Carijo

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um passo-a-passo sobre como montar e como se produzir erva-mate nesta estrutura de secagem


Fotos de Jefferson Pinheiro


Mitologia Guarani* Deus Tupã habitou inicialmente a Terra e criou tudo o que aqui existe. Dos primeiros habitantes, o cacique e sua linda filha ficaram na mata ele por estar muito velho e não conseguir mais seguir sua tribo, ela para cuidar de seu pai. Um dia, um visitante enviado por Tupã foi muito bem recepcionado pelos dois, sem eles ao menos saberem quem era. Como retribuição, depois da generosidade demonstrada pelo pai e a filha, o mensageiro de Tupã se revelou e agraciou os dois com a muda de uma árvore. Ele ensinou que o velho cacique deveria colher suas folhas, secá-las, triturá-las e juntar o resultado com água para beber - isso lhe daria força e vigor. A árvore, por mais que fossem cortadas todas as suas folhas, voltaria a brotar e florir, sempre mais forte. O tempo passou, e Tupã imortalizou a filha do velho cacique, e a mesma foi transformada em deusa, Caá, protetora da erva-mate, árvore sagrada, símbolo da hospitalidade e fonte do chimarrão, herança guarani. *este texto é uma interpretação livremente inspirada nos depoimentos coletados com indígenas Guarani e de leituras de textos pesquisados


A montagem do carijo O carijo é o primeiro salto produtivo na produção da erva-mate. Inicialmente, os índios Guarani secavam a erva em chumaços de galhos amarrados e pendurados simplesmente sobre uma fogueira, ao que se denominavam de "macacos". Para aumentar a produção, se desenvolveu uma estrutura que secasse com o mesmo princípio uma quantidade muito maior de erva - e por muito tempo esta foi a maneira que os Guarani e imigrantes secaram a erva-mate, tanto para o consumo próprio como posteriormente para comercialização. O carijo consiste numa estrutura estilo estrado, erguido a uma determinada altura do chão, onde se colocam os feixes de erva-mate - ou "macacos" - e se faz um fogo baixo por horas para a secagem uniforme da erva. Existem várias maneiras de se fazer um carijo, as alturas e distâncias das hastes que erguem o estrado do chão dependem muito do quanto se quer secar de erva-mate e determinam também o tempo de secagem (quanto mais alto, mais tempo de secagem). Essas são variáveis que definem, inclusive, a qualidade e sabor do chimarrão. No caso desta cartilha, apresentamos um carijo para a secagem de cerca de 250 kg de erva sapecada em 12 horas. Primeiramente, procure uma área livre, distante no mínimo 5 metros de qualquer mata, onde serão enterradas as 4 hastes de 2,20 m, de madeira mais grossa, de preferência verde e descascada, para aguentar o calor, distantes cerca de 2 metros entre si, formando um quadrado. A altura para cima do chão fica em 1,80 m - onde o estrado será fixado a 1 m e se colocarão ainda duas guias horizontais de cada lado, uma a 1,30 m e outra a 1,60 m, de proteção para a erva não cair do carijo.


Mariano, montando o carijo em S찾o Miguel das Miss천es


Tigre, montando o carijo em São Miguel das Missões

As bases do estrado, onde posteriormente se atravessarão as hastes que formarão o mesmo, também devem ser de madeira mais grossa - não tanto quanto as hastes verticais dos cantos, mas mais grossas que as taquaras que se atravessarão para formar o estrado. Essas hastes, de preferência, de madeira verde e descascada. Depois de fixada a base ligando os cantos do carijo, fechando o quadrado, devem ser atravessadas as madeiras mais finas distantes cerca de 10 cm umas das outras, e as mesmas fixadas com pregos ou então amarradas com cipós ou corda de sisal - nunca material sintético tipo plástico. Neste modelo de carijo, das fotos aqui apresentadas, foram utilizadas madeiras de Branquilho (hastes verticais e base do estrado) e Laranjeira do Mato (hastes atravessadas do estrado e das guias de proteção) provenientes de uma mata plantada, de manejo. Sugerimos que as hastes mais grossas, verticais, sejam de alguma madeira abundante, de corte permitido, como o eucalipto, e as travessas todas sejam de taquara verde.


Resumindo, para construir um carijo 2 m x 2 m x 1 m, é necessário: - 4 moirões mais grossos de 2,20 m, que serão enterrados em buracos de 50 cm, distantes 2 m entre si - 4 hastes de taquara verde mais grossa, ou madeira de outra espécie, de 2,5 m, que farão a base do estrado, fixando-se a 1 m do chão nos moirões e fechando um quadrado - cerca de 23 taquaras verdes de 2,5 m (8 para as guias laterais - duas de cada lado - e 15 para o estrado) - cipó ou corda de cisal, pregos, martelo e serrote Depois de montado, são retiradas as sobras das madeiras e taquaras de cada lado com serrote, e o carijo deve terminar parecendo este aqui, construído na Carijada de São Miguel das Missões e com capacidade para 450 kg de erva sapecada. Assista ao vídeo do passo-a-passo constante nos extras do DVD do filme Carijo e confira como se fez a montagem do mesmo - você pode utilizar essas informações como base para a construção do seu próprio carijo!

Carijo pronto em São Miguel das Missões


Poda Depois de montado o carijo, se vai para a poda das árvores de erva-mate (Ilex paraguariensis). As árvores selecionadas devem estar preferencialmente sem fruto e fora da fase de floração - o que influencia no sabor da ervamate a ser produzida. Na poda, é preciso um certo cuidado com o corte para não machucar muito a árvore, de preferência que sejam golpes únicos e certeiros de facão, numa poda radical, que retirará praticamente toda a folhagem da mesma, deixando apenas o tronco principal e os galhos maiores da base com alguns pequenos ramos. A árvore voltará a brotar, mais fortemente a cada poda, podendose pensar um ciclo de 2 a 3 anos para uma nova colheita de erva para uma nova carijada.


Mariano executando a poda na carijada de S찾o Miguel das Miss천es


Sapeco Esta fase é o primeiro contato da erva-mate com o fogo, neste caso, de forma direta. Arma-se uma estrutura de proteção, de preferência com tronco de bananeira, por ser grosso, verde e úmido, e um fogo com lenha fina para gerar labaredas altas. Os galhos colhidos devem ser colocados rapidamente direto no fogo, o que fará com que haja uma desidratação brusca, gerando uma série de estralos altos, indicando o rompimento das membranas superficiais das folhas. É importante tomar cuidado para não queimar os ramos, pois isso influencia na qualidade e no sabor final da erva-mate a ser produzida.


Tigre, sapecando a erva em S찾o Miguel das Miss천es


Carijo O sapeco é feito com os galhos que saíram direto da poda. Para encarijar, é necessário quebrá-los em ramos menores, formando e fechando feixes no estilo "macaco" ou apenas os ajeitando agrupados, colocando-os em pé no estrado, com a "galhama" para baixo, o que permite com que a fumaça passe mais uniformemente por toda a extensão da erva. O fogo deve ser feito com o braseiro que sobra do processo de sapeco, com lenha semiverde, distribuída nos cantos da base do carijo. O que se quer com um carijo é a fumaça e o calor da mesma, não a chama, a labareda. É imprescindível ter água próxima ao carijo, pois com uma vasilha se faz constantemente o controle de alguma chama que venha a se desenvolver no braseiro. NUNCA descuide do fogo, observe atentamente qualquer foco de chama e o extingua rapidamente. Na fase final da carijada, a ervamate se torna muito comburente, e qualquer faísca pode fazer com que o seu carijo vire uma imensa fogueira feroz e implacável.


Amigo, em S찾o Miguel das Miss천es


Ronda A ronda do carijo é tradicionalmente o momento de cuidado e curtição da carijada. Enquanto alguns estão atentos ao fogo, outros, para não deixá-los sós e também para aproveitar o aconchego e a união, fazem uma noite inteira de festa. Seja com gaiteiros, com trovadores, música ou carteado, tudo vale para ajudar a passar o tempo e manter acesa a chama da solidariedade que vai dar um sabor a mais na hora de sorver o primeiro mate ao amanhecer. Importante! De preferência, quem estiver cuidando do fogo não deve se entusiasmar muito no consumo de bebidas alcoólicas nem se afastar por muitos minutos do entorno do carijo!


Sandro da Gaita Ponto, carijada em Panambi


Cancheamento, soque e pilão Quando a erva estiver pronta, inicia o processo de cancheamento. Para saber se está no ponto, basta apertar em cada canto do carijo um punhado de erva, se ela quebrar facilmente, está pronta para ser processada - já aproveite e faça o primeiro mate, de erva mais grossa, exatamente com estes punhados que você está pegando direto do carijo. Comece a retirar cuidadosamente os ramos - ou "macacos" - e coloque-os ou sobre uma lona grossa ou sobre um tablado/caixote de madeira. Ali vai acontecer o chamado cancheamento. Na lona grossa, tradicionalmente se utilizam grandes "facões" de madeira, no tablado/caixote de madeira, é possível usar pás de corte para fazer este primeiro processo de trituração da erva. Bata até que quebrem-se parte dos pauzinhos dos ramos e que não se observem mais folhas inteiras. Aqui, nesta fase, há mais uma oportunidade de se experimentar o chimarrão da erva recém produzida, o chamado "mate moqueado", feito com a erva triturada mais fina que fica no fundo de cada leva de erva cancheada.


Depois, leva-se a erva para um processo de trituração mais intenso, que pode tanto ser feito em pilão como em soque mecânico. Para escolher se ficará mais fina ou mais grossa, basta observar à medida que se vai avançando e determinar o ponto da erva.

Carijada em São Miguel das Missões


Mate servido Com a erva pronta, escolha o seu tipo de cuia, encha-a até a metade com erva-mate, vire a cuia com a mão tapando metade da abertura, acomode a erva na horizontal, derrame água fria bem de leve, com a cuia ainda inclinada, até o limite da erva, e deixe-a descansando enquanto você aquece a água - a erva vai inchar. Não ferva a água! Quando a chaleira chiar, está pronto. Pegue a bomba, tape o bocal com o dedão, coloque-a virando-a em um dos cantos do montinho de erva. Sirva o primeiro mate. Tome você, mesmo estando morno. Não faça cara feia. Sirva o segundo mate. Sinta o sabor defumado da erva recém socada delícia! Sirva outro mate, passe adiante e curta a satisfação coletiva de se beber um chimarrão carregado de conhecimento ancestral e sabor indescritível.


Tarquino, S찾o Miguel das Miss천es


Esta cartilha é um instrumento de auxílio para quem quer construir um carijo e produzir erva-mate artesanalmente para o seu consumo e dos amigos. Nada do que está aqui descrito é considerado o jeito certo de se fazer, mas é uma das formas que encontramos no nosso processo de pesquisa do projeto. Produzimos erva-mate duas vezes, uma num carijo já fundado e outra realizamos todos os processos de montagem. Em ambas as ocasiões, a erva-mate produzida deu um belo chimarrão! Utilize estas informações para entender este conhecimento ancestral, para saber como inicialmente o conhecimento indígena foi sendo mesclado com a cultura da produção mais massiva proveniente dos primeiro imigrantes europeus que vieram a esta terra para explorá-la. Monte o seu carijo, use as dimensões aqui apresentadas como base para a produção da sua própria erva-mate. Ao final, saboreie um chimarrão como você nunca saboreou antes, com gosto de história, de trabalho e sabedoria. Você não vai se arrepender! Uma observação: esta cartilha se complementa com o vídeo da montagem passo-a-passo do carijo que está constante nos extras do DVD do filme Carijo

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