Celuzlose 10

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celuzlo se Revista

Literรกria

10 ~ Dezembro 2013


Sumário 04 Luis Aguilar

?!

24 Adriano Scandolara Ana Peluso Anderson Fonseca Carla Kinzo

Célia Musilli Cesar Veneziani Donny Correia Fábio Romeiro Gullo Glauco Mattoso

Guilherme Gontijo Flores Jeanne Callegari Luiz Roberto Guedes Viviane de Santana Paulo

56 Germain Droogenbroodt (Bélgica/Espanha) Gloria Trinidad (Espanha)

64 Em defesa das biografias de escritores e contra a burocratização da crítica literária • por Claudio Willer Broquéis: corpo em excesso num diálogo com Baudelaire • por Aline Aimée O menor na poesia de Rui Pires Cabral • por Charles Marlon O novo parto na língua portuguesa em valter hugo mãe: ou um renascimento para Portugal (?) • por Paula Fábrio Um passeio cosmopolita com António Franco Alexandre • por Vivian Steinberg A intertextualidade e a percepção dos aspectos formais do texto: uma experiência de leitura em Onde vivem os monstros de Maurice Sendak • por Geovanina Maniçoba Ferraz

124 Percy Bysshe Shelley • por Adriano Scandolara

140 Paulo Aquarone

celuzlose # 10 ~ Dezembro 2013 Expediente

Colaboraram com esta edição:

Contato: celuzlose@gmail.com

Adriano Scandolara • Aline Aimée • Ana Peluso Os textos e imagens Anderson Fonseca • Carla Kinzo • Célia Musilli • Cesar Veneziani desta revista Charles Marlon • Claudio Willer • Donny Correia Editor: poderão ser usados Fábio Romeiro Gullo • Geovanina Maniçoba Ferraz Victor Del Franco para fins não comerciais, Germain Droogenbroodt • Glauco Mattoso • Gloria Trinidad desde que sejam citados Guilherme Gontijo Flores • Jeanne Callegari • Luis Aguilar Capa, Projeto Gráfico, os nomes dos autores, Luiz Roberto Guedes • Paula Fábrio • Paulo Aquarone Diagramação e Revisão: o nome da revista Paulo Ferraz • Vivian Steinberg • Viviane de Santana Paulo Victor Del Franco e o link correspondente. 02 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


Editorial Outros diálogos

Há alguns anos, a Mantis Editores (México) e a Universidad Autónoma de Nuevo León em parceria com o Selo Sebastião Grifo (Brasil) realizam traduções e publicações de poetas brasileiros e mexicanos. Um dos coordenadores desse projeto é o poeta e professor Luis Aguilar que esteve no Brasil, em julho de 2013, para participar do lançamento dos livros mais recentes da coleção. O encontro aconteceu na Casa das Rosas, em São Paulo, juntamente com a presença do poeta e editor Paulo Ferraz que é o responsável pelo Selo Sebastião Grifo. Em outras oportunidades, Luis Aguilar também participou de leituras e ampliou o diálogo com poetas brasileiros. E isso fica evidente em suas próprias palavras: “Es una oportunidad de intercambio realmente única. Esos son los espacios que los poetas y la poesía requieren para un mayor alcance, para una mejor difusión en otras latitudes”. Certamente, a internet facilitou bastante o diálogo e o conhecimento do trabalho de poetas em diversas cidades e países, no entanto, é no contato direto que as ideias fluem melhor e os projetos iniciais se tornam realidade. Os diálogos entre Brasil e México continuam e a perspectiva é favorável para que novos projetos se realizem. Seguimos em frente. Boa leitura. Victor Del Franco Editor

Celuzlose 09 Clique aqui http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_09 a

para ler a 9 edição Celuzlose 10 • Dezembro 2013 03


Foto: Jacobo Parra

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Luis Aguilar 04 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


Entre ? ! vista

~ Bras

~ o c i x

o l g á o i s D

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Nasceu em Tamaulipas/México, 1969. É poeta, escritor e jornalista. Entre alguns de seus livros estão: Eclipses y otras penumbras (Poesia, 1998), Soberbia de cantera (Crônicas, 2000) e Lateral izquierdo (Contos, 2011). É professor da Universidad Autónoma de Nuevo León, instituição que, em 2010, lhe concedeu o Premio a las Artes Literarias. Nesse mesmo ano, recebeu também o Premio Internacional de Poesía Nicolás Guillén pelo livro Fruta de temporada (Poesia, 2010). Sua obra já foi traduzida para o inglês, francês e português.

Entrevista feita por Paulo Ferraz e Victor Del Franco Celuzlose 10 • Dezembro 2013 05


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Há alguns anos, você participa de um projeto para a realização de traduções de poetas mexicanos e brasileiros. Esse projeto é feito entre a Mantis Editores (México) e a Universidad Autónoma de Nuevo León em parceria com o Selo Sebastião Grifo (Brasil). Gostaria que você falasse um pouco desse projeto e da parceria com a editora brasileira. Como foram os primeiros contatos? Como tudo começou? Tudo começou como começa tudo na literatura: por casualidade. Um amigo leu alguns textos do Paulo Ferraz e o Paulo Ferraz conhecia alguns espaços da poesia mexicana contemporânea. Quando a Mantis decidiu se aproximar da tradução para o português, o primeiro contato teria que ser com alguém que conhecesse a poesia mexicana. Assim chegamos ao Selo Sebastião Grifo. Quando apresentamos o projeto ao editor Ferraz, ele aceitou na hora e começamos a trabalhar. Os frutos desta colaboração somam, até agora, cerca de 15 poetas mexicanos traduzidos para o português, 7 brasileiros traduzidos para o espanhol e cerca de 30 autores brasileiros traduzidos para o espanhol organizados em uma antologia que preparei e que aparecerá em breve com o selo da Universidad Autónoma de Nuevo León e da editora Vaso Roto.

Foto: Jacobo Parra

Todo comenzó como comienza todo en la literatura: por casualidad. Un amigo había leído alguos textos de Paulo Ferraz; y Paulo Ferraz conocía algunos espacios de la poesía mexicana contemporánea. Cuando Mantis decidió acercarse a la traducción al portugués, el primer contacto tenía que ser alguien que conociera de poesía mexicana. Así llegamos a Sebastião Grifo. Cuando le planteamos al editor Ferraz el proyecto, éste aceptó de inmediato y comenzamos a trabajar. Los frutos de esta colaboración suman ahora cerca de 15 poetas mexicanos traducidos al portugués; 7 brasileños traducidos al español; y cerca de 30 autores brasileños traducidos al español recopilados en una antología que preparé y que aparecerá en breve bajo el sello de la Universidad Autónoma de Nuevo León y la editorial Vaso Roto.

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“Os frutos desta colaboração somam, até agora, cerca de 15 poetas mexicanos traduzidos para o português, 7 brasileiros traduzidos para o espanhol e cerca de 30 autores brasileiros traduzidos para o espanhol organizados em uma antologia que preparei e que aparecerá em breve”


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Quais são as perspectivas dessa parceria para os próximos anos? Numa viagem recente, outro amigo poeta me dizia que minha vida nos próximos anos estava irremediavelmente ligada ao Brasil. Eu lhe disse que não só irremediável, mas felizmente. Estas coedições as vejo saudáveis e com vida muito longa.

En un viaje reciente, otro amigo poeta me decía que mi vida en los próximos años estaba irremediablemente ligada a Brasil. Yo le dije que no sólo irremediable, sino afortunadamente. Estas coediciones las veo sanas y con muy larga vida.

Você já esteve no Brasil algumas vezes participando de leituras de poemas e lançamentos de livros. Qual avaliação você faz desses diálogos com poetas brasileiros? É uma oportunidade de intercâmbio realmente única. Esses são os espaços que os poetas e a poesia requerem para um maior alcance, para uma melhor difusão em outras latitudes. É certo que as redes sociais facilitaram tudo, inclusive a difusão da poesia, mas os espaços com o contato direto, o fluir de todas as inquietações de uns e outros, trazem desde ideias até projetos concretos para continuar trabalhando. Curiosamente, eu encontrei em minha primeira visita um interesse mútuo entre os escritores brasileiros e mexicanos, e sou testemunha do esforço que ambos têm feito para ler em outra língua. Esse esforço, sem dúvida, merece espaços de publicação como aqueles que temos criado ao longo destes anos de trabalho conjunto.

Es una oportunidad de intercambio realmente única. Esos son los espacios que los poetas y la poesía requieren para un mayor alcance, para una mejor difusión en otras latitudes. Es cierto que las redes sociales han facilitado todo, incluso la difusión de la poesía, pero los espacios en vivo y en directo, el fluir de todas las inquietudes de unos y otros, aportan desde ideas hasta proyectos concretos para continuar trabajando. Curiosamente, yo encontré en mi primera visita que había un interés mutuo entre los escritores brasileños y mexicanos, y soy testigo del esfuerzo que unos y otros han hecho por leer en otra lengua. Ese esfuerzo, sin duda, amerita espacios de publicación como los que hemos creado a lo largo de estos años de trabajo conjunto. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 07


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A literatura mexicana é relativamente pouco conhecida no Brasil, não apenas as gerações mais recentes, mesmo os grandes poetas do século XX como José Juan Tablada, José Gorostiza e Eduardo Lizalde só há poucos anos tiveram livros publicados em português, enquanto outros como Xavier Villaurrutia e José Emílio Pacheco aparecem apenas em antologias. Assim, o poeta mexicano mais conhecido entre nós segue sendo Octavio Paz, ainda que mais lido como ensaísta. Na prosa, igualmente há poucos nomes, lemos Alfonso Reyes, Juan Rulfo, Carlos Fuentes e Salvador Elizondo, mas praticamente nada de Carlos Monsivais ou outros prosadores da segunda metade do século XX. Quais nomes seriam os escritores ou livros imprescindíveis para que os leitores brasileiros conhecessem melhor a literatura mexicana? O universo da literatura mexicana é vastíssimo em todos os tempos. Particularmente, entre os séculos XX e XXI, houve uma explosão de grandes literatos e pensadores mexicanos. Nessa lista eu colocaria autores do talento do próprio Carlos Monsiváis, que a sua maneira criou seu próprio “labirinto da solidão” em sua versão da realidade mexicana e do mexicano; e outros autores como Mariano Azuela, Martín Luis Guzmán, Fernando del Paso, Jorge Ibargüengoitia, Salvador Novo, José Revueltas, Elena Poniatowska, Agustín Yáñez, Augusto Monterroso, Ricardo Garibay, Juan García Ponce, Sergio Pitol, Elena Garro; numa narrativa renovada em seguida pelas contribuições do chamado grupo da “Onda”, que foi liderada por José Agustín, Parménides Saldaña e Gustavo Sainz que, de muitas maneiras, refrescaram a escrita mexicana até finais dos anos 1960, para logo dar passagem às “novas gerações”, escritores que rondam os 50 anos e onde figuram escritores tão reconhecidos como Elmer Mendoza, Pedro Ángel Palou, Luis Zapata, Ignacio Padilla, Pablo Soler Frost, Eduardo Antonio Parra e Cristina Rivera Garza ou Mario Bellatín, entre outros. Entre os poetas citaria, além dos já mencionados, homens e mulheres do talento poético de Amado Nervo, Ramón López Velarde, José Gorostiza – de merecida menção especial; Carlos Pellicer, Rosario Castellanos, Alí Chumacero, Jaime Sabines, Rubén Bonifaz Nuño, Jaime Labastida, Gabriel Zaid, Efraín Huerta, Francisco Hernández e Abigael Bohórquez; e, muito mais recentemente, poetas de inestimável crescimento nas últimas décadas, como Jorge Fernández Granados, Coral Bracho, Jeannette Clariond, Jorge Esquinca, Luis Armenta Malpica, Ricardo Castillo, Francisco Magaña, Jeremias Marquines ou Armando Alanís Pulido, o antipoeta mais reconhecido e reconhecível no México.

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El universo de la literatura mexicana es vastísimo en todos los tiempos. Particularmente durante los siglos 20 y 21, hubo una explosión de grandes literatos y pensadores mexicanos. En esa lista yo colocaría a autores de la talla del propio Carlos Monsiváis, quien a su manera creó su propio “laberinto de la soledad” en su visión de la realidad mexicana y del mexicano; y a otros autores como Mariano Azuela, Martín Luis Guzmán, Fernando del Paso, Jorge Ibargüengoitia, Salvador Novo, José Revueltas, Elena Poniatowska, Agustín Yáñez, Augusto Monterroso, Ricardo Garibay, Juan García Ponce, Sergio Pitol, Elena Garro; en una narrativa revolucionada luego por las aportaciones del llamado grupo de la “Onda”, que encabezó José Agustín, Parménides Saldaña y Gustavo Sainz, y quienes de muchas maneras refrescaron la escritura mexicana hacia finales de los años sesenta, para luego dar paso a las “nuevas generaciones”, escritores que rondan los 50 años y donde figuran narradores tan reconocidos como Elmer Mendoza, Pedro Ángel Palou, Luis Zapata, Ignacio Padilla, Pablo Soler Frost, Eduardo Antonio Parra y Cristina Rivera Garza o Mario Bellatín, entre otros. Entre los poetas enlistaría, además de los que mencionas, a hombres y mujeres de la talla poética de Amado Nervo, Ramón López Velarde, José Gorostiza – de merecida mención aparte; Carlos Pellicer, Rosario Castellanos, Alí Chumacero, Jaime Sabines, Rubén Bonifaz Nuño, Jaime Labastida, Gabriel Zaid, Efraín Huerta, Francisco Hernández y Abigael Bohórquez; y, mucho más recientemente, poetas de invaluable crecimiento en las últimas décadas, como Jorge Fernández Granados, Coral Bracho, Jeannette Clariond, Jorge Esquinca, Luis Armenta Malpica, Ricardo Castillo, Francisco Magaña, Jeremias Marquines o Armando Alanís Pulido, el antipoeta más reconocido y reconocible en México.

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Por sinal, alguns dos principais escritores mexicanos recebem uma espécie de “aposentadoria” do Estado em sua velhice, que seria um reconhecimento por sua obra. Como se dá a escolha dos nomes? Em geral, o meio literário concorda ou, ao contrário, as escolhas geram polêmica? São as chamadas bolsas para “Criadores Eméritos” que, como seu nome indica, é outorgada pelo Estado mexicano através do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes àqueles autores que, pelo valor e alcance de sua obra artística, se fizeram merecedores de uma subvenção econômica permanente. Até onde tenho conhecimento, é estabelecida uma comissão julgadora e é esta que, por solicitação própria dos artistas, determina a quem será concedida a bolsa. É importante e me parece a mais justa das bolsas, porque geralmente é concedida a pessoas que dedicaram toda sua vida à arte sem a preocupação com sua segurança econômica futura. Então, reconhecê-los com essa bolsa os permite, em todos os sentidos, terem acesso a um envelhecimento digno e seguro. As outras bolsas podem ser questionadas, esta, me parece, não tem discussão.

Foto: Jacobo Parra

Son las llamadas becas a “Creadores Eméritos” que, como su nombre indica, es otorgada por el Estado mexicano a través del Consejo Nacional para la Cultura y las Artes a aquellos autores que, por el valor y alcance de su obra artística, se hacen merecedores a una subvención económica permanente. Hasta donde tengo entendido, se establece una comisión dictaminadora, y es esta la que, a solicitud propia de los artistas, determina a quién se le concede. Es importante y me parece la más justa de las becas, porque generalmente es concedida a gente que dio toda su vida al arte sin preocuparse u ocuparse de su seguridad económica futura. Entonces, reconocerlos con esa beca les permite en todos sentidos tener acceso a una vejez digna y segura. Las otras becas pueden ser cuestionadas, ésta, me parece, no tiene discusión.

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A política de prêmios e bolsas no México é ampla, tanto na esfera do governo federal, quanto nos estaduais, com alguns prêmios de peso como Aguascalientes e Jaime Sabines. Qual a importância dessa política na produção literária mexicana, especialmente para os jovens escritores? E em que medida os prêmios conferidos refletem o valor dos escritores? Os prêmios literários, no meu ponto de vista – e ganhei alguns –, permitem certa exposição dos autores premiados ao mundinho midiático; a melhor circulação desses livros em particular e, em muitos casos, resolver algumas dívidas. Fora isso, podemos dizer que não acrescentam muito mais. Pois bem, seria muito falso não reconhecer que, em um sistema institucional onde os planos partem do establishment, eles permitem acesso a certos níveis de promoção e até de decisão (podem convidá-lo com mais frequência como jurado de outros prêmios). No entanto, um prêmio não garante, necessariamente, a qualidade de um livro (no melhor dos casos, é um acordo entre três jurados que só indica seu próprio gosto estético), mas legitima o poeta no âmbito de seu desempenho.

Los premios literarios, desde mi perspectiva – y he ganado algunos –, permiten cierta exposición de los autores ganadores al mundillo mediático; la mejor circulación de esos libros en particular y, en no pocos casos, resolver algunas deudas. Fuera de eso, podemos decir que no aportan mucho más. Ahora bien, sería una falsa pose no reconocer que, en un sistema institucional donde los planos parten del establishment, te permiten acceso a ciertos niveles de promoción y hasta de decisión (pueden invitarte con más frecuencia como jurado de otros premios). Si bien un premio no garantiza la calidad de un libro necesariamente (en el mejor de los casos es un acuerdo entre tres jurados que sólo indica su propio gusto estético), sí legitima al poeta en el ámbito de su desempeño.

“No entanto, um prêmio não garante, necessariamente, a qualidade de um livro (no melhor dos casos, é um acordo entre três jurados que só indica seu próprio gosto estético)” Celuzlose 10 • Dezembro 2013 11


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Há um lugar especial para Abigael Bohórquez na história da poesia mexicana ou esse lugar ainda precisa ser reivindicado por seus atuais leitores? Abigael Bohórquez começa a ser colocado em um lugar que, por direito, lhe pertence. E a razão de que até agora ele não foi reconhecido como o “inventor” de linguagens que foi, de que ele não tenha sido coroado como o grande escritor que é, tem a ver com um país onde o lado da cama onde você dorme define muito da sua vida profissional. Abigael foi um grande escritor, mas foi um poeta crítico que se ocupava das causas sociais em seus textos, que vociferava, expunha o sistema e exigia aos gritos; além disso, era viado – não gay, sei que ele não gostaria desse termo; era viado, com “i”. Recentemente, Mantis Editores publicou uma antologia dele no México, que será publicada também em português na tradução de Paulo Ferraz que, certamente, atrairá mais leitores e mais adeptos a um dos poetas mais potentes do México na segunda metade do século XX.

Abigael Bohórquez empieza a colocarse en el lugar que por derecho le pertenece. Y la razón de que hasta ahora no se le haya reconocido como el “inventor” de lenguajes que fue, de que no se le haya coronado como el magnánimo escritor que es, tiene que ver con un país donde el lado de la cama en que duermes define mucho de tu vida profesional. Abigael era un gran escritor, pero era un poeta crítico que se ocupaba de las causas sociales en sus textos, que vociferaba, exponía al sistema y exigía a gritos; para colmo, era maricón – no gay, sé que no le gustaría el término; era maricón, con acento en la “o”. Recientemente, Mantis Editores ha publicado una antología suya en México, que aparecerá ahora en portugués en la traducción de Paulo Ferraz, lo que seguramente dotará de más lectores y mayores adeptos a uno de los poetas más potentes que ha dado México en la segunda mitad del siglo 20.

Foto: Jacobo Parra

“Para mim, a poesia deve ter ideia de fundo e transparência de forma”

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Fernando Pessoa possuía diversos heterônimos, alguns com personalidades bem desenvolvidas, complexas e independentes, como é o caso de Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Nessa linha, Luis Aguilar é sempre Luis Aguilar ou possui heterônimos, outras personalidades ou outras vozes nas quais se expressa? Muitas vozes, apenas um nome. O que quero dizer, seja em um tom feminino, homoerótico, comprometedor ou ridículo, gosto de colocar minha assinatura. Tenho muitos textos, por exemplo, com voz feminina (Mantel de tulipanes amarillos tem uma parte completa com voz de mulher; Decoración de interiores é um livro inteiro em voz feminina). É um tom no qual me sinto à vontade e acho um desafio interessante esse tipo de crossover literário; de cuidar do olhar feminino, do movimento feminino, do sentir feminino para contar coisas a partir da escrita de um homem. Não é, como alguns críticos desorientados publicaram, um “ocultamento” de minha escrita homoerótica. Se fosse assim, não existiria La entrañable costumbre o El libro de Felipe, um livro – este sim – escrito a partir do homoerotismo pleno e, além disso, feliz. Acontece que, em muitas ocasiões, aqueles que pensam conhecer o autor de um texto, o procuram nesse texto até a esquizofrenia, e deixam de ler a obra para tentar ler a vida do escritor. Eu tento evitar precisamente isso com uma definição clara do que proponho como exercício de escrita: não há nada para procurar, porque não me esforço para esconder nada. Para mim, a poesia deve ter ideia de fundo e transparência de forma. O resto é um jogo perverso de covardias e ocultamentos. Desnecessário, além disso, nesta altura do século XXI.

Voces muchas, nombres uno sólo. A lo que quiero decir, sea en un tono femenino, homoerótico, comprometedor o ridículo, me encanta colocarle mi firma. Tengo muchos textos, por ejemplo, con voz femenina (Mantel de tulipanes amarillos tiene un apartado completo con voz de mujer; Decoración de interiores es un libro entero en voz femenina). Es un tono en el que me siento cómodo y encuentro como un reto interesante esta especie de crossover literario; de ocuparte de la mirada femenina, del movimiento femenino, del sentir femenino para contar cosas desde la escritura de un hombre. No es, como algunos críticos despistados han publicado, un “ocultamiento” de mi escritura homoerótica. De ser así no existiría La entrañable costumbre o El libro de Felipe, un libro – este sí – escrito desde el homoerotismo pleno y, además, feliz. Ocurre que, en no pocas ocasiones, quienes creen conocer al autor de un texto lo buscan en él hasta la esquizofrenia, y dejan de leer la obra por intentar leer la vida del escritor. Yo trato de evitar precisamente esto con una definición clara de lo que propongo como ejercicio de escritura: No hay nada que buscar, porque no me empeño en ocultar nada. Para mi la poesía debe tener idea de fondo y transparencia de forma. Lo demás es un juego perverso de cobardías y ocultamientos. Innecesario, además, a estas alturas del siglo 21.

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Por que a prosa tem uma presença tão marcante em sua poesia? Foi uma tendência natural, fruto de uma maior conexão de sua poesia com o mundo doméstico e com os assuntos mais íntimos? A prosa é mais expressiva que o verso? A prosa, sem dúvida, me permite explorar da melhor maneira os assuntos cotidianos, que são aqueles que interessam a minha poesia. Gosto de ler os poetas preciosistas que são capazes de capturar em um haicai a beleza de um floco de neve caindo. No entanto, eu prefiro o sangue pingando sobre esse campo nevado. Minha poesia busca a paixão antes que o vazio estético; o sangue, mais que a beleza. Se, ocasionalmente, consigo reunir o sangue com a beleza, será uma grande conquista. O resto não me interessa muito. Quando trabalho em um texto, por exemplo, estou primeiramente interessado na ideia de fundo, para passar, em seguida, à busca de uma transparência que permita ao leitor atravessar esse poema com sobressaltos da consciência, mas sem tropeçar pelo caminho. Nesse sentido, a prosa é sempre mais generosa; apesar de eu ter livros – publicados e inéditos – compostos em versificação livre. O outro elemento que poderia explicar essa preferência é, quem sabe, meu exercício do jornalismo cultural. Em minha poesia cruzo essa fina linha quase invisível que se coloca entre o jornalismo cultural e a literatura.

La prosa sin duda me permite explotar de mejor manera los asuntos cotidianos, que son los que interesan a mi poesía. Me da gusto leer a los poetas preciosistas que son capaces de atrapar en un haiku la belleza del descenso de un copo de nieve. Sin embargo, yo prefiero la sangre goteando sobre ese campo nevado. Mi poesía busca la pasión antes que el vacío estético; la sangre, más que la belleza. Si ocasionalmente logro reunir la sangre con la belleza, será un gran logro. Lo demás no me interesa demasiado. Cuando trabajo en un texto, por ejemplo, estoy primeramente interesado en la idea de fondo, para pasar luego a la búsqueda de una transparencia que permita al lector cruzar ese poema con sobresaltos de la conciencia, pero sin tropezar sus pies. En ese sentido, la prosa es siempre más generosa; aunque tengo libros – publicados e inéditos – trazados en versificación libre. El otro elemento que podría explicar esta preferencia es, quizá, mi ejercicio del periodismo cultural. En mi poesía cruzo esa delgada línea casi invisible que se coloca entre el periodismo cultural y la literatura.

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Além de Lateral Esquerdo (Conarte, 2011), você tem outros projetos ou livros de contos? Tenho um livro de contos terminado que, certamente, vai para algum concurso e, por isso, não revelo seu nome; e mais um em progresso no qual volto às mulheres, pois abordo sua capacidade violenta quando foram levadas a situações emocionais extremas na história da cultura popular musical do México.

Hay un libro de cuentos terminado, que seguro irá hacia algún concurso y por ello no revelo su nombre; y uno más en proceso en el que vuelvo a las mujeres, pues abordo su capacidad violenta cuando fueron llevadas a situaciones emocionales límite en el historial de la cultura popular musical de México.

Foto: Jacobo Parra

“Minha poesia busca a paixão antes que o vazio estético; o sangue, mais que a beleza. Se, ocasionalmente, consigo reunir o sangue com a beleza, será uma grande conquista”

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No livro Fruta de Temporada (Universidad de Quintana Roo, 2011) você explora alguns fenômenos linguísticos que comumente se entendem como vícios, como a dislexia e a dislalia e a mescla de idiomas, no caso o espanhol e o inglês, que são usados pelas pessoas que vivem na fronteira entre o México e os EUA. Você poderia nos falar mais sobre o livro e qual a sua percepção sobre esses fenômenos da linguagem? É interessante a pregunta porque nos leva a uma resposta que mistura o ambiente exterior do poeta com o mundo interior, este que busco desesperadamente alcançar com minha proposta intimista da poesia. O exercício procura, sem rodeios, rever os defeitos da fala ou da escrita que tem um dislálico ou disléxico, num jogo verbal onde se constroem algumas palavras a partir da desconstrução de outras. É um fenômeno cotidiano, mas que, no entanto, se aprofunda com o exercício poético enquanto que este se apropria daquele para expor uma nova forma de texto, quase oral, através da palavra escrita. Sobre o uso do espanglish, foi bem mais circusntancial. Tenho 16 sobrinhos e um bom número deles vivem nos Estados Unidos. Além disso, tenho uma irmã vivendo lá e outra de minhas irmãs que mora perto da fronteira com o Texas; então, as brincadeiras de linguagem sempre são estas misturas de idiomas com as quais jogamos e nos divertimos. Minha irmã mais velha, por exemplo, é viúva e tem um noivo. Quando saía com ele, dizia que iriam tomar um “coffee”; minha outra irmã e eu, naturalmente, sabíamos do que se tratava e celebrávamos essa mistura de sexo-cafezal. O acontecimento foi batizado de “tomar o coffee”. Portanto, essa frase, como muitas outras que aparecem no livro e que pareceria um uso linguístico do espanglish, é, na realidade, uma vertente intimista da minha poesia. Pois bem, isso é um exercício pessoal, mas é um fato que as fronteiras no mundo constroem o que tanto amo: uma linguagem intimista, própria, que rompe as barreiras dos idiomas em questão para estabelecer uma novidade. O que você procura? Essa intimidade da qual falamos: a que permite dois seres humanos com idiomas distintos, falar uma língua na qual se entendam. É fantástico. Os governos podem se afastar, seguir traçando fronteiras; os seres humanos sempre se entenderão.

16 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Es interesante la pregunta porque nos lleva a un respuesta que mezcla el entorno exterior del poeta con el mundo interior, este que busco desesperadamente alcanzar con mi propuesta intimista en la poesía. El ejercicio busca, sin rodeos, revisar las taras del habla o la escritura que tiene un dislálico o disléxico, en un juego verbal donde se construyen unas palabras a partir de la deconstrucción de otras. Es un fenómeno cotidiano, pero que sin embargo se profundiza con el ejercicio poético en cuanto que ésta se sirve de aquél para exponer una nueva forma de escritura, casi oral, a través de la palabra escrita. En cuanto al uso del espanglish, fue más bien circunstancial. Tengo 16 sobrinos y un buen número de ellos viven en Estados Unidos. Además, tengo una hermana viviendo allá y otra de mis hermanas que reside justo en la frontera con Texas; entonces, su lenguaje de bromas es siempre esta mezcla de idiomas con las que jugamos, nos divertimos. Mi hermana mayor, por ejemplo, es viuda y tiene un novio. Cuando iba a salir con él, nos decía que iban a tomarse un “coffee”; mi otra hermana y yo, desde luego, sabíamos a qué se refería, y celebrábamos esa mezcla sexo-cafetalera. Al acontecimiento lo bautizamos como “tomar el coffee”. Así que esta frase, como muchas otras que aparecen en el libro, y que parecería un uso lingüístico del espanglish, es en realidad una vertiente intimista de mi poesía. Ahora bien, esto es un ejercicio personal, pero es un hecho que las fronteras en el mundo construyen lo que tanto amo: un lenguaje intimista, propio, que rompe las barreras de los idiomas en cuestión para establecer uno nuevo que ¿qué busca? Esa intimidad de la que hablamos: la que le permita a dos seres humanos con idiomas distintos, hablar una lengua que les permita entenderse. Es fantástico. Los gobiernos pueden distanciarse, seguir trazando fronteras; los seres humanos siempre vamos a entendernos.

Nas 6 páginas seguintes, poemas de Luis Aguilar. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 17


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MIADO Às vezes sou aquele menino que ainda que não pareça é amedrontado : conhece a voz muda de tudo que é irremediável, enquanto a cidade desliza por um guichê que não registra ninguém. Costumo ser, também, um gato que visita motéis, pois não armazeno companhias. Às vezes invento rotas transatlânticas para a invalidez de minha alma; cozinho grãos-de-bico em mãos de chuva evaporada e empresto bacias vazias ao bate-papo anônimo de um parque. Logo me canso e parto. Abordo uma garoa momentânea e vou deixando pegadas invisíveis nas calçadas do mundo. Às vezes sou um gato de lugar algum que se assenhora de minha casa; algum nariz torcido na fila de qualquer carência; o alzheimer de um táxi que ocasionalmente lembra uma emboscada de tuas coxas, quando as minhas ainda sabiam teu nome.

TAREFA Que fazer com a insônia senão tatuá-la no mais profundo dos ossos? cavar com a palavra como se fosse uma colher : encontrar nas horas o lugar exato onde abordou os gatos. (Traduções: Paulo Ferraz) 18 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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POEMAS DO LIVRO Gatos de lugar algum MAULLIDO A veces soy el menino aquel que no lo parece pero es asustadizo : se sabe la voz muda de todo irremediable, mientras la ciudad se desliza por una ventanilla que no registra nadie. Suelo ser, también, un gato que visita los moteles, pues no almaceno compañías. A veces invento rutas transatlánticas para la invalidez de mi alma; cuezo garbanzos en manos de lluvia evaporada y presto cuencas vacías a las charlas anónimas de un parque. Luego me canso y retiro. Abordo una llovizna momentánea y voy dejando huellas invisibles en las aceras del mundo. A veces soy un gato de ninguna parte que se adueña de mi casa; algún ceño fruncido en la fila de cualquier carencia; el alzheimer de un taxi que ocasionalmente recuerda una emboscada de tus muslos, cuando los míos aún sabían tu nombre.

TAREA ¿Qué hacer con el insomnio sino tatuarlo en lo más profundo de los huesos? cavar con la palabra como si fuera una cuchara : encontrar en las horas el sitio exacto donde abordó a los gatos.

Celuzlose 10 • Dezembro 2013 19


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GATO CON CIGARRILLO GATO COM CIGARROS Hay una ventana que da al patio y refracta sobre los mosaicos la virilidad femenina de esta luna.

Há uma janela que dá pro pátio que reflete nos mosaicos a virilidade feminina desta lua.

Una hilerilla de humo – al lado de las macetas – respira albahaca y mejorana; arrulla el dolor de algunos arañazos para encontrar el negro, arropa en la canastilla de esta noche a los últimos gatos.

Uma fileirinha de fumaça – ao lado dos vasos – respira manjericão e manjerona; arrulha a dor de alguns arranhões para encontrar o negro, agasalha na cestinha desta noite os últimos gatos.

POEMAS DO LIVRO Gatos de lugar algum

UN GATO OBSERVA MIENTRAS DUERMES UM GATO OBSERVA ENQUANTO DORMES Na leve desordem de teu leito ronrono meus ciúmes diante do romance do algodão com teu corpo; esse pudor de barco semi naufragado com o que me abandonas enquanto incito os gatos a macular esta paz

En el tibio desorden de tu lecho ronroneo mis celos ante el romance del algodón con tu cuerpo; ese pudor de barco semihundido con el que me abandonas mientras busco que los gatos manchen esta paz tan

tão

tan

tão

tan

tão

blanca. branca.

20 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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TESTAMENTO Deixo-lhes todo o tempo. Eliseo Diego Deixo a mesa posta e o vinagre aberto. Deixo todo o mar e o coralíneo pente da raiva. Também lhes deixo [a quem queira] a fera mais feroz das quantas tive: é, toda sua, a memória.

POEMA DO LIVRO Os olhos já desfeitos

TESTAMENTO Les dejo todo el tiempo. Eliseo Diego Dejo la mesa puesta y el vinagre abierto. Dejo todo el mar y el peine coralino de la rabia. Les dejo también [a quien ansíe] la fiera más feroz de cuantas hubo: es, toda suya, la memoria.

Celuzlose 10 • Dezembro 2013 21


Entre ? ! vista

Parecia que não, mas se pode. Questão de lhe agarrar no neon algum bocejo; um cara que nos mostra o amor oculto em deizesseis graus alcoólicos ao meio dia quando mamãe enfermeira do turno da noite cata dólares numa danceteria arruinada enquanto

sonha que se a linha,

a linha, a linha

POEMAS DO LIVRO Fruta de temporada

Pareciera que no, pero se puede. Cuestión de atraparle a al neón algún bostezo; un tío que nos muestra el amor oculto en diecisiéis grados de alcohol justo a las doce del día en que mamá enfermera del turno de la noche cacha dólares en un danzón ruinoso mientras

sueña que si la línea,

la línea, la línea

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Entre ? ! vista

Pensar em nada como se parecesse que não, mas se pode. Beirada sobre a esquina da esquerda pois o resto rebaixa, desbarata. É claro o

nome da esquina

pois não acredito no anonimato vil de certas iniciais. Deixo claro, o nome. Depois acontece ou sucede se é o mesmo que anoitece um homem vermelho no banquinho impuro do reçacho. Depois ele vinha sangrando uma herança. Levava umas tesolhos de ouras profundos na mão. Nisso, passou o afiador e se deu a fuga. Quando me despertou o sussurro tapei a boca do animal. Não era hora ainda de cantar. Cantar. As fiandeiras – mesmo que de leve – vivem de tecer a persistência.

Pensar nada si como pareciera que no, pero se puede. Bordo sobre la esquina de la izquierda pues el resto aminora, desbarata. Es claro el

nombre de la esquina

pues no creo en el anonimato vil de ciertas iniciales. Lo dejo claro, el nombre. Después ocurre o sucede si es lo mismo que anochece un hombre rojo en la banqueta impura del rezacho. Tras el venía desangrándose una herencia. Llevaba unas tijeras de profojos undos en la mano. En eso pasó el afilador y fue la fuga. Cuando me despertó el susurro tapé la boca al animal. No era tiempo aún de que cantara. Cantara. Las hilanderas – aún de paso – viven de tejer la persistencia.

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Literatura Brasileira Contemporânea

Adriano Scandolara Nasceu em Curitiba, 1988. Poeta e tradutor, formado em Letras e mestre em Estudos Literários pela UFPR, onde estudou e traduziu o poema Prometeu Desacorrentado de Percy Bysshe Shelley, ainda inédito. Também traduziu os livros Deuses Sem Homens, do romancista Hari Kunzru (Nossa Cultura, 2013) e O Gênio Não Original: poesia por outros meios no novo século, da crítica Marjorie Perloff (Editora da UFMG, 2013). Tem poemas publicados em revistas como Babel Poética, Germina Literatura e no Caderno Ilustríssima. Livro publicado: Lira de Lixo (Patuá, 2013). Integra o coletivo escamandro: www.escamandro.wordpress.com

Uma anedota Ontem de noite na rua um senhor que presume-se ser um mendigo me pergunta se eu não quero comprar um celular preto, do tipo de flip, “É que eu preciso de dinheiro pra comprar gasolina”, disse ele.

Introspecto Incompreensível ao ouvido desfeita e refeita voz no ar como buzina retira-se cansado o sol rádio em monólogo anuncia ao único ocupante de cada um dos carros em fila na avenida a solidez imprensável do espaço vazio ao longo de vinte quilômetros

Dei as moedas que tinha e parti com a esperança de que ele, longe de parecer ter carro, ao som da cítara eletrônica do telefone, pudesse ser a reencarnação de Nero.

seis da tarde: solidão.

Da indecisão O sopro do mesmo vento em todas estas vielas incenso, perfumes becos abrigando mendigos, morar exu na encruzilhada como oscila uma folha sem fé. 24 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Ode ao Edifício Ricardo a Roger Alberto Meluso, R.I.P. Eu, sozinho, no prédio todo não ouvi os estertores: ia ao banco, quando quase tropeço no cadáver. Naturalidade Correndo desesperado o pobre diabo desceu os degraus delirante perdendo a calça a perna falsa toda dignidade o caco que restou na calçada deitou, a Deus clamou que não morresse e como chama em cachimbo de crack nos becos da noite

Amar a natureza como mãe megera, o abutre (da foto premiada) faminto rondando a criança sudanesa ainda mais faminta.

apagou. E eu quase tropeço no cadáver.

E o leão marinho estuprador de pinguins sobre a tundra glacial. (Nada há de mais natural) Noé enchia a cara e não era à toa.

Ode ao Edifício Ricardo (II) Naturalidade (II) Anunciada por decreto a perda da liberdade em troca da perda da liberdade do ladrão em série das calcinhas no varal comunitário do terraço. E o que a câmera flagrou: esse delinquente que chega pulando os muros na tempestade o vento a colher seu espólio, à mão leve, e reparti-lo com passantes na rua.

Imagino que um safári deva ser como visitar a casa da mãe depois de adulto, os urros do gnu que o leão devora vivo, a carcaça oca de girafa onde uma hiena brinca como criança, vê-la velha frágil preparando café e lembrando tudo que te fez perceber que um dia teria que ir embora.

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Ana Peluso Paulistana e poeta. Participou de algumas antologias e tem um livro publicado: 70 poemas (Patuá, 2013).

tinha uma labirinto no meio do caminho a saída era de pedra tinha um caminho no meio do caminho desencaminharam-se atrás de uma pedra

E-mail em construção para Rodrigo de Souza Leão

tinha uma flor no meio do caminho no meio do caminho tinha um flor totalmente refém de uma pedra tinha uma mosca no meio do caminho todo âmbar há de ser pedra no meio do caminho tinha um homem tinha um homem no meio do caminho com o coração feito de pedra tinha uma lua no meio do caminho o eclipse era a pedra tinha você no meio do caminho antes de você virar pedra

/à/ boca a/lucinado me amarraram a cama o lenço o lençol o eletro o céfalo o falograma que mandei pra você chegou /?/ atrasado o dente que morde o travesseiro me diz e o cheiro da voz da Cora Rónai? Tarantino é foda / dói demais /é/ um estouro dentro da cabeça você não sabe o que é um estouro /dentro/ da cabeça/ mas é / ex/touro o dente caiu de vez no travesseiro a menina que veio aqui é casada vai separar mais/ é casada e eu que não falo/ mas com nem um/ só com você e com a menina que vai separar mais senti uma língua quente no ouvido essa noite sonhei que era meu dente saltava de paraquedas

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um frio que não é daqui é dos ossos do tempo Saturno, roídos os ossos, roídos os dentes roídas as quinquilharias capitais suas tiras, suas dobras de poder as donas de suas tiras e de suas dobras de poder aguardando o tempo dos ossos trigos podres espelhando joio antigos cavalos de gelo suspensos no tempo do fogo a alma em terra líquida, o barro dos sinais um frio que não é daqui o bolso vazio, a alma vazia a cabeça nas nuvens roçando peixes – rocha mercúrios a orbe desobedece a forma amores paleolíticos também dançam sob o ruído de Saturno, roído os ossos roída a carne, pedra a carne, rocha a mínima pureza do sangue o movimento escasso do frio submerso em abundante lapso da memória do gelo do algoz, a memória da pedra que toma o coração quando anéis se partem em esquecimento o rubro movimento de ontem diante do sol que parecia você Poema do livro 70 poemas (Patuá, 2013)

quando te vi e a ansiedade comia carnes devorava chocolates e cabelos cigarros e etiquetas de liquidação era pedra seu pensamento o sopro instantâneo do seu nome escrito a chumbo absoluto no passo e por isso começamos assim amálgamas equivocadas e todo aquele suor encheu o mundo de sal

meus amigos são todos frágeis sofrem todos de falta de robustez inútil tentar ser rocha quando se padece de água são todos um mundo de água sobre uma folha de rocha única, fina, pouca nem uma pedra agudiza todo esse mundo de água meus amigos são todos fortes todo mundo é indefeso Poema do livro 70 poemas (Patuá, 2013)

A poesia é um idioma. Cada um tem o seu, e há quem fale e entenda vários. Qualidade não conta. Não existe idioma de qualidade. O valor de um idioma é identificar. Vai daí que cada um conversa mais com quem fala a mesma língua.

porque dói demais sofrer por amor o pragmático desama o romântico re-ama o louco esquece a dor

Poema do livro 70 poemas (Patuá, 2013)

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Anderson Fonseca Nasceu no Rio de Janeiro/RJ, 1981. Escritor, editor e consultor literário. Formou-se em Letras pela Universidade Estácio de Sá. Publicou os livros de contos Notas de pensamentos incomuns (2011) e Sr. Bergier & outras histórias (Rubra Cartoneira, 2013). Tem textos publicados nas revistas Confraria (edição impressa, 2009), Celuzlose, Zunái, Musa Rara e Germina. Vive atualmente em Brejo Santo, Ceará.

O SONHO Quem serás, esta noite, do outro lado Da parede do sonho indecifrado? Jorge Luis Borges Tinha por costume, um ilustre cientista, Dr. Andrea Svevo, visitar-me às tardes de domingo para conversar assuntos que a nós dois suscitavam interesse. Habitualmente, às 14h quando chegava, sentava-se na poltrona que fica à direita da estante de livros, coçava o bigode, acendia o cigarro e depois de lançar o fumo no ar, dava início ao diálogo que se alongava até o fim da tarde. O hábito de sua visita – exata e assídua – tornou-se para mim um rito... até o dia em que se atrasou. No começo da noite ele apareceu como uma ave de mau agouro, assim, repentinamente; entrou arrebatado, tirando os sapatos às pressas, procurando com o olhar o assento. Estava agitado; a fala trêmula e com espasmos. Entre balbucios repetia que tinha algo a me contar. Sugeri – indicando a poltrona – que se sentasse, Svevo se sentou, acomodou os ombros largos, ajeitou o bigode, acendeu o cigarro para não faltar com o costume e começou a dizer: – Dr. João Zveiter, o senhor como sabe, não sou um homem que se impressiona por qualquer ideia, ainda que minhas cogitações em torno do misticismo lhe pareçam surrealistas, imagino que não pense que sou um insano. Acredito, de boa fé, que apenas respeita minhas opiniões. Estou certo? – Sim – concordei. – O senhor deve se lembrar de quando comparei o espelho ao sonho e disse-lhe da possibilidade mágica do sonho se comportar como espelho. Certa vez, você mesmo disse, repetindo as palavras de um poeta, que o espelho e o sonho são um mesmo e único ser nos olhos do homem. Baseado no que me disse, retruquei lhe dizendo o quanto acredito que o sonho possa nos revelar o futuro e você concordara comigo. Mas 28 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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lembro-me de você ter dito, citando Jung, que também é possível que o sonho nos revele o futuro daquele mesmo sonho, ou nos mostre outro sonho que ainda há de aparecer. Em suas palavras, era possível um sonho antever outro sonho dentro de si mesmo. – Svevo dizia fitando-me os olhos com a convicção de um luterano. – Pois bem, meu amigo, hoje tive a sensação de tais ideias. Hoje sei o que a certa hora da noite hei de ver, quando meus olhos estiverem cerrados. O que vou lhe contar deve ser dito de uma forma que não possa esquecer, direi a você o que ainda não me aconteceu, e sei como será sem antes ter sonhado. Certamente, Dr. Zveiter, você irá me perguntar como posso saber o que não me aconteceu, se nem sequer mergulhei no vasto sonho para que este me revele o futuro. Sinceramente, não sei como explicar, somente lhe garanto, com fé, que sei o que há de me acontecer no sonho. – E como o senhor pode me garantir de ter antevisto o sonho sem antes sequer ter sonhado? Quer que eu aceite que sabe apenas porque você tem certeza do que diz, pela fé? Está por acaso debochando de mim? – Não! – exclamou Svevo como uma criança questionada pelo pai tentando convencê-lo de que não mente. – Eu sei, é isto. – Ora, hei de aceitar o que me diz, como hei de ouvir o que há de me contar, mas não porque existe lógica no que afirma pois, na verdade, sabemos ambos que não há nenhuma razão no que está dizendo. Poderia interná-lo num hospício para que recupere, lá, sua sanidade. Mas acredito que ainda que eu fizesse isso, você continuaria a defender sua ideia. Não tenho outra escolha senão ouvi-lo. Diga-me então com suas palavras previamente escolhidas o que tem a contar. Diga-me o que viu. – Não o que vi, Dr. João Zveiter, mas o que hei de ver. – Fale logo. – Esta noite sonharei um sonho inevitável. Sonharei que diante de mim, nesta sala, estará outro eu. Ele estará sentado onde estou. Saberei que ele é eu porque o sonho me dirá e não porque reconhecerei seu rosto (no sonho o rosto é uma sombra). Ele estará diante de mim em silêncio aguardando que eu fale, e eu mostrarei a ele minha angústia e meu desejo. Direi a ele que a alma que carrego comigo é maléfica e que dela quero me livrar. Ele então compadecido estenderá sua mão. Quando a toco Celuzlose 10 • Dezembro 2013 29


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sinto parte de minha alma ir para ele e, mal ela se vai, já me sinto diferente. Ali, naquele instante, percebo que a outra parte agora a ele pertence. Ali, entendo que ele é o limbo e que ela ficará com ele para sempre. Ao despertar já não sou eu quem desperta, mas outro, porque embora saiba que ainda sou, sou um eu com menos de mim. Não posso lamentar. Aceito que é real; eu estarei com o outro eu, e ele levará uma parte de mim consigo, ele é meu limbo, e o que sou eu, ao estar com ele, não mais retornará. – O senhor usa de uma linguagem poética para descrever o indescritível. Acredita que o uso desta linguagem convencerá a mim de que o que diz é verdade? Não obstante creia que a poesia seja a língua do infinito, não a considero suficiente para tornar lógico o que é irracional; é possível tornar aceitável o fantástico aos olhos de um sábio, não significa, entretanto, que valha como verdade. E o que o convence de que a visão do futuro sonho seja real a ponto de perturbá-lo? – Zveiter, já conversamos a respeito do sonho ser um espelho, se tal conceito for verdadeiro, nada impede que a alma se fixe no sonho como a imagem no espelho, e, se este espelho for o inconsciente, é claro que a alma se fixará nele sem retornar. – Ainda assim, não disse o que o perturba. As horas se passavam sem nos aperceber e Svevo a cada minuto dizia com maior convicção o seu sonho e a cada minuto que a convicção evoluía para o indubitável, sua feição transformava-se; a metamorfose de seu rosto me amedrontava, eu temia por algo pior. Pois embora o sonho fosse apenas devaneio de um filósofo, este mesmo sonho teve o poder de mudar a mente de um homem. Não mais se olhava para Svevo e se podia afirmar ser ele. Diante de mim, outro surgia, mas quem? Eu não sabia, não sabia, até que ele disse: – Tenho razões para crer que após o sonho cometerei atos terríveis que me levarão a um fim igualmente terrível. A ausência de minha alma, certamente me tornará alguém incapaz de distinguir o bem do mal. Eu me vi matando Madelaine e você, Zveiter. Eu matarei para santificar o mundo de um mal invisível, e ainda que esta razão seja insana, e também indesculpável, é a única razão que me há de vir sem que eu a questione. Creio imensamente que ao fazer, o farei sem arrependimento. Apesar de agora considerar um ato terrível o que farei, após o sonho me parecerá natural. Eu serei 30 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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este outro que desperta. Portanto, esqueça o que você vê neste momento, apenas pense em quem hei de ser. Pense em mim, agora, como aquele que surge depois do despertar. Estou tomado por esta certeza e isto me perturba profundamente. Andrea Svevo estava transformado. Eu o olhava mas sabia que já não era ele quem estava diante de mim, como se o sonho, desde o seu futuro, já influenciasse o presente, como se aquele outro eu já existisse, ali, diante de mim. A hipótese de que o sonho, que ainda nem se realizara, já o tinha tornado em outro, me seduziu a ponto de crer estar certo de que Svevo não era mais o amigo que conheci. Mas seria ele realmente capaz de assassinar sua esposa e amigo? Seria possível que ele abandonasse parte de sua alma num ser extracorpóreo, cuja existência era improvável e, sobretudo, existindo no interior dele mesmo tornando-o inverificável cientificamente e, ainda sim, real somente para ele? Fantasia ou realidade? Me perguntava por que Svevo acreditava tanto neste sonho. Convenci-me de que Svevo não mais existia. Apiedei-me dele e a piedade levou-me a fazer o que era necessário. Antes de Svevo dizer “A...”, com a agilidade de um jovem saltei da cadeira e cravei em sua garganta a caneta que estava em minha mão. Enquanto a caneta deslizava pela carne, indo cada vez mais fundo, cortando a veia jugular e rasgando o tecido fibroso; a fenda aumentava seu raio de abertura deixando o cálido sangue escorrer grosso com gotejos pesados sobre o chão; a sensação de que era eu que morria me dominava alucinadamente e me inquietava por dentro, e embora lutasse para afastá-la, sabia ser impossível. Tal como a caneta penetrava a garganta de Svevo, a ideia imergia em meu espírito até – no mesmo instante em que a caneta afundou-se de vez na garganta – afundar-se de vez em mim. Não havia dúvida, Svevo era meu outro eu e eu o havia assassinado. A cada gota de sangue que escorria, crescia a certeza de que tudo era um sonho e agora, ao despertar, quem levantaria era outro, enquanto eu passaria a eternidade no limbo. Como disse Svevo, aquele sonho... era inevitável.

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Carla Kinzo Nasceu em São Paulo, 1980. Formada em Cinema pela ECA e em Letras pela FFLCH, é mestranda no Programa de Estudos Comparados da FFLCH | USP. Atriz e contadora de histórias, faz parte da Companhia Auto-Retrato. Publicou, com apoio do ProAC de Primeira Publicação de Livro, o livro de poemas Matéria (7Letras, 2012), ao lado de Caetano Gotardo e Marco Dutra. Em 2013, foi contemplada com o ProAC de Criação Literária para desenvolver seu primeiro romance, Autópsia. Seu primeiro livro infantil, Grão, está no prelo e será lançado pela Editora Oitava Rima. Integra a 5ª Turma do Núcleo de Dramaturgia do SESI | British Council, onde desenvolve a peça 52 Hertz. Teve poemas publicados pela Coletânea 2012-2013 do Selo Off Flip, pela Revista Áporo e no livro do III Festival de Literatura da Faculdade de Letras da USP.

Não poderia circunscrever um sentimento Faço uma volta imaginária ao redor de uma laranja (E é só) O sentimento circunscrito é sentimento mutilado De uma laranja partida ao meio eu tiro o que beber O que não mata a minha sede Linha que não se pega É essa borda indefinível Sacrifício de centenas de laranjas por dia

queda não é o que cai sobre a tarde é outra a dor na escada a água escorrega um degrau

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sendero como se fosse uma sala ampla que um caranguejo atravessasse contra a sua natureza de frente e não de lado e nos tomasse pela mão com uma garra e nos dissesse não tenho medo não tenho mais aprendi a me mover por espaços imensos os corredores estreitos caminham para trás sou de água doce mas desde 1973 aprendi a navegar no mar de que me vale a água sem sal quando há luta foi o sal que fechou minhas feridas a bala os canhões rasgaram a cidade (não assino mais jaiba mesmo tendo neruda me escrito um poema me chamem juán apenas juán, sim) por aqui há uma saída, vejam para onde é preciso caminhar de frente para onde é preciso caminhar para ver nossa senda o desvio discreto como o andar de um crustáceo preciso como quem se afunda na areia antes da vinda da onda ali juán nos diria, não não tenham medo também as feridas da terra são escondedouros de onde escreveremos as palavras talhadas por nossas garras pelas unhas de nossas mãos (Santiago, maio de 2013)

tempo lembrava que era devagar como quem pega a cinza sólida do cigarro caída sobre a mesa: talheres, os pratos brancos, um bilhete no guardanapo a dizer devagar (lembra, é devagar) que devemos mastigar essa hora Celuzlose 10 • Dezembro 2013 33


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Célia Musilli Jornalista, cronista e poeta. Escreve na Folha de Londrina e no site Carta Campinas. Faz mestrado em Teoria e História Literária na Unicamp. Livros publicados: Sensível Desafio (poesia, Atrito Art, 2006) e Todas as Mulheres em Mim (prosa poética, Kan e Atrito Art, 2010). Tem textos e poemas publicados nas revistas literárias Coyote, Germina, Revista da Biblioteca Nacional, Zunái, Diversos Afins e Mallarmargens. Gosta de gatos, nuvens e livros, não exatamente nesta ordem.

DELICADEZAS DOEM porque há canções de chegada e canções de partida o coração eu tomo pela mão quebrável no último beijo transversal de línguas poliglota falo de amor delicadezas doem não sei se já disseram mas você sabe matar pássaros

MARÍTIMA Saio da concha, quebro o silêncio, vou te falar das ondas. Elas têm som de blues, o cheiro de todas as espécies. A sua é Homem, destes sem idade que capturam fêmeas, golfinhos, sereias, com olhar elétrico. Eu penso em plânctons, mantras secretos, biologias marinhas que nos ligam como células. O amor neste instante é uma rede, pequenos seixos, lagostas, cardumes. Pescaria nestes olhos claros onde vejo minúsculos poemas, sílabas de língua estranha que me lambem. Lâmina prateada como o sexo de um peixe. Espada.

LINHA VERDE Quando o trem me engole vejo a cidade nas entranhas, pessoas ardentes e outras com cara de veneziana. Chiaroscuro, Trianon-Masp. A história e a arte frente a frente, os operários de Portinari piscam para mim no vagão. Consolação, quando leio este nome, choro. Penso nas viúvas, nas mulheres abandonadas, nos filhos sem pai. Consolação, nome de mulher no pós-desespero urbano. Bombas imaginárias no peito em que pombas se agitam em sutiãs apertados. Consolação é o nome de quem perdeu tudo. Vila Madalena, a filha do fazendeiro caiu na boêmia, apartada para sempre das irmãs Ida e Beatriz, que não fumam nem bebem. Agora, Madalena vive nos bares, nos copos, nos corpos sobre os quais me debruço contando vivos e mortos que escutam blues. Keep calm, baby. Antes da estação do inferno, Rimbaud trepa comigo.

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O POEMA SE CHAMA CLAUDIO WILLER o poema se chama Claudio Willer e tem campos magnéticos símbolos são constelações palavras signos móveis não adaptados a nenhuma circunstância espirais que se recolhem quando desejo a forma perfeita e desaparecem matéria imprecisa cintilância galáctica o poema se chama Claudio Willer quando vem em ondas com Iemanjá e o azul das dobras de seu vestido estrelas desenhando a Ursa Maior o grande brilho impresso sobre o tempo o poema se chama Claudio Willer quando a linguagem recusa o signo explode como Lautreámont em formato de cometa desses que passam a cada mil anos deixando um rastro um rastro-luz insígnia que nenhuma semiologia mastiga ou devora agora os dentes da compreensão são as engrenagens das palavras doces das expressões que não existem mas o poeta as visita como o deus do vocabulário que pego e liberto como um raio eletricidade do campo semântico aprendizagem das sutilezas que me convidam a espiar o mundo com outros olhos quando o poema se chama Claudio Willer e dele vem a pergunta da esfinge: do que se alimenta a palavra? DEVORA Ele me lança ao círculo da liberdade de frente e de costas, às entranhas, enquanto seus dedos tocam piano nas minhas costelas. Um blues baixa entre nós, download explícito. A noite entra pela janela, um raio brilha solitário em meu umbigo, o rock mexe os quadris, a cobra desprende os anéis nos meus pés em ponta. Orgasmo cósmico. A dança, linguagem rítmica, a fuga ligeira para o outro mundo. Um arco-íris instala matizes entre os dentes, a língua é pintada no instante selvagem. O olhar comprido de homem mede meu corpo. Eu digo: “devora”. Ele diz: “o desejo é o jogo da fome, baby”. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 35


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POEMA CONFESSIONAL Aquele desencontro não foi nada para você, mas para mim foi novembro acabou dezembro caminha para a mesma ordem o ano vai terminar a vida está por um fio e você suspende as horas o tempo é coisa a ser levada a sério embora eu faça poemas anarquistas subvertendo a manhã, a tarde, a noite não consigo subverter seu corpo seu olhar translúcido os passos a caminho do que desconheço a esperança de uma revelação que nem sequer suponho por isso é importante pegar o tempo com você dentro dele como o gênio na garrafa e deter o princípio do encantamento as mágicas que se passam entre mim e você quando nossos corpos se colam são como as margens de um rio estrangulado que une as pontas para depois, na sequência, bifurcar-se novamente num rumo estiolado como a outra ilha nunca te pedi mapas nem bússolas nem qualquer instrumento de precisão que aponte o norte, o sul, os pontos incertos se te peço algumas horas é porque novembro acabou dezembro desaba e sei que nada será igual quando os minutos romperem o prazo de ficar ali, naquele instante, como dois bichos que se interpõem aos pelos do outro num hábito tão estranho quanto este de trocar frases entrecortadas por milênios o tempo do corpo é breve está sempre em suspensão por isso as letras as cartas que não obedecem ao passado, presente, futuro não me metem medo as cartas, como os oráculos, são eternas

36 Celuzlose 10 • Dezembro 2013

já a ausência é um baque porque dissolve a presença a certeza que você existe fantasia que devo resgatar como um pescador que [atira linhas incessantemente para ver o milagre saltar com [a forma breve e líquida de tudo o que está de passagem mais que em palavras eu acredito em cenas


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CALEIDOSCÓPIO O meu olhar guardado no globo, ótico. Dois graus de miopia e uma visão de longo alcance. Meus olhos, a concessão que se descortina. Meus olhos, a revelação dos signos apocalípticos. Um flash da Via Láctea, um prisma de Deus, um ângulo das asas dos anjos. Bruma condensada de múltiplos mundos. A fotografia íntima do micro e do macrocosmo. Meus olhos, em órbita até o ponto fixo. Hipnóticos, matam insetos na parede e veem pétalas que se abrem em slow motion. Um jardim inteiro e as formigas microscopicamente flagradas em seu trabalho de carregamento. Meus olhos, metralhadora atirando desejos, sempre em dúvida sobre as aparições: aquele homem me teve tantas vezes sem me ver, um cego frequentador da minha cama. Meus olhos, cinema em 3D, aproximando objetos e afastando pessoas. Jogo de sedução e rejeição com uma simples piscada. Olha aqui, meu senhor! Veja bem, docinho! Te capturei num segundo de olhar cativo por mais de 20 anos. Despeço-me como incenso, desprendendo-me pelos olhos, subindo, evanescendo, tornando-me invisível, em fuga pelos labirintos sem óculos. Nunca quis enxergar demais, prefiro a incerteza da ilusão à realidade óbvia das mulheres que vão à igreja. A luz vermelha dos bordéis revela a decadência essencial. Tenho sobrancelhas pretas, lábios pintados e tiro a roupa para os espelhos. Vejo bonecas com olhos de vidro, a decantação das falas, só fica o silêncio no fundo. Para escapar de navios naufragados uso binóculos potentes, enxergo piratas e roubos de esperança. O mundo é castanho. A vida é certa pela direita, torta pela esquerda. Acho que já vi de tudo, enviesada. Meu olhar é de voyeur, um caleidoscópio que inventei e tem pestanas.

LABIRINTO Meu nome é pagão. No vestíbulo do orgasmo falo línguas, abro as pernas, engulo pétalas de metais incandescentes, vulcões de paisagens gregas, lava de poemas e ácido lisérgico. Bebo a infusão de esperma da Via Láctea, tema do renascimento que esfrego no dorso de puma, puta de pelos noturnos travestidos da feitiçaria de palavras. Phalo línguas, traduzo os “esses” da serpente sibilina anfíbia, da terra à água profunda explode o musgo do homem. Labirinto do Minotauro em meu templo de Creta, devoro.

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Cesar Veneziani Geógrafo formado pela USP, com especialização em Antropologia e operador de reator nuclear. Como poeta publicou: Asas (Utopia Editora, 2009) e Neblina (Patuá, 2012). É integrante do Grupo de Estudos da obra de Guilherme de Almeida no Museu Histórico e Biográfico Casa Guilherme de Almeida.

TRADUÇÃO se le mot é o mote verto suor a lot verto a valsa em xote y el campesino comme un bambino gosta e dança a diferença está no papel na alma não há uma babel

EL CUERVO Abri os olhos num esforço enorme. O Sol na cara acorda e diz que é tarde. A luz invade, dói, maltrata e arde. Olhei no espelho e vi tudo disforme. Senti-me sujo (tudo é coliforme!). Senti um medo (meio assim covarde), tal qual alguém que o seu final aguarde: queria mesmo estar como quem dorme. E o José parado ali vazio parece rir-se do meu desalento em regozijo ao ver-me na pior. Vai esquecer-se logo que me viu... Não vou lembrar-me mais desse momento: um outro porre desses, "never more"!

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PEQUENOS SONS DE OUTONO A folha que, já seca, o impulso sente e estala e solta e salta e voa ao vento, de um mês de abril que teima e ainda é quente, se junta às outras folhas no cimento

PRA SEMPRE o ato feito é fato o pensamento é bruma o fato feito se prova o sonho é etéreo se perde o ato é eterno

em roda de ciranda, docemente, e brinca, pula, dança, é sentimento, e faz um quase guizo diferente do grito de ser livre no momento... E o galho que, desnudo, resistiu, agora sem a folha desgarrada, emite ao vento um longo assobio, pungente, de uma voz desconsolada anunciando o tempo à frente, o frio, seu único parceiro, só, mais nada...

cuidado

MINAS GERAIS Ah, Minas das belas meninas do pão de queijo do beijo sem jeito que se rouba consentido do olhar dissimulado que se sabe camuflado mas que vale o tempo perdido Minas dos montes dos belos horizontes da hospitalidade da roça que se esboça até na cidade

SAUDADE A saudade causa dano nas imagens da memória. Um detalhe vira engano, passe um dia ou passe um ano e aí já vira história... Tuas imagens, de tão belas, luto para não perdê-las. E pra não ficar sem elas vou além destas janelas: toda noite colho estrelas!

Minas da saudade...

Celuzlose 10 • Dezembro 2013 39


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Donny Correia Poeta e cineasta, é formado em Letras – tradutor e intérprete pelo Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero) e mestrando em Estética e História da Arte pela USP. Realizou os curtas experimentais Anatomy of decay, Braineraser e Totem, este último selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e Prêmio Canal Brasil. Publicou os livros de poesia O eco do espelho (2005), Balletmanco (2009) e Corpocárcere (2013). É coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida.

ISSO MERECE UM POEMA: Dançar nas cinzas do seu obelisco de razão merece um poema Assistir às minhas orgias-bombas incinerarem seu orgulho merece um poema E merece, também, esta gratidão gritante invadindo meu vácuo Afinal, amar dói E o que há de novo nisso? Eu sou um lugar comum, com pernas braços e demência Mas tudo isso, sem dúvida, merece um poema

REFLUXO esta garganta em chamas o suco do incômodo do estômago à boca pelos anéis decompostos da laringe

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MR. HYDE

E3 4BP para Daniel Solimene Olhe em volta esses fantasmas que pingam do teto que saem pela torneira que dedilham seus instrumentos que corroem seu sono que minam seu lar Esses fantasmas ressurgem do cemitério ao lado, dos cascalhos que guiaram os passos na noite Esses fantasmas esquálidos falsificam nossas dignidades desafiam sanidades E parecem rir por baixo da ponte O que de verdade há nisso é que esses fantasmas só enaltecem aquilo que o dia não nega aquilo que a luta não cala e aquilo a História legitima

Que dom supremo guardo este – que habita o sempre – de me (re) (bi) (retro) destruir Etilicoito vociferado angústia tapas sexo sorvendo chicotes maníacos implosão em tua ausência presente / reticência morte a cada trinta segundos Todo perdão que baste não basta – nem sempre solidão Dor na cova da vigília espelho reflexo do avesso eu de carne e osso inverso eco eco e eco ingênuo autógrafo de ontem Viveiro de memortes Aniquiladrões de covas frescas eu – playing myself – tosco e fosco renúncia vã gota a gota E a vida segue degenerada no embuste [que vivi para ver.

Debaixo de cada teto invadido mora um lar feito de suor e música moram notas dissonantes sons e imagens que exorcizam E o sono não se cala / não deve se calar / Por espectros ruidosos de fúria inveja e retaliação A música é a retaliação dos medíocres A música e somente ela

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Fábio Romeiro Gullo Nasceu em Santos/SP, 1980. Poeta, crítico, tradutor e artista multimídia. Tem trabalhos publicados em revistas e portais literários como Babel Poética, Germina Literatura e Musa Rara. Blog: http://fabioromeirogullo.blogspot.com.br

erosão Abraçamo-nos na chuva fina, nesta praia cujo nome indígena teria lugar num poema de palavras e rimas raras, não aqui, nalgum ponto do litoral norte, nalgum instante entre o agora do texto e o tempo em que emergia do mar, deste Atlântico sempre o mesmo, o primeiro ser a se arrastar solitário, sem poesia só desejo na areia outrora cascalho. Mas então um abraço é tudo o que temos, apesar dos braços cansados. Por tudo o que perdemos, por tudo o que perderemos – por todos os espelhos quebrados em busca do inatingível fundo opaco –, tornamo-nos cinza com o passar dos milênios, não sentimos falta de um poente, desmanchamos na água de onde viemos. share no bill foi ao conforto do fogão difundia que o ato se consumou consumindo gás e inocência (à guisa de radiação não havia energia) o que restou da carne deu para matar a fome e a sede contraponto com água gelada como de cães o coito na madrugada 42 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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supernova ouro outrora estrela

ô(m)nibus

outro minério de mim

no ponto (de ônibus) um pneu círculo galvanizado para úmido ferramenta de levar gente de ponto a outro no espaço (ligue os pontos e terá a cidade) eventualmente a ferramenta esmaga um corpo no asfalto

prótese desmontável protético impenetrável o manequim não pode ser particula rizado (plástico é plástico)

grama

melhores ventríloquos a TV e o rádio fazem companhia àqueles que maqueiam os manequins e na falta de luz sentem que ausências se instalam e os elevadores descansam na solidão das escadas

gentil lâmina que o zênite acalma em verde se não corta o ar mas dança em gratuíta alegria quem dirá os pés que ao pisá-la reatam raízes planta com planta

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Glauco Mattoso Nasceu em São Paulo, 1951. Poeta, ficcionista e chronista. Cego desde os quarenta annos, o seu pseudonymo surgiu da doença congênita (glaucoma) que lhe tirou a visão. Satirico e fescennino, seus themas são violentos e nojentos. Rebelde e revoltado, adopta formas actualmente em desuso, como o soneto e a antiga orthographia. Herdeiro de Sade e Masoch, na prosa e de Gregorio e Bocage, na poesia.

DUM CANAPÉ CANNIBAL (I) [5335] Carne humana? Tá brincando! Empadinhas? Ah, não creio! Mas que caso mais nefando me contaram, e mais feio! Será mesmo? Desde quando gente morta foi recheio duma empada? Me contando vão que havia organs no meio! Acontece em Pernambuco: si o cadaver fica eunucho, se calcula o que moiam! Mas não só colhões e paus dos recheios esses maus quituteiros dentro enfiam!

DUM CANAPÉ CANNIBAL (II) [5336] Que faz parte duma seita, se commenta, a quituteira. Seus comparsas, se suspeita, mactam putas com peixeira. Depois, segue-se a receita: dos bumbuns tiram a beira e o miolo se aproveita mais o braço e a perna inteira. Bem moida, com picanha se parece. Nem extranha quem comer a carne: é gado! Mesmo os labios da xoxota, picadinhos, ninguem nota no tempero dum salgado.

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DUM CANAPÉ CANNIBAL (III) [5337] A empadinha foi vendida nos botecos da cidade. Que era boa só duvida quem comeu pela metade. Nem reparam na comida os gulosos. Alguem ha de crer que gente perde a vida e que a empada um morto empade? Só notaram que sumia uma puta ou outra. Um dia, descobriram, duma, a cova. Outra puta esquartejada foi achada e, agora, a cada cova rasa, encontram nova.

DUM CANAPÉ CANNIBAL (IV) [5338] Quem fazia o salgadinho está preso, mas ainda não prenderam o damninho bando todo, acção bemvinda. Por emquanto, eu adivinho, a policia não deslinda si os bandidos novo ninho teem naquella terra linda. Pode até ser que ja trampa a quadrilha aqui por Sampa e comamos sua empada... Não demora que um puteiro, no centrão, do travesseiro tenha a fronha ensanguentada...

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Guilherme Gontijo Flores Nasceu em Brasília, 1984. É autor de Brasa Enganosa (Patuá, 2013), tradutor de Rainer Maria Rilke (As janelas, seguidas de poemas em prosa franceses) e de Robert Burton (A anatomia da melancolia, em 4 volumes) É professor na UFPR e atualmente prepara uma tradução das Elegias de Sexto Propércio.

Uma gertrude para bartleby ele prefere a ele prefere o ele prefere que ela prefere ele prefere o que ele prefere comer ele prefere comer batata ele prefere comer sentado ele prefere comer poesia ele prefere ele prefere canseira ele prefere pasto ele prefere sozinho ele prefere claro ele prefere não ele prefere que não ele não prefere

p/ tarso de melo Alambicado do suor dos dias passar na mesma rua & sempre & mesma rua a mesma como se passa a cada dia na indiferença dos dias que passam & a rua sempre-mosaico entre um lampejo de carros coro de cores por destilar & repetir até brotar nos olhos por mágica do asfalto uma placa um prédio inteiro nascido empoeirado pelo tédio

O curso da calma Um lago estanque aberta a boca ainda dentada a morte simples sem sentido fora da vida fora do senso veja agora pousada do teu ombro inatento como súbito voa desenvolta do casulo aquela estranha mariposa

pacem sine dubio, uerum cruentam (Tácito) os ipês condensaram a dor do amarelo por cima do asfalto era chuva? eram parecidas com pétalas ou pranto essa a cara da paz

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Deuotio 1 talvez perder-se pelo amor do alheio ou do divino para arrolar-se em cavalgada sabendo-se por certo sem retorno 2 ou públio décio mus ritualmente velado pela toga pretexta gritando aos deuses todos do seu povo ó deuses de poder sobre nós e nossos inimigos deuses dos mortos que eu imploro e venero a vênia peço para levar vitória ao povo e aos inimigos lançar o terror o medo a morte assim aos deuses dos mortos e à terra assim eu me devoto 3 talvez silenciado entre lanças inimigas tombado do cavalo antes de terminar seu ritual elocutório como caído dos céus para expiar a fúria divina espalhando peste do seu povo por sobre o inimigo

4 ou perpétua no fórum entrevistada numa notável audiência pousada sobre a plataforma acompanhada de pai e filho arrastada pelos degraus perante hilariano performe o sacríficio tem piedade do teu filho e me disse o procurador tem compaixão pelos cachos grisalhos do teu pai pelo teu filho performe o sacrifício pelo bem do imperador eu disse não você tem fé? eu tenho fé e quando meu pai tentou me dissuadir o meu procurador mandou que o jogassem no chão que vergastassem suas costas de velho com um bastão eu chorei como se eu mesma fosse a vergastada e proclamou-se a sentença por nós todos os condenados às feras e alegres retornamos à prisão

5 ou talvez perder-se pelo talvez perder-se pelo e talvez perder-se pelo amor

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Jeanne Callegari Nasceu em Uberaba/MG, 1981. Escritora e jornalista que atualmente vive e trabalha em São Paulo. Publicou Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável (Seoman, 2008), biografia do escritor gaúcho. Seus textos e poemas podem ser encontrados em www.jeannecallegari.com.br e www.cancaodemim.org

penélope a mão direita escreve a esquerda apaga

silêncio o momento em que a água se prepara para a gota

que seja: desço ao inferno se for preciso mas mando esse grito de volta ao berço

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afirmações de coisas escrever canções de amor mas não pra mim um beijo ao pé do ipê não pra mim a mim o vinho baço e dançar sobre o sofá sobre o papel caldeirão de almas sem remição não pra mim não não cuidado ao pisar nos cacos não não não pra mim não não não sem reabilitação uma garota tão boa fazendo minha mãe orgulhosa não não fazendo a mãe orgulhosa ah não isso nunca vai dar certo eu disse sempre digo nunca nunca dar certo téd io ted hughes teddy ursinho toddy vida em calda e cartas nenhum drinque por favor só manchas de vinho de três dias meus filhos peludos dormem na colcha com cheiro de sexo pequenas bolinhas todosbolinhas não sabem de nada invejo eu poderia dormir agora você sabe que não eu já disse você sabe que não eu não sei não enche tem lugar pra nós dois aqui preciso de espaço preciso de algum espaço não preciso de espaço algum tenho todo o espaço do mundo mas não aqui lá lá onde? lá lá onde aonde! com os ipês ipês querida ó querida com os ipês não tem ipês aqui não tem ipês aqui minha cabeça dentro de um forno sem ipês aqui

diário para ana erre você falou comigo ou com o gato? no elevador, uma camiseta : hip hop mudou a minha vida praça victor civita recebe show de tulipa no Domingo do you know what i mean, jean? você sabe do inhame, jeanne? se o flyer diz jornalista e poeta deve ser verdade pensando bem devia ter colocado dançarina de catira exploradora de sofás e chocolates

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Foto: Eduardo Amaral

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Luiz Roberto Guedes Poeta e escritor que vive em São Paulo. Publicou, entre outros, Calendário lunático – erotografia de Ana K. (2000), a novela histórica O mamaluco voador (2006) e o livro de contos Alguém para amar no fim de semana (2010).

CASO DE VIDA OU MORTE Já que vocês puxaram esse assunto, vou contar a história mais estranha que aconteceu comigo. Primeiro, quero deixar claro que não tenho o menor interesse nessa coisa de paranormal, sobrenatural e coisa e tal. Vocês vão dizer que isso é limitação da minha “cabeça de engenheiro”, mas é puro senso prático. Porque pra tudo neste mundo existe uma causa lógica, uma explicação racional. Isso que chamam de sobrenatural também deve ser regido por alguma lei natural, só que ainda não foi descoberta. Capaz até de existir alguma lei física que determina o acaso, a coincidência, o acidente, o desastre. Dia desses, li no jornal que astrônomos descobriram estrelas mais antigas que o próprio universo, o que é um puta paradoxo, um absurdo, mas podem crer que ainda vão encontrar uma resposta para isso. Mesmo que demore uns quinhentos anos. Certo, já vou contar a história. Foi no último ano do governo Sarney. Eu estava no aeroporto de Brasília, às oito da noite, esperando vaga num avião que já deveria ter decolado às quatro e meia da tarde, comigo a bordo, de volta pra Vitória. Tinha sido um dia duríssimo, com reuniões desde as nove da manhã. Eu estava cansado demais pra protestar no balcão da companhia aérea. Com sono, mole de calor, desabei num banco, abracei a valise e cochilei. Acordei com um sujeito berrando. Um discurso indignado, desancando a esculhambação da nossa Pindorama, a incompetência prepotente, a arrogância burocrática, o desrespeito ao cidadão. Abri os olhos, irritado com aquele falatório. Vi um cara moreno, de terno cinza e gravata vermelha. Tinha um ar enérgico, podia ser um advogado, um deputado, até mesmo um pastor evangélico. Achei que ele tinha alguma coisa de árabe na cor, nos cabelos, nos olhos escuros, muito grandes. Fechei os olhos e tentei dormir de novo, mas ele puxou conversa com outra pessoa, um mulato jovem, de agasalho esportivo, sentado perto de mim. Ouvi o rapaz dizer que era atleta, ia participar de uma maratona no Rio de Janeiro no dia seguinte, e ainda estava ali, até aquela hora, sem saber se chegaria a tempo de ter uma boa noite de sono. O orador revoltou-se pelo moço. Berrou que aquilo era uma ofensa. Voltou ao balcão da empresa e sapecou um sermão nos funcionários, apontando o jovem atleta que iria representar o nosso Estado numa importante competição, o esportista dedicado que já deveria estar repousando no Rio de Janeiro, um moço de valor, que merecia ser tratado com mais respeito, blablablá. 50 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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As pessoas em volta concordaram com ele, que se expressava muito bem, veemente como um político, embora não tivesse nada de artificial na postura. Num instante, um coro se levantou: “Queremos viajar! Queremos viajar!”. Umas sessenta pessoas, uníssonas, contagiadas pelo verbo incendiário do cavaleiro do terno cinza. Procurei por ele, mas já não estava mais entre os manifestantes. Quando o coro se calou, voltei a cochilar. Então fui acordado por alguém tocando meu ombro, “senhor, senhor”. Era ele. Preciso de um favor seu, ele disse. É um caso desesperado, de vida ou morte. Queria que eu lhe cedesse meu lugar no próximo voo para Vitória. Eu estava sonolento, sem ânimo sequer para abrir a boca. Fiquei só sacudindo a cabeça, não, não, mas ele insistia, era caso de vida ou morte. Precisava chegar à Vitória a tempo de evitar uma tragédia, uma desgraça, uma coisa assim. Fechei os olhos, me fiz de surdo, mas ele sentou-se ao meu lado, pegou minha mão entre as dele, que estavam geladas. Senti um choque, um mal-estar, tentei tirar a mão, mas ele me segurava e repetia que era vida ou morte, em voz baixa, como se estivesse contando um segredo. Eu só queria dormir, ficar livre daquele contato desagradável. Acabei concordando em trocar nossas passagens. Ele apertou minha mão e disse alguma coisa como “o senhor tomou a decisão certa”, não me lembro direito. Caí num sono de pedra. Acordei com o dia claro, a tempo de pegar o voo 910, embarquei e voltei a dormir. Já em Vitória, ainda meio sonâmbulo, peguei um táxi e, sei lá por que diabo, esqueci a porra da valise dentro do carro. Com os contratos assinados, o livro do ministro, autografado pelo próprio, uns quatrocentos dólares e o canhoto da passagem. Claro que nunca recuperei essa valise. Bom, mas uns dias depois li no jornal sobre um avião Electra desaparecido, o voo 909, de Brasília para Vitória. Era o voo que eu tinha cedido pro camarada do terno cinza. Vocês se lembram desse caso do Electra? Na última comunicação com o controle de voo, parece que o piloto disse “o céu ficou vermelho”, e mais nada. Houve uma busca, os telejornais falaram no “mistério do voo 909” durante uma semana, e logo o caso deixou de ser notícia. Meses depois, leio no jornal, na coluna dos leitores, a carta de uma mulher, dizendo que seu marido e seu filho de doze anos haviam desaparecido no voo 909, de Brasília pra Vitória, na mesmíssima data. Acusava a empresa aérea de sonegar informações sobre o caso, e de negar até mesmo a ocorrência de um Electra extraviado. A carta listava alguns nomes de passageiros, e era assinada por mais umas vinte pessoas, todas com familiares desaparecidos nesse voo. Achei que haveria uma nova investigação, uma declaração da empresa, uma nota oficial das autoridades aeronáuticas, mas nada: o assunto sumiu da mídia como o próprio avião. Cheguei a pensar em escrever para o jornal, perguntar como é que tinha ficado o caso, mas eu tinha mais com que me ocupar do que ficar procurando avião perdido. O fato é que um dia vão encontrar esse avião, ou um pedaço dele, seja onde for. É só uma questão de tempo. Mas eu nunca vou me esquecer desse cara que embarcou no meu lugar, na minha vez, de Brasília pra lugar nenhum. Queria pelo menos saber o nome dele. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 51


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Viviane de Santana Paulo Nasceu em São Paulo. Poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros Depois do canto do gurinhatã, (poesia, Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira - Poetas da década de 2000 (Global, SP, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Participou do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua.

apoesia éinútil éinútil! mas tem gente que acha que ela está cheia de coisa dentro que ela salva e se agarra em sua raiz como nas raízes das nuvens fica pendurada no vago azul um pêndulo entre o adobe e o algodão e se sente segura mas no fundo também isto éinútil! não enche a barriga de ninguém nem mata a sede nem agasalha nem protege do mau tempo nem acaba com as micoses e coceiras mas tem gente que dá um salto de sobrevivência ao ler um poema... dá aquele suspiro de reviver... as pupilas se contraem... toma aquele ânimo... e se refaz inteira... que somente a poesia explica

não sei o que dizer se somos nós que comemos eternamente o fígado das horas e atamos a liberdade com nossas próprias tripas é sempre hora de ir ter outros afazeres que não são os que realmente buscamos equilibramo-nos de cabeça para baixo nas hastes do orvalho e da verdade é difícil se desfazer dos anseios deixá-los secar como as escamas transparentes dos peixes tem gente que vive de escapismo e adora enfeitar as olheiras da claridade acho que nascemos da testa da ilusão nossas asas são feitas de cílios não é nunca uma realidade só que possuímos há a perpétua vida onírica que inventamos no oceano da nossa mente e as franjas das águas-vivas não são cortadas vivemos imaginando o que teria sido se não tivéssemos vivido o que foi vivemos o que foi e o que teria sido longínquo fosco no fundo do outro lado de nós mesmos temos duas vidas uma de ferro outra de espuma 52 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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estána cozinha funcionando muito bem o aparelhodeserinútil não possui os jacintos enroscados na garganta as latas com vermes embrenhados na boca mas os limos nas fissuras dos calcanhares e funciona perfeitamente nos azulejos das manhãs ao se levantar e iniciar o dia na frente da inocência do espelho desvelando os bonecos moles que brincam de apanhar pouco de existência e espremer nas janelas do cotidiano até virar barro cuspido do passado ou meleca de mosca que bate no vidro e morre pense na garapa dentro do copo meio cheio ou vazio conforme a peleja do otimista e do pessimista se ouve o motor lazurita do aparelhodeserinútil o fumo expelido pelo escapamento da memória cor de pedra o ruído brônquio que escapada tosse crônica de Sísifo mancha de escarro cinzento nas costas das semanas e da charneira das palavras ocas cobertas de cascas de ovo vaza gotas de óleo de buriti já não é mais assim que não presta mais o aparelhodeserinútil e vive no canto das coisas largadas onde a curva do sol não raspa e se modifica no limiar do arco jogando sombra em cima e poeira grossa de esquecimento todos os dias ligamos o aparelhodeserinútil e nos enfiamos dentro como a cana no moedor (a manoel de barros)

estaremcasa em pleno dia letivo sem ter tirado férias sem estar enfermo apenas estar em casa infenso isento do peso sem dar satisfação não ter ido se entregar à rebeldia ouvir aquele cd antigo deixar ser um templo o apartamento a tranquilidade no altar do sofá no almoço apenas uma pasta simples e tomar aquele vinho caro reservado para ocasiões especiais enquanto os claros segmentos do dia se acomodam em algum canto do recinto resgatar o livro que ficou pela metade procurar os rastros dos amigos deixados na vala que as obrigações e a falta de tempo cavam reencontrar-se com algum deles restituído em algum bar restaurante das dezenove horas derramar as velhas novidades e recuperar planos depois colher o latejo da noite com a morna escuridão da brisa que se enrosca no quadricular da janela aberta e no rumor abafado do reverso das luzes apagadas Celuzlose 10 • Dezembro 2013 53


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o Nada tem cor branca ele é perfeitamente imaculado e branco como uma tinta corretor como o cal na parede o Nada é branco silencioso inodoro e está em muitos lugares os quais nunca imaginamos na expressão de alguém no jasmim de um vaso na carta de um remetente na unha do dedo na côdea de uma árvore pendurado na gola da tua camisa misturado com o mingau dentro do copo de leite no lençol branco da cama no interior do coco na gaivota voando em cima da mesa ao lado dos papéis ao lado do mamilo na boca da noite caída apressada na extremidade dos cadarços na tua voz sem fome o Nada está em muitos lugares os quais não imaginamos pode ser uma manchinha de nada como uma linha escapada imperceptível vivemos sempre com o Nada fazendo parte de nós e de nosso cotidiano fazendo parte das pessoas a nossa volta como se fosse nada tem aqueles que o reconhecem são raros e se assustam sentem o medo ameno e fundo entrando dentro deles lento como uma raiz arrancada aqueles que reconhecem o Nada vivem cheios de buracos porque cada vez que reconhecem o Nada alguma coisa é extirpada de dentro deles e precisam replantar são pessoas que vivem engolindo sementes para não serem engolidas pelo Nada

sanhaçodeencontroazul é um sonho alado que se alimenta de encontros azuis muito difíceis de se achar neste cinza de hoje em dia mas que existe geralmente no limo e nos merlões de onde manam em pares

doesforço em desprender os grãos da vagem e semear palavras na cotidiana deslinguagem da rotina versos de laço e nastro versos de velas e avelãs demandar o denso que possa ser mais resistência do que a serventia a implacável serventia à indiferença da vida (a marly de oliveira) 54 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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a décima terceira pele trocada se deu no brechó da vitrina de sol os raios grudavam firmes no vidro e aqueciam as roupas demais que elas um pouco perdiam a cor e dias depois a pele descascava sobrava tecido sobraçado apenas algo no ar flavo e a fina pele revestida

onde deixar as mortes que eu vivi? as fissuras nos calcanhares ainda não se abriram nada visível como as correntezas que nunca regressam jamais se arrependem do ir e sempre seguem adiante famintas deste existir na desembocadura nas gavetas guardo os pregos e as chaves junto aos papéis que me eximem do balançar na rede de espumas não posso deixar em cima da penha na parede da montanha como uma sagrada urna cheia do espectro das quedas no fundo da caixa de ferramentas que destruíram a armadura não no guarda-roupa misturadas com as roupas usadas e pequenas as mortes que eu vivi têm gosto de ferro e frias um escuro caroço no miolo do pão e um nó de fios azuis de sal mas que agora tecem as tramas das mornas brisas e servem de filames são como a pantomima da morte maior que virá algum dia onde deixar as mortes que eu vivi foram lanhos tão lanhos no meu corpo tanto me contorceram e mudaram meu tamanho e me amadureceram onde deixar as mortes que eu vivi? que já não armam mais os embustes agonizantes agora como a descascada pele inútil do réptil como os flancos desfeitos da minha imagem nos eczemas dos momentos partidos onde deixar as mortes que eu vivi? deixarei em mim em mim assim como não se desfaz de mim a pele que refaço

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Germain Droogenbroodt Nasceu em Rollegem (parte flamenga da Bélgica) 1944, e há 15 anos vive na Espanha, onde é considerado um “poeta mediterrâneo”. Estudou línguas modernas (holandês, francês, inglês e alemão) e desde 1984 é tradutor e editor de poesia. Organizou antologias de poesia francesa, italiana, austríaca, latino-americana e chinesa. Sua obra mais famosa A Estrada, foi escrita na Índia e ilustrada pelo artista Satish Gupta.

POEMAS DO LIVRO Im Strom der Zeit - Meditationen im Himalaja / Na Correnteza do Tempo - Meditação no Himalaia

NIGLATH * Seja neve derretida lave-te de ti próprio. Mavlana Rumi Esta é a fonte da voz, que entre os finos lábios da margem do rio murmura mantras ou algum outro salmo? Do silêncio jorra uma fonte que se transforma em rio pura água, carregada de sombras densas segue fluindo noite acima ou de encontro a um vestígio de luz – quem sabe.

NIGLATH * Sei schmelzender Schnee wasch dich ab von dir selbst. Mavlana Rumi Ist dies der Brunnen die Stimme, der zwischen den dünnen Lippen des Flußufers Mantras murmelt oder irgendeinen anderen Psalm? Aus der Stille entspringt ein Quell, der zum Fluß wird reines Wasser, das mit trägen Schatten beladen, nachtwärts weiter fließt oder einer Lichtspur entgegen

* Niglath: pequena aldeia no Himalaia.

– wer weiß.

* Niglath: kleines dorf im Himalaja. (Tradução: Viviane de Santana Paulo) 56 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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FRIEDVOLLER MORGEN IM HIMALAJA MANHÃ SERENA NO HIMALAIA É como se a noite anterior tivesse saciado toda a sede O dia irrompe pleno de luz e o cantar dos pássaros estranho aos ouvidos ao longe o soar vacilante da flauta campestre uma oração matinal para Shiva, para Buda ou algum outro deus tão serena parece ser esta manhã como se a Humanidade após longo tempo finalmente encontrasse a paz finalmente o remanso.

Es ist als hätte die vorige Nacht jeden Durst gelabt der Tag bricht an mit Licht und Vogelstimmen fremd fürs Ohr in der Ferne der Zauderklank einer Rohrflöte ein Morgengebet für Shiva, für Buddha oder irgendwelchen Gott so friedlich scheint dieser Morgen als fände nach unendlicher Zeit die Menschheit endlich Frieden endlich Rast.

ABENDDÄMMERUNG IM HIMALAJA Unerbitterlich verschwinden das Blau und das Fahlgelb der Sonne in den grauen Himmelmund CREPÚSCULO NO HIMALAIA

was dableibt ist Unruhe

Infalível esmaece o azul e o amarelo pálido do sol na boca cinza do céu

die tonlose Stimme der Einsamkeit. (klingt besser, nicht?)

o que permanece é inquietação e a voz silenciosa da solidão. (soa melhor, não é?) Celuzlose 10 • Dezembro 2013 57


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EFÊMERO é tudo o que vive o que permanece são os cascalhos no rio – no alfabeto das pedras na correnteza do tempo. VERGÄNGLICH ist alles was lebt was bleiben wird sind die Kieselsteine im Fluß – Steinschrift im Strom der Zeit.

QUE MAIS BUSCA A PALAVRA Que mais busca a palavra no sedimento do Ser como algo insondável e entretanto existe como a água do rio que se esvai entre os dedos mas no cântaro conhece as suas fronteiras preserva a sua forma e sacia a sede assim como o poema às vezes

WAS SONST SUCHT DAS WORT Was sonst sucht das Wort im Bodensatz des Seins als was unfassbar ist und doch besteht so wie das Wasser des Flusses der Hand entrinnt jedoch im Krug seine Begrenzung kennt seine Form bewahrt und labt so wie manchmal das Gedicht

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O ESQUECER A larva do esquecimento cava caminhos cegos na carne macia da memória coisas importantes e insignificantes tanto faz – desaparecem às vezes emergem em algum outro lugar às vezes se perdem para sempre.

DAS VERGESSEN Die Made des Vergessens grabt blinde Gänge ins zarte Fleisch von Gehirn wichtige oder unwichtige Dinge es macht nichts aus – sie verschwinden manchmal tauchen sie sonst wo auf manchmal sind sie für immer verloren.

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Gloria Trinidad Nasceu em Madri, 1968. Os três poemas aqui publicados fazem parte do Libro de la niebla (Amargord, 2013)

O LIVRO DA NÉVOA Foi escolhido o livro da névoa que é o livro da luz virado pelo avesso o que arrasta o câncer do relógio em cada página cujas palavras se amontoam como cadáveres podres o que nos faz viver sempre em despedida o que impregna nossas unhas com a sujeira da usura o que nos ensina como se destrói uma igreja pedra por pedra como se espalha pela cidade um odor ensanguentado que esvazia casas tranca portas e janelas onde a água rasteja desolada pelo esgoto onde neva e neva sobre uma cúpula de cinzas cujas notas repicam dissonantes em nossos ouvidos o que não queremos levar porém nos leva consigo. Lemos o livro da névoa e despertamos com um sopro de esterco congelado com um lenço amarrado no queixo com um som negro apertando o coração. Faz frio ao redor do coração. Já não saberíamos ler outro livro.

(Tradução: Victor Del Franco) 60 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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EL LIBRO DE LA NIEBLA Hemos escogido el libro de la niebla que es el libro de la luz vuelto del revés el que arrastra el cáncer del reloj en cada página cuyas palabras se apilan como cadáveres podridos el que hace que vivamos siempre en despedida el que impregna nuestras uñas con la roña de la usura el que nos enseña cómo se destruye una iglesia piedra a piedra cómo se esparce en la ciudad un olor ensangrentado el que vacía casas clausura puertas y ventanas donde el agua repta desolada en las cloacas donde nieva y nieva sobre una cumbre de cenizas cuyas notas repican disonantes en nuestros oídos el que no queremos llevar pero nos lleva consigo. Leemos el libro de la niebla y despertamos con un aliento a estiércol congelado con un pañuelo atado a la mandíbula con un acento negro aferrando el corazón. Hace frío en los alrededores del corazón. Ya no sabríamos leer otro libro.

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Literatura sem Fronteiras

A CASA Não ter nenhuma propriedade não dever nada. Em tempo de desolação fazer mudança. Não possuir para que nada me possua. Poder começar em qualquer outro lugar poder viver sob as pálpebras de um deus menos severo que minha infância. Por isso vendi a casa.

LA CASA No tener nada en propiedad no deber nada. En tiempo de desolación hacer mudanza. No poseerla para que nada me poseyese. Poder empezar en cualquier otro sitio poder vivir bajo los párpados de un dios menos severo que mi infancia. Por eso vendí la casa.

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Literatura sem Fronteiras

NOSSO INFERNO Nosso inferno não é subterrâneo não arde em chamas não tem porta o vale de Hinom nem barqueiro nem barco nem Aqueronte nem árvores de espinhos nem cones de fumaça negra Nosso inferno é uma chamada curta um pedaço de papel para comunicarmos o que morre o que morreu de uma morte de carne e osso morte aqui e agora Em nosso inferno não há eternamente homens transformados em plantas cabeças voltadas para trás nem corpos presos em lagos de gelo mas vozes que você não escuta caras que não vê espectros que só em você podem viver espectro que você já é do que foram.

NUESTRO INFIERNO Nuestro infierno no es subterráneo no arde en llamas no tiene puerta al barranco de Hinón ni barquero ni barca ni Aqueronte ni árboles de espinas ni conos de humo negro Nuestro infierno es una llamada corta un trozo de papel para comunicarnos lo que muere lo que ha muerto de una muerte de carne y hueso muerte de aquí y ahora En nuestro infierno no hay eternamente hombres transformados en plantas cabezas volteadas hacia atrás ni cuerpos atrapados en lagos de hielo sino voces que no escuchas caras que no ves espectros que sólo en ti ya pueden vivir espectro que eres ya de lo que fueron.

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Em defesa das biografias de escritores e contra a burocratização da crítica literária por Claudio Willer

Em artigos criticando o cerceamento da produção de biografias no Brasil1, havia observado que isso corresponde a criar obstáculos à produção do conhecimento. Retomo, tratando de um campo algo maldito em estudos literários: as biografias de escritores. A crítica universitária é a favor do “recorte” da obra, isolando-a do autor. Isso, por razões formalistas, com base na ideia da autonomia do texto; ou em vulgatas pelas quais o indivíduo, protagonista da biografia, é produto de seu meio, da sociedade em que viveu, e por isso não apresenta interesse autônomo. É oposta a crítica surrealista, tal como praticada por André Breton, Em vez de isolar a biografia, confunde-a com a obra, adicionando-lhe sentidos. Chama a atenção o modo como Breton, ao tratar de outros autores, confunde o particular e o geral, o detalhe e o todo. Não apenas leva em consideração a biografia, mas inverte a relação entre vida e obra; entre a parte e o todo, o aparentemente essencial e circunstancial. Um exemplo está no Manifesto do Surrealismo, na lista de traços ou atributos associados a uma série de autores, de Jonathan Swift a Raymond Roussel: As Noites de Young são surrealistas do começo ao fim; infelizmente, é um padre que fala, mau padre, sem dúvida, mas padre. Swift é surrealista na maldade. Sade é surrealista no sadismo. Chateaubriand é surrealista no exotismo. Constant é surrealista em política. Hugo é surrealista quando não é tolo. Desbordes-Valmore é surrealista no amor. Bertrand é surrealista no passado. Rabbe é surrealista na morte. Poe é surrealista na aventura. Baudelaire é surrealista na moral. Rimbaud é surrealista na prática da vida e alhures. Mallarmé é surrealista na confidência.

1. O mais recente, “Biografias e assombrações”, em http://claudiowiller.wordpress.com/2013/10/30/biografias-e-assombracoes

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Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo. Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo. Fargue é surrealista na atmosfera. Vaché é surrealista em mim. Reverdy é surrealista em sua casa. Saint-John-Perse é surrealista à distância. Roussel é surrealista na anedota. Etc. Como se vê, o surrealismo pode estar em muitos lugares. Aparece na vida particular (Reverdy em casa, Jarry e o absinto, na confidência de Mallarmé), no essencial (o símbolo em Saint-Pol-Roux, um simbolista, o amor em DesbordesValmore, poeta lírica, o sadismo em Sade), em características importantes da obra (a maldade em Swift, a morte em Rabbe, o exotismo em Chateaubriand), em algo que pode ser qualidade da obra ou do autor (a moral em Baudelaire), ou está em um lugar indefinido (aquele onde Victor Hugo não é tolo). No mesmo manifesto, Breton identificou o surrealismo ao gênio – portanto, nessas características variáveis, flutuantes, essenciais ou ocasionais, residiria a genialidade. O único lugar onde “gênio” e surrealismo jamais estariam é sob uma veste sacerdotal, como se vê pela referência a Young, iniciador do romantismo. Mais tarde, em “Le message automatique” de 1933, ao associar a escrita automática às visões, exemplificou com Santa Tereza d'Ávila, que viu sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. O exemplo o levou à seguinte tirada: “Tereza d'Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”. Essas apreciações de autores e obras, sem a menor preocupação com o que seria da esfera da obra ou da biografia, são compatíveis com as críticas ao realismo, naturalismo, a lógica do discurso e a visão cientificista do mundo: a “atitude realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção”. Exemplos não se limitam ao Manifesto do Surrealismo. Ao tratar da poesia de Baudelaire em “Le merveilleux contre le mystère”, nos leva ao autor, como neste exemplo de uma crítica surrealista: “Baudelaire só nos subjuga a esse ponto porque, dentre os poetas franceses, é o último, cronologicamente, a traduzir em uma linguagem sensivelmente direta, em uma linguagem que as molda, sem se deixar quebrar por elas, as emoções todo-poderosas que o possuem. Com ele, a coisa exprimida ainda não se distingue, quase nada, daquele que a exprime: ela preexiste, isto é o que importa observar, ao modo de sua expressão”. Assim investe contra um volume de obras que tratam da “neutralidade” do sujeito em Baudelaire, dando-o, na esteira de T. S. Eliot e de Paul Valéry, como iniciador do formalismo e antirromântico. Na visão de Breton, é o contrário: a criação não se distingue de quem a exprime; preexiste ao modo de expressão. Pertence à dimensão do sujeito; faz parte dele antes de constituir-se em obra, exterioridade autônoma. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 65


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No Baudelaire hiper-romântico de Breton, poesia é expressão, não só da subjetividade, mas de um sujeito ampliado até confundir-se com a esfera objetiva, das coisas. Semelhante interpretação é atestada pelo próprio Baudelaire. O spleen foi uma experiência pessoal, vivência subjetiva, antes de ser um tema literário. Sentia tédio e melancolia: por isso, escreveu a respeito. Quis uma arte filosófica que viria a unir as duas esferas, subjetiva e objetiva, através da “magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o sujeito e o objeto”. Buscava a síntese, em uma atitude que não difere daquela de Breton em favor do sujeito, exposta no prefácio de Nadja: “Subjetividade e objetividade travam, durante o curso de uma vida humana, uma série de combates nos quais, na maior parte das vezes, e logo, a primeira leva a pior”. Um passo adiante no exame por Breton da integridade de vida e obra está na Antologia do Humor Negro. Nela, são traçados perfis, inseparáveis dos comentários sobre as obras. No capítulo sobre Baudelaire, é examinado o dandismo, o exibicionismo “das luvas rosa-pálido de sua juventude faustosa, da peruca verde exibida no Café Riche, até o xale de seda aveludada escarlate, vestimenta suprema de seus maus dias”. E as famosas provocações, como aquela a um burguês que se gabava das qualidades de suas duas filhas: “e qual dessas duas jovens pessoas o senhor destina à prostituição?” Breton chega aos enigmáticos episódios dos últimos dias, quando, afásico, corroído pela sífilis cerebral, ao passar diante de um espelho sem reconhecer-se na imagem, a cumprimentava. E, depois de um silêncio de meses, pronunciou suas últimas palavras: à mesa, pediu, com total naturalidade, que lhe passassem a mostarda. Por isso, afirma, “O humor negro, em Baudelaire, assim revela sua pertinência ao fundo orgânico do ser. É nada compreender de seu gênio fazer de conta que não se toma conhecimento dessa disposição eletiva, ou passar por ela com indulgência. Ela corrobora toda a concepção estética sobre a qual repousa sua obra, e em ligação estreita com ela é que se desenvolve, no plano poético, a série de preceitos que irá transtornar toda a sensibilidade posterior”. Confere estatuto literário ao dandy, ao flâneur, ao caminhante desgarrado, que marcaria obras escritas sob o signo da abertura ao acaso, ao imprevisível, à irrupção do maravilhoso, como, do próprio Breton, Nadja, Os Vasos Comunicantes e O Amor Louco. Baudelaire representa, portanto, algo fundamental para a compreensão do próprio surrealismo: a busca da unidade, que está na raiz dos escândalos, provocações e outras manifestações surrealistas, como os insultos a Anatole France e Paul Claudel, o modo como acabaram com um banquete em homenagem a Saint-Pol Roux e inumeráveis outros episódios. E, igualmente, da riquíssima crônica de experimentações não só no plano simbólico, mas da própria vida, como o alucinado período, ao final de 1921, do sono hipnótico, os transes induzidos para produzir textos que eram um misto de profecia e escrita automática. E ainda, em uma aparente contradição, na exigência de uma ética, de uma conduta coerente, que resultou em exclusões como a de Salvador Dali e tantas outras. Marguerite Bonnet, em André Breton – Naissance de l'aventure surréaliste, vê, com razão, surrealistas como herdeiros do dandismo baudelairiano em sua “necessidade ardente de alcançar uma originalidade dentro dos limites exteriores da conveniência”. Pertencem à família dos que “participam do mesmo caráter de oposição e de revolta”, expressando, não apenas através de textos, mas da atitude e estilo de 66 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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vida, a contradição entre poesia e sociedade. Nem é necessário referir-se, a propósito, ao extremado exibicionismo de Salvador Dali. Basta examinar fotografias dos surrealistas: um Breton de monóculo e a pose de seus companheiros. Jacques Vaché, o amigo de Breton morto em 1919, iniciador do surrealismo, não só por suas cartas desvairadas, mas por sobrepor a vida à arte, como ao fantasiar-se de oficial inglês para interromper a estreia da peça Les Mamelles de Tirésias de Apollinaire, em 1918. Breton não defende apenas os direitos da subjetividade e o dandismo ao examinar Baudelaire: vai além, ao associar a fala do poeta de As Flores do Mal, pedindo que lhe passassem a mostrada, interrompendo uma mudez que durava meses, à “série de preceitos que irá transtornar toda a sensibilidade posterior”: às correspondências, ao modo de pensar que, na crítica de arte antecipou o abstracionismo, a seu elogio à imaginação e à crítica ao realismo. Na Antologia do Humor Negro, Breton também examina Jarry. Ensaios, biografias, estudos sobre boemia parisiense, configuraram o autor de Ubu Rei como excêntrico delirante, levando a seus extremos a provocação romântica e o dandismo convertido em farsa. Se Baudelaire chamou a atenção por pintar seu cabelo de verde, Jarry foi além: pintou as mãos e rosto de verde. Outra vez, compareceu ao teatro com uma gravata pintada no peito da camisa. Foi célebre sua paixão por armas e sua ausência de hesitação em utilizar-se delas. Chegava a percorrer Paris de bicicleta, outro de seus fetiches, equipado com dois revólveres e uma carabina. Personagem de si mesmo, nunca deixava de expressar-se em um tom de voz especial, monocórdico, escandindo a fala do próprio Ubu, com o plural majestático, o “nós” no lugar do “eu”. Hoje, comportamentos como esses, e de toda uma genealogia, de Baudelaire e Nerval a Artaud, passando por Jarry, fariam com que fossem classificados como performáticos. O revólver e demais escândalos de Jarry foram comentados por Breton deste modo: “Essa aliança inseparável de Jarry e do revólver (…) pode ser tomada como a chave final de seu pensamento. O revólver é aqui o traço de união paradoxal entre o mundo exterior e o mundo interior”. Por isso, “a partir de Jarry, muito mais que de Wilde, a diferenciação entre vida e arte, tida por muito tempo como necessária, vai se encontrar contestada, para acabar sendo aniquilada em seu princípio”. Semelhante apreciação coincide com a de Roger Shattuck em The banquet years, ao mostrar como ele levou a tentativa de união do simbólico e do real imediato até a autoimolação. Em Nadja, tais trocas de lugar do geral e do particular, do que pertence ao biográfico e do que está na obra, sempre destacando e valorizando o detalhe, são transformadas em projeto. Pede que a crítica renuncie “a suas mais caras prerrogativas”, e se proponha “um objetivo menos inútil que aquele da sistematização mecânica de ideias”. Consistiria em “sábias incursões no domínio que ela considera o mais interdito, e que, fora da obra, é aquele onde a pessoa do autor, às voltas com os fatos miúdos da vida corrente, se exprime com toda a independência, de um modo com frequência tão diferente”. Em outras palavras: o desafio a ser enfrentado pela crítica seria, em vez de sistematizar a interpretação da obra, examinar o particular, o detalhe, o que a biografia do autor apresenta de independente e diferente. E, a partir dessa diferença, desvendar sentidos da obra. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 67


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Portanto, a crítica literária a partir da peruca verde, da mudez interrompida para pedir que lhe passem a mostrada, do tiro de revólver na vidraça de um bar... Os perfis de autores na Antologia do Humor Negro realizam o projeto de crítica proposto em Nadja. E também as páginas seguintes do próprio Nadja: após lançar esse desafio á crítica, Breton relata a história de Victor Hugo, “já no fim da vida, ao fazer com Juliette Drouet, pela milésima vez, o mesmo passeio”. Toda vez, ao passar diante de uma mansão que tinha duas entradas, uma grande, outra pequena, Hugo dizia a Juliette: “Porta dos cavalheiros, madame”, indicando a entrada grande, para ouvir Juliette, apontando a entrada pequena, dizer: “Porta dos peões, monsieur”. E, “depois, um pouco mais além, diante de duas árvores cujos ramos se entrelaçavam, tornar a dizer: 'Filêmon e Baucis', sabendo que Juliette não responderia a isso”. O comentário de Breton: “A garantia que nos dão de que essa pungente cerimônia se repetiu cotidianamente durante anos não será o melhor estudo possível da obra de Hugo, o conhecimento e a espantosa sensação do que era esse homem, do que ele é? Essas duas portas são como o espelho de sua força e de sua fragilidade, não se sabendo qual o de sua pequenez, qual o de sua grandeza”. Duas portas e a repetição da mesma frase espelham tensões internas da sua obra. Crítica literária delirante? Claro que sim. Paranoia? É evidente: em Les vases communicants, Breton fez o elogio do 'método paranoico-crítico' de Dali; em Nadja, antes de conhecer Dali, antecipava esse método. Ou foi Dali quem se inspirou em passagens desse gênero em Breton? Trata-se, principalmente, de pensamento mágico, fundado em princípios do hermetismo. É a crença na analogia universal, e, consequentemente, na correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo; por isso, propriedades do todo estão em suas partes. Daí o detalhe biográfico, a peculiaridade na vida de um autor, apresentar relações com a obra, reproduzindo o que nela é essencial. O modo como Breton lia o detalhe pode, portanto, ser associado as suas proclamações em favor da unidade, como no Segundo Manifesto do Surrealismo, depois de denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem”, ao afirmar: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios”. É correto afirmar que o surrealismo prossegue uma tradição hermética e ocultista. Inverte-a, porém, em sua visão da história, do devir humano. O arcaico e primitivo foram valorizados pelos surrealistas: mas o mundo mítico, regido pelo pensamento analógico, é fonte de contribuições para a realização futura da Idade do Ouro, e não o illo tempore idealizado, de modo nostálgico e regressivo. Em acréscimo, o que impulsiona o homem, e, por extensão, a história, é, para Breton, algo bem material, o desejo. Mesmo com essas ressalvas, sua crítica literária está a um passo da astrologia, disciplina hermética por excelência, norteada pela ideia da sincronia entre os dois planos, terreno e celestial. Chegou a defender o reconhecimento da astrologia como ciência em Les vases communicants. No Segundo Manifesto do Surrealismo, ao referir-se à conjunção de Urano e Netuno presente no céu de nascimento de Baudelaire, colocou o surrealismo sob influência de uma conjunção de Saturno e Urano entre 1896 e 1898, coincidindo com o nascimento de Breton e os de Éluard e Aragon. 68 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Em sua obra, astrologia é ligada ao acaso objetivo, o modo como o simbólico se projeta magicamente no real, interpretado como encontro do acaso e necessidade. Trata-se, porém, de astrologia da Terra, e não do céu. Troca o lugar do alto e do baixo dos neoplatônicos, gnósticos e hermetistas. A beleza convulsiva, luminosa, está aqui, e não lá: está no botequim à entrada de um cemitério, e não na esfera supra-celestial, no nirvana ou pleroma. O todo – o destino, o movimento dos astros e suas consequências – no detalhe. Interessa mostrar a produtividade desse procedimento. Essa particularização mostra que a biografia pode, efetivamente, iluminar a obra. Jarry, Rimbaud e outros expoentes do que medeia entre simbolismo e vanguarda partilharam um legado baudelairiano. Foram sucessores em um determinado tipo de coerência, uma ética às avessas. Acreditaram na correspondência entre signo literário e vida. A exteriorização exacerbada não foi, portanto, mera curiosidade. Mostrava o escritor apresentando ideias e símbolos nos dois planos, do texto e da vida. O mesmo vale para o aparente contrário dos exibicionistas, constituído pelos autores misteriosamente ausentes, como Lautréamont, o misterioso Isidore Ducasse sobre o qual tão pouco se sabe. Mas a obscuridade do homem Isidore Ducasse torna mais instigante o exame do sentido que a biografia pode dar à obra. Contribuiu para a falta de informações o fato da obra, inicialmente, não ter recebido atenção. Por isso, ninguém deu atenção ao autor. Mas o que ele tem de misterioso deve-se também a um propósito declarado: “Não deixarei Memórias”, declarou em Poesias. O retraimento é uma crítica, no plano da conduta, à consagração literária. No fundo, a mesma crítica que se manifestou através das extroversões de Baudelaire, bem como as excentricidades de seu contemporâneo, tão próximo a ele, Gérard de Nerval, e os escândalos promovidos por Rimbaud, Verlaine e tantos outros. Se a exteriorização exacerbada não é mera curiosidade, matéria do folclore literário, pois mostra o escritor apresentando suas ideias e símbolos nos dois planos, do texto e da vida, isso vale também para Lautréamont. Igualmente, acreditou na correspondência de signo literário e vida. O autor escandalosamente presente e o misteriosamente ausente traduzem, ambos, a ideia do poeta como outro, ser de exceção, criatura à parte. Alteridade que se expressa como provocação pública, ou como fuga e isolamento, a exemplo do autoexílio de Tristan Corbière (que também se escondeu atrás de um pseudônimo). Sendo a literatura vista como expressão do sujeito, o “eu” romântico em confronto com a sociedade, seus autores apresentaram um comportamento comprometido com essa concepção. Há um passo adiante, também dado pelo surrealismo: transformar a própria leitura em acontecimento biográfico; e, desse modo, reforçar sentidos descobertos na obra. Em um texto de 1967, Lautréamont et nous, Louis Aragon justificou o modo como os surrealistas o reivindicaram. Remontou à época de serviço militar em trincheiras e hospitais na guerra de 1914-18: Narrou como ele e Breton o liam em 1917. Revezavamse a vocalizar o exemplar único dos Cantos que tinham nas mãos, pertencente a Soupault, “em um cenário inverossimilmente maldororiano”: à noite, no quarto andar do hospital militar onde serviam como estagiários na ala daqueles que estavam sob tratamento psiquiátrico. Enquanto recitavam blasfêmias: “Eu fiz um pacto com a Celuzlose 10 • Dezembro 2013 69


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prostituição a fim de semear a desordem entre as famílias”, ou alguma passagem mais lírica como “Toda noite, mergulhando a envergadura das minhas asas em minha memória agonizante, eu evocava a lembrança de Falmer... toda noite” , os internados entravam em surto: “Às vezes, por detrás das portas trancadas a cadeado, os loucos urravam, nos insultavam, batendo na parede com seus punhos. Isso dava ao texto um comentário obsceno e surpreendente. (...) Os bruscos buracos de silêncio eram mais impressionantes ainda que o alarido demencial”. Silêncio decorrente do pavor partilhado por todos diante dos alarmes de bombardeios aos quais Paris era submetida. Lautréamont et nous não é apenas uma crônica da época. Oferece mais uma ilustração das conexões surrealistas entre literatura e vida. Aragon demonstrou que, sem precisarem recorrer à mediação de teorias então inexistentes, através de uma apreensão poética, revelação, diz, resultado de uma cumplicidade ativa, o foco já se dirigia para seu valor como linguagem. Imediatamente, viram aquelas características de sua escrita, ou “escritura”, que tornaram Lautréamont algo além de um adepto do mal na trilha de Baudelaire, ou um profeta da perversão associada ao Marquês de Sade. Fica clara a produtividade do procedimento bretoniano ao se examinar um de seus ensaios, Flagrant Délit, de 1949, no qual denunciou uma falsificação de Rimbaud, La Chasse spirituelle, que havia sido endossada por críticos de renome. Nele, está registrada a intervenção de Breton em outra polêmica importante, além daquela relativa à falsificação de Rimbaud. É a discussão da sequência em que foi escrita a sua obra; em especial, se Iluminações precedeu ou sucedeu a Uma Temporada no Inferno. Para os organizadores da edição completa de Rimbaud pela coleção Pléiade da Gallimard, entre outras fontes, Iluminações foi escrito antes de Uma Temporada no Inferno, que seria então seu testamento ou carta-despedida, a declaração de abandono da literatura em busca de outros horizontes. Essa sequência possibilita uma interpretação católica: Rimbaud termina no inferno; em seguida, a expiação e, na hora da morte, o arrependimento e a conversão. Invertendo a sequência, datando-se Iluminações como última de suas obras, realização final da poética visionária enunciada nas cartas e em Uma Temporada no Inferno, é possível a interpretação gnóstica e hermética, muito mais compatível com suas ideias sobre alquimia e poesia: após a descida ao inferno, a iluminação e, depois disso, o silêncio, por nada mais haver a ser dito. Além disso, fica mais evidente o que Breton chama, no texto citado, de “índice orgânico sobre a evolução de Rimbaud”, associado ao abandono das formas poéticas fixas, em favor do poema em prosa. E, ainda, de evolução em matéria de companhias, pois a estada de Rimbaud em Londres em 1874, em companhia do poeta Germain Nouveau, deixa de ser um “parêntese vazio”, mas o resultado da interlocução com outro visionário: Nouveau, integrante notável da marginalia do simbolismo, movido pela compulsão de ser um santo, depois de caminhar pela França como vagabundo errante, acabou efetuando uma peregrinação até Jerusalém, para, de volta a sua terra natal, Pourriéres, na Provença, recolher-se ao silêncio e passar o restante de seus dias sustentado pela caridade da vizinhança até sua morte em 1920. Sua poesia, feita de palavras reduzidas a sequências melódicas de sons, é precursora. 70 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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O detalhe biográfico – a sequência cronológica das obras – é, portanto, decisivo para a atribuição de um sentido a toda a obra de Rimbaud: a uma obra que, como poucas, definiu os contornos da modernidade. Pequena amostra do que se pode recolher da informação biográfica, agora no centro de um fogo cruzado, de uma espantosa guerra de vaidades, cuja principal vítima vem sendo o conhecimento. Imaginem se Isabelle, a irmã carola de Rimbaud, pudesse interferir em estudos biográficos: qual a chance de avançar nessas interpretações? Ou a família Ducasse, responsável pelo apagamento das informações sobre Lautréamont: dependendo deles, saberíamos menos ainda, o mistério que o cerca seria muito maior.

OBRAS CITADAS De André Breton: Anthologie de l'humour noir, Jean-Jacques Pauvert, éditeur, Paris, 1966; La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de Poche, Paris, 1979; Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau Editora, Rio de Janeiro, 2001; Le merveilleux contre le mystère, em La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de Poche, Paris, 1979 ; Les vases communicants, collection Idées, Gallimard, Paris, 1985; Nadja, Gallimard, Paris, 1964; ou Nadja, tradução de Ivo Barroso, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1999; O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Editorial Estampa, Lisboa, 1971; Oeuvres complètes, edição organizada por Marguerite Bonnet, Éditions Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, Paris, Vol. I, 1988, Vol. II, 1992. Outros autores: Aragon, Louis, Lautréamont et nous Paris: Sables, 1992; Baudelaire, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995; Bonnet, Marguerite, André Breton – Naissance de l'aventure surréaliste, Librairie José Corti, Paris, 1988; Bordillon, Henri, Gestes et opinions d´Alfred Jarry, écrivain, Editions Siloé, Laval, 1986; Carrouges, Michel, André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, collection Idées, Gallimard, Paris, 1971; Lautréamont (Isidore Ducasse), Os Cantos de Maldoror, Poesias, Cartas, tradução e organização de Claudio Willer, São Paulo: Iluminuras, 2008; Rimbaud, Arthur, Oeuvres Complètes, texte établi et annoté par Roland de Renéville et Jules Mouquet, Bibliothèque de la Pléiade, Librairie Gallimard, Paris, 1954; Rimbaud, Arthur, Poesia Completa, organização e tradução de Ivo Barroso, Topbooks, Rio de Janeiro, 1994; Rimbaud, Arthur, Prosa Poética Completa, organização e tradução de Ivo Barroso, Topbooks, Rio de Janeiro, 1998.

Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Termina seu pós-doutorado em Letras na USP.

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Broquéis: corpo em excesso num diálogo com Baudelaire por Aline Aimée

A te voir marcher em cadence, Belle d’abandon, On dirait um serpent qui danse Au bout d’un baton. (Charles Baudelaire) Na ocasião de sua publicação, Broquéis encontrou pouquíssimos leitores que o compreendessem. Isso se deveu ao ínfimo contato que se tinha na época com a vanguarda simbolista francesa – literatura que serviu de inspiração a Cruz e Souza. Acostumados à tradição descritivista parnasiana e à obsessão realista/naturalista pelo referente extratextual, poucos poetas e estudiosos da época foram capazes de admirar, ou mesmo conceber, o que Ivan Teixeira, em ensaio introdutório da edição produzida pela Edusp, chamou “poesia pura”, isto é, uma poesia descompromissada com algum “significado explícito” (1994: XII), e mais interessada em criar uma coerência interna, construída através de um jogo de signos, imagens, ritmos e sons. A poesia de Broquéis inaugura o abstracionismo literário no Brasil, introduzindo o verso denso, cujas sugestões semânticas e musicalidade expressiva querem desvelar, muitas vezes, uma experiência psíquica. De fato, Cruz e Souza explorou à exaustão tanto a Teoria das Correspondências, de Baudelaire – segundo a qual se buscava a aproximação de realidades, seres, cores, perfumes, pensamentos, sons, emoções – quanto a harmonia sonora preconizada por Paul Verlaine, que elogiava “De la musique avant toute chose...” Contudo, a influência de Baudelaire na poética de nosso Cisne Negro não se limitou à adoção de uma estrutura de cruzamento sinestésico, mas se estendeu à seara da temática, ao desenvolver os motes decadentistas do horrendo. Ivan Teixeira identifica 7 grupos temáticos em Broquéis, dentre os quais os poemas de Erotismo Sensual (“Lésbia”, “Múmia”, “Lubricidade”, “Braços”, “Encarnação”, “Tulipa Real”, “Dança do Ventre”, “Dilacerações”, “Sentimentos Carnais” e “Serpente de Cabelos”), e os de Retratos Extravagantes (“Satã”, “Afra”, “Judia”, “Tuberculosa”, “Regenerada”, “Rebelado” e “Majestade Caída”). Esses poemas se particularizam por uma concepção deformizada da realidade, que explora “a excessão e o excesso sexual” (Idem: XXXIII), bem como por uma “requintada agressão do tipo expressionista, em que se barbarizam as formas e os limites do real” (Idem: XXXV). Essa parece ser uma das mais intensas ressonâncias da poesia de Baudelaire na arte de Cruz e Souza, que buscaremos 72 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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analisar em relação à abordagem do corpo. Uma vez que alguns poemas citados acima traçam perfil mais psicológico que físico, em especial os do segundo grupo, selecionaremos aqueles que correspondam ao nosso recorte, para analisá-los e confrontá-los com certos poemas de As flores do mal. Intelectual de extrema erudição, Baudelaire teve uma formação literária que passeou do romantismo francês aos poetas latinos da decadência. Incluiu, ainda, os escritores de língua inglesa, como Coleridge, Byron, Keats, Maturin, Walpole, Lewis, Thomas Gray, Anne Radcliffe e De Quincey, assim como os contos de Hoffmann e a teoria mística de Swedenborg. A esse grupo, afirma Ivan Junqueira (em prefácio da edição comemorativa, publicada pela editora Nova Fronteira), Baudelaire deve grande parte de seu satanismo e de sua fantasmagoria gótica. Mario Praz, no estudo A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, assinala que a biografia de Baudelaire muito influenciara os contornos que sua literatura adquiriu, pois o poeta crescera numa “esfera viciada em extravagâncias mórbidas” (PRAZ 1996: 121). O teórico explica, a propósito, que o decadentismo do século XIX teria sido uma consequência do romantismo, para quem a beleza era potencializada pelo elemento que deveria contradizê-la: o horrendo. A estética do horrendo alcançara o apogeu no fim do século XVIII, quando passou a ser considerada um elemento constitutivo da beleza. Nessa estética, o sofrimento e a dor integram a voluptuosidade, numa beleza que se erige em tormento e contaminação. No poema “Hymne a la beauté”, Baudelaire assim a define: Tu marches sur des morts, Beauté, don’t tu te moques De tes bijoux l’Horreur n’est pás le moins charmant, Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques, 1 Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement. (BAUDELAIRE 2006: 160) A estrofe acima evidencia como a morte e o horror estavam associados à beleza – “monstro ingênuo, gigantesco e horrendo” – no imaginário da época. Contudo, estudando a morbidez amorosa na literatura do século XIX, Praz explica que ela já havia sido desenvolvida em autores seiscentistas, quando da solidificação do estilo grotesco: A bela mendiga, a velha sedutora, a negra fascinante, a cortesã humilhada, todos esses motivos que os seiscentistas haviam tratado ligeiramente ou de forma lúdica, vamos encontrar com um acre sabor nos românticos. (1996: 45)

1. “Calcando mortos vais, Beleza, a escarnecê-los; / Em teu escrínio o Horror é jóia que cintila, / E o Crime, esse berloque que te aguça os zelos, / Sobre seu ventre em amorosa dança oscila.” Essa tradução e as demais das poesias de Baudelaire são de Ivan Junqueira.

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Affonso Romano de Sant’Anna, em estudo sobre a interdição do desejo na poesia brasileira, intitulado O canibalismo amoroso, comenta a afirmação de Praz, em capítulo sobre os simbolistas: Mas é curioso que isso ultrapasse os românticos e ganhe um caráter mais macabro, ainda, nos simbolistas, dos quais os brasileiros são bom exemplo ou sintoma. (1993: 122) Paralelamente ao romance medieval, desenvolvia-se o romance carniça (“roman charogne”), conforme apontamento de Théophile Gautier, citado por Sant’Anna. Tratava-se de: (...) uma literatura do necrotério e de galés, pesadelo do carrasco, alucinação do açougueiro bêbado ou do beleguim da polícia febril. O século dedicava-se à carniça e o ossuário lhe agradava mais que a alcova. (GAUTIER apud SANT’ANNA 1993: 122) Sant’Anna comenta que a atmosfera científica e tecnológica que influenciou a arte a partir do Naturalismo e que deu origem ao romance carniça, produziu também a “poesia do cadáver e do hospital”. (Idem: 136) A partir das citações acima, fica evidente que a literatura do século XIX reacendera o interesse pelo mórbido e pelo grotesco, assim como pelo escatológico. Se o materialismo fisiológico do romance carniça fora reestruturado e atualizado com o 2 Naturalismo , e a morbidez amorosa se intensificara com o Romantismo, a literatura simbolista parece lançar mão de ambas as estratégias. O desejo amoroso é sublimado em interdições macabras (sobretudo através da morte), ao mesmo tempo em que o objeto do desejo é descrito em desmedida, extrapolando o limite do horrível com descrições pormenorizadas do abjeto e do violento. Na poesia de Baudelaire, essa característica é patente, especialmente ao considerarmos que o poeta nutria imensa admiração por Delacroix, pintor dos estragos, incêndios, saques, da podridão, das cenas sombrias do Fausto e dos poemas satânicos de Byron. No poema “Une charogne”, por exemplo, o eu lírico dialoga com a amada, descrevendo uma carniça que observam, e afirmando que essa será, um dia, o futuro daquela. Os versos se escorrem no abjeto:

2. Ana Chiara, no capítulo Leituras Pornográficas, de sua tese de doutoramento, explica que “apesar de estar filiado às teorias científicas da época, o movimento não digeria bem essas novas informações, nem cumpria o papel edificante que, no entender dessa mesma crítica caberia às artes e à cultura de um modo geral. Porque o romance naturalista brasileiro, ainda sob esse ponto vista, foi considerado uma pedagogia às avessas ao despertar interesse por estados mórbidos e incitar o excitamento sexual...” (pp.117-8). Tal afirmação se mostra relevante ao analisarmos o aspecto mórbido da poesia de Cruz e Souza, uma vez que o poeta estava familiarizado com esse tipo de abordagem fisiológica do corpo, que acaba surgindo em sua poesia de maneira semelhante.

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Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride, D’où sortaient de noirs bataillons De larves, qui coulaient comme un épais liquide 3 Le long de ces vivants haillons. (BAUDELAIRE. 2006:174) Também Cruz e Souza iria explorar esse efeito em suas descrições poéticas do corpo. Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, comenta que as leituras desse poeta, anteriores à publicação de Broquéis, eram as mesmas que serviram de embasamento aos naturalistas: Darwin, Spencer, Haeckel, Taine, Flaubert, Zola, Eça, Baudelaire, Antero, Guerra Junqueiro, Cesário Verde (BOSI 1994: 270) – o que pode ter favorecido a habilidade do poeta quanto à minúcia descritiva de aspectos fisiológicos. Há que se apontar, ainda, que a biografia de Cruz e Souza – marcada pelo preconceito, pelo desprezo à sua arte, pela loucura da esposa e pela morte dos filhos – contribuía para uma visão desiludida e desencantada dos relacionamentos interpessoais, embora a verificação disso em sua poesia só tenha se revelado mais claramente em seus poemas últimos e mais maduros. Cruz e Souza empregou, diversas vezes, o abominável na construção da figura feminina, retomando temas e estratégias d’As flores do mal. Em “Lésbia”, por exemplo, a mulher é descrita sob total descontrole, tal qual um “Cróton selvagem, tinhorão lascivo, / Planta mortal, carnívora, sangrenta” e como uma “cruel e demoníaca serpente” (CRUZ E SOUZA 1994: 13-4). Essa fêmea “mortal e carnívora”, cujo lábio é “mordente e convulsivo” e a expressão é “violenta”, parece resgatar o mito das mulheres fatais, demoníacas e devoradoras de homens, como a deusa Kali, Salomé, Eva, Pandora, entre outras (ver SANT’ANNA). Aqui o corpo não é descrito sob a lente do realismo, mas metonimicamente, por pedaços, órgãos, sempre em exagero perturbador: Dos teus seios acídulos, amargos, Fluem capros aromas e os letargos, Os ópios de um luar tuberculoso...” (CRUZ E SOUZA 1994: 14) O tema da lésbica também se encontra em Baudelaire, nos poemas “Femmes damnées”, “Lesbos” e “Sed non satiata”. No primeiro, encontramos a mesma ferocidade que em “Lésbia”: Étendue à sés pieds, calme et pleine de joie, Delphine la couvait avec dês yeux ardents, Comme un animal fort qui surveille une proie, 4 Après l’avoir d’abord marquee les dents. (BAUDELAIRE 2006: 474)

3. “Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço, / Dali saíam negros bandos / De larvas, a escorrer como um líquido grosso / Por entre esses trapos nefandos.” 4. “Posta a seus pés, serena e cheia de alegria /Delfina lhe lançava à carne olhos ardentes, / Como animal feroz que a vítima vigia, / Após havê-la antes marcado com seus dentes.”

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Em “Múmia”, o poeta catarinense traz à tona a atração funérea, a interdição pela dessexualização, já que a múmia está associada à velhice e à morte. De acordo com Affonso Romano, o amor simbolista se dá não pela realização sexual, mas pela sublimação: A mulher que assim dorme alienada do amante é uma variante da noiva morta, que mostra a mulher como um ser em hibernação. É como se dessa morta, dessa múmia, dessa larva, fosse sair algo em metamorfose angelical. Aí a morte é o lugar da utopia, o não-lugar onde o desejo também hiberna. Hiberna, mas não se ausenta. (SANT’ANNA 1993: 165) O corpo dessa múmia – embora envolto no mistério das faixas, que parecem guardar algo precioso – situa-se no campo do macabro e do escatológico, desencorajando a sua contemplação erótica: “Múmia de sangue e lama...”; “Podridão feita deusa de granito”; “beijo de pedra horrendo e frio.” (CRUZ E SOUZA 1994: 15-6) Segue a mesma linha o poema “Dança do ventre”, em que a mulher se transmuta em uma criatura enorme, nojenta e feroz: O ventre, em pinchos, empinava todo Como réptil abjeto sobre o lodo, Espolinhando e retorcido em fúria. Era a dança macabra e multiforme De um verme estranho, colossal, enorme, Do demônio sangrento da luxúria! (Idem: 76) Sant’Anna explica que essa transmutação feminina em verme é mais abstrusa do que parece, pois, a despeito da clara busca por dessexualização, a sexualidade do homem teima em se revelar (“hiberna, mas não se ausenta”). Esse verme sedutor seria a sensualidade problemática do homem refletida da imagem da mulher: Há um evidente sentido fálico nessa simbolização. O corpo feminino é esse “colossal” e “estranho” verme que exterioriza a sensualidade do macho de maneira complexa e invertida. O objeto de desejo é uma extensão fóbica, e o que seria a dança sedutora dos sete véus, é uma dança da morte. (1993: 141) Embora em Baudelaire, o sensualismo carnal seja mais explícito e não necessariamente condenável, é possível encontrar diversas associações entre o feio, o mórbido e o desejo amoroso, como na abordagem sedutora da Morte, de “Danse macabre”: Aucuns t’appelleront une caricature, Qui ne comprennent pás, amants ivres de chair, L’élègance sans non de l’humaine armature. 5 Tu résponds, grand squelette, a mon gout le plus cher! (BAUDELAIRE 2006: 328) 5.“Alguns verão em ti uma caricatura, / E sedentos de carne voltam sempre o rosto / à anônima elegância da humana ossatura. / Atendes, esqueleto, à essência de meu gosto!”

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A ambiguidade da beleza feminina, explorada por Baudelaire, parece ter encontrado ecos não somente em Cruz e Souza, mas também em poetas secundários, anteriores a este (nos anos de 1870 e início dos 1880), conforme explica Antonio Candido, em A educação pela noite: os jovens daquele tempo (…) faziam do sexo uma plataforma de libertação e combate, que se articulava à negação de instituições. Eles eram agressivamente eróticos (…). Foi um grande instrumento libertador esse Baudelaire unilateral (…) que fornecia descrições arrojadas da vida amorosa e favorecia uma atitude de oposição aos valores tradicionais, por meio de dissolventes como o tédio e a amargura. (CANDIDO 1987: 25-6) Walter Benjamin interpretava a representação da mulher em Baudelaire, como o “triunfo da alegoria: a vida que significa a morte” (BENJAMIN 1984: 132). Para Antonio Candido, essa percepção baudelairiana suscitou nos jovens poetas brasileiros uma idealização sobre a mulher que conduziu a uma certa “agressão, aspereza e ódio.” Haveria, portanto, nesta idealização em torno da mulher e do amor um sentimento de prazer na dor, de sensualidade mórbida e, sobretudo, de exposição do corpo como espetáculo. Prosseguindo na análise das poesias, encontramos a imagem superexplorada da serpente, que Affonso Romano identifica como o resgate do mito de uma “Vênus venérea e funérea”, que chafurda no lodo e cujos “acenos do amor (...) podem conduzir o homem à morte” (SANT’ANNA 1993: 142). É o caso de “Braços”: Braços nervosos, tentadoras serpes Que prendem, tetanizam como os herpes, Dos delírios na trêmula coorte... Pompa de carnes tépidas e flóreas, Braços de estranhas correções marmóreas, Abertos para o Amor e para a Morte! (CRUZ E SOUZA 1994: 28) Neste poema, os braços trêmulos e nervosos executam uma dança sedutora e mortal, semelhante à do verme, abraçando o eu lírico em direção ao fim. Por outro lado, em “Serpente de cabelos”, a dança ofídica resgata o mito da Medusa, quando uma “luxúria deslumbrante e aveludada” associa o fascínio (“sensação narcótica do aroma”) ao terror: És a origem do Mal, és a nervosa Serpente tentadora e tenebrosa, Tenebrosa serpente de cabelos!... (Idem: 100) Sant’Anna explica que, se na mitologia, Medusa petrificava os homens com seu olhar “mortal e voluptuoso”, nessa poesia a “mulher-Medusa” faz o mesmo com seu olhar maligno, remetendo para o sentimento de castração: Celuzlose 10 • Dezembro 2013 77


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O texto de Freud, “A cabeça de Medusa”, assinala diretamente a relação entre esse símbolo e o sentimento de castração. O terror da Medusa é o terror da castração, ligada a uma coisa vista. (...) A ideia da castração, a que se referia Freud, certamente se refere ao trecho do mito da Medusa, em que ela é decapitada por Perseu. A ambiguidade desse sentimento está, estruturalmente, tanto na morte de que ela é vítima quanto na morte que ela provoca. (SANT’ANNA 1994: 143-4) Para o teórico, esse sentimento diz respeito, especialmente, ao momento em que o menino descobre o sexo feminino, provavelmente o da mãe, cercado de pêlos e desprovido do pênis, que ressurge transmutado em serpente na cabeça da entidade, para representar o terror ocasionado por essa ausência – terror que origina a culpa. Por fim, em “Lubricidade”, reaparece a serpente, só que desta vez sob a pele do poeta. Trata-se de uma serpente faminta, que quer devorar a mulher até a sua destruição, num desdobramento do verme, a quem é permitido tal banquete: Quisera ser a serpe venenosa (...) Quisera ser a serpe veludosa Para, enroscada em múltiplos novelos, Saltar-te aos seios de fluidez cheirosa E babujá-los e depois mordê-los... O poeta quer extinguir o “sangue impuro e flamejante” da fêmea com seu “veneno de áspide vorace” (CRUZ E SOUZA 1996: 19-20), num aniquilamento da lascívia proibida. Igualmente, n’As flores do mal, baila uma sedutora e inebriante serpente, em “Lê serpent qui danse”. Só que aqui a languidez excitante ganha ares menos doentios e mais cômicos, advindos do tédio e do entorpecimento: A te voir marcher en cadence, Belle d’abandon, On dirait in serpent qui danse Au bout d’un baton. Sous le fardeau de ta pareses Ta tête d’enfant Se balance avec la mollesse 6 D’un jeune élèphant (BAUDELAIRE 2006: 173) É interessante ressaltar que não pretendemos encontrar no poeta brasileiro um total espelhamento no escritor francês. Buscamos, na verdade, investigar a possível ressonância de temática, estilo e procedimento deste numa das facetas da poesia daquele.

6.“Ao te ver a cadência indolente,/ Bela de exaustão, / Dir-se-á que dança uma serpente / No alto de um bastão / Ébria de preguiça, / A fronte de infanta, / Se inclina vagarosa e imita / A de uma elefanta.”

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Para terminar, o poema “Afra” pode apontar mais uma consonância com o poeta parisiense. Nesta poesia, a mulher negra se situa nos “mistérios da luxúria” e é descrita em exagero – “carne explosiva em pólvoras e fúria” – e desequilíbrio – “Rindo da carne já votada à incúria”. Os versos parecem evoluir para um desejo de consumação, ao descrever a prostração que sucede o êxtase: Votada cedo ao lânguido abandono, Aos mórbidos delíquios como ao sono, Do gozo haurindo os venenosos sucos. (CRUZ E SOUZA 1996: 57) Contudo, retorna a esterilidade de um projeto amoroso: Sonho-te a deusa das lascivas pompas, A proclamar, impávida, por trompas, Amores mais estéreis que os eunucos! (Idem: 58) Os versos acima reproduzem a erotização da negra, que Affonso Romano classifica na literatura do século XIX, em especial a romântica, como sendo da ordem do “comível”. O autor explica que, nesse período, “a abertura dos sentidos em relação à mulher de cor está presa ao fato de que ela é considerada como um ser socialmente inferiorizado” (SANT’ANNA 1993: 27), enquanto às brancas estava destinada uma concepção ideal e sacralizante. Conceber a negra como sedutora provocante seria, na verdade, uma espécie de disfarce do desejo e da abordagem sexual violenta que o homem lhe destinava. A essa concepção estava atrelada a metáfora do “comível”, do “devorável”, enquanto à mulher branca ficava reservada a metáfora de “esposável”. Ora, mas Cruz e Souza era negro, casado com uma negra, de onde se depreende não ser esta a justificativa para a temática de seu poema. Talvez não exatamente nesses mesmos termos, até porque o eu lírico não devora nada de fato (a não ser com o olhar). Sabemos que Cruz e Souza era bastante apolítico em seus poemas, preferindo não tocar (diretamente) as questões polêmicas da época, como a escravidão. Contudo, ele estava inserido nessa sociedade, e, sendo ele próprio uma pessoa de cor, estava plenamente a par da questão discriminatória. Ainda assim, a presença da sensualidade feminina na poética desse escritor não se restringe à imagem da negra, bastando lembrar o poema “Braços”, em que o fascínio do poeta recaía sobre as “brancas opulências” e “raras lactescências” dos mesmos. É possível que a imagem de megera sedutora atribuída à negra se deva à associação entre a postura poética de sublimação do desejo e um tributo às mulheres de sua cor. Talvez seja mais um diálogo com Baudelaire, que escreveu “A une dame créole” e “Le revenant”. Neste poema, curiosamente, o tratamento do eu lírico à negra está mais aparentado com aquele descrito por Sant’Anna, embora alguns teóricos atribuam sua inspiração à amante negra de longa data do poeta, Jeanne Duval: Celuzlose 10 • Dezembro 2013 79


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Et je te donnerai, ma brune, Des baisers froids comme la lune Et des caresses de serpent Autour d’une fosse rampant.7 O poema acima ilustra não só a confluência temática com o simbolista brasileiro, como serve de exemplo também à representação do eu lírico masculino como devorador da mulher. No poema “Lubricidade”, citado anteriormente, o homem incorpora a serpente para devorar a mulher até a destruição. Em “Le revenant”, o eu lírico quer infligir um sofrimento em vida, “reinando pelo pavor”. Em ambos, portanto, reaparece o desejo associado à morbidez aniquiladora. Coincidências, diálogo, ressonância. Baudelaire parece de fato sussurrar em certos momentos da poesia de Cruz e Souza. Este, se prestou, de fato, tributo ao francês, ou se o revisitou inconscientemente, não o fez de maneira frívola. O principal poeta simbolista brasileiro parecia dispor de uma consciência estética aguçada, coerente, que elevou a poesia nacional a patamar nunca antes alcançado. Arguto na construção de imagens impactantes, Cruz e Souza sorveu do simbolista francês o que havia de mais engenhoso, possibilitando efeitos estéticos únicos, obtidos da exploração da feiura, para alcançar a beleza. Cruz e Souza era um poeta das sensações extremas e seus poemas de sensualismo erótico não só fazem jus ao projeto simbolista de construir versos que atingissem a esfera psíquica e os sentidos, como oferece, com toda a amplitude, a (des)medida de uma sexualidade angustiada. Nesse sentido, Broquéis surge como uma “doença” bem-vinda, oferecendo versos de excesso e intensidade, de abordagens desconcertantes; fazendo do corpo uma massa ameaçadora e ululante, monstro descontrolado que quer destruir e deve ser destruído, mas que, em termos de valor artístico, construiu as bases para uma poesia inovadora, como a de Bandeira ou a de Mário de Andrade. A morte e o nojo podem ser os broquéis, as proteções que guardam o eu lírico da consumação sexual. Contudo, que escudos podem nos proteger da beleza – excessiva – desses raros poemas?

7.“Dar-te-ei na pele escura e nua / Beijos mais frios do que a lua / E qual serpente em náusea fossa / Te afogarei o quanto possa”.

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BIBLIOGRAFIA: BENJAMIN, Walter. “Alegoria e drama barroco.” In: Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. Sérgio Paulo Rouanet (trad.). BALAKIAN, Anna. O Simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal: edição bilíngue. (Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira) 1ª ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. CANDIDO, Antonio. “Os primeiros baudelairianos”. In: A Educação pela Noite e outros Ensaios. Série Temas, V.1. Estudos Literários. São Paulo: Ática, 1987. CHIARA, Ana Cristina Rezende. “Leituras Pornográficas”. Texto em mídia eletrônica disponibilizado pela autora no curso de mestrado. MURICI, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1987, v.I. PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. (Trad. Philadelpho Menezes). Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996. SOUZA, Cruz e. Broquéis. (Ensaio introdutório de Ivan Teixeira). São Paulo: EdUSP, 1994. SANT'ANNA, Affonso Romano. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. VERLAINE, Paul. Poèmes saturniens suir de Fêtes galantes. Paris: Librio, 1995.

Aline Aimée nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 1981. Graduada em Letras, Mestre em Literatura Brasileira pela UERJ e trabalha como funcionária pública federal. Tem textos publicados em sites e revistas virtuais como Portal Cronópios, Diversos Afins, Conexão Maringá e Verbo 21. Publicou contos nas coletâneas Entrelinhas II e Sopa de Letras, da editora Andross e é autora de 12 pétalas, nenhuma flor, inédito. Blog: www.palavrainvadida.com

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O menor na poesia de Rui Pires Cabral por Charles Marlon

“Mas, nas saias de Judite, pude ver claramente aquilo que, fosse eu um pintor de gênio, teria feito com minhas velhas calças de flanela cinzenta. Não seria muito – sabe-o o céu – em comparação com a realidade, mas bastaria para deliciar gerações e gerações de amantes da arte, para fazê-los compreender, um pouco que fosse, o verdadeiro valor daquilo que, em nossa patética imbecilidade, chamamos simples coisas e desprezamos em troca da televisão.” Aldous Huxley em As portas da percepção. “Só nos detalhes podemos compreender o essencial” Sándor Márai em As brasas. Introdução Os grandes centros urbanos capitalistas, as grandes metrópoles de todo o mundo, têm características cada vez mais parecidas; são lugares onde o lucro e o capital regulam não apenas as relações econômicas, mas também acabam por “contaminar” as relações sociais dos indivíduos para com os outros e para com a própria constituição desses mesmos indivíduos enquanto parte integrante de sua cultura. A produção seriada e a estandardização dos espaços criam lugares, por mais distantes que sejam uns dos outros, muito semelhantes, podemos comer o mesmo lanche no mesmo fast-food no centro de São Paulo, no Porto em Portugal, onde 1 inclusive o Café Imperial foi transformado em McDonald’s, ou mesmo na China. Porém, não é apenas a distância e diferença entre os espaços que parecem diminuir, também “as diferenças entre as pessoas e o estado das coisas [atenuam-se] cada vez mais” (GUATTARI, 1996 p. 293). Sharon Zukin (1996) em seu artigo sobre paisagens urbanas pós-modernas conclui dizendo: “A pós-modernidade oferece uma chance de se escolher uma identidade a partir da imagem eletrônica das comunicações de massa, da imagem manufaturada do consumo doméstico, e da imagem projetada da arquitetura vernacular. Nestas imagens, nós consumimos o que imaginamos e imaginamos o que consumimos (...) a identidade sócio-espacial deriva simplesmente daquilo que consumimos.” (p. 218).

1. http://pt.wikipedia.org/wiki/McDonald%27s e http://outrasescritas.blogspot.com/2009/07/o-cafe-imperial-do-porto.html

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Portanto, tendemos cada vez mais a uma estandardização inclusive de nossos gostos pessoais e de nosso imaginário, somos vistos e moldados como consumidores em potencial, a paisagem pós-moderna ou, antes, o mundo capitalista pós-moderno, nos termos de Sharon Zukin, e globalizado tende a uma padronização dos seres humanos, tende a, paradoxalmente, diminuir a distância entre as pessoas e simultaneamente abrir um abismo entre elas, criando dificuldades cada vez maiores para o convívio em sociedade. E em meio a todas estas questões, existe um poeta português, por nome Rui Pires Cabral (1967- ), que dentro de sua poética “viajeira”, como a denomina Dal Farra (2007), criou muitos poemas que se relacionam com este mundo seriado e que o problematizam, de modo a buscar relativizar tudo aquilo que nossos olhos tendem a ver e atribuir valores, sem nos darmos conta que o significado daquilo que vemos, o valor que lhe atribuímos, e já a própria seleção realizada por nosso olhar, pode não ser fruto de nosso próprio raciocínio, mas algo que nos foi dado, ou mesmo ideologicamente imposto. O sujeito da enunciação da poesia de Rui Pires, que aparece “colado” à própria figura do poeta, devido ao forte traço biográfico de seus versos, (lembrando sempre que não há necessidade de confirmarmos a veracidade ou não desta biografia), assume uma 2 condição semelhante à do flâneur baudelairiano, pois é capaz de ver e atribuir sentido para aquilo que já não vemos, e que se vemos não atribuímos sentido algum para além da superficialidade aparente; o olhar deste “flâneur contemporâneo” é capaz de ver o que nossos olhos treinados e viciados perderam a capacidade de perceber e de compreender. Este ensaio pretende, justamente, observar o elemento do menor, do aparente simplório tão bem observado e admirado pelo poeta, bem como relacionar a poética de Rui Pires Cabral com a atual poesia portuguesa e, consequentemente, com o contexto social e histórico em que estão inseridos. 1. Shirley Ann Eales SHIRLEY ANN EALES Na vitrina lê-se Livros Raros e Usados sob o azul inclinado de um toldo – mesmo em frente à glacial cafetaria de franchise onde o dia destrata o desejo e não se pode fumar. Subo aos pequenos gabinetes mergulhados no doce bafio da literatura e percorro de A a Z as espinhas estreitas 2. Flâneur é uma palavra usada (...) para se referir a homens com um certo comportamento peculiar. Esse estilo de vida foi assim chamado pelo poeta Charles Baudelaire. (...) Flanar é vagar pelas ruas não simplesmente caminhando, é andar observando tudo à volta. O flâneur é um amante das ruas que repara em detalhes que para outros cidadãos passam despercebidos. Ele valoriza objetos, lugares, pessoas que o observador comum já não repara, por fazerem parte de uma rotina. Fonte: http://barbara-rt.blogspot.com/2009/03/flaneur.html

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e rachadas da poesia. É o sítio mais vazio de Novembro e o que mais me reconforta; o livro que escolho, por metade de uma libra, traz no frontispício um nome e uma morada: Shirley Ann Eales, de Scottsville – um sumido autógrafo de maiúsculas magras e triangulares onde a imaginação encontra por enquanto pretexto e oxigénio suficientes para arder. O livro teve outra existência, pertenceu a outra casa, a outra mesa de cabeceira – e o pensamento, de tão óbvio, conjura de repente uma vertigem, é um corredor abrupto para a imensidão do mundo onde trafica o acaso. Ah, sabemos que a vida é improvável se damos por nós a cismar, a meio de uma tarde insípida, numa mulher desconhecida que lia poemas em Scottsville, nos anos 70. Mas haverá aqui alguma espécie de sentido, algum sinal guardado para alguém mais sábio ou inocente do que eu? Não sei quem és nem onde estás agora, Shirley Ann, mas como seria belo se pudesses um dia encontrar, por obra da mesma sorte, o teu nome nestes versos. In: Longe da Aldeia. Lisboa: Averno, 2005. Em “Shirley Ann Eales”, poema do livro Longe da Aldeia (2005), o detalhe, o menor, já é evidenciado e preferido pelo olhar do poeta desde o título do poema, que revela a assinatura que serviu de motivo e “combustível” para a imaginação do visitante de sebos e, consequentemente, para a construção do próprio poema, “(...) um sumido/ autógrafo de maiúsculas magras/ e triangulares onde a imaginação/ encontra por enquanto pretexto// e oxigénio suficientes para arder”. Na primeira estrofe, temos claramente a oposição de dois espaços, o sebo, não por coincidência no alto, pois o poeta sobe para chegar aos “pequenos gabinetes”, e a cafeteria, em frente, mas em posição inferior, revelando, por parte deste observador, um julgamento e uma comparação valorativa entre os dois lugares. 84 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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O café, neste caso a cafeteria, sempre foi um local caro aos poetas, e à poesia, diversos são os poemas escritos em cafés, ou ao menos tendo o café como cenário, porém esta cafeteria que se nos apresenta é estéril, impede qualquer tipo de imaginação, tudo nela é proibitivo, é um local “onde o dia destrata o desejo/ e não se pode fumar.”, a própria sonoridade, plosivas [d] e [t], indica essa proibição, esse impedimento; tudo nela é moldado, ela é “glacial”, até mesmo o ar é condicionado; esta cafeteria é, também, uma franquia, (relembrando o exemplo citado acima acerca do Café Imperial), ou seja, é o local do estandardizado e do estandardizador, o café aparece como algo totalmente assimilado ao processo capitalista de produção de capital, ao mercado. Em contraposição direta à cafeteria rejeitada pelo poeta, temos o sebo com seus “pequenos gabinetes” que cheiram a mofo, mas este “bafio” lhe é doce. A cafeteria é o lugar do movimento, do barulho, cheio de pessoas, mas nem por isso deixa de ser glacial, fria; o sebo, por sua vez, é o lugar “mais vazio de Novembro” e o que mais “reconforta” este ser de olhar apurado, que havia perdido o conforto, o qual a cafeteria não lhe poderia restituir, mas “o sítio mais vazio de Novembro” o faz, com seu silêncio tão bem representado pela aliteração de sibilantes que permeia todo o poema. Poderíamos, à primeira vista, encontrar um fator comum entre os dois lugares: o produto. As franquias sempre vendem algum produto e o sebo em questão, inclusive é a primeira imagem do poema, possui logo na entrada uma “vitrina”, e uma vitrine não existe senão para expor os produtos de uma loja. Porém, o que aparentemente une os dois locais é precisamente o que os separa, o que os distingue com mais força. Enquanto em qualquer franquia compramos, em geral, principalmente se forem gêneros alimentícios, produtos novos, seriados, rotulados e embalados, produtos estéreis de história ou memória, no sebo o que temos são “livros Raros e Usados” tanto mais valiosos por serem usados, quanto por serem raros, adjetivos grafados ambos com maiúscula, (note-se que o valor não tem relação alguma com o preço: “o livro que escolho, por metade de uma libra.”). O produto perdeu muito de sua característica apenas de objeto de consumo ao manter contato com o humano, os livros “[tiveram] outra existência”, eles agora encerram em si uma história, uma memória. Rosa Maria Martelo, em um de seus estudos sobre a poesia portuguesa contemporânea (2007), chama a atenção para o olhar do alegorista, sendo este olhar algo bastante presente na atual poesia portuguesa, pois é através dele que se faz possível “surpreender alguma beleza no mundo reificado e virtualizado” e é mais precisamente “na contemplação de um 'fragmento' subitamente significativo que se produz o olhar do alegorista.” (p. 99). Isto (pro)posto, voltemos ao poema e ao poeta para que possamos observar de que maneira ele se apropria desse olhar de alegorista e surpreende no detalhe, no menor, uma beleza, um sentido que aparentemente abandonou o mundo das grandes metrópoles e grandes cidades globalizadas. Dentro do prédio, existem gabinetes, dentro de um desses gabinetes existem livros “Raros e Usados”, dentre estes livros raros e usados o poeta escolhe um, e dentro deste livro existe uma assinatura e um endereço, e dentro desta assinatura existe todo um sentido, um significado, que já não somos mais capazes de ver. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 85


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Este autógrafo, não poderia ser mais simples e menor, ele é “um sumido autógrafo de maiúsculas magras” de uma mulher desconhecida, não é assinatura rara de um autor, o que conferiria ao livro um valor financeiro muito grande, e, no entanto, este autógrafo anônimo é portador de um sentido tão profundo e complexo que o próprio sujeito da enunciação, com seu olhar de flâneur contemporâneo e de alegorista não é capaz de captá-lo em sua totalidade, mas já desconfia que exista um sentido misterioso e complexo escondido por detrás da simplicidade de um detalhe pequenino. “Mas haverá aqui alguma espécie de sentido, algum sinal guardado para alguém mais sábio ou inocente do que eu?(...)” Mesmo não alcançado todo o sentido que se aproveita da inocência do menor para se esconder, o poeta revela ter um olhar mais aguçado do que os demais, pois de uma mera assinatura é capaz de perceber e de imaginar que o livro “pertenceu a outras casas, a outra mesa de cabeceira” e este pensamento além de lhe ser “óbvio”, lhe gera uma reflexão de que a “vida é improvável” e lhe proporciona inclusive a composição do próprio texto poético. Portanto, um autógrafo sumido é capaz de conter um sentido muito maior do que sua aparente simplicidade aparentemente poderia vir a permitir, aquelas letras magras escondem um significado tão amplo e complexo que ele não caberia na própria página em que está “escondido”, ou mesmo em todo o livro em que foi inscrito, o mesmo suporte que contém o superficial, esconde o sentido íntimo daquilo, sendo bastante e insuficiente para contê-lo, ou seja, o sentido ao mesmo tempo está contido e transborda o papel. Não é mero acaso as figuras do sábio e do inocente surgirem no poema como seres capazes de captarem este sinal e este sentido cifrados sob a assinatura, em texto acerca da poesia de William Carlos Williams, José Paulo Paes (1987) comenta que “Williams se acercava das coisas em estado de inocência para vê-las com olhos novos” (p.18), ou seja, isto evidencia que não conseguimos, pois perdemos gradativa e constantemente esta faculdade, ver o sentido nas “simples coisas”, pois vemos o mundo através da lente de nossa cultura (LARAIA, 2009), vemos, (ou não), com olhos treinados, viciados; visualizamos e valoramos aquilo que é social e culturalmente mais evidente, mais valorizado, mais prestigioso, “maior”, abandonando, desta maneira, ao esquecimento tudo aquilo que é menor, mais simples, sem valor diretamente mercadológico, portanto apenas o “inocente”, por estar em situação anterior a esse “treino de visão e de valoração”, ou o “sábio”, por já haver superado este treino, é que poderiam observar e compreender o sentido profundo escondido no menor, sentido impraticável na realidade objetiva dos grandes centros urbanos. 2. Diana of Love Neste mundo onde tudo tende a ser rotulado, homogeneizado, valorado através de cifras, no qual a própria poesia e as artes em geral sofrem interferências diretas ou indiretas do mercado e dos processos de produção, Rosa Maria Martelo (2007, pp. 86-87) 86 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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levanta a seguinte questão, “Como pode então a poesia continuar? Que transfigurações nela se operam?” e sugere uma resposta para tal indagação, segundo a qual esta continuidade é possível, entre outros motivos, “pela secundarização do papel da metáfora e pela construção de um modo de expressão essencialmente alegórico”. Retornamos, desta maneira, à questão do olhar do alegorista, na atual poesia portuguesa; em muitos poetas, não em todos, e em Rui Pires Cabral em específico, é este olhar que o permite buscar um sentido, no mais simples, no menor, sentido este que o mundo já não parece possuir. “É o olhar do alegorista, que vê, através de um mundo presente e pobre, um outro que apenas lhe ocorre em falha e que, em rigor, não se espera que possa alguma vez comparecer” (2007, p. 99). Isto proposto, vamos ao poema. DIANA OF LOVE Estávamos em Londres naquele dia de Setembro em que foi a enterrar a Princesa do Povo. Não havia barulho nos passeios, não havia casa aberta onde pudéssemos comprar qualquer coisa para merendar na relva de St James ou Kensington Gardens: os próprios parques tinham mergulhado num lutuoso torpor. Sentados à sombra, nós os dois estávamos exactamente a meio da nossa história. Para trás, a lenta cadeia de acasos que culminou no encontro a desoras sob os astros duma gruta; pela frente, todos os maus passos que, somados, haveriam de ditar o nosso fim. Mas nessa tarde de sol e silêncio, enquanto a Inglaterra chorava aquela que na morte teve o nome do amor, estávamos juntos ainda – e sei que fomos felizes na cidade mais triste do mundo. Era Sábado, uma mulher que passava vendeu-me um ramo de rosmaninho (for remembrance, dear): largos meses murchou numa gaveta. E quando dele me desfiz já não era um memento por Diana, mas o último vestígio de um amor tão morto quanto ela. In: Capitais da Solidão. Vila Real: Teatro de Vila Real, 2006. Neste poema, como no anterior, temos um grande centro urbano, porém enquanto em “Shirley Ann Eales” não há referência explícita a um determinado local, o que é revelador de uma crescente estandardização destes espaços, os quais se tornam Celuzlose 10 • Dezembro 2013 87


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cada vez mais difíceis de distinguir entre si, em “Diana of Love” há também uma narrativa, porém situada em data e espaço muito bem determinados no passado, enquanto a narrativa do poema anterior é marcada por um presente sempre atualizado no momento da leitura. Nos dois primeiros versos, o poeta já situa precisamente o narrado no tempo e no espaço, sabemos que está em Londres em 6 de setembro de 1997 (sábado, como é dito posteriormente), dia do enterro da princesa Diana. Este foi um fato mundialmente comentado e acompanhado, foi o que se costuma chamar de “um grande acontecimento”, porém, já na primeira estrofe, o poeta cria uma tensão entre “o grande acontecimento” e uma vivência pessoal. A primeira palavra do poema, e a primeira de cada uma das três estrofes é “Estávamos”, que por aparecer sempre em primeiro lugar e a margem do poema sugere uma importância maior do fato particular do que a do “grande ocorrido” daquela data, e a posição marginal e indiferente assumida por este “nós” em relação ao famoso enterro. Esta relativização de importância é explícita no verso “e sei que fomos felizes na cidade mais triste do mundo”, no qual não só percebemos que o fato de naquele dia estar sendo enterrada uma princesa era inferior em importância para o poeta em relação à sua experiência particular, mas também que este enterro lhe era completamente indiferente, não lhe dizia o menor respeito. 3

O enterro de Diana, televisionado por redes de TV de todo o mundo, foi tido como algo tão grandioso que no poema praticamente tudo, mas não absolutamente, e todos pararam para ver e chorar “aquela que na morte teve o nome do amor”. O silêncio que imperava “nos passeios” corta o próprio poema através das insistentes aliterações em [s] e em [z], (assim como em “Shirley Ann Eales”) “Mas nessa tarde de sol e silêncio (...)” Até mesmo o comércio, que em centros urbanos quase nunca fecha, fechou “não havia casa aberta onde pudéssemos comprar qualquer coisa para merendar (...)” A própria natureza parecia se solidarizar com a dor que tomou a Inglaterra, e o mundo através das ondas da televisão, “os próprios parques tinham mergulhado num lutuoso torpor (...)” E à margem esquerda do último verso da primeira estrofe “Sentados à sombra, nós os dois”

3. http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u319218.shtml

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Este “nós” permanece sempre às margens do poema, como já foi proposto e, consequentemente, à margem da tristeza que tomou a Inglaterra e o mundo naquele dia, o poeta e o outro/outra foram, contrariamente a tudo e todos, felizes. Na última estrofe, a atividade comercial finalmente aparece, não obstante os pontos comerciais estarem fechados, a atividade em si não se incomoda com a dor geral e, indiferente, segue ininterruptamente aproveitando-se, inclusive, do momento de dor para criar e comercializar produtos. Uma “mulher que passava”, aproveitando-se da morte e do enterro de Diana, vendeu um souvenir ao poeta, “um ramo de rosmaninho (for remembrance dear)”. Eis que irrompe no poema o elemento do menor, e surge de maneira muito bela. 4 O ramo é o próprio amor tornado insuportavelmente concreto, tanto pelo valor alegórico quanto pelo anagrama amor/ramo, e é ao mesmo tempo a morte também concretizada, expliquemos em maiores detalhes o que foi apenas proposto en passant neste parágrafo. Durante todo o poema ecoa uma palavra e um sentimento paralelamente à dor: o amor. O próprio título traz o termo em inglês, representando o amor do outro, de Diana, um amor inglês em inglês (Love), incluindo, inclusive, ao menos dois sentidos, por ser ela uma princesa amada pelo povo, ou por ter tido uma vida amorosa muito comentada e conturbada. Diana foi a princesa “que teve na morte o nome do amor”, surge, então, neste verso, explicitamente, o que antes era proposto mais vagamente, a tensão e a estreita relação entre amor e morte. O poema se desenvolve justamente a partir desta tensão entre a morte e o amor, estas “condições humanas” convivem até que ao fim aquela acaba por se sobrepor a esta. O ramo, ou antes, o resquício dele, já murcho, que traz em si amor e morte e memórias, é o detalhe que desencadeia a narrativa e a escrita do poema; ele é, neste poema, o que é o autógrafo sumido na capa de um livro antigo em “Shirley Ann Eales”. Nossos olhos treinados já não parecem ser capazes de ver as próprias árvores que resistem, ainda, nos grandes centros urbanos, pela quais passamos indiferentes e cegos, como se elas fossem invisíveis ou inexistentes, quem dirá um pequeno ramo; mas é justamente sobre este ramo aparentemente insignificante que o poeta pousa seu olhar de alegorista e atribui a ele um sentido e uma grande capacidade de guardar sentidos sob sua superfície singela. Novamente entramos aparentemente em conflito, pois o ramo também tem sua face mercadoria, como o livro do sebo, porém ele não é um produto feito em série, por máquinas em uma fábrica, mas é algo que vem da natureza e é único, como ele, idêntico a ele não há outro em parte alguma do mundo. O livro do poema anterior ao ter tido contato com o humano, perde seu valor primeiro de produto e passa a ter uma memória e um sentido profundo guardados em si, o ramo de “Diana of Love” também perde sua função primeira, pois arrancado da natureza já não faz mais parte dela,

4. Dal Farra in Rui Pires Cabral ou a Poética Andeja. In:Poemas de Rui Pires Cabral 2007: “ (...) o poeta pode também tornar o abstrato insuportavelmente concreto (...)”

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ganha outra existência, outro sentido, porém esta nova forma de ser lhe condena à morte, uma vez separado da árvore, este ramo como que se humaniza pois, assim como nós todos, passa a estar condenado a perecer, o que atribui um traço de grande fragilidade a esse elemento do menor, uma fragilidade na qual o próprio poeta, enquanto humano, se identifica e através da qual rememora; este elemento de fragilidade também está presente em “Shirley Ann Eales”, afinal, o autógrafo também estava quase desaparecendo, era um “sumido autógrafo”. O olhar do poeta capta no frágil ramo sua capacidade de evocar memórias, ele guarda uma memória referente à “princesa do amor” e a seu respectivo enterro, ou seja, sua morte, (do ramo), guarda, ainda, uma memória relativa a um amor passado do Eu e à morte deste amor. Temos, desta maneira, o pequeno que guarda “o grande” e o particular, estabelecendo uma nova hierarquia de valores entre os elementos envolvidos neste processo de recordação – o grande, o particular e o próprio ramo, vejamos: “(...) Era Sábado, uma mulher que passava vendeu-me um ramo de rosmaninho (for remembrance, dear): largos meses murchou numa gaveta. E quando dele me desfiz já não era um memento por Diana, mas o último vestígio de um amor tão morto quanto ela.” O rosmaninho foi comprado como uma recordação, um “memento por Diana”, mas ele tem o poder de reorganizar as recordações hierarquicamente, ele perde ainda mais seu suposto papel de mercadoria, pois tem a força de se metamorfosear sendo ele mesmo, murcho, gasto, mas ainda assim ele mesmo, e já não mais, tornando-se memória daquilo que nem passaria pela cabeça da mulher que o vendeu, pois quando o poeta se desfaz do que restou do ramo morto, este era “o último vestígio de um amor tão morto quanto ela.” e não mais, ou melhor, não apenas, uma recordação do enterro da princesa. Portanto, ao final do poema praticamente tudo é morte; Diana está morta, o amor passado, morto, o ramo, também morto, mas ainda assim, este, não obstante ser o mais frágil, o menor em comparação ao “grande fato” e ao fato particular, este ramo é o que mais resiste, é o último a ser “enterrado”, e mesmo murcho, mesmo privado, de sua vida, é capaz de significar, de ser amor, ramo e morte, simultaneamente, de ativar a memória do poeta e ainda guardar em si um sentido muito maior do que sua simplicidade aparente deixaria entrever. 5

Este ramo não deixa de ser também um souvenir, e Benjamin propõe que (apud MARTELO 2007 p. 99) o “souvenir vem da experiência morta que, eufemisticamente, se designa de vivência”, e é através desta experiência morta, do souvenir, do elemento do menor, que o poeta alcança a

5. http://pt.wikipedia.org/wiki/Suvenir

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“possibilidade de surpreender alguma beleza num mundo reificado e virtualizado, do qual nem sequer a poesia parece poder libertar-se inteiramente.” (MARTELO, 2007) O poeta ao colocar um ramo tão frágil e aparentemente vazio de sentido em posição tão privilegiada no poema, chamando nossa atenção novamente para o valor que atribuímos às “grandes coisas”, aos “grandes fatos”, questionando quão mais importante é o casamento ou o enterro de um príncipe, de uma princesa ou de um ator/atriz de Hollywood em relação, por exemplo, a uma sensação particular de felicidade em poder estar simplesmente sentado à sombra com a pessoa amada num dia qualquer de setembro, colocando em discussão o real valor daquilo se toma por importante, por significativo, sem que às vezes nos questionemos se de fato aquela importância vem de dentro de nós ou de fora, ou ainda, de dentro por imposições externas já introjetadas, por sugestão ou imposição, o que implica uma tentativa violenta de estandardização não apenas dos espaços, mas também das próprias pessoas. Como podemos perceber, há uma tendência biográfica muito forte presente tanto no outro, quanto neste, e em vários outros poemas de Rui Pires Cabral; esta tendência é algo muito comum também na atual poesia portuguesa, segundo Rosa Maria Martelo (2008) é esta matéria biográfica que tem o poder de certificar um compromisso que torna legítimo o olhar do alegorista como verdade, deste modo trazendo não a vida para o poema, mas o inverso, trazendo o poema para a vida. 3. “He Loved Beauty that looked kind of destroyed” Tendo em vista a tendência biográfica, tão marcante na poética ruipirescabralina, cabe fazermos um retorno à história da poesia portuguesa a partir dos anos 1960 e seguirmos até a atualidade para que possamos buscar uma melhor compreensão desta característica fortemente presente não apenas na obra de Rui Pires Cabral, mas também na de muitos outros poetas contemporâneos, entre eles, Manuel de Freitas, Maria Teresa Horta e Adília Lopes. Rosa Maria Martelo (2007) propõe que a poesia das décadas de 1960 e de 1970 possuía um problema em comum: a ausência de espessura do real. A partir de uma mesma problemática, as poéticas de cada uma das duas épocas optam por caminhos diversos. A poesia dos anos 1960 ficou conhecida por tentar refazer o mundo através do poder “desestabilizador” da linguagem poética (2007, p. 15), a maioria dos poetas procurava produzir uma linguagem própria da poesia, quase que como um novo idioma; o mais importante para este modo de fazer poesia era o trabalho textual, sendo a comunicabilidade mais imediata deixada para segundo plano, estes poetas tinham a intenção de “fazer gaguejar a língua”, como a própria Martelo propõe, pois acreditavam que desta forma encontrariam uma maneira de sabotar os poderes instituídos através da própria linguagem. Os críticos desta poesia textualista afirmam que ela era uma poesia hermética e fechada sobre si mesma. Em meados dos anos 1970, a poesia parece tomar um caminho oposto, esta principiava a buscar uma maior proximidade com o leitor, estabelecendo com este “contratos de leitura” que admitiam efeitos autobiográficos, buscando evitar, desta forma, qualquer risco de hermetismo, esta Celuzlose 10 • Dezembro 2013 91


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poesia optava ainda por uma formulação mais narrativa e por versos longos, permitindo ao mesmo tempo uma leitura mais imediatista, superficial, porém sem impedir uma leitura mais aprofundada, tudo isso ainda segundo Rosa Maria Martelo (2007). A linguagem utilizada para esta poesia mais narrativa procurava mimetizar a linguagem cotidiana, pois a poesia de pós-meados de 1970 buscava a espessura ao real voltando sua atenção ao cotidiano urbano observado-o com o olhar capaz de transfigurá-lo, e não mais na textualidade e na linguagem do poema. Nuno Júdice (1997) nos mostra que os anos 1980 viriam a concretizar esta tendência que ganhou força na metade da década anterior, sendo que outro caminho se abrira, pelo qual uma poesia de carga cultural e que acentuava traços da “Tradição” buscava seguir. O crítico ainda continua, mostrando que a poesia portuguesa atual passa por um período de enormes transformações na sociedade portuguesa, e por que não dizermos, nas sociedades de todo o mundo capitalista e globalizado, (respeitando toda a complexidade do termo), devido à grande rapidez com que as mudanças se processam constante e diariamente. Esta poesia aposta muito em uma poesia biográfica, de “limpeza teórica” o que lhe atribui uma possível maior clareza, muito próxima ao leitor, porém não podemos generalizar e deixar de lado vozes muito fortes como a de Herberto Helder que destoa completamente deste tipo de poesia e que não está nem próximo de ser um poeta marginal e, como Martelo (2007) nos mostra, a poesia atual possui também uma vertente textualista. A poesia de Rui Pires Cabral se aproxima muito daquela de meados de 1970 descrita por Rosa Maria Martelo, embora a transfiguração que este poeta consegue extrair do real seja sempre muito frágil, e se encaixa neste panorama geral proposto por Nuno Júdice. A poesia de Cabral na intenção de dar espessura ao real se apresenta da seguinte maneira: ela se torna narrativa “[a]través da exploração das pequenas histórias da vida comum e no registro de uma experiência urbana de desumanização”. (MARTELO, 2007, p. 49) O poeta com suas alegorias procura “[p]or entre ruínas um rastro de beleza que nos possa salvar. Sem otimismo nenhum. E todavia, procura. Se assim não fosse não seria poesia.” (2007, p.105) E é justamente a partir da beleza “arruinada”, da beleza desentranhada do meio de um mundo em ruínas, que se edifica em “He loved beauty tha looked kind of destroyed”. “HE LOVED BEAUTY THAT LOOKED KIND OF DESTROYED” Gostava dessa espécie de beleza que podemos surpreender a cada passo, desvelada pelo acaso numa esquina de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta que foi toda a infância de alguém, com visitas ao domingo e tardes no quintal 92 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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depois da escola; a beleza crepuscular de alguns rostos num retrato de família a preto e branco, ou a de certos hotéis que conheceram há muito os seus dias de fulgor e foram perdendo estrelas; a beleza condenada que nos toma de repente, como um verso ou o desejo, como um copo que se parte e dispersa no soalho a frágil luz de um instante. Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada onde a vida encontra o espelho mais fiel. In: Oráculos de Cabeceira. Lisboa: Averno, 2009. Este poema, assim como os outros analisados até então, permite uma leitura mais superficial, da qual podemos extrair uma pequena narrativa, e ao mesmo tempo não nos impede, pelo contrário, nos convida a adentrarmos níveis mais profundos de leitura e interpretação; no poema em questão temos muitas possibilidades de interpretação para além da narrativa dada em sua superfície, aqui proporemos duas leituras, que não se excluem mutuamente, mas se complementam montando uma análise um pouco mais completa; uma leitura do poema é baseada única e exclusivamente nos elementos e nas imagens presentes textualmente no poema, e a outra é baseada em elementos externos, elementos de intertextualidade. Comecemos com a análise da leitura baseada apenas no texto do poema. A primeira palavra do título nos revela algo muito ímpar em relação à maioria dos poemas de Rui Pires Cabral, surge um “ele” (“He”), porém, durante o poema podemos perceber uma grande identificação entre este “ele” e o próprio poeta, portanto, mesmo ao falar de um “outro”, o poeta, ainda assim, mantém um tom biográfico, o que nos remete à fase mais pessoalizada da poesia de William Carlos Williams em que o poeta norte-americano “ao exprimir a subjetividade alheia (...) acaba por exprimir congenialmente sua própria subjetividade.” (PAES, 1987, p. 23). Outro fator desta fase mais pessoal de Williams que nos remete à utilização da terceira pessoa no poema de Rui Pires Cabral é “o reconhecimento da presença do Outro como existência autônoma e, ao mesmo tempo, como parte integrante do Eu reconhecedor.” (PAES, 1987, p. 23). Isto nos é revelador, pois notamos que ao Cabral tratar este “ele” como se fosse parte de si mesmo, o poeta se reconhece no “outro” e pode então partilhar da subjetividade desta outra pessoa, ao mesmo tempo em que o reconhece como um ser autônomo, o poeta, portanto, posiciona-se contra a maneira impessoal, serial e numérica pela qual as pessoas são classificadas e identificadas (ou “desidentificadas”) nos diversos espaços dos grandes centros urbanos e capitalistas. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 93


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Ainda no título nos é revelado que este “He” que, como vimos, pode ser o próprio poeta, possui, ou melhor, possuía, o poder de observar as coisas do mundo com um olhar muito mais penetrante do que o olhar comum, pois ele é capaz de ver a beleza na ruína, e mais, ele é capaz de relativizar o que seria esta ruína, pois esta pode ser apenas algo que perdeu a utilidade ou algo “menor”, sem deixar por isso de ser belo, de ser significante; a relativização pode se notada pela escolha das próprias palavras, ele amava a “beleza-beauty” que “aparentava-looked”, e não a que “erawas” “destruída-destroyed”, e ainda assim, esta beleza não aparentava estar destruída, mas aparentava estar “meio que” destruída (“kind of destroyed”), “kind of” funciona como um atenuante, que relativiza ainda mais esta beleza abandonada pelos olhos comuns e treinados. Enquanto em “Shirley Ann Eales” e em “Diana of Love” os cenários são grandes centros urbanos, em “He loved beauty that looked kind of destroyed” os cenários são lugares marginais aos de grande concentração capitalista, lugares aparentemente esquecidos, temos “[uma] esquina / de arrabalde” que mostra-nos um lugar qualquer, sem uma definição precisa de espaço geográfico, mas sabemos que é um subúrbio, temos uma casa abandonada e hotéis decadentes, em suma, lugares deixados para trás, abandonados, lugares que tiveram seu esplendor, porém em um passado irrecuperável. Durante todo o poema, assim como em “Diana of Love”, o pretérito domina a temporalidade, mais precisamente o pretérito imperfeito, indicando algo que ocorria no passado e cessou de ser, que ficou para sempre no passado, em outras palavras é a “experiência de uma perda irredimível” apontada por Rosa Maria Martelo quando se refere, em seu ensaio (2007), ao recorte mais narrativista da poesia portuguesa contemporânea; e se por um lado o olhar do alegorista busca por entre ruínas a beleza, sem otimismo algum, este mesmo olhar recusa um sentimento nostálgico e um desejo de coincidência dos tempos passado e presente (2007). A busca por esta beleza neste poema em questão se dá através do elemento do “menor”, que agora não é um menor em tamanho, mas em aparente “importância”, a busca se dá através daquilo que foi gasto, pois o contraste criado entre os grandes centros e os subúrbios é muito forte, e costumeiramente estes são considerados mais “primitivos” e menos capazes de “emanar” qualquer sentido, porém, para o poeta, uma casa abandonada não perde seu sentido; ao ser abandonada pelas pessoas ela perde sua utilidade, mas não o seu sentido, o qual, inclusive, parece ser potencializado. Este “ele” que gostava, em um passado interrompido, de uma beleza, não gostava daquela eleita bela pelo “bom” gosto da (“alta”) sociedade, pelos padrões daquilo que supostamente deve ser belo, mas de outro tipo de beleza, uma “espécie” da qual se pode encontrar no cotidiano mais comum, num canto qualquer de qualquer lugar suburbano, a qual deve ser surpreendida, posto que não é dada, mas revelada apenas pelo acaso, cabe ao observador captá-la. “Gostava dessa espécie de beleza que podemos surpreender a cada passo, desvelada pelo acaso numa esquina de arrabalde; (...)” 94 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Na sequência do poema, o poeta nos revela algumas dessas coisas belas, que podemos encontrar neste lugar aparentemente abandonado pelo sentido, tanto quanto pelas pessoas. Ao observar uma casa desabitada, este capta um sentido profundo no imóvel, percebe que a casa teve “outra existência”, como o livro em “Shirley Ann Eales”, a casa não apenas abrigou a infância de alguém, ela “foi toda a infância de alguém”, o contato com o humano novamente atribui um sentido novo para um objeto inanimado, e é novamente um contato que se dá no passado, assim como o livro do sebo deixou de ser (só) um produto, a casa deixou de ser (só) um imóvel, um prédio, um investimento capitalista, passou a ser uma outra coisa, um misto de memória e alegoria. Outro detalhe sobre a casa é muito interessante, ela representa em certa medida um ambiente que é, a um só tempo, parte e aparte da sociedade, que pode ser, portanto, um espaço de resistência a uma sociedade regulada por mecanismos desumanos e desumanizadores; notemos os seguintes versos: “(...) a beleza de uma casa devoluta que foi toda a infância de alguém, com visitas ao domingo e tardes no quintal depois da escola; (...)” A casa faz parte da cidade mas, em certa medida, as leis que regem seu funcionamento são diversas das que regem o maquinal e frio funcionamento dos grandes centros urbanos; no poema, a casa torna-se um lugar de resistência, ou mesmo um refúgio, pois ela era o lugar da infância de alguém, época da vida na qual, em geral, mas infelizmente nem sempre, não se tem tantas obrigações e a vida parece menos dura e mais fácil, era também o lugar das “visitas ao domingo”, dia de descanso, no qual, novamente em geral, não se trabalha e não se estuda, e ainda era o local onde se passavam as “tardes no quintal / depois da escola”, ou seja, depois das obrigações para com a sociedade, trabalho e estudo, tinha-se a possibilidade de descanso, de lazer e de refúgio, mesmo que temporariamente, do frio controle citadino. Outra beleza surge no meio do verso anteriormente citado, “(...) a beleza crepuscular de alguns rostos no retrato de família a preto e branco (...)” O retrato é algo pequeno que poderia facilmente passar batido pelo olhar de um observador desatento, mas não pelo do poeta, este observa o retrato muito antigo (“a preto e branco”) e o transforma em memória cristalizada, ele observa os rostos, mostrando que este se importa com a singularidade de cada um, contrapondo a massificação do mundo urbano e capitalista, e em cada rosto observa uma beleza “crepuscular”; observando bem este adjetivo, podemos reconhecer a maneira pela qual o poeta faz seu olhar penetrar no mais íntimo das “simples coisas” para buscar nelas um sentido que o mundo já não nos pode oferecer. Crepuscular, à primeira vista, parece significar apenas “decadente”, e ao observarmos os elementos e as imagens que compõem o poema, parece ser este mesmo o sentido a ser empregado ao adjetivo, porém, se atentarmos aos outros significados, buscarmos mais profundamente o que Celuzlose 10 • Dezembro 2013 95


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se esconde por trás da superfície do mesmo adjetivo, podemos entendê-lo como “iluminado”, “brilhante”, portanto, como o poeta, que é capaz de ver dentro da superficialidade das coisas, podemos encontrar por trás da “beleza decadente”, uma “beleza iluminada”, cheia de brilho. A família faz parte tanto da sociedade quanto da casa, sendo ela uma “instituição” ao mesmo tempo pública e particular, ou melhor, “pública” no particular, a relação familiar é regulada também por suas próprias regras que são diferentes da cidade, a família é, ao mesmo tempo, um “lugar” de controle, enquanto reguladora, e de resistência, enquanto “instituição” particular dentro de uma sociedade, porém, com o avanço do capitalismo e do complexo e acelerado processo de globalização, esta perdeu muito sua força e teve, e continua tendo, suas relações mais íntimas comprometidas pela influência das frias relações interpessoais vividas nas grandes metrópoles, e é por essa frágil resistência que o poeta também a torna um símbolo de resistência e não de controle. Nos grandes centros urbanos, um dos grandes símbolos da impessoalidade, do individualismo, é o espaço do hotel mas, neste caso, no poema em questão, os hotéis admirados pelo poeta são aqueles que perderam seu esplendor, que estão “gastos”, que foram deixados para trás pela concorrência desigual imposta pelas grandes redes de hotéis, o poeta admira os hotéis que ao perder “estrelas”, não perdiam apenas “qualidade”, mas também os brilhos destas estrelas, cada um deles perdia seu próprio brilho, ofuscado pelas modernas iluminações e holofotes dos “grandes” hotéis, e é precisamente por este motivo que aqueles têm valor para o poeta, aqueles hotéis envelheceram, ganharam idade, sobreviveram ao tempo, têm uma história, por isso são belos, por isso possuem sentido; nos centros capitalistas tudo é muito efêmero, aquilo que não dá lucro, fecha-se, destrói-se, monta-se outro comércio no lugar, como o McDonald's no Porto em Portugal, aberto no lugar do Café Imperial, a história já não vale mais nada, ou vale muito pouco, pois, afinal, tempo de existência não se pode converter tão diretamente em cifras; e é precisamente por isso que estes hotéis também se tornam símbolos de resistência a este mundo esterilizado e asséptico que circunda este subúrbio que é todo ele um espaço precário, porém, de resistência, ainda que frágil. Leiamos os mais belos versos deste poema: “ (...) beleza condenada que nos toma de repente, como um verso ou o desejo, como um copo que se parte e dispersa no soalho a frágil luz de um instante” Novamente o poeta escolhe um adjetivo muito significativo, pois “beleza condenada” pode ser aquela fadada à ruína, mas também pode ser uma beleza “censurada”, ou seja, nos é colocado a mostra que a beleza que não se vê, ou a que não se tem por algo belo, mas pelo seu avesso, a beleza condenada, pode ser fruto de uma imposição externa ao nosso controle e socialmente introjetada de maneira ideológica em nosso gosto, aparentemente, próprio, mas contaminado por valores estandardizados que nos cegam perante estas belezas que não são (só) condenadas, mas (principalmente) censuradas. 96 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Um verso, o desejo e um copo que se parte são belos, possuem uma beleza censurada e/ou uma beleza fadada ao insucesso, ou seja, um verso belo que não é vendido e que ninguém lê, um desejo que não se sacia e um copo que perde sua função não têm utilidade, não têm êxito, fracassam, mas é justo por este motivo que o poeta os vê belos; um verso enquanto não se vende, resiste; um desejo, (lembrando que o consumismo é pautado no desejo), enquanto não se sacia, persiste; um copo que se quebra e não tem mais serventia mostra a fragilidade das coisas, a fragilidade daquilo que resiste à estandardização, a fragilidade da própria vida que é apenas “a frágil luz de um instante”, vida que é frágil e efêmera, e por isso mesmo também bela, de uma beleza condenada, é claro, que não dura, ou pouco dura, mas da qual não se pode fugir, e na qual devemos buscar algum sentido e beleza; o copo enquanto utensílio é estéril e o deve ser, mas quando perde sua função e sua forma, ganha um sentido imenso, contrastando seu significado com sua nova forma, vários pequeninos pedaços dispersos pelo chão, não recuperáveis, inúteis, mas significativos; o copo enquanto utensílio é só um, e enquanto cacos são milhares mínimos pedaços, que revelam o que ele de fato é, milhares de pequeninos pedaços, milhares de sentidos, escondidos sob a lisa face de vidro frio e de um transparente enganoso. E é por este tipo de beleza, o belo por baixo do aparente feio, mesmo que de uma beleza decadente, o complexo, por baixo do aparente simplório, que este “ele”, “He”, e o próprio poeta admiram e valorizam, pois afinal se reconhecem neste tipo de beleza, e reconhecem nesta beleza “arruinada” a própria imagem de um mundo tão arruinado quanto às belezas descritas no poema, um mundo do qual o próprio poema, e o poeta, não conseguem se libertar completamente (2007), mas é neste mesmo mundo que eles buscam resistir e dar alguma espessura, mesmo que amargurada e sem esperança, ao real. “Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós consigo mesmo, essa espécie de beleza arruinada onde a vida encontra o espelho mais fiel.” E como afirma Rosa Maria Martelo: “Não há como retirar a poesia do âmbito do mundo problemático e sem redenção.” (2008, p. 296). Antes de partirmos para uma leitura intertextual do poema, cabe fazermos alguns apontamentos acerca da poesia portuguesa. Rosa Maria Martelo percebe na poesia portuguesa, a partir de meados dos anos 1970, um “deslocamento das referências de leitura, maioritariamente francesas nos poetas dos anos 1950 e 1960, para o universo da poesia anglo-americana”. (2007, p.46) É evidente uma afinidade grande entre a poética de Rui Pires Cabral e a poética de pós-meados de 1970, inclusive essa transição para uma influência da literatura, não apenas da poesia, anglosaxônica ou, mais precisamente, norte-americana. O próprio título é um exemplo desta entrada da literatura norte-americana na poesia de Rui Pires Cabral, mas não é uma referência de uma literatura já canonizada, mas de uma literatura também ela contemporânea; o título reflete também uma Celuzlose 10 • Dezembro 2013 97


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penetração da cultura pop em sua poética. “He loved beauty that looked kind of destroyed” é uma frase retirada de um livro do jornalista e escritor norte-americano James Gavin, que tem por título Deep in a Dream: The long night of Chet Baker de 2002, que trata, portanto, da biografia deste músico também norte-americano que viveu entre 1929 e 1988. De posse destas informações, podemos então reler o poema em outra chave de interpretação. Chet Baker teve uma vida bastante conturbada, tinha uma aparência muito bela e vendia muitos discos, em suma, era um sucesso, porém sua vida pessoal era extremamente complicada devido ao seu envolvimento com as drogas, principalmente com a heroína, e é justamente esta a história que se conta no livro de Gavin, os “dois lados” da vida de Baker. O músico era um belo artista, enquanto beleza física, apesar de esta beleza ter decaído até sua morte, e, por outro lado, uma pessoa malvista pelos “bons” valores de sua sociedade por seu envolvimento com drogas, tendo sido preso diversas vezes por isto, portanto, enquanto pessoa era considerado “feio”. Cabe analisarmos mais criticamente isto tudo proposto até aqui sobre Chet Baker. Baker não foi o primeiro, nem será o último, artista a morrer devido a complicações, de gêneros diversos, decorrente do uso contínuo e excessivo de drogas. Baker, assim como outros artistas de fama, para manter-se no sucesso devia manter prazos, contratos e compromissos pautados não na arte (apenas), mas em interesses financeiros daqueles que faziam sua arte circular e se propagar, ele, enquanto artista, deveria fazer o máximo para injetar capital na indústria fonográfica e nos bolsos dos grandes empresários, pois cultura tornou-se também um bem de consumo no mundo contemporâneo, e isto é revelador de como nos movemos sobre abismos de sentidos, em um mundo onde quase tudo, ou aparentemente tudo, pode ser comprado e vendido; Chet, como todos nós, era manipulado por um sistema capitalista segundo o qual não interessa muito o sentido das coisas, mas suas quantidades, seus prazos, utilidades e valores econômicos. Nesta chave o poema assume uma postura muito crítica em relação à economia e as sociedades imersas no sistema capitalista e no processo de globalização. A questão levantada pela vida, e pela morte, de Baker é um tanto complexa, pois tratado como artista enquanto era útil, o músico era bem quisto, era então o belo nos moldes do belo, era o casamento da princesa (“Diana of Love”), era um “grande” fato, ou produto, mais do que um “grande” homem. Porém, quando o músico já não podia mais refugiar-se em sua arte, (como Rui Pires Cabral o faz através da perseguição dessa beleza perdida, desse sentido perdido através das “menores” coisas e da recusa das soluções fáceis), pois ela, sua arte, também já está assimilada ao sistema capitalista, já se tornou um bem cultural de consumo, e busca refúgio nas drogas, perdendo cada vez mais aquela beleza pretendida pela sociedade, este vai sendo cada vez mais abandonado, como o subúrbio, a casa, o retrato, a família e o copo quebrado de “He loved beauty that looked kind of destroyed”. Esta fuga para as drogas deve ser também observada com mais atenção, vejamos o que propõe Raul Albino Pacheco Filho em seu ensaio Drogas: Um mal-estar na cultura contemporânea, quanto ao motivo pelo qual as pessoas recorrem às drogas como uma fuga ou uma maneira de buscar a transfiguração deste real pobre e de sentidos plastificados e seriados: 98 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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“Este artigo busca pensar a toxicomania como mais um dos sintomas que encobrem aspectos fundamentais da constituição da subjetividade e da formação dos laços sociais na sociedade capitalista contemporânea. A irrupção do capitalismo, com a desestabilização dos códigos, relações rigidamente hierarquizadas, princípios éticos e valores relativamente estáveis e consolidados, propiciou a emergência daquilo que conhecemos como a subjetividade individualizada e singularizada do homem moderno. Trouxe-lhe, em contrapartida, o sofrimento advindo do destino de se encontrar cada vez mais solitário na busca de ideais e identificações que lhe deem sentido à existência, passando a ter que procurá-los nos limites estreitos da posse e usufruto de bens de consumo.” (FILHO).6 Aldous Huxley, em meados dos anos 1950, já sentia este mesmo sintoma de pobreza de sentidos no mundo e nos propõe o seguinte: “No quadro atual de nosso universo não há lugar para experiências transcendentais convincentes.” (2002, p. 138). Ou seja, vivemos, como já foi exaustivamente proposto neste ensaio, em um mundo vazio de sentido, o qual além de não propiciar nenhum tipo de significação mais profunda, ainda nos impede de o fazermos, portanto, segundo Huxley, uma solução possível seria recorrer ao uso de drogas que, segundo suas próprias experiências com alucinógenos, seriam capazes de alterar a percepção do usuário, de modo que esta pessoa poderia ficar atenta a cada pequeno fragmento, e cada pequena coisa se revelaria então extremamente significativa, onde haveria um sentido completo e indissolúvel, pois sob os efeitos de drogas, segundo Huxley, “Tudo está em todas as coisas – de que Tudo é, em verdade cada coisa (...) É assim que precisamos ver as coisas – tal qual elas são!” (2002, pp. 35 e 42). Portanto, as drogas seriam para Baker um meio de procurar edificar “castelos”, ou, ao menos, pequenas “cabanas” de sentido a partir de uma matéria pobre e vazia disponibilizada pela vida cotidiana das grandes metrópoles; as drogas lhe dariam a possibilidade de ver com olhos não vestidos com os óculos das convenções, ou seja, ver as coisas como “elas são” e não como “parecem ser”. Porém, se por um lado as drogas oferecem esta possibilidade de aguçar a percepção, elas cobram seu preço, e não apenas em capital, embora também. As drogas também já foram assimiladas pelo sistema capitalista e seu comércio, apesar de ilícito, é um negócio muito rentável, segundo Filho, “o tráfico é uma das organizações econômicas que mais movimenta capitais no planeta e a escala da economia das drogas só é ultrapassada, talvez, pela economia da energia e das telecomunicações”, além deste fato, estas substâncias tornam as pessoas dependentes e as tornam consumidoras de grande potencial, pois passam a não conseguir mais viver sem elas. Portanto, o caminho tomado pelo músico mostrou-se uma via sem saída, pois de um

6. In: http://www.psicologia.org.br/internacional/pscl6.htm. Último acesso em 8/07/2011.

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lado sua arte estava assimilada e de outro sua saída transfiguradora era apenas mais um produto que o transformou em apenas mais um consumidor e que, ironicamente, também o consumia fisicamente. Chet Baker morreu, não se sabe se por acidente, suicídio ou assassinato, ao cair 7 da janela de um hotel localizado em um bairro de subúrbio e violento na Holanda, um hotel como o do poema, “que [conheceu] há muito os seus dias de fulgor”, então a passagem “ou a de certos hotéis / que conheceram há muito os seus dias de fulgor / e foram perdendo estrelas;”, nos remete precisamente para este hotel holandês que também perdeu uma estrela, um astro da música, Chet Baker. Interessante é notar o relato do enterro de Baker no livro de Gavin, pois é narrado que havia 35 pessoas na ocasião para se despedir do músico, o que é muito significativo, pois isto põe a nu a maneira como a sociedade capitalista das grandes metrópoles trata as pessoas, elas são belas e importantes enquanto úteis e lucrativas, enquanto produtos ou consumidoras, porém quando perdem a utilidade e estão fora dos modelos aceitos, esta mesma sociedade as abandona. A escolha de Rui Pires Cabral por esta referência à obra de Gavin e à vida de Chet Baker é uma evidência da tentativa que o poeta desenvolve durante todo o poema em questão, e também nos outros, que é a de buscar algum sentido na vida naquilo que é tido como menor, buscar alguma beleza naquilo que é tomado por decadente, arruinado. O poeta relativiza a questão da fragilidade, pois busca resistir às grandes coisas através do mais frágil pormenor, busca resistir aos modelos estabelecidos como belos através da observação e admiração daquilo que teve brilho no passado, que está em decadência mas que, precisamente por isso, é belo, por ser uma beleza profunda, com um sentido também profundo, levantando a hipótese de que o frágil e o menor é que são fortes e grandes, pois têm o poder de ainda significar, como a assinatura, o ramo, a casa, o hotel, o retrato, a família, o copo e o próprio Chet Baker que ganhou o poder de alegoria da resistência a partir do momento em que morreu e deixou de ser útil definitivamente ao mundo arruinado, o que nos revela um tom em geral amargurado e sem grandes esperanças presente nos poemas de Rui Pires Cabral, enquanto o que é tido como “grandioso” é que na realidade é frágil, a beleza superficial, o copo enquanto utilidade e a nossa própria vida que não dura mais que a “frágil luz de um instante”. O poeta busca, em seus poemas, por pequenos “Davis” para combater o grande “Golias” do mundo massificado e em ruínas, mas sem o milagre cristão, sem a esperança de vencê-lo, pois vale mais a luta, que uma possível vitória, pois enquanto houver tensões a poesia continuará, e quando estas tensões estiverem desfeitas e caso outras novas não se estabeleçam, já não será mais lugar para o canto, mas para o silêncio. 4. A nossa vez O poeta busca uma resistência ao mundo capitalista, busca olhar com os próprios olhos para poder alcançar um sentido no mundo, não fora dele, mas um sentido que lhe seja também próprio, não imposto externa e ideologicamente.

7. http://desconcertos.wordpress.com/2008/08/23/no-fundo-de-um-sonho-a-longa-jornada-de-chet-baker/

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Rui Pires Cabral procura resistir para, desta maneira, poder de fato existir ativamente e não de maneira passiva e estandardizada, o poeta não quer perder sua vez e nos alerta para que então, também não percamos a nossa, ainda que seja “uma vez” sem muitas esperanças e de frágeis belezas, mas ainda assim repleta de sentidos. Os versos finais do poema “A nossa vez” falam por si só, mas é interessante notarmos que enquanto a televisão nos dá sua versão da realidade, cada vez mais violenta e caótica, as ruas ficam vazias, portanto, se acreditarmos apenas naquilo que nos é proposto, ficaremos eternamente sem saber se as coisas são de fato como nos foi dito ou mostrado, como as sombras projetadas na parede da caverna,8 cabe a nós buscar um sentido que nos seja próprio e de fato faça sentido para nós mesmos, e ainda procurar ver, de fato, com os próprios olhos, nem que seja o horrível, que como vimos, pode ser horrivelmente belo, sem esperanças de mudar o mundo, mas atentos para não perdermos, se é que já não perdemos, “a nossa vez”, seja ela qual for. A NOSSA VEZ É o frio que nos tolhe ao Domingo no Inverno, quando mais rareia a esperança. São certas fixações da consciência, coisas que andam pela casa à procura de um lugar e entram clandestinas no poema. São os envelopes da companhia da água, a faca suja de manteiga na toalha, esse trilho que deixamos atrás de nós e se decifra sem esforço nem proveito. É a espera e a demora. São as ruas sossegadas à hora do telejornal e os talheres da vizinhança a retinir. É a deriva nocturna da memória: é o medo de termos perdido sem querer a nossa vez. In: Longe da Aldeia, Lisboa: Averno, 2005

Charles Marlon é poeta e bacharel/licenciado em Letras pela USP. Atualmente, faz mestrado na USP sobre poesia contemporânea portuguesa e a poética da solidão em Rui Pires Cabral, além de ser graduando em História pela mesma instituição. Autor do livro Poesia Ltda. (Patuá, 2012).

8. Mito da caverna. “A República” de Platão . 6° ed. Ed. Atena, 1956 pp. 287-291

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BIBLIOGRAFIA: AZEVEDO, Luiz Carlos de Moura. RUI PIRES CABRAL: MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÍNTIMA DO SUJEITO, NA POESIA PORTUGUESA DA VIRADA DO SÉCULO XX PARA O XXI. http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/slp09/10.pdf . Última consulta em 05/08/2011. BENJAMIN, Walter. Sobre Alguns Temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo.Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989. Obras escolhidas, v. 3. BORGES, Jorge Luis. Esse Ofício do Verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CABRAL, Rui Pires. Praças e Quintais. Lisboa: Averno, 2003. _________________. Longe da Aldeia. Lisboa: Averno, 2005. _________________. Capitais da Solidão. Vila Real: Teatro de Vila Real, 2006. _________________. Portugal, 0. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2007. _________________. Oráculos de Cabeceira. Lisboa: Averno, 2009. DAL FARRA, Maria Lúcia. Rui Pires Cabral ou a Poética Andeja. In: Poemas de Rui Pires Cabral. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2007. FILHO, Raul Albino Pacheco. Drogas: Um mal-estar na cultura contemporânea. In: http://www.psicologia.org.br/internacional/pscl6.htm. Último acesso em 8/07/2011. GAVIN, James. No fundo de um sonho: a longa noite de Chet Baker. In: http://books.google.com.br/books?id=9mJ3E3jrwUsC&pg=PA12&lpg=PA12&dq=35+ pessoas+enterro+de+chet+baker&source=bl&ots=dvaltT3eO4&sig=v5XCuxWs89_i5V UewO-YrsKmU4g&hl=ptBR&ei=1MNoToHyJofu0gGUptXCCw&sa=X&oi=book_result&ct=result& resnum=2&ved=0CB4Q6AEwAQ#v=onepage&q=35%20pessoas%20enterro%20 de%20chet%20baker&f=false GUATTARI, Felix. A restauração da paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, nº24. Cidadania: Rio de Janeiro, 1996. GUIMARÃES, F. Em direção ao fim do século. In: GUIMARÃES, F. A poesia contemporânea portuguesa – do final dos anos 50 aos anos 90. 2ª ed. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2002. HUXLEY, Aldous. As portas da percepção: Céu e inferno. São Paulo: Globo, 2002. JÚDICE, Nuno. Viagem por um século de Literatura Portuguesa. Lisboa: Relógio D’água, 1997. MARTELO, Rosa Maria. Vidro do mesmo vidro - Tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961. Porto: Campo das Letras, 2007. _______________________. Vidro do mesmo vidro - Veladas transparências (O olhar do alegorista). Porto: Campo das Letras, 2007. ________________________. Alegoria e autenticidade (a propósito de alguma poesia portuguesa recente). In: Subjetividades em Devir: Estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.

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O novo parto da língua portuguesa em valter hugo mãe: ou um renascimento para Portugal (?) por Paula Fábrio

Ditadura, diáspora e sonho imperial parecem-nos feridas ainda por cicatrizar na sociedade portuguesa. Sociedade que tem sua identidade à beira do naufrágio e colocada à prova agora pela globalização. Pelo menos, é com essa sensação que encerramos a leitura de a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe.1 Desde a Revolução dos Cravos (1974), a literatura feita em Portugal busca acertar as contas com a herança do fascismo. Na verdade, o tema da opressão ganhou nova envergadura com o início da resistência ao regime salazarista, conforme podemos depreender de vários estudos críticos.2 Não apenas os neorrealistas trabalharam esse aspecto; até mesmo Fernando Pessoa, segundo fotobiografia editada no Brasil, num primeiro momento se posicionou a favor da ditadura, e a certa altura passa a questionar seus abusos de poder. Mais de trinta anos após o fim do governo salazarista (compreendendo também o marcelismo, referente ao mandato de Marcello Caetano), nos vemos diante de um quadro político, econômico e social que vem se delineando não apenas em terras lusitanas, mas cujos contornos, por suposto, ainda não pudemos apreender. A propósito, nos anos 1990 e no começo dos anos 2000, ao mesmo tempo em que o processo de globalização avançou, algumas formas de nacionalismo ganharam certa notoriedade em diferentes pontos do planeta, basta voltarmos nosso olhar, grosso modo, aos países advindos, por exemplo, da dissolução da antiga União Soviética, a recente independência do Timor Leste e os movimentos separatistas que assomam ao longo dos continentes, com ações de maior ou menor impacto. Entretanto, em meio a esses movimentos e a despeito deles, bastante imprevisível nos parece o campo da identidade nacional, que hoje se torna “portátil”, tendo em vista a velocidade de deslocamento das pessoas pelo mundo e as novas correntes migratórias, para ficarmos com algumas das observações de Benedict Anderson em sua introdução ao livro Um mapa da questão nacional (BALAKRISHNAN, 2000, p. 16). Nesse âmbito de considerações, ainda temos a primeira crise econômica global (2008), além da própria União Europeia e todas as implicações sociais dessa comunidade para seus membros e para o restante do mundo.

1. Respeitamos em nosso texto a grafia em minúsculas dos títulos das obras, do nome de Valter Hugo Mãe e das personagens, de acordo com critério do próprio autor em sua tetralogia de romances. Optamos por conceder exceção a essa convenção no início das frases. 2. Ver artigo de Marlise Vaz Bridi no suplemento da Revista EntreLivros, conforme bibliografia.

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Não pretendemos alargar a discussão sobre esses tópicos, mas é relevante mencioná-los para esboçar o quadro no qual está inserida a obra literária de valter hugo mãe, cuja publicação é bastante recente e busca discutir, como veremos adiante, a questão da identidade nacional, sobretudo em a máquina de fazer espanhóis, livro sobre o qual tencionamos nos debruçar nestas páginas. Português nascido em Angola, a ideia de identidade parece cara ao autor, que chegou a declarar, em entrevista às revistas Pessoa e Cult, que o fato de ter nascido em África o marcou profundamente. Segundo seu depoimento, podemos inferir algumas especulações sobre o nascimento de portugueses nas ex-colônias: essa condição os torna cidadãos de segunda ordem na visão dos nascidos em Portugal. Talvez valha arriscar que mãe retome essa condição para denunciar, por extensão, que o cidadão português, aos olhos da Europa, seja considerado um sujeito de "segunda", conforme sugere esta passagem de seu romance: "[...] pagamos o mesmo que a europa paga por qualquer coisa, mas ganhamos três vezes menos. temos salário de rato. salário de humanos de segunda." (MÃE, 2011, p. 155). Até aqui, temos pouco mais do que um postulado sobre a crise de identidade portuguesa. Se ela efetivamente existe, ainda não o sabemos, há quem se aproxime de sua negação, como Eduardo Lourenço nos ensaios de A Nau de Ícaro (2001, p. 184); do mesmo modo a reflexão torna-se mais complexa se pensarmos que nações são produtos culturais, como nos indica Anderson ao longo de Comunidades imaginadas (2008), e dessa forma deveríamos analisar como esse produto entrou em declínio no ideário português. Entretanto, é preciso lembrar que neste momento nossa perspectiva é mais literária que sociológica, razão pela qual devemos ter em mente que a língua (retrabalhada por mãe ao longo de sua obra) é um dos pilares constituintes das identidades nacionais e, outrossim, não esquecer que a literatura, muitas vezes, mostrou-se à frente da historiografia. Para ilustrar essa última alegação, basta examinarmos, por exemplo, o projeto literário do escritor Pepetela sobre Angola, e observarmos o estudo de seus livros por pesquisadores afinados com as linhas, por assim dizer, mais progressistas de pensamento. No entanto, para relacionar, de alguma forma, ficção e História, cabe averiguar como mãe armou seu jogo literário para dar conta desse sentimento de crise e fracasso, e nos envolver subjetivamente em seu texto. Uma das hipóteses é a desconstrução de antigos padrões estéticos para a criação de uma nova ordem. Se for possível uma nova ordem. Parece que é isso que o autor procura nos dizer em seu livro. Mãe flerta com o novo, o caótico, o uso das minúsculas, mesclando inovações criativas com a vasta herança literária de que dispõe, como a pontuação e os longos parágrafos saramaguianos, a intertextualidade com Fernando Pessoa, para ficarmos apenas com dois exemplos. Sobre o uso das minúsculas em todo o texto, desde o título, os nomes Celuzlose 10 • Dezembro 2013 105


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das personagens e até mesmo no início das frases, acreditamos ser algo bastante inventivo, mas não podemos deixar de mencionar a existência de um romance português anterior à obra de mãe – cujo título é grafado em minúsculas, os lusíadas (1977), de autoria de Manuel da Silva Ramos e de Alface –, que busca ironizar o cânone e a história portuguesa, deslocando a narrativa épica e trazendo à baila a discussão sobre a identidade do povo lusitano. Não é possível averiguar, neste momento, se mãe teve contato com tal obra, no entanto, a questão da identidade nacional e o uso das minúsculas nos parece uma reincidência do fato linguístico capaz de nos surpreender e abrir precedentes para a reflexão. Por outro lado, em algumas entrevistas, mãe revela que o uso das minúsculas em seus livros está ligado à ideia de limpeza da língua, visando eliminar sinais gráficos que dificultem a leitura, de modo a torná-la mais ágil, como o pensamento e a fala. E essa disposição permanece em outras de suas obras, que não deixam de discutir questões relativas a Portugal. Mas precisamos ter em mente que não é somente através da forma que mãe discute seu país nas páginas de a máquina de fazer espanhóis. Mãe nos põe a desmontar uma narrativa que reelabora a língua – assim como em o remorso de baltazar serapião, outro romance que integra a tetralogia encerrada por a máquina de fazer espanhóis –, ao mesmo tempo em que examina com lucidez, no plano dialógico, as condições políticas, sociais e econômicas de um Portugal que pretende (?) se reorganizar. E a indagação que permanece diz respeito a como relacionar esse “novo parto da língua portuguesa”, segundo palavras de José Saramago que figuram nas edições brasileiras de mãe, com a reorganização de um país a partir de uma suposta crise de identidade. A resposta pode estar no próprio fazer literário. Romance histórico, estética do fingimento e uma pitada de palavra empenhada. Mãe mergulha em muitas fontes para construir uma literatura singular, assim como fora do livro o próprio mundo “real” ganha novos formatos. Aliada a tudo isso, temos uma língua renascendo a fim de construir, quem sabe, a partir das ruínas, uma nova identidade nacional. Assim, o conteúdo está inserido na forma, como pista para os leitores. Tomemos como exemplo o ritmo da narrativa: a escrita no tempo presente (diegético), em a máquina de fazer espanhóis, soa feito uma enxurrada, a nos “cair sobre a cabeça”, como o caos pós-moderno e os acontecimentos mais vertiginosos na vida de sua personagem central (não à toa, há uma chuva torrencial logo no primeiro capítulo), ao passo que nos flashbacks segue um padrão mais reflexivo. É um jogo a nos testar. Contudo, para desarmar esse jogo, precisamos sentir a “textura de suas peças”, isto é, pensar os perfis psicológicos, a questão do tempo e também como os fios desse novelo se entrelaçam com o que entendemos como realidade histórica. Nesta obra, mãe revisita a história de Portugal pelos olhos do senhor silva, um homem de 84 anos 106 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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que vive a melancolia de perder laura, sua companheira. Ao longo da trama, o luto torna-se ainda mais asfixiante com a chegada do protagonista a um asilo. Às voltas com sua atual condição, o mais novo habitante do lar feliz idade agora se vê descartado pela sociedade, revelando-se, nesta e em outras passagens da obra, uma personagem vítima da ação. Emblemático pensar numa possível relação com Portugal, que há muito perdeu sua posição de ator no continente europeu. Como saída para sua amarga situação ou mesmo como distensão do tempo que lhe resta, a personagem passa a relembrar sua vida como barbeiro e pai de família, enquanto experimenta, paulatinamente e para seu próprio espanto, as descobertas da vida na terceira idade, com destaque para a amizade e algumas aventuras no espaço delimitado do asilo: as brincadeiras com a santa em seu dormitório, as cartas de amor (fingimento poético diegético) para dona marta, e as rodas de conversa sob o sol no jardim, onde o narrador rememora para os novos amigos sua trajetória como cidadão, desde o início do salazarismo até a primeira década do século XXI, quando a globalização e a Zona do Euro põem a descoberto um Portugal inferiorizado. Coincidência ou não, a personagem principal tem 84 anos; se fizermos as contas a partir da primeira data de publicação do romance em Lisboa (2010), seu nascimento coincide com a Revolução de 1926, início da ditadura naquele país. Desse modo, percebemos que a narrativa abarca dois tempos: o passado, fixado na memória, a questionar a historiografia, e o presente que avança inexorável para a morte. Com efeito, esse tempo interiorizado está na leitura de Heidegger do homem como um ser-para-a-morte (HEIDEGGER apud RICOEUR, 2007, pp. 361-362), a soar bastante significativa no contexto das personagens de a máquina de fazer espanhóis. Por outro lado, podemos especular aqui, sob o risco de não nos aprofundarmos devidamente, a releitura realizada pelo filósofo Paul Ricoeur em seu livro A memória, a história, o esquecimento, sobre o pensamento de Heidegger. Inspirado no filósofo alemão, Ricoeur faz um movimento adiante e traz a proposta do perdão com relação às heranças ou dívidas (muitas vezes nefastas) que os homens de outrora nos legaram. Lembremos que para isso há de se considerar “o horizonte de expectativas dos homens de outrora” (RICOEUR, 2007, p. 392).3 Porque, sem o perceber, é exatamente isso que o senhor silva faz o tempo todo: “mas em mil novecentos e cinquenta as coisas não estavam ainda tão definidas, [...], nem salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente [...].” (MÃE, 2011, p. 82). Com efeito, é sobre esse tipo de reflexão que recai a força dramática de a máquina de fazer espanhóis. Em dado

3. Sobre os conceitos de recordação e repetição discutidos por Paul Ricoeur nesse livro, ver parte III, capítulo “História e Tempo”. Nesse mesmo capítulo, ver discussão sobre Heidegger.

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momento, não sem antes ter conquistado a empatia do leitor, o narrador nos revela como seu fascismo de bom homem o levou a contribuir com a ditadura naquele país. Daí por diante, a personagem passa a representar metafórica e genericamente o povo português, ideia que já vem enfatizada em seu sobrenome desde o início da narrativa: “somos todos silvas neste país” (MÃE, 2011, p. 12). Ainda na esfera da personagem, é indispensável lembrar o luto do protagonista pela morte da mulher, que traz em seu bojo a reflexão sobre si mesmo, sua identidade, e por extensão, sobre seu país, que por sua vez também vivencia um longo luto pelo naufrágio do sonho imperial, ironicamente aterrorizado pelo pesadelo da ditadura. Aqui vale recuperar Ricoeur, a fim de apreciarmos como a obra de mãe possivelmente acena para a reconciliação: “No final do movimento de interiorização do objeto de amor perdido para sempre, delineia-se a reconciliação com a perda, no que consiste, precisamente, o trabalho do luto” (RICOEUR, 2007, p. 371). E como parte de sua jornada de luto, o senhor silva – se já não possui o poder de atuar ativamente na sociedade –, pelo menos no plano narrativo, prossegue nos guiando. Com ele, mergulhamos no universo de Fernando Pessoa, e assim chegamos ao poema “Tabacaria”, do heterônimo Álvaro de Campos. Num lance criativo, mãe nos surpreende com a entrada de esteves na história. O mesmo esteves sem metafísica do poema, agora com cem anos de idade, compartilha o dia a dia com outros idosos no asilo. Em tempo, esbanjando metafísica: “[...] senti-me afundado na metafísica. não sabia se havia de protestar por me ter mentido ali vertido como um homem sem profundidade, ou se havia de o abraçar pela maravilha de dizer coisas assim, coisas tão interiores como se fossem de ser vistas [...]” (MÃE, 2011, p. 97). Nesse contexto, estendemos o raciocínio de Ricoeur a fim de costurar algumas conjecturas, pois entendemos que se Fernando Pessoa pode ter se “equivocado sobre esteves” (ou tê-lo fingido em sua arte poética), e também sobre Salazar, algo no texto de 4 mãe subverte estruturas moralizantes e faz o mesmo caminho de Gramsci, pelo lado inverso. Se Gramsci nos vê a todos como seres intelectuais, o texto de mãe gira sobre seu eixo de reflexão e nos apresenta os escritores (caso de Pessoa) como seres comuns, passíveis de ambiguidades (poéticas ou não). Assim, mãe traz a subjetividade para o cerne da questão, humanizando leitores e personagens a um só tempo, sem que isso nos retire a responsabilidade sobre nossas atitudes e posições políticas. Dessa

4. Sobre os conceitos de Gramsci foi utilizada a leitura de obra de Edward Said, conforme bibliografia.

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forma, como amuleto e para fermentar o debate, destacamos a fala do poeta na “Crônica da vida que passa...”, de 1915, que parecia preconizar nossa discussão: “Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia” (PESSOA apud ZENITH, 2011, p. 11). Entretanto, não podemos parar por aqui. É também relevante frisar que, após a introdução de esteves, mãe nos apresenta algo ainda mais insólito, porém em total acordo com a coerência interna da obra, tendo em vista a idade avançada dos habitantes do lar e do narrador, que parecem alternar momentos de absoluta lucidez e delírios alucinantes. Estamos falando da máquina, a “geringonça” que alguns idosos do feliz idade juram ter sido colocada no andar de cima, no quarto do senhor medeiros (idoso bastante debilitado, que no contexto do livro é apresentado, em sentido figurado, como equivalente moral do torturador), apenas para retirar aquilo que é mais caro aos homens. No caso do esteves, sua metafísica; no caso do senhor silva, a identidade portuguesa, e também, é claro, a metafísica. De metáfora em metáfora, chegamos à máquina ditatorial salazarista, que retira a metafísica aos homens, e que bem poderia ter sido capaz de retirar a vontade de ser português ao povo, de promover a imigração para os vizinhos mais desenvolvidos, pelo menos assim percebidos pelos olhos do chamado Ocidente: “[...] Estávamos bem era a falar castelhano, com salários castelhanos e uma princesa bonita para as revistas.” (MÃE, 2011, p. 190). Ainda sobre a máquina, devemos examinar uma de suas mais terríveis facetas: o purgatório. A certa altura da narrativa, num angustiante processo de culpa, o senhor silva chega a imaginar que a finalidade da máquina seria retirar o fascismo de sua cabeça, enquanto ele mesmo afirmava a revogação dessa herança: “mas eu o já havia tirado antes [...]” (MÃE, 2011, p. 249). E mesmo antes desse episódio, o senhor silva já teria sido instado por outra personagem a escrever sua história, purgar seus atos, porque “[...] se os fatos são indeléveis, se não podemos mais desfazer o que foi feito, nem fazer com que aquilo que aconteceu não tenha ocorrido, em compensação, o sentido do que aconteceu não é determinado de uma vez por todas; além de os acontecimentos do passado poderem ser contados e interpretados de outra forma, a carga moral vinculada à relação de dívida para com o passado pode se tornar mais pesada ou mais leve.” (RICOEUR, 2007, p. 392). Não obstante, se nos atrevermos agora a ampliar a metáfora, podemos chegar à máquina da globalização, que nos expõe (a todos?) ao risco de termos nossa identidade solapada. No caso português: “agora somos europeus. qualquer iniquidade do nosso peculiar espírito há de ser corrigida pela europa [...]” (MÃE, 2011, p. 11). Celuzlose 10 • Dezembro 2013 109


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Mas, ao final e ao cabo, além das pressuposições levantadas até aqui, o que sobressai após a leitura de mãe é a percepção de estarmos diante de um livro que é uma verdadeira máquina de nos fazer pensar. Pensar, sobretudo, no “horizonte de expectativas dos homens de outrora” e sua ligação com nosso tempo e nossa preocupação com o futuro, mesmo que essa preocupação esteja relacionada à angústia da morte, como queria Heidegger e como nos insinuam as palavras finais do senhor silva, ou ainda, alargando essa visão, que nos seja dada a possibilidade de uma réplica ao passado, com o “'retorno' de possibilidades escondidas”, como sugere Ricoeur (2007, p. 393) e como o narrador nos propicia com sua história. Assim, munidos do poder dessa máquina, poderemos traduzir o desejo quase impossível de ver um novo Portugal nascer e, não sem espanto, nos deparar no meio do caminho com o silêncio, o silêncio sobre as ex-colônias, como uma ferida ausente onde muitos se esquivam de tocar; o ponto sobre o qual a máquina se cala e nossa reflexão apenas tem início.

Paula Fábrio é autora do romance Desnorteio (Patuá, 2012) premiado no Prêmio São Paulo de Literatura 2013. Atualmente cursa mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na USP; sua pesquisa compara as obras do escritor Valter Hugo Mãe e do cineasta Walter Salles.

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BIBLIOGRAFIA: Livros ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BALAKRISHNAN, G. (org.). Um mapa da questão nacional. Lisboa: Contraponto, 2000. LOURENÇO, E. A nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MÃE, V. H. a máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011. _________. O remorso de baltazar serapião. São Paulo: Ed. 34, 2010. PESSOA, F. Poesia completa de Álvaro de Campos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. RAMOS, M. S.; Alface. os lusíadas. Lisboa: Assírio e Alvim, 1977. RIBEIRO, M. C.; Ferreira, A. P. (orgs.) Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo. Porto: Campo das Letras Editores, 2003. RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. SAID, E. Representações do intelectual. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ZENITH, R.; Vieira, J. Fotobiografia de Fernando Pessoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Revista impressa BRIDI, M. V. Anos de renovação – Poesia e prosa de resistência. Cadernos EntreLivros. Panorama da literatura portuguesa. São Paulo, v. 5, pp. 74-91: Ediouro, Segmento-Duetto Editorial. ISBN 978-85-99535-61-5, Suplemento da Revista EntreLivros. Periódicos em plataforma digital Valter Hugo Mãe tem novo romance. Revista Cult. São Paulo, v. 164. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2012/04/valter-hugo-mae-tem-novo-romance/>. Acesso em 18 set. 2013. NUNES, Maria Leonor. As grandes minúsculas de valter hugo mãe. Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, seção Origami, jan. Disponível em: <http://visao.sapo.pt/as-grandes-minusculas-de-valter-hugo-mae=f545016>. Acesso em 1o out. 2013. MARANHA, V. Valter Hugo Mãe: “sempre me interessou a linguagem, o modo de dizer aquilo que nunca foi dito, como inventar mais língua, mais pensamento”. Revista Pessoa. Seção de entrevistas Orpheu, mar. Disponível em: <http://www.revistapessoa.com/2012/03/valter-hugo-mae-sempre-me-interessou-a-linguagem-o-modo-dedizer-aquilo-que-nunca-foi-dito-como-inventar-mais-lingua-mais-pensamento/>. Acesso em 18 set. 2013.

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Um passeio cosmopolita com António Franco Alexandre por Vivian Steinberg

Fora da ordem (...) Te encontro em Sampa de onde mal se vê quem sobe ou desce a rampa Alguma coisa em nossa transa é quase luz forte demais Parece pôr tudo à prova, parece fogo, parece, parece paz Parece paz Pletora de alegria, um show de Jorge Benjor dentro de nós É muito, é grande, é total Alguma coisa está fora da ordem Fora da nova ordem mundial Meu canto esconde-se como um bando de Ianomâmis na floresta Na minha testa caem, vêm colar-se plumas de um velho cocar Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano Cuspo chicletes de ódio no esgoto exposto do Leblon Mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon Eu sei o que é bom Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final Alguma coisa está fora da ordem Fora da nova ordem mundial (Caetano Veloso) Esse trecho da música de Caetano nos leva a percorrer caminhos brasileiros, desde São Paulo e o parque Trianon, ao Amazonas e os Ianomâmis, a floresta, o cocar e as plumas. Vai à Bahia, ao Rio de Janeiro e questiona a ordem das coisas; não a ordem moral mas a ordem política em que há uma sensualidade nos escombros e lixos. Percorremos esses caminhos propostos por Caetano, reconhecendo alguns e outros nem tanto. 112 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Por sua vez, do outro lado do Atlântico, um poeta contemporâneo a Caetano Veloso (Santo Amaro, 1942), António Franco Alexandre, (Viseu, 1944), em Quatro Caprichos, livro editado em 1999, na segunda parte “Corto viaggio sentimentale, capriccio italiano”, no poema “20”, escreveu: lembram-te roma as ruas damaia; há em carnide um sítio de verona; é belo o lixo, à noite, junto ao tejo. Abrimos as janelas e a cidade avança pelo quarto, senta-se na cama, oferece-nos pó, anjo ou demônio. Serei eu, fantasia, outra pessoa, novo amável montale desmontável? e tu existirás de facto, na manhã mais fria? Assim nos enganamos, nos engana a verdade que em lume nos desata. Quatro Caprichos está dividido em quatro partes: “Le tiers exclu, fantasia política”, “Corto viaggio sentimentale, capriccio italiano”, “Rosencrantz, episódio dramático” e “Syrinx, ficção pastoral”. O texto, embora escrito em versos, conta uma história, ou melhor, há elementos da narrativa. Se pensarmos apenas nos títulos, passeamos pela cultura ocidental e europeia. São quatro histórias, ou caprichos. A primeira, em francês, refere-se a termos próprios da lógica clássica ou de Wittgenstein; a segunda, em italiano, é o lugar da paixão, da viagem sentimental, de acordo com o senso comum; a terceira refere-se a um personagem de Hamlet, é um cortesão, amigo desde criança de Hamlet, mas responde à rainha e a Claudio, tio de Hamlet. António Franco Alexandre disse, numa entrevista em Inimigo Rumor, nº11, 2001, que “Rosencrantz não está minimamente interessado em Hamlet, é G. que o fascina”. Ou seja, há um deslocamento entre personagens da peça teatral e a de sua autoria. Nessa parte do livro, há um sujeito poético que é o treinador da equipe de basquete do liceu F. e que também dirige o grupo de teatro desse mesmo liceu. G. é um personagem que o “narrador” encontra no bar Solaris, “de cabelo preto, tão curto que se via a fonte/ da nuca, onde o perfume animal é mais perfeito”. (...) Quando G. me deixava acariciar-lhe a nuca a sensação era “deslumbrante”. Humanamente pensei como seria o contacto tri- ou tetra-dimensional do meu corpo ou de outro corpo, com o corpo de G., a mistura do meu corpo, ou de outro corpo, com o corpo de G., deitados possivelmente, na estreita cama do meu quarto estreito de paredes nuas, a Campo de Ourique? As mãos de G., visíveis junto ao balcão do Solaris, o hálito de G., mais sensível quando ria, os ombros de G., estroboscopicamente adivinháveis, estavam diante de mim, acessíveis diante de mim, junto ao balcão. Sobre um palco, o corpo de G. era “deslumbrante”. Muitas vezes admirara o “Hamlet” pós-moderno em que G. fazia Hamlet e Ofélia, em performances “deslumbrantes”. A Ofélia de G., o Hamlet de G., tinham modificado Celuzlose 10 • Dezembro 2013 113


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toda a dramaturgia, a dramaturgia de Shakespeare e toda a hermenêutica, a hermenêutica de Shakespeare e toda a hermenêutica. O corpo, deslumbrante, de G., transformara toda a cultura, toda a vida do espírito, primeiro a cultura e a vida do espírito ocidentais, depois, para sempre, toda a cultura, toda a vida do espírito, depois, para sempre, toda a vida de ocidente a oriente. A aparição de G. nos palcos de Beijing! o diálogo de G. com G. (acto 3, cena 2) na arena silenciosa de Tucson, Arizona! a multidão compacta que aguardara, em noite gelada, o avião que transportava G. às pampas argentinas!, estavam em todas as memórias, em todos os livros, e, aos fins de semana, em todos os jornais com fotografias cada vez mais exactas e perfeitas, com interpretações cada vez mais exactas e perfeitas, mas longe, irremediavelmente, do sentido, da concisão exacta e precisa de Hamlet de G., da Ofélia de G. noite após noite em todos os palcos do mundo. (...) É desse G. que António Franco Alexandre se refere na entrevista, um “personagem” criado por ele que representa “Hamlet e Ofélia, em perfomances 'deslumbrantes'”. E o título dessa parte é “Rosencrantz, episódio dramático”, Rosencrantz junto com Guidenstern são personagens que morrem no lugar de Hamlet. Estavam levando Hamlet para a Inglaterra, a mando de Claudio e da Rainha, com uma carta lacrada que ordenava a morte de Hamlet assim que chegasse, não sabemos se os dois, amigos de infância do príncipe, sabiam do conteúdo da carta. Hamlet soube e trocou os nomes, assim morreram em seu lugar. No poema de António Franco Alexandre, há um entretecer de narradores e personagens, lugares nomeáveis e inomináveis. De um espaço mínimo, “a estreita cama de meu quarto estreito”, aos lugares mais distantes da Terra, percorremos com o poeta esses cantos todos, vislumbramos pelos buracos das fechaduras como voyeurs, a maneira de Baudelaire ou Proust. Lembrando, através da leitura que Deleuze fez de Em busca do tempo perdido: São os dois caminhos de uma “formação”. Proust frequentemente aborda situações como esta: em dado momento o herói não conhece ainda determinado fato que virá a descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vivia. Daí o movimento de decepções e revelações que dá ritmo a toda a Recherche. Pode-se evocar o platonismo de Proust – aprender é ainda relembrar; mas, por mais importante que seja o seu papel, a memória só intervém como o meio de um aprendizado que a ultrapassa tanto por seus objetivos quanto por seus princípios. A Recherche é voltada para o futuro e não para o passado. (Deleuze – Proust e os signos) O que isso tem a ver com os versos acima citado? Como leitores, podemos desdobrar os véus que embaçam a visão e sentir uma tensão na linguagem de António Franco Alexandre, ao mesmo tempo em que reconhecemos símbolos de Eros. Com esse esclarecimento de Deleuze, percebemos que através desse viés proposto por António, visualizamos um envolvimento sugerido, sensual, erótico e amoroso, portanto 114 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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nos sugere signos que nos transportam para um aprendizado, como disse Clarice Lispector, Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres. O sujeito poético se envolve com o “personagem” que nos aparece através de aspectos corporais (sensuais) e exerce a profissão de ator (aquele que se transveste, metamorfoseia), ou seja, as formas modificam-se e é um transeunte de espaços urbanos, um peregrino, um estrangeiro, assim como o sujeito também. A metamorfose acontece na linguagem e esse personagem se transforma em W. Ou é outro, o outro? Ou nos enganamos? “Assim nos enganamos, nos engana/ a verdade que em lume nos desata”. (...) Depois, um dia, em digressão pelos palcos e arenas e estádios do mundo, conhecemos W., num ginásio de Atlanta. O arremesso de W. tinha a concisão, a exactidão, o tacto que me escapara, ao encenar “Ajax”. A velocidade de W., a aparição do corpo de W. antes do arremesso, escapara-me, ao encenar “Ajax”. A aparição e o desaparecimento da pele de W. no instante do arremesso, o espírito de W. no corpo de W., o vigor e a graça do espírito de W. no corpo viril, feminino, de W., escapara-me, ao encenar “Ajax”. Beijei, um a um, os jovens actores; acompanhei W. ao aeroporto, na véspera de um jogo decisivo. O corpo de W., a nudez de W. no espírito de W., comoviam-me, no aeroporto, na véspera de um jogo decisivo. No dia seguinte, na primeira aula de teatro, falei da dramaturgia possível e necessária depois da morte de G., do corpo de G., da minha íntima e última recordação de G., outrora, quando o corpo de G. deslumbrava as plateias do mundo no terror e no silêncio das plateias do mundo, outrora. Já tarde, no bar Solaris, a Campo de Ourique, Bebi vinhos, licores, dancei toda a noite Em concisa e exacta estroboscopia. Dias depois, desinteressei-me do teatro. As árvores floriam, ao longo da alameda, a caminho do liceu F. onde continuei a treinar a equipe de basket enquanto lia “Espaço, Tempo, Arquitectura” à espera de G., que uma vez mais se atrasara em Campo de Ourique, na livraria desportiva. O poema volta ao espaço inicial, “em Campo de Ourique”, lendo o livro que havia comprado em setembro: “No início de setembro comprei “Técnicas de Basket” numa livraria de Campo de Ourique e, dias depois,/ o clássico “Espaço, Tempo, Arquitectura”, porque tinha em vista/ ser arquitecto, um dia”. Volta ao início, mistura os espaços, a ação e os personagens. O título do livro poderia ser o título do poema, arquitetura é do poema, está organizado no espaço da página, é devidamente planejado, com ambientes que se interpenetram, como numa construção cheia de espaços abertos, possíveis a olhares voyeurs, que captam alguns lances de cenas sem conseguir captar o todo, ou sem desejar Celuzlose 10 • Dezembro 2013 115


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penetrar na totalidade, assim mantendo o distanciamento ou a dialética do próximo e do distante caro à experiência estética e erótica, comentada por Walter Benjamin: “A vida de Eros se acende graças ao longínquo. Mas de outro lado existe um parentesco entre proximidade e sexualidade. (...) Proximidade e distância são, aliás, não menos determinantes para o sonho quanto para a erótica”, traduzido e comentado por Jeanne Marie Gagnebin em “A questão de 'Eros' na obra de Benjamin”. Benjamin pensou sobre isso para elaborar sua teoria da aura, como G., que é descrito próximo ao sujeito poético/ narrador, como uma imagem emoldurada ou aureolada pela presença do longínquo. O “objeto” se destaca sobre um fundo insondável e se transforma numa imagem aurática – enquanto os objetos manipuláveis se alinham uns ao lado dos outros num espaço mensurável, sem nenhuma profundidade. Jeanne Marie Gagnebin escreveu na obra citada: “A aura é, sem dúvida, um tipo de auréola, mas também de moldura que empresta à imagem emoldurada um campo de perceptibilidade próprio, uma abertura sobre outra dimensão que aquela da superfície habitual das percepções cotidianas”. António Franco Alexandre, nesse poema, e na direção da leitura que Gagnebin sugere, não reinventa uma transcendência soberana e distante, mas desconstrói a aparência lisa e comportada do real para nele abrir rachaduras e fissuras que permitem vislumbrar um “longínquo” tão desconhecido como imanente. Só assim “poderá Eros ser novamente um verdadeiro daimôn (o intermediário, o “demônio” no sentido grego do termo)”. A primeira aparição de G. se faz no balcão do bar Solaris, a corporalidade de G. se destaca do fundo do bar, passa a ser “deslumbrante”, a ter aura (nos termos de Benjamin), remete ao infinito ou ao sagrado, num determinado momento do poema: “O corpo, deslumbrante, de G./ transformara toda a cultura, toda a vida do espírito,/ primeiro a cultura e a vida do espírito ocidentais,/ depois, para sempre, toda a cultura”. Transforma a percepção humana, Eros volta a ser daimôn. Assim como “a Ofélia de G., o Hamlet de G., tinham modificado/ toda a dramaturgia, a dramaturgia de Shakespeare”. Em “Rosencrantz, episódio dramático”, António Franco Alexandre marca o tempo como em narrativas: “manhã cedo, fim da tarde, início de setembro, um dia, no dia seguinte, dias depois, na véspera, em noite gelada, noite após noite”, durante um período, a narrativa é suspensa, o tempo é outro – tempo de memória ou da imaginação – depois, retoma a marcação com “todas as noites ou noite após noite”, dá ares de continuidade, quase uma rotina na perambulação, até a ação se transformar e a marcação se faz por “agora”, e no final, retoma “depois, um dia, no dia seguinte, na primeira aula, dias depois”, a narrativa retoma, passamos por uma transformação, nós, os leitores, o sujeito poético e os “personagens”. Os espaços acompanham o desenrolar do poema, primeiro a livraria de Campo de Ourique, o bar Solaris, o liceu F., o quarto estreito, o palco, os palcos de Beijing, a arena de Tucson, o avião, os palcos do mundo, as plateias de ocidente a oriente e, novamente, o balcão do Solaris, a livraria em Campo de Ourique, o livro “Espaço, Tempo, Arquitectura”. Poderíamos dizer que é um relato de um aprendizado, ou de uma formação, como escreveu Deleuze sobre Proust, em que aprender é interpretar signos, decifrar, está mais voltado para o futuro do que para o passado. Retoma os lugares de origem transformados, como uma redescoberta do tempo perdido. 116 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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“E o tempo redescoberto é, antes de tudo, um tempo que redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a imagem da eternidade; mas é também um tempo original absoluto, verdadeira eternidade que se afirma na arte”, escreveu Deleuze em Proust e os signos. É uma cena de teatro que começa na aparente realidade de um liceu, ou do liceu F., nas ruas de Campo de Ourique, um bairro lisboeta e um cenário histórico português, passa por um bar dando um aspecto contemporâneo à cena, que ainda não é cena, até nos depararmos com G., personagem deslocado dentro de um poema, será? Através de G. percorreremos velozmente o mundo, é um ator que representa “Hamlet” pós-moderno, ou será Ofélia, ou como no título, Rosencrantz? É um ator capaz de transformar toda a cultura, a vida do espírito. Como na leitura que Deleuze faz de Em busca do tempo perdido, que a última aprendizagem é em relação à arte: “A arte é uma verdadeira transmutação da matéria. Nela a matéria se espiritualiza, os meios físicos se desmaterializam, para refratar a essência, isto é, a qualidade de um mundo original. Esse tratamento da matéria é o 'estilo'”. O ator se transmuta, muda de personagem, de amante passa a atuar, diferentes personagens, diferentes palcos e lugares. O sujeito poético sofre, vive, se ilude e aprende. G. morre como “ator”, é substituído por um jogador de basquete, no imaginário do sujeito, W., esse também se vai e “na última cena”, o “narrador” espera, na livraria em Campo de Ourique, G., que não mais dominava o tempo, era um tempo redescoberto. A questão de gênero é diluída, é um poema, com elementos da arte dramática, aparentemente o sujeito poético está narrando uma história, próxima a ele, um aprendizado, beirando um falso diário, com um tom confessional sugerido, mas que engana os incautos, portanto o poeta mistura vários gêneros e elementos literários, fazendo com que o leitor percorra um caminho para logo o desviar ou encontrar uma placa de proibida a passagem. Para ficarmos apenas nesse poema do livro, partimos de um bairro lisboeta e percorremos o mundo: Beijing, Tucson, pampas argentinos, Covent garden, Chipre, Nevada, o bar Solaris, a livraria desportiva em Campo de Ourique. Fizemos mesmo um passeio cosmopolita, isso sem falar de outros poetas/ dramaturgos que visitou, como Shakespeare e Sófocles diretamente e indiretamente, por exemplo, Cesário Verde, que inaugurou os passeios pela cidade em Lisboa. Finalizo com os últimos versos de Segundas Moradas: Acordaremos, já sei, transparentes e sábios, Do outro lado da criação do mundo; Uma mão presa à luz, outra nas trevas, Um só tronco de chamas, uma asa.

Vivian Steinberg nasceu em São Paulo em 1963. Mestre e doutora em literatura portuguesa pela USP. Escreveu sobre as poetas Sophia de Mello Breyner Andresen e Fiama Hasse Pais Brandão. Pesquisadora de poesia portuguesa, principalmente pós-Pessoa. Professora, crítica literária, escritora e ensaísta. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 117


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A intertextualidade e a percepção dos aspectos formais do texto: uma experiência de leitura em Onde vivem os monstros de Maurice Sendak por Geovanina Maniçoba Ferraz Discutindo sobre a relação do leitor com a obra literária, a professora de literatura Juliana Loyola afirmou que um dos maiores problemas do público leitor médio hoje é a experiência indiferenciada da leitura. Nas escolas, bibliotecas e, sobretudo, livrarias há uma mistura de livros informativos, de autoajuda, etc. com textos literários, sem que o leitor seja capaz de diferenciar as diversas experiências de leitura. Isso é muito grosseiro na infância, livros esplêndidos misturados com livros sobre como escovar os dentes e verbetes sobre animais. Mas o problema se expande quando o adulto diz que está lendo "por prazer" um livro chamado "10 passos para subir na empresa". Outra consequência da leitura que não percebe o procedimento do texto é a dificuldade assumida de pais e professores na hora de escolher um livro “bom”. A avaliação, nebulosa e sem critérios, desemboca numa sensação inespecífica de gosto ou não gosto; ou pior, muitos recorrem à avaliação baseada em dogmas e generalizações: se o texto “ensina” algo ele é didático e não pode ser literário; se o texto apresenta alguns marcadores (metalinguagem, por exemplo), mesmo que não tenha nenhuma complexidade estética maior, ele passa a ser considerado poético. Ainda no âmbito dessa leitura “às cegas”, mesmo o leitor sensível ao estético pode não ser capaz de perceber de forma consciente as estratégias do texto que o convidam a participar da construção de sentido. Estar apto a perceber o procedimento do texto é fundamental para a percepção do estético, mas também para os outros tipos de leitura; o que significa dizer que aprender a ler qualquer texto de forma consciente e crítica passa pela habilidade da leitura do estético; isto porque no texto literário o foco é o jogo com a linguagem, operando na complexidade e convocando o leitor, enquanto que nos demais textos o objetivo é a clareza da informação, e para estabelecer esta “interpretação correta” o texto acaba expulsando o leitor, implicando na leitura passiva. Somente o leitor treinado, consciente destes movimentos, pode se tornar um leitor crítico. Disto implica que a percepção das nuances entre enunciação e enunciado – base da aptidão para a leitura complexa e plurissignificada – não é essencial apenas à leitura do texto literário, à possibilidade do deleite estético, é fundamental também para o desenvolvimento da linguagem, que é matéria prima do pensamento, da aprendizagem e da expressão, portanto direito inalienável de todo ser humano. Percebendo a importância da consciência da forma para todos os leitores, este artigo se propõe a analisar alguns aspectos de “Onde vivem os monstros”, de Maurice Sendak, num recorte específico: a intertextualidade como procedimento literário na passagem em que Max encontra o monstro do mar, como veremos em detalhe. O intuito 118 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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é criar um percurso, uma experiência de leitura mediada para o leitor em formação, que ressalte o aspecto formal do texto. O que está no texto é o espaço para leitor, mas o 1 verdadeiro lugar da escrita é a leitura (Barthes ). Diversas são as formas do texto literário abrir espaço para o leitor, em sua linguagem ambígua, simbólica, associativa e figurativa, mas nesse trabalho o enfoque será a intertextualidade. Discutiremos o encontro com o monstro do mar não tentando averiguar todo seu leque de potencialidades, mas somente sob esse aspecto, o da intertextualidade. Justificamos essa escolha pois essa estratégia – o intertexto – enseja a elaboração por parte do leitor de correlações, digressões, inferências e projeções de outros conteúdos sobre o texto, sendo um bom exemplo do processo de ressignificação do livro pela leitura ativa. A intenção é evidenciar a intertextualidade como estratégia formal, como um desses procedimentos literários que atraem o leitor para elaborar a ressignificação do conteúdo narrado. A intertextualidade, segundo Koch (2000), diz respeito ao modo como a produção e a recepção de um texto dependem do conhecimento que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona. Para Kristeva (1974), “o texto poderia ser considerado um mosaico de citações”. Aprender a perceber e a dar significação a esses espaços do texto abre para diversos níveis de complexidade e de possibilidades de leitura, suscitando diversos percursos da imaginação, da emoção e da razão, numa trajetória que vem marcada pela materialidade do texto, mas que ocorre na abstração única daquele leitor, transformando a experiência da leitura em uma vivência pessoal. Neste artigo, o enfoque será eminentemente pragmático, a discussão teórica sendo substância de embasamento de um conhecimento que possa ser usado no trabalho de leitura orientada, a análise servindo de matéria para o leitor experimentar um movimento de leitura ativa. Essa experiência deve enfocar a forma, mais que o conteúdo, e por isso acaba por colaborar para a formação do leitor consciente, crítico e sensível ao estético. Acaba também por catalisar o processo de aparelhamento do olhar para uma leitura complexa e nuançada, a qual passa pela capacidade do leitor de perceber o procedimento do texto e participar ativamente no processo de construção de sentido; e tomar consciência deste processo. “Where the wild things are” é um picture book escrito e ilustrado pelo escritor norteamericano Maurice Sendak (1928 - 2012), publicado nos EUA pela primeira vez em 1963. Nele, o menino Max se comporta mal e é mandado para o quarto, ainda sem jantar. O quarto então se transforma numa floresta com um mar e, a bordo de um barco, o menino viaja para o mundo onde estão as coisas selvagens. O livro ganhou diversos prêmios literários, vendeu mais de 19 milhões de cópias pelo mundo e já foi transformado em ópera (composta por Oliver Knussen, com libreto do próprio Sendak) e em filme (drama, 2009, dirigido por Spike Jonze).

1. Em A morte do autor, p.52.

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A atualização da leitura desse livro é necessária pois muitos dos ensaios produzidos sobre ele enfocam os aspectos psicológicos do protagonista, em detrimento dos aspectos estéticos da obra, analisam mais o conteúdo do livro e menos os seus aspectos formais. Centram-se no conflito do protagonista com a mãe ou com os seus próprios instintos e sentimentos; na viagem metafórica de Max até as coisas selvagens e seu retorno; no que ele aprende enquanto viaja na sua fantasia, no crescimento psicológico da personagem (Max se modifica no transcorrer da narrativa), pressupondo que o que se deve privilegiar no texto é o como lidar com a raiva e a questão dos limites. Essas análises se apoiam no aspecto de identificação do leitor com o protagonista e chegam a recomendar o uso do texto em sala como um livro para ser trabalhado quando se pretende discutir com as crianças questões do tipo como lidar com as emoções, por exemplo. O “entendimento” da narrativa e de suas implicações metafóricas, alegóricas, é o percurso de excelentes análises, e esta visada interpretativa sobre o texto literário tem também seu espaço, mas se ela ganha espaço demais, concentrando os mais nobres esforços da leitura na busca pelo “sentido do texto”, essa atitude acaba por empobrecer o literário pois, na arte da palavra, a língua não quer apenas dizer, antes quer ser. Isto posto, a perspectiva deste artigo é, ao contrário, a de ressaltar o papel da forma, do procedimento, da enunciação, da percepção do recurso narrativo/imagético que abre espaço para o leitor na construção do sentido do texto; ressaltar esses aspectos no contexto da leitura. Devemos, primeiramente, atentar para a estrutura formal do texto de modo geral. O enfoque no trabalho com este livro é importante não só pela relevância da obra em si, mas também porque o picture book, enquanto objeto, é uma ferramenta fundamental na formação do leitor, desde a fase de letramento, alfabetização, até a formação do leitor estético e crítico que sabe fazer inferências com o texto, opera a leitura em toda a sua complexidade e para quem o mundo simbólico e abstrato passa a adquirir maior riqueza e significação. A importância do uso dos picture books no âmbito do ensino fundamental, no processo de formação de leitores autônomos (transição da leitura compartilhada com um adulto para a leitura individual), não se discute, pois o texto pequeno, as frases curtas e as ilustrações viabilizam a leitura por parte do leitor que ainda está aprendendo a decodificar a língua escrita. Mas o uso destes livros, justamente pelo seu texto curto e pela riqueza das ilustrações, também deve ser encorajado em outros níveis de escolaridade com o objetivo de catalisar a formação de um leitor consciente, crítico e apto à fruição do estético. Perceber o livro como um todo, como um objeto, é o primeiro passo para a consciência da forma como parte da narrativa; e o picture book facilita essa visão geral e a releitura analítica. Para exemplificar como o leitor pode enriquecer a leitura e participar ativamente da construção de sentido, o trecho da viagem de barco, onde a ilustração mostra Max encontrando um monstro marinho (que não é referido no texto verbal) é bastante prolífico. É interessante mostrar como essa figura pode abrir relações dialógicas intratextuais e intertextuais e mostrar a riqueza de realizar inferências, projeções e digressões a partir dela. 120 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Entre outras coisas, essa passagem do livro pode fazer lembrar o Leviatã, monstro marinho de grandes proporções que assombrava o imaginário dos navegadores modernos. A representação figurativa do Leviatã muitas vezes é a de um monstro com uma cabeça semelhante à de uma lula. Na bíblia ele aparece descrito como um crocodilo, um peixe ou uma baleia gigantes. Mas o Leviatã retratado por Gustave Doré lembra bastante o monstro de Max, por também ter uma cabeça de dragão. Perceber essa aproximação traz nova significação para o monstro de Max, que pode então deixar de ser apenas uma “wild thing”, assustadora, poderosa, imprevisível e indomável, para representar também o medo do desconhecido e o medo que pode impedir o alargamento dos horizontes. Pode-se pensar essa referência como uma forma dialógica da voz do narrador: o leitor pode relativizar o ponto de vista expresso na primeira camada do texto e se permitir outras interpretações que não aparecem no texto de forma direta. O monstro pode deixar de ser somente o “monstro”, esse “algo que não se deve ser” ou que deve ser evitado, para se transformar em algo externo que deve ser enfrentado. Ou os dois. Seja o instinto indomado que nos torna intratáveis e solitários ou o medo que paralisa as novas descobertas, ambos devem ser objeto de reflexão. É importante denotar que reflexão é essa. Candido dizia que o universo da fabulação é necessário a todo homem e habitá-lo é condição essencial para a saúde do espírito. Muitos autores julgam, por exemplo, que os contos de fadas tem parte de seu valor pelo fato de os leitores projetarem partes deles mesmos em cada uma das diversas personagens do conto, funcionando assim como um “repositório psicológico de elementos contraditórios do eu” e como palco para representação e vivência de conflitos interiores. Embora muitos dos leitores possam se projetar na história de Max, inclusive usando a ilustração para vivenciar o percurso da história da personagem, e autores como Waage descreverem a jornada de Max como uma possibilidade de reflexão e conhecimento pessoal, sem dúvida não é a isso que a palavra reflexão faz referência nesse ensaio. O que se nomeia no parágrafo acima como “objeto de reflexão” quer apenas apontar para o valor de ressaltar essas possibilidades do texto, se refere ao campo abstrato do pensamento complexo, não se refere a reflexões utilitárias para trabalhar as emoções, por exemplo. Certamente, a figura marinha pode trazer a lembrança do livro de Thomas Hobbes, cujo título é Leviatã, onde o autor apresenta fundamentos que justificam o poder do estado absoluto. O importante é notar a possível relação e menos aproveitar o tema como conteúdo. Na história de Sendak, logo depois do encontro de Max com o monstro marinho, o menino é coroado rei do “sítio das coisas selvagens” (como na tradução portuguesa), segura um cetro como um rei e ele mesmo é chamado de monstro (“the most wild thing of all”, “o mais selvagem de todos”). Na capa do livro de Hobbes, em geral, figura um rei de proporções monstruosas emergindo do mar, referência ao título, Leviatã, que remete ao monstro marinho. No livro de Sendak, Max também vem do mar e também se comporta como um rei absolutista. Ele comanda com seu cetro: “let the wild rumpus start!” (“deixe a bagunça selvagem começar!”) e depois, subitamente, manda todos pararem e irem para a cama sem o jantar e sem explicações. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 121


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Ousando resumir o pensamento de Thomas Hobbes de forma muito simplificada, neste livro o autor explicava e justificava o poder absoluto dos reis de seu tempo, afirmando que a natureza do ser humano é má, tende à desordem, à preguiça e ao caos, que por isso, para o bem de todos, seria preciso uma força de contenção, uma autoridade superior que asseguraria a paz entre os homens e o progresso, que seria o rei com poder absoluto. Sendak coloca Max numa situação de contenção da sua raiva, vendo os benefícios de não ser selvagem, os benefícios de se submeter à mãe (no livro temos o desejo dele de voltar para casa, a sopa quente) e, portanto, numa situação de ter que lidar com o controle de seus sentimentos e instintos. Sem dúvida, o progresso de Max é baseado na contenção e também o processo de civilização se baseia nos imensos benefícios da contenção dos instintos (desde fatores que levam ao crime: inveja, raiva, desejo de vingança, até questões como higiene e o respeito ao próximo na mesa do jantar, sempre são alvos de contenção no processo civilizatório). Somos essencialmente maus, como afirmava Hobbes? As crianças são más por natureza, com se pensava até não muito tempo atrás? É interessante pensar no discurso filosófico como discurso que explica o mundo mas também que muitas vezes legitima a ferida de seu tempo; é difícil perceber como vergonha, aquilo de que seu tempo justamente se orgulha, como diria Agamben. Quando o leitor tem essas referências em outros livros ou incorporadas em seu imaginário a leitura se torna ambígua e plurissignificada, pensar nessas questões aqui neste artigo não é pensar em explorá-las como conceito, é pensar na imagem da figura marinha como procedimento aberto a uma série de aproximações que vão adensando a leitura. Ainda pensando nesse mesmo monstro que surge do mar, um intertexto possível aparece com o livro “Max e os felinos” de Moacir Scliar, de 1981, onde o protagonista, numa das três partes do livro, tem de lidar com um jaguar que divide com ele um barquinho no meio do oceano. Esse livro é bem posterior ao de Sendak, mas a coincidência entre os nomes, a roupa de lobo de Max e a situação crítica dos protagonistas é um convite para a imaginação viajar. O livro de Scliar é político, e sua metáfora, como ele mesmo citou em entrevistas, aproxima o jaguar da ditadura. Concordo com os críticos que veem no livro de Sendak uma aproximação entre o uso do “wolf suit” e um desejo “selvagem” de Max, uma predisposição para a malcriadez. Suit, em inglês, é um conjunto de roupas que se usa para uma ocasião ou atividade especial. Vestir uma roupa de lobo parece, nesse caso, ser uma indicação do desejo de Max de agir como um selvagem, mas seus monstros têm forma de dragão, de porco, de ave. Os monstros no livro de Scliar são felinos por um medo específico do protagonista com relação a esses animais. É interessante pensar como a própria falta de limites e autocontrole e, por outro lado, uma ditadura em seu país – esses dois monstros e universos tão distantes – podem ser representados por uma besta, um animal superior em tamanho e força, que está muito próximo a você, enquanto você vaga à deriva, num barco minúsculo, no oceano. 2

Muitas outras referências e aspectos do imaginário imanente do leitor podem enriquecer a experiência de leitura deste livro. Mas o importante não é listá-los todos; é tomar consciência destas conexões. Importantíssimo é perceber que as questões mais

2. “Imaginário imanente”: o que Merleau-Ponty chama de “conhecimento antepredicativo”, uma memória dos órgãos dos sentidos; ao que Zumthor se refere em seu artigo “O empenho do corpo” (pp. 80-82) como a base do fato poético, e cita: “nossa percepção do real é frequentada pelo conhecimento do virtual”.

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ricas e interessantes levantadas pelo texto não derivam de seu conteúdo, ou do seu sentido explícito, ou sequer da narrativa verbal, nesse caso. As melhores reflexões são acessíveis apenas para o leitor que está atento aos aspectos formais do livro, pois “Onde vivem os monstros” é um texto literário: enriquece e transforma o leitor em agente ativo do conhecimento, interage com o espírito alerta; um livro belo, lacunar e nuançado. Essa “descoberta” do processo da leitura “pessoalmente significada”, evidenciando essas possíveis correlações, parece artificial quando abordada de uma forma sistemática e dentro do escopo de um artigo, mas é um processo que em sua essência é cotidiano e natural. É que essas associações, embora complexas, sempre estão presentes (em menor ou maior grau de intensidade e volume, dependendo do interesse, da maturidade e do repertório do leitor). Os leitores não leem letras, leem signos; Saussure afirmava que os signos são o resultado da união do significante e do significado e vêm carregados de simbologia. Mas, em geral, essas associações não são objeto de elaboração e muitas vezes sequer são trazidas à consciência, acabam por refletir numa sensação global e amorfa em relação ao texto, expressa no gosto: gosto, não gosto, ignoro, não entendo. É essa simbologia das palavras e das coisas que evidencia como a riqueza lexical e imagética pode ser determinante para a abertura do texto. Um texto com palavras que não “alertam” os sentidos perde em substância e em complexidade. A própria realidade percebida é uma realidade interpretada. A maior riqueza, talvez, desta tomada de ciência da participação ativa no texto é que esse processo de apropriação de significados que ocorre diante do livro, também ocorre diante das outras coisas do mundo, a partir das referências e do universo simbólico específico do indivíduo ou de sua cultura. Quando o leitor enriquece o seu “olhar” sobre o texto, aparelha também o seu olhar sobre a realidade. Uma “leitura” passiva e acrítica do mundo empobrece a própria existência. Umberto Eco dizia que o texto é “um mecanismo concebido para suscitar interpretações”. Esses 'mecanismos' ou procedimentos são os aspectos formais que abrem o texto e devolvem à escrita o seu devir. Apenas parcialmente dependente das intenções do autor, a verdadeira leitura ocorre no imaginário do leitor ou, como dizia Barthes, o verdadeiro lugar da escrita é a leitura. Mas uma situação de puro deleite para o leitor é, como dizia Eco, perceber “a piscadela do texto”. Vendo essa piscadela como esse mecanismo que alerta os sentidos do leitor, Eco afirmava que o texto é “mecanismo concebido a fim de produzir seu leitor-modelo”. É a leitura que forma o leitor. Mesmo que não haja uma inclinação pessoal para a apreciação da arte em toda a sua profundidade, a capacidade de perceber a estrutura e de operar na complexidade do texto é fundamental ao desenvolvimento da linguagem. E a linguagem é ferramenta do pensamento, da aprendizagem e da expressão, portanto bem inalienável do indivíduo e de sua sociedade, afinal não são as mentes inertes que movem o mundo.

Geovanina Maniçoba Ferraz é escritora e estudante de especialização em literatura na PUC. Publicou, entre outros, o livro de contos Boi sem asas (Dobra, 2012). Celuzlose 10 • Dezembro 2013 123


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A poesia dramática de Percy Bysshe Shelley por Adriano Scandolara

Percy Bysshe Shelley (1792-1822), além de marido de Mary Shelley – que, ironicamente, se tornou mais famosa que ele, especialmente por conta de seu romance, Frankenstein – foi um poeta romântico, participante daquilo que podemos ver como um segundo momento do Romantismo inglês, ao lado de Lord Byron e John Keats, e que sucedeu Wordsworth e Coleridge, apesar de estes dois últimos acabarem sobrevivendo a todos os três anteriores. Shelley, por sua vez, apesar da pouca circulação da obra durante o seu (curto) tempo de vida, foi lido e imitado ad nauseum pelas gerações que se sucederam, de Dante Gabriel Rossetti, Algernon Charles Swinburne e Robert Browning até William Butler Yeats e Wallace Stevens, para, então, cair no anonimato com o Modernismo inglês e com o movimento americano da Nova Crítica, junto com o restante dos românticos, que passaram a ser vistos como “inocentes”, “piegas”, “afetados”, “afeminados”, “sentimentais”, etc. Tal preconceito, por sinal, perdura até hoje – basta ver o que vem à mente quando se pensa na expressão “música romântica” – mas, felizmente, isso parece estar sendo superado pouco a pouco, conforme tradutores e críticos vão reencontrando alguma graça nos românticos, como Augusto de Campos fez em 2009 com as traduções de Keats e Byron, e André Vallias traduzindo do alemão a obra de H. Heine que foi publicada em 2011. No entanto, Shelley era um inconformado: envolvido em escândalos pessoais, expulso de Oxford por fazer circular um panfleto intitulado A Necessidade do Ateísmo, censurado em várias de suas obras por conta de seu teor político, incluindo uma tradução peculiaríssima do Banquete de Platão, que só circulou após sua morte. Como outro contemporâneo seu, William Blake, a obra de Shelley compõe uma teologia singular, equiparando o impulso que leva o homem à religião e ao mito ao poder da linguagem poética, e oferecendo-a como alternativa à linguagem oca, falsa, fria, desgastada do cotidiano, onde predomina o ordinário senso comum e o discurso de poder e de manutenção da ideologia dominante. É claro, isso não passa de um resumo brutal e grosseiro de um trabalho de milhares e milhares de versos, mas basta para observar os ecos daquilo que veríamos mais tarde na ideia de religião da arte do Simbolismo, na visão nietzscheana da linguagem como composta de metáforas gastas e no célebre dito de Mallarmé da poesia para “purificar as palavras da tribo”. 126 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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O poema a seguir é notável tanto pelo uso de formas típicas do poeta – i.e. o uso de versos em métricas irregulares, mas ainda assim musicais (tanto que até mesmo Eliot, que não simpatizava com Shelley, admitia sua musicalidade) e uma estrutura de coros, como no teatro grego antigo – quanto pela temática de impulso mitopoético que domina a melhor porção de sua poética.

Intitulado “Ode to Heaven”, como veremos, seria talvez mais apropriado denominá-lo uma anti-ode, conforme suas partes marcam três perspectivas sobre o posicionamento da humanidade no universo: primeiramente, a dos deístas do século XVIII; depois, a perspectiva platônica do mundo presente como uma ilusão imperfeita se comparada com a realidade espiritual; e, por último, uma visão que desdenha da ideia da humanidade como sendo relevante no grande esquema das coisas (como afirmam Reiman & Freilstat na página 296 da Norton Critical Edition de Shelley), como extensão de um pensamento desdenhoso da própria relevância do mundo natural, sendo, para Shelley como para Blake, “as dust upon my feet”. O que confere valor na relação mítica entre a humanidade e o mundo natural, então, seria a capacidade criativa do ser humano, capaz justamente de estabelecer esse tipo de relação – e é exatamente isso que este poema faz, em sua materialidade, ao mesmo tempo em que celebra. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 127


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ODE AO CÉU

CORO DE ESPÍRITOS: Cúpula da noite clara! Paraíso de luz áurea! Sem fim, Vasto, Ilimitado, És agora e fostes ontem! Do presente e do passado Do eterno Quando e Onde, A câmara, o templo e o lar, Domo, velário estelar, De atos e de eras por passar! Alentas ‘sferas gloriosas, Vivas, que nas tenebrosas Selvas e voragens tuas, São da Terra a companhia E o alvo gelo das luas E astros de coma luzidia E outros mundos verdejantes E poderosos sóis distantes Átomos de luz, ofuscantes. Mesmo teu nome é como um deus, Céu! Pois habita os templos teus O Poder no qual vê o homem Seu feitio, como um espelho. Gerações vêm, depois somem E a ti veneram de joelho. Eles mesmos e seu panteão, Fugazes, como um rio se vão: Persiste – a tua imensidão. –

UMA VOZ MAIS REMOTA: És o átrio da Mente, apenas, Onde vão-se ânsias terrenas Qual inseto que fulgura Em gruta de estalactites; Só o portal da sepultura Onde um mundo de deleites De teu feito mais sobejo Fará não mais que um lampejo Da sombra de um turvo ensejo! UMA VOZ AINDA MAIS ALTA E REMOTA: Paz! Filho do átomo, coroas O abismo de ódio com tais loas! Que é o céu? E o que és e fazes Em tão estrita vivência? Que são sóis e astros fugazes Com o instinto da Essência De que és uma ínfima parte? Gotas que o mundo comparte Nas mais finas veias! Parte! Que é o Céu? Globo de orvalho, Escorrendo entre o farfalho Dalguma jovem flor despertada Entre dimensões pretensas: Nuvem de sóis intocada, Dobram-se órbitas imensas, Nesta esfera a sucumbir Com milhões de outras vão se unir E vibrar, faiscar e sumir.

(Tradução: Adriano Scandolara) 128 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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ODE TO HEAVEN

CHORUS OF SPIRITS: Palace-roof of cloudless nights! Paradise of golden lights! Deep, immeasurable, vast, Which art now, and which wert then Of the Present and the Past, Of the eternal Where and When, Presence-chamber, temple, home, Ever-canopying dome, Of acts and ages yet to come! Glorious shapes have life in thee, Earth, and all earth’s company; Living globes which ever throng Thy deep chasms and wildernesses; And green worlds that glide along; And swift stars with flashing tresses; And icy moons most cold and bright, And mighty suns beyond the night, Atoms of intensest light. Even thy name is as a god, Heaven! for thou art the abode Of that Power which is the glass Wherein man his nature sees. Generations as they pass Worship thee with bended knees. Their unremaining gods and they Like a river roll away: Thou remainest such – alway! –

A REMOTER VOICE: Thou art but the mind’s first chamber, Round which its young fancies clamber, Like weak insects in a cave, Lighted up by stalactites; But the portal of the grave, Where a world of new delights Will make thy best glories seem But a dim and noonday gleam From the shadow of a dream! A LOUDER AND STILL REMOTER VOICE: Peace! the abyss is wreathed with scorn At your presumption, atom-born! What is Heaven? and what are ye Who its brief expanse inherit? What are suns and spheres which flee With the instinct of that Spirit Of which ye are but a part? Drops which Nature’s mighty heart Drives through thinnest veins! Depart! What is Heaven? a globe of dew, Filling in the morning new Some eyed flower whose young leaves waken On an unimagined world: Constellated suns unshaken, Orbits measureless, are furled In that frail and fading sphere, With ten millions gathered there, To tremble, gleam, and disappear.

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Os dois poemas na sequência, têm uma história interessante que eu gostaria de contar e fazer um pequeno comentário a respeito. Mary Shelley, por volta de 1820, escrevia uma peça em versos intitulada Midas, que, como esperado, tinha a temática do rei mitológico. Que Midas era o rei a quem foi concedido o dom de transformar tudo que tocasse em ouro já é um lugar-comum, mas o episódio mitológico que Mary Shelley explorava era o relatado em Ovídio (Metamorfoses, livro XI) de que Pã havia desafiado Apolo para ver quem era o cantor mais talentoso. Tmolo, o espírito de uma montanha da antiga região da Lídia, serviu de juiz divino, e Midas, como juiz humano. Tmolo decide a favor de Apolo, mas Midas prefere a canção de Pã e, por isso, é castigado com orelhas de asno que são concedidas por Apolo. No drama de Mary Shelley, então, as canções dos dois deuses foram escritas por seu marido, Percy Shelley. Infelizmente, Mary não conseguiu achar quem publicasse sua peça, por isso acabou publicando, em 1824, os dois hinos separadamente na edição de poemas póstumos de seu marido. Cada um dos hinos é uma apresentação do próprio deus que o canta (o que faz com que eles sejam, algo bizarramente, hinos de e para si próprios): Apolo, como deus do sol, da razão, da poesia, da medicina e de tudo que o engenho humano possa produzir, e Pã, como deus da natureza, do universo, do todo (lembrando que “pan”, em grego, significa “tudo”). Há, assim, distinções muito bem marcadas no que eles cantam e no modo como cantam, que, no fundo, representam uma separação entre o humano e o divino. A canção de Apolo é uma canção do eterno, do ideal e do imutável. De suas 6 estrofes, 5 tratam de descrever seu trajeto no céu, como o trajeto do sol, da alvorada ao crepúsculo, terminando com uma chave de ouro que resume sua função divina. Ela é também mais egocêntrica e nela predomina a primeira pessoa do singular, conforme ele descreve tudo que faz: ele se levanta, ele fulmina a maldade com sua luz, ele desce e ele conforta as nuvens, toda luz de tudo pertence a ele. E sua história também é eterna: ele, invariavelmente, se levanta e se deita todos os dias. Pã, por outro lado, canta a partir de uma experiência muito mais próxima da humana. Primeiro, que sua história começa a partir de quando Apolo se retira, quando a cena é “A luz do dia moribundo”. Segundo, que ele canta não de uma terra afastada, mas de uma terra dedálea (remetendo ao personagem mitológico Dédalo, pai de Ícaro), i.e., como um labirinto, no qual ele próprio se encontra, apesar de ser também um deus. Ao contrário de Apolo, que interage com todas as coisas, mas se mantém isolado por conta de sua divindade que o separa do reino da mutabilidade a que todos os mortais estão sujeitos, Pã é inclusivo. Assim, o segundo verso diz “chegamos, chegamos” (“we come, we come”), e ele constantemente faz referência aos seus interlocutores: Tmolo, Apolo e até uma segunda pessoa do plural que engloba quem quer se seja o leitor/ouvinte. 130 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Sua proximidade do mundo mortal também se reflete na história narrada, na terceira estrofe, que é a história de um amor frustrado, o episódio de Pã e a ninfa Siringe, que se torna um caniço para fugir dele (e é desse caniço que o deus faz a flauta com a qual toca suas canções). E, novamente, ao contrário da narrativa de Apolo, sua história é um acontecimento único, e que opõe desejo e realidade – daí, portanto, a dor de seu “doce flauteio”, que faz com que o poema seja de um tom mais irregular. Apolo é constante no tom celebratório que domina o poema inteiro, enquanto Pã, como ele mesmo diz, muda seu flauteio e fica mais melancólico na terceira estrofe, ao tratar dessa temática dolorosa. Essa oposição entre regularidade e irregularidade também se traduz na forma: enquanto o hino de Apolo obedece um ideal mais abstrato de simetria, com seus 36 versos dispostos em 6 estrofes bastante convencionais de 6 versos cada uma, em pentâmetro jâmbico e esquema de rimas ababcc; Pã se permite uma liberdade maior. Com o mesmo número de versos totais, ele faz 3 estrofes de 12 versos em esquema ababxcdcdeex, onde x representa o verso que serve de refrão, terminando sempre com a palavra “pipings” (“flauteio”). Sua métrica também é radicalmente distinta: em vez de versos fechados e bem definidos, temos versos cuja medida depende do número de sílabas fortes por verso, e o poema começa com versos curtos, de poucas tônicas, que rapidamente se alongam, conforme o poema corre, criando um efeito visual fluido e bastante diferente da regularidade do hino apolíneo.

Sendo assim, não deve ser nenhuma surpresa que Midas, humano, tenha preferido a canção de Pã: ao cantar da experiência, da dor e da mutabilidade, Pã se faz muito mais facilmente comunicável aos mortais do que Apolo com sua perfeição divina. O modo como Shelley dá voz aos dois deuses, no entanto – que também remete ao trabalho dialógico de John Milton com os poemas “L'Allegro” e “Il Penseroso” – é magistral, e fiz meus melhores esforços para reproduzir, em tradução, seu trabalho que, nos mínimos detalhes, permitem diferenciar os dois deuses. Para quem, por acaso, estiver interessado em se aprofundar um pouco mais no assunto, indico o artigo “Poetry of Skepticism” do crítico Earl Wasserman, presente na Norton Critical Edition da Poesia e Prosa de Shelley. Seguem os poemas: Celuzlose 10 • Dezembro 2013 131


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HINO DE APOLO As vigilantes Horas que me assistem, Pelas texturas de astros capeado Dos raios do luar que inda persistem, E abanam-me sonhos do olho agitado, – Despertam-me quando a Mãe, gris aurora, Diz que os sonhos e a lua vão-se embora. Pois me alço e galgo a cúpula Celeste, Caminhando nas ondas e montanhas, Nas escumas meu robe deixo, ao leste; Meus passos calçam nuvens com suas chamas; Grutas comigo acendem-se, e o ar Desnuda a terra para eu a abraçar. A luz do sol, meus dardos, é letal Ao logro, que ama a noite e teme o dia, Todo homem que planeja ou faz o mal Me evita e minha glória luzidia. Boas mentes e ações se fortalecem, E então no reino da Noite fenecem. Nutro a nuvem, e o arco-íris e a flor Com as cores etéreas que lhes tingem; Astros e a lua, com seu esplendor, Com meu poder, qual robe, se cingem; Quaisquer lâmpadas na Terra ou no Céu São porções de um só poder, que é o meu. No Céu, ao meio-dia, subo ao pico, Contrafeito depois, faço a descida Para as nuvens do entardecer atlântico, A franzir e chorar minha partida: Quem mais amável do que eu sorridente, Ao confortá-las na ilha do poente? Sou o olho com o qual todo o Universo Se vê e conhece sua feição divina; Toda harmonia de instrumento e verso É minha, todo augúrio e medicina, Luz da arte ou mundo; – tem nesta canção Por si só glória e comemoração.

HYMN OF APOLLO The sleepless Hours who watch me as I lie, Curtained with star-inwoven tapestries From the broad moonlight of the sky, Fanning the busy dreams from my dim eyes, – Waken me when their Mother, the gray Dawn, Tells them that dreams and that the moon is gone. Then I arise, and climbing Heaven’s blue dome, I walk over the mountains and the waves, Leaving my robe upon the ocean foam; My footsteps pave the clouds with fire; the caves Are filled with my bright presence, and the air Leaves the green Earth to my embraces bare. The sunbeams are my shafts, with which I kill Deceit, that loves the night and fears the day; All men who do or even imagine ill Fly me, and from the glory of my ray Good minds and open actions take new might, Until diminished by the reign of Night. I feed the clouds, the rainbows and the flowers With their aethereal colours; the moon’s globe And the pure stars in their eternal bowers Are cinctured with my power as with a robe; Whatever lamps on Earth or Heaven may shine Are portions of one power, which is mine. I stand at noon upon the peak of Heaven, Then with unwilling steps I wander down Into the clouds of the Atlantic even; For grief that I depart they weep and frown: What look is more delightful than the smile With which I soothe them from the western isle? I am the eye with which the Universe Beholds itself and knows itself divine; All harmony of instrument or verse, All prophecy, all medicine is mine, All light of art or nature; – to my song Victory and praise in its own right belong.

(Tradução: Adriano Scandolara) 132 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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HINO DE PÃ De bosques e altivas plagas Chegamos, chegamos; De ilhas fluviais onde as vagas Vão se calando Ouvindo meu doce flauteio. O vento nas canas e juncos, Abelhas nas flores de timo, Aves e murteiros juntos, Cigarras nas copas ao cimo, E os lagartos embaixo no solo Estavam tão quietos quanto o velho Tmolo, Ouvindo meu doce flauteio. Fluido, o Peneu corria, E todo o Tempe fundo Sob a sombra do Pélion cobria A luz do dia moribundo, Veloz com meu doce flauteio. Os Faunos, os Silfos, Silenos, E as Ninfas de mares e matas, Às margens de aquosos terrenos, E à borda de grutas orvalhadas, E todos que então se fizeram presentes, Como tu, Apolo, de amor estavam silentes, A invejar meu doce flauteio. Cantei os astros em dança, Cantei a dedálea terra, E o Céu – e Amor, e Morte e Esperança E a gigantesca guerra – E então mudei meu flauteio, – Cantando como encalcei uma dama No menéleo vale e agarrei um caniço Deuses e homens, assim nos enganam! Sangra nosso peito, quebradiço: Todos choraram, como ora quereis, Se inveja o sangue em gelo não vos fez, Pela dor do meu doce flauteio.

HYMN OF PAN From the forests and highlands We come, we come; From the river-girt islands, Where loud waves are dumb Listening to my sweet pipings. The wind in the reeds and the rushes, The bees on the bells of thyme, The birds on the myrtle bushes, The cicale above in the lime, And the lizards below in the grass, Were as silent as ever old Tmolus was, Listening to my sweet pipings. Liquid Peneus was flowing, And all dark Tempe lay In Pelion’s shadow, outgrowing The light of the dying day, Speeded by my sweet pipings. The Sileni, and Sylvans, and Fauns, And the Nymphs of the woods and the waves, To the edge of the moist river-lawns, And the brink of the dewy caves, And all that did then attend and follow, Were silent with love, as you now, Apollo, With envy of my sweet pipings. I sang of the dancing stars, I sang of the daedal Earth, And of Heaven – and the giant wars, And Love, and Death, and Birth, – And then I changed my pipings, – Singing how down the vale of Maenalus I pursued a maiden and clasped a reed. Gods and men, we are all deluded thus! It breaks in our bosom and then we bleed: All wept, as I think both ye now would, If envy or age had not frozen your blood, At the sorrow of my sweet pipings.

(Tradução: Adriano Scandolara) Celuzlose 10 • Dezembro 2013 133


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Por fim, este último poema é, na verdade, um pedaço de um poema maior, ou seja, o drama lírico de 1820 intitulado Prometheus Unbound, que optei por traduzir como Prometeu Desacorrentado. O poema consiste em uma reelaboração romântica da peça perdida de Ésquilo com o nome Promētheus Lyomenos, que faz parte da trilogia do tragediógrafo sobre o mito de Prometeu. Como sabemos, Prometeu foi o titã punido por Zeus após roubar o fogo dos deuses e dá-lo à humanidade, e a peça esquiliana Prometeu Acorrentado descreve essa punição em detalhes, da crucificação do titã no Cáucaso ao seu lançamento no Tártaro. Há algumas coisas que complicam a situação, porém: Prometeu (do grego pro + metheus, que significa algo como pré-vidente) sabe de coisas acerca do futuro, concernentes à queda de Zeus nas mãos de um filho mais forte do que ele, que seria gerado com Tétis. Zeus, por sua vez, envia Hermes para interrogar Prometeu, que, apesar de resistir na primeira peça, acaba, segundo a narrativa mitológica, entregando o segredo. Zeus, então, dá Tétis em casamento a Peleu que, com ela, se tornam os pais de Aquiles, e Prometeu é finalmente libertado, nas mãos de Hércules – considerando-se, daí, que ele é acorrentado logo após a Titanomaquia, e Hércules é descendente de Io, que aparece em Prometeu Acorrentado, passam-se pelo menos 12 gerações humanas ao longo desse ciclo mítico (mais talvez, se considerarmos a possibilidade de o Hércules que o liberta ser o Hércules morto e divinizado). Mas Prometeu recebe uma verdadeira veneração pelos poetas românticos tal como não possuía entre os gregos (que, até onde pode-se notar, enxergavam a sua resistência ferrenha como uma falha de caráter). São prova disso os inúmeros poemas dedicados a ele, como o da autoria de Goethe, de Byron, a peça musical de Beethoven (As Criaturas de Prometeu) e o próprio Prometeu Desacorrentado de Shelley, entre outros exemplos que me fogem à memória no momento. Em consonância com esse sentimento romântico, Shelley, conforme expresso em seu prefácio, era “avesso a uma catástrofe [no sentido dramático, de conclusão de uma peça teatral] tão flébil quanto a reconciliação do Campeão com o Opressor da humanidade” e, por isso, altera o final para que a libertação de Prometeu só se dê com a queda de Jove. Há mais coisas em questão, no entanto, que não convém comentar aqui, pelo bem da brevidade, mas Jove representa, na peça de Shelley, toda forma de poder e violência – e, com a sua queda, toda forma de poder e violência é abolida no mundo, humano e natural. 134 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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Prometeu Desacorrentado tem 4 atos: o primeiro se concentra no sofrimento de Prometeu; o segundo tem como foco a viagem de Ásia e Panteia, duas oceânides (em Prometeu Acorrentado, o coro é composto de oceânides, ninfas filhas de Oceano, que tentam consolar Prometeu), que vão em uma jornada até Demogórgone (a entidade destinada a derrubar Jove: é uma criação de Shelley com base numa invenção mitológica medieval); o terceiro ato, por sua vez, é o que começa com a queda de Jove propriamente dita; e o quarto encerra a peça com uma canção de celebração, em que Demogórgone fornece a fórmula para regenerar o mundo caso ele caia outra vez na tirania de algum novo opressor.

O trecho a seguir consiste nas duas primeiras cenas do ato 3 e representa o momento em que Demogórgone invade o Olimpo e destrona Júpiter, seguido por um diálogo sereno entre Apolo e Oceano que descreve a queda do tirano e a paz que é estabelecida logo após. Segundo Bloom, esta segunda cena contém alguns dos melhores versos de Shelley. Celuzlose 10 • Dezembro 2013 135


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O original, tanto desse trecho, quanto do Prometheus Unbound inteiro, pode ser conferido http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Texts/prometheus.html#3.1

clicando no link acima.

PROMETEU DESACORRENTADO ATO III Cena 3.1. Céu. Júpiter no seu trono; Tétis e as outras deidades em assembleia. JÚPITER Congregados poderes do céu, sócios Da força e glória deste a quem servis, Regozijai! Onipotente agora Sou, tudo me é submisso; solitária, A humana alma, como fogo vivo, Queima ao céu ainda com feroz censura e dúvida E lamentos e preces relutantes, Lançando insurreições, que tornar podem Nosso império inseguro, embora fixo Na ancestre fé, e o coevo infernal, medo; E pelas minhas pragas pelo ar pêndulo, Qual neve em picos nus, cai floco a floco, Agarrando-o, na noite da ira minha Galga as penhas da vida, passo a passo, Que a fere, como o frio fere o pé nu Sobre a miséria permanece, excelsa, Irreprimida, mas ruinosa em breve: Mesmo agora gerei portento estranho, A criança fatal, terror da terra, Que aguarda chegar destinada hora, Do ermo assento levar, de Demogórgone Hedionda força em membros sempre-vivos Trajando o torvo incontemplado espírito, A redescer e a chama pisotear. Jorra o vinho celeste, Ganimedes, Encha qual fogo os cálices dedáleos, E do solo divino enflorescente As harmonias vossas todas subam, Como orvalho da terra sob estrelas: Bebei! Que o néctar fluindo em vossas veias Seja a alma da graça, imortais Deuses, Até a exultação ‘stourar em única Voz, qual canção de elísio vento. 136 Celuzlose 10 • Dezembro 2013


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E tu Ascenda ao lado meu, velada em luz Do desejo que faz-te una comigo, Tétis, da eternidade clara imagem! Quando gritastes, “Insofrível força! Deus! Poupai-me! Destroem-me as prestas chamas. Penetrante presença; é o meu ser Como aquele em orvalho liquefeito No veneno da sépis da Numídia, E afunda em suas bases”, mesmo agora Dois espíritos fortes um terceiro Fizeram, mais que os dois, que ora incorpóreo, Aqui paira, sentido, incontemplado, Esperando encarnar, e que se eleva (Ouvis o estrondo de ígneas rodas contra Os ventos?) de onde senta Demogórgone. A vitória, a vitória! Não o sentes, Mundo, o tremor do carro seu a troar No Olimpo? JÚPITER [A carruagem das horas chega Demogórgone desce e se move em direção ao trono de Júpiter.

Prodígio detestado! Sob o mais baixo cárcere titânico Piso-te! Não?

Forma horrenda, que és? Fala! DEMOGÓRGONE O eterno. Nome mais atroz não peças. Desce e segue-me até o profundo abismo. Filho teu sou, como és filho a Saturno; Mais que ti forte: e juntos de habitar Hemos nas trevas. Teus trovões não ergas. Tirania do céu ninguém mais há De reter, reassumir, manter pós ti: Mas se quiseres, como o destino é De pisoteados vermes debaterem-se, Oponha-me.

Clemência! Ó, clemência! Sem dó, alívio, livramento! Ó, Que em juiz meu fizésseis meu imigo, Preso, crestado por vingança infinda, No Cáucaso! Menor ruína seria. Bom, impávido e justo, não é ele Senhor do mundo? O que és tu, então? Sem fuga ou rogo! Pois comigo afunde, N’ampla vaga da ruína afundaremos, Como abutre e serpente, que exauridos Caem, numa inextricável luta envoltos, Num mar sem praias. Que os infernos soltem Seus montes de ígneos, árdegos oceanos, E imersa co’eles ao vazio sem fundo Eu e tu e esse mundo desolado, Conquistador e conquistado, e restos Da razão de enfrentarem-se. Ai, Ai! Elementos rebelam, zonzo afundo Ao fundo, sempre, sempiterno, ao fundo E, qual nuvem, o imigo meu acima, Tolda-me a queda, triunfal! Ai, Ai!

(Tradução: Adriano Scandolara) Celuzlose 10 • Dezembro 2013 137


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Cena 3.2. A foz de um grande rio na ilha de Atlântida. Oceano é descoberto reclinando-se próximo à praia; Apolo está em pé ao seu lado. OCEANO Ele caiu sob seu conquistador? APOLO Sim, findando-se a lida que turvou Meu orbe, e abalou os astros sólidos, Seu olhar em terror clareou o céu Com luz sanguínea, pelas grossas franjas Das trevas vitoriosas, com sua queda: Como a luz-estertor de um rubro dia, Que, de um rasgo entre nuvens flamejantes, Queima em voragens procelissulcadas. OCEANO Ao abismo afundou? Ao vazio negro? APOLO Um’águia envolta em nuvem carregada, As atônitas asas, pelo Cáucaso Embrenhadas nos vendavais, seus olhos Que o sol miraram sem se ofuscar, cegos Pelo alvo raio, e a saraiva dura A faz se debater, e enfim afunda Prostrada, e gelo aéreo nela prende.

138 Celuzlose 10 • Dezembro 2013

OCEANO Os campos do celirreflexo mar, Meu reino, imaculados arfarão, Ora, sob as correntes, como glebas Que o ar do estio oscila, fluirão rios Por populosos continentes, por Faustosas ilhas; de seu vítreo trono Azul Proteu, com áqueas ninfas, sombras De navios marcará, como mortais Veem o lenho da lua luminosa Com o alvo astro, a fronte do seu cego Nauta, no poente de vazante rápida Não mais seguindo por gemidos, sangue, Desamparos e a mista voz de mandos E escravidão; mas pela luz das flores Que ondas refletem, e os olores aéreos, E música de brandas, livres vozes, Mais doce música, a que adoram ‘spíritos.


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APOLO E eu feitos mirarei não que escurecem Minha mente com mágoas, como o eclipse Tolda a ‘sfera que guio; mas ouve, escuto O argênteo lude límpido do Espírito Sentado sobre Vésper. OCEANO Deves ir; Teus corcéis pararão à noite, adeus Até então, chamam-me com fome os pélagos Da calmaria azul de esmeraldeadas Urnas, plenas ao lado do meu trono. Nereidas sob o verde mar contempla, Membros fluem em correntes como o vento, Às fluidas comas levam alvos braços Com diademas de flor astral do mar, E a pressa de agraciar a grande irmã. [Ouve-se um som de ondas Carece o mar pascer de calmaria, Paz, monstro; chego já. Adeus. APOLO Adeus.

Adriano Scandolara nasceu em Curitiba, 1988. Poeta e tradutor, formado em Letras e mestre em Estudos Literários pela UFPR. Livro publicado: Lira de Lixo (Patuá, 2013). Integra o coletivo escamandro: www.escamandro.wordpress.com

Celuzlose 10 • Dezembro 2013 139


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Paulo Aquarone Tem onze títulos publicados e o seu trabalho já esteve exposto em diversos espaços como: Centro Cultural São Paulo, Caixa Econômica Federal, Centro Cultural Oduvaldo Vianna Filho – Castelinho do Flamengo, Biblioteca Nacional de Lisboa (comemoração dos 500 anos do Brasil), Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, Conexões Tecnológicas – Prêmio Sérgio Motta de Arte e Tecnologia, FILE (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica) no prédio da FIESP. Site: www.pauloaquarone.com

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142 Celuzlose 10 • Dezembro 2013

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