados, tendo sido acusado de anticomunista e de suavizar os graves conflitos como o analfabetismo, a pobreza e o papel da Democracia Cristã, e do peso da máfia, na Sicília. Além disso, como em A Vida é Bela (Roberto Benigni), o diretor faz menção ao exército estadunidense como agente de libertação da Sicília na época da guerra. Entretanto, o filme retrata a vida de trabalhadores simples, incorporando-a às transformações que vivemos no período em questão. Em Baarìa, a história corre como o vento.


BEM-VINDO

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2009

BEM-VINDO (WELCOME)

A

fraternidade e o amor trágico, shakesperiano, conferem um tom humanista à desumana e árida re­a­lidade das migrações clandestinas, de países da África, Ásia e Leste Europeu para a Europa Ocidental. Partindo de uma questão pessoal – o amor do jovem curdo Bilial por uma jovem iraquiana que vive com sua conservadora família na Inglaterra, Bem-Vindo aborda a questão dos imigrantes clandestinos. A amizade inusitada que surge entre Bilial e seu instrutor de natação, Simon, é o que faz de Bem-Vindo uma história interessante. A mobilidade do trabalho é um dos temas mais caros ao capitalismo. É um de seus vieses mais nefastos. Se por um lado o sistema impõe, injustamente, a globalização do trabalho e a individualização da riqueza, cercando com muros seus centros de prosperidade diante dos trabalhadores explorados, por outro estes centros se beneficiam destes imigrantes que se dispõem a exercer funções rejeitadas pela população “bem nascida”. De forma crítica, Bem-Vindo usa o pretexto do amor e da amizade para revelar a subversão dos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, proclamados na Revolução Francesa. Mas, ainda que com uma França contaminada cada vez mais pela xenofobia e pelo fascismo, muitos de seus filhos ainda se lembram da simbologia das cores de sua bandeira.

França, 2009 Direção: Philippe Lioret Elenco: Vincent Lindon, Firat Ayverdi, Audrey Dana Palavras-chave: migrações, mobilidade do trabalho

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CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR 333


2009

CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR (CAPITALISM, A LOVE STORY)

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EUA, 2009 Direção: Michael Moore Palavras-chave: crise de 2008, especulação imobiliária, sistema financeiro

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rrocho da política fiscal, aplicado a toque de caixa a partir da administração Ronald Reagan, falta de regulação do Estado e incentivo às operações do sistema financeiro, carta branca para as grandes corporações, especialmente os bancos, enfim, quais foram as razões para o colapso do sistema financeiro em 2008? Para Michael Moore o capitalismo estadunidense ficará marcado e será lembrado pelas tristes cenas de famílias sendo despejadas de suas casas, por obra e ação dos bancos, devido à crise imobiliária. E também por um tipo de trabalho que se beneficiou desta situação: os abutres, especuladores oportunistas (segundo o próprio corretor) que se aproveitam da baixa dos imóveis para comprá-los barato e obter lucros ao vendê-los depois. É o capitalismo! A crise remonta aos tempos áureos, do alto padrão de vida da classe média na década de 1960. Naquela época a taxa de impostos paga pelos trabalhadores era altíssima, e mesmo assim o consumismo era intenso. Com o dinheiro daqueles impostos o governo construiu represas, pontes, estradas, hospitais e investiu em tecnologia. Isto era possível porque os salários eram verdadeiramente altos e o serviço público funcionava. Até que entra em cena, vindo diretamente dos filmes de faroeste de segunda linha, o cowboy Ronald Reagan. O homem de Wall Street. Na Presidência a partir de 1980, Reagan consolidou a parceria com a Bolsa de Nova York, e o país passou a ser governado como uma empresa. O presidente atendeu aos apelos dos ricos e reduziu drasticamente os impostos. Numa feroz ofensiva neoliberal ele trabalhou pela diminuição do papel do Estado e acirrou a livre concorrência.


Dados do desastre promovido por esta gestão são chocantes: alta de falências pessoais, prisões, casos de depressão e a diferença em torno de 649% entre os salários dos operários e dos executivos. E, desde então, defende o diretor, por baixo do desvairamento dos corretores a crise especulativa, que estourou em 2008, estava anunciada. Espantosamente o filme revela que, entre congressistas, donos de bancos e credores, muitos multiplicaram suas riquezas com a crise, e insinua que a aparente despreocupação do ex-presidente George W. Bush residia no fato de que a crise teria sido articulada pelo seu governo para beneficiar bancos e empresas. Disso tudo Michael Moore tira uma conclusão definitiva: o capitalismo é um mal e, por isto, não pode ser regulamentado. Tem que ser eliminado e substituído por uma democracia que beneficie a todos.

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GIGANTE 336


2009

GIGANTE (GIGANTE)

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Uruguai/Argentina/Alemanha/Espanha, 2009 Direção: Adrián Biniez Elenco: Horacio Camandule, Leonor Svarcas Palavras-chave: greve, modo de via, operários, sindicato, vigias

m 2001 o público do festival Rock´n´Rio, que aguardava o show da banda Guns´n´Roses, reagiu mal ao “ter que” assistir à apresentação do músico Carlinhos Brown, que recriou um cenário folclórico para suas músicas que combinavam ritmos regionais. A despeito da boa qualidade, a apresentação sofisticada e conceitual do artista parecia fora de contexto naquela ocasião em que a massa se mobilizara para ver o rock do Guns. Quem era aquela plateia ávida pelo rock? Cobradores, metalúrgicos, operadores de telemarketing, vendedores, garçons, desempregados, estudantes e vigias, como Jara, o Gigante, do filme uruguaio. No filme a timidez de Jara não combina com seu tamanho avantajado nem com o rock pesado da banda Biohazard, que ele exibe em sua camiseta. Assim, Gigante brinca com o contraste entre a imponência física de Jara, seu vigor e intensidade, com o pouco espaço e com o tédio em que ele vive e trabalha. Em sua condição de operário o gigantismo de Jara é enquadrado no pouco que cabe a sua classe. A partir deste pouco ele sustenta muitos sonhos, fantasias e aspirações, o que lhe garante charme e leveza. Jara é jovem, é camarada, tem um bom coração. Ele gosta de rock pesado, assiste TV nas horas vagas. É atento aos detalhes. Sendo atento, descobre a faxineira Julia através das câmeras de vigilância do mercado em que trabalha. Apaixona-se e logo sua vida passa a girar em torno da rotina dessa mulher e pelo desejo de conhecê-la.

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A convivência com os colegas segue tranquila, morna e engraçada até o fim, quando a situação da empresa aperta e os trabalhadores pressentem tempos difíceis. A greve que sacode o filme, já no seu fim, leva Jara a tomar novos rumos, saindo da rotina de sua vigilância. É um filme muito interessante. Que trata com graça e romantismo a vida cotidiana de trabalhadores. Aquele tipo de função, que prevê microrrelações de poder, se assenta em uma alienação essencial do trabalhador

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com seu trabalho. O contraste das imagens do mercado, frequentado por “clientes” com seus “bastidores”, onde ficam os trabalhadores, é simbólica. Enquanto as primeiras são harmoniosas, limpas e brilhantes, as segundas são escuras, precárias, descuidadas. Ainda assim o filme indica que aqueles trabalhadores buscam levar a vida da melhor forma. Muitas vezes isto se traduz no chamado “tirar leite de pedra”. São processos e delicadezas que revelam o que de fato é gigante.


INVICTUS

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2009

INVICTUS (INVICTUS)

D

EUA, 2009 Direção: Clint Eastwood Elenco: Morgan Freeman e Matt Damon Palavras-chave: apartheid, esporte, política internacional, racismo

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urante quase todo o século XX a sociedade sul-africana ficou marcada pela segregação racial, segundo a qual os negros não podiam frequentar os mesmos lugares que os brancos. Além disso, os negros eram oficialmente proibidos de pertencer às seleções nacionais de qualquer modalidade esportiva. Por isto a África do Sul foi banida do COI (Comitê Olímpico Internacional) e da Fifa, por João Havelange. Fato grave visto que o esporte é cultuado pelos sul-africanos, sendo as modalidades mais praticadas naquele país o rugby, o críquete, o futebol e o boxe. Associado à dominação branca – racista e repressora – o rugby, durante o apartheid, era praticado pelos brancos, e os negros se restringiam apenas a poucas ligas. Desta forma a International Rugby Board (IRB), representada, sobretudo, pelos “Springboks”, tornou-se referência esportiva durante a política de segregação interna. O líder africano Nelson Mandela foi preso na vigência do apartheid, em agosto de 1962. Sua pena foi estendida, em 1967, à prisão perpétua. Ele só foi libertado em 11 de fevereiro de 1990, depois de 27 anos, quando Frederik Willem de Klerk ocupava a Presidência de seu país. Foi uma data grandiosa, representada com muito simbolismo na primeira cena do filme Invictus. Ela mostra a comitiva que festeja a libertação de Nelson Mandela passando entre dois campos: de um lado crianças negras jogam futebol e, do outro lado, um time adulto de brancos treina rugby. Apesar do fim do apartheid, o país já havia assimilado a cultura da segregação. Negros e brancos estavam acostumados a viver separados. Era uma dura


realidade com a qual Mandela teve de lidar, primeiro como integrante do Congresso Nacional Africano (CNA) e, a partir de maio de 1994, como presidente da África do Sul. O filme mostra como Mandela usou o rugby, que era um esporte até então de brancos, para semear a integração em seu país. Ele percebeu que, ainda que fossem remotas, havia a possibilidade de os Springboks participarem da Copa do Mundo de Rugby. Poderiam fazer um bom trabalho. Desta forma a Copa do Mundo de Rugby de 1995, realizada na África do Sul entre 25 de maio e 24 de junho, foi um marco para a história daquele país. O anseio de Mandela era o de despertar nos negros um sentimento de identificação com o time dos

Springboks, fortemente marcado pelo perfil racista da época do apartheid. Ele queria transformar aquele símbolo de segregação em símbolo de união, e viu na Copa a oportunidade de unir brancos e negros. Mandela se empenhou pessoalmente em resgatar o valor do esporte enquanto símbolo de uma pátria de negros e brancos. Até hoje um abismo separa brancos e negros sul-africanos. Mas Mandela foi genial com sua estratégia de transformar o rugby também num esporte para os negros. Esse é o foco do filme de Clint Eastwood. Ele mostra como o esporte vai muito além de suas quadras e gramados. Eastwood, por meio de uma parte da história de Mandela, mostra como o esporte mobiliza corações e mentes, e é capaz de ser um poderoso instrumento político.

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JEAN CHARLES 342


2009

JEAN CHARLES O realismo contemporâneo do filme Jean Charles revela um ar de contracorrente, de contestação e denúncia.

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Brasil/Inglaterra, 2009 Direção: Henrique Goldman Elenco: Selton Mello, Vanessa Giácomo, Luís Miranda, Patrícia Armani, Maurício Varlotta Palavras-chave: discriminação, imigração, injustiça, fascismo, terrorismo

ean Charles soa como uma reportagem sobre pessoas de países pobres ou emergentes que migram para países do centro nervoso do capitalismo. Entretanto, .....o diretor preferiu não fazer um documentário. Se­ gun­do ele, a ficção engrandeceu a história e ressaltou o impacto emocional. De fato ele soube captar o lado B do Velho Mundo através do olhar da “mão de obra” estrangeira. Logo no início um dinâmico Jean comenta que os imigrantes não sabem aproveitar a bela cidade de Londres. Eles só trabalham e juntam dinheiro para enviar à família. Em seus 90 minutos o filme esbarra mais algumas vezes neste impasse. Seus colegas de trabalho só pensam em regularizar o visto e trazer a família; sua prima Vivian parece se recusar a se divertir, pois está lá para trabalhar e ajudar sua mãe doente no Brasil. Todo o tempo Jean parece lutar contra a angústia de sua condição de imigrante e tenta, apesar de toda a dificuldade, desfrutar do continente europeu. Ao fim fica a dúvida se isto é possível. Mesmo abrigando as mais diversas raças, os mais diferentes tipos, línguas e culturas, o coração do império parece fechado e hostil àqueles que não são seus filhos natos. Como já se sabe, Jean Charles de Menezes (1978 – 2005) foi mais uma vítima da ofensiva contra o terrorismo iniciada depois dos atentados de 11 de setembro, que ensandeceu Estados Unidos, Inglaterra e Espanha e

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fomentou a discriminação contra os árabes. O mineiro da cidade de Gonzaga (MG), que vivia em Londres, foi confundido com um terrorista palestino e acabou assassinado no metrô por agentes da Scotland Yard britânica. Nenhuma das pessoas envolvidas na morte foi indiciada até hoje. Mais do que registrar esta tragédia, o filme busca mostrar quem são os brasileiros que estão em Londres. Muitos deles estudando, tentando ganhar um pouco de fluência no inglês. A maioria trabalha muito para poder sobreviver e enviar algumas libras esterlinas às famílias no Brasil. O filme aborda a ilusão sobre as benesses que o continente europeu proporcionaria aos trabalhadores que a alcançassem. Aborda o valor da mão de obra em diferentes economias. Simplesmente isto. Ao fim, o colorido das poucas imagens filmadas no Brasil contrastam propositalmente com a fria e cinzenta Europa. A paisagem viva e verdejante simboliza a integridade e o retorno ao que é essencial.

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JULIE & JULIA 345


2009

JULIE & JULIA (JULIE & JULIA)

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EUA, 2009 Direção: Nora Ephron Elenco: Meryl Streep, Amy Adams e Stanley Tucci Palavras-chave: comunicação, cozinheira, novas tecnologias

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nspirado no blog de Julie Powell, e na autobiografia My Life in France, de Julia Child, o filme entrelaça as vidas das duas mulheres apaixonadas pela arte de cozinhar. A culinária aparece como a tábua de salvação nos dois casos, separados pela distância de 60 anos. Julie & Julia fala da busca pela realização profissional por meio da culinária. Mas, se para Julia Child, entre o fim dos anos 1940 e o início dos anos de 1960, sua persistência em publicar uma enciclopédica obra de receitas se traduzia em emancipação feminina, nos anos 2000 o blog da senhorita Powell não reflete mais do que uma vida vazia, alienada e sem grandes objetivos. Enquanto a primeira Julia enfrentava os desafios de interpretar a cultura francesa, frequentar cursos que na época eram exclusivos para homens, projetar sua visão da França em seus pratos e traduzi-la para a América, bater de porta em porta para efetivar sua obra, além de, como pano de fundo, fugir da perseguição macarthista, o maior desafio de Julie é driblar o tédio e conseguir seguir as receitas elaboradas por sua mentora. Mrs. Child representou superação. Apoiada por seu marido, Paul Child, ela não se dobrou ao papel delegado à mulher naquela época. Mrs. Powell, por sua vez, não representa nada de especial. Uma nova-iorquina de trinta anos comum, absorta em seu único objetivo de andar por um caminho aberto por Julia Child. Infelizmente, o que levou à realização do filme foi o sucesso do blog de receitas de Julie Powell. Infelizmente porque, sendo assim, a história é contada da perspectiva da blogueira, deixando o filme algo vazio e sem grandes objetivos. O mérito é trazer Julia Child à tona. Mas ela merece um filme melhor!


LULA, O FILHO DO BRASIL

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2009

LULA, O FILHO DO BRASIL

O

Brasil, 2009 Direção: Fábio Barreto Elenco: Glória Pires, Milhem Cortaz, Rui Ricardo Dias, Cléo Pires, Juliana Baroni Palavras-chave: ditadura militar, imigração, política, sindicalismo, superação

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triunfo de quem veio das camadas mais pobres, superando as piores dificuldades e obstáculos, guiado por ideais católicos de bondade, dignidade e humanidade, inspiram, levantam a autoestima e enchem os olhos de qualquer ser humano. Por sorte, o ex-presidente da República do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva possui uma destas raras trajetórias. A vida formou o menino pobre das terras inóspitas do miserável sertão pernambucano. Lula fez das mazelas seu caminho para o sucesso, tornando-se um homem bem preparado, articulado, capaz de conduzir uma política que reverteu para cima os índices de desenvolvimento no Brasil. Trata-se de uma história que tem elementos de sobra para enriquecer qualquer biografia. Mas o filme que se propõe a esmiuçá-la desperdiça a oportunidade. A fuga do sertão pernambucano, a dura convivência com o pai alcoólatra em Santos (SP), os estudos no Senai, o primeiro casamento e a tragédia de perder mulher e filho, a decisão de entrar de cabeça no sindicato “para não enlouquecer”, o encontro com Marisa Letícia, enfim, tudo é colocado com pressa e de modo didático, tirando o prazer da reflexão e da interpretação sobre a linguagem cinematográfica. O foco do filme balança entre Eurídice Ferreira de Mello, a Dona Lindu, e Lula. Mas se a intenção fosse centrar em Lindu, o filme poderia explorar melhor o livro no qual se baseou e reforçar os contornos daquela mulher de alma leve, que tinha olhos para a beleza. Se o tema central, por outro lado, fosse a história de seu sétimo filho, Luiz Inácio, o filme deveria ir pelo menos um pouco mais longe, avançando sobre os anos em que o personagem tornou-se o “Lula” que temos em nosso imaginário.


Além desta indefinição em sua linha condutiva, o filme traz outros deslizes. Em primeiro lugar, Lula nasceu e cresceu em tempos de profundas transformações no Brasil. O avanço do parque industrial, a consolidação das metrópoles, as grandes migrações do Nordeste para o Sudeste, o crescimento populacional, a ditadura militar, a reorganização de partidos, a redemocratização, a hegemonia neoliberal e recessões econômicas nas décadas de 1980 e 1990, até a retomada do crescimento e a guinada social do Brasil, são alguns dos elementos-chave que atravessaram a vida deste pernambucano. Nada disso fica claro no filme. A impressão é que se trata de uma obra “ahistórica” e apolítica. Exceto para a assembleia no estádio da Vila Euclides, em que Lula discursou para cem mil trabalhadores, e para a repetida e enfática afirmação de que Lula não era comunista nem de esquerda.

Em segundo lugar, o filme simplesmente desconsidera e desqualifica o movimento sindical anterior ao surgimento de Lula. Pelegos ou “radicaloides”, dispostos a literalmente “matar o patrão”, eram os sujeitos que, segundo o filme, dominavam o sindicalismo até então. De todos os problemas, este, certamente, é o mais grave. Ele escancara seu apoio em “achismos” ou em opiniões tendenciosas, criando uma ilusão de que as lutas do povo surgiram no Brasil no fim da década de 1970. Desde o início do século 20 existem registros de importantes manifestações de trabalhadores no Brasil. Suas lutas se desenvolveram e fomentaram políticas de esquerda populares adaptadas ao tipo de trabalhador que emergia junto com o crescimento das cidades em terras brasileiras. Quando surgiu o Partido dos Trabalhadores, na década de 1980, que deu maior visibilidade ao Lula, o Brasil já contava com partidos e movimentos progressistas maduros e atuantes... e antigos! Muitos deles estão na base que sustenta o governo atualmente. Reconhecer este histórico enriqueceria o filme. O Filho do Brasil deixa a impressão de que a história de Lula, e do movimento de trabalhadores no Brasil, em sua complexidade, ainda merece um tratamento mais apurado.

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TROTSKY: A REVOLUÇÃO

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COMEÇA NA ESCOLA


COMEÇA NA ESCOLA 2009 TROTSKY: A REVOLUÇÃO (THE TROTSKY)

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Canadá, 2009 Direção: Jacob Tierney Elenco: Jay Baruchel, Liene Balaban e Genevieve Bujold Palavras-chave: educação, idealismo, juventude, luta de classe

jovem, recém-ingresso na maioridade, Leon Bronstein, acredita que é a reencarnação de um dos ícones da Revolução Soviética, Leon Trotsky. Mas ele vive uma contradição, pois é filho de uma família burguesa, vive em uma casa rica e estuda em uma boa escola privada. Leon tenta seguir o receituário trotskysta ao pé da letra e, desta forma, faz de seu pai, um empresário, o seu primeiro oponente. Desta relação conturbada resulta a matrícula de Leon em uma escola pública. É a deixa para que o jovem use, ao máximo, os ensinamentos de seu guru. Leon incorpora uma caricatura de Trotsky, que se torna ainda mais ridícula quando sua batalha se trava no ambiente doméstico, envolvendo um modo de vida burguês, um pai desgostoso e uma mãe coruja. Mas é no ambiente repressor da escola que ele encontra vazão a seu idealismo adolescente. O sistema disfuncional, que usa o autoritarismo em detrimento do envolvimento dos estudantes na aventura do saber, é o mal que Leon atacará. Com a adesão de seus colegas, ele brinca de ser revolucionário (para, quem sabe um dia, defender ideais humanitários). O filme, desta forma, aborda o despertar da juventude para ideologias e para o movimento social. Um universo intenso e apaixonante no qual o jovem pode buscar um sentido maior para sua vida. Menções aos filmes Terra e Liberdade, Norma Rae e à obra Revolução dos Bichos, de George Oweell, temperam o filme. Aliás, pode-se notar uma tênue analogia do livro de Owell ao ambiente escolar, onde os alunos, oprimidos como animais, se rebelam contra o “sistema”. O resultado é um filme que tenta ser engraçado à moda canadense, e consegue atingir algum grau de interesse para aqueles que têm familiaridade com a história e o contexto das personalidades citadas.

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A CHAVE DE SARAH 352


2010

A CHAVE DE SARAH (SARAH’S KEY)

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França, 2010 Direção: Gilles Paquet-Brenner Elenco: Kristin Scott Thomas e Mélusine Mayance Palavras-chave: história, nazismo, Segunda Guerra Mundial

orte-americana radicada em Paris, a jornalista Julia Jarmond reabre um caso ocorrido há setenta anos: a pouco conhecida perseguição antissemita na França e o genocídio conduzido pelo governo francês de Vichy, em 1942, aliado dos nazistas que ocupavam parte do país. A França de Vichy foi um governo fantoche de influência nazista estabelecido após o país ter se rendido à Alemanha hitlerista em 1940, responsável pela perseguição e morte de milhares de judeus franceses – homens, mulheres e crianças. No episódio em questão cerca de 13 mil deles, arrancados de suas casas, foram amontoados no Velódromo de Inverno, em Paris, sob condições assustadoras. Alguns se suicidaram, outros foram mortos tentando fugir, outros foram enviados a campos de concentração como Drancy e Auschwitz. Poucos voltaram. Aquele foi o maior aprisionamento em massa de judeus realizado na França durante a Segunda Guerra Mundial, e ocorreu em 16 e 17 de junho de 1942. No filme, entre os judeus levados ao Velódromo estava a pequena Sarah Starzynski, com seus pais, mas sem o seu irmão caçula, o qual, com medo da repressão policial, Sarah escondera no armário de casa, trancado com a chave. A história mostra como, no campo de Drancy, as crianças eram separadas de seus pais e depois de suas mães. Chegando a Auschwitz os homens e as mulheres eram levados para trabalhar, enquanto as crianças iam diretamente para as câmaras de gás. Muitas fugiram ainda em Paris e se abrigaram em casas de fazendeiros da região.

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Meses se passaram até Sarahela conseguir escapar. Mas a chave do esconderijo de seu irmão fora mantida como um bem precioso. Um bem com o qual ela moveria mundos para libertá-lo. No tempo presente do filme Julia Jarmond se sensibiliza com a história da família Starzynski. Sua matéria extrapola o interesse jornalístico e torna-se envolvimento pessoal. Ela sai em busca de peças que restaram daquela história: documentos, fotos e descendentes. Apesar do teor dramático, A Chave de Sarah é um filme belo e sensível. Ele trata de um período que a França certamente prefere esquecer, mas sobre o qual o próprio Jacques Chirac (presidente da França entre maio de 1995 e maio de 2007) rompeu o silêncio, num discurso de julho de 1995. O filme mostra, sobretudo, que o pretenso humanismo europeu, em particular o francês, está apoiado em uma base frágil e vacilante. Isto inclui seu estado de bem-estar social, a tutela do Estado, até sua qualidade de vida. São condições conquistadas com suor, lágrimas e muito sangue. Condições que hoje se assentam em um discurso fácil e em um falso moralismo.

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A REDE SOCIAL

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2010

A REDE SOCIAL (THE SOCIAL NETWORK)

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EUA, 2010 Direção: David Fincher Elenco: Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Timberlake, Brenda Song Palavras-chave: ambiente corporativo, comunicação, educação, internet, mídias, novas tecnologias

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ilhões de pessoas usam o facebook diariamente para se relacionar com amigos, compartilhar fotos, links e vídeos. O site dá a sensação de popularidade e badalação, enquanto podemos estar em frente ao computador, em casa, sozinhos. Mas, no fundo, o que é real? Pertencer a um grupo de pessoas descoladas e divertidas seria a consagração para o jovem nerd Mark Elliot Zuckerberg. Mas, desajeitado, ele parece não ter a senha para entrar neste grupo. Movido pelo sentimento de rejeição ele criou um dos maiores veículos de agrupamentos sociais do mundo. A Rede Social, que começa restrita aos estudantes de Harvard, logo se expande a outras universidades e, em 11 de setembro de 2006, é aberto para todo o público. Entre idas e vindas no tempo, Mark é julgado em dois processos por direitos de criação do site e uso do código-fonte para acesso aos e-mails dos estudantes de Harvard. O filme conta seu drama em flash back, desde quando ele teve o impulso de criar o facebook até o processo e a cisão com seu amigo Eduardo. Eis o paradoxo: a festa, nos moldes em que é apresentada, é tão fugaz quanto são abstratas as relações na internet. Ambas valorizam o culto às aparências e a consequente ambição por participar de grupos restritos. Enquanto a festa de egos vai ficando cada vez mais rançosa, a rede social surge como uma inovação. Fica a pergunta: quem está na crista da onda? Mais do que jogos de ciúmes e vingança, o que interessa no filme são as novas tendências de comportamento, seja na vida pessoal, seja na vida profissional (fundidas nestas tendências). Para se vingar da ex-namorada Zuckerberg cria,


com seu único amigo, Eduardo Saverin, o facemash.com, um site de votações de fotos exclusivo para estudantes de Harvard. Zuckerberg demonstra, na mesma medida, genialidade e excentricidade. Ele parece não pertencer ao mundo real e concreto. Está sempre com a cabeça em outro lugar, elocubrando sobre sua criação. Como o facebook rompe fronteiras geográficas e sociais, o garoto rompe padrões e clichês da vida empresarial e faz parecer patético os trejeitos de executivos. Porque o que vale, no fim das contas, não é a encenação, é a superação.

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CONFLITO DAS ÁGUAS

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2010

CONFLITO DAS ÁGUAS (TAMBIÉN LA LLUVIA)

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Espanha, 2010 Direção: Iciar Bollain Elenco: Gael Garcia Bernal, Luis Tosar, Karra Elejalde, Carlos Santos, Raúl Arévalo, Juan Carlos Aduviri Palavras-chave: colonização, desigualdade social, história, manifestações, privatização, recursos naturais

onflito das Águas mescla o passado e o presente, documentando com lirismo uma dura realidade recorrente em diversos níveis na América Latina. É a atitude colonizadora que se renova ao longo da história. Um ambicioso projeto une o cético e pragmático produtor de cinema Costa e o jovem idealista cineasta Sebastián: apresentar Cristóvão Colombo como um homem obcecado pelo ouro, caçador de escravos e repressor dos índios, na colonização espanhola da América. Mas, devido ao baixo orçamento disponível, a equipe espanhola decide se instalar em terras bolivianas, onde o custo para a filmagem é mais baixo e a população indígena, com potencial para figuração e até mesmo atuação no filme, é abundante. Coincidências à parte, Cochabamba, a terceira maior cidade da Bolívia, onde o filme é rodado, foi fundada pelos colonizadores espanhóis em 1571 com o nome de “Villa de Oropeza”. Logo no início a fila da população local para uma colocação no filme impressiona e mostra que os dois países, Espanha e Bolívia, mesmo depois de quinhentos anos de história, ainda carregam enormes contrastes sociais. A grande fila de possíveis figurantes ilustra a carência da população local, que está ali em busca de algum trabalho. O que move aqueles indígenas, ou descendentes de indígenas, não é um idealismo abstrato nascido das teorias da história ocidental. É a urgência do suprimento de necessidades imediatas. O conflito, então, se estabelece entre a liturgia de criar uma obra cinematográfica, de cunho crítico e sociológico, e o movimento desesperado de uma população carente até mesmo do simples acesso à agua.

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Isto porque naquele momento Cochabamba está às voltas com o processo de privatização de todo o sistema hídrico a uma multinacional estadunidense. Trata-se de um episódio real, que ocorreu em Cochabamba, em abril de 2000. Os protestos de trabalhadores, as greves e manifestações deixaram a cidade ilhada durante muitos dias, depois que a companhia norte-americana Bechtel tentou subir de maneira abusiva o preço da água. A dimensão do protesto foi tanta que a empresa abandonou o mercado boliviano, o contrato da água foi cancelado e foi instalada uma nova companhia sob o controle público. Desta forma, o filme mescla diferentes tempos, o passado e o presente, documentando com lirismo a

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dura realidade das privatizações de setores estratégicos, que prejudica a população mais carente, recorrente na América Latina, sobretudo até o início dos anos 2000. O choque cultural entre a equipe europeia de filmagem e o ambiente rústico e quente boliviano marca o filme. A atitude dos eloquentes jovens europeus, cheios de ideais diante da Guerra das Águas, expõe a hipocrisia de um discurso pretensamente engajado. Por outro lado há aqueles que surpreendem com uma atitude proativa, solidária e humanitária quando expostos a tais desafios. Fica a questão: a obsessão pelas riquezas naturais, a coerção de povos com outras culturas e o espírito colonizador são pilares de uma mentalidade de quinhentos anos atrás ou ainda estão presentes na Europa Ocidental?


O MÁGICO

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O MÁGICO

2010

(L’ILLUSIONNISTE)

I

França/Inglaterra, 2010 Direção: Sylvain Chomet Palavras-chave: depressão econômica, indústria cultural, profissões em extinção

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lusionismo é acreditar que a animação O Mágico vai te deixar animado. O filme justifica o termo “depressão econômica”, conceito que se estende da economia à saúde social e mental daqueles que são afetados por ela. Na década de 1950 a glória do mágico é roubada pelo hipnotismo avassalador da indústria cultural. A televisão e o rock´n´roll emergem na esteira da autoafirmação das metrópoles, com sua dinâmica veloz e sua aura tecnológica. Neste contexto o trabalho artesanal do ilusionista passa a ser considerado uma diversão velha e triste. As imagens doces do filme nos iludem. O desenho é elaborado para um paladar adulto. Para falar sobre o processo de extinção de algumas profissões os franceses carregam no baixo astral, dissecam o abandono, mergulham na solidão. A elegância do desenho e o charme do ofício embalam o típico existencialismo burguês dos franceses. Uma filosofia centrada no indivíduo, em seus dramas, em sua miserável condição humana. O Mágico se desenvolve por meio do embate entre o velho e o novo. O protagonista se ajusta, ainda que desajustadamente, no novo mundo. Seu velho trabalho, que transitava entre o teatral e o circense, é engolido pela nova razão utilitária do mercado, engolido por um cotidiano produzido em série, por um mundo massificado. O filme aborda um tema importante, uma condição dramática imposta pelo mundo capitalista: ofícios que, com o avanço da modernidade, passam a não ter mais serventia.


TROPA DE ELITE 2

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2010 TROPA DE ELITE 2 – O INIMIGO AGORA É OUTRO

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Brasil, 2010 Direção: José Padilha Elenco: Wagner Moura, Irandhir Santos, André Ramiro, Maria Ribeiro Palavras-chave: criminalidade, poder, política, segurança

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rês anos depois do primeiro filme que apresentou o coronel Nascimento, ele torna-se tenente-coronel e percebe que a ambígua guerra contra o tráfico vai muito além dos conflitos com o Bope e a PM. Enquanto o primeiro Tropa de Elite (2007) levantou o debate sobre a organização e a divisão da polícia, desmascarando o fato que parte da classe média sustenta o mesmo tráfico da qual é vítima, no segundo o tenente-coronel Nascimento, “promovido” a subsecretário na Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, se vê de mãos atadas nos altos escalões da corrupção. Em princípio ele acha que o problema se encerra na Polícia Militar do Estado. Mas, a partir de sua experiência no governo, pressente as vinculações entre a política, a polícia e o crime, e entende que os verdadeiros chefões estão blindados pelo poder. No complexo jogo de correlações criminosas, o papel de um defensor dos direitos humanos, o professor de História Fraga, surge, desta vez, não de forma demagógica, mas como um poderoso elemento de combate. Embora tenham os mesmos objetivos, Fraga e Nascimento trilham caminhos opostos e chegam a se confrontar para afirmar suas alternativas para o caos entre a polícia e a favela. Cada um ao seu modo percebe o advento de um novo mal: as milícias. Formadas desde os últimos anos da ditadura militar, as milícias, grupos criminosos formados por policiais e bombeiros, aposentados ou ativos, que controlam dezenas de favelas cariocas, ganharam força em meados dos anos 2000, a pretexto de controlar o tráfico de drogas. Entretanto, como ficou confirmado por meio de sucessivos casos divulgados na imprensa, o objetivo do en-


frentamento com os traficantes não era combater o tráfico, mas sim controlar o território e o lucro, usando de violência para dominar e extorquir as comunidades. De fato, segundo o jornalista Zuenir Ventura, os milicianos são ainda piores que os traficantes, por serem “profissionais treinados, com conhecimento técnico, capacidade administrativa”. Alvos difíceis de combater, infiltradas no aparelho do Estado as milícias extorquem das comunidades milhões de reais em serviços como gás, luz, TV, transportes e drogas. Para reforçar o argumento de que todo este jogo se move em função da política, o filme se passa em um ano eleitoral, quando políticos se ligam às milícias para obter voto. Desta forma, liquidar a PM, como calculou Nascimento, seria insuficiente. O filme mostra os bastidores das guerras nos morros do Rio de Janeiro. Neste sentido, ele assume teor de denúncia, destrinchando um poderoso sistema que sustenta o crime e se beneficia dele. Tropa de Elite é o legítimo bang-bang brasileiro. Mostra a favela como uma terra sem lei, disputada por facções criminosas e pela resistência ao crime. Um lugar a ser erguido, investido, recriado.

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UM DOCE OLHAR

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2010

UM DOCE OLHAR (BAL)

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Turquia/Alemanha, 2010 Direção: Semih Kaplanoglu Elenco: Erdal Besikçioglu, Tülin Özen, Alev Uçarer, Bora Altas Palavras-chave: apicultura, educação, meio rural

ritmo lento do filme Um Doce Olhar contrasta com suas cores vibrantes. Este contraste expõe a lógica da floresta: exuberante, imponente e sazonal. Em seu ritmo a floresta, na região montanhosa da Turquia, dá as condições para, por exemplo, a produção do mel pelas abelhas e a extração do mel pelo homem. E é desta atividade, sustentada pelos humores da floresta, que sobrevive a família de Yussuf, um menino em idade pré-escolar. Seu pai, o apicultor Yakup, não é homem de muitas palavras, tampouco de muita abstração. Yakup é homem de objetos, de sentidos, de percepção e matéria. Como um artesão, ele realiza elegantemente seu ofício e cria com esmero o único filho, o pequeno Yussuf. A beleza das imagens e da convivência harmônica entre ele, Yussuf e sua mulher, é uma ode à vida rural, simples e próxima da natureza, e à capacidade do corpo humano de realizar trabalho. Por outro lado é surpreendente constatar que esta história se passa nos dias atuais, e não há cem ou mil anos. E, no decorrer do filme, todo seu encanto revela-se sustentado por uma linha tênue. Se por um momento o ambiente rústico seduz por remeter à vida bucólica, por outro ele mostra suas armadilhas. A vida, neste caso, orquestrada pelas leis de um cenário natural denso, cresce por conta própria, à revelia de qualquer intervenção. E assim, como o filme coloca sutilmente, gerações caminham lentamente. Adaptando-se lentamente a seu tempo. Buscando, lentamente, dominar a palavra. E fazer com que a palavra e a ideia imperem sobre a matéria.

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A DAMA DE FERRO


2011

A DAMA DE FERRO (THE IRON LADY)

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Reino Unido/França, 2011 Direção: Phyllida Lloyd Elenco: Meryl Streep, Jim Broadbent, Olivia Colman, Anthony Head Palavras-chave: greves, guerra fria, neoliberalismo, privatizações

m A Dama de Ferro, tanto a história quanto a política ficam em segundo plano. O filme revela o reacionarismo de Margaret Thatcher, mas se limita à doença e à solidão da ex-premiê britânica, que comandou o país com “mão de ferro”. Filha de operário, Margaret Thatcher, desde a juventude, alimentou a ideia de resgatar a glória do império britânico. Em 1959 foi eleita parlamentar pela região de Finchley. Dezesseis anos depois foi eleita líder do Partido Conservador, sendo a primeira mulher a liderar um dos principais partidos do Reino Unido. Thatcher elaborou um programa rigoroso contra a crise mediante a implementação de um programa de estado mínimo e privatizações. O programa teve apoio popular e fez dela pioneira do gênero. Em 1979 Thatcher ascendeu ao poder máximo britânico, instituindo um ferrenho neoliberalismo. A guerra fria estava em seu 34º ano, e se desdobraria nos vinte anos seguintes. Na ordem mundial bipolar, socialismo versus capitalismo, Thatcher se posicionaria como um cânone do lado capitalista, inovando nas medidas para diminuir o poder e os serviços públicos e incentivar a iniciativa privada. Suas políticas eram baseadas nas ideias dos economistas conservadores Friedrich Hayek (1899/1992), que dizia que “uma economia deve evoluir espontaneamente, por meio do livre mercado”, e Milton Friedman (1912/2006), um dos mais influentes teóricos do liberalismo econômico, conselheiro do ditador chileno Augusto Pinochet. Thatcher reduziu os serviços sociais e praticamente aboliu o salário mínimo. Sua popularidade caiu durante a recessão econômica iniciada com a crise do petróleo de

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1979; no entanto, uma rápida recuperação econômica, além da vitória britânica na Guerra das Malvinas, fizeram ressurgir o apoio necessário para sua reeleição em 1983. Em 1987 Thatcher foi reeleita para um terceiro mandato, mas sua impopular crítica à criação da União Europeia fez com que perdesse apoio em seu partido, renunciando aos cargos de primeira-ministra e líder do partido em 1990. Esta controversa líder política ficou famosa por suas medidas austeras e sua postura rígida. Tais características fizeram com que ficasse conhecida como “Dama de Ferro”. Por volta de 2000 surgiram os primeiros sinais do mal de Alzheimer e, em 2002, foi aconselhada por seus médicos a não mais falar em público. Como sua decadência física exibida no filme, a ex-premiê britânica protagonizou a decadência da ordem bipolar, que cairia um ano depois do fim de seu mandato. Mais do que isto, sua decadência é símbolo dos malefícios do acirramento do liberalismo econômico que ela tanto defendeu. Thatcher faz parte de um passado que a maior parte da população mundial quer esquecer.

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HISTÓRIAS CRUZADAS

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2011

HISTÓRIAS CRUZADAS (THE HELP)

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EUA, 2011 Direção: Tate Taylor Elenco: Emma Stone, Bryce Dallas Howard, Viola Davis, Octavia Spencer Palavras-chave: apartheid, direitos civis, racismo, trabalho doméstico

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nvisível é o termo que melhor define as mulheres pobres e negras na década de 1960, no Mississippi, EUA. Ser invisível, neste caso, não é o poder da onipresença. É ser desconsiderado pelos direitos civis. Nesta situação viviam as serviçais negras em plena década de 1960, como mostra o filme Histórias Cruzadas. É um paradoxo: mulheres fortes, robustas, com medo de meninas frágeis. Figuras cínicas e irritantes, que aparentam doçura. O apartheid estadunidense foi assim. Extremista. Taxativo. Por meio de fatos do cotidiano o filme fala da absurda situação dos negros e do início da conturbada luta pelos direitos civis em meados do século passado. O enredo se desenvolve, sobretudo, pela dúbia relação das empregadas negras com suas patroas brancas. Dúbia por ser uma relação maternal, em princípio, reforçada pela recorrente falta de experiência das mães biológicas, e ser, posteriormente, uma relação de poder, uma vez que todas as garotas brancas deviam, obrigatoriamente, aprender a ser patroas das negras. A amizade entre as duas não era aceita pela sociedade. Daí o medo das mulheres fortes ao menor sinal de aproximação das brancas. No entanto, das piores situações de discriminação emergem as sementes da mudança. O filme é, enfim uma boa oportunidade de repensar a história. É um filme leve, colorido, que, misturado ao drama, traz cenas engraçadas e uma dose de ternura. Ele levanta questões sobre a construção psicológica dos preconceitos e sobre a desigualdade social do trabalho. Fatos arcaicos, mas não tão distantes no tempo. Uma doença social que deixou sequelas.


LIÇÕES DE UM SONHO

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2011

LIÇÕES DE UM SONHO (DER GANZ GROSSE TRAUM)

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Alemanha, 2011 Direção: Sebastian Grobler Elenco: Daniel Brühl, Burghart Klaußner, Thomas Thieme, Justus von Dohnányi, Jürgen Tonkel, Vincent Kastner Palavras-chave: desigualdade social, educação, equipe, esporte

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ais do que o idioma, o professor Konrad Koch queria transmitir a alma da Inglaterra para seus alunos alemães. Para isto ele usou, como método educativo, um novo esporte criado pelos ingleses. Ganhando a confiança dos estudantes e vencendo, pouco a pouco, a resistência dos mais conservadores, Konrad consegue, enfim, introduzir o futebol na Alemanha. Baseado em uma história real, Lições de um Sonho conta como o professor de inglês Konrad Koch, ao retornar de seus estudos na Universidade Oxford, Inglaterra, para a Alemanha, em 1874, usou o futebol como um instrumento pedagógico na transmissão de valores e regras aos seus alunos. Na escola só para meninos em Braunschweing, onde lecionava, Koch enfrentou uma mentalidade de preconceitos e de discriminação social, repassada de geração a geração. A adoção do futebol por Konrad foi, desta forma, uma medida para envolver os alunos, buscando brechas para romper com o clima de hostilidade que pairava. Com isto ele poderia ensinar a língua inglesa e, ao mesmo tempo, dar lições de companheirismo, respeito e união aos garotos. O filme mostra a força da escola e do esporte na habilitação e na inserção dos jovens na vida social. Esta fase escolar, entretanto, pode ter uma orientação segregacionista, com classes sociais rígidas que não se comunicam, ou pode ter uma orientação humanista, calcada no diálogo e na cooperação. Por meio desta complexa dinâmica, com progressos e regressos, as mentalidades evoluem e a sociedade se organiza. Nem sempre ganhando nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar.


SEM LIMITES 375


2011

SEM LIMITES (LIMITLESS)

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EUA, 2011 Direção: Neil Burger Elenco: Bradley Cooper, Robert De Niro, Abbie Cornish, Anna Friel, Jennifer Butler Palavras-chave: ambiente corporativo, competição, drogas

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a forma como é colocado em Sem Limites, o poder e o dinheiro são fins em si mesmos. São as mais poderosas drogas, que escravizam o ser humano. Eddie Morra é um escritor nova-iorquino decadente e descuidado. Certo dia ele encontra ao acaso seu ex-cunhado, Vernon Gant. Os dois têm mais ou menos a mesma idade, mas Vernon está aparentemente muito bem: esperto, com roupas da moda e vivendo em um grande e caro apartamento. Eles conversam até que Eddie se dá conta de que os “negócios” com produtos farmacêuticos, que enriqueceram seu ex-parente, vão além dos limites legais, institucionalmente testados e aprovados. Gant é, na verdade, um traficante, e como tal é perseguido por agentes de outras facções do tráfico. Ele comercializa uma droga nova, capaz de despertar a potência total do cérebro e, por consequência, do corpo humano. Para Eddie a oportunidade de experimentar aquela droga representaria a possibilidade, fugaz, de injetar ânimo e ordem no caos mental e material de sua vida. Da mesma forma que o caminhoneiro, o professor, o político, o bancário, o estudante, entre outros, podem recorrer a este artifício para dar conta da carga de trabalho. Mas ele não leva em conta que o efeito que ela produz no comportamento é falso e passageiro. Não corresponde a sua verdadeira capacidade, desenvolvida ao longo da vida. A mudança radical na vida e na imagem de Eddie cria cenas impactantes de ação. E é em cima disto que o filme é trabalhado. Vale a pena, afinal, chegar ao topo da escala social ao preço de tornar-se escravo de uma pílula? O poder e o dinheiro não deveriam, no limite, servir ao desenvolvimento e à emancipação da humanidade? Da forma como é colocado no filme, o poder e o dinheiro são fins em si mesmos. São as mais poderosas drogas, que escravizam o ser humano.


DJANGO LIVRE 377


2012

DJANGO LIVRE (DJANGO UNCHAINED)

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EUA, 2012 Direção: Quentin Tarantino Elenco: Christoph Waltz, Don Johnson, Franco Nero, Jamie Foxx, Leonardo DiCaprio e Samuel L. Jackson Palavras-chave: escravidão, história, racismo

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uentin Tarantino acertou em usar o faroeste para mexer com o imaginário e com a consciência americana. E ele foi longe buscando atores clássicos do gênero, como Franco Nero, a preciosa contribuição musical de Ennio Morricone e colocando o mocinho de Hollywood no papel de um terrível vilão, como Sergio Leone fez em Era Uma Vez no Oeste (1968). Ao que parece, o diretor entrou no rol das vinganças históricas. Depois do despeitado deboche com que tratou o nazismo de Adolf Hitler, talvez o maior crápula que a humanidade já criou, em Bastardos Inglórios (2009), em seu novo filme, Django Livre, que se passa em 1858, dois anos antes da Guerra Civil nos EUA, ele esfrega na cara da sociedade estadunidense as aberrações que alcançaram a escravidão naquele país. No Mississippi a exploração do trabalho escravo e a discriminação racial atingiram níveis escandalosos. Estado historicamente marcado por propriedades extensivas de terras, pelo grande contingente de negros, levados no contexto da colonização, e pela desigualdade social, o Mississippi é o maior exemplo de apartheid dos EUA. Mas, mais do que uma denúncia, a intenção do filme é expor o ridículo, absurdo e a falta de cabimento do fato de algumas pessoas (de origem branca e europeia) disporem de outras (negras e de origem africana) como bem quiserem, como se fossem coisas (e não pessoas) e, ainda, como se apenas o trabalho forçado não fosse o suficiente, descontando nelas seus ódios e rancores mal resolvidos. Como Tarantino não é um cineasta dado a sutilezas, sua “crítica” ao trabalho escravo é curta e grossa. Quando os protagonistas chegam ao Mississippi, por exemplo, para que ninguém se engane sobre o que se está falando, o nome do estado perpassa a tela em letras garrafais. E o filme segue assim: inteligente e bem-humorado, mas não polido.


Recheado de violência e sadismo, em muitos momentos de seus 165 minutos o telespectador é levado a se encolher na cadeira e, os mais sensíveis, a fechar os olhos. Não são as cenas de tiroteio, com mortos caindo por todo canto da tela, as que mais incomodam. Cenas pontuais, que envolvem crueldade e medo, e que mexem com nossos valores, são as que dão náuseas e arrepios. Com isto Tarantino conseguiu traduzir para o cinema o espírito da escravidão.

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HELENO

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2012

HELENO

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Brasil, 2012 Direção: José Henrique Fonseca Elenco: Rodrigo Santoro, Alinne Moraes, Othon Bastos, Herson Capri Palavras-chave: esporte, futebol

eleno de Freitas foi um controverso ídolo do futebol brasileiro da década de 1940. Os últimos anos do craque, mostrados em sua cinebiografia, revelam o peso de uma vida intensa e de uma dedicação irrestrita ao esporte, em uma época em que o futebol ainda não era um programa de televisão. Heleno não é produto de marketing. É um mito autêntico e pujante. O formato refinado do filme exige paciência e concentração do espectador. O roteiro dilui o passado e o presente em um só momento, da maneira como se imagina que tenha ficado a percepção de Heleno quando ele se torna dominado pela sífilis. Alheio ao mundo e às mudanças no futebol, o que dava sobrevida ao jogador em seu último ano de vida, 1959, eram as lembranças de suas glórias. Por isto o filme apela para a memória. Memória do Rio antigo. Memória romantizada de antigos craques. Saudade daquilo que poderia ter sido. Do sonho de ter podido mudar a história do Botafogo encerrado em um pênalti perdido. Heleno é um filme feito de imagens e de nostalgia, como um álbum de fotos antigas. Mas sua elegância não esconde o drama de um homem que despenca do topo. Passado nas décadas de 1940 e 1950, Heleno de Freitas se tornou ídolo antes da era da televisão. Sua personalidade dramática lhe rendeu o apelido de Gilda, em referência a Rita Hayworth no filme de Charles Vidor (1946). Dono de um gênio forte, que muitas vezes lhe rendia problemas profissionais, o craque foi símbolo de um Botafogo guerreiro. Descoberto por Neném Prancha no time do Botafogo de praia, chegou ao time principal em 1937, para substituir Carvalho Leite (goleador do tetracampeonato estadual, de 1932 a 35), e não decepcionou a torcida.

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Formado em Direito, bonito, alto, ele se destacava entre seus pares. Talvez por isto se dava ao luxo de ser impulsivo, mulherengo e passional. Maior ídolo alvinegro antes de Mané Garrincha, mesmo sem nunca ter sido campeão pelo clube, marcou sua passagem pelo Botafogo com 209 gols em 235 partidas, tornando-se o quarto maior artilheiro da história do clube. Em 1948, contra sua vontade, foi vendido para o Boca Juniors, da Argentina, na maior transação do futebol brasileiro até então. Naquela época ele já não estava em sua melhor forma. Mas ainda atuou pelo Vasco da Gama, onde conquistou seu único título por um clube, o de campeão carioca de 1949. Fez 18 partidas pela seleção brasileira de futebol, marcando quinze gols. Mas não jogou na Copa de 1950, realizada no Brasil. A esta altura sua doença já comprometia seu desempenho nos campos. Jogar no Maracanã – construído para a Copa de 1950 – se tornou uma obsessão para ele. Apresentar-se no maior estádio do mundo seria, em seu sonho, um retorno glorioso. A realização deste sonho, entretanto, em uma única partida jogada com a camisa do América, não passou de mais um episódio triste. Uma demonstração pública de que o antigo craque do Botafogo estava vencido pela doença. Já muito doente Heleno viu o Brasil ganhar a Copa do Mundo pela primeira vez em 1958, e o despontar de estrelas como Pelé e Garrincha. Foi homem de um tempo em que se dava a vida por uma paixão.

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BATMAN:

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DAS TREVAS RESSURGE 2012 BATMAN: O CAVALEIRO (THE DARK KNIGHT RISES)

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EUA, 2012 Direção: Christopher Nolan Elenco: Com Christian Bale, Michael Caine, Gary Oldman, Morgan Freeman, Anne Hathaway, Joseph Gordon-Levitt e Tom Hardy Palavras-chave: anarquismo, liberalismo, sistema financeiro

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ito anos se passaram após os acontecimentos de The Dark Knight (de 2008, filme anterior na série de Nolan). Nestes anos de aparente trégua o crime se organiza a partir dos subterrâneos. Após investir em um projeto de energia por fusão, o império empresarial Wayne abre falência. Pobre e fragilizado, Bruce Wayne passa por um processo de amadurecimento. Diferente do filme anterior, em que Heath Ledger, na pele de Coringa, rouba a cena com sua teatralidade, neste a interpretação de Christian Bale se sobressai. O ator também amadurece, vivenciando um herói dramático, reflexivo, que sente o pesar das dores da humanidade. Seu oponente, Bane, é um terrorista articulado com o poder financeiro. Não por acaso, tratando-se de Estados Unidos da América. Os medos do império americano são retratados em grande estilo. O medo de uma revolução popular, medo de que o mal que seu exército dissemina pelo mundo se volte contra eles e, sobretudo, medo da decadência financeira. A Bolsa de Valores aparece no filme como um dos principais alvos dos bandidos. O crime é manipular os dados, extraviar os ativos, tomar o poder e criar um tribunal, que eles chamam de “popular”. É uma forma de anarquismo, o outro lado da moeda do liberalismo. Um anarquismo destrutivo, que não propõe saídas, que não propõe uma evolução social. Em Batman o mundo é representado por uma combinação de sofisticada modernidade e obscuro medievalismo. É representado pela oposição entre anarquismo e liberalismo, onde o individualismo e a solidão das cidades pesam sobre os homens. Gotham City é metáfora de metrópoles caóticas e contraditórias. Ao sair do cinema tem-se a ilusão de que aquilo não passa de fantasia. Mas olhando bem as cores e os sons da cidade, as crianças e os moradores de rua, vivendo em um estado medieval em plena era tecnológica, entende-se que os símbolos estão todos aí.


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2012

NO (NO)

A

Chile, 2012 Diretor: Pablo Larraín Elenco: Gael García Bernal, Alfredo Castro, Antonia Zegers, Luis Gnecco, Marcial Tagle, Néstor Cantillana, Jaime Vadell, Pascal Montero Palavras-chave: guerra fria, favela, ditadura

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vitória dos aliados, na Segunda Guerra Mundial, cessou as batalhas reais daquele período, nas quais se disputavam os campos, os ares e os mares num embate frente a frente, visceral. Mas o fim da guerra desencadeou outra disputa entre os países capitalistas e socialistas – entre os EUA e a Europa Ocidental de um lado e a União Soviética de outro. O Chile, país onde se passa a história do filme NO, foi um dos cenários desse embate na América Latina; lá, os Estados Unidos fizeram ascender, em 1973, os militares ao poder, que se mantiveram pela repressão sangrenta contra os opositores. Depois de quinze anos de ditadura militar, em 1988, no Chile, com uma das maiores dívidas per capita da América Latina, a favelização crescente e revolta diante de tanta violência, o povo saiu às ruas para cobrar a retomada da liberdade. Diante de tanta pressão o general Augusto Pinochet propõe um plesbicito que decidiria pela manutenção do regime ditatorial, ao votar em SÍ (sim); ou pela democratização do país, dizendo NO (não) à ditadura, e determinando o prazo de um ano para os militares deixarem o poder. O filme condensa um período dos 27 dias que a ditadura estabeleceu para a campanha do plebiscito, que seria exibida, por 15 minutos, em rede nacional de TV. Larraín consegue equilibrar o filme em diversos pontos, não o tornando meramente documental sobre o plebiscito de 1988 no Chile. Numa relação dialética entre opostos e complementares, ao mesmo tempo a intelectualidade e a publicidade política colocam em discussão algo bem mais amplo: como comunicar conceitos, valores, teses, sem distorcer ou reduzir o conteúdo? Ao pesquisar os materiais para as peças, o publicitário responsável pela campanha da esquerda começa a compreender a realidade que o povo chileno estava sofrendo com a repressão proveniente da ditadura.


A campanha que produzia também o transformava, e ele já não seria mais o mesmo depois daquele contato com os militantes e diante de tudo o que via de terror imposto pelo sistema ditatorial. Em meio aos conflitos teóricos e existenciais, o diretor Larraín mostrou todas as artimanhas do regime ditatorial, que boicotava, investigava, ameaçava a todos os envolvidos na campanha pelo fim do sistema. Chegara o dia 5 de outubro de 1988, quando o povo chileno decidiria pelo SIM ao regime militar, ou NÃO pela volta de democracia. O filme não é a história de uma simples campanha com apelos históricos. Amplo, retrata a ditadura no Chile, mas é um despertar de consciência.

NO é filme quase que obrigatório para os profissionais de comunicação, principalmente aos da imprensa sindical (e também para os dirigentes) que, diante de tanta diversidade de plataformas e conteúdos, vêm tendo de se reinventar para manter a comunicação atrativa, eficiente, inserida em um mundo globalizado, digital, informatizado e, ao mesmo tempo, cada vez mais vazio de si. NO, baseado na peça inédita El Plebiscito, de Antonio Skármeta, se apresenta como uma grande interrogação para os meios de comunicação sindical e política. Ao mesmo tempo, um grande ponto de partida para buscarmos o ponto de equilíbrio entre estabelecer uma comunicação que se compreenda sem que seja simplista e vazia. Ricardo Flaitt

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2013

CAPITÃO PHILLIPS (CAPTAIN PHILLIPS)

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EUA, 2013 Direção: Paul Greengrass Elenco: Barkhad Abdi, Tom Hanks Palavras-chave: desigualdade social, marinha, miséria, política internacional, pirataria

egunda-feira, 13 de abril de 2009, jornais brasileiros estampam a manchete: “Militares resgatam americano sequestrado por piratas da Somália. O que parece trama de filme aconteceu no mar da costa da África”. Em dois séculos o cargueiro Maersk Alabama foi o primeiro navio de bandeira americana a ser atacado por piratas. A tripulação, comandada pelo capitão Richard Phillips, reagiu e conseguiu retomar o controle do navio. Mas o capitão foi levado como refém. Navegando em alto mar em um barco salva-vidas, o “bando”, quatro adolescentes entre treze e dezoito anos, foi cercado pela gigantesca operação deflagrada pelo Departamento da Defesa dos EUA. O resgate performático foi coberto pela mídia e acompanhado pela população dos EUA. Após a operação, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, afirmou que “é preciso reforçar a ação mun­dial contra os piratas e ter a certeza de que os que fo­ rem presos serão punidos”. A pirataria moderna, que só nos quatro primeiros meses de 2009 atacou 41 navios e sequestrou 250 comandantes e tripulantes, em nada lembra as histórias fantásticas da época dourada da pirataria do século 17. Ela tem raízes na condição de miséria e abandono que assola muitos países da África, como neste caso, no início da década de 1990, quando milícias ganharam força na Somália, recrutando como soldados (como os piratas) jovens sem quaisquer perspectivas de vida. Em 2013 o resgate cinematográfico se consolidou em um filme. No thriller denso e emocionante vemos com medo os esguios piratas tomarem de assalto a embarcação destinada, ironicamente, a entregar mercadorias e alimentos para o povo somaliano. Os invasores são a imagem da

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mais profunda desordem social. Mas, durante as negociações, percebemos que toda aquela hostilidade está a serviço de algo muito maior e temível que eles. A fragilidade dos bandidos aparece pouco a pouco até, surpreendentemente, nos levar a certa compaixão. É surpreendente ver como aqueles seres humanos marcados pela miséria e pela fome conseguem ainda cultivar sonhos e ilusões. No jogo internacional, que vai além do que a vista deles alcança, eles são como pragas que devem ser dedetizadas. No horizonte histórico, eles são as vítimas. Já foi dito que Capitão Philllips é um filme muito particular por conta dessa questão das desproporções”.

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No filme, embora o foco seja o salvamento do capitão, o enredo, a certa altura, dá um giro de 180 graus, bagunçando a noção sobre quem é o bandido e quem é o mocinho. Neste sentido, combater e punir jovens agentes de uma milícia cruel e fundamentalista, como quer Obama, seria um paliativo interessante apenas àqueles que ganham com a guerra. Capitão Philllips, entretanto, não se arrisca a defender nenhuma tese. Ele relata a ação dosando adrenalina e sensibilidade. E é aí que se torna grande. Em uma situação como esta identificar os sujeitos e os predicados deve mesmo resultar de um debate realmente complexo.


DOSSIÊ JANGO

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DOSSIÊ JANGO

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Brasil, 2013 Direção: Paulo Henrique Fontenelle Palavras-chave: ditadura militar, guerra fria, História do Brasil

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ossiê Jango levanta as polêmicas envolvendo a morte do ex-presidente João Goulart e questiona a postura dos governos brasileiros – de 1985 a 2013 –, que não se preocuparam em reaver esta história e honrar o presidente morto ainda no exílio (impedido de voltar ao Brasil). O filme passa rapidamente pela trajetória política do ex-presidente, mas não se debruça sobre ela como fez Jango, de Silvio Tendler (1984). O foco do Dossiê Jango é o obscurantismo que cerca a morte de João Goulart, em 1976, na Argentina. A sequência de mortes e perseguições políticas no Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, no contexto da chamada Operação Condor, instituída pelas ditaduras do chamado Cone Sul (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai), com apoio do governo dos Estados Unidos da América, confere a perspectiva internacional da história. Nesta linha o roteiro vai além do senso comum em termos de ditadura militar. Logo no início a frase provocadora intriga o expectador: “Tudo que pensamos ser verdade um dia muda”. Ele mostra com argumentos lógicos e documentados a articulação entre as ditaduras latino-americanas, fortemente apoiadas e patrocinadas pelo governo estadunidense que, no contexto da guerra fria, visava cooptar territórios políticos mantendo-os nos arreios de sua ideologia capitalista. Gravações em áudio do embaixador Lincoln Gordon e do ex-presidente americano John Kennedy, exibidas no filme, comprovam a preocupação americana com o momento político do País. Em outra passagem, o também ex-presidente Lyndon Johnson revela que seria possível agir no Brasil para instituir a ditadura e assegurar o afastamento de Jango.


Mas o mais interessante é que Dossiê Jango defende que esta não é uma situação que ficou no passado, superada pelo fim da ordem mundial bipolar e pela redemocratização brasileira. Com a afirmação “àqueles que pensam que derrotaram Jango, nós estamos debatendo Jango até hoje”, João Vicente Goulart, filho do ex-presidente, ilustra como esta é uma ferida aberta na nossa história. Jango era temido pela elite e pelo regime militar devido suas ideias progressistas e, sobretudo, devido sua grande aceitação popular. Por isto sua trajetória na política sempre foi marcada por boicotes e tentativas de golpes. Mas, mesmo morto, Jango incomodava. E, pelo visto, ainda incomoda. Neste momento em que o governo brasileiro demonstra uma disposição em “acertar contas com o passado”, por meio da criação da Comissão Nacional da Verdade, o filme Dossiê Jango surge como um rico instrumento de debate. Um instrumento que, mais do que esclarecer questões, suscita dúvidas pertinentes e profundas sobre a história do Brasil.

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DIRETORES Adlon, Percy – 155 Allen, Woody – 96, 179 Altman, Robert – 73 Amaral, Milton – 44 Andrade, João Batista de – 117 Aranoa, Fernando Leon de – 228 Aronofsky, Darren – 313 Badham, John – 99 Barreto, Fábio – 348 Becker, Jean – 274 Benton, Robert – 177 Beresford, Bruce – 153 Berman, Shari Springer – 285 Bernstein, Walter – 96 Berri, Claude – 173 Biniez, Adrián – 337 Bird, Brad – 291 Bollain, Iciar – 359 Burger, Neil – 376 Caro, Niki – 254 Cattaneo, Peter – 192 Chaplin, Charles – 8, 9, 29 Charlone, César – 282 Chomet, Sylvain – 362 Cochran, Robert – 222 Coninx, Stijn – 162 Coppola, Francis Ford – 83, 157 Costa-Gavras, Constantin – 80, 81 Coutinho, Eduardo – 128, 242 Crowe, Cameron – 168 Daldry, Stephen – 212 Davaa, Byambasuren – 230

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David Lean – 57 De Sica, Vittorio – 8, 9, 34 Demme, Jonatham – 170 DeVito, Danny – 165, 166 Docter, Pete – 325 Donen, Stanley– 37 Eastwood, Clint – 189, 181, 308, 340, 341 Eisenstein, Serguei – 8, 26 Ephron, Nora – 346 Faenza, Roberto – 186 Falorni, Luigi – 230 Fernández, Enrique – 282 Fincher, David – 296, 356 Fonseca, José Henrique – 381 Fontenelle, Paulo Henrique – 392 Ford, John – 8, 31, 32, 49 Frankel, David – 266 Furtado, Jorge – 225 Gervitz, Roberto– 104 Gilliam, Terry– 136 Giorgetti, Ugo – 194 Godard, Jean-Luc – 54 Goldman, Henrique – 343 Grasso, Santiago ‘Bou’ – 310 Greengrass, Paul – 389 Grobler, Sebastian – 374 Hackford, Taylor – 142, 244 Hamer, Bent – 271 Haneke, Michael – 189 Hirszman, Leo – 115 Hopper, Dennis – 148 Howard, Ron – 246

Índice remissivo Jewison, Norman – 204 Johnston, Joe – 209 Jones, Terry – 107 Judge, Mike – 196 Kaplanoglu, Semih – 367 Kazan, Elia – 39 Kelly, Gene – 37 King, Michael Patrick – 316 Kubrick, Stanley – 9, 47, 62, 63 Landis, John – 112 Larraín, Pablo – 386 Leone, Sergio – 65 Linklater, Richard – 232 Lioret, Philippe – 332 Lloyd, Phyllida – 369 Loach, Ken – 71, 219, 322 Lumet, Sidney – 41, 90, 91 Lynch, David – 202 Macedo, Beto – 299 Maciel, Fabiano – 237, 288 McTeigue, James – 257, 258 Monicelli, Mario – 52 Montaldo, Giuliano – 77 Moore, Michael – 239, 240, 334, 335 Moreira, Gastão – 260 Muccino, Gabriele – 263 Nolan, Christopher – 384 Olmi, Ermanno – 101, 102 Padilha, José – 293, 364 Paquet-Brenner, Gilles – 353 Parker, Alan – 150, 160, 199 Person, Luís Sérgio – 60

Petersen, Wolfgang – 216 Petri, Elio – 9, 75 Piñeyro, Marcelo – 251 Pollack, Sydney – 86, 97, 126 Pontecorvo, Gillo – 68 Pulcini, Robert – 285 Radford, Michael – 133, 175 Redford, Robert – 86, 277 Reitman, Jason – 328 Rezende, Sérgio – 206, 268 Ritt, Martin– 96, 110 Salles, Walter – 302 Schatzberg, Jerry – 88 Scorcese, Martin – 93 Scott, Ridley – 120, 121 Shanley, John Patrick – 305 Silveira, Breno – 248 Siqueira, André Iki – 299 Smith, John – 183 Soderbergh, Steven – 214 Stanton, Andrew – 319 Stone, Oliver – 145 Surnow, Joel – 222 Tapajós, Renato – 123 Tarantino, Quentin – 378, 379 Taylor, Tate – 372 Tendler, Sílvio – 130 Tierney, Jacob Toledo, Sérgio – 104 Tornatore, Giuseppe – 330 Webber, Peter – 235 Weiner, Matthew – 279


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: • BRADBURY, Ray, Fahrenheit 451, Ballantine Books, EUA, 1953 • (Em português) BRADBURY, Ray, Fahrenheit 451, Biblioteca Azul, 2014 • CALDEIRA, Jorge, Mauá, empresário do império, Companhia das Letras, São Paulo, 1995 • CARTER, Rubin Hurricane, The Sixteenth Round, Warner Books, EUA, 1975

• NEVES, Marcos Eduardo, Nunca houve um homem como Heleno, ZAHAR, Rio de Janeiro, 2012 • ORWELL, George, 1984, Secker and Warburg, Reino Unido, 1949 • (Em português) ORWELL, George; HEIBNER, Alexandre (tradutor); JAHN Heloisa (tradutor), 1984, Companhia das Letras, 2009 • PASTERNAK, Boris, Doutor Jivago, Feltrinelli, Itália, 1957

• FAST, Howard, Spartacus, EUA, 1951

• (Em português) PASTERNAK, Boris; LUCCHESI, Marco (tradutor), Doutor Jivago, RECORD, 2002

• (Em português) FAST, Howard, SANZ, José, (tradutor), Spartacus, Edições Bestbolso, 2007

• PHILLIPS, Richard; TALTY, Stephan, A Captain’s Duty: Somali Pirates, hyperion, EUA 2011

• GARDNER, Chris, The Pursuit of Happyness HarperCollins, EUA, 2006

• (Em português) PHILLIPS, Richard; TALTY, Stephan, FIGUEIREDO, Cláudio (tradutor); SETTE, Lourdes (tradutor), Dever de capitão, Editora Intrínseca, 2013

• GRAYSMITH Robert, Zodiac, St. Martin’s Press EUA 1976 • (Em português) GRAYSMITH Robert, Zodiac, Novo Conceito, 2007 • HOMER Hickam, Jr., Rocket Boys, Delacorte Press, EUA , 1998 JUNGLE, Sebastian, The Perfect Storm, WW Norton & Company, EUA, 1997 • (Em português) JUNGLE, Sebastian, A Tormenta, Ediouro, 1998 KAFKA, Franz, Das Schloss, Munich, Checoslováquia, 1926

• PUZO, Mario, Godfather, G. P. Putnam’s Sons, EUA, 1969 • (Em português) PUZO, Mario; NAYFELD, Carlos (tradutor), O chefão, Abril, 1981 • WEISBERGER, Lauren, The Devil Wears Prada Broadway Books, 2003

• (Em português) KAFKA, Franz, CARONE, Modesto (tradutor), O Castelo, Companhia das Letras, 2000

• (Em português) WEISBERGER, Lauren; Figueira, Maria do Carmo (tradutor), O Diabo Veste Prada, Editora Presença, 2004

• LLOYD David; MOORE Alan, V for Vendetta, Quality Comics, Reino Unido, 1982

• ZOLA, Émile, O Germilnal, G. Charpentier, França, 1885

• (Em português) LLOYD David; MOORE Alan; MARTINS, Jotapê (tradutor), V • (Em português) ZOLA, Émile, SALERNO, Silvana (tradutor), O Germilnal, Companhia das Letras, 2000 de Vingança, Panini Books, 2012 395


CRÉDITO DAS IMAGENS 12, Ratattoulie – Pixar Animation Studios, Walt Disney Pictures; 25, 27 O Encouraçado Potemkin – Goskino; 28 Tempos Modernos – Charles Chaplin Productions; 30, 32 As Vinhas da Ira – Twentieth Century-Fox Film Corporation; 33, 35 Ladrões de bicicleta – Produzioni De Sica; 36 Cantando na chuva – Metro-Goldwyn-Mayer, Warner Bros; 38 Sindicato de ladrões – Columbia Pictures, Corporation, Horizon Pictures; 40, 42 Doze homens e uma sentença – Orion-Nova Productions, Twentieth Century-Fox; 43, 45 Jeca Tatu – PAM Filmes; 46 Spartacus – Bryna Productions; 48, 50 O homem que matou o facínora – John Ford Productions, Paramount Pictures; 51 Os companheiros – Avala Film, Lux Film, Vides Cinematografica, Méditerrannée Cinéma Production; 53, 55 Alphaville – Athos Films, Chaumiane, Filmstudio; 56, 58 Doutor Jivago – Metro-Goldwyn-Mayer, Sostar S.A; 59 São Paulo Sociedade Anônima – Socine Produções Cinematográficas; 61, 63 2001 Uma odisseia no espaço – Metro-Goldwyn-Mayer, Polaris; 64, 66 Era uma vez no oeste – Paramount Pictures, Rafran Cinematografica, San Marco Production; 67, 69 Queimada – Europee Associate SAS, Produzioni Europee Associati; 70 Kes – Woodfall films Limited; 72 M.A.S.H. – Twentieth Century-Fox Film Corporation; 74 A classe operária vai ao paraíso – Euro International Film; 76, 78 Sacco &Vanzetti – Jolly Films - Theatrical Distributor Istituto Luce Italnoleggio Cinematografico - Foreign Theatrical; 79, 81 Estado de sítio – New Line; 82, 84 O poderoso chefão 2 – Paramount Pictures, The Coppola Company; 85 Nosso amor de ontem – Columbia Pictures; 87 O espantalho – Warner Bros; 89, 91 Um dia de cão – Warner Bros; 92, 94 Taxi Driver – Columbia Pictures Corporation, Bill/Phillips, Italo/Judeo Productions; 95, 97 Testa de ferro por acaso – Columbia Pictures Corporation, Devon/Persky-Bright (The Devon Company), Persky-Bright Productions, Rollins-Joffe Productions; 98 Os embalos de sábado à noite – Paramount Pictures, Robert Stigwood Organization; 100, 102 A árvore dos tamancos – Radiotelevisione Italiana, Ital-Noleggio Cinematografico, Gruppo Produzione Cinema; 103, 105 Braços cruzados, máquinas paradas – Timbre; 106, 108 A vida de Brian – HandMade Films, Python; 109 Norma Rae – Twentieth Century-Fox Film Corporation; 111, 113 Os irmãos cara de pau – Universal Pictures; 114 Eles não usam black tie – Embrafilme, Leon Hirszman Produções Cinematográficas; 116, 118 O homem que virou suco – Embrafilme, Raíz Produções Cinematográficas, Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo; 119, 121 O caçador de androides –The Ladd Company, Shaw Brothers, Norman Lear/Tandem Productions; 122 Linha de montagem –Tapiri Cinematográfica; 125 Tootsie – Columbia Pictures Corporation, Mirage Productions,Punch Productions, Delphi Films; 127 Cabra marcado para morrer –Eduardo Coutinho Produções Cinematográficas, Produções Cinematográficas Mapa; 129 Jango – Rob Filmes, Caliban Produções Cinematográficas; 132 1984 – Umbrella-Rosenblum Films Production, Virgin; 135, 137 Brazil o filme –

Embassy International Pictures; 138, 140 O cavaleiro solitário – The Malpaso Company; 141, 143 O sol da meia noite – Columbia Pictures Corporation, Delphi IV Productions, New Visions Pictures; 144, 146 Wall Street poder e cobiça – Twentieth Century-Fox Film Corporation, American Entertainment Partners L.P., Amercent Films; 147 Colors, as cores da violência – Orion Pictures Corporation; 149, 151 Mississippi em Chamas – Orion Pictures Corporation; 152, 153 Conduzindo Miss Daisy – Majestic Films International, The Zanuck Company; 154 Rosalie vai às compras – Bayerischer Rundfunk (BR), Bundesministerium des Inneren (IMC), Filmförderungsanstalt (FFA), Pelemele Film; 156, 158 O poderoso chefão 3 – Paramount Pictures, Zoetrope Studios; 159 The commitments – loucos pela fama – Beacon Communications, Dirty Hands Productions, First Film Company; 161 Daens – um grito de justiça – Favourite Films, Films Dérives; 164, 166 Hoffa, um homem, uma lenda – 20th Century Fox, Canal+, Jersey Films; 167 Vida de solteiro – Atkinson/Knickerbocker Productions, Warner Bros Pictures; 169, 171 Filadélfia – Clinica Estetico, TriStar Pictures; 172, 173 O germinal – Renn Productions, France 2 Cinéma, DD Productions, Filmes alternativos, Nuova Artisti Associati; 174 O carteiro e o poeta – Miramax, Touchstone Pictures; 176 O indomável – assim é minha vida – Capella International, Cinehaus, Paramount Pictures; 178 Tiros na Broadway – Magnolia Productions, Miramax Films, Sweetland Films; 180 As pontes de Madison – Amblin Entertainment, Malpaso Productions, Warner Bros Pictures; 182, 184 Mentes perigosas – Hollywood Pictures, Don Simpson/Jerry Bruckheimer Films, Via Rosa Productions; 185, 187 Páginas da revolução – Fábrica de Imagem e Conteúdo, Jean Vigo International, K.G. Productions; 188, 190 O castelo – Arte, Bayerischer Rundfunk (BR), Wega Film, Österreichischer Rundfunk (ORF); 191, 192 Ou tudo ou nada – Redwave Films, Channel Four Films, Twentieth Century-Fox Film Corporation; 193 Boleiros, era uma vez o futebol – SP Filmes; 195, 197 Como enlouquecer seu chefe – Twentieth Century-Fox Film Corporation; 198, 200 As cinzas de Ângela – David Brown Productions, Dirty Hands Productions, Scott Rudin Productions; 201 História Real – Asymmetrical Productions, Canal+, Channel Four Films, CiBy 2000, Les Films Alain Sarde, The Picture Factory, The Straight Story Inc., Walt Disney Pictures; 203, 204 Hurricane – Universal Pictures, Azoff Entertainment, Beacon Communications; 205, 207 Mauá – O imperador e o Rei – Lagoa Cultural e Esportiva, Toscana Audiovisual; 208, 210 O céu de outubro – Universal Pictures; 211, 212 Billy Elliot – Arts Council of England, BBC Films, Studio Canal, Tiger Aspect Productions, WT2 Productions, Working Title Films; 213 Erin Brockovich – uma mulher de talento – Jersey Films; 214, 217 Mar em fúria – Warner Bros. Pictures, Baltimore Spring Creek Productions, Radiant Productions; 218, 220 Pão e rosas – Alta Films, Alta Producción S.L. Unipersonal, BIM, Bac Films, British Screen Productions, British Sky Broadcasting, Cinart, Degeto Film, Film-


CRÉDITO DAS IMAGENS

Four, Filmcoopi Zürich, Filmstiftung Nordrhein-Westfalen, La Sept-Arte, Parallax Pictures, Road Movies Filmproduktion, Tornasol Films S.A., Westdeutscher Rundfunk; 221, 223 24 horas – Imagine Entertainment, 20th Century Fox Television, Real Time Productions; 224, 226 O homem que copiava – Globo Filmes, Casa de Cinema de Porto Alegre; 227 Segunda feira ao sol – Antena 3 Televisión, Elías Querejeta Producciones Cinematográficas S.L., Eyescreen S.r.l., Mediapro, Quo Vadis Cinéma, Sogepaq, Televisión de Galicia, Vía Digital; 229 Camelos também choram – Hochschule für Fernsehen und Film München, Bayerischer Rundfunk; 231, 233 Escola de Rock – Paramount Pictures, Scott Rudin Productions, MFP Munich Film Partners GmbH & Company I. Produktions KG, New Century, Sor Productions; 234 Moça com brinco de pérola – Archer Street Productions, Delux Productions, Film Fund Luxembourg, Pathé Pictures International, UK Film Council, Wild Bear Films; 236 Vaidade – Fabiano Maciel; 238, 240 Fahrenheit 9/11 – Lions Gate Films, IFC Films, Fellowship Adventure Group, Dog Eat Dog Films, Westside Production Services, Miramax Films; 241, 242 Peões – VideoFilmes; 243 Ray – Universal Pictures, Bristol Bay Productions, Anvil Films, Baldwin Entertainment Group; 245, 246 A luta pela esperança – Universal Pictures, Miramax Films, Imagine Entertainment, Parkway Productions; 247, 249 Dois filhos de Francisco – Columbia TriStar Filmes do Brasil, Conspiração Filmes, Globo Filmes, ZCL Produções Artísticas; 250, 252 O que você faria? – Tornasol Films S.A., Arena Films, Cattleya, Alquimia Cinema; 253, 255 Terra Fria – Warner Bros. Pictures, Industry Entertainment, Participant Productions, Nick Wechsler Productions; 256, 258 V de vingança – Silver Pictures,Anarchos Productions Inc., Warner Bros., Fünfte Babelsberg Film, Medienboard Berlin-Brandenburg, DC Comics, Virtual Studios; 259 Botinada – Toro; 262, 264 A Procura da felicidade – Overbrook Entertainment, Escape Artists, Columbia Pictures Corporation, Relativity Media; 265, 266 O diabo veste Prada – Fox 2000 Pictures, Twentieth Century-Fox Film Corporation, Peninsula Films; 267 Zuzu Angel – Globo Filmes, Lereby Produções, Toscana Audiovisual, Warner Bros.; 270, 272 Caro Sr. Horten – Bulbul Films, Pandora Filmproduktion; 273, 275 Conversas com meu jardineiro – ICE3, K.J.B. Production, Studio Canal, France 2, Rhône-Alpes Cinéma, Canal+, Ciné Cinémas, Centre National de la Cinématographie, Procirep, Angoa-Agicoa; 276 Leões e cordeiros – Andell Entertainment, Brat Na Pont Productions, Cruise/Wagner Productions, United Artists, Wildwood Enterprises; 278, 280 Mad Men – Radical Media; 281, 283 O banheiro do Papa – Chaya Films, Laroux-Ciné, O2 Filmes; 284, 286 O diário de uma babá –The Weinstein Company, FilmColony; 287, 289 Oscar Niemeyer – A vida é um sopro – Fabiano Maciel; 290, 291 Ratattoulie – Pixar Animation Studios, Walt Disney Pictures; 292, 294 Tropa de elite – Zazen Produções, Posto 9, Feijão Filmes, The Weinstein Company, Estúdios Mega, Quanta Centro de Produções Cinematográficas, Universal Pictures do Brasil, Costa Films; 295, 297 Zodíaco – Warner Bros. Pictures, Paramount Pictures, Phoenix Pictures; 298, 300 João Saldanha – uma vida em jogo – Canal Brasil; 301, 303 Linha de passe – Universal Pictures do Brasil; 304, 306 Dúvida – Goodspeed Productions, Scott Rudin Productions; 307 Gran Torino – Double Nickel Entertainment, Gerber Pictures, Malpaso Productions, Matten Productions, Media Magik Entertainment, Village Roadshow Pictures, Warner Bros.; 309, 311

O emprego – Opusbou; 312, 314 O lutador – Wild Bunch, Protozoa Pictures, Saturn Films; 315, 317 Sex & the city – o filme – Darren Star Productions, HBO Films, New Line Cinema; 318, 320 Wall-E – Pixar Animation Studios, Walt Disney Pictures; 321, 323 A procura de Eric – BIM, Canto Bros., Les Films du Fleuve, Sixteen Films, Why Not Productions; 324, 326 Up – altas aventuras – Pixar Animation Studios, Walt Disney Pictures; 327 Amor sem escalas – Paramount Pictures, Cold Spring Pictures, DW Studios, The Montecito Picture Company, Rickshaw Productions, Right of Way Films; 329 Baaria - a porta do vento – Medusa Film, Quinta Communications, Ministero per i Beni e le Attività Culturali; 331, 332 Bem vindo – Nord-Ouest Productions, Studio 37, France 3 Cinéma, Mars Distribution, Fin Août Productions, Canal+, Cinecinema, Artémis Productions, Cofinova 5, Uni Étoile 5, Cinémage 3, Banque Populaire Images 9, Sofica Soficinéma 4, Agence Nationale pour la Cohésion Sociale et l’Egalité des C, C.R.R.A.V. Nord Pas de Calais, Région Nord-Pas-de-Calais, Centre National de la Cinématographie, Programme Media de la Communauté Européenne; 333, 335 Capitalismo – uma história de amor – Dog Eat Dog Films, Overture Films, Paramount Vantage, The Weinstein Company; 336, 338 Gigante – Ctrl Z Films, Rizoma Films, Pandora Filmproduktion, Ibermedia, Montevideo Socio Audiovisual, IDTV Film 339, 341 Invictus – Warner Bros. Pictures, Spyglass Entertainment, Revelations Entertainment, Mace Neufeld Productions, Malpaso Productions; 342, 344 Jean Charles – Mango Films; 345 Julie & Julia – Columbia Pictures, Easy There Tiger Productions, Scott Rudin Productions; 347, 349 Lula o filho do Brasil – LC Barreto Produções Cinematográficas, Filmes do Equador, Intervídeo Digital; 350 Trotsky: a revolução começa na escola – Vinny Filmes; 352, 354 A chave de Sarah – Hugo Productions, Studio 37, TF1 Droits Audiovisuels, France 2 Cinéma, Canal+, TPS Star, France Télévision, Région Ile-de-France, A Plus Image; 355, 357 A rede social – Columbia Pictures, Relativity Media, Scott Rudin Productions, Michael De Luca Productions, Trigger Street Productions; 358, 360 Conflito das águas – Morena Films; 361 O mágico – Django Films Illusionist, Ciné B, France 3 Cinéma, Canal+, Cinecinema, France 3; 363, 365 Tropa de Elite 2 – Globo Filmes, Feijão Filmes, Riofilme, Zazen Produções; 366 Um doce olhar – Kaplan Film Production, Heimatfilm, Eurimages, Filmstiftung Nordrhein-Westfalen, ZDF/Arte, Programme Media de la Communauté Européenne; 368, 370 A dama de ferro – Film4, UK Film Council, Canal+, Cinecinema, Goldcrest Pictures, DJ Films, Pathé; 371 Histórias cruzadas – DreamWorks SKG, Reliance Big Entertainment, Participant Media, Imagenation Abu Dhabi FZ, 1492 Pictures, Harbinger Pictures; 373 Lições de um sonho – Deutschfilm, Cuckoo Clock Entertainment, Senator Film Produktion, Rialto Film (co-production), ARD Degeto Film (co-production), Senator Film; 375 Sem limites – Many Rivers Productions, Boy of the Year, Intermedia, Relativity Media, Virgin Produced; 377, 379 Django livre – The Weinstein Company, Columbia Pictures; 380, 382 Heleno – Goritzia Filmes, RT Features; 383 Batman o cavaleiro das trevas resurge – Warner Bros. Pictures, DC Entertainment, Legendary Pictures, Syncopy; 385, 387 No – Fabula, Participant Media, Funny Balloons, Canana Films; 388, 390 Capitão Phillips – Michael De Luca Productions, Scott Rudin Productions, Translux, Trigger Street Productions; 391, 393 Dossiê Jango – Canal Brasil, Instituto Presidente João Goulart.


CENTRO DE MEMÓRIA SINDICAL contato@memoriasindical.com.br www.memoriasindical.com.br Presidente: Milton Cavalo DIREÇÃO: Fundador: Hugo Martinez Perez 1º Vice presidente: Jorge Carlos de Moraes (Araquém) 2º Vice presidente: Djalma de Paula 1º Secretário Geral: Marcos Milanez 2º Secretário Geral: Luiz Carlos Motta 1º Tesoureiro: José Carlos Nascimento 2º Tesoureiro: Wilson Florentino de Paula Diretor de Relações Sindicais: João Batista Inocentini Diretor Social: Elenildo Queiroz Santos Conselho Fiscal: Rosana Cristina Marani Sacillotto, Mariana dos Santos Primo Equipe técnica: Carolina Maria Ruy, Fátima Fernandes

*** FORÇA SINDICAL

secgeral@fsindical.org.br www.fsindical.org.br Presidente: Miguel Torres Fundador: Luiz Antonio de Medeiros Presidente licenciado: Paulo Pereira da Silva (Paulinho) Secretário-Geral: João Carlos Gonçalves ( Juruna) Tesoureiro: Ademir Lauriberto Ferreira DIRETORIA EXECUTIVA: Melquíades de Araújo, Antonio de Sousa Ramalho, Eunice Cabral, Levi Fernandes Pinto, João Batista Inocentini, Paulo Roberto Ferrari, Carlos Alberto dos Reis, José Lião, Wilmar Gomes dos Santos, Abraão Lincoln Ferreira da Cruz, Antonio Silvan Oliveira, Carlos Antonio Figueiredo Souza, Terezinho Martins da Rocha, Valdir de Souza Pestana, Maria Augusta C. Marques, Fernando Destito Francischini, Francisco Soares de Souza, Gidalvo Gonçalves Silva, Luiz Carlos Gomes Pedreira, Rubens Romão Fagundes, Nilton Rodrigues da Paixão Jr., Nilton Souza da Silva (Neco), Geraldino dos Santos Silva, Anderson Teixeira, Arnaldo Gonçalves, José Pereira dos Santos, Paulo José Zanetti, Maria Auxiliadora dos Santos, Jefferson Tiego da Silva, Adalberto Souza Galvão, Ruth Coelho Monteiro, Helena R. da Silva, Luiz Carlos Anastácio, Hebert Passos Filho, Carlos C. Lacerda, Elmo Silveira Léscio, Walzenir Oliveira Falcão, Valdir Pereira da Silva, Milton B. de Souza Filho, Jamil Dávila e Eliana Aparecida C. Santos.





ISBN 978-85-66157-07-9


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