A culinária em Dona Flor e seus dois maridos: o romance e a minissérie

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A culinár ia em Dona F lor e seus dois maridos: o r omance e a minissér ie 1

Adalgisa Maria Oliveira Nunes

Resumo Qual o papel da culinária na obra Dona Flor e seus dois maridos? A culinária foi evidenciada na minissérie para transpor o caráter regional do romance, uma forma de estabelecer com a audiência uma identidade e a sua legitimação? Ou A transmutação midiática entre televisão e literatura potencializou o erotismo através de cenas com maior exposição física, possibilidade dada pela própria natureza da minissérie, um produto para o horário das 22 horas, e produzida em uma época distinta do romance, ainda que este, mesmo na data de seu lançamento tenha tratado do tema – erotismo – de forma preponderante? Essas são as principais perguntas respondidas neste trabalho, fruto de uma dissertação de mestrado apresentado no Programa de Pós­ Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, além de traçar o caminho da ficção no que diz respeito às minisséries, desde seu surgimento até os dias hoje. Palavras – chave: Minissérie ­ Adaptações ­ Transmutação

Resumen Which is the role of cooking in the workmanship “ Dona Flor and her two husbands”? The culinarie was evidenced in the minisseries to transpose the regional character of the romance, a form to establish with the audience an identity and its legitimation? Or the media transmutation between television and literature potencialized the eroticism through scenes with bigger physical exposition, possibility given for the proper nature of minisseries, a product for the schedule of the 22 hours, and produced at a distinct time of the romance, despite this, exactly in the date of its launching has dealt with the subject – eroticism ­ of preponderant form? These are the main questions answered in this work, fruit of this presented Master´s dissertation in the Program of Post­Graduation at the Methodist University

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Jornalista pela Universidade Federal do Maranhão, bacharel em Direito pelo Centro de Ensino Universitário ­ UNIFIEO, Especialista em Marketing pela Escola Superior de Propaganda e Marketing e Mestre Em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo.


2 of São Paulo. We also, will approach the way of the fiction in what it says respect to minisséries, since its sprouting until the present days. Key Words: Minisseries ­ Adjustments ­ Transmutation

Abstr act ¿Cuál el papel del culinária en la flor del dueño de la ejecución y sus dos maridos? ¿El culinária fue evidenciado en minissérie para transportar el carácter regional del romance, una forma para establecer con la audiencia una identidad y su legitimation? ¿O el transmutação del midiática entre la televisión y el potencializou de la literatura el erotismo con escenas con una exposición física más grande, posibilidad dada para la naturaleza apropiada del minissérie, un producto para el horario de las 22 horas, y producida en un rato distinto del romance, a pesar de esto, en la fecha de su lanzar se ha ocupado exactamente del tema ­ erotismo ­ de la forma preponderante? Éstas son las preguntas principales contestadas en este trabajo, fruta de un actual dissertação del mestrado en el programa después de la comunicación de la universidad Methodist de São Paulo, más allá hoy de remontar la manera de la ficción en lo que dice respecto a los minisséries, desde su brote hasta los días

Palabras ­ clave: Minisseries ­ Ajustes ­ Transmutación.


3 1. Uma pr imeir a Abor dagem Antes de iniciarmos nosso tema, faremos uma abordagem geral sobre adaptações para TV. Isso se faz necessário, para compreender a caminhada da ficção até chegar ao nosso objeto de estudo. Em principio, o termo minissérie não é encontrado de forma normativa, sendo muito mais uma nomenclatura de mercado, neste estudo, entretanto, nós o adotaremos por ser de uso comum e não apresentar nenhuma referência em contrário. A primeira minissérie da Rede Globo de Televisão foi levada ao ar em 1982, tratava­ se de Lampião e Maria bonita com roteiro de Aguinaldo Silva e Doc Comparato e baseada na vida do mais famoso cangaceiro do Brasil. A primeira adaptação literária para esse tipo de produção veio em 1984, dois anos depois do surgimento do novo formato. Tratava­se de

Anarquistas graças a Deus, com roteiro desenvolvido a partir do romance homônimo de Zélia Gattai, adaptado por Walter George Durst e com direção de Walter Avancini. Foi uma opção encontrada pelas emissoras de televisão para captar a atenção do público. A minissérie foi confirmada como a mais talhada para captar o interesse do telespectador para o horário das dez horas da noite que a novela – por 32 a 29% ­ em pesquisa de audiência que a Rede Globo fez em São Paulo e no Rio de Janeiro, em outubro de 1983. Por não se tratar de uma obra aberta, como a novela, e por haver mais controle sobre a produção, os autores defenderam o formato da minissérie e, ainda, os anunciantes foram mais cuidadosos, em função da temática mais delicada (FIGUEREDO, 2003, p.

44). Dessa forma, segundo Ana Maria C. Figueredo, “a nova forma de fazer dramaturgia

surge na televisão como um campo privilegiado para os experimentos e como saída para os desafios da produção ficcional brasileira” (203, p. 44). A essa época, outras redes de emissoras embarcaram nessa idéia: a rede Manchete, surgida no mercado como potência após a falência da antiga Rede Tupi desenvolvia três projetos para minissérie – A Marquesa de

Santos, de Wilson Aguiar, Viver a vida, de Manuel Carlos e Santa Marta Fabril, esta uma adaptação de Geraldo Vietri da peça de Abílio Pereira de Almeida, e exibida no horário das 21 horas2. Em 24 anos­ de 82 a 2008­ foram produzidas cerca de 80 minisséries, das quais 54 pela Rede Globo 15 pela antiga Rede Manchete, quatro pela Rede Bandeirantes, quatro pela 2

Fonte: www.redemanchete.net/portal/artigos Último acesso: 13/01/2008


4 Record e quatro pela CNT3. Destas, 39 eram baseadas em obras literárias, uma, segundo a definição de Doc Comparato inspirada em4, uma em um folhetim5, uma adaptação livre6, três em peças de teatro7. Além da produção de “ Hoje é dia de Maria”, que utilizou textos adaptados da obra de Carlos Alberto Soffredini8, um recorte de obras com cantigas populares e contos de fadas que recebeu duas indicações ao Emmy, o Osca r da Televisão e A pedra do

reino9, adaptação livre a partir da obra de Ariano Suassuna. .Registre­se que não apenas para as minisséries, mas para vários casos especiais ocorreram as adaptações: O médico e o monstro em 72 a partir da obra do escritor Robert L. Stevenson, Noites Brancas, da Obra de Dostoievski em 1973, Ratos e homens da obra de John Steimbeck em 73, São Bernardo, do romance homônimo de Graciliano Ramos em 1983 e Lisbela e o prisioneiro, da obra de Osman Lins só para citar alguns. Por todo esse histórico, reafirma­se a tendência em buscar em obras, principalmente as de cunho regional, o tema a ser transposto para a televisão, reforçando não apenas a busca de atração para um público mais exigente do horário, como também mais qualidade técnica expressa nas grandes produções do gênero como A Muralha ,

Memorial de Maria Moura e A Casa das sete mulheres só para citar algumas produções, além é claro, do que Ana Maria C. Figueiredo chama de fazer a audiência viver o que é a história do país: As minisséries baseadas em obras literárias se aproximam mais daquilo que reconhecemos como qualidade artística, ao reproduzirem o sentido testemunhal da literatura. Ao trabalhar temas de época, por exemplo, trazem para o telespectador os momentos significativos da História do país. Trabalhos com outras temáticas retratam o cotidiano dos brasileiros que fazem a História do Brasil. Os recursos técnicos da cenografia, da fotografia e da movimentação das câmaras conferem às minisséries o valor de testemunha da obra original, com o bônus de uma recriação que vai além da mera produção do conteúdo (FIGUEREDO, 2003, p. 53) 33

Fonte: FIGUEREDO, Ana Maria C. Teledramaturgia brasileira: arte ou espetáculo? São Paulo: Sumus, 2003 Minissérie Rabo de Saia, exibida em 1984, com base na obra Pensão Riso da noite de José Condé. Fonte: Dicionário da TV Globo. Vol 1, São Paulo: Jorge Zahar Editor, 2003 5 Baseado no Folhetim homônimo, publicado sob pseudônimo, em O Jornal, por Nelson Rodrigues. Foi exibida em 1984. Fonte: Ob. Cit. 6 Minissérie A máfia no Brasil do livro homônimo de Edson Magalhães, em 1984.Fonte: Ob. Cit. 7 O pagador de Promessas de Dias Gomes, adaptado em 88 e O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em 1999 e Santa Marta Fabril. Fonte: Ob. Cit. 8 Carlos Alberto Soffredini (Santos SP 1939 ­ São Paulo SP 2001). Autor e diretor. Trabalhando com grupos teatrais característicos da década de 70, Soffredini constrói sua carreira como diretor e dramaturgo, funções que costuma acumular nos projetos que realiza, tendo como premissa a pesquisa da cultura popular brasileira. Escreveu entre outras as obras: O Cristo Nu e Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube. 9 A adaptação de A pedra do reino embora tenha levado essa classificação na abertura da minissérie, merece um estudo a parte, tratando­se de um produto televisivo que reúne elementos mais complexos para análise. 4


5 Com a perspectiva de resgate da história e da cultura brasileira, as minisséries coincidem com o início da abertura política, da redemocratização do país e de uma onda de nacionalismo que se seguia aos duros anos da ditadura militar. 2. O romance Regional nas adaptações Houve, ao longo dos anos, tendência para os temas regionais, e mais precisamente, os denominados romances regionais. Assim, do universo de 39 adaptações, pelo menos 10 poderiam ser tidas como oriundas de obras que guardam características com os romances regionais. Diz­se que romance regional é aquele que guarda em sua essência características próprias ou que apenas poderiam ser encontradas em certa região do país10. Essa expressão, "romance regionalista" ou ainda, "romance de 30" foi outorgada a um conjunto de obras de ficção escritas no Brasil a partir de 1928, ano de publicação de A bagaceira, de José América de Almeida11. Antonio Cândido diferencia o romance regional do romance nordestino e estabelece os anos de 1890 a 1920 como o momento de “ êxito avassalador” (2006, P.82) daquele estilo, destacando pontos negativos e positivos: Baseado na descrição de áreas rurais pouco desenvolvidas, o regionalismo teve aspectos positivos, como destacar as culturas locais, com seus costumes e linguagem. Mas teve aspectos negativos , quando viu no homem do campo um modelo meio caricatural que o homem da cidade se felicitava por haver superado, e lhe aparecia agora como algo exótico, servindo para provar a sua própria superioridade e lhe dar um bem­estar feito de complacência (2006, p. 83).

Para Antonio Cândido, portanto, A Bagaceira (1928) de Américo de Almeida e O

Quinze de Rachel de Queiroz (1930) conquistam a opinião do país, mas na categoria de romance nordestino, especificando: Enquanto aquele (o romance regional) teve apenas o mérito da precedência, este (o romance nordestino) se sustenta ainda hoje pela força do estilo simples e expressivo, que revelou uma escritora cujo grande talento foi confirmado pelos livros posteriores (CANDIDO, 2006, p. 110) .

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Fonte: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30­37/ev_inteest_romancereg.htm. Último acesso: 01/12/2006 11 Escritor e político paraibano, nascido em 1887 e falecido em 1980, foi integrante da academia brasileira de Letras.Fonte: http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30­37/ev_inteest_romancereg.htm. Último acesso: 01/12/2006


6 O romance nordestino como foi denominado por Antonio Cândido tem exemplos especialmente nas obras de José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Estes autores popularizaram­se numa época em que se discutiam as profundas diferenças entre o Brasil desenvolvido, próprio das regiões do sul e sudeste, e o Brasil subdesenvolvido, dominado pelo coronelismo e pela desigualdade, centrado na região nordeste do país. O romance regionalista inclui também a produção de autores como Érico Veríssimo, Marques Rebelo, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso e Cornélio Pena. Rachel de Queiroz é apontada como uma das pioneiras do romance regionalista ao escrever O Quinze, em 193012. Integrando a galeria de autores regionais nordestinos que tiveram suas obras adaptadas para minisséries, Jorge Amado tem destaque com cinco obras adaptadas:

Tenda dos Milagres, de Aguinaldo Silva, direção de Paulo Afonso Grisolli (1985); Capitães de Areia , pela Rede Bandeirantes, com direção de Walter Lima Jr., roteiro e adaptação de José Loureiro e Antônio Carlos Fontoura (1989). Pastores da Noite, adaptado por Sérgio Machado (2002), Tereza Batista , de Vicente Sesso, baseada no romance Tereza

Batista Cansada de Guerra , com direção de Paulo Afonso Grisolli (1992) e Dona Flor e seus dois maridos, obra em análise neste trabalho de pesquisa. As quatro primeiras obras pertencem à chamada primeira fase13 do escritor Jorge Amado. Somente Nelson Rodrigues, Eça de Queiroz e Ariano Suassuna em

minisséries

tiveram mais de uma obra adaptada. Destes, o primeiro e o segundo não se enquadran na categoria de romance regional e o terceiro sim.: de Nelson Rodrigues foram adaptações: Meu

destino é pecar, de Euclydes Marinho, direção de Ademar Guerra (1984) e Engraçadinha... Seus amores e Seus Pecados, de Leopoldo Serran, com direção de Denise Saraceni (1995). De Eça de Queiroz Os Maias, minissérie produzida em 2001, pela Rede Globo, adaptada por Maria Adelaide Amaral e com direção de Luiz Fernando Carvalho e Primo Basílio minissérie brasileira também produzida pela Rede Globo e exibida pela primeira vez em 1988. Escrita

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Fonte: http://www.casadacultura.org/Literatura/Panteao_dos_Escritores/rachel_de_queiroz/rachel_de_queiroz.htm. Ultimo acesso: 01/12/2006 13 Costuma­se dividir a obra de Jorge Amado em duas fases. A primeira iniciada com o romance O país do carnaval (1931), caracteriza­se pelo forte conteúdo político e pela denúncia das injustiças sociais, o que muitas vezes dá um caráter panfletário às obras aí incluídas. A segunda fase inicia­se com a publicação de Gabriela, cravo e canela (1958). Fugindo do panfletarismo e ao esquematismo psicológico, Jorge Amado constrói seus romances com elementos folclóricos e populares: os costumes afro­brasileiros, a comida típica, o candomblé, os terreiros, a capoeira etc. Fonte: http://www.brasilescola.com/literatura/jorge­amado.htm Acesso: 29/05/2007


7 por Gilberto Braga e Leonor Bassères, e dirigida por Daniel Filho. De Ariano Suassuna, O

Auto da compadecida 14 e A Pedra do reino. 3. Dona Flor e seus dois maridos O romance foi escrito em 1966 e transformado para o cinema em 1973. O Filme de Bruno Barreto renderia milhões em bilheteria e vários prêmios para o cinema nacional. Seu estrondoso sucesso pode ter inspirado os adaptadores da minissérie em 1997, a aventurar­se na ficção que reúne mais de duas centenas de personagens, e 448 páginas, separadas por inúmeras histórias e acontecimentos diversos, o que possibilita ao romance abordagens também diversas, seja sob o aspecto sociológico, antropológico ou de comunicação, como é parte o presente artigo. E, principalmente, os livros de Jorge Amado mostram a Bahia para o Brasil e o Brasil para o mundo em suas mais de 50 traduções. Nosso recorte teve como foco a culinária e é a ele que dedicaremos os próximos seguimentos deste artigo. Para entender o contexto em que se insere a culinária na obra de Jorge é relevante tratarmos o assunto de forma ampla, com o objetivo de situar o objeto sem a intenção de exaurir o tema, pois para isso seria necessária não apenas uma dissertação, mas uma tese, dado à sua amplitude e complexidade. Tomaremos como base três abordagens: a culinária como forma de interação na sociedade relacional, a comida metaforicamente no binômio sensualidade ­sexualidade e por fim, como forma de despertar através dos sentidos a possibilidade de construções simbólicas e de identidades culturais. Na primeira abordagem, partimos do estudo do antropólogo Roberto DaMatta sobre as celebrações, as festas como o carnaval, os cerimoniais como as procissões e os denominados de ritos de ordem, como as paradas de sete de setembro. Desse triângulo ritual o pesquisador chega à conclusão que no Brasil existem éticas múltiplas, intermediadas pelo relacionamento:

“ um sistema onde o básico, o valor fundamental é relacionar, juntar, confundir, conciliar. Ficar no meio, descobrir a mediação e estabelecer a gradação, incluir – jamais excluir” (DAMATTA, 1986, p. 108). É assim no romance Gabriela, cravo e canela , onde Jorge Amado muda de um modelo marxista e dualista, presente em suas obras anteriores, para usar uma fórmula que pretende entender a sociedade brasileira. “ Já não se trata mais de uma luta dualística entre

oprimidos e opressores, mas de um drama que, não obstante a inclusão da exploração e do 14

O auto da Compadecida foi escrito originariamente para o teatro e posteriormente em formato de livro


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poder mais nu e cru, pretende também tratar das relações e manifestações desse poder com ele mesmo”. (DAMATTA, 1986, p. 112). Assim, uma longa teia de relacionamentos rompe a dualidade estabelecida e rígida da política, da economia, da hierarquia social. A mediação é a palavra chave e os eventos são momentos que propiciam e cultivam os relacionamentos. O papel do almoço, da mesa posta, e da comida se acentua como articuladores de segmentos sociais. Surge a olho nu ­ nas obras de Jorge Amado – o papel das teias de relações pessoais como instrumentos básicos de vida em sociedade. Assim, pode­se dizer que toda essa fase é marcada por uma oscilação para o outro pólo do universo social brasileiro. Já não se fala em formalismos legais, ou em idéias ou ideais políticos como módulos motivadores da ação dos personagens. Eles não vivem mais no mundo das leis impessoais e, quando vão à rua, o fazem em busca de amigos e das relações amicais que realmente embalam o seu mundo e suas existências. Trata­se de um universo como esse que lemos em Dona Flor. Onde todos são amigos de todos e onde a cada crise existe um amigo que ajuda, ampara e consola. (DAMATTA, 1986, p. 131).

Sentam à mesa, níveis sociais diferentes, que se igualam e interagem, negociam as desigualdades e fazem o jogo de poder. Em certa medida, segundo Roberto DaMatta, a comida não apenas define as relações e é definida por elas, como define as pessoas; fulano gosta de comer o feijão sobre o arroz, sicrano só gosta de salada. “ Nós, brasileiros, sentimos

saudades de certas comidas e poderíamos perfeitamente dizer: dize­me o que comes e dir­te­ ei quem és” . (DAMATTA, 1986, p. 58). A comida revela a lógica social, numa espécie de culinária relacional:

Não é somente o nome de um processo físico – o cozimento das coisas pelo fogo – mas, sobretudo, o nome de um prato sagrado dentro de nossa culinária. Prato, aliás, que diz tudo dessas metáforas que as comidas permitem realizar e que fazem desta sociedade o Brasil.(...) É que há no Brasil, certos alimentos, ou pratos que abrem uma brecha definitiva no mundo diário, engendrando ocasiões em que as relações sociais devem ser saboreadas e prazerosamente desfrutadas como as comidas que elas estão celebrando. É de tão modo tão intenso que não se sabe, no fim, se foi a comida que celebrou as relações sociais, estando à serviço delas, ou se foram


9 os elos de parentesco, compadrio e amizade que estiveram à serviço da mesa (DAMATTA, 1986, p. 54).

Nas considerações do antropólogo, a preferência nacional pelos pratos cozidos tal qual a feijoada, a moqueca, a peixada é uma forma de expressar a sociedade relacional, é também nossa forma especial de comer, “ de apreciar a mesa grande, farta, alegre e harmoniosa.

Mesa que congrega liberdade, respeito e satisfação. Momento que permite orquestrar todas as diferenças e cancelar as mais drásticas oposições” (DAMATTA, 1987, p. 62). Nossa segunda abordagem trata da comida e suas múltiplas metáforas, que trazem novos significados e realizações dentro da obra do escritor baiano. Na definição do Dicionário Aurélio, alimento “ é toda substância que, ingerida ou absorvida por um ser vivo, o alimenta

ou nutre” . Comida, no mesmo dicionário, significa “ o que se come, ou é próprio para se comer. Ação de comer” . A partir dessas definições temos que comida não se prende apenas à substância, ao preparado ingerido, muito menos às refeições, mas sim, a um jeito, uma ação, uma atividade. Comer, comida ou suas variações se multiplicam através do idioma português: comer o pão que o diabo amassou, comer do bom e do melhor, ou sexualmente em seu uso lato, referindo­se ao ato sexual: fulano comeu fulana . A frase embora chula é de uso comum e não distingue a prostituta da namorada, ambas passíveis da associação. Há então no ato de comer, pelo aspecto simbólico da expressão dois processos: um que congrega famílias, amigos, aqueles que compartilham a uma mesa situações diversas e outra que retrata uma situação particular, a dois e igualmente prazerosa. Ao centro a mulher seja exercendo o papel da comida seja aquele de prover alimento – a mãe, a esposa, a irmã mais velha. O Homem traz o dinheiro, mas quem provê o alimento em última instância é a mulher. Assim por muito tempo, as mulheres mantinham seu patamar, sua localização estratégica na família e no meio social. Muito embora, na modernidade muitos papéis tenham se invertido ou recriado, aquele ainda é aceito pela maioria. Não é, pois, por acaso que muitas figuras de nosso panteão mitológico são mulheres cozinheiras ou que saibam usar as artes da culinária para conseguir uma posição social importante. Gabriela e Dona Flor são cozinheiras de rara capacidade e estilo. Também Xica da Silva, na criação cinematográfica de Cacá Diegues foi genial articuladora de temperos (que usava com arma e requinte) e sexualidade para transformar em dominado o dominante branco­ comedor. Gabriela, cravo e canela. O nome é suficiente para inspirar essas formas de fazer e esses estilos de preparar que os poderosos ignoram e só os fracos podem conhecer. São segredos que permitem uma inversão do


10 mundo, fazendo com que a cabeça seja trocada pelo estômago e pelo sexo onde todos os homens se igualam e se deleitam (DAMATTA, 1986, p. 61).

A relação entre o sexo e a comida aparece também no estudo de Ilana Seltzer Goldstein que teve como objeto o romance Gabriela cravo e Canela : A heroína é imbatível na cozinha e na cama; no comer literal e no comer metafórico, dois domínios em que nenhum tempero se iguala ao seu. Nenhuma mulher tem o seu calor, sua cor de canela e seu perfume de cravo no cangote. Nem o chef de cuisine que Nacib pretendia inaugurar conseguiu fazer uma comida que chegasse perto de Gabriela (GOLDSTEIN, 2007, p. 166).

A figura feminina, aquela que coloca à disposição da família os seus dotes de cozinheira, que serve e nutre a família, o homem, senhor das ruas mescla­se com aquela que mudando da cozinha para a cama servirá a comida a seu homem, foi assim em Gabriela,

cravo e canela e em Dona Flor e seus dois maridos. Comer liga­se a nutrir­se, a prazer, à comunhão, tanto quanto acontece em uma mesa farta e ampla. O banquete idealizado por um homem e uma mulher alimenta­se nessa metáfora dos sentidos, onde a apropriação sexual confunde­se com a ingestão pelo corpo do alimento. Ressalte­se que não meramente referindo­se ao ato sexual, mas os artifícios da culinária na obra transmutada são usados para encenar o erotismo e o desejo, tal e qual na citação acima, retirada do romance Dona Flor e seus dois maridos. Erotismo que, de acordo com a etimologia da palavra, indica amor lúbrico (FERREIRA, 2005, p. 346). Lúbrico por sua vez, nos remete a lascivo, sensual. Para Flávia Delgado, a idéia de erotismo extrapola a simples evidência de desejo sexual; enquanto sexo é uma necessidade física, o erotismo consiste então, numa manifestação de desejo. (DELGADO, 2005, p. 63). Segundo Rollo May: Sexo pode ser definido de maneira adequada em termos fisiológicos. Eros, pelo contrário é a vivência das intenções e o significado do ato. Enquanto sexo é ritmo de estímulo e resposta. Eros é um estado do ser. A finalidade do sexo é gratificação e o alívio da tensão, enquanto Eros representa o desejo, a ânsia e a eterna procura de expansão. Sexo em suma é o tipo de relacionamento caracterizado pelo intumescimento dos órgãos (para os quais buscamos um alívio prazeroso) e o enchimento das gônadas (para o qual buscamos um alívio satisfatório). Mas Eros é o modo de relacionamento no


11 qual não procuramos alívio e sim cultivo, procriação e formação de um mundo (MAY, apud DELGADO, 2005, p. 57).

Feita essa separação entre o erotismo e o sexo, em que no primeiro há uma transcendência do sexo físico, ou da satisfação de uma necessidade física, para ir mais além, onde residem os desejos e as vontades de complementar­se com o outro, partimos para outro conceito que nos interessa neste estudo que é o de sedução, trabalhado por Jean Baudrillard em Da Sedução, obra inteiramente dedicada ao tema: Seduzir é fazer este convite para que alguém participe momentaneamente do seu corpo. Consiste em um jogo cujos elementos fundamentais são os signos: consistem eles em transformar os desejos em sinais perceptíveis que os denunciem. Estes sinais variam e vão desde palavras até os gestos mais sutis, passando pelos olhares, toques e atitudes (BAUDRILLARD, 2006, p. 167).

É, pois na concepção do autor, a sedução complementar ao erotismo, uma parte do jogo que leva ao desenlace ou não do ato sexual. Uma utilização deliberada de signos num ritual que tem o objetivo de provocar no parceiro, ou parceira, ou ainda parceiros, a vontade de realização de um desejo. A sedução é para Jean Baudrillard, um ritual, o sexo e o desejo

são da ordem do natural (2006, p. 27). Essa delimitação entre conceitos é importante, pois lançaremos mão deles, quando trabalhamos as ocorrências no livro do tema objeto deste projeto tanto no que tange ao livro quanto ao produto televisivo. Por fim, vamos à terceira abordagem em que se baseou nosso estudo: despertar através dos sentidos a possibilidade de construções simbólicas e de identidades culturais. São os sentidos que nos intermediam com o mundo. É a partir deles que percebemos e realizamos as trocas com o meio e com as outras pessoas. O olfato nos diz antes da boca, o gosto das coisas. O tato dá a forma e a dimensão do que podemos ver. A audição nos faz recordar o passado através de uma música. O paladar nos dá o sabor de cada momento importante; o bolo de aniversário, um almoço de confraternização; o chá na varanda de casa. De certa forma, os sentidos foram privilegiados ou preteridos de acordo com a evolução das mídias. A visão colocada em primeiro plano pelo iluminismo, a audição pelo rádio e a reafirmação de uma sociedade visual e imagética com a chegada da televisão e do cinema. Impossível, entretanto, dissociar a percepção sensorial da expressão cultural. É esta que nos dá a medida dos sentidos, assim o que tem cheiro do quê, qual fruta nos parece conhecida. Que comida nos remete a casamentos, aniversários, bailes, festas, momentos íntimos.


12 Nesse item, reconhecendo o poder de comunicar dos sentidos, de se ligar à memória, encontrar reflexo e despertar o prazer, Jorge Amado “é mestre em captar as identidades

sensoriais da cultura popular baiana, seus cheiros, sabores, temperos, padrões de beleza, formas de sexualidade. Este é certamente um dos pilares de sustentação de seu sucesso e da construção de sua reputação no Brasil” (GOLDSTEIN, 2007, p. 242). Embora o escritor baiano não seja o primeiro a lançar mão dos sentidos (Ilana Seltzer Goldstein cita Virgínia Woolf com os odores da cidade, Proust com o aroma do chá de tilha, entre outros), dessa forma ele transpõe o leitor ao mundo da Bahia, que é também seu mundo na realização de uma identidade comum, onde se mesclam temperos de origem diversa como o dendê africano e o azeite de oliva de Portugal, o perfume barato e o requintado e caro perfume francês, onde nasce o cacau e se perpetua a cozinha onde um de nós pelo menos uma vez na vida já experimentou, alguma de suas guloseimas. “a narração de Jorge Amado satura

nossos sentidos, sejam com odor de miséria e sujeira, canções noturnas, perfumes, quitutes sabores ou cenas eróticas. Também há trechos que sugerem extrema visualidade, comparáveis a cenas coletivas no cinema, com múltiplos personagens, acontecimentos simultâneos e intensa movimentação” (GOLDSTEIN, 2007, p. 243). À partir destes pressupostos, retiramos dos romances do escritor baiano alguns recortes e comparamos na geografia culinária brasileira. O caruru, por exemplo, iguaria preparada à base de camarão e quiabo tanto pode ser encontrada na Bahia, quanto no Maranhão, ou no Pará e assim também o cuxá, este mais restrito à região nordeste, pois é típica dessa parte do país a vinagreira, verdura com que é preparado. O vatapá já é iguaria nacional e é servido como prato brasileiro em qualquer restaurante que leve o rótulo de típico, embora em cada região se acrescente um ou outro ingrediente conforme o uso do lugar. Também o sarapatel da Bahia e de São Paulo e que no Maranhão se torna sarrabulho, não importando o nome é a mesma iguaria. De onde vieram? Do norte ou do Sul? Vieram por ventura do brasileiro, cidadão de uma nação mestiça, rica em diferenças e única por esse mesmo motivo. De fato, como frisado por DaMatta, uma sociedade manifesta­se por meio de muitos espelhos e vários idiomas. Um dos mais importantes, no caso do Brasil é, sem dúvida, o código da comida, em seus desdobramentos morais que acabam ajudando a situar também a mulher e o feminino no seu sentido talvez mais tradicional. Comidas e mulheres assim exprimem teoricamente a sociedade, tanto quanto a política, a economia, a família, o espaço e o


13 tempo, em suas preocupações e, certamente, em suas contradições. (DAMATTA, 2007, p. 51). A presença da culinária na obra de Jorge Amado é tão marcante que a filha do escritor baiano, Paloma Jorge Amado catalogou, a partir de 1987 todas as referências às bebidas e comidas nos livros de seu pai. “ Dei­me conta de que o material é muito mais rico do que

imaginava e que valeria a pena identificar não somente os pratos da culinária baiana, mas tudo que se come e bebe, seja vatapá, acarajé, jaca, cachaça, champanhe, seja terra, rato e gente” . (AMADO. 2007, p. 15). O material coletado foi tão grande que Paloma Jorge Amado decidiu não apenas escrever um, mas vários livros, fugindo do que ela denominou de “ tentação de enveredar pelo estudo sob o ponto de vista antropológico, ou psicológico, optei

pelo livro de cozinha. Como a quantidade de material propunha um volume grande, decidi dividi­lo por temas e fazer vários livros”. (AMADO, 2007, p. 15). A variedade de sabores encontrada por Paloma Jorge Amado na obra de seu pai sugere que a culinária dá um colorido especial à narrativa, tornando o dia a dia mais prazeroso, marcando como uma data no calendário, ocasiões, comemorações, fatos importantes, ou meramente para reunir as pessoas, no que Roberto DaMatta denominou de sociedade relacional. Assim, também, no romance Dona Flor e seus dois maridos cada fase, ocasião ou momento importante é marcado por uma nova receita, como se o escritor quisesse fixar na memória com a sensação do gosto, a cena que o leitor devora com os olhos. Tudo começou em 1930 quando a baiana vendia, numa esquina da cidade da Bahia, seus acarajés e seus mingaus. Com 18 anos, em O país do carnaval, Jorge Amado, mesmo timidamente, alimentava seus personagens. No inicio não eram grandes almoços baianos, o lugar da comida foi bem mais modesto. Na composição do cenário do seu segundo romance, Cacau, a carne seca, o feijão, a farinha, a fruta colhida no pé, a cachaça e a festa de São João se impuseram e começaram a abrir espaço para aquilo que é ao mesmo tempo necessidade, alegria, sonho, festa, urgência, amor, vida: o de comer (AMADO, 2006, p.19).

Os exemplos são vários, Gabriela e seus vários pratos preparados para seu marido Nacib, ou o jantar preparado para Tieta, quando de seu regresso à Santana do Agreste. Em

Tocaia Grande são as caças e a carne assada na brasa e em Dona Flor e seus dois maridos os mais variados pratos da culinária baiana e porque não dizer, nacional?


14 4. Receitas e erotismo Nosso estudo centrou­se em três receitas: Moqueca de Siri Mole,Cágado guisado e

outros pratos incomuns e o Vatapá . As três foram diferentemente levadas para a adaptação. O romance Dona Flor e seus dois maridos envolve relações diversas, histórias diversas que se entremeiam ou não com a vida da heroína. São muitas pausas criadas ao longo do romance para testemunhar a vida na Bahia, seja em suas ruas de cabarés, presentes nos anos 40 – época de ambientação do romance ­ seja nos modos de viver, seja nos personagens como Dona Gisa, guardiã do racionalismo e da modernidade ou Lourenço mão­de­vaca, crupiê que treme quando

Vadinho faz seus amigos ganharem da roleta viciada. É com essa riqueza de

experiências que Jorge Amado trouxe a Bahia para o Brasil e o Brasil para o mundo, expôs as relações, falou de um país onde a mistura e a heterogeneidade são as palavras ­ chave. O carnaval é um evento propício à sociedade relacional citada por DaMatta e o é também nos seus grandes banquetes, onde reproduz­se o meio em que todos se relacionam, desde o bêbado inveterado e jogador, até os coronéis donos do poder. A horizontalidade da mesa firma um espaço onde as diferenças são trabalhadas e onde as pessoas trocam experiências, favores, poder. Essa sociedade relacional é colocada de forma menos explícita na minissérie, focada em ressaltar outros aspectos do romance, como o erotismo, a sensualidade também marca registrada de Jorge Amado, vide outros de seus romances como

Gabriela, cravo e canela e Tieta , além da cultura local, esta trazida à cena para dar o ar da Bahia que todos conhecem, sua alegria, seus blocos, seus temperos. Acentuamos que não significa que esse aspecto não apareça, mas que ele recebeu menos peso na versão para a tevê que obteve no romance. O vídeo tem exigências, diversas do texto que tem como suporte o livro. Na narrativa da televisão, tanto personagens foram criados como desapareceram. É o caso, por exemplo, da mãe de Teodoro que tem existência efêmera no romance, com sua história contada pelo narrador, sucumbindo em pouco mais de uma página, e que ganhou existência, cenas, e importância na vida do farmacêutico, bem como sua noiva. A performance de ambas na minissérie ajudaram a compor o personagem interpretado por Marco Nanimi, sua seriedade e devoção que não poderiam ser meramente contadas na minissérie, tal e qual é no livro. Tinham que ser tanto vividas pelo ator, como vivenciadas pela audiência. Não é casual a inversão de funções, a alteração de sintaxe narrativa. Há “no caso de obras literárias muito

longas e muito ricas em episódios, como ‘O tempo e o vento’ e ‘ Grande sertão veredas’ uma adequação muito maior entre a extensão literária e a do formato de minissérie” (BALOGH, 2005, p. 183).


15 A economia no número de personagens se justifica pela própria celeridade que se exige de uma produção que tem poucos capítulos para desenrolar­se. Seria arriscar­se a perder o telespectador que não tem tempo para perceber o porquê de tanta gente numa trama só. É preciso desde logo prender quem está na frente da telinha, mostrar a que veio, garantir que a audiência não caia, que se perpetue por todos os capítulos que virão.

Esses são os

mandamentos mercadológicos, é dessa forma que se vendem os espaços comerciais nos intervalos da minissérie, os produtos que dela derivam, como o próprio DVD com a minissérie, ainda à venda e o CD com a trilha sonora da produção, esta assinada por nomes como Dorival Caymmi, Caetano Veloso e Carlinhos Brown.

Dona Flor e seus dois maridos não é a primeira e não será com certeza a única obra adaptada de Jorge Amado. O estilo folhetim do escritor baiano possui todos os ingredientes que fazem o trabalho do adaptador mais fácil. Também o fato da existência de outras obras adaptadas permite uma maior intextualidade entre as produções. Dona Flor teve a jovialidade e a impertinência de Gabriela na primeira fase, e a seriedade e a harmonia de Tieta, na segunda. É normal essa intextualidade entre as obras já adaptadas, tal e qual aconteceu com

Gabriela, cravo e canela . Ambas tiveram em comum, na primeira fase tanto do romance, quanto da minissérie o desejo de liberdade, a busca pelo amor e é claro, a excelência na cozinha. Mas é bom que se diga, a similariedade é apenas aparente, na essência são personagens, tanto no vídeo quanto no romance, bem diferentes. É perceptível, maior diferença no romance, onde Dona

Flor aparece muito mais recatada e muito mais

introspectiva que a liberta Gabriela.

No romance, a personagem feminina encarna uma

mulher dos anos 40, quando a lei do divórcio ainda não existia, numa sociedade marcada pelo patriarcalismo, herdado dos senhores de engenho e do cacau, mas, numa sociedade cercada pela alegria e pela folia libertária de Momo. A culinária foi instrumento através do qual Jorge Amado articulou o encontro de culturas na Bahia, espelho do Brasil de todos os tempos. Com seus almoços e seus jantares, seus sabores e cores comunicam­se simbolicamente através dos sentidos com as lembranças de quem o lê, permite interligar uma região em um extremo do país à outra, permite encontrar um fio condutor que se chama Brasil. Também é através da culinária que o autor provoca e estimula a imaginação do seu público, para sentir com Flor a sua necessidade de amor, de partilhamento, de sexo e de sedução. É o que faz por exemplo quando dá a receita de siri­ mole, ou de vatapá. É marca registrada da obra do escritor Jorge Amado a política e o erotismo e se não são jantares ou almoços onde diferentes camadas sociais se encontram para fazer acertos, são pratos que servem ao objetivo de seduzir. Foi assim em Tieta , foi assim em Gabriela e mais


16 que nos dois romances anteriores foi assim em Dona Flor e seus dois maridos. Na minissérie, a culinária tem um papel muito mais de ligar­se à identidade cultural do povo baiano e por que não dizer do povo brasileiro, que um apelo ao erotismo. A nudez é muito mais vista, assim como cenas onde o sexo é sugerido de forma clara porém não explícita, como aquela em que Vadinho finalmente possui Flor pela primeira vez após retornar da morte. Há ao nosso ver uma aposta nessa nudez como forma de fornecer à produção, a pitada de pimenta necessária para manter a audiência. As cenas foram construídas de sombras, de silhuetas, como a primeira noite de Flor, entremeada entre luz e escuridão, dentro de um farol e sob uma tempestade ­ passagem que não existe no romance, mas que trouxe realismo a história, a própria sedução exposta ao extremo, a razão do desvario pelo qual Flor sofreria em toda a seqüência seguinte. A seqüência em que Vadinho finalmente se alimenta do sexo de Flor sobre a mesa da cozinha nos faz retomar uma das proposições feitas no ao longo deste trabalho quando tratamos do comer literal e do comer metafórico. Sobre a mesa, a metáfora da comida que irá satisfazer o marido morto, e o que dela resta na cena seguinte, quando a heroína inteiramente nua, está sobre a mesa da cozinha. A metáfora é possível no vídeo, pois está na mente da audiência. Não há palavras que a trabalhe tão bem e nessa concepção, a minissérie ultrapassou os limites do livro. Ficaram claras as diferenças entre os dois maridos – o quente e o frio, numa paráfrase à culinária. Longe de trazer vulgaridade à produção, refletiu­se na necessidade de oferecer ao público do horário das 22 horas, imagens mais recheadas de erotismo, sensualidade, mais raras nos horários mais nobres da emissora.

A opção dos adaptadores, incluindo­se aí,

roteiristas e direção, deu­se em função da própria especificidade da produção, principalmente tendo ela sido precedida de outro produto, desta feita para o cinema, onde tambéma o erotismo foi exacerbado e a nudez de Sonia Braga colocada na imensa tela dos cinemas, arrebatando prêmios e números extraordinários de bilheteria para a época. Poderiam ter feito, os adaptadores outra opção? Claro que podiam, porém seria correr um risco desnecessário, além das muitas experiências que já se faziam presentes na produção, como a mistura de épocas e a criação de novos personagens. Após feitas estas considerações, chegamos à seguinte conclusão: a minisséire Dona

Flor e seus dois maridos é uma obra original. Existem semelhanças com o romance homônimo, mas há também, diferenças na concepção de cada obra. Se uma integra­se a um projeto ideológico, próprio do mundo Amadiano ­ levar a Bahia aos brasileiros sem esquecer do erotismo e da política ­

a outra, mesmo bebendo nessa fonte de fecundas concepções

estéticas e culturais segue seu compromsso como não poderia deixar de ser, com a estética do


17 visual, com a proposta criadora de emissora, com a audiênciae com as especificidades do suporte. É claro que a minissérie buscou e se fundamentou no romance. Mas o destino de cada herói foi traçado embora convergentemente por diferentes caminhos. A densidade da obra Amadiana permite que a magnitude da criação televisiva seja ampliada em escala geométrica e talvez por isso, ele seja um dos autores mais adaptados de nossa literatura. O grande mérito em questão, é que quem lê o romance e assiste a minissérie descobre mundos que se complementam, jamais se antagonizam, e despertam o prazer de ler e de ver sem constrangimentos ou decepções. Referências Bibliográficas AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro: Record, 2005. AMADO, Paloma Jorge. A comida baiana de J orge Amado. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2003. BAUDRILARD, Jean. Da Sedução. São Paulo: Papirus, 2004 BALLOGH, Anna Maria. Conjunções, disjunções e transmutações da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annamblumne, USP, 1996. __________ Iniciação à literatura brasileir a. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul, 2007 DAMATTA, Roberto. A Casa & a Rua . Espaço, cidadania, mulher e mor te no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 1997 _________O que faz o Brasil, Br asil?. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1986 DELGADO, Flávia. Do livro à TV: Per sonagens femininas em Os Maias de Eça de Queir oz. 140 f. Dissertação (Mestrado em comunicação Social) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2005 FIGUEREDO, Ana Maria C. Teledr amaturgia br asileir a: ar te ou espetáculo? São Paulo: Sumus, 2003


18 GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Br asil Best Seller de J orge Amado. São Paulo: Editora SENAC, 2003.


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