Ed. 166 - Revista Caros Amigos

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EUROPA

Dilemas da energia nuclear

MÚSICA

A caminhada da rapper Shirley Casa Verde

EDUCAÇÃO

O que acontece com o ENEM

ano XIV nº 166 / 2011 R$ 9,90

Copa e Olimpíadas: problemas para além do oba-oba Exclusivo

Escritor TARIQ ALI explica a “síndrome de Obama”

WIKILEAKS,

O NOVO INIMIGO DOS EUA Entrevista

Chico

ALENCAR “As esquerdas precisam de

Ditadura

Os segredos do Cemitério da Vila Formosa

uma plataforma comum”

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ BÁRBARA MENGARDO CAIO ZINET CAMILA MARTINS CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY – FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO OTAVIANO HELENE PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO VALENTE

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CAROS AMIGOS ANO XIV 166 JANEIRO 2011 EUROPA

Dilemas da energia nuclear

MÚSICA

A caminhada da rapper Shirley Casa Verde

EDUCAÇÃO

O que acontece com o ENEM

ano XIV nº 166 / 2011 R$ 9,90

Copa e Olimpíadas:

Foto de capa FÁBIO NASSIF

problemas para além do oba-oba Exclusivo

Escritor TARIQ ALI explica a “síndrome de Obama”

WIKILEAKS,

O NOVO INIMIGO DOS EUA Entrevista

Chico

ALENCAR “As esquerdas precisam de

Ditadura

Os segredos do Cemitério da Vila Formosa

EDITORA CASA AMARELA

uma plataforma comum”

ANA MIRANDA ANELISE SANCHEZ BÁRBARA MENGARDO CAIO ZINET CAMILA MARTINS CESAR CARDOSO CLAUDIUS DÉBORA PRADO EMIR SADER EDUARDO MATARAZZO SUPLICY – FIDEL CASTRO FREI BETTO GABRIELA MONCAU GERSHON KNISPEL GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS GLAUCO MATTOSO GUILHERME SCALZILLI GUTO LACAZ JOÃO PEDRO STEDILE JOEL RUFINO DOS SANTOS JOSÉ ARBEX JR. LÚCIA RODRIGUES MARCOS BAGNO MC LEONARDO OTAVIANO HELENE PEDRO ALEXANDRE SANCHES RENATO POMPEU RODRIGO VIANNA SÉRGIO VAZ TATIANA MERLINO VALENTE

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REVISTAS • LIVROS • SERVIÇOS EDITORIAIS FUNDADOR: SÉRGIO DE SOUZA (1934-2008) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

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Guto Lacaz. José Arbex Jr. critica o governo pela militarização do combate ao tráfico. Caros Leitores. Pedro Alexandre Sanches fala sobre a autoafirmação musical das periferias. Marcos Bagno defende atuação do Brasil na difusão da língua portuguesa. Mc Leonardo critica a forma de combate a quem vende e consome drogas.

Para além do oba-oba A escolha do Brasil e do Rio de Janeiro para sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 foi muito comemorada. Os brasileiros sentiram-se orgulhosos por finalmente verem seu país entre os “grandes”, apto a sediar megaeventos esportivos. A realização de tais eventos em nosso solo reflete, ainda, a euforia generalizada com o momento do país, que em 2010 se consolidou definitivamente como um player do capitalismo mundial. Porém, tamanho oba-oba não pode servir para esconder os interesses bilionários, corporativos e políticos, por trás dos eventos. Para tentar entender o que está em jogo, a repórter Débora Prado conversou com moradores das cidades sedes dos eventos, professores e integrantes de movimentos sociais. A reportagem da Caros Amigos descobriu que, entre os problemas existentes, há obras aprovadas sem licitação, ameaças de despejos de famílias e transferência de recursos públicos para poucos grupos privados. O tema dos megaeventos também foi discutido na entrevista concedida pelo deputado federal Chico Alencar, que falou sobre a militância político-partidária, sua participação no PSOL, eleições presidenciais e a ocupação do Exército nos morros do Rio de Janeiro. No campo internacional, um assunto de grande destaque de 2010 foi o site WikiLeaks, responsável pelo vazamento de milhares de documentos secretos da diplomacia estadunidense. A crise interna nos EUA decorrente da divulgação dos documentos é tema de reportagem desta edição. Os problemas da principal economia do mundo também foram tratados em entrevista com escritor paquistanês Tariq Ali. A primeira edição de 2011 ainda apresenta reportagens sobre as buscas pelos restos mortais de Virgílio Gomes da Silva, o primeiro desaparecido político da ditadura militar, os dilemas da energia nuclear na Europa e a caminhada da rapper Shirley Casa. Boa leitura. Ps: em 2010, a Caros Amigos foi agraciada com duas premiações. Uma menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog, categoria revista, pela reportagem “Grupos de extermínio matam com a certeza da impunidade”, de autoria da editora-adjuta Tatiana Merlino, e o Prêmio Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) de Direitos Humanos, conquistado com a reportagem “Agronegócio escraviza milhares de trabalhadores no campo – capital paulista abriga escravidão”, da repórter Lúcia Rodrigues, categoria imprensa.

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João Pedro Stedile enumera os principais desafios do novo governo federal. Ana Miranda fala do amigo Arrigo e da liberdade dos escritores e dos músicos.

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Joel Rufino dos Santos conta algumas lembranças ruins e boas de 1970. Guilherme Scalzilli defende o uso das forças armadas nas favelas do Rio.

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Sérgio Vaz abre os olhos e recita poesia para os novos dias de luta em 2011. Gilberto Felisberto Vasconcellos: composição de classe do governo não muda.

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Entrevista com Chico Alencar: “A esquerda precisa de uma plataforma comum”. Débora Prado mostra os problemas por trás das Olimpíadas e da Copa do Mundo. Frei Betto propõe o sonho de Kepler para vencer a infelicidade do mundo atual. Ensaio Fotográfico: Morabeza, por Valente. Bárbara Mengardo e Caio Zinet contam como o WikiLeaks desafia os EUA. Entrevista com paquistanês Tariq Ali: escritor explica a “síndrome de Obama”. Gabriela Moncau conta a caminhada da rapper Shirley e do grupo Ca.Gê.Bê. Camila Martins apresenta a história do grafiteiro Gejo e de sua arte de contestação. Anelise Sanchez relata os desafios europeus para as políticas energéticas. Rodrigo Vianna em Tacape: viagem ao Uruguai das praias e do jornal Brecha. Cesar Cardoso conta histórias fantásticas para comemorar o ano novo.

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Glauco Mattoso em Porca Miséria: protesto contra a cobrança de impostos. Eduardo Suplicy fala sobre os critérios para se medir a pobreza no Brasil.

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Lúcia Rodrigues relata a busca pelos restos mortais de desaparecidos políticos Fidel Castro afirma que o site WikiLeaks colocou o império no banco dos réus. Emir Sader analisa a disputa hegemônica no plano da cultura.

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Gershon Knispel fala que o WikiLeaks pode desmoralizar o Prêmio Nobel da Paz. Otaviano Helene debate os objetivos do Exame Nacional de Ensino Médio. Renato Pompeu indica canção popular, Guerra Civil Espanhola, Argélia e Marx. Claudius

EDITOR: Hamilton Octavio de Souza EDITORA ADJUNTA: Tatiana Merlino EDITOR ESPECIAL: José Arbex Jr EDITORA DE ARTE: Lucia Tavares ASSISTENTE DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger EDITOR DE FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTERES: Lúcia Rodrigues, Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau e Otávio Nagoya CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro) e Anelise Sanchez (Roma) SECRETÁRIA DA REDAÇÃO: Simone Alves REVISORA: Cecília Luedemann DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo RELAÇÕES INSTITUCIONAIS: Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Priscila Nunes CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon PUBLICAÇÕES DE REFERÊNCIA: Renato Pompeu SÍTIO: Débora Prado de Oliveira e Gabriela Moncau ASSESSORIA DE IMPRENSA: Kyra Piscitelli APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo e Neidivaldo dos Anjos ATENDIMENTO AO LEITOR: Joze de Cassia, Zélia Coelho ASSESSORIA JURÍDICA: Marco Túlio Bottino, Aton Fon Filho, Juvelino Strozake, Luis F. X. Soares de Mello, Eduardo Gutierrez e Susana Paim Figueiredo REPRESENTANTE DE PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741. JORNALISTA RESPONSÁVEL: HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA (MTB 11.242) DIRETOR GERAL: WAGNER NABUCO DE ARAÚJO

CAROS AMIGOS, ano XIV, nº 166, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo. Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. IMPRESSÃO: Bangraf REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP

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ALTERCOM

Associação Brasileira de Empresas e setembro 2009 caros amigos Empreendedores da Comunicação

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José Arbex Jr.

Rio, 2010: o eterno retorno da barbárie 25 de novembro,

Vila do Cruzeiro, Rio de Janeiro. Cerca de 600 policiais militares de elite (incluindo integrantes do Bope) e 800 soldados da Marinha – treinados em tática de repressão a civis no Haiti -, todos apoiados por helicópteros e veículos blindados, iniciam um processo de ocupação que se estenderá, nos dias seguintes, a todo o Complexo do Alemão (13 favelas onde vivem cerca de 150 mil pessoas). A população local é humilhada, aviltada, agredida. Suas casas são invadidas, seus bens são saqueados, inocentes são assassinados. Mas há agora um dado distinto, de tremenda importância: as Forças Armadas entraram no jogo. Não poderia haver demonstração mais explícita da natureza terrorista do Estado brasileiro. Nem confissão mais clara de sua abjeta subordinação às determinações da Casa Branca (não por acaso, o ministro da Defesa Nelson Jobim aparece como o “queridinho” de Tio Sam, nos documentos vazados pelo site Wiki Leaks). Nenhum país sério mobiliza as Forças Armadas contra o narcotráfico. Nenhum. Por várias razões. As Forças Armadas são treinadas para defender a soberania nacional contra agressores externos, e não para agir contra o seu próprio povo. Além disso, a guerra ao tráfico coloca a tropa em contato com agentes potencialmente corruptores. Finalmente, trata-se de uma guerra desmoralizante, por ser de antemão perdida. Só idiotas consumados podem acreditar que a repressão vence o tráfico, e apenas débeis mentais incuráveis levam a sério os discursos oficiais sobre a necessidade de acabar com o comércio ilegal de drogas. É um comércio que movimenta centenas de bilhões de dólares, injeta moeda no mercado especulativo, fornece dinheiro para o tráfico de armas, de seres humanos, de mercadorias. É indispensável, enfim, ao funcionamento da economia capitalista. Se alguém quiser mesmo acabar com o narcotráfico, terá que começar pela prisão de banqueiros e agentes financeiros, e assim produzir o colapso da economia mundial. Basta lembrar que nunca se produziu tanto ópio no Afeganistão como após a derrubada do regime dos Talebãs e a entrega do poder ao ex-agente da CIA Hamid Karzai. Mas a Casa Branca quer que os países de seu quintal militarizem o combate às drogas. Primeiro, por-

Intervenção das Forças Armadas faz o jogo da Casa Branca e agrava o impasse.

que isso significa abrir as Forças Armadas nacionais à participação de “assessores” enviados pelo Pentágono, pelo FBI (polícia federal estadunidense), pela CIA (serviço secreto) e pelo DEA (agência de combate ao tráfico), além de “especialistas” israelenses (bem treinados em massacres de civis palestinos). É exatamente o que acontece, por exemplo, na Colômbia, onde, a pretexto de combater o tráfico, militares estadunidenses e israelenses agem com desenvoltura na Amazônia, além de faturar milhões com vendas de armas e equipamentos (incluindo carros blindados como os sinistros “caveirões”). Há duas décadas, pelo menos, a Casa Branca pressiona o governo brasileiro no sentido de militarizar o combate ao tráfico. O presidente Luís Inácio Lula da Silva, finalmente, cedeu. Nem FHC ousou ser tão sabujo. Lula tem exata consciência do que faz. Em abril de 2003, pouco após tomar posse, fez um discurso ousado de denúncia do narcotráfico como parte da indústria transnacional do crime organizado: “Ele tem o seu braço na política, tem o seu braço na Polícia, tem o seu braço no poder Judiciário, tem o seu braço nos empresários, tem o seu braço internacional. Então, é uma coisa muito poderosa, que de vez em quando nós vemos na televisão: ‘Polícia consegue apreender a maior quantidade de cocaína já vista no Brasil’. Aí o que apresenta a televisão? Cinco ou seis ‘bagrinhos’. Para onde ia e de onde veio, quem vendeu e quem comprou a droga, não aparece. Aparecem os ‘bagrinhos’, ou seja, é sempre a mesma história. E nós só vamos combater o crime organizado quando a gente resolver pegar quem compra e quem vende, e não apenas quem está no processo de intermediação, que muitas vezes são pobres coitados, induzidos, para ganhar o pão de cada dia. Às vezes a gente ouve na televisão o seguinte discurso: ‘Tem violência? Tem.Vamos cercar a favela. Tem droga? Tem. Vamos ocupar a favela.’ Possivelmente, no dia em que a Inteligência da Polícia for mais ousada e mais forte do que a força bruta, a gente não precise invadir uma favela, mas, quem, sabe, subir numa cobertura, numa das grandes capitais desse país, e pegar um verdadeiro culpado pelo narcotráfico.” No ocaso de seu mandato, Lula fez o oposto do

que prometeu no nascedouro: convocou as Forças Armadas contra os “bagrinhos”. Com esse gesto, desmoralizou alguns avanços que o seu próprio governo promoveu, incluindo a transformação, em 2005, da antiga Secretaria Nacional Anti Drogas (Senad) para a Secretaria Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. A expressão “políticas públicas” pressupunha, obviamente, a adoção de um conjunto de medidas não repressivas, um amplo espectro de ações sociais. Mas, para fazer isso, o Estado brasileiro teria que ser outro. Teria que ter programas voltados para a melhoria das condições de vida dos habitantes dos morros e favelas: mais escolas, infraestrutura higiênica e sanitária, hospitais e postos de saúde, mais campanhas esclarecedoras sobre os males causados pelo uso das drogas. Tudo isso soa como piada, num país em que idosos morrem à espera de atendimento nas filas do SUS, e em que a imensa maioria da população não consegue ler um livro. As chamadas UPPs cariocas (Unidades de Policiamento Pacificadoras), aliás, transformam as políticas públicas em cruel zombaria: o morro viverá “em paz”, desde que a população se sujeite à brutalidade dos “caveirões” e ao arbítrio dos mandados coletivos de busca. Assim, os conflitos e tensões nos morros do Rio encontraram a solução praticada inúmeras vezes na história brasileira, sempre com os aplausos das elites e das classes médias conservadoras – a “solução” dada, por exemplo, ao arraial de Canudos. Lula tem razão: é sempre a mesma história. Só que agora é ele quem manda. A mídia, finalmente, jogou um papel fundamental nisso tudo, em particular a Rede Globo, que, é claro, não age motivada por interesses comerciais e especulativos na “pacificação” do Rio, tendo em vista a Copa de 2014 e os Jogos de 2016. De jeito nenhum. Faz puro jornalismo. Mais uma vez, a Globo apresenta-se, com mais competência e eficácia do que suas concorrentes, como a grande porta-voz das Forças Armadas subordinadas aos desígnios do Pentágono. Quem foi mesmo que disse que a história sempre se repete como farsa? José Arbex Jr. é jornalista. janeiro 2011

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caros amigos

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Caros LEITORES

BONS TEMPOS Cara Tatiana: Tenho acompanhado seu trabalho na revista há um certo tempo. Gosto muito dos temas com os quais trabalha e também do seu belíssimo texto. Me faz lembrar os bons tempos do JT, Realidade e outras publicações que se dedicavam ao jornalismo literário. O perfil do poeta socialista Félix Contreras, por exemplo, é um excelente exemplo disso. Um abraço, com admiração. Elias Almeida.

JORNALISMO E FÉLIX CONTRERAS Lúcia: Receba meus cumprimentos de respeito e admiração pela matéria “Novo processo contra o torturador Ustra”, publicada na Caros Amigos de nº 164/2010! É desse tipo de jornalismo cidadão, humano, libertário que o povo brasileiro precisa. Muito obrigado e grande abraço. Tatiana: Parabéns mesmo e muito obrigado pela matéria “O poeta, a ilha socialista e suas transformações”, publicada na edição de novembro de Caros Amigos! Tenho lido vários textos seus e sempre gosto. Você é uma jornalista de verdade, a favor do povo brasileiro. Abraço de respeito e admiração. Paulo Aires Marinho, Coordenadoria de Comunicação Universidade Federal do Tocantins–TO

PROJETOS Bom dia, Caros Amigos! Fábio Konder Comparato, o mestre em democracia na capa da revista! Comprei na hora! Ele é fantástico! Agora, a meu ver, entrevista feita pelo trio deixou uma lacuna quando falamos em Fábio Konder Comparato. Ela começa sobre sua vida, inevitavelmente aborda o tema democracia e oligarquia e finaliza com Ditadura, torturadores, Lei da Anistia e Direitos Humanos. A lacuna? O projeto de lei do Comparato! Como falar de democracia e oligarquia sem abordar projeto dele? Luiz Henrique Vilar, São Paulo – SP.

OLIGARQUIA Sou estudante de Direito da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e de todas as entrevistas que costumo ler, essa com o jurista Comparato foi a melhor, pois traz uma verdade nua e crua de como a oligarquia brasileira infesta o poder e suplanta direitos de minorias, trazendo uma falsa ideia de democracia para entreter os desavisados e aqueles que afirmam categoricamente que superamos a vergonhosa e sórdida ditadura militar. Vale ressaltar: sem punir os assassinos e torturadores! Além disso, sugiro à Caros Amigos que não escancarem sua linha argumentativa em defesa dos Lulas e PTs da vida, porque na Bahia o governo “petista” de Jacques Wagner resolveu incorporar o modelo “tucano-serrista” de privatizar estradas. As vias que interligam Salvador, Região Metropolitana e interior estarão infestadas de pedágios em poucas semanas, por todos os lados e direções, modelo antes criticado por tais políticos desse partido dito “esquerdista”. Diego de Lima Leal, Estudante de Direito, Camaçari – Bahia.

CONCEITOS Cumprimento vocês pela excelente entrevista com o jurista Fábio Konder Comparato, a qual dignifica o brilho da cátedra e a visão de um Brasil injusto e iníquo. Com relação à Anistia e o caso Merlino, o qual presidimos em primeiro grau, não posso concordar com o pronunciamento a respeito da posição do Judiciário, eis que acolhemos a demanda e a reforma se fez pelo Tribunal de Justiça, o que não desmerece o fundamento da demanda intentada pelo professor. A velha tradição reinol e o espírito da lei de gerson nos fizeram uma Nação atrasada e sem democracia, a Constituição é uma colcha de retalhos de tantas emendas, e efetivamente quem dá as cartas são os donos do poder, os mesmos banqueiros que montaram as operações e para os quais o ilustre Comparato e seu irmão trabalharam durante décadas. Carlos Henrique Abrão, São Paulo – SP.

IMPERIALISMO O fato não é novo. A política externa mantida pelo imperialismo, tantas vezes, tem cometido crimes contra a humanidade que seria fastidioso repetir. É a invasão do Vietnam, do Iraque, a preparação da opinião pública para a futura invasão do Irã, enfim é desgraça em continuidade e toda a denúncia reveladora da falta de caráter, falta de decência dos invasores, leva a que criem motivos os mais diversos. Eles sabem se defender, não têm pejo do uso da mentira, da empulhação que historicamente caracteriza o seu comportamento. A luta de Caros Amigos é a luta de todos os que sonham com um mundo melhor. Saudações. Said Halah, São Paulo – SP.

REPORTAGEM Apesar de não ser assinante, sou leitor assíduo e acompanho esta Revista desde sua criação e a considero o único canal de informação/ formação crítica e compromissada com a verdade, se comparada com a nefasta mídia que aí está. Caros Amigos é diferente, acima dos demais meios de desinformação, meros portadores da classe dominante. Que tal Caros Amigos fazer uma reportagem sobre a Flaskô, uma fábrica situada em Sumaré/ SP, ocupada e gerida por trabalhadores há mais de sete anos? Pasmem! Reduziram a jornada de trabalho de 44h para 30h semanais, sem redução salarial; isto é um marco nas relações de trabalho deste País, no decorrer do processo histórico. A Flaskô esta ligada ao Movimento Fábricas Ocupadas. Fica claríssimo que trabalhador consciente, com organização e união, não precisa de razão! Tenho certeza de que Caros Amigos não faltará com seu papel de divulgar esta fantástica conquista dos trabalhadores da Flaskô para todo o Brasil! Ronaldo V. Hernandes, Mogi das Cruzes – SP.

ERRATA Diferentemente do que foi publicado na edição de dezembro (número 165) na matéria “Cine Bijou vive”, os nomes das integrantes do Teatro de Arena citadas por Dulce Muniz são Heleny Guariba e Cecília Thumin.

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PAÇOCA Pedro Alexandre Sanches

de orgulho E lá se foi embora a primeira década do

século 21. No Brasil, os dez primeiros anos deste novo milênio foram profundamente transformadores, e a música nacional, como é de seu feitio, oferece indícios preciosos sobre como e quanto estamos mudados. Saber que os gêneros musicais mais interessantes e os músicos mais inovadores emergem preferencialmente das periferias (geográficas, econômicas, sociais, raciais, sexuais) é a mais antiga das novidades. O que ocorreu de inédito na partida do novo século no Brasil, entretanto, é que alguns de nossos mais atuantes artistas jovens passaram a proclamar o orgulho de ser quem são e de vir de onde vêm ou seja, das periferias, quaisquer periferias. De início, esse processo de autoafirmação adquiriu modos (antigos) de embate. A explosão criativa de movimentos musicais-culturais-sociais como o funk carioca, o tecnobrega paraense, o rap paulista, o neoforró cearense e outros causou perplexidade, e esses estilos chegaram a ser classificados em prateleiras bem conhecidas, como fenômenos fabricados por maracutaias industriais quando as gravadoras multinacionais já não tinham poder de impor tramoias, nem a Globo conseguia emplacar sucessos com a desenvoltura de antes. A mídia impressa se preparou para ignorar/espezinhar os novos movimentos como na década anterior ignorara/espezinhara o pagode, a axé music e a música sertaneja, e como ignora/espezinha o Movimento dos Sem-Terra, o Movimento dos Sem-Teto, a Central Única das Favelas, a Marcha das Mulheres, a Daspu e as Paradas Gays. Mas aí a própria grande mídia impressa já se encontrava em plena implosão. Diferentes de todas as manifestações de massa que os precederam, esses movimentos, sobretudo o dos funkeiros cariocas, chegaram chegan-

do. O mínimo que declaravam era “sou feia, mas tô na moda/ tô podendo pagar hotel pros homens e isso é que é mais importante,” como cantou em 2004 Tati Quebra Barraco. Ela ecoava já a rapper (também carioca) Nega Gizza, que em 2002 lançara uma música chamada Prostituta: “Sou puta, sim/ vou vivendo do meu jeito/ prostituta atacante/ vou driblando o preconceito.” Quem procurou desqualificar esse tipo de manifestação orgulhosa servindo-se do velho e gasto discurso tipo Folha e Veja logo se viu num beco sem saída. A década avançou e sedimentou transformações. Quem faz tecnobrega, funk ou lambadão matogrossense no chão de sua praça não precisa da minha ou da sua aprovação, em especial se você e eu não soubermos (nem quisermos saber) nada sobre o chão daquela praça. O sentimento de que é possível fazer música sob o alicerce do orgulho e do amor-próprio se espalhou. Seu Jorge foi para Hollywood sem esquecer que nasceu na favela do Gogó da Ema. O grupo O Teatro Mágico ergue um modelo de sucesso manufatureiro a partir de Osasco (SP) e a partir de referenciais que o senso comum aprecia rotular de anacrônicos, como o circo e o teatro de rua. O Macaco Bong, do Mato Grosso, faz rock instrumental ancorado em identidades indígenas, africanas, europeias. Até mesmo às margens poluídas do rio Tietê, na capital paulista, é possível obter música da experiência de gostar de ser quem se é. Do outro lado da ponte, são três artistas que fazem de seu ponto de partida um referencial mais importante que pontos de chegada quaisquer. O rapper Emicida vem do Jardim Fontales e mantém seu Laboratório Fantasma no bairro de Santana, de onde saem, sem intermediações, suas obras musicais. No CD autocrítico Emicídio, faz rap como quem assimilou as contribuições feministas de Deize Tigrona ou Nega Gizza. Em Rua Augusta, lança um olhar respeitoso e amoroso so-

Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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bre as garotas que se prostituem para os playboys do asfalto e cultivam hematomas na alma. Rodrigo Campos e Marcelo Jeneci têm em comum o fato de fazerem música mais ligada à chamada MPB e a formatos pop urbanos. Rodrigo inspira-se no samba, mais à moda de Paulinho da Viola que de Zeca Pagodinho. Estreou em 2009 com um CD chamado São Mateus Não É um Lugar Tão Longe Assim, que quer dizer exatamente o que o título diz. Suas canções chamam-se Fim da Cidade ou Amor na Vila Sônia e citam carinhosamente lugares e referenciais como o metrô Carrão, Perus e, claro, São Mateus. Jeneci leva a causa a maiores consequências, e lançou um disco de estreia que é a cara de 2010, chamado Feito pra Acabar, todo modulado sob referências pop(ulares), de Roberto Carlos a Arnaldo Antunes, de Jorge Ben a Odair José, de Erasmo Carlos a Guilherme Arantes, de Fernando Mendes a Luiz Gonzaga. Nos shows de apresentação, com orquestra completa no palco, um telão mostrava quem é Jeneci antes mesmo de ele subir ao palco. O vídeo mostrava-o em seu habitat de origem, o bairro de Guaianases, no extremo leste da capital. Jeneci é filho e neto de pernambucanos, de região não muito distante à de Lula. Seu avô é pedreiro e construiu grande parte das casas da rua, inclusive aquela em que a família mora. Nada existe de primário ou precário na obra de Jeneci, mas uma de suas musas é o desejo de fazer música de poder comunicativo. A emotividade é um de seus grandes trunfos, e isso deve ser diretamente proporcional à conexão que mantém com o menino de periferia que mora dentro dele. A propósito, algumas de suas melhores composições pop ele executa à sanfona, instrumento tido como primitivo, que Luiz Gonzaga elevou à glória e a bossa nova marginalizou. Em Jardim do Éden, uma de suas baladas mais ternas, Marcelo sintetiza um Brasil que não existia em 1999, mas desabrocha em 2011. “Xanadu/ Shangri-Lá/ Jardim do Éden/ Paraisópolis”, desliza o refrão, tão irônico quanto apaixonado pelo chão multiétnico da grande praça brasileira.

ilustração: murilo silva

Uma década

Pedro Alexandre Sanches é jornalista. janeiro 2011

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falar brasileiro Marcos Bagno

Mc Leonardo

O poder das

CAMÕES E CERVANTES PRA QUÊ?

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Trilogia: Parte 2 Trilogia: Parte 2

O problema não é de Portugal nem da Espanha, evidentemente, que estão certíssimos em difundir sua língua e sua cultura. O problema é não existir, da parte brasileira, nenhum organismo oficial que faça a mesma coisa com a mesma força e com os mesmos resultados. O Instituto Machado de Assis, planejado para esse fim, até agora não saiu do papel por causa das disputas entre o Ministério da Educação e o Itamaraty para saber quem vai mandar nele. Os grandes países latino-americanos como México e Argentina, mas também Venezuela, Peru e Colômbia, poderiam muito bem criar um organismo para a difusão do espanhol latino-americano, mas como esperar isso de Estados que vivem em disputa permanente por razões ideológicas, muitas delas manipuladas pelos Estados Unidos para incentivar a desunião dos nossos países? Enquanto ninguém faz nada, as línguas de Camões e Cervantes continuam dando as cartas no jogo dos mercados linguísticos, enquanto os idiomas de Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, García Márquez, Vargas Llosa, Rubén Darío e tantos outros deixam de ocupar oficialmente o espaço econômico, político e cultural que de fato já lhes pertence. Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

Segundo as autoridades brasileiras, o grande vilão nas questões das drogas são os consumidores, pois são quem financiam esse comércio ilegal, e se não fossem eles não existiria tanto traficantes no mundo. Segundo as autoridades mundiais, países como os Estados Unidos e da União Europeia (que são os maiores consumidores de drogas no mundo) são as maiores vitimas dos países produtores, pois se não fosse os países latinos não teriam tanto dependentes químicos em seus territórios. Cada um vê o problema da maneira que lhe convém, mas a verdade é que quem mais sofre com a forma que o mundo encontrou para combater o avanço da droga é a população pobre. Se você pede a um aluno em uma Universidade no Brasil pra desenhar um traficante, ele vai desenhar um homem de pele escura, boné na cabeça, bermuda, tênis, pistola na cintura, fuzil atravessado nas costas e em cima de uma laje de alguma favela. Se fizer esse pedido em uma Universidade norte-americana com certeza vai ver um desenho de um homem de pele morena, de bigode e com sotaque latino-americano ou mexicano. Nas universidades da Europa o resultado será o mesmo, só que lá vai ser uma mistura de tudo incluindo os africanos. Ninguém vai desenhar um homem de terno e gravata, de pasta na mão, dentro de um parlamento pregando que a força do bem tem que vencer a do mal. O tráfico de drogas movimenta meio trilhão de dólares por ano em todo mundo, no entanto na grande maioria das vezes quem vai preso com esse modelo de combate é gente pobre. Quando a questão é nacional o dependente é o culpado. Quando a questão é mundial o dependente é a vítima. Realmente não sei qual seria o melhor tratamento que o mundo poderia adotar na questão do consumo e da venda de drogas, mas sei que o que temos hoje é o pior tratamento que o mundo adotou.

Mc Leonardo é presidente da APAfunk, cantor e compositor.

Ilustração: debora borba

Portugal tem um território pequeno (menor do que Santa Catarina, que é um dos menores estados brasileiros) e uma população de pouco mais de 10 milhões (metade do número de habitantes da região metropolitana de São Paulo). Não tem nenhuma importância estratégica na geopolítica ou na economia mundiais. Pelo contrário, encabeça a triste sigla dos PIIGS, países que se encontram numa profunda crise econômica, financeira e, por conseguinte, social. A Espanha tem uma área menor que a da Bahia ou a de Minas Gerais e uma população de 46 milhões de habitantes (os falantes de espanhol nos E.U.A. somam mais de 55 milhões). Já esteve no topo das maiores economias europeias, mas atualmente é o S da mesma sigla PIIGS. Mais de 90% dos falantes de português vivem no Brasil. Dos 440 milhões de falantes do espanhol, mais de 400 vivem na América Latina, sendo que os mexicanos correspondem sozinhos a um quarto de todos os hispanófonos do mundo. No entanto, Portugal e Espanha, tão minoritários no uso das línguas que trazem seus nomes, dispõem de uma política linguística muito mais bem planejada e agressiva do que os demais países onde as línguas são faladas por muitíssimo mais gente. Portugal tem o Instituto Camões e a Espanha, o Instituto Cervantes. Na Universidade Autônoma Nacional do México (UNAM) está o maior número de aprendizes de português como língua estrangeira no mundo. Seria óbvio imaginar que esses mexicanos têm muito mais interesse no Brasil, em sua cultura e em sua economia do que em Portugal. Contudo, o Instituto Camões ocupa todo um andar da UNAM e oferece material didático, formação de professores e bolsas de estudos para quem quiser ir a Portugal se aperfeiçoar. No Brasil, rodeado de países onde o espanhol é língua majoritária, o Instituto Cervantes também tem muitas sedes e atua com intensidade na promoção do espanhol falado em Castela, minoritário mesmo em terras de Espanha, onde outras línguas são faladas (galego, basco, catalão, leonês, aragonês) e onde outras variedades do espanhol são amplamente majoritárias (como na Andaluzia e na Extremadura).

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João Pedro Stedile

OS DESAFIOS DO

GOVERNO DILMA

Passadas as festas de final ano, findo os balanços e avaliações do que foi 2010, agora é necessário refletir sobre 2011 e os próximos anos. O principal fato político é o novo governo federal e alguns governadores estaduais, que podem significar mudanças nas políticas públicas e na correlação de forças entre capital e trabalho. A montagem do ministério não trouxe grandes novidades. Consolidou a aliança eleitoral que ganhou as eleições. Mas há uma presença mais clara das ideias desenvolvimentistas no núcleo das políticas econômicas. Há uma presença mais progressista nos ministérios sociais. Já os ministérios que tem muita verba e obra, continuarão nas mãos do PMDB para alimentar nossa lumpem-burguesia que vive mamando nas tetas do Estado. O governo Dilma vai enfrentar grandes desafios no próximo período, cuja solução darão a marca a esse governo. No governo Lula foi possível uma política econômica e social de compensação, em que todas as classes ganharam. Ganhou mais o capital financeiro, mas ganharam a burguesia industrial, a classe média, os trabalhadores e os mais pobres. Daí o incontestável grau de apoio da maioria da população. Foi importante ter bolsa família, prouni, reuni, aumento do salário mínimo, como medidas emergenciais. Eles são insuficientes para resolver os graves problemas estruturais que afetam grande parte da classe trabalhadora. Agora, é necessário enfrentar o problema da educação, marcado por 14 milhões de analfabetos, e pelo acesso à universidade de apenas 10% de nossos jovens, a maioria ainda em faculdades privadas, verdadeiras lojas de diplomas. O grave problema do déficit das 10 milhões de moradias que faltam. Os graves problemas da crise climática, que todos os meses açoitam algum setor de nossa sociedade. A questão da reforma agrária e do modelo de produção agrícola baseado no monocultivo e no uso abusivo de venenos agrícolas, que estão envenenando nossa população. E, finalmente, a valorização real dos salários médios. O salário mínimo não pode mais estar engessado pela cesta básica ou pelo orçamento da previ-

dência. Nada justifica que tenhamos um salário mínimo de apenas 550 reais, enquanto, por exemplo, o governo Requião determinou um salário mínimo regional de 740 reais no Paraná. Há outros desafios relacionados com nossa infraestrutura econômica, como o transporte coletivo nas cidades, as vias férreas, o investimento na indústria nacional e em ciência e tecnologia. Nós somos o país das grandes economias que menos gasta em ciência e tecnologia. A China investe 10% do PIB nisso. Pois bem, para enfrentar esses desafios, não basta administrar bem o orçamento e seguir com medidas paliativas. Agora, precisamos caminhar para mudanças na estrutura de funcionamento de nossa economia. Para tanto, será necessário afetar os interesses dos 20 mil ricos que detêm os títulos da dívida pública interna e reduzir as taxas de juros e o superávit primário. E usar esses recursos para os investimentos sociais necessários. O governo vai precisar controlar a taxa de câmbio. Ela é um importante instrumento de defesa de nossa indústria e de nossas riquezas naturais. Precisamos ter controle, fiscalização e penalização do capital financeiro estrangeiro que vem aqui apenas especular. E precisamos fazer uma reforma tributária, com a recriação do CPMF, que atinge diretamente o capital financeiro, e em detrimento, dispensar de impostos os alimentos, a micro e pequena empresa, que são os que geram mais emprego. Isso tudo será uma verdadeira luta de classes. Para resolver os verdadeiros problemas dos trabalhadores e dos mais pobres, as camadas mais ricas precisam ser afetadas. E a riqueza e a renda distribuída. Para fazer tudo isso será preciso muita coragem e determinação. Esperamos que o governo Dilma tenha, caso contrário, estará apenas semeando uma grave crise, que logo, logo, atingirá a todos. João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via Campesina Brasil.

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Ana Miranda

Arrigo amigo

Acaba de começar o ano de 2011, por que você está tão pálido de repente? Uga uga, lugar de madrugada, madruga quem Deus ajuda, portuga postigo abrigo estiro arrigo arrego arrenego nego nego Uganda uga uga, Arrigo é mais que músico, é inventor de sons, sonsa soma somar mar mara maré marítima marasmo madruga uga uga, musga, músiga, música, lúdica, ludo, duo, duo deca fônica dois dez fômica fome fome de amor amar até que é importante fome de música fugace fuga uga nesga nesgação negação inegação invegação investigação invenção navegação Arrigo abre o abc a de arte b de Bártok c de composição de cl de clara de cr de crocodilo clara luz luzzz lusss lutrsss struss stravsss stravinsss Stravinsky stravinskyano atravessando começando o ano por que você está tão pálido? polido Pound som e palavra palavra e som o sentido exato inato espera a aura Aura Amara Arnaut noutro trobador uma frase musical atento ao som da palavra palavre lavers averso atenção à sequência das vogais no verso reverso o sentido do verso os sons das palavras como se fossem notas musicais cais cãs cansa canção dos vagalumes brrr brr br brejo brinco brilho milharal sinal luminoso numinoso uinoso uidoso ruidoso ruído dos vagalumes lumes mess missas sons sonoridades que criam imagens música popular dodecafônica em linha reta como um poema fonema cinema kinema kinage Cage queria enlouquecer ser música popular atonal música popular erudita ocasião oh maldição propícia para ponto contraponto pronto está adormecida em sua mente mentis menti mentira mencida está adormecida em sua mente esperando a ocasião propícia para despertar e descer até o coração são saom som... Ana Miranda é escritora. janeiro 2011

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amigos de papel Joel Rufino dos Santos

MACONHA, MEU FILHO?

Notas sobre

Tenho muitas lembranças de 1970, ruins e boas. Entrávamos nos piores anos da ditadura para-fascista. Para-fascista, simplesmente fascista ou, ainda, apenas reacionária? Os grandes fatos históricos são como o “cubo de Necker” de que nos falam os cientistas, um desenho no papel em duas dimensões, altura e largura, mas que observado fixamente nos aparece em três dimensões, altura, largura e profundidade, para depois retornar às duas dimensões e assim infinitas vezes. A descrição da última ditadura brasileira é fácil de fazer. Como defini-la, no entanto, é difícil: se a olharmos fixamente diversas das suas outras dimensões aparecerão. A única coisa que não se poderá dizer do cubo de Necker é que não é um cubo. A vida continuou o seu curso, durante a ditadura. Em boa parte ela, a vida, não foi afetada pelo regime. É possível que o leitor conheça muitas pessoas que não a experimentaram, não lhe sentiram o peso, embora fossem adultas, com identidade, trabalho e endereço conhecidos. Ou só a experimentaram indiretamente, pela política salarial antitrabalho, a restrição ao ir e vir, a prepotência do “guarda da esquina” etc. Essa experiência indireta de um fato tão marcante comprovaria que a vida é inesgotável, nada pode circunscrevê-la ou explicá-la completamente. Lembro ao leitor o final de Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Depois de comer o pão que o diabo amassou, Severino, o retirante, desistido de viver vai se atirar de uma ponte. Seu José, mestre carpina, o detém:

Qualquer solução para a supremacia do crime organizado nas regiões carentes prevê uma etapa de choque armado e conquista territorial. É ingênuo supor que apenas a redução da desigualdade conseguiria sanar o caos institucional vigente, e mais ingênuo ainda imaginar que algum programa social de longo prazo seria viável nas atuais circunstâncias. As Forças Armadas podem e devem participar do processo. Já não fariam mais do que honrar os altos custos orçamentários que acarretam ao país. Quando militares são incapazes de resistir a ameaças e tentativas de corrupção, lamento muito, mas lhes falta apenas um passo rumo à inutilidade. As ações policiais nas favelas cariocas precisam continuar até a concretização inequívoca de seus objetivos. Caso contrário, após dois ou três episódios semelhantes o crime organizado ficará tática e logisticamente invencível. Seria um desrespeito às famílias que toleram sacrifícios imensuráveis, além de representar a humilhação histórica das autoridades públicas fluminenses. Ou o Estado triunfa definitivamente ou em uma década ele terá perdido o controle do espaço público e a legitimidade junto à população. Nenhum pesadelo é tenebroso o bastante para ilustrar essa hipótese. O uso da força tem papel estratégico. Apesar do caráter reativo, as investidas nos morros cariocas devem compor um sistema de iniciativas coordenadas que visem à total reurbanização das favelas. As Unidades de Polícia Pacificadora só fazem sentido se acompanhadas por obras de infra-estrutura, projetos residenciais, instalação de aparelhos e edifícios públicos, combate ao banditismo policial. Mas é necessário também um debate livre de hipocrisias e mistificações acerca da urgente descriminalização da maconha, que já ocorreu com sucesso no mundo civilizado. O proibicionismo é o alicerce legal desse edifício putrefeito.

Sobre essa alegria da vida, falam todo o tempo a literatura e a arte, quando livres ainda do mercado e do Estado – a começar pela música popular, os folguedos, o próprio carnaval. O Mercado (agora com maiúscula) e o Estado são monstros frios, de que a vida tem de escapar todo o tempo. Essa velocidade de

a guerra do Rio

escape – para usar um jargão da astrofísica – da arte não é, exatamente, um momento da sua vida, mas o seu próprio modo de produção. É a explicação para o preço de um quadro de Picasso, por exemplo, nada ter a ver com a arte de Picasso. O senso comum imagina que essa alegria da vida, expressa pela arte, é arbitrária. Muitos hippies, naqueles anos, acreditaram nisso. Eu e meus colegas politizados tínhamos opinião contrária: a alegria de viver também é determinada, tem algo histórico-social por detrás. Paz e amor era uma viagem, sim, mas as passagens eram pagas por alguém, a uma determinada tarifa. É possível que os hippies e nós tivéssemos alguma razão. Não por que a verdade esteja sempre no meio, como conclui o senso comum, mas porque ambos – o movimento hippie e o da luta política – foram variantes do mesmo processo histórico. Conto ao leitor uma lembrança dos anos 70. Um pai que vivia no interior de São Paulo recebeu a informação de que o filho estava preso no DOI-CODI. Foi lá e bateu na porta. Na primeira vez o ameaçaram. Na quinta, o comandante permitiu que visse o filho torturado, numa salinha. Com lágrimas nos olhos, o assustado pai só perguntava ao filho, entre risos dos tiras: “Só me responde uma coisa, meu filho, foi maconha?” Joel Rufino é historiador e escritor.

Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Autor do romance Crisálida (editora Casa Amarela). www.guilhermescalzilli.blogspot.com

Ilustração: hke...

É difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia [qual a razão de viver] ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.

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Guilherme Scalzilli

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Sérgio Vaz

NOVOS DIAS “Este ano vai ser pior… Pior para quem estiver no nosso caminho”.

Então que venham os dias.

Um sorriso no rosto e os punhos cerrados que a luta não para. Um brilho nos olhos que é para rastrear os inimigos (mesmo com medo, enfrente-os!). É necessário o coração em chamas para manter os sonhos aquecidos. Acenda fogueiras. Não aceite nada de graça, nada. Até o beijo só é bom quando conquistado. Escreva poemas, mas se te insultarem, recite palavrões. Cuidado, o acaso é traiçoeiro e o tempo é cruel, tome as rédeas do teu próprio destino. Outra coisa: pior que a arrogância é a falsa humildade. As pessoas boazinhas também são perigosas, sugam energia e não dão nada em troca. Fique esperto, amar o próximo não é abandonar a si mesmo. Para alcançar utopias é preciso enfrentar a realidade. Quer saber quem são os outros? Pergunte quem é você. Se não ama a tua causa, não alimente o ódio. Por favor, gentileza gera gentileza. Obrigado! Os Erros são teus, assuma-os. Os Acertos também são teus, divida-os. Ser forte não é apanhar todo dia, nem bater de vez em quando, é perdoar e pedir perdão, sempre. Tenho más notícias: quando o bicho pegar, você vai estar sozinho. Não cultive multidões. Qual a tua verdade? Qual a tua mentira? Teu travesseiro vai te dizer.

Prepare-se!

Se quiser realmente saber se está bonito ou bonita, pergunte aos teus inimigos, nesta hora eles serão honestos. Quando estiver fazendo planos, não esqueça de avisar aos teus pés, são eles que caminham. Se vai pular sete ondinhas, recomendo que mergulhe de cabeça. Muito amor, mas raiva é fundamental. Quando não tiver palavras belas, improvise. Diga a verdade. As manhãs de sol são lindas, mas é preciso trabalhar também nos dias de chuva. Abra os braços. Segure na mão de quem está na frente e puxe a mão de quem estiver atrás. Não confunda briga com luta. Briga tem hora para acabar, a luta é para uma vida inteira. O Ano novo tem cara de gente boa, mas não acredite nele. Acredite em você.

Feliz todo dia!

Sérgio Vaz é poeta e fundador da Cooperifa. poetavaz@ig.com.br

Gilberto Felisberto Vasconcellos

A miséria do povo e a misericórdia do PMDB O PMDB é um partido michê. Para onde vai a grana vai o tapinha do amor. Sobre a nova presidente do Brasil há o fato de ser mulher. É importante? É. O Brasil antropologicamente é formado com o útero mais do que pelo macho. Era o que dizia Darcy Ribeiro. O homem brasileiro é plasmado pela mulher indígena. A mãe segura a família, é uma cultura de conteúdo matriarcal, segundo Oswald Andrade. Matriarcado de Pindorama. No inconsciente do homem brasileiro é forte a presença matriarcal, ainda que subterrânea, pois o que vingou foi o patriarcalismo da classe dominante. Uma Presidente mulher é significativo, mas não basta. A pistoleira Margaret Thatcher é, do ponto de vista político, uma mulher péssima. Idiotice é fazer a iconização da política como está acontecendo hoje com o domínio da televisão: o operário tem que ser operário, o negro representado pelo negro, o gay pelo gay, etc. A crise da representação redundou em uma mistificação do ícone: Lula operário não é a classe operária, Obama negro não é o negro americano, Dilma mulher não é a mulher brasileira explorada e deserdada. Durante o primeiro governo de Lula escrevi um livro chamado A salvação da Lavoura. Para o Brasil seria muito bom Marcelo Guimarães fazer parte do governo e cuidar do álcool combustível com o autodesenvolvimento fundado em pequenas propriedades. Seria uma maneira de fazer a reforma agrária e preparar o caminho brasileiro do socialismo. Stedile sabe disso porque é poeta. Marcelo Guimarães me deu um bilhete escrito por Lula, 4 anos antes de ser presidente da República, que dizia: chegando lá, Marcelo será convidado a fazer parte do Ministério. Marcelo havia sido do PT, disputou eleições em Minas Gerais pelo PT, Lula lá chegou e não o chamou para ser ministro, tampouco o convidou para conversar e tomar um cafezinho. Nunca houve encontro de Lula com Marcelo no Palácio, não obstante Marcelo ter muitos amigos e conhecidos no PT de Minas. Com isso eu quero dizer o seguinte: a política não é argumento, não é razão, não é ciência. A política é luta de classe e é feita de interesses. A fúria do interesse privado, dizia Karl Marx. Marcelo era titica perto do cacetão do PMDB, tanto que o ministro das Minas e Energia não foi ele, e sim Lobão. A patota do Sarney indicou a meritocracia, Lobão foi consagrado na área energética. Um gênio. Com Dilma no poder não muda a composição de classe do governo Lula, a simbiose da alta oligarquia financeira nacional e internacional junto com o subproletariado nutrido de banquete bolsa família. Na mídia anda surgindo uma avalanche de conselhos: agrade todo mundo, governe para todos, não faça distinção de classe social, o Brasil é de todos os brasileiros, afaste-se de Chavez. Merval pontifica: “Dilma já assegurou que vai respeitar a liberdade de imprensa.” Leia-se: terá uma atitude cordata com o latifúndio televisivo. Do jeito que o trem vai, só rezando! Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.

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entrevista

Chico Alencar

Participaram: Bárbara Mengardo, Cecília Luedemann, Débora Prado, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya. Fotos: Fábio Nassif.

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“Em 2011, a esquerda tem que construir uma plataforma comum”

arioca do bairro da Tijuca, escritor, professor de História e deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, Chico Alencar define-se como um cristão, socialista, marxista, apostólico carioca. Lutou contra a ditadura, militou no PT de 1987 a 2005. Saiu, após muitas decepções, e filiou-se ao PSOL “para continuar praticando os valores políticos que aprendemos no próprio PT”. Nesta entrevista, o deputado fala sobre a militância partidária, as razões da sua saída do PT, sobre a participação do PSOL nas eleições presidenciais, a política de segurança pública carioca e a ocupação do Exército nos morros do Rio de Janeiro. Para 2011, embora ache que há o risco do governo Dilma ser mais conservador do que o de Lula, que “pela sua biografia tinha que dar satisfações a um nível de demanda popular maior, tanto que não houve uma repressão aberta aos movimentos populares”, defende que a esquerda construa uma plataforma comum, que envolva a política econômica e assuma a discussão sobre a dívida pública como uma questão central, “que reduza a força do capital financeiro e que tenha a questão do controle ambiental no âmago dela. Então, aí, já dá uma boa discussão: que caminhos o Brasil vai seguir?”.

Lúcia Rodrigues - A gente gostaria que você começasse falando sobre a sua trajetória política, tudo o que você fez durante todos esses anos que está militando nessa área até agora que você foi um dos deputados federais reeleitos com maior número de votos. Chico Alencar – Na verdade, eu fiquei nessa eleição, até para minha surpresa, graças à Caros Amigos também, em segundo lugar. Fui o mais votado, lá no Rio [de Janeiro], depois do Garotinho, que foi uma máquina avassaladora, foi exgovernador, ele apareceu em todas as propagandas do novo partido dele. Eu entendo essa última eleição como uma espécie de culminância ou de uma trajetória de vida política. Começou quando eu era ainda menino, com 16 anos, estudante em Colégio Pedro II, meados da década de 1960, já depois do golpe, participei de uma passeata e já fui em cana. Foi a minha estreia no movimento estudantil, teve prisão, dormi no quartel da Polícia Militar, em uma estrebaria com mais cem colegas e os cavalos. Mas, a partir daí eu já estava ingressando, como o Plínio [de Arruda Sampaio] tantos outros, pela sacristia, através da juventu-

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Chico fala sobre a militância partidária, sua saída do PT e política de segurança pública carioca.

de estudantil católica. A gente tinha grupos de jovens e, curiosamente, uma pessoa ateia, minha madrinha e vizinha, me apresentou uma primeira literatura sobre o Socialismo. Me lembro muito bem o livrinho: Socialismo vivo, de um francês, Julio Monc... Lúcia Rodrigues– Com quantos anos isso...? Com uns 15. Um dia a minha filha caçula, que tem 17 anos, encontrou uma carta que eu escrevi para um amigo, em 1967, falando que eu que-

ria estudar muito, porque era preciso lutar e tal... Mas, começa por aí, nessa consciência do mundo. E o regime era uma ditadura que aprofundava o seu autoritarismo. Então, tinha um inimigo muito forte para enfrentar. Por outro lado, havia uma ascensão do questionamento da burocracia socialista soviética e movimentos que, não negando o socialismo, buscavam uma renovação. Então, eu cresci nessa mistura que é muito brasileira, de um cristianismo revolucionário que volta às suas origens. Às vezes, quando me per-

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guntam o que eu sou, eu digo: eu sou cristão, de formação católica, socialista, marxista, apostólico, porque eu sou um pregador, carioca... não sou romano. Católico, apostólico. Romano, não. Lúcia Rodrigues - Foi via CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) que você entrou nessa militância? É, foi a partir da JEC (Juventude Estudantil Católica), depois as Comunidades Eclesiais de Base, que no Rio [de Janeiro], onde o Cardeal era muito conservador, ao contrário daqui que tem o Dom Paulo Evaristo Arns. Elas não se desenvolveram muito, mas mais no entorno, na baixada, que tinha o Dom Adriano Hipólito de Nova Iguaçu, que foi até sequestrado pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas). As associações de moradores tinham muito vínculo com essas lideranças da Igreja progressista. Eu fui presidente da associação do meu bairro, da Tijuca, e depois, acabei sendo presidente da Federação, da FAMERJ, também na primeira metade dos anos 1980. Eu fiz faculdade de História, na UFF, depois fiz mestrado em Educação na Fundação Getúlio Vargas. Então, era uma coisa boa, apesar de toda dificuldade, um regime muito fechado. Amigos presos, sumidos assim para nunca mais, muito triste, barra pesada, mas a gente tinha também alternativas. Eu não sou fundador do PT, me filiei em 1987, porque desde aquela época achava que a autonomia dos movimentos populares e sociais era muito importante, e continuo achando. Mas, o próprio movimento comunitário foi sendo progressivamente cooptado, inclusive na era Brizola no Rio de Janeiro. E o movimento comunitário foi perdendo a sua pujança. Tudo o que fica “chapa branca”... nossos jovens da UNE tem que perceber muito isso... perde a pujança e perde a função. É um problema histórico de qualquer sociedade, é um problema que a esquerda não soube resolver bem, é o problema do socialismo que estatiza a própria dialética da sociedade e aí isso tudo perde o viço. Naquela época também se fazia concurso público, eu fiz para professor de História, em meados dos anos 1980, passei, mas não pude tomar posse, porque eu precisava do atestado ideológico. E eu tive que ser submetido a uma sabatina no DOPS, aquela casa sombria com um inspetor temido chamado Mário Borges, que me interrogou sobre o meu papel de presidente do Grêmio do Colégio de Aplicação, aos 17 anos. Eu comecei falando da prisão, mas não mencionei o movimento estudantil, que foi uma experiência muito rica na minha vida. E ganhei a expulsão do Colégio, naquela época da ditadura tinha o decreto 477, o estudante que fosse flagrado fazendo política era expulso e ficava três anos sem poder estudar. E eu fui expulso, mas o reitor falou que como eu já estava indo para a terceira série do ensino médio, ele não ia aplicar o 477, mas eu tinha que sair do Colégio. Aí, um colégio de comunidade judaica de esquerda, “Scholem Aleichem” e o diretor que tinha sido do Partido Comunista me acolheu para eu completar o chamado segundo grau. Gabriela Moncau - Você contou isso tudo na entrevista?

Não, ele sabia. O Mário Borges, inspetor, aquele protótipo mesmo de tira, gordão, forte, mal humorado, fiquei esperando uma hora e meia. Um professor jovem, concursado, aprovado, fica na antessala daquele prédio sombrio para ser sabatinado por um tira, truculento, torturador, muito mal afamado nos meios juvenis. Eles tinham a minha ficha completa desde a prisão em 1966, até a passagem pelo grêmio do Colégio de Aplicação. Ficou uma dúvida e eu tive que apelar para um irmão da minha mãe, que era delegado aqui do DOPS de São Paulo. Ele me chamou e passou um sermão. E aí eu consegui, afinal, depois de um ano do concurso, virar professor da rede pública. Daí que veio, nos anos 1980, o movimento comunitário, e depois, com o início dessa “abertura lenta, gradual e segura”, conquistada aos poucos pela gama de movimentos que surgia. Então, eu me filiei ao PT em 1987, tendo antes, trabalhado um pouquinho, na prefeitura do Saturnino Braga, nas primeiras eleições da prefeitura, em 1985. Mas, em 1988, aí eu, que já tinha uns 20 anos de magistério, disputei a primeira eleição. Lúcia Rodrigues - E por que você optou pela via institucional? Porque como estudante de História e depois como professor, eu fui percebendo que toda luta popular na história brasileira, todo movimento social significativo sempre teve também alguma inserção na institucionalidade. Nós nunca tivemos na história brasileira um movimento insurrecional, popular, com êxito e solidez de transformação que, de alguma maneira mantivesse interface com a institucionalidade. E o PT, que foi uma belíssima experiência partidária, com muitas singularidades também nesse aspecto na história brasileira, ele sempre falava do chamado tripé da vida política e partidária: um pé no movimento, outro pé na própria construção do partido, no outro, na institucionalidade, no parlamento, nos executivos. E isso durante um tempo importante da história inicial do PT, não sem contradições, foi praticado: mandatos populares, gabinetes de rua, prestação de contas públicas, audiências públicas, idas aos bairros, presenças nos movimentos, apoiando as lutas populares dos sem terra que surgem em 1985... Eu entendi que o parlamento podia ser um instrumento para ajudar esses movimentos, para ele não ser um parlamento estritamente burguês ou da reprodução do sistema dominante. E assim foi feito e eu até fui até o mais votado do PT como vereador da cidade [do Rio de Janeiro]. Depois, naturalmente, quase teve a reeleição, e depois já em 1996, eu disputei para a prefeitura e aí começaram os problemas no PT. Então, a militância do Rio decidiu que era importante disputar a prefeitura em 1996, o partido vinha aos pouquinhos crescendo. O PDT que era um partido fortíssimo, tinha uma prática de cooptação de movimentos e de alianças com figuras da política mais espúria, mais clientelista, mais corrupta. Havia um questionamento sobre esse tipo de alianças. Entretanto, a cúpula do PT, da então Articulação, vale dizer: Zé Dirceu,

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Gushiken, Lula, falaram: “Não, agora a gente tem que ser pragmático e é fundamental fazer aliança com o PDT”. Isso era um problema na época. Imagina, agora, uma aliança com o PTB, com o PL, com PR, é corriqueira, está dada. E aí houve uma profunda crise: a militância num encontro, lá, lotou o ginásio da UERJ, tinha mais de 1.500 delegados, decidiu pela minha candidatura. O Vacarezza foi lá depois para tentar me convencer a desistir de ser candidato. O Lula falou que não ia dar a menor força. E aí aconteceu um fenômeno muito interessante. Gabriela Moncau - Faltou pouco para você passar para o segundo turno. Exatamente. Começou a campanha, ganhou um caráter de autenticidade, de combatividade, de militância, que surpreendeu todo mundo. E a gente foi crescendo, crescendo, crescendo, uma coisa impressionante... Aí, na antevéspera, a gente fez um comício na Cinelândia. Naquela época, tinha comício com militância. E o Lula apareceu, fez uma autocrítica pública, disse que não tinha apostado, mas a força da base... Foi muito bonito. E aí, por 1,5% a gente não foi para o segundo turno. Mas, foi muito bonita a campanha. Só que perdemos. Eu fui eleito deputado estadual em 1998, mais votado do PT do Rio de Janeiro, exatamente como resultado dessa campanha à prefeitura, fiquei com um nome mais conhecido e lá a crise do governo Garotinho. Continuamos no PT do Rio de Janeiro com esse tom mais independente, de partido mais classista, mais combativo, mais aguerrido. E, assim, chegamos à campanha do Lula. A partir daí surgiu um outro movimento no Brasil, muito expressivo, que é o Movimento Nacional Fé e Política, que reúne a cada dois anos, e tem muita gente do PT ainda. Eu lembro que o Lula foi a um encontro de Fé e Política lá em Poços de Caldas e já tinha aquele papo de vice José Alencar. Depois ele ficou até progressista, o único que batia nas altas taxas de juros, na política econômica. Mas, fomos para a campanha. E aí essa eleição do Lula me lembra uma música do Caetano, chamada Dedé Mamata, que lá pelas tantas nos versos geniais, dizia assim: “O sonho já tinha acabado quando eu vim/ E cinzas de sonhos desabam sobre mim.” Aí, outra crise: contratação do Duda Mendonça...

Hamilton Octavio de Souza- ... que já tinha

sido marqueteiro do Maluf, anos anteriores. Claro. Mas, o pessoal da Articulação, do campo majoritário, falava: “Isso mesmo, para você ver, o cara elege o Maluf, então, já pensou ele com essa capacidade toda, aqui, conosco?” E perguntavam: “Mas, e o dinheiro?” Aí, entrou o Delúbio e começaram esses esquemas todos. Bom, vencemos a eleição e ainda tinha a aposta, a teimosia da esquerda. Ninguém tinha a ilusão de que o Lula ia decretar o Socialismo, a gente não era mais ingênuo, mas a gente achava que ia ser um governo de mudanças. E, aí, começa um processo que, de novo, gerou rupturas sucessivas, mas em janeiro 2011

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tempos diferenciados. Meirelles no Banco Central. A essa altura, o José Alencar começava a falar: “Tem que diminuir os juros, combater a política econômica ortodoxa.” A gente começou a achar o Zé Alencar mais progressista que o próprio Lula. E a ortodoxia, o continuísmo, claro tinha sido a nossa Carta aos Brasileiros. O Palocci, ministro da Fazenda com a banca internacional... Então, começou a gerar muita crise. Veio a reforma da Previdência. Era paradoxal, com cinco meses do governo Lula, você achando que ia ser um governo que ia mobilizar força social de mudança que, embora já declinante... Mas a vitória do Lula dava esperanças, mas o governo começa a ter práticas inteiramente contraditórias com tudo o que a história do PT, inclusive na Frente Institucional Parlamentar, como a gente chamava, negava: a reforma da Previdência, que o PT enfrentou na era Fernando Henrique Cardoso, e aí o Lula propõe... E isso foi uma crise profunda que gerou a saída daquela primeira leva: Heloísa Helena, Luciana Genro, Babá, o João Fontes. E nós continuamos, mas fomos suspensos. Eu lembro que a gente não votou na reforma da Previdência, mas fez abstenção. Então, as coisas foram crescendo até que vem o mensalão e toda o esquema do PT de financiamento de campanha, sobretudo isso, e de acordos com o PL, depois PR, de Valdemar Costa Neto. Quando tudo isso começa a vir à tona, a crise se aprofunda. Aí eu me lembro que uma vez, já em 2004, dois anos do governo Lula, e nós ainda no PT, já começava a surgir esse zumzum de muito dinheiro, de onde vinha tanto dinheiro... E eu propus, o tesoureiro era o Delúbio, que em 2004, que a gente desse um exemplo: transparência total, cada centavo que entra para a campanha a gente vai publicizar on line, já tinha esses mecanismos, no decorrer da própria campanha. E o Delúbio, foi aí que ele cunhou uma frase que ficou famosa, tinha fonte de financiamento, caixa 2, que não eram publicáveis. E quando vem a CPI do Mensalão, a gente descobre que o Duda Mendonça falou que ele tinha recebido uma parte significativa, se não me falha a memória, de 10 milhões de reais ou de dólares, das Ilhas Caymán, paraíso fiscal. Aí ruiu. E foi muita gente que estava ao lado, lá na Câmara, foi à tarde, a gente no plenário, a gente chorou, tem uma foto também que registra esse movimento. A gente escreveu um cartaz também: “Não em nosso nome !” E aí foi um desastre. Foi o momento mais doloroso depois do enfrentamento da ditadura, porque é um golpe, é uma frustração. Eu gosto muito de música, eu vou fazendo uma espécie de trilha sonora da minha vida. Num documento que eu fiz na minha saída do PT que na Câmara eles chamam de separata, foi um discurso, de título: “Mudar de enxada para continuar o plantio”. Só no plano federal, centenas vão migrar, militantes frustrados, lá no plano federal, a deputada Maninha, o João Alfredo, do Ceará, o Orlando Fantazini, daqui, como Ivan Valente, também, e eu do Rio de Janeiro, já tinha Luciana Genro, o Babá, João Fontes, Heloísa Helena do Senado. Então, foi um grupo grande, expressivo, de gente séria, autêntica, que fez essa

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escolha que é muito difícil. A gente fez plenárias com 300, 400, 500 pessoas para discutir: sai ou não sai, fica ou não fica. E houve uma maioria, digamos que de 65 para 35, 60 para 40, pela saída do PT. Foi difícil, foi dolorosa. E vieram convites para entrar: PSB, PPS, PV, PDT, PCdoB, esses partidos mais progressistas queriam esses quadros políticos mais conhecidos, mas nós falamos: “Não, então é melhor ficar no PT, trocar seis por meia dúzia.” E aí ingressamos no PSOL que já tinham os seus fundacionais ali, mas, ainda sem disputar nenhuma eleição. Lúcia Rodrigues- E por que você ingressou no PSOL? O que você viu de diferente em relação aos outros partidos de esquerda? Eu acho que aí, pelo nosso processo no PT, o PSOL abria possibilidades de construção que retomava alguns valores do PT. A gente até falava muitas vezes: “Nós saímos do PT para continuar praticando os valores políticos que aprendemos no próprio PT, e que agora no PT de hoje não são viáveis de se praticar, você tem que fazer um nível de concessão que te ofende, te agride, te choca, te bate, não dá, é insustentável. E os outros partidos tem os mesmos vícios, partidos que vão sendo corrompidos pela institucionalidade, que é cada vez mais forte”. A gente acreditava que o PSOL, ainda uma aposta, poderia abrir essa possibilidade, mas é duríssimo. O PSOL que tem só cinco anos de vida é um partido que ainda não se consolidou, um partido pequeno com vocação de grandeza. A gente pretende fazer boa política. E tem problemas. O PSOL tem muitas correntes. Esse ano que está acabando agora [dezembro de 2010], chegamos num nível de conflagração que eu pensei que o partido ia acabar. Tínhamos claro como figura proeminente a Heloísa Helena e há também quem diga que partido político no Brasil que não tiver uma figura fortemente carismática, não se afirma nacionalmente. É uma meia verdade, a realidade mostra um pouco isso. O Lula é muito maior que o PT e a Heloísa é uma figura que tem também esse carisma, essa capacidade de se inserir no imaginário popular. Mas, o PSOL tinha essa joia preciosa da figura pública da Heloísa Helena e assim disputamos a nossa primeira eleição. E, incrível, do ponto de vista da eleição majoritária, foi a terceira colocada. Foi uma novidade que surgiu no cenário. Conseguimos, não é fácil nos esquemas cada vez mais endinheirados da campanha fazer três deputados federais. Ou seja, em 2006, o PSOL sobreviveu. O PSOL no imaginário da parcela da população que identifica a legenda, tem uma boa figura, que agora com essa eleição de 2010 eu acho que se confirmou. O próprio papel do Plínio cuja candidatura, internamente, foi muito contestada, foi essa conflagração insana... Eu, em maio, falava: “Não

sobreviveremos, estamos na beira do precipício.” Teve uma disputa interna: três pré-candidatos de um partido pequenininho. Mas, felizmente, conseguimos consolidar uma candidatura, o Plínio com a sua história de vida. Ele, claro, teve uma votação muito menor que a Heloísa, que fez em torno de 6 milhões de votos, o Plínio fez 900 mil, entretanto, a votação na legenda e nas eleições proporcionais para o PSOL se manteve a mesma. O Ivan [Valente], aqui em São Paulo, não tinha a menor chance, eu no Rio de Janeiro ia ter que suar na camisa, muito, pelas dificuldades do partido, tempo de TV, essa disposição de não aceitar o financiamento de empresas. Fazer uma campanha na contramão do modelo político vigente. E, no entanto, continuo achando que nós sobrevivemos. E o Plínio, que era uma figura que a maioria não conhecia, pela massificação da televisão, era o velhinho maluquinho. Lá no Rio de Janeiro ele arrastou multidões de jovens, quando teve um circuito universitário, fez uma bela figura, questionando, contestando. O Plínio era um provocador, no sentido de resgatar a dimensão do debate político. Ele colocava questões que incomodavam a Dilma e a própria Marina. Mas, claro, a gente sabia que expressão eleitoral grande não teria. O PSTU e mesmo o PCB quase fizeram aliança, mas a coisa gorou, faltou cinco minutos para registrar as candidaturas. Na verdade, se fosse a Heloísa, todos estariam juntos. Lúcia Rodrigues- Você acha que o governo Dilma vai tentar cooptar os movimentos sociais? Olha, o Lula, pela sua própria história, pela sua formação política, ele tinha isso no sangue. Ele tinha, inclusive, uma eficácia nessa cooptação extraordinária e imensa. Com a Dilma será muito mais difícil. O estilo é totalmente diferente. A Dilma tem lá na sua juventude uma história de luta contra a ditadura, é torturada 22 dias e é uma mulher, tem essa singularidade. Eu não diria que são desprezíveis e irrelevantes, mas o governo dela é de continuidade. Essa comunicação com a população faz com que o cidadão comum, inclusive despolitizado, se identifique: “O Lula sou eu. Eu sou um Silva, também. A diferença é que ele é um ex-pobre, mas que continua sabendo o que é a vida da pobreza: “eu continuo pobre, aqui, mas deu uma melhoradinha, comprei até uma geladeira nova.” Porque houve uma pequena movimentação em termos de mobilidade social, embora o país continue com problemas gravíssimos, terríveis, da desigualdade social, abissal, das regiões metropolitanas que são o caos do ponto de vista da vida, da mobilidade humana. Hamilton Octavio de Souza- O que pode aglutinar as esquerdas, nessa perspectiva?

“A ideologia dominante que envolve inclusive os setores de esquerda é isso: a eficácia, a competência, o desenvolvimento a qualquer preço”.

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Eu acho que, em primeiro lugar, a esquerda tem que construir em 2011 uma plataforma comum, que envolva uma política econômica, discutir, inclusive, assumir a dívida pública como uma questão central para a formulação de uma política econômica mas que reduza a força do capital financeiro, da ciranda, e que tenha, evidentemente, a questão do controle ambiental, da questão ecológica e da chamada sustentabilidade no âmago dela. Então, aí, já dá uma boa discussão: que caminhos o Brasil vai seguir? O próprio papel do BNDES que tem financiado grandes, mega investimentos e conglomerados das grandes empreiteiras, no Brasil e fora dele. A capitalização dos fundos de pensão que é outra força econômica enorme. Enfim, a gente precisa discutir esses pontos, acumulação capitalista, a relação com a dívida pública e o que ela drena do orçamento público da união, a cada ano. O que está acontecendo no Brasil? Embora seja um fenômeno mundial, no Brasil isso é particularmente agudo. O próprio episódio, que reverberou tanto, do aumento dos deputados, abusivo, sem a menor sensibilidade em relação à sociedade. Mas, o que isso expressa? A autonomização da vida política em relação à sociedade. No Brasil, mais que em outros lugares, a atividade política passa a ser quase que uma loja de departamentos, que são os partidos com interesses próprios e muito

vinculados a sugar a máquina, a promover fidelidades de acordo com o que você pode mamar nas tetas do Estado. Virou uma profissão, e não mais um serviço. Então, o PSOL é um dos poucos partidos que ainda mantém a mística da política como instrumento de mudança. Os outros partidos, a grande maioria está inteiramente inserida nisso que eu estou chamando de profissionalização da política. Lúcia Rodrigues - Com essa base fisiológica e clientelista que a Dilma vai ter no Congresso, você acha que o governo dela corre o perigo de ser mais à direita que o governo Lula? Corre, corre. Porque o Lula, de qualquer maneira, pela sua biografia, pela sua história, tinha que dar satisfações a um nível de demanda popular maior, tanto que não houve uma repressão aberta aos movimentos populares, claro que não, cabia até cooptação. E eu, aí, discordo do meu amigo e irmão Plínio, que andou falando mais recentemente: “Serra seria melhor porque é uma coisa mais aberta, é melhor a repressão do que a cooptação.” O espaço da cooptação, da política do atrelamento, ele abre um patamar de disputa maior do que da repressão. Na repressão, você fica encolhido, reprimido, não tem espaço de movimentação. A cooptação coloca na cena pública concepção de movimento, sua relação,

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questiona os próprios movimentos, a gente tem como estar lá, fazendo esse embate. Mas, a Dilma tem um perfil altamente técnico, foi uma aposta do Lula. Ninguém no PT, no início, queria a Dilma. Ela não é um quadro orgânico do partido. Foi a crise do mensalão, que queimou todos os potenciais candidatos ali. Lula fez uma aposta da escolha dele, do bolso dele, com o perfil técnico, que talvez na cabeça dele não pudesse sofrer ataques do ponto de vista ético, mas por outro lado isso gera uma dificuldade com o parlamento. Cecília Luedemann - É o discurso da “competência”? Por exemplo, um projeto do agronegócio e um projeto do MST. Ganha o agronegócio, porque apresenta melhores condições. Será esse o discurso? Olha, a ideologia dominante no Brasil, que envolve inclusive os setores ditos de esquerda é isso: a eficácia, a competência, o desenvolvimento a qualquer preço, o Brasil avançando nos marcos do capitalismo, nós já não somos dependentes dos Estados Unidos, nós já estamos nos afirmando como pujança mundial. É um discurso muito enganoso que não resiste ao olhar para a nossa realidade e ver como anda a educação pública, como anda a saúde pública, como anda a gestão das cidades, como anda a economia que realmente permitiu esse crescimento, mas que tem enormes fragilidades. Se essa crise mundial atingir aqui, o próprio pessoal aí do sistema já está percebendo, o Banco Central está todo cauteloso, está segurando o crédito, porque teve esse afã de consumo.... Apesar de tudo, acho que um governo Dilma pode ter mais proximidade e sensibilidade para isso, que um governo Serra com aquela turma muito atrasada, que gira em torno desse polo aí. Gabriela Moncau- Gostaria de saber o que você acha sobre o novo plano nacional de educação, que saiu há pouco tempo, e tem algumas metas, só 7% do PIB, até 2020, e também a meta de matricular só 35% dos jovens no ensino superior, a ampliação do FIES, a ampliação do ensino a distância. Eu queria saber o que você acha enquanto perspectiva da política educacional? Esta é uma discussão estratégica e como é uma discussão que passa pelo Congresso, vai permitir, junto com a reforma política, se não for com participação popular não vai avançar. Eu vou chegar lá. A reforma política tem que escolher quatro ou cinco pontos, a começar com o financiamento público da campanha, e focar naquilo, senão o povo não vai se envolver. Você só se envolve a partir da compreensão, a partir do entendimento é que dá a adesão. O Plano Nacional de Educação, a mesma coisa. O nosso papel, do PSOL é jogar para a sociedade a discussão: qual é a concepção central do Plano Nacional de Educação? Que apostas eles fazem, que é estratégica no nosso modo de dizer, por uma educação radicalmente pública e democrática? O que é a parceria público- privada na educação, que o Prouni estabelece? O programa do PMDB que é governo Dilma, que tem o vice, ele coloca um janeiro 2011

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Prouni para o ensino básico, para o ensino médio, ou seja, eles querem reduzir o papel da escola pública, e, claro, financiar com dinheiro público o ensino privado em todos os níveis. Então, tem forças poderosas, dentro dessa visão, de um modelo de desenvolvimento onde o privado é o êmulo, é o único possível, com a crítica que procede pela má gestão da máquina mastrodôntica do Estado, a burocracia, a lentidão, a corrupção. Claro que é uma ilusão de que você pode estatizar todos os pontos fundamentais da vida, mas você tem que garantir o papel do Estado aí. E, na concepção atual, parece que é uma grande parceria público-privada em todas as áreas, inclusive na área política. Débora Prado - O professor Carlos Vainer chama esta etapa que estamos vivendo de ‘democracia direta do capital’. As decisões são tomadas numa decisão direta do capital privado com o poder público. Qual sua opinião sobre isso? Exatamente. Por isso que o papel da instância política, daquela ideia que é da antiguidade clássica greco-romana, em algum aspecto, depois a formulação do Rousseau, do Montesquieu, do Locke, nem isso mais a gente está tendo a representação, a chamada soberania popular, não. São os grandes negócios, os grandes investimentos, os grandes empreendimentos, inclusive educacionais. O que está se investindo na educação superior privada, inclusive capital transnacional, é uma grandeza. E isso tem crescido no Brasil, cada vez mais, é um empreendimento. E a instância pública vai se encolhendo: “É melhor fazer a parceria, então.” O plano nacional de educação fica tímido, por exemplo, em chegar até 10% e essa é uma batalha que nós temos que travar, exatamente por isso. “7% já é muito, que é uma meta do plano decenal do governo anterior, que o Fernando Henrique vetou e o governo Lula também não encarou, não enfrentou. Eu acho que a gente tem que fazer esse embate muito qualificado e mediatizado. Tem que ter um elemento pedagógico que faz com que as pessoas se engajem e compreendam que o poder público é um elemento fundamental de embate com os grandes interesses privados. Mas, até a segurança pública, eu vejo lá no Rio de Janeiro, os empresários estão querendo cada vez mais participar da chamada pacificação, dando dinheiro diretamente para a segurança pública. Débora Prado- A valorização imobiliária tem pautado a política de segurança pública? Sim, tem uma situação real de conflagração, a chamada perda de controle territorial pelo poder público de áreas, o que é, de certa maneira falacioso, na medida em que a ausência do Estado foi dirigida e intencional. Quer dizer, o poder público se encolhe, mas a política de clientela, o centro social, está lá sempre, essa área não é esquecida porque tem lá o eleitorado. Agora, é claro, aí surge com o tráfico armado de drogas e o negócio da arma é mais letal e perigoso para esse tipo de domínio, que tem como alternativa

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as milícias. Isso é um fenômeno que é muito forte no Rio de Janeiro. No filme Tropa de Elite II mostra muito bem isso, de novo a parceria público-privada na segurança. Agora, evidente que o domínio armado do tráfico cria uma situação de despotismo nas comunidades pobres, que não têm conivência com isso, tem convivência. Vai enfrentar como? Lúcia Rodrigues - Queria que você comentasse um pouco essa militarização para combater a pobreza, para fazer uma limpeza, uma higienização para os megaeventos que vão ocorrer no Rio de Janeiro Coincidentemente, ontem, eu gastei 5 horas do meu dia, conversando como representante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, 2 horas e meia com o Comandante Militar do Leste, o general Adriano, e o general que vai coordenar toda essa força de ocupação da região do complexo da Penha e do complexo do Alemão, o general Sardenberg. E eu percebi neles uma preocupação, me deram até um documento. Eles fizeram, assinaram, o Nelson Jobim com o governador Cabral, e com o Comando Militar do Leste, um documento detalhado para ver qual é a função de 1.800 soldados lá, que eles estão com a preocupação, pelo menos isso tem que ter, que a população nos os considerem inimigos, que não estão em guerra. Eu não li esse documento todo. Mas, é evidente que é uma situação inteiramente anômala e eu lembrei: “Vocês estiveram aqui no Morro da Providência e houve aquela tragédia dos soldados entregarem os meninos para o grupo de traficantes rival E isso é terrível e mostra que Exército não é para fazer policiamento. E eles disseram: “Não, mas é para a gente fazer, quase um apoio logístico.” E aí deram um documento muito grande. E o Alemão, na verdade, o complexo da Penha, desarrumaram o cronograma que era de fato o cronograma olímpico para preparar a cidade dentro dessa concepção de cidade para os megaeventos esportivos e os investimentos que eles atrairão, com muita corrupção, inclusive, porque, cartola de futebol não passa por uma lei ficha limpa, tem muita negociata nessas transações do mundo esportivo. Muito bem, desarrumou porque também não estava programado que a galera do tráfico começasse a zoar, o que gera, de fato, um medo muito grande na população geral.. Eles têm, meninada mesmo, uma concepção capitalista de ganho e uma concepção despótica e cruel de poder. É uma falácia também dizer que é uma guerra, o Rio está em guerra. Mentira, porque guerra supõe projetos de poder e concepção até de Estado, de nação, em confronto. Não tem nada disso, é um negócio, que tem o seu baronato, que de fato não está no morro. Ali é o varejo armado da droga. São meninos, como disse muito bem o Marcelo Freixo, pé de chinelo, a arma de alta letalidade no braço e cabeça vazia... E, ainda assim, superou uma força muito grande. As autoridades, as mesmas que agora falam de um novo paradigma de combate a essa criminalidade, essas autoridades políticas apoiaram a formação das milícias, como autodefesa comunitária. Agora, chegou numa situação limite, aí aparece o

novo modelo que também não pode ser combatido com a afirmação da criminalização da pobreza. Porque eu estive em várias áreas de UPP, a população quer mais, quer a escola funcionando, a creche, oportunidades culturais, saneamento básico, o que vai levar à ultravalorização dessas áreas. Mas, a população ali está gostando dessa presença, porque são soldados com formação nova, não é o PM de formação truculenta e corrupta. Por isso que não dá conta de botar em 800 comunidades onde tem o varejo de drogas, muitas delas, quase a metade, são controladas por milícias. E que não acaba com a droga, também, porque tudo que é negócio interessa: gato net, bujão de gás, transporte alternativo, vans, kombis e logicamente a droga, também. Então, esse mercado total tem controle sempre despóticos, seja do tráfico, seja das milícias. Em tese, tem uma novidade agora, dizer o seguinte: “As unidades de polícia tem um compromisso cidadão.” De novo, é o embate que a gente tem que travar para ver qual é o desdobramento disso. É evidente que a escolha das áreas obedeceu, até agora, ao chamado Rio Olímpico, á chamada Zona Sul sociológica. Eu estava conversado com o Beltrame sobre isso. Ele falou: “Poxa, de fato, havia total condescendência do governo passado e mesmo no início do nosso. Agora já tem 250, 300 milicianos presos.” Eu digo: “É verdade, mas por outro lado, a milícia está crescendo”. Só que você não consegue nem aprovar na Câmara a tipificação do crime de formação de milícias, que, de fato, está emperrado lá. Estranhamente na Câmara. Então, o Rio de Janeiro vive essa situação muito dramática. Por outro lado, as milícias, fizemos campanha, e o Marcelo Freixo não pode ir em 40% de áreas da cidade do Rio de Janeiro. Lúcia Rodrigues - Por que, eles não deixavam? Agora, interessante também, que nós fizemos um levantamento e o Marcelo teve uma votação expressiva na área da milícia, quer dizer, o povo também não aceita a unanimidade, nem majoritariamente, desse novo tipo de despotismo. Mas, a autoridade pública me disse o seguinte: “Tem a facção do crime que vai para o confronto, é essa que nós estamos combatendo agora. Tem a que está mais de olho no negócio, corrompe. Os milicianos não são mais bonzinhos, são igualmente cruéis, uma coisa violentíssima. Mas, a autoridade de segurança disse: “Eles não mandam bala contra nós, a polícia pode entrar em áreas controladas por milícias, que eles se encolhem, ficam discretos, alguns procuram nem ser reconhecidos, porque podem ser colegas de batalhão, tem que ter prioridade, não dá conta de tudo.” Então, tem um discurso que tem que ser colocado em debate. E a UPP é um projeto piloto muito restrito, que não está nem em 2% das áreas em que está esse domínio territorial, que eu insisto a falta de presença do Estado foi dirigida e induzida para criar massa de manobra político-eleitoral, e o desprezo aos pobres, mesmo, não precisa de investimento. Agora, tem que ter também, porque era insustentável essa situação do Rio de Janeiro,

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o armamentismo crescente com colaboração de segmentos policiais e uma situação de anomalia total que inviabilizaria esses mega eventos. Então, tem uma situação nova e singular no Rio de Janeiro que a gente tem que ver como vai se desdobrada. Eu fiquei muito impressionado, porque nós pedimos uma audiência pública, e a Comissão de Direitos Humanos, em geral não tem muito prestígio, veio o comandante militar do Leste e o próprio general Sardenberg conversar. Eu levei para eles 19 relatos de abusos policiais e eles explicaram que os soldados ainda não haviam chegado. Mas isso é muito grave. Teve um menino desses jovens pastores neopentecostais, ele havia feito um acordo com o patrão para tirar o Fundo de Garantia, sair para comprar uma casa fora da Vila Cruzeiro, 31 mil reais, a polícia foi lá, roubou e ele foi lá fez queixa na delegacia, está indignado até hoje, eu estive com ele. Fora outras coisas de invadir a casa, bater, os procedimentos corriqueiros que tem acontecido lá. Gabriela Moncau- Há um boato sobre a criação de uma nova lei de segurança nacional, que chamaria “Garantia da lei e da ordem” e que institucionalizaria o exército nos morros. Eu gostaria de saber se existe mesmo essa lei de segurança nacional. Olha, eu entendo que essa experiência da tropa lá no Complexo do Alemão que vai até outubro

de 2011 pode ser uma experiência piloto para se avançar nesse campo. Não estranharia que o Nelson Jobim caminhe nessa direção. Mas, de novo, com o atual governo, vai haver baixas, porque nós tivemos no Ministério da Justiça, também da mesma Comissão de Direitos Humanos, e a turma do PRONASCI, que o Tarso [Genro] deixou, tem uma concepção diametralmente oposta. A ver com o Zé Eduardo Cardozo, que eu tenho boas relações, um cara de cabeça. E eu não descarto essa hipótese, até porque o povo aplaude, no senso comum, tem base social para implementar isso. E esse documento é muito significativo que o general me deu: “Regulamento para a intervenção das forças armadas, da Força Tarefa, do Exército, na região.” Tudo detalhado, os procedimentos todos, normas de comportamento, é uma experiência piloto que pode caminhar para esse processo de militarização. Lúcia Rodrigues- Você não acha que a manutenção do Nelson Jobim à frente da pasta da Defesa é uma clara sinalização de que os Direitos Humanos não vão ter uma atenção no governo Dilma? Eu digo isso em relação ao PNDH3, ao qual Jobim foi o principal opositor, que representou os setores mais conservadores. É, essa confirmação significa a consolidação da concepção vigente na cúpula das Forças Arma-

das que é de que o passado não pode ser revisitado; que esse livro da História tem que ter as suas páginas puladas, e, se possível, arrrancadas. Qualquer movimento nesse sentido, eles carimbam como revanchismo, como se nós, outros, quiséssemos torturar os torturadores. E, nesse aspecto, o Brasil, além de ser condenado internacionalmente, continua mais atrasado que os nossos vizinhos. É inadmissível, é outro campo de embate. Olha, os anos que virão vão ser promissores e desafiantes. Nesse sentido, eu estou animado, porque a ideia de felicidade está na luta, além do Plano Nacional de Educação, da Plataforma para unificar os movimentos populares e de esquerda, a questão da Comissão da Verdade, que é um projeto de lei, está lá na Câmara, desde esse ano, acabou, e que a gente tem que avançar. Porque, era para ser Comissão da Verdade e da Justiça, virou só Comissão da Verdade, e já veio todo amenizado. Mas, também no governo há contradições. O José Eduardo Cardozo eu quero ver como ele vai lidar com isso. A gente tem que avançar por uma questão civilizatória, e saber quem, em nome da autoridade pública, com recurso público, sendo servidor público, cometeu crimes. A gente tem direito de saber quem, usando inclusive espaços, estabelecimentos, públicos, as Forças Armadas montou centros de tortura. Como, por que, quem financiou? É um aforisma antigo, quem não se recorda do passado, corre o risco de revivê-lo. janeiro 2011

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Copa e Olimpíadas: o que realmente está em jogo?

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A preparação das cidades brasileiras para os megaeventos esportivos já apresenta inúmeros problemas. Entre eles, obras aprovadas sem licitação e ameaças de despejos de milhares de famílias. Ilustrações Carvani Rosa

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escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016 foi amplamente comemorada. Não poderia ser diferente num País em que o orgulho nacional e a paixão pelo esporte são traços culturais marcantes. O que as comemorações ocultaram, entretanto, são os muitos problemas relacionados à forma como é feita a preparação para estes megaeventos esportivos: são obras aprovadas sem licitação, ameaças de despejos de milhares de famílias, transferência de grande quantia de recursos públicos para poucos grupos privados, intervenções realizadas na cidade que ferem as legislações de planejamento urbano e proteção ambiental, extrema falta de transparência e nenhuma participação do conjunto da população nas decisões que já estão sendo tomadas em nome dos jogos. Alguns atores do governo, da iniciativa privada e das entidades ligadas à Copa e Olimpíadas têm decidido como será a preparação das cidades e alocação dos recursos para os megaeventos, tendendo a reforçar a concentração de renda e poder já existentes. Enquanto isso, na grande mídia, há pouco ou nenhum espaço para importantes questionamentos: o que realmente representa esta preparação? Como o capital atraído para sua realização é distribuído? Como são planejadas as reestruturações urbanas? Quem ganha e quem perde com estes processos? A Caros Amigos conversou com moradores das cidades sedes dos eventos, professores, pesquisadores, intelectuais, parlamentares e integrantes dos movimentos sociais para tentar responder a estas perguntas e mostrar o ‘lado B’ da Copa e das Olimpíadas, ignorado diariamente na campanha pelo orgulho nacional. “Faz parte da nossa cultura gostar do local onde nascemos e vivemos, as pessoas são apegadas as suas cidades e querem que haja eventos nela. Só que esse sentimento saudável se transforma numa armadilha contra a própria população. É preciso desfazer a cortina de fumaça e mostrar que sim, gostamos de jogos, queremos os eventos, mas sem autoritarismo, sem corrupção e sem comprometer o orçamento público pelos próximos 20 anos”, explica Carlos Vainer, professor do IPPUR/UFRJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Os problemas surgem quando as transformações legitimadas pela Copa e Olimpíadas abrem caminho para práticas como o desrespeito a direitos fundamentais e o mau uso dos recursos públicos. A professora da FAU-USP e relatora da ONU

para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, explica que os megaeventos são uma estratégia que as cidades têm utilizado para promover transformações urbanísticas, com uma dupla serventia: “de um lado, a mobilização que ele provoca em nível nacional e internacional acelera a possibilidade de investimentos e transformações, ao mesmo tempo em que, na competição entre as cidades pela atração de investimentos internacionais, o megaevento traz visibilidade. E, ainda, como se trata de megaeventos esportivos, também tem um apego emocional, que justifica um verdadeiro estado de exceção, uma situação em que as regras normais de como as coisas devem ser feitas não precisam ser cumpridas”. Ela relata que, com o estado de exceção gerado, tanto o Rio de Janeiro, quanto outras cidades brasileiras que receberão jogos do Mundial de Futebol, estão implementando intervenções que em situações corriqueiras ou demorariam ou teriam uma série de entraves do ponto de vista jurídico-administrativo, ou seriam alvo de resistência por parte da população. “Já estão sendo aprovadas várias excepcionalidades para a Copa do Mundo em relação à lei de licitações, isenção de impostos, a não necessidade de algumas salvaguardas que normalmente são exigidas, que vão desde alterações de Planos Diretores (lei municipal que estabelece diretrizes para a ocupação da cidade) que não passam pelos processos normais. Elas já estão sendo votadas pelas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e pelo Congresso Nacional – em todas as esferas, isso já está acontecendo no Brasil”, relata a professora. De fato, somente na noite do dia 24 de novembro, o Senado Federal aprovou duas medidas provisórias destinadas especificamente à realização da Copa e Olimpíadas. Uma delas ampliou o limite de endividamento dos municípios em operações de crédito destinadas ao financiamento de infraestrutura para os eventos. Além disso, houve isenção fiscal para a importação de materiais que serão usados nos jogos. As duas MPs foram aprovadas em tempo recorde – em uma semana com apenas duas sessões de poucos minutos na Câmara e Senado. Com o estado de exceção em curso, grande parte das intervenções feitas nas cidades não estão seguindo parâmetros estabelecidos em documentos internacionais e nacionais, como o “Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto das Cidades de 2001 e os Planos Diretores dos municípios. “Na verdade, nenhuma dessas intervenções faz parte de um processo de planejamento urbano, muito menos de um processo de planejamento participativo, que é aquilo que prega o Estatuto das Cidades”, explica Rolnik. Como relatora da ONU para o direito à moradia adequada, a professora conta que já tem recebido denúncias de despejos e ameaças de despejos, principalmente de comunidades de baixa renda e de assentamentos precários, em várias cidades do Brasil, em função de obras de infraestrutura janeiro 2011

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ou ligadas aos equipamentos da Copa do Mundo. “Tudo aquilo que o Brasil se comprometeu como signatário do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - que diz claramente quais são os procedimentos adequados que devem ser adotados e seguidos no caso de ser necessária uma remoção - não está sendo aplicado. Às pessoas que estão sendo removidas não é dada a chance sequer de ter informação sobre o projeto, sobre qual vai ser a alternativa oferecida a ela para o reassentamento. Também não é dada a chance de se estudar alternativas que evitem ou minimizem as remoções”. Isto tudo com um agravante: o financiamento das intervenções é majoritariamente público. “São recursos financeiros, patrimoniais (terras), espaços públicos, que são transferidos sob regras de exceção para grupos privados, sem debate público, em negociações nas quais o povo não é consultado. Há uma canalização de recursos públicos para interesses privados, para as construtoras, as empreiteiras, as empresas de telecomunicações e marketing. E as empresas envolvidas são aquelas mesmas que estão nas listas entre as maiores contribuintes das candidaturas, as que fazem doações para todas as campanhas políticas, como a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Votorantim, o grande agronegócio. E, evidentemente, esses recursos são pagos por todas as outras rubricas, pelo transporte popular que não está sendo feito, pelo saneamento que não é feito e por aí vai”, destaca Vainer. A Odebrecht, por exemplo, somente entre os estádios cujas construtoras já estão definidas, está presente nos consórcios a frente da construção Arena do Corinthians, em São Paulo, da Arena Fonte Nova, em Salvador, da Arena Pernambuco e na reforma do Maracanã, no Rio de Janeiro. Somados, os recursos previstos para estas obras atingem mais de R$ 2,6 bilhões. O economista Luiz Mário Behnken, coordenador da Rede de Mega Eventos Esportivos (REME) e membro do Fórum Popular do Orçamento, avalia que cada megaevento esportivo deve custar em torno de R$ 30 bilhões. Para o professor Carlos Vainer, com esse procedimentos, as cidades brasileiras se transformam não apenas em um “grande negócio, mas num negócio corrupto e com o aval da presidência da república, financiamento do BNDES, e, como as informações não são transferidas para a população, também com apoio do povo”. Ele considera que a privatização do espaço público é absoluta. “Nos Jogos Pan-americanos de 2007 você não podia nem levar um sanduíche para o estádio, porque o Comitê Olímpico Brasileiro havia feito um contrato com uma rede de fast food que assegurava a ela a exclusividade de fornecer alimentação dentro do estádio”, exemplifica. Os problemas que surgem com a falta de transparência na preparação para os jogos atingem, inclusive, o âmbito esportivo. Antropólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Marcos Alvito foi um dos idealizadores da Associação Nacional dos Torcedores (ANT), que luta pela defesa do futebol brasileiro como arte, cultura e um

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patrimônio popular. Para ele, o apreço pelo esporte também tem sido usado nessa armadilha e o megaevento funciona como uma espécie de nuvem midiática que desarma a opinião pública em relação às transformações que vão ser operadas. “O gosto pelo esporte é usado pela mídia e pelo poder público para legitimar interesses de pequenos grupos. No caso da Copa do Mundo isso é evidente. A expulsão do povo dos estádios de futebol está sendo financiada com dinheiro do próprio povo. A reforma do Maracanã, por exemplo, vai custar R$ 705,6 milhões e representa a quarta reforma do estádio nos últimos 11 anos”, afirma, complementando: “ela vai diminuir em quase 10 mil o número de pessoas que poderão ir ao estádio. Ou seja, onde já couberam 200 mil pessoas um dia, depois desta reforma, caberão 76 mil. O preço do ingresso só sobe e o campo também vai diminuir. O projeto do Maracanã, na verdade, não é para os torcedores, é o projeto de um shopping, que além de praça de alimentação vai ter uma praça de futebol ali no meio”, avalia.

Modelo de cidade De acordo com a professora Raquel Rolnik, os megaeventos se inserem no contexto de um novo modelo de cidade. “Havia uma ideia corrente entre os anos 1950 e 1970, nos países desenvolvidos, de uma cidade planejada, com o acesso universal, em que a política de planejamento urbano é vista como uma atividade do Estado, como uma dimensão pública. Isso acabou sendo substituído por um paradigma de ‘empresariamento’ urbano, ou seja, os processos de transformação das cidades ocorrem conectados e dirigidos para a promoção de negócios e atração de investimentos, numa linha direta entre o modelo de política urbana e o capital, sobretudo, o capital imobiliário”. Vainer explica que os grandes eventos estão relacionados justamente a esta nova modalidade de planejamento que surge nos anos 1980 e que torna a cidade uma empresa a concorrer no mercado com outras ‘cidades-empresas’, na busca por capitais, investimentos e pelos próprios eventos. “Um dos grandes problemas deste modelo é que, ao competir, a cidade busca esconder tudo aquilo que não interessa aos negócios. Transformada em empresa, o dissenso é banido da cidade porque ameaça a competitividade. A política – a forma pela qual os agentes coletivos vão ao espaço público manifestar seus dissensos – é abolida, porque pode prejudicar os negócios. As regras são a da flexibilização, da cidade de exceção, o que quer dizer, na verdade, ‘tudo o que for necessário para viabilizar os negócios’. É o que eu chamo de democracia direta do capital, as decisões são tomadas numa ação direta do capital privado com o poder público”, descreve o professor. Para Vainer, o megaevento radicaliza o modelo da cidade empresarial e da exceção. “Basta você ir atrás de todas as leis específicas, a FIFA não paga imposto, os hotéis pra Copa e Olimpíadas não vão pagar IPTU, todas as regras do direito de construir, do uso do solo, inclusive em termos fiscais, todas as regras são suspensas”, exemplifica.

Além de beneficiar a poucos, este modelo tem aspectos perversos: “se o objetivo é fazer da cidade uma vitrine, é preciso esconder tudo aquilo que gera críticas, como a pobreza e a miséria. A cidade é reduzida a sua faceta de exportação, é voltada para o exterior e não para os seus cidadãos. O exemplo da África do Sul está aí para lembrar isso, os pobres foram tirados das ruas, os vendedores ambulantes foram tirados das ruas, para não poluírem a paisagem. No Brasil, em Fortaleza, milhares de pessoas já estão ameaçadas de despejo, para a construção de estradas para a Copa. No Rio de Janeiro, vão construir vias de transportes, todas voltadas para a Barra da Tijuca, atendendo ao interesse da especulação imobiliária, enquanto 80% dos fluxos de transporte, das viagens feitas pelos citadinos, estão em outra direção”.

O palco dos megaeventos Dentre as cidades brasileiras, a capital fluminense se tornou palco dos megaeventos. Após receber os jogos Pan-americanos em 2007, a agenda segue intensa: o Rio receberá, além da Copa de 2014 e Olímpiadas de 2016, outros eventos esportivos de grande porte, como os Jogos Mundiais Militares, neste ano, e a Copa das Confederações, em 2013. O legado promete ser semelhante ao do PAN: endividamento público, remoção de favelas, infração de direitos humanos e aumento do apartheid social já marcante na cidade. Um exemplo dessa tendência é o mapa traçado para reformulação do sistema viário carioca. Marcos Alvito relata que o BRT (Bus Rapid Transit) Transoeste – uma espécie de corredor de ônibus que ligará a Barra da Tijuca a Santa Cruz – é muito mais voltado aos interesses da especulação imobiliária do que à população. “Ele não interliga a cidade, na verdade, ele liga os pontos mais distantes da cidade à Barra da Tijuca, que passa a ser um novo centro. E de quebra, onde essas BRTs passam? Justamente em cima de comunidades de trabalhadores. Então, num só projeto, se cria o transporte para a Barra, remunera as empresas de ônibus, e, além disso, atravessa a favela, que tem que ser removida. Aí é mais um terreno liberado para a indústria de construção e para o setor imobiliário”, cita. Desse modo, os megaeventos vão valorizar uma das áreas já mais valorizadas do Rio de Janeiro, enquanto o subúrbio segue abandonado. Outras políticas que não estão diretamente ligadas aos jogos reforçam ainda mais este caráter. “Se você ver o mapa das UPPs (Unidades da Polícia Pacificadora), elas não começaram pelas áreas mais conflagradas da cidade. Se há um plano de segurança, o lógico é começar por onde tem mais problema. Aqui não, aqui começa pelas áreas nobres. As UPPs, na verdade, são um corredor que vem lá do aeroporto até a Barra da Tijuca, então elas funcionam como um cordão sanitário”, considera Alvito. Raquel Rolnik explica que, de fato, a geografia das UPPs corresponde a áreas de interesse no projeto da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos.

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onde há anos não há um evento criminal, mas estão querendo desocupá-la, dizem que ela virou uma ameaça. Na verdade, ela virou uma ameaça aos interesses imobiliários na região”, cita. De acordo com informações do portal do direito à moradia adequada, em maio de 2010, a Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo elaborou um dossiê sobre a situação da comunidade que contém uma notificação feita pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro ao Comitê Olímpico Internacional. A notificação aponta que a remoção da Vila Autódromo para a construção das instalações olímpicas viola acordos internacionais, regimentos do próprio comitê olímpico, a constituição brasileira e fluminense, além de leis municipais. A Vila Autódromo é apenas uma das comunidades atingidas que está resistindo às ameaças de despejo. Segundo informações da REME, em dezembro, em apenas duas semanas, a Defensoria Pública ajuizou três ações coletivas a partir de relatos e da comprovação inicial de inúmeras irregularidades no procedimento de reassentamento de comunidades atingidas pelas obras do Transoeste no Recreio dos Bandeirantes. As ações se fundamentam em problemas como a falta de transparência, informação e participação da comunidade, propostas de reassentamento em local distante e indenizações subvalorizadas, além de haver denúncias de coação e ameaça no processo. O vereador Eliomar Coelho (PSOL-RJ) relata que famílias de dezenas de comunidades pobres estão sendo removidas, com “requintes de crueldade”, pela Prefeitura Municipal. “Para se ter uma ideia, ao longo do corredor Transoeste, já foram demolidas mais de cem casas e lojas - algumas, inclusive, com as mobílias das pessoas dentro. As alternativas oferecidas são indenizações pífias, que às vezes não pagam nem a mudança, ou projetos do Minha Casa, Minha Vida em regiões tão distantes quanto insalubres e sem estrutura. No caso de comércios, não é feita qualquer oferta. São tantos crimes que ainda estamos sistematizando as denúncias para encaminhá-las”, conta. O vereador, que esteve a frente da CPI do PAN encaminhada em 2007 (ver matéria página 22),

os mesmos problemas Os problemas enfrentados não se restringem ao Rio de Janeiro. Para a Copa de 2014, 12 cidades brasileiras se preparam para receber os jogos: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo, além, claro, da capital fluminense. Assim como no Rio, em Fortaleza, milhares de famílias já estão ameaçadas de despejo. Com isso, na cidade foi montada uma articulação formada por movimentos sociais, ONG´s, estudantes, profissionais liberais, associações comunitárias e atingidos pelas obras da Copa – o Comitê Popular da Copa. Segundo o Comitê, a cidade deve ser alterada por 89 grandes obras direta ou indiretamente ligadas aos jogos. Nesse bojo, o Estado e a Prefeitura prevêem a remoção 3.500 famílias para implantar um sistema de Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e para duplicar a Via Expressa e de outras 3.800 famílias para realizar o projeto Rio Cocó, que prevê a urbanização da região às margens do rio. janeiro 2011

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Além das UPPs, as ocupações militares no Complexo do Alemão e Vila Cruzeiro, ocorridas em novembro de 2010, também tem uma conexão com o projeto dos megaeventos. “Há, evidentemente, alguma ligação com a Copa e as Olimpíadas, no sentido de buscar eliminar uma parte do tráfico de drogas, que é o comércio varejista de drogas controlado a partir dos morros. Esse comércio varejista já estava completamente fragilizado em função de um lado pelas UPPs e do outros pelas milícias. E a pacificação da cidade do Rio de Janeiro é um elemento fundamental para que os eventos aconteçam”, explica Rolnik. A relatora da ONU aponta duas dimensões preocupantes nessas ações: a ocupação do Estado na comunidade não significa uma ocupação militar, territorial, “mas sim a presença do Estado no sentido de desbloquear a barreira que a separa da cidade, que é uma barreira administrativa, patrimonial, urbanística. E não está claro se os direitos vão ser afirmados, essa é uma dimensão”. A outra, diz respeito “à forma como é levada tanto o processo de urbanização das favelas, como agora essa ocupação militar, se é o melhor processo. Eu digo isso porque recebi várias denúncias de violações que estão acontecendo nesse bojo”. A remoção e criminalização das favelas também são acentuadas sob o pretexto de preparação para os megaeventos. “Com a Copa e Olimpíadas, o prefeito Eduardo Paes, que aliás já foi subprefeito justamente da Barra da Tijuca, pretende remover 119 favelas”, lamenta Alvito. “Por sinal, eu não gosto de utilizar a palavra ‘remoção’, mas eu uso pras pessoas logo identificarem como é o processo de criminalização, porque ‘remoção’ é utilizado para lixo, cadáveres e para morador de favela”, complementa. Segundo o professor Carlos Vainer, todas as comunidades que estão próximas às sedes olímpicas estão ameaçadas. “A comunidade Vila Autódromo, por exemplo, está localizada próxima à área de implantação da Vila Olímpica. É uma comunidade antiga, onde a população está bem organizada e um dos poucos bairros populares do Rio de Janeiro que não é controlado nem pelo tráfico, nem pelas milícias. É uma comunidade

avalia que os problemas devem se repetir. “O maior problema é a total falta de transparência. Muitos contratos estão sendo assinados, muitas obras já estão começando, muitas comunidades pobres estão sendo removidas na marra e na marreta, mas não se tem acesso sequer às plantas dos empreendimentos”. No âmbito legal, as mudanças também já estão em curso no Rio – o poder público preparou um ‘Pacote Legislativo para Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016’. No dia 25 de novembro, foram sancionadas três leis municipais para Copa e Olimpíadas: uma autoriza o Poder Executivo a criar a Empresa Rio 2016 (LEI Nº 5229), outra institui incentivos e benefícios fiscais (LEI Nº 5230) e outra define Parâmetros Urbanísticos e Normas de Uso e Ocupação do Solo, estabelece incentivos para a ampliação da rede de hotéis, autoriza a alienação de imóveis e autoriza ainda a Operação Interligada, mecanismo que permite uma exceção à lei do zoneamento, como direito de construir além do permitido, mediante pagamento de uma contrapartida (LEI COMPLEMENTAR Nº 108). “De uma só tacada, a Prefeitura alterou padrões construtivos e índices urbanísticos de diversas áreas da Cidade, aprovou uma Operação Interligada (ao arrepio da boa técnica de Planejamento Urbano), e concedeu novas “bênçãos” para empreendimentos privados”, avalia o vereador Eliomar Coelho. Entre os problemas que isto representa, ele destaca a exclusão de áreas de apoio e de uso comum dos hóspedes, além de varandas, estacionamentos e circulações horizontais e verticais, do cálculo da Área Total Edificada – ATE ou da volumetria dos hotéis. Outra falha grave indicada pelo parlamentar é a falta de instrumentos satisfatórios para a fiscalização e a apuração dos casos em que os benefícios sejam utilizados, mas os propósitos previstos não sejam alcançados. “Não há um mecanismo confiável de recuperação desses recursos caso os empreendedores não atendam a todas as condições expressas nas Leis aprovadas agora pela Prefeitura”, ressalta Eliomar.

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O evento acaba, os

problemas permanecem Experiências internacionais mostram que o legado deixado pela Copa e Olimpíadas nem sempre tem um saldo positivo

A orientação pela realização de negócios em detrimento de um planejamento urbano voltado para a população já deixou problemas para outros países que sediaram megaeventos esportivos e, até mesmo para o Brasil, com os jogos Pan-americanos de 2007. No Brasil, para o seminário “Impactos urbanos e violações de direitos humanos nos megaeventos esportivos”, realizado em novembro do ano passado, o pesquisador grego Stavros Stavridis, da National University of Athens, comentou o legado dos Jogos Olímpicos de 2004, em Atenas. Segundo ele, o recurso destinado para a construção da Vila Olímpica, com 2292 unidades, foi desperdiçado, pois o lugar hoje está deserto e sem vida, e poderia ter sido destinado, por exemplo, para a produção de habitação social. Outro caso emblemático trazido pelo pesquisador foi o do conjunto habitacional “Profygika”, uma comunidade formada na década de 1930 para abrigar refugiados turcos. Com 228 apartamentos de 54 m², atualmente, o conjunto se encontra em condições precárias, mas com uma localização central e privilegiada do ponto de vista da valorização imobiliária. Com isso, no planejamento da Copa, o governo grego incluiu a demolição do conjunto. Neste caso, porém, a mobilização da sociedade trouxe frutos e, considerado um patrimônio histórico da arquitetura moderna do país, a justiça vetou a demolição do “Profygika”. Com isso, o governo decidiu então esconder os prédios do conjunto durante os jogos, que foram cobertos com uma enorme cortina decorada com imagens de pontos turísticos da Grécia. “Outras partes da cidade também foram cobertas. Isso faz parte da estratégia: o que não pode ser removido e não deve ser visto, é escondido. Agora eu pergunto: por que eles não aproveitaram os recursos para reformar o conjunto?”, indaga Stravidis. O pesquisador Alain Mabin, da University of Witwatersrand, de Johannesburg, África do Sul contou que naquele país a realização da Copa do Mundo foi um processo controverso, cujos impac-

tos foram sentidos de formas diferentes nas cidades. Em Soweto, por exemplo, uma cidade muito pobre, a qualificação do sistema de transporte público beneficiou de fato a população. Entretanto, muitos direitos humanos foram prejudicados. Mabin citou a proibição de qualquer tipo de manifestação no mês da Copa e até mesmo a censura da exibição do documentário Fahrenheit 2010, que denunciava a corrupção do megaevento. A professora da FAU-USP e relatora da ONU para o direito à moradia adequada, Raquel Rolnik, que esteve também no seminário realizado no final do ano passado, lembra que houve um verdadeiro Estado de Sítio na África do Sul. “O pessoal da África do Sul relatou no seminário situações onde, por exemplo, se uma pessoa furtasse qualquer tipo de coisa, ela era sumariamente, sem nenhum julgamento, presa. Havia tribunais especiais, ou seja, um verdadeiro Estado de Sítio”, diz. O economista Luiz Mário Behnken, coordenador da Rede de Mega Eventos Esportivos (REME), lembra ainda que para a Copa, cerca de 10 mil pessoas foram colocadas para morar em contêineres, na Cidade do Cabo. O mundial de futebol deixou também como legado um enorme problema social para o país africano: trabalhadores que migraram para trabalhar em obras nas áreas centrais, hoje sofrem xenofobia. Rolnik lembra ainda que é um requisito da FIFA, por exemplo, que o território no entorno dos locais dos jogos saia das regras da cidade e passe a ter um julgo especial. A própria experiência brasileira com o Panamericano de 2007 mostrou a contradição dos megaeventos esportivos. O vereador Eliomar Coelho (PSOL-RJ) relata que, ao longo de todo o processo de preparação e realização dos jogos, o mandato recebeu tantas denúncias que encaminhou a solicitação para a abertura de uma CPI. “As denúncias versavam sobre a construção e montagem de quase todos os locais de competição, a venda dos ingressos, a relação do Poder Público com o Comitê Organizador, enfim, quase tudo. Os casos mais graves, sem dúvida, foram a Vila Pan-americana, repleta de irregularidades desde a negociação do terreno até a sua utilização sem Habite-se, e o Engenhão, cujo projeto saiu de pouco mais de R$160 milhões e terminou em quase R$500 milhões, com mais de 20 aditivos ao contrato”, conta. Apesar do requerimento da CPI aprovado, os trabalhos foram barrados por uma manobra do então Prefeito César Maia. Débora Prado é jornalista debora.prado@carosamigos.com.br

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Para Márcio Alan Menezes Moreira, integrante do Movimento dos Conselhos Populares e Comitê, as estimativas ainda são baixas. “A estimativa de 3.500 famílias só na área do VLT é irreal, não há um mapeamento concreto, o Estado fez o mapeamento aéreo, onde você tem telhados, mas em um telhado pode morar mais de uma família. Acreditamos que cerca de 15 mil famílias devem ser atingidas pelas obras do VLT, em torno do (estádio do) Castelão, e no bairro do Barroso, além de algumas pequenas outras áreas”. Ele explica que os despejos para construção do VLT são os problemas mais iminentes, mas as obras no entorno do Castelão, cuja abrangência territorial ainda não foi definida, também deve trazer problemas para as comunidades pobres neste ano. Mais uma vez, os recursos públicos são destinados às intervenções sem haver um debate de prioridades com a população. Segundo informações coletadas pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente – CEDECA / Ceará – integrante do Comitê - o governo do Estado, em parceria com a Prefeitura Municipal de Fortaleza, pretende gastar cerca de R$ 9,46 bilhões nas obras para a Copa - quantia que representa 2,5 vezes o orçamento municipal para 2010 e quase o que foi gasto pelo governo do Estado em 2009. Apesar dos bilhões destinados às obras, o diálogo do poder público com a população segue restrito. “Há vários problemas relativos a informações concretas, como sobre qual vai ser a área atingida pelas obras, quais os impactos. Em Porto Alegre, também estão sendo montados comitês para resistir às remoções e para tentar impedir obras que tragam prejuízos ambientais. De acordo com o ambientalista Antônio Ruas, lá, a remodelação do Complexo Beira-Rio preocupa bastante, pois o estádio está próximo a uma área de preservação ambiental. “Neste projeto há previsão de dois hotéis e um centro comercial com alturas de 42 m, aprovados na Câmara de Vereadores. Só isso já retirará circulação de ar, a vista para o Guaíba e causará um sombreamento no local. Toda a área adjacente ao estádio Beira Rio será construída, dando fim à área verde”, diz. Além disso, a ampliação do limite de altura para construir é outro ponto de tensão, sobretudo na orla do Rio Guaíba – cobiçada pelo mercado imobiliário. Com problemas semelhantes, atores ligados aos movimentos de resistência nas cidades sedes da Copa estão convergindo para uma articulação nacional. “Está surgindo uma rede de mobilização e monitoramento da Copa e das Olimpíadas pela não violação dos direitos humanos, pela promoção dos direitos, e por um plano de intervenção socioambiental”, explica Raquel Rolnik. Para o coordenador da REME, Luiz Mário Behnken, a articulação é necessária para fazer frente a um embate desigual. “É difícil fazer uma mobilização para retirada dos megaeventos, uma vez que a população é simpática à realização da Copa e das Olimpíadas no Brasil. Então, nós precisamos aproveitar esse momento como forma de discussão da política pública e da orientação que esses processos vão ter”, afirma. caros amigos janeiro 2011

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Frei Betto

A impressão é que o ser humano con-

quistou o “impossível”. Sabemos voar como pássaros, navegar sob as águas como peixes, correr mais rápido do que coelhos e capazes de nos comunicar a distâncias outrora inimagináveis. Somos a geração automotiva. O relógio mede cada segundo do nosso tempo, cavalos e carruagens cederam lugar a carros e aviões, trovadores invisíveis cantam através de nosso equipamento de som, arautos sem rosto divulgam os fatos pelo rádio, o circo e o teatro irrompem em nossa sala nas dimensões de uma pequena tela eletrônica. Melhor do que dividir a história em antiga, medieval, moderna e contemporânea, é distingui-la pelas eras agrícola, que durou 10.000 anos; industrial, nos últimos 100 anos; e, agora, cibernética. Johannes Kepler, nascido na Alemanha em 1571, atraído pelo faro estético dos gregos - que acreditavam ter o Universo uma natural simetria - descobriu a arquitetura do sistema solar e levou quatro anos para calcular a órbita de Marte, uma elipse perfeita. Com um computador, bastariam quatro segundos. Kepler, que escreveu o livro intitulado O Sonho, teria invejado a nossa geração se imaginasse quan-

to tempo poderia poupar. Daria asas à imaginação, sonhando em fazer tudo aquilo que o trabalho exaustivo não lhe permitia: desfrutar da vida campestre, perder tempo com os amigos, ficar na igreja ouvindo o som inebriante do órgão, contemplar o céu noturno para captar a música das estrelas. O que ele jamais poderia supor é que, com tanta tecnologia, a nossa geração dispõe cada vez mais de menos tempo. Somos incorrigivelmente vorazes. Queremos o máximo de informações no mínimo de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operações digitais. Ainda que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a “coleira eletrônica” impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma flexão abdominal e outra, uma opinião e outra no trabalho, controlamos os filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos frágeis e mortais. Porque precisava pensar, Kant nunca saiu de Königsberg, onde construiu uma obra filosófica monumental. Ora, para que livros se há milhares de vídeos

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interessantes? Basta saber que o patrimônio cultural da humanidade se encontra armazenado nas bibliotecas. Relaxados, passamos horas, dias, meses e anos de nossas vidas vendo um punhado de homens correrem atrás de uma bola e carros velozes desafiando as curvas da morte. Nossos heróis estão distantes da arte musical de Mozart, da física de Planck ou da literatura de Machado de Assis. Veneramos aqueles que quebram limites. O Evangelho da “pós-modernidade” são os índices do mercado financeiro. A Bíblia, o Guiness Book of the Records. Pelé fez 1.000 gols. Michael Jackson coloriu de branco sua pele negra. Ayrton Senna andou mais depressa grudado ao solo que qualquer outro mamífero. Só não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que mais procuramos, o amor? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das estrelas. Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. janeiro 2011

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Os sonhos de KEPLER

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Morabeza.

No arquipélago localizado a 300 quilômetros do continente africano, Cabo Verde, tudo é novo e novidade. Independente desde a década de 1970, seus habitantes ainda não se renderam ao consumo desenfreado de bens e produtos. Vivem o dia de hoje dentro de uma dificuldade de um país que ainda busca a sua independência financeira, com poucos recursos naturais e quase invisível no cenário econômico mundial. Seus habitantes vieram de todos os lugares da África, fugidos dos barcos negreiros que usavam as ilhas como ponto de passagem para a Europa e Américas. Forjados pelo sol escaldante e o duro solo vulcânico, criaram seus heróis e ajudaram outros países a deixarem de ser colônia. Turistas se impressionam como um povo consegue viver em um país com escassez quase total de água, energia elétrica, saúde, segurança e educação, mas aprende que o ambiente transforma o homem, mas não muda a sua essência, que em Cabo Verde é a do bem receber, ou como se diz em criolo a “morabeza”.

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Por Bárbara Mengardo e Caio Zinet

Wikileaks

desafia o império e seus cães de guarda

Estados, empresas e grandes mídias se unem para tentar barrar o vazamento de informações secretas da diplomacia dos Estados Unidos. Ilustração Alexandre Teles

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novo inimigo número um dos Estados Unidos não é um espião russo ao estilo dos filmes de James Bond, e muito menos um suposto fanático religioso que possui bombas nucleares. As novas tecnologias possibilitaram que a mais recente ameaça à soberania norte-americana viesse por meios digitais, com o vazamento de milhares de documentos secretos no site WikiLeaks. Os Estados Unidos e outras grandes potências mundiais assistiram estupefatos à rápida reprodução dos conteúdos que julgavam ser sigilosos, e armaram o contra-ataque: reuniram seus fiéis cães de guarda – a grande mídia e empresas do setor financeiro – para tentar frear o site e criar denúncias contra seu fundador, Julian Assange. O resultado dessa empreitada ainda é desconhecido, mas pesquisadores e militantes do mundo digital afirmam que o WikiLeaks promoveu uma imensa mudança na dinâmica da internet, trazendo à tona diversos assuntos, como a democratização da informação, controle do conteúdo virtual e a falaciosa imparcialidade dos meios de comunicação.

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Razões do Estado Apesar de existir desde 2006, o WikiLeaks ganhou maior notoriedade no começo de 2010, quando iniciou uma extensa publicação de arquivos relativos às ações militares norte-americanas no Oriente Médio. Dentre os mais de 400 mil itens publicados estava um documento do exército dos EUA sobre a grande quantidade de civis mortos na Guerra do Iraque, um manual para tratamento de presos em Guantánamo e um vídeo que mostra soldados americanos a bordo de um helicóptero matando civis iraquianos, dentre eles crianças e dois jornalistas da Reuters. A segunda cartada do WikiLeaks foi a publicação de telegramas trocados entre a Casa Branca e as embaixadas dos Estados Unidos nos mais diversos países. O conteúdo das mensagens está sendo liberado aos poucos em jornais escolhidos pelo WikiLeaks. No Brasil, a jornalista Natália Viana recebe em primeira mão os arquivos secretos, e os jornais responsáveis por divulgá-los são O Globo e Folha de S.Paulo.

Informações sigilosas de diversos países passaram a circular na Internet, promovendo mudanças no cenário da comunicação. “O WikiLeaks colocou em dúvida as famosas razões do Estado, onde a transparência não pode entrar, onde ninguém questiona. Ou seja, agora a informação da opinião pública pode sim vir dos corredores onde estão os arquivos dos Estados”, afirma o sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC, Sérgio Amadeu. O WikiLeaks questionou a transparência dos Estados e a legitimidade de manter assuntos em sigilo, o que deixou em alvoroço não só as grandes potências econômicas, mas também as mídias tradicionais. “O WikiLeaks coloca em cheque os filtros da imprensa, que tem informações que não divulga por vários motivos: por não considerar importante ou por motivos econômicos e ideológicos”, diz Sérgio. Muitos motivos nutriram o ódio das grandes mídias pelo WikiLeaks. O site escancarou a falácia da imparcialidade e ameaçou os Estados e organizações às quais estes meios dedicavam incondicional fidelidade. Entretanto, não noticiar as bombásticas

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revelações do WikiLeaks significava estar alheio aos assuntos de maior repercussão mundial. O jornalista Dênis de Moraes expõe essa contradição: “O WikiLeaks coloca os meios de comunicação tradicionais na parede, porque eles não têm mais o controle da divulgação desse tipo de informação através da manipulação, silenciamento, ocultamento ou distorção. Por outro lado, eles não podem desconhecer informações importantes do cenário diplomático e político”. Esta relação conflituosa explica a cobertura que as grandes mídias fizeram das acusações contra o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, e o episódio de sua prisão. Apesar de divulgarem novas informações sobre o caso diariamente, os grandes meios tentaram extrair de suas reportagens a ligação entre a prisão de Assange e os documentos divulgados através do WikiLeaks. Ao invés de explorarem essa relação, os grandes meios focaram sua cobertura nos supostos casos de assédio sexual cometidos por Assange. Toya, que integra o coletivo editorial do Centro de Mídia Independente do Brasil (CMI Brasil), critica a cobertura da imprensa brasileira: “Havia muitas coisas que não se encaixavam ou se contradiziam, como por exemplo, o fato de não ter sido estupro, mas sim sexo consensual onde a camisinha furou. Há muita desinformação a respeito deste assunto, principalmente sobre a ordem de prisão emitida pela Interpol. O modo como a grande mídia cobriu a prisão de Assange simboliza o desconforto em noticiar eventos que destroem os pilares sobre os quais esses grandes veículos se sustentaram durante anos. Um exemplo emblemático é a invasão dos Estados Unidos ao Afeganistão em 2002 e do Iraque em 2003. Sobre os eventos, toda a grande mídia brasileira aderiu ao discurso oficial, que afirmava que os norte-americanos entraram nesses países para derrubar ditadores e fazer uma guerra contra o terrorismo islâmico. As fotos que apontavam a existência de tortura em prisões iraquianas e informações sobre mortes de civis quase passaram em branco. Os documentos divulgados pelo WikiLeaks em 2010 desmontam essa visão, porque demonstram que o governo americano tinha total conhecimento do uso indiscriminado de violência contra a população local e até mesmo contra repórteres. Segundo os documentos oficiais, tornados públicos pelo site, durante a guerra do Iraque foram mortas 109.032 pessoas, sendo 66.081 civis (mais de 60%), 23.984 inimigos (os chamados “insurgentes”), 15.196 membros das forças do governo iraquiano e 3.771 membros das forças da coalizão. Para Dênis de Moraes, a divulgação dos documentos e do vídeo pelo WikiLeaks forçou a grande mídia brasileira e internacional, que historicamente esteve comprometida com interesses norte-americanos, a divulgar dados que iam contra sua ideologia, sob o risco de serem, ainda mais, desmoralizadas: “A grande mídia não pode silenciar, e se omitir completamente de divulgar os dados apresentados pelo WikiLeaks” afirma. Em resposta à ameaça que representava o WikiLeaks, os Estados se articularam rapidamente para conter a sangria de informações. A Interpol saiu à

caça de Julian Assange por conta do suposto caso de estupro cometido na Suécia, as mídias omitiram e distorceram o que puderam, e as grandes empresas, fiéis companheiras e possíveis alvos de ataque do WikiLeaks, também reagiram. Como tentativa de barrar a ação do WikiLeaks, os sites da Visa, Mastercard, Paypal e Bank of America pararam de repassar as doações feitas para a conta do WikiLeaks, o que causou reações por parte da sociedade civil. Hackers se articularam e derrubaram o site destas empresas do ar. Para Amadeu, tal ação visava chamar atenção do mundo para o fato de uma empresa ter o poder de bloquear a conta de um cidadão, sem ter como lastro decisões judiciais. “As empresas de cartão de crédito unilateralmente desaparecem com uma conta, se essa moda pega, eles [sistema financeiro] passam a decidir o que é legal e ilegal, para quem eu posso ou não doar dinheiro. Isso é uma coisa muito grave, pois empresas privadas estão dizendo para quem as pessoas podem ou não se solidarizar”. A jornalista Natalia Viana resume a situação: “Há um pânico tanto do governo quanto das empresas de que tudo pode ser vazado”.

controle da informação Outra discussão colocada em destaque pelo WikiLeaks foi o debate em torno do controle do fluxo de informações na internet, o que faz muitos especialistas em comunicação ficarem temerosos quanto aos frutos que o site pode gerar. Os constantes boicotes ao WikiLeaks trazem a dúvida se os governos não darão como resposta à divulgação dos documentos secretos um maior endurecimento nas leis que regem a esfera virtual, pois em todo o mundo, os Estados seguem o caminho da repressão para tentar conter o caráter de fácil reprodução e divulgação da Internet. Na França, por exemplo, o presidente Nicolas Sarkozy aprovou em fevereiro de 2010 uma legislação que atribui à polícia e às forças de segurança a possibilidade de instalar um software, conhecido como “cavalo de Tróia”, para espionar computadores privados. O acesso remoto a esses computadores seria possibilitado pela autorização de um juiz. Outra lei aprovada pelo governo francês concede aos provedores de Internet a possibilidade legal de cortar, após três avisos, o acesso a sites de compartilhamento de dados, como os que disponibilizam músicas e filmes gratuitamente. No Brasil, o principal defensor de uma legislação rígida em relação à Internet é Eduardo Azeredo, senador mineiro pelo PSDB. Ele formulou uma lei apelidada pelos ativistas da Internet de AI-5 digital, que trata como crime sujeito a até três anos de prisão o compartilhamento ou fornecimento não autorizado de dados ou informações. Outro ponto polêmico da lei é a possibilidade de que dados sigilosos sejam enviados ao Ministério Público ou à polícia sem a necessidade de autorização judicial. Se até agora o WikiLeaks tem proporcionado maior transparência e democratização da informação, esse quadro pode ser rapidamente revertido se os Estados optarem por enquadrar o site

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dentro de novas normas de controle da Internet. “Os mecanismos de controle da mídia sempre vão ser refinados, sofisticados, adaptados e modificados a serviço e a favor dos interesses corporativos e empresariais. Por mais que os meios de comunicação tenham que se adaptar tanto à realidade digital quanto às novas fontes de informação como o WikiLeaks, eles vão sempre buscar obsessivamente novos mecanismos de filtragem, controle e direcionamento”, afirma Dênis Moraes. Sérgio Amadeu expõe sua visão sobre o assunto: “Eu acho que o WikiLeaks pode gerar um fenômeno de avanço ou retrocesso, vai depender muito da reação da sociedade civil, da sua capacidade de pressionar o Estado e do resultado desse debate sobre a importância para a democracia da liberdade de expressão”. Para Toya, entretanto, as tentativas de deter o WikiLeaks sempre esbarrarão em um ponto crucial: não é possível parar o site. “A internet é algo que não tem fronteiras e qualquer tentativa de controlá-la será denunciada e combatida por pessoas de todos os lugares do mundo. Qualquer passo nessa direção irá atiçar uma guerra virtual, e há formas de burlar qualquer tentativa de controle da Internet. Um bom exemplo do que eu estou falando é o que aconteceu quando tentaram fechar o site WikiLeaks. O resultado desta tentativa acabou criando cerca de 2 mil sites/espelhos do WikiLeaks espalhados pelo mundo”. Natalia Viana completa: “Não sei o que vai acontecer com o WikiLeaks, isso depende de uma série de fatores, mas acho que a tendência é a ideia se reproduzir”.

História oficial Muitas das informações publicadas pelo WikiLeaks tem o potencial de gerar conflitos diplomáticos e modificar a relação entre os países. As consequências para a diplomacia mundial após a divulgação dos telegramas ainda é incerta, mas alguns contornos começam se desenhar. Dênis exemplifica: “A primeira consequência que eu vejo é uma espécie de denúncia e de questionamento frontal da hipocrisia exercida pelo bloco liderado pelos Estados Unidos em relação aos países que compõem a Aliança Bolivariana”. Muitos temas que antes eram tratados como “teoria da conspiração” por parte das mídias hegemônicas e governos mostraram ter respaldo na realidade, como abusos cometidos pelos Estados Unidos e seus aliados e a interferência do país em acontecimentos internacionais. Para Moraes, o golpe de Estado em Honduras é emblemático: “Os documentos que surgem agora evidenciam que as reportagens feitas pela rede de televisão Telesur tinham razão de ser, e que havia várias interferências que colaboraram para o golpe. À época de sua divulgação todos os grandes veículos brasileiros desqualificaram as denúncias”, diz “A história oficial, escrita pelos vencedores, pelas classes dominantes, é uma das vítimas do Wikileaks”, conclui. Bárbara Mengardo e Caio Zinet são jornalistas. janeiro 2011

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entrevista

Tariq Ali

Por Tatiana Merlino

“O império americano precisava desesperadamente de Barack Obama”

e

Caros Amigos - Queria começar por seu

último livro: “A Síndrome de Obama: Capitulação em casa, Guerra fora”. O que aconteceu, por que Obama está rendido em casa, foi uma cilada? Tariq Ali - Não, não é uma cilada. Basicamente é importante entender que Obama é, essencialmen-

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O escritor paquistanês analisa os primeiros 18 meses do presidente Barack Obama.

te, um político-máquina, da máquina do Partido Democrata em Chicago. Um dos piores do país. No meu livro sobre Obama eu o descrevo como a aparição mais inventiva que o império criou de si mesmo. O império americano precisava de Obama, desesperadamente. Muitas pessoas assumiram, automaticamente, que Obama seria melhor do que Bush. Não apenas nos Estados Unidos. No mundo inteiro. Eles tinham ilusões reais. Até pessoas de esquerda, até o lideres bolivarianos, como Hugo Chávez. Eles tinham verdadeira esperança, não ilusões. Lula realmente acreditou quando Obama disse “sim, intervenha em nosso nome com o Irã”. Não é que Lula foi como a imprensa disse: “ele foi ingênuo”. Não é uma ques-

tão de ingenuidade. Obama disse ao Lula e para o líder turco, “por favor, nos ajude com o Irã”, e eles o fizeram. Eles conseguiram que os iranianos concordassem com o plano, e então os americanos recuaram. Muitas pessoas acreditaram em Obama e se esqueceram que ele levantou mais dinheiro de Wall Street do que Hillary Clinton e John McCain juntos. O Goldman Sachs e muitos outros deram-lhe milhões. Eles não iam tocar um música que Wall Street não gostasse. Isso era óbvio. As pessoas achavam que as reformas da saúde seriam reformas de verdade, que haveria serviço de saúde de verdade, como há na Europa. Eles subestimaram o lobby da indústria farmacêutica e das empresas

fotos: Kátia Marko

nganaram-se aqueles que acreditaram que Obama representaria uma mudança na política interna e externa da principal economia do mundo. “Muitas pessoas acreditaram em Obama e se esqueceram que ele levantou mais dinheiro de Wall Street do que Hillary Clinton e John McCain juntos. O banco Goldman Sachs e muitos outros deram-lhe milhões”, afirma Tariq Ali, escritor e historiador de origem paquistanesa e radicado na Inglaterra. Ali, que está entre um dos mais respeitados intelectuais de esquerda, lançou, recentemente, o livro The Obama Syndrome: Surrender at Home, War Abroad (A síndrome de Obama: capitulação em casa, guerra fora), ainda sem previsão para publicação em português. Na obra, Tariq Ali analisa os primeiros 18 meses do presidente, que define como um “político-máquina do Partido Democrata em Chicago”. Nesta entrevista, o historiador também discute a relação dos Estados Unidos com o Paquistão, país que, segundo ele, está sendo usado pelos interesses estadunidenses na guerra do Afeganistão. “Muitos dos terroristas de hoje foram treinados nos Estados Unidos, onde aprenderam como atirar em helicópteros. Hoje é altamente irônico que eles estejam fazendo isso contra os Estados Unidos”. Tariq Ali ainda analisa a crise financeira mundial de 2008, que, define como a mais séria crise do capitalismo desde 1929. Sobre o processo eleitoral brasileiro, Tariq Ali, bastante crítico ao governo Lula, disse que ficou feliz por José Serra ter sido derrotado nas urnas, mas quando viu a presidente eleita numa foto com Antonio Palocci (que será o ministro da Casa Civil de Dilma) pensou “ai, meu deus... Esse cara é o mais articulado defensor de políticas econômicas neoliberais e o país não precisa de pessoas como ele, mas sim de pessoas que pensem diferente”.

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de plano de saúde e asseguraram que as reformas estavam sob seu controle. Então, quando houve as pressões das corporações nos Estados Unidos, Obama capitulou. Fora do país, houve guerra, como usualmente. Mas, internamente, mesmo com promessas que não tem nada a ver com as corporações, como “iremos fechar Guantánamo”, não se fez nada. Com o que se prometeu de “iremos acabar com tortura, rendições”, também nada. O chefe da CIA, Leon Panetta, foi questionado sobre as torturas, e nada ocorreu. Então, o desapontamento entre seus próprios apoiadores nos EUA é muito alto. Eu estava nos Estados Unidos durante a campanha de Obama, e não há dúvida que entre as idades de 18 e 26, uma quantidade enorme de jovens se mobilizaram por ele. Então, essas são as pessoas mais desapontadas com Obama nos EUA.

Quais são as consequências desse desapontamento? Nas eleições de meio mandato, muitos dos apoiadores de Obama não votaram, eles ficaram em casa. Então, os republicamos ganharam a Câmara dos Representantes, com uma maioria enorme, e no Senado, teve uma pequena maioria para o Obama, mas eles perderam. E se continuar assim, é uma pergunta em aberto o que irá acontecer em 2012. Não que isso importe, pois o sistema é tão forte agora, que é necessário ser um presidente muito corajoso e confiante para mudar isso, mesmo que pouco. Como a guerra no Afeganistão está afetando o Paquistão? Por que os Estados Unidos querem comprometer Paquistão contra os talebans? Os Estados Unidos não podem acreditar que eles não podem ganhar aquela guerra. Então, eles precisam achar pessoas para culpar e quem eles podem mais facilmente culpar é o Paquistão. Então, é por isso que eles estendem a guerra ao Paquistão. Isso criou uma situação em que uma pesquisa de opinião conduzida por uma organização estadunidense descobriu que 70% dos paquistaneses dizem que o maior mal no mundo são os Estados Unidos. E isso não é oposição religiosa e sim oposição política ao projeto americano. Isso é, essencialmente, porque os Estados Unidos fizeram isso. Isso criou uma confusão enorme, não apenas no Afeganistão, mas também no Paquistão, e essa é uma história triste. Muitas pessoas, incluindo eu, os odiamos. Se você mantém a guerra, há possibilidades perigosas para todo mundo, para o país, e não se pode

“Em política externa o país progrediu. Eles se recusaram a permitir que o Brasil fosse apenas um país que faz só o que os americanos queriam”. ganhar a guerra no Afeganistão assim. Essa é a guerra que eles não podem ganhar. Como você pode ganhar uma guerra quando a maioria das pessoas se opõe à sua presença? Como é a situação no Paquistão, hoje? Eu analiso o Paquistão em um meu livro Duelo. É um país onde há uma elite e exército corruptos e venais. Todos eles prontos para ganhar dinheiro e prontos para fazer o que os Estados Unidos querem. É um país onde não há educação para os pobres, não há saúde, moradia e comida para pobres. E é um país grande, de 200 milhões de pessoas. E a imagem que as pessoas tem é de um país fora do controle, com pessoas loucas com barba. E é uma imagem horrível. E não é verdade. Quando há eleições, menos de 5% da população vota nos partidos religiosos moderados. A maioria não gosta deles. Provavelmente há mais religiosos fundamentalistas nos Estados Unidos e no Brasil do que no Paquistão. Então, o problema real do país é pobreza e má nutrição. E se algum governo tentar resolver esses problemas, o país será transformado, mas eles não fazem isso, porque se sentem ameaçados. É uma classe dominante realmente nojenta. Eles apenas querem fazer dinheiro. E o presidente atual do Paquistão, Asif Ali Zardari é um criminoso. E todo país sabe disso. Mas os Estados Unidos gostam dele porque ele faz o que eles dizem. O que eles pedem? “Fazer o que dizemos, vá e brigue aqui, vá e brigue lá”, e os Estados Unidos controlam esse país há muito tempo. Agora culpam o país sobre o que eles pediram para fazer no passado. Como esses pequenos grupos extremistas surgiram? Porque eles estavam em guerra pelos Estados Unidos contra a União Soviética nos anos 1980. Eles foram criados pelos EUA. Os livros que eles estudavam nas escolas religiosas foram publicados no Arizona, na Universidade de Nebraska. Muitos dos terroristas de hoje foram treinados nos Estados Unidos, onde aprenderam como atirar em helicópteros. Hoje é altamente irônico que eles estejam fazendo isso contra os Estados Unidos. É um país que está sendo usado. Um general aposenta-

“A imagem que as pessoas tem do Paquistão é de um país fora do controle, com pessoas loucas com barba. E isso não é verdade. Quando há eleições, menos de 5% da população vota nos partidos religiosos moderados”.

do me disse uma vez e eu coloquei isso num dos meus artigos. Ele disse “você tem que entender que para os Estados Unidos o Paquistão é como uma camisinha. Eles nos usam e nos descartam”. É uma descrição muito gráfica. O país está sendo usado para confrontar os talebans também? Sim, mas eles não podem. Ele está sendo usado, mas os militares não querem fazer isso porque pode criar problemas ao matar pessoas que os ajudaram no passado. Hoje, vemos os Estados Unidos usando o Paquistão militarmente para dialogar com o taleban ou com os neotalebans, os novos grupos que estão surgindo. Nos últimos três, quatro anos tem havido discussões entre os talebans, insurgentes e agências de inteligência dos Estados Unidos. E os EUA estão dizendo, “juntem-se ao governo de coalizão em Cabul”, e eles disseram: “enquanto vocês estiverem no nosso país, não o faremos. Primeiro, todas as tropas estrangeiras devem sair, e depois nós decidimos o que faremos”. Como o senhor vê a reação de Obama em relação ao vazamento das informações do WikiLeaks sobre as violações de direitos humanos? Basicamente, todos sabem o que eles fazem. E os WikiLeaks não foram uma surpresa para ninguém. O argumento de que tais documentos colocam em risco de vida os americanos é estúpido, porque isso é assumir que o país onde isso está acontecendo as pessoas não sabem disso, isso é novo para elas. Eles sabem disso, então por que estão em perigo, se não é um segredo? Os americanos torturaram pessoas no Vietnã, abertamente, então por que é um grande segredo que impérios torturam suas vítimas e sua resistência? Eles fazem isso na prisão de Bagram, no Afeganistão, que é uma câmara de horror comparada com Guantánamo. O senhor acha que depois do 11 de setembro está se implementando uma cultura do medo, onde qualquer tipo de turbulência é vista como ataque terrorista e qualquer procedimento de segurança pública são implementados sem muito questionamento? O 11 de setembro foi uma bonita desculpa para fazer o que eles quisessem fazer no mundo e em casa, mas agora está começando a falhar. Quando eles decidiram começar a guerra do Iraque não se esqueça que houve manifestações nos EUA e em todo o mundo. Enormes manifestações, milhões de pessoas. Mas isso não significa que eles não usem isso, sobretudo para atingir janeiro 2011

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muçulmanos e pessoas de origem muçulmana. Há hoje, na Europa e Estados Unidos uma grande islamofobia, que não é muito diferente do antissemitismo nos anos 20 e 30. Como se pode caracterizar essa crise internacional. É uma crise estrutural, financeira? A crise financeira de novembro e dezembro 2008 foi a mais séria crise do mundo capitalista desde a depressão de 1929. Eles conseguiram controlar suas consequências usando o Estado, que ideologicamente eles deveriam odiar, porque se formos olhar para as políticas neoliberais o significado do neoliberalismo é “O mercado é o Deus”, “o mercado sabe mais do que qualquer coisa”, “o mercado irá decidir o que é melhor para nosso país e para o mundo”. Esse foi o Consenso de Washington que Fernando Henrique implementou no Brasil tão lindamente, desindustrializando o país. Agora, esse sistema entrou em colapso, mas ao invés de olhar para novas formas, eles usaram o estado para manter esse sistema injetando milhões e bilhões de dólares de todo o mundo para salvar os bancos. Por que? Se o mercado é tão lindo, deixe que ele faça seu trabalho. Nos Estados Unidos, hoje, há 14 milhões de novos desempregados. As casas de milhares de pessoas estão sendo pegas de volta pelas companhias de hipoteca. Isso o Estado não pára. Mas em termos de ajuda aos bancos. A crise não está terminada e é um grande equívoco achar que ela acabou. Recentemente, quando vim da Europa, mais um país, a Irlanda, colapsou. E a elite irlandesa, ao invés de dizer “vamos tentar novamente sem você, vamos sair da Europa, não queremos ser parte do mundo do euro, vamos tentar reconstruir nosso país”, eles disseram “por favor, nos dê dinheiro”, então eles se venderam. É desnecessário falar da independência da Grécia, Irlanda. Eles são de posse dos bancos alemães agora. E alguns bancos britânicos. E a própria Grã Bretanha também está em crise, mas eles podem conseguir 9 bilhões de euros. Eles disseram: “Estamos numa crise terrível, teremos que gastar menos com educação, saúde, benefícios sociais mas, de repente, a Irlanda entra em colapso e eles dizem “vocês precisam de 9 bilhões? Aqui está”. Há uma crise real nesses países, o problema é que não há oposição organizada. Então, é por isso que as pessoas estão paralisadas. Elas sentem que não há o que possa ser feito. Em 1929, os outros países foram muito afetados pela crise, em 2008, no Brasil, por exemplo, a crise não foi tão forte. Qual foi a diferença da crise de 1929 e a de 2008? Essa foi essencialmente a crise do mundo capitalista avançado, onde tudo se torna tão financeirizado e as pessoas tem um certo padrão de vida que, quando foi afetado, a crise foi vista como enorme. No Brasil, há um grupo muito rico que comanda o país, e são muito dominantes e não pagam nenhum imposto. Mas para o resto do país, se tivessem dinheiro investido em algum desses bancos, seria ou-

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“Há hoje na Europa e Estados Unidos uma grande islamofobia, que não é muito diferente do antissemitismo nos anos 20 e 30”. tra coisa. Mas, para a maioria das pessoas comuns no Brasil, não fez muita diferença. Mas isso não significa que as coisas não vão piorar aqui. Não se deve ser complacente. Essa foi essencialmente uma crise do mercado financeiro e da financeirização, e o Brasil, por boas razões, não devia nenhum dinheiro para essas pessoas. E por isso sobreviveu a essa crise particular. Mas isso não significa que ele estará imune caso haja uma nova rodada, o mesmo se aplica à China e Rússia.

O que o senhor acha das manifestações na Europa: França, Grécia, Espanha? A esquerda está passando por uma nova fase de articulação na Europa e apesar das mobilizações serem fortes foram incapazes de barrar as reformas da previdência. Há um novo levante da esquerda ou levante de cidadãos chateados e bravos. Essas manifestações foram muito grandes para terem sido organizadas apenas pela esquerda. A esquerda estava lá, mas não foi apenas ela. Vivemos num mundo onde as

manifestações de massa e greves de massa não mudam automaticamente algo, a não ser que haja um movimento político ou partido político poderoso ligado a eles, que ganhem as eleições. Isso aconteceu em muitas partes da América do Sul, mas não temos isso na Europa. Então, as greves gerais na Grécia e Espanha eram contra governos de centro esquerda. E quem é que pode ter vantagem nisso, pequenos grupos, mas muito fracos. O grande problema é que na maior parte da Europa e muitas partes do mundo não há diferenças reais entre centro direita e centro esquerda. Há partidos com políticas sociais e econômicas muito similares, e assim pessoas acham que votar não muda nada, a não ser que haja novas organizações que podem chegar ao poder, como o MAS na Bolívia. Mas não temos isso na Europa. Pode ser que surja, mas até agora não há nada.

Em relação aos povos originários, o que estamos vendo é uma luta anti-imperialista e anticolonial? Creio que os dois, porque a colonização veio da

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mão das suas próprias elites, o que é opressão, e na Bolívia especialmente, onde 70% da população é indígena. Para Evo ser o primeiro presidente indígena é um escândalo, e as pessoas sentiram isso, mas eles não venceram por ser indígenas; mas porque ele teve um programa social e econômico muito progressista. Conhecemos países onde há líderes indígenas que são verdadeiros traidores de seu povo. Não dá para ver as coisas como origem, é uma questão muito perigosa. Se olharmos para a história da África, todos os países tem líderes indígenas, mas há uma bagunça. Então, na América Latina há uma mudança, porque o poder da velha elite foi rompido, e na Venezuela pode se ouvir pessoas da velha elite se referindo a Chávez de maneira preconceituosa. Como o senhor viu o processo eleitoral no Brasil? É uma questão complicada. No segundo governo do Lula havia possibilidades de se iniciar um processo de mudanças, como nos outros países da

“No meu livro sobre Obama eu o descrevo como a aparição mais inventiva que o império criou de si mesmo”. América do Sul, mas ele não fez isso. Em política externa eles progrediram, não há dúvida disso. Eles se recusaram a permitir que o Brasil fosse apenas um país que faz só o que os americanos queriam. Eles se recusaram a ser o país usado para que desestabilizasse a Bolívia ou Venezuela. Isso é verdade e é uma boa coisa, que marca uma mudança; mas, internamente, não foi feito muito. O Bolsa Família é um mínimo paliativo e não vai funcionar a longo prazo. Mas quando se vive num país onde os ricos não pagam nenhum imposto é um problema, e a disparidade continua a crescer, não a decrescer. E isso é um método errado, não vai funcionar. Tenho que ser hones-

to: estou feliz que Serra não ganhou, mas quando vi Dilma numa foto com Palocci, pensei “ai, meu deus”. Esse cara é o mais articulado defensor de políticas econômicas neoliberais e o país não precisa de pessoas como ele, precisa de pessoas que pensem diferente. *Parte desta entrevista foi feita durante uma coletiva de imprensa de participantes do curso do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), realizado no Rio de Janeiro, entre 24 e 28 de novembro de 2010. Tatiana Merlino é jornalista tatianamerlino@carosamigos.com.br

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Gabriela Moncau

Shirley Casa Verde:

Aqui estou, negona”

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ascida em 1980 na periferia de São Paulo, no bairro da Casa Verde Alta, Shirley Nascimento da Silva, hoje conhecida como Shirley Casa Verde, nome artístico com o qual assina suas letras de rap, define o bairro em que cresceu como “uma espécie de quilombo”, não só pela grande quantidade de negros, mas pela cultura que permeia o cotidiano da comunidade, espaço que permitiu com que ela e seus irmãos passassem a infância e a juventude sempre próximos da música. A trajetória da jovem não difere dos anseios de muitas garotas negras da periferia. Oriunda de uma família pobre que pouco entendia a sua paixão pela música, – vista mais como um sintoma de revolta e desvio do tradicional caminho estudo-trabalho do que como um dom, vocação ou carreira – a jovem é uma das inúmeras que batalhou muito para conseguir se sustentar com o rap. Teve de se virar sozinha desde cedo, foi obrigada a largar os estudos para trabalhar, enfrentou dificuldades para equilibrar os ensaios na escola de samba Unidos do Peruche onde desfilou durante a segunda metade dos anos 1990, engravidou cedo, e como ela mesma define, “quebrou correntes” para se constituir como uma rapper consagrada no ainda hegemonicamente masculino cenário do Hip Hop brasileiro.

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Sua caminhada, críticas, opiniões e histórias, portanto, não dizem respeito à história pessoal de uma mulher específica, mas são emblemáticas das muitas “Marias Madalenas” (como define em seu novo CD) que passam pelas mesmas situações e dificuldades, incluindo as de muito talento espalhadas pelos becos e que ainda suam para usar o rap como o instrumento que dá voz às excluídas. Shirley integra já há dez anos o grupo de rap Ca.Ge.Bê (Cada Gênio do Beco), junto com Cezar Sotaque e DJ Paulinho. Participou também de músicas com os grupos D’ Favela, SP Funk, Saulinho Bandoleiro, Fator do EG, Teto, entre outros. Recentemente, gravou com Max B.O o seu primeiro álbum solo Ensaio e fez parceria com outras cantoras do cenário Hip Hop em uma produção do DJ Bola 8, do grupo Realidade Cruel. Negra, com voz forte, Shirley lembra fisicamente uma de suas grandes referências internacionais na música, a estadunidense Lauryn Hill, uma das primeiras mulheres a lançar um disco solo de Hip Hop (The miseducation of Lauryn Hill, de 1998). Deixa claro, entretanto, que tem um gosto musical bastante eclético: “gosto de Erikah Badu, Flora Matos, mas ouço de tudo um pouco, a inspiração vem de tudo que é lado”. Não por coincidência, Shirley começou a se

envolver com o Hip Hop no mesmo período em que sua casa passou por desestruturações familiares. O pai saiu de casa e a mãe desenvolveu uma série de problemas psicológicos, passando a maior parte do tempo internada em clínicas ou na casa dos avós, no Parque São Domingos. “Hoje ela está mais estável, mas na época a gente era muito criança, não tinha cabeça, a gente mal conseguia cuidar da gente, não tínhamos condições de cuidar dela”, conta. Shirley tinha 12 anos quando começou a morar sozinha, acompanhada apenas do irmão três anos mais velho. A caçula dos três, com 6 anos, passou a transitar entre a casa dos irmãos e a dos tios. O interesse por Hip Hop partiu do menino. “Meu irmão falava que a gente precisava se distrair, que a rapaziada estava se envolvendo com isso, ‘vamos se jogar na dança’. No começo eu tinha vergonha, só tinha homem, achava que não era para mim, mas ele falava que não tinha nada a ver e depois de muita insistência comecei a frequentar as matinês e os ensaios”, relata. Faltariam ainda alguns anos para tomar gosto por cantar, mas já de início Shirley se interessou pela dança e passava as tardes treinando break em um depósito de areia perto de sua casa. “Ia muito pros bailes, conhecia uma pá de gente da zona

foto: gabriela moncau

Integrante do grupo Ca.Ge.Bê (Cada Gênio do Beco), Shirley “quebrou correntes” para se constituir como uma rapper consagrada no ainda hegemonicamente masculino cenário do Hip Hop brasileiro.

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sul, oeste, leste e eu comecei a levar umas minas também, falava pra elas que não era coisa só de homem, que não tinha nada ver, os homens queriam também que as mulheres participassem. Chegou uma época que a gente já era umas vinte mulheres dançando break”, afirma. Apesar da intensidade, o envolvimento com a dança durou pouco. A barriga começou a roncar e antes da hora se viram obrigados a ter vida de adulto. Aos 15 anos Shirley já tinha carteira assinada, arranjou um emprego como ajudante geral em uma indústria de produtos alimentícios, teve de largar os estudos e a dança. A situação financeira apertou mais ainda dois anos depois quando, aos 17 anos, engravidou. “Foi uma fase difícil, não podia sair porque tinha que cuidar da criança, uma época em que tive que ser mulher sem querer ser”, recorda. Mas foi no ano seguinte que os rumos começaram a mudar. “Um amigo meu e do meu irmão começou a colar mais lá em casa e cantava rap e tal, e eu gostava muito de ouvir os sons, ficar imitando, mas não levava muito a sério, achava que eu não tinha voz nenhuma pra isso”, diz. Na época, a jovem estava trabalhando em uma metalúrgica e quando era chamada para cantar rap achava “que era uma loucura completa. Estava com a minha filha pequena, pensava nos benefícios que eu tinha no trabalho, nem considerava a possibilidade”. Quando um amigo cantor gospel a chamou para montar um novo grupo de rap da quebrada, Shirley de cara negou. Sua curiosidade, no entanto, não permitiu que ela assistisse só de longe o novo grupo, composto apenas por seu irmão e o amigo Renato. Todos os dias saía do trabalho e ia acompanhar os ensaios. Começou a decorar as letras, cantar um pouquinho aqui e ali e depois de dois meses já criou coragem para pegar no microfone. Com largo sorriso no rosto, a cantora conta que aos poucos se deixou levar pelo que tornaria seu vício: “Eu falava ‘só vou fazer o refrão’, ‘só a dobra’, ‘mas não vou gravar nada, hein gente?!’. Aí nem percebi mas já tava envolvida na música. Mergulhei de cabeça no rap e nunca mais quis parar de nadar”.

Cada gênio do beco Shirley conheceu Cezar Sotaque quando o Ca.Ge.Bê foi cantar em uma escola na Casa Verde Alta. Foi no início dos anos 2000, período em que a Revista Rap Brasil estava gravando uma coletânea de diferentes bandas e o grupo – então formado por Cezar, Paulinho, André e Branco – convidou Shirley Casa Verde para cantar junto com eles no festival da revista que estava para acontecer. “O pessoal recebeu bem a coletânea, começaram a me chamar pra ir fazer os shows e quando eu vi eu já estava no Ca.Ge.Bê, sem ninguém nem me chamar, que eu sou intrometida mesmo”, brinca Casa Verde. O Ca.Ge.Bê lançou seu primeiro CD em 2006, “Lado Beco”. “Foi cansativo correr atrás de lugar pra gravar, chegou momento que deu vontade de desistir, foi bem difícil”, conta Shirley, que completa: “A gente quer se sustentar na música né, dependendo da atividade e da ideia que for a gente até vai

de graça, mas o que a gente quer é ganhar pra conseguir sobreviver na música”. Depois de suar bastante, conseguiram lançar o disco pela gravadora Equilíbrio Discos do DJ do Racionais MCs KL Jay, e consagraram-se no cenário do hip hop paulistano com a música Barraco de madeira. Alguns anos depois do primeiro CD a formação do grupo se alterou com a saída de André e Branco. Após 4 anos sem novas gravações, o grupo prepara um novo álbum de 15 faixas, O vilarejo, que será lançado no primeiro semestre de 2011. O disco, gravado também com o selo Equilíbrio Discos, conta com a participação de Edi Rock e produções de DJ QAP, KL Jay, DJ Celo, DJ Paulinho, Sem Grana Produtor e Marcelo Jah Knomoh. O videoclipe da música Oba! Clareou já está circulando na internet e o da faixa Maria Madalena deve estar disponível em breve. Apesar de verem como naturais as transformações no rap dos anos 1990, o grupo critica o chamado “rap de ostentação”, que entendem como uma adequação à sociedade do consumo e uma tentativa de importar o hip hop estadunidense para a bastante diferente realidade brasileira. “Para mim, é da hora ouvir a verdade na letra. Não curto essas músicas que falam o que o pessoal não é. Tem rap que é assim mesmo, grupos vão até em Alphaville fazer clipe, alugam um carrão importado pra filmar, depois devolvem e voltam pra realidade, onde mal estão conseguindo pagar a casa”, critica Shirley, que, no entanto, diz: “o rap não tem dono, cada um tem a liberdade para cantar o que quiser”. Para ela “o rap tem o potencial de estimular a politização e a conscientização da sociedade, justamente por vir de onde as pessoas não têm voz. Não é por acaso que elas não têm voz. Se queremos mudar a sociedade, precisamos ouvir os que não podem falar”.

Mulher, mãe, negra, rapper A atriz, modelo e DJ Pathy de Jesus em uma matéria feita pelo portal Per Raps e entrevistas com mulheres do rap, expõe: “Meu pai me falou uma parada que ainda ecoa na mente e infelizmente faz o maior sentido até os dias de hoje: se você quiser ser alguém, ser bem sucedida no caminho que escolher, vai ter que trabalhar duas vezes mais pra ter o mesmo reconhecimento porque é mulher. E mais ainda porque é negra”. Shirley Casa Verde concorda com a afirmação. Relembra os apertos que passou quando se tornou mãe, “ainda mais quando se está tentando crescer em uma carreira que não vem dinheiro”, e como as tarefas de cuidado e carinho com as crianças ainda são vistas como responsabilidades femininas. “Só como exemplo, quando minha filha mais velha tinha 4 meses eu tive que ir pro Rio de Janeiro cantar num show do prêmio Hutúz, que o MV Bill fazia na época. Tive que deixar a menina com a minha sogra, foi dolorido, os peitos cheios de leite, nunca vou esquecer”, relata, mas salienta que filhos jamais podem ser uma pedra no caminho. “Não posso um dia estar com 50 anos e falar ‘filha, eu não fiz isso porque eu tive você’. Não, ela não tem culpa, eu tenho

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que saber equilibrar isso. Imagina todas as mulheres que têm filhos ficando em casa. Ninguém trabalha mais? Tem que abrir mão dos sonhos?”, questiona. Suas filhas, Milena e Larissa, já gostam de rap. A mais velha quando tinha 8 anos chegou a participar do CD do Cagebê, na entrada da música “Menina”. Para a rapper, a maior dificuldade que encontrou como mulher para entrar no rap foi desconstruir os preconceitos que ela mesma tinha no que diz respeito ao lugar estabelecido como “adequado” para as mulheres na nossa sociedade. “É que nem porta de bar. Tem mulher que não vai entrar naquele bar porque só tem homem, acha que os caras vão mexer com ela. Mas ela pode entrar naquele bar, tomar a cerveja dela, não tem nenhum problema. Mas a gente se exclui, aceita ser marginalizada ou inferiorizada”, compara. Quando começou a trabalhar na metalúrgica em 1997, às mulheres só era destinado o setor de peças de motor de arranque, trabalhadas manualmente. “Eu comecei a pegar na prensa, cortar lâmina. As meninas falavam que eu estava louca, mas quem trabalhava na prensa ganhava mais, pra quê ficar fazendo o que era mais desvalorizado quando eu tinha condições de fazer outras coisas?” afirma Shirley. Para ela, é necessário que as mulheres “quebrem as correntes”: “Não é o homem que vai ficar puxando pela mão pra gente ocupar lugares que até então eram só deles. Nós temos que ter a vontade e a tranquilidade pra fazer tudo que a gente quiser, por entender que somos tão capazes quanto eles”. A cantora defende que hoje a representação feminina no hip hop tem aumentado e que, aos poucos, o cenário vai se alterar por completo. “A mulher pode ser do rap e não ter que seguir o modelo de antes que era obviamente masculino porque o espaço era hegemonicamente ocupado por homens. Quer dizer, hoje uma mulher não precisa, se ela não quiser, usar roupa larga, etc”, analisa. Quanto à imagem da mulher dentro das letras de rap, muitas vezes retratada como promíscua, vulgar ou com menos caráter que os homens, Shirley aponta como um aspecto bastante negativo. “A figura da puta, por exemplo, é sempre colocada como algo ruim, moralmente condenado. Se ela fez a escolha de se prostituir, ela tem os motivos dela. Eu mesmo podia ser uma com a história de vida que eu tive. É algo complicado. Cada um tem uma história, não estamos aí pra julgar, é muito mais importante debater o que acontece para que pessoas façam essas opções, as histórias, as necessidades”, reflete. De fato, são estereótipos que as próprias mulheres do rap estão desconstruindo, como mostra a letra da rapper carioca Nega Gizza: “Sou puta sim, vou vivendo do meu jeito, prostituta atacante vou driblando o preconceito. Sou meretriz triste e feliz. Codinome vagabunda entre o mal e o bem, vou deixar de ser imunda, você acha que é falta de moral promiscuidade excessiva. Seja puta 2 minutos e sobreviva”. Gabriela Moncau é jornalista. janeiro 2011

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Camila Martins

Grafite, arte e educação Em sua primeira exposição individual, o artista plástico e grafiteiro Gejo leva para dentro da galeria a contestação do grafite e a vontade de democratizar a arte.

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crossover, ou seja, uma mistura de estilos e com conteúdo crítico, “falo de coisas que estão me atingindo e que atingem outras pessoas também, assim como o rapper que tenta falar o que o povo sente. Por isso, critico bancos que exploram os cidadãos com seus juros, os políticos que escondem dinheiro na cueca, empresas que estão prejudicando o meio ambiente. Estou exercitando meu lado maldito”, diz, brincando com o apelido, o Maldito, que é conhecido nas ruas.

A loucura das ruas O ano era 1986 e o break era febre entre os jovens, “meu irmão mais velho dançava e eu comecei a me interessar também. Rolavam competições entre as escolas, era o maior barato”, recorda o grafiteiro. Além disso, outra coisa chamava a atenção do garoto: os desenhos e letras que via estampando os muros da cidade. Fascinado pelos grafismos, começou a treinar algumas tags (como são chamadas as letras do pixo)

fotos: arquivo pessoal/gejo

ixador que se interessou pelo grafite e agora entra no circuito das galerias de arte de São Paulo, Gejo encara com naturalidade esse processo de migração e de reconhecimento do seu trabalho. Em cartaz desde novembro de 2010 com a exposição “AG&DG”, na galeria Mônica Filgueiras, o que se pode observar é que as obras ali apresentadas, como o painel em que dois aviões se chocam contra o logo do Bradesco, preservam a rebeldia trazida das ruas e se desdobram em suportes e acabamentos mais elaborados. “Não vou perder a minha história na rua só porque eu estou indo para a galeria. Pelo contrário, vi que posso fazer ainda mais coisa e ter mais visibilidade. Isso é uma conquista de todas as pessoas que fazem grafite porque realmente gostam e acreditam nisso, diferente de um monte de gente que se aproveitou da estética para ganhar dinheiro”, garante. Nascido em Seabra, no sertão da Bahia - lugar em que a luz elétrica chegou só em 2007, Gejo veio para São Paulo com a família quando tinha apenas três anos. Filho de pai pedreiro e mãe dona de casa, cresceu junto dos 7 irmãos na periferia do bairro do Butantã, na Zona Oeste. Mais um exemplo de jovem que se envolveu nas manifestações culturais do local em que vivia, Gejo soma à sua história a versatilidade artística e, depois de mais de 20 anos pintando nas ruas, a entrada no universo, um tanto perverso, do mercado da arte. No entanto, de toda a sua trajetória, do que fala com mais orgulho é de seu papel como arteducador, das aulas que dá na Fundação Casa e do Sítio do Tatu Amarelo, centro cultural que está criando na sua cidade natal. Com influência da pixação, do grafite, do hip hop e da arte popular, define seu trabalho como

Pinturas feitas por Gejo na casa de seus parentes em Seabra, BA.

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em folhas de papel, até que, com 14 anos, junto com os outros meninos da rua, formou a Caveiras da Noite, uma gangue de pixação. No entanto, no meio disso tudo, “rola muita coisa pesada, muita droga. Tinha vez que íamos para a porta de baile só pra roubar boné e tênis, sem contar as coisas terríveis que eu via e passava na rua. Já presenciei muita morte”, recorda. Certa noite, ele e mais três amigos estavam pixando quando tomaram um enquadro. O policial reuniu o grupo e fez roleta-russa com eles, colocando uma bala no tambor da arma e atirando contra cada um. Nada aconteceu, mas tal experiência fez com que ele pensasse sobre quais coisas boas aquilo vinha trazendo, além do corpo dolorido por causa das brigas, as noites sem dormir e falta de grana, que ia toda para a tinta. No entanto, o que mais incentivou Gejo a parar foi quando ele soube que outros caras do seu bairro pixaram o Cristo Redentor. “A melhor coisa para alguém parar de pixar é ver que tem gente melhor do que ele, e isso aconteceu comigo”, revela.

“Falo de coisas que estão me atingindo e que atingem outras pessoas também, assim como o rapper que tenta falar o que o povo sente”. tante troca de funcionários e diretores só prejudicam o desenvolvimento dos internos. Paralelamente a isso, vai desenvolvendo uma obra crítica à realidade em que vive, sempre ligada a arte de rua, participando de fanzines, revistas, documentários e exposições em centros culturais.

Da rua para as galerias

Conhecimento compartilhado A pixação ficou de lado, mas a vontade de desenhar persistiu. Por isso, começou a buscar referências artísticas, frequentar exposições e fez uma oficina de stencil art com o também grafiteiro Celso Gitahy. Foi nesse momento que passou a ter mais consciência sobre a cultura do hip hop, o quanto ela pode influenciar de maneira positiva. Foi quando decidiu compartilhar seu conhecimento. “Eu via que muita gente não conseguia fazer o curso com o Celso porque não tinha grana. Então, resolvi multiplicar o que aprendi dando minha primeira oficina em um convento que existia no bairro”, conta. Depois, “a diretora de uma escola lá da Zona Oeste me convidou para fazer um projeto voluntário envolvendo arte e educação com os alunos. Eu topei, e quando me dei conta minhas aulas tinham mais de 80 pessoas. Sem contar que eu virei meio psicólogo, quando algum aluno tinha problema eles mandavam conversar comigo”, conta, divertindo-se. O projeto durou dois anos, de 1996 a 1998, e desde então Gejo leva a carreira como arteducador a sério. Ele conta, com orgulho, que depois de uma oficina que deu na Fundação Casa, foi convidado a fazer parte do time de professores. “Eu sempre digo que eu poderia estar na mesma situação que eles”, lembrando os fatos que aconteceram durante a adolescência, “por isso quero mostrar que é possível sair dali e viver de arte, porque tem muita gente boa por lá”. Para Gejo, a experiência de lecionar na Fundação é como “matar um leão por dia”, já que a falta de estrutura e a cons-

Os trabalhos do grafiteiro em postes, placas e abaixo, na exposição na galeria Mônica Filgueiras.

“Não vou perder a minha história na rua só porque eu estou indo para a galeria. Pelo contrário, vi que posso fazer ainda mais coisa e ter mais visibilidade”. Novo sítio: www.carosamigos.com.br

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Foi em 2006 que os rumos de sua carreira artística mudaram. “Com 30 anos de atraso decidi que era hora de conhecer o lugar de onde vinha. Foi uma experiência revolucionária e fez surgir um novo artista”, conta, emocionado. Depois de passar 20 dias em Seabra e conhecer suas raízes, novos projetos para além do grafite ganharam força e uma das suas marcas mais conhecidas hoje, o desenho de um Tatu colorido que Gejo pinta nos muros e placas da cidade, nasceu. De volta a São Paulo, as ideias foram se desdobrando em vários projetos, como o “Tape o Buraco”, em que Gejo desenha um Tatu em pedaços de madeira e coloca dentro de buracos no meio das ruas e avenidas. A ação é fotografada e postada na internet, repercutindo até a prefeitura tomar uma providência e fechá-lo. Outro projeto que saiu o papel foi o Free Art Festival, evento que existe desde 2008 e distribui gratuitamente obras de artistas nacionais e internacionais durante festas de hip hop. “O grafite é uma forma de arte democrática pois é acessível a todo mundo, o Free Art vai nesse caminho e dá a oportunidade de qualquer pessoa ter uma obra de arte, democratizando ainda mais o acesso”, defende Gejo. Há, também, o Sítio do Tatu Amarelo, centro cultural em Seabra, ainda em fase de captação de verba, que irá trabalhar com alfabetização de adultos, oficinas de arte, biblioteca e um jardim com a diversidade da flora da região. Foi em uma exposição coletiva, também em São Paulo, que a marchande Mônica Filgueiras tomou conhecimento de seu trabalho e o convidou para realizar a sua primeira individual em galeria. “Isso prova a aceitação das galerias. Elas viram que além do impressionismo, o cubismo, os vários estilos, tem a arte de rua. Mas mesmo assim eu ainda considero o grafite como uma antiarte, pois ele vai contra a estética do que é bonito e é feito em lugares que a princípio não são próprios para isso” afirma Gejo, que explica que a formação do grafiteiro é autodidata, assim como a do artista popular, o que reforça ainda mais seu caráter não institucional “Eu não precisei fazer faculdade pra me considerar artista”, brinca. Camila Martins é jornalista. janeiro 2011

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Anelise Sanchez

Energia nuclear: quem ganha é o mercado

ROMA – A Europa de hoje enfrenta um enorme desafio em matéria de política energética. De um lado, crescem significativamente os subsídios destinados à produção de energia proveniente de fontes renováveis. Um recente estudo realizado pela universidade italiana Bocconi e a consultoria Accenture estimam que, até 2020, os países membros da União Europeia deverão investir no setor pelo menos 150 bilhões de euros. Por outro lado, apesar dos recentes protestos populares contra a criação de novas usinas nucleares, países como a Itália e a França continuam investindo na construção de reatores nucleares de última geração para a produção de energia. Em 2004, a IAEA (International Atomic Energy Agency) já previa que, até 2020, a energia elétrica obtida a partir do calor produzido pela reação do urânio diminuiria em função dos investimentos em outras alternativas energéticas. No entanto, os números demonstram que a energia nuclear ainda incide significativamente na política energética internacional. Segundo o relatório International Status and Prospects of Nuclear Power, da IAEA, as usinas nucleares respondem atualmente por 14% da produção de energia elétrica mundial. Em outras palavras, isso significa que a energia nuclear ainda é a terceira maior fonte de energia, logo depois do carvão e do gás natural. Atualmente, existem cerca de 440 reatores comerciais ativos em 31 países e exatamente 14 nações, que, juntas, representam a metade da população mundial, estão construindo 45 novos reatores. Somente nos Estados Unidos da América existem 104 usinas nucleares e o país lidera o ranking das nações geradoras por fonte nuclear, sendo responsável, em 2008, por 32% da produção total deste tipo de energia no mundo. A França, por sua vez, é o maior produtor

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europeu e satisfaz mais de 70% de sua demanda doméstica de energia graças aos seus reatores nucleares, enquanto que a União Europeia está suprindo cerca de 35% da necessidade interna de energia com o seu parque gerador nuclear. Diversos governos acreditam que os investimentos na ampliação internacional da energia nuclear represente uma alternativa às frequentes oscilações dos preços dos produtos energéticos e às incertezas envolvendo os combustíveis fósseis. Contudo, mesmo tratando-se, na maior parte dos casos, de um uso para fins pacíficos, os principais obstáculos à expansão do nuclear são a segurança das usinas, o armazenamento dos rejeitos radioativos, os elevados custos de construção e manutenção das centrais e, obviamente, a possível proliferação de armas nucleares. Depois da catástrofe de Chernobyl que marcou para sempre a década de 1980, a palavra de ordem na maior parte dos países europeus é cautela. Nos anos 1990, os investimentos do velho continente em novas centrais nucleares diminuiram drasticamente, mas recentemente, as frequentes crises nos mercados de petróleo e gás colocaram novamente em discussão o futuro dos parques geradores da Europa. A tendência, por enquanto, é prolongar a vida das usinas nucleares ou investir oficialmente na construção de novos parques geradores. A Alemanha, por exemplo, possui algumas das maiores geradoras de nucleares do mundo. Para financiar novos investimentos em energias renováveis e cumprir as metas de redução das emissões de dióxido de carbono, a chanceler Angela Merkel e a coalisão liderada pela União Democrata Cristã CDU/CSU e os liberais do FDP decidiram adiar o fechamento de suas centrais atômicas para 2040, descumprindo o compromisso público, proposto por Schroeder, que previa o encerramento das atividades das centrais nucle-

ares até 2025. Em troca, o governo cobrará uma taxa das centrais nucleares para financiar a chamada “energia limpa”. Com a nova medida, o governo alemão conquistou uma grande impopularidade e a acusação de ceder às pressões do lobby dos grandes grupos industriais. No último mês de abril, mais de 100.000 pessoas uniram-se em uma corrente humana e invadiram as ruas de Berlim para protestar contra o plano do governo. A opinião pública exige que Angela Merkel atue com responsabilidade, lembrando a impotência das autoridades nacionais diante de tragédias como aquela da mina desativada de sal de Asse, na Baixa Saxônia, segunda maior região do país. A primeira coisa que salta aos olhos ao visitar aquela localidade é uma imensa letra “A” colocada sobre a grama verde e, aparentemente, inócua. “A” indica a palavra “Achtung” (Atenção) e indica que aquela área, próxima do distrito de Wolfenbüttel, pode estar contaminada por césio 137. Entre 1967 e 1978, cerca de 126 mil barris de resíduos radioativos de baixa ou média radioatividade foram armazenados em uma na mina a mais de 625 metros de profundidade. Porém, há anos Asse é considerada uma verdadeira bomba relógio porque, diariamente, diversos litros de água salina infiltram o local, que ainda corre sério risco de desabamento. O Departamento Federal de Proteção contra a Radioatividade identificou no local a presença de uma solução salina contaminada com césio 137 e trício e, nos últimos anos, as autoridades reabriram o depósito para recuperar os barris de lixo radioativo do local antes que eles venham a contaminar definitivamente os lençóis freáticos. A delicada operação, custará pelo menos, 2 bilhões de euros. O destino definitivo dos barris ainda é incerto. Estuda-se a possibilidade de armazená-los em

foto: Greenpeace/ItÁlia.

Setor ganha novo fôlego na Europa mesmo depois da publicação de dados alarmantes sobre os recentes efeitos devastadores da radiação.

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uma outra mina de sal, Gorleben, ou na mina de ferro Konrad, mas a ideia, além de exigir 20 anos de tempo para ser completada, não agrada a maior parte da população alemã, que também preocupa-se com as diversas panes que nos últimos anos atingiram as usinas nucleares de Brunsbüttel e Krümmel e com os perturbantes resultados do chamado Kikk-studium.

Pesquisa alarmante Trata-se de um estudo encomendado pelo Federal Office for Radiation Protection (BFS) e realizado por epidemiologistas da Universidade de Mainz que revela a maior incidência de casos de leucemia em crianças (+76%) que vivem a menos de 5 km de uma usina nuclear, em relação àquelas que moram a pelo menos 50 km de distância de um reator. Os pesquisadores descobriram que, entre 1980 e 2003, foi diagnosticada a leucemia em 37 crianças que moravam nas proximidades das instalações dos reatores. Os dados são alarmantes. No entanto, mesmo se muitos sustentam que não existe uma relação direta de causa e efeito entre a leucemia e a exposição às radiações e se, além disso, todas as usinas fossem desligadas imediatamente, o grande problema dos países produtores de energia nuclear continuaria sendo o destino final da enorme quantidade de resíduos radioativos. Na Alemanha, existem dois depósitos para os rejeitos de baixa e média radioatividade: Morsleben, projetado pelo governo comunista da antiga RDA e Konrad, mas nenhum país possui uma resposta definitiva para o armazenamento seguro dos resíduos com radioatividade superior. Uma possibilidade é o reprocessamento do lixo nuclear para recuperar, por exemplo, plutônio e urânio que poderão ser adicionados a um novo combustível de óxido mesclado (MOX), mas essa operação, por sua vez, gera um volume de resíduos superior àquele contido no combustível original. Na Inglaterra, o cenário também é alarmante. A usina britânica de Sellafield, a mais antiga do Reino Unido, foi a primeira a produzir energia nuclear e os contínuos despejos radiativos nesse local de reprocessamento transformaram o Mar da Irlanda em uma das áreas mais contaminadas por radioatividade de todo o globo. De acordo com o porta voz da associação Core Cumbria, Martin Forwood, “ao redor de Sellafield foi detectada um nível de radioatividade 40 vezes maior que aquele permitido por lei”.

Itália nuclear Na Itália a situação é igualmente preocupante. Em 1987, em um plebiscito popular, o país havia decidido abandonar o uso da energia nuclear, mas em 2009 o governo liderado por Silvio Berlusconi retomou o programa nuclear, assinando um acordo com a França que prevê a instalação na Itália de pelo menos quatro reatores modelo EPF fabricados pela empresa francesa de energia Areva. Trata-se de uma parceria que a Legambiente, uma das mais renomadas associações ambientalistas italianas, define como “míope e perigosa”.

No último mês de novembro, 17 organizações como WWF e Greenpeace promoveram um encontro, em Roma, para explicar porque a indústria nuclear causa danos ao meio ambiente, à economia e à saúde. Como explica Giuseppe Onufrio, diretor executivo da organização Greenpeace Italia, “a Organização Mundial da Saúde e a IAEA estimaram que, de 1986 até 2004, o número de mortes causadas por contaminação radioativa chegou a 985 mil, enquanto que na França a taxa de tumores da tiróide é duas vezes superior à média europeia”, completa. A ideia italiana é investir em centrais de terceira geração aumentando, do ponto de vista volumétrico, a quantidade de lixo radioativo utilizado como combustível. Atualmente, o custo da energia elétrica na Itália é 30% mais alto que aqueles praticados pelos outros países europeus e, por isso, espera-se que a nuclear permita uma menor dependência do petróleo. O país está preparando a inauguração de um órgão regulador independente e também delegou à empresa Sogin a realização de estudos geológicos para a eventual identificação de terrenos que poderiam ser utilizados com depósitos de resíduos radioativos. Isso porque, até agora, a Itália paga a planta de Sellafield para o armazenamento e reprocessamento de seus resíduos nucleares. Por enquanto, 52 cidades italianas foram consideradas potenciais sedes dos depósitos de superfície, que, segundo a empresa, poderiam transformar-se em uma espécie de parque tecnológico frequentado por visitantes e pesquisadores. Ironia do destino, a Itália é um país que, invariavelmente, administra com dificuldade emergências ambientais como o recente acúmulo de lixo na cidade de Nápoles. Sendo assim, alguns dos governantes das regiões italianas temem a gestão do nuclear em território nacional. “Vou me opor a qualquer hipótese que envolva o nuclear”, declarou Enrico Rossi, do comando da região Toscana. Além da batalha política, aceitando a construção de reatores EPRs (European Pressurized Reactor) em solo italiano é como se o governo de Berlusconi tivesse comprado um produto de alto custo de olhos fechados. Isso porque, até agora, no mundo todo, não há um só exemplo de uma EPR totalmente concluída. Além de projetos na França e na China, na Europa, o colosso Areva está construindo um reator EPR em Olkiluoto, a cerca de 300 km de Helsinki. A Finlândia, assim, é o primeiro país da Europa ocidental a investir em um nova unidade nuclear desde a tragédia de Chernobyl, mas o pacto que a empresa finlandesa TVO assinou com os franceses ainda gera incertezas. O projeto está com um atraso de pelo menos três anos em relação ao cronograma original e a STUK (Radiation and Nuclear Safety Authority), autoridade finlandesa, decidiu intervir diversas vezes no projeto de fabricação do reator EPR, apresentado pela TVO, exigindo correções em seu sistema de segurança.

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Outro motivo de preocupação foi o anúncio do fim da colaboração entre a Areva e a empresa Siemens, até então responsável pela instalação das turbinas dos reatores, aliada a dificuldade para recrutar mão de obra qualificada e experiente em quantidade suficiente para a realização do projeto em Olkiluoto. Em outras palavras, o reator finlandês no modelo EPR ainda pode ser considerado um protótipo e não há garantias de que mesmo produzindo menos resíduos, o lixo radioativo de uma central de terceira geração seja menos tóxico do que aqueles gerados por reatores convencionais. Não por acaso, já em 2007 ativistas finlandeses do Greenpeace, como Lauri Myllyvirta, passaram a noite pendurados a mais de 60 metros de altura para protestar contra a construção da nova planta nuclear.

Protagonista europeu A França, por sua vez, possui 59 usinas nucleares em operação e, em algumas localidades do país, a associação sem fins lucrativos CRIIRAD (Commission de Recherche et d’Information Indépendantes sur la Radioactivité) detectou a presença de material radiaotivo. Na bucólica Saint-Pierre (Cantal), onde há mais de duas décadas funcionava uma mina de urânio, os engenheitos da CRIIRAD encontraram terrenos contaminados com o chamado yellow cake, um resíduo nuclear a base de urânio concentrado. Um indivíduo contaminado com partículas de urânio expõe-se a raios alfa e gama que podem provocar, entre outros danos biológicos, lesões no DNA humano e, em alguns terrenos de SaintPierre, o nível de radioatividade registrado pelo CRIIRAD foi 300 vezes superior àquele de um material considerado um resíduo radiaoativo. Em muitas cidades francesas, as centrais nucleares representam o motor da economia local. Em Palluel, existem os chamados “nômades do nuclear”, operários que transferem-se de uma central à outra em busca de empregos temporários, e em La Hague, Normandia, o trabalho da maior parte dos habitantes concentra-se no reprocessamento de resíduos radioativos. Ali, o laboratório Acro detectou a contaminação dos lençóis freáticos da cidade. Foram encontrados resíduos de trício, e o nível de radiotividade registrado foi de 750 Bequerels por litro, enquanto que o limite consentido pela normativa europeia é de 100 Bequerels por litro. Geralmente, os dados sobre a radioatividade divulgados pelas centrais nucleares são uma média da concentração de partículas radioativas medidas nos terrenos, mas isso não significa que em algumas superfícies a contaminaçao seja superior àquela declarada. Os riscos tendem a ser minimizados e, em caso de acidente, a população é orientada a trancarse em casa, ingerir pastilhas de iódio e sintonizar o rádio, esperando, obviamente, que Chernobyl seja só um pesadelo longínquo. Anelise Sanchez é jornalista. janeiro 2011

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Cesar Cardoso

tacape Rodrigo Vianna

UMA “BRECHA” NO BELO URUGUAI Tive o privilégio de passar uma semana de férias no Uruguai, pouco antes do fim do ano. Como já conhecia a região de Colônia de Sacramento (cidade colonial construída pelos portugueses à beira do rio da Prata), dessa vez preferi seguir com minha mulher para o litoral a leste de Montevidéu. Evitamos a muvuca de Punta del Leste – balneário tomado de prédios gigantescos que conseguem o milagre de tornar feia uma área originalmente bela como aquela península de Punta. Passamos batido por ali, e optamos por explorar um pouco mais outras praias da região, incluindo a instigante Chihuahua, além de La Paloma e La Pedrera. Essa última tem lindas formações rochosas à beira-mar, além de pousadas com preços razoáveis, o que a faz um ponto muito procurado pelos surfistas. Mas, antes que nossos caros leitores pensem que me transformei em guia turístico, explico que as praias foram apenas parte do roteiro: passamos também três dias na acolhedora Montevidéu. Uma capital sem trânsito, com gente calma, que vai para a beira-rio tomar o mate no fim da tarde. Uma capital cheia de livrarias de porte médio – onde ainda existe a figura do livreiro, que sabe indicar as melhores edições de cada obra, conhece autores, sabe como agradar o leitor. O meu foco era a obra de Mario Benedetti – recém falecido. Li ano passado A Tregua, um romance simples e estupendo. Depois disso, me apaixonei pela obra e pela figura de Benedetti - que além de escrever bem (mal comparando, uma mistura de Drummond com Rubem Braga), era um intelectual de esquerda e colaborador de publicações como Brecha. Trouxe na mala 2 livros de poesia, um outro de contos e mais um romance do notável escritor uruguaio. Trouxe também alguns exemplares de Brecha - jornal semanal que acaba de completar 25 anos! Sim, da mesma forma como os argentinos foram capazes de criar e manter o Pagina 12, a esquerda uruguaia lançou Brecha logo que a ditadura terminou. E o jornal segue disputando manchetes, pautas e leitores com a imprensa conservadora no Uruguai. É um jornal de esquerda, mas independente, crítico, não faz concessões ao

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governo que hoje está nas mãos da “Frente Ampla” – de centro-esquerda. Nas ruas do centro de Montevidéu, é fácil encontrar Brecha estampado nas bancas, lado a lado com El País e La Republica (esses dois últimos, jornais mais conservadores). Aqui no Brasil há o esforço notável de publicações como Caros Amigos e Brasil de Fato. Mas que infelizmente não tem o mesmo peso que Brecha possui no debate político uruguaio. Por que? Muita gente acha que é preciso esquecer essa história de jornal de esquerda, e pensar na internet. De minha parte, acho que nos próximos 15 ou 20 anos, haverá espaço para os dois. A esquerda brasileira – ainda mais depois do bombardeio que vivemos durante a campanha eleitoral – teria a obrigação de criar um grande jornal (diário?) de circulação nacional. O que impede que isso aconteça? Pensava nisso enquanto caminhava pela calle Sarandi (rua de pedestres no centro antigo de Montevideu), rumo a mais uma livraria, a “Mas Puro Verso” (essa vale conhecer também pela beleza da arquitetura, com lindos vitrais e um grande pé direito). Quando entramos na livraria, estava quase na hora de fechar. O vendedor, simpático, tentou me agradar: olha, hoje temos lançamento de um livro, se o senhor quiser pode ficar mais um pouco e acompanhar. Achei graça e já ia me retirando quando vi sobre o balcão qual obra seria lançada: a edição comemorativa dos 25 anos de Brecha – com uma coletânea dos melhores textos do jornal. Impossível não ficar para acompanhar a palestra de Gerardo Caetano, que explicou o papel de Brecha nesse quarto de século de Uruguai democrático. Que minha mulher não me ouça, mas confesso: tão agradável quanto as praias que visitamos foi essa bela coincidência - saí a procurar Benedetti, e acabei encontrando Brecha. No fundo, no fundo, deu quase na mesma! Quem quiser conhecer mais sobre Brecha pode ir até o sítio do jornal - http://www.brecha.com.uy/. Rodrigo Vianna é jornalista e responsável pelo blog Escrevinhador www.rodrigovianna.com.br

ANO NOVO, MORTE NOVA RIR É O MELHOR No centro do palco um sujeito usando roupas de atleta está amarrado de cabeça pra baixo há mais ou menos uma hora e meia. Ele não disse uma palavra, percebemos apenas sua respiração pesada. Por fim, um outro sujeito, com roupas de atleta idênticas às do primeiro, entra em cena, em marcha cadenciada, dá duas voltas pelo palco e, ao passar novamente pelo que está amarrado, saca um revólver e lhe dá um tiro na cabeça, fazendo espirrar sangue até a terceira fila. E nós estouramos numa gargalhada sem fim.

A VISTA

Alá o gordo olhando a vista, agora uma janela vazia, uma com cortina, outra com persiana, era um gato naquela ali?, ó, alguém almoçando, ali tá em obras, uma com grade, não é bem grade, é aquele nylon trançado pra criança não se pendurar, aquilo é nylon?, uma com vidro quebrado, ih, se chover..., um ar condicionado velho, agora é grade, olha a velha, acho que me viu, não, foi só impressão, hum, ali, cheia de calcinhas secando, mais alguém olhando pra ontem, outro gordo e agora o chão onde eu me arrebento.

ADEUS

A água se agita e mais uma vez ele tem o pressentimento. Está ficando cada vez mais frequente. Tenta passar as mãos pelas paredes do tanque onde está submerso mas a agitação da água só faz aumentar. Não está mais apreensivo ou assustado. Pela primeira vez ele sente medo, muito medo. E percebe que tem razão para isso pois misteriosamente a água encontrou alguma saída e começa a escorrer. Ele tenta segurá-la mas é inútil. Em desespero mergulha na mesma direção em que a água escoa, tentando segui-la, o que lhe parece a única chance de evitar a morte. Sente então duas mãos que o seguram e dizem: – Parabéns, é uma menina. Cesar Cardoso diz que é escritor e que tem o blog PATAVINA’S (http://cesarcar.blogspot.com). Você acredita?

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Eduardo Matarazzo Suplicy

porca miséria! Glauco Mattoso

A Erradicação da Miséria

SONETO PARA JANEIRO [2101] Janeiro é mez de contas. Ja não sobra nem cheiro dos assados natalinos... Agora é só boleto que me cobra o carro, a casa, a eschola dos meninos... Durissimo, sem margem de manobra, descasco abacaxis, corto pepinos... Ninguem, mais do que eu dribblo, se desdobra em meio a proprietarios e inquilinos... Tentei guardar o decimo terceiro, mas quem fallou que fica algum dinheiro no saldo, si a vidinha anda tão braba? Das ferias volto até mais estressado... Só tem, de positivo, o mez um lado: faltando apenas onze, um anno acaba... Mal começamos o anno e, juncto com a troca da presidencia, volta aquelle pappo do “imposto do cheque”, com seu malfadado effeito cumulativo e extensivo, a tudo e todos. Sempre que a carga tributaria é onerada, suscita-nos o infallivel commentario de que só falta taxarem o ar que respiramos. Começo a crer que esse desabafo pode deixar de ser mera força de expressão. Duvidam? Ora, ja estamos technicamente perto disso. Da agua ja se falla que será rara e cada vez mais cara: não se cogita de installar um apparelho medidor para cada apartamento, em todos os condominios? Dos animaes e dos presidiarios (o que dá no mesmo) ja se falla que podem ter um chip identificador implantado no corpo. Mais um pouco, e todos teremos nosso chip medidor de respiração, por que não? Ja pensaram? Como nos pulsos telephonicos, quanto mais vezes inspirarmos e expirarmos, mais pagaremos! Isso significa um effeito tributario addicional sobre quasi tudo: practicar esporte, trepar, batter punheta, dar gargalhada, subir escada... Até cagar: eu, que soffro de prisão de ventre, quasi perco o folego quando estou alli sentado! Meu cocô sahiria mais caro! Só pagaria menos quem fosse absolutamente zen, a poncto de consumir um minimo de oxygenio, mesmo

emquanto practicasse artes marciaes... Talvez se conseguisse, com muita pressão politica, alguma isenção ou abbattimento para os asthmaticos e athletas, ou em zonas onde o ar fosse muito polluido... e, nesse caso, cidades como Curityba deixariam de ser modelos de qualidade de vida para se transformarem em areas mais penalizadas pelo fisco... Bem, mas, emquanto esse scenario futurista não passa a ser meta de curto prazo, podemos pagar e bufar à vontade: pagar os impostos e encargos que ja temos e bufar sem custo, repetidamente, a plenos pulmões! Ufa! Ainda bem! Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaísta.

Logo após ter sido proclamada vencedora da eleição para Presidente da República, Dilma Rousseff enunciou com clareza seu objetivo maior: “Não podemos descansar enquanto houver brasileiros com fome, enquanto houver famílias morando nas ruas, enquanto crianças pobres estiverem abandonadas à própria sorte. A erradicação da miséria nos próximos anos é assim, uma meta que assumo, mas para a qual peço humildemente o apoio de todos que possam ajudar o país no trabalho de superar esse abismo que ainda nos separa de ser uma nação desenvolvida.” Em dezembro, Dilma anunciou que pretende criar uma linha oficial de pobreza que meça a efetividade das políticas sociais no combate à pobreza. Se vamos erradicar a miséria. É fato que a pobreza está diminuindo no Brasil, mas sem um acordo sobre que pessoas são consideradas pobres vai ser difícil saber se o governo cumpriu ou não seu objetivo. Com vistas a ajudar neste propósito, em 1999 apresentei no Senado o Projeto de Lei nº 66, que institui a linha oficial de pobreza e estabelece que o Governo Federal deverá definir metas de sua progressiva erradicação e diminuição das desigualdades socioeconômicas. Aprovado no Senado, a matéria encontra-se pronta para ser votada pela última comissão em que tramita na Câmara dos Deputados. Anthony B. Atkinson, em seu livro, “Poverty in Europe”, publicado em 1998, cita uma passagem de James Tobin, em 1970, sobre o estabelecimento de uma medida oficial de pobreza: “A adoção de uma medida quantitativa específica, apesar de arbitrária e questionável, terá consequências políticas duráveis e de longo alcance. (...) Enquanto uma família for encontrada abaixo da linha de pobreza, nenhum político será capaz de anunciar vitória na Guerra contra a Pobreza ou ignorar o conhecimento das obrigações da sociedade para com os seus membros mais pobres”. (Tobin, J. (1970), Raising the Incomes of the Poor). A transformação dessa matéria legislativa em lei é o menor e melhor caminho para a definição de uma referência nítida que norteará doravante as políticas públicas de combate à desigualdade social em nosso país. Creio ser esse o objetivo de nossa presidenta. Eduardo Matarazzo Suplicy é senador. janeiro 2011

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Ilustração: bruno paes

e a Presidenta

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Lúcia Rodrigues

Primeiro

desaparecido

o

desfecho para a angústia que atinge os familiares do dirigente da Ação de Libertação Nacional (ALN), Virgílio Gomes da Silva, pode estar próximo do fim. A descoberta de uma vala clandestina no final do ano passado no cemitério de Vila Formosa reacendeu as esperanças para a localização de seus restos mortais. As buscas pela ossada do ativista político, interrompidas em dezembro, serão retomadas a partir de 14 de fevereiro. Virgílio encabeça a lista de desaparecidos políticos da ditadura militar. O comandante Jonas, como era conhecido pelos companheiros da ALN, está desaparecido há quase 42 anos. Preso em 29 de setembro de 1969 por agentes da Operação Bandeirantes (Oban), o embrião do famigerado DOI-Codi paulista, foi trucidado pelos militares no mesmo dia. Os órgãos de repressão nutriam ódio particular por ele. Virgílio comandou uma das ações mais espetaculares contra a ditadura. O sequestro

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da ditadura pode ser localizado

do embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969, rendeu notoriedade internacional ao grupo guerrilheiro e nocauteou momentaneamente a ditadura. A operação foi um golpe de mestre. De uma só tacada, obrigou os militares a reconhecerem publicamente a existência da tortura no Brasil, além de conseguir a libertação de 15 ativistas políticos que estavam presos nos porões do regime. Os generais foram obrigados a aceitar as exigências feitas pelos guerrilheiros, para obterem a soltura do embaixador. Um manifesto redigido pelo jornalista e ex-ministro do governo Lula, Franklin Martins, que também participou da ação, denunciando a violência praticada pelos militares e contendo os nomes dos 15 presos políticos que deveriam ser libertados em troca do embaixador norte-americano foi lido nos meios de comunicação televisivo e radiofônico, além de ter sua publicação impressa nos jornais.

Forças repressivas A ousadia revolucionária, no entanto, sofreu um revés após a libertação do norte-americano. A retumbante derrota imposta pelos guerrilheiros à ditadura intensificou a ira das forças repressivas. A caçada contra esses ativistas não cessou. Os militares estavam ávidos por dar uma resposta contundente à desmoralização sofrida pelo sucesso da operação compartilhada pelos guerrilheiros da ALN e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

O comandante que colocou em xeque o poder dos generais durante dias foi convertido no principal alvo da fúria da caserna. Sua captura era questão de tempo. Vinte cinco dias após o sequestro do embaixador, Jonas caiu. A sanha de seus algozes ordenava punição exemplar. Nenhum de seus ossos foi preservado. Dos órgãos vitais, o único que restou intacto foi o coração, os demais foram dilacerados pelas brutais torturas a que foi submetido. Mesmo assim, os militares consideravam pouco. Matar Virgílio não bastava, era preciso impor punição duradoura à família do guerrilheiro que desmoralizou a ditadura. Por isso, seu corpo nunca foi entregue. O comandante Jonas foi vítima do método de sofrimento prolongado, utilizado pelos militares, que foi propagado centenas de vezes ao longo dos anos de chumbo. Mais de 400 ativistas políticos continuam desaparecidos ainda hoje no país. Segundo o representante do Fórum de Ex-Presos Políticos, Ivan Seixas, além de Virgílio, estão enterrados no cemitério de Vila Formosa, mais nove ativistas que combateram a ditadura militar. Alceri Maria Gomes da Silva, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Antônio dos Três Reis de Oliveira, da ALN, Antônio Raymundo de Lucena, da VPR, Devanir José de Carvalho, do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Edson Neves Quaresma, da VPR, Joelson Crispim, da VPR, José Idésio Brianezi, da ALN, José Maria Ferreira de Araújo, da VPR e Sérgio Roberto Correa, da ALN.

foto: jesus carlos

Buscas pelos restos mortais de Virgílio Gomes da Silva, militante político contra a ditadura, serão retomadas em fevereiro, no cemitério de Vila Formosa.

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Pelo menos três deles foram enterrados com nomes falsos. Joelson foi sepultado no terreno 677 da antiga quadra 57, como Roberto Paulo Wilda, José Maria, como Edson Cabral Sardinha, na sepultura 119 da antiga quadra 11e Edson, no terreno 66 da antiga quadra 15, com o nome de Celso Silva Alves. A maioria dos demais ativistas foi enterrada na quadra 57. Alceri na sepultura 849, Antônio de Lucena na 253, Antônio de Oliveira na 848 e José Idésio na 620. Devanir foi enterrado no terreno 273 da quadra 19 e Sérgio e Virgílio na quadra 50, atual 47, nas sepulturas 1.038 e 1.147 respectivamente. Ambos foram sepultados como desconhecidos. Sérgio sob o número 3.700 e Virgílio sob o número 4.059/69. Para Ivan, a localização dos desaparecidos da ditadura é um objetivo que deve ser trilhado sem trégua. “Temos de lutar pela abertura de todas as valas clandestinas e o Estado tem a obrigação de identificar essas pessoas”, ressalta.

Justiça Se depender dos procuradores da República do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo, Eugênia Fávero e Marlon Weichert, essa história não cairá no esquecimento. Os dois estão empenhados em localizar os restos mortais de Virgílio e dos demais desaparecidos políticos vítimas da ditadura militar. As buscas, que começaram no final de novembro de 2010 com a abertura da vala clandestina de Vila Formosa, serão retomadas a partir de 14 de fevereiro deste ano com a intensificação das escavações na quadra 47 onde foram enterrados Virgílio e Sérgio Correa. A grande dificuldade, no entanto, será conseguir localizar as sepulturas onde os ativistas foram enterrados devido às inúmeras modificações pelas quais essa quadra passou. “O cemitério sofreu profundas alterações, foi desconfigurado e não há nenhum registro disso. O descaso é impressionante”, destaca Marlon. “Esconder ossos humanos é um ato muito sério”, adverte Eugênia referindo-se à ocultação praticada pela ditadura. Para a procuradora, o resgate da história, que permanece tema tabu para as autoridades militares, é fundamental para passar o país a limpo. O passado sombrio, no entanto, começa a receber fachos de luz. A localização da quadra 47 constitui um enorme passo para a montagem desse quebra-cabeça que se arrasta há mais de quatro décadas. “Virgilio foi morto sob tortura e enterrado clandestinamente, abrir essa vala significa poder localizar o corpo de um ativista que está no quadro dos combatentes, dos resistentes, da nossa pátria. E isso é extremamente importante”, frisa a coordenadora de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria Auxiliadora Arantes, a Dodora.

Cruzamento de dados A identificação da quadra onde Virgílio foi enterrado é resultado de um exaustivo trabalho. A procuradora Eugênia conta que foi várias vezes ao cemitério de Vila Formosa para consultar os livros

de registro dos sepultamentos. A certeza de que se tratava efetivamente da quadra onde havia ocorrido o sepultamento foi surgindo com o cruzamento desses dados com conversas mantidas com funcionários que trabalharam no local no período em que Virgílio foi assassinado. A peça que elucidou as suspeitas e esclareceu o enigma veio com o cruzamento dessas informações com a ficha do exame necroscópico do comandante Jonas, que seus companheiros encontraram no Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo. Os indícios transformaram-se em provas e chegou-se à conclusão que de fato Virgílio havia sido enterrado na quadra 50, atual quadra 47 do cemitério de Vila Formosa, localizado na periferia da capital paulista. Resta saber agora, se os restos mortais permanecem enterrados no mesmo local ou se foram exumados e jogados na vala aberta em novembro do ano passado. Os familiares de Virgílio consideram que ele permanece na sepultura. “Acredito que ele está na quadra”, ressalta a filha, Isabel Gomes da Silva. Ela tinha quatro meses de idade quando o pai foi assassinado. Apesar de bebê, foi presa com a mãe, Ilda da Silva, e com os irmãos Virgílio e Vladimir. O único filho de Virgílio que conseguiu escapar da insanidade verde-oliva foi Gregório. A criança não estava com a mãe no momento em que os militares chegaram. “Fui presa um dia após a morte dele e fiquei nove meses detida, quatro, sem poder ver meus filhos. Me levaram para a Oban, onde fui muito torturada. Os meninos foram levados para o Dops e depois para o juizado de menores”, relembra Ilda. Quando saiu da prisão, os militares continuaram a perseguição. Seus passos foram seguidos milimetricamente e todas as portas de trabalho se fecharam. Não restou alternativa a Ilda e aos filhos do casal, senão o exílio. Primeiro foram para o Chile, posteriormente para Cuba, onde viveram em Havana por mais de duas décadas.

Confiança Mãe e filha têm consciência das dificuldades que ainda terão de enfrentar para conseguir localizar o corpo do ente querido, mas estão confiantes. “Sabemos que não será fácil, mas temos a esperança de encontrá-lo” afirma Ilda, que permaneceu casada com Jonas por 10 anos. “Estamos confiantes, mas cientes de que a identificação de meu pai será fruto de um trabalho minucioso”, conclui Isabel. O fato de boa parte dos ossos encontrados pelos peritos da Polícia Federal, em novembro do ano passado, estar soltos na vala comum torna sua identificação bem mais difícil. Ao abrir o fosso, os policiais se depararam com uma camada com espessura aproximada a meio metro de ossos espalhados no fundo. Sobre estes, encontrava-se em torno de um metro e meio de ossadas compartimentadas dentro de sacos plásticos. E acima destas duas camadas, uma terceira com meio metro de terra, coberta por uma laje de concreto. Noventa e seis sacos com ossadas foram encaminhados para o Instituto Médico Legal de São Paulo. Mas apenas uma pequena amostra dos os-

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sos que estavam soltos no fundo da vala foi retirada. “Em função do peso depositado sobre eles e da umidade, viraram quase uma massa de ossos”, frisa Marlon. Não há prazo para os peritos da Polícia Federal e legistas do Instituto Medico Legal concluírem os trabalhos. Em fevereiro, a PF, que coordena as investigações, designará uma equipe fixa para atuar na análise desse material. Os estudos antropológicos ocorrem em São Paulo e Brasília, já os exames de DNA serão realizados no Distrito Federal. “Vão ocorrer no nosso laboratório de genética no Instituto Nacional de Criminalística”, revela Jefferson Evangelista Correa, chefe da área de medicina forense da Polícia Federal.

Reparação Essa é a segunda vez que é descoberta uma vala clandestina, a primeira ocorreu no início dos anos 90, no cemitério de Perus, também localizado na periferia paulistana. Passadas mais de duas décadas, apenas três ativistas foram identificados: Denis Casemiro, da VPR, Flávio de Carvalho Molina, do Movimento de Libertação Popular (Molipo) e Frederico Eduardo Mayr, também do Molipo. As demais ossadas continuam guardadas em gavetas de cimento no cemitério do Araçá, região nobre da cidade, aguardando por identificação. Esses ossos permaneceram muito tempo na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas os trabalhos de investigação foram paralisados. “Foi uma omissão muito grande, um descaso. Houve a negligência de médicos da Unicamp, entre eles Badan Palhares, que ficaram responsáveis por essa identificação, mas não a fizeram”, critica a procuradora Eugenia. Ela revela que essa identificação está sendo retomada e que o MPF move ação contra a Unicamp, Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Se responsabilizaram perante os familiares, mas acabaram fazendo um trabalho muito aquém do necessário.” A ação pede indenização por dano moral coletivo e obriga a União a buscar a identificação dos desaparecidos. O desrespeito dos profissionais dessas universidades envolvidos na identificação das ossadas é assustador. “Um aluno ia fazer estágio na Inglaterra e levava amostras dos desaparecidos na maleta. Sem laudo, sem registro. Falava-se que estavam fazendo exames na Inglaterra, mas isso nem documentado estava. Sem o menor respeito pelos familiares. Isso aconteceu na USP, por meio do Instituto Oscar Freire. Na UFMG, decidiram que não era possível fazer exames nas ossadas e não devolveram o material”, exemplifica a procuradora. Para o vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, a não identificação, ainda hoje, dos ativistas assassinados pelos militares persiste porque a justiça de transição não se exerceu. “O rito de passagem para a democracia não se concretizou.” Lúcia Rodrigues é jornalista luciarodrigues@carosamigos.com.br janeiro 2011

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Emir Sader

Fidel Castro

O império no banco dos réus Julian Assange, um homem que há vários meses muito poucas pessoas no mundo conheciam, está demonstrando que o mais poderoso império que jamais existiu na história podia ser desafiado. O audaz desafio não provinha de uma superpotência rival; de um Estado com mais de cem armas nucleares; de um país com centenas de milhões de habitantes; de um grupo de nações com enormes recursos naturais, dos quais os Estados Unidos não podiam prescindir; ou de uma doutrina revolucionária capaz de estremecer até seus alicerces o império que se baseia no saque e na exploração do mundo. Era só uma pessoa que apenas se ouvira mencionar nos meios de imprensa. Embora já seja famoso, pouco se conhece dele, exceto a muito divulgada imputação de ter praticado relações amorosas com duas damas, sem a devida precaução nos tempos da Aids. Ainda não se escreveu um livro sobre sua origem, sua educação ou suas ideias filosóficas e políticas. Não se conhecem, inclusive, as motivações que o levaram ao contundente golpe que assestou ao império. Somente se sabe que moralmente o colocou de joelhos. O valente e brilhante cineasta norte-americano Michael Moore declarou que ofereceu a WikiLeaks seu site na internet, seus servidores, seus nomes de domínio e tudo o que possa proporcionar-lhe para “…’manter WikiLeaks vivo e próspero enquanto continua trabalhando para expor crimes que foram tramados em segredo e cometidos em nosso nome e com nossos dólares destinados aos impostos’…” Assange, afirmou Moore, “está sofrendo ‘um ataque tão desapiedado’ [...] ‘porque envergonhou os que ocultaram a verdade’.” “…’independentemente de que Assange seja culpado ou inocente [...] tem direito a que se pague sua fiança e a se defender’. [...] por isso, ‘aderi aos cineastas Ken Loach e John Pilger e à escritora Jemima Jan e ofereci dinheiro para a fiança’.” A contribuição de Moore foi de US$20 mil. O ataque do governo norte-americano contra WikiLeaks foi tão brutal que, segundo pesquisas do ABC News/Washington Post, dois em cada três estadunidenses querem levar Assange aos tribunais dos Estados Unidos por ter divulgado os documentos. Ninguém se atreveu, contudo, a impugnar as verdades que contêm. Não se conhecem detalhes do plano elaborado pelos estrategistas de WikiLeaks. Sabe-se que Assange distribuiu um volume importante de comunicações a cinco grandes transnacionais da informação, que neste momento possuem o monopólio de muitas notícias, algumas delas tão extremamente mercenárias, reacionárias e pró-fascistas como a espanhola Prisa e a alemã Der Spiegel, que as estão utilizando para atacar os países mais revolucionários. A opinião pública mundial acompanhará de perto tudo o que aconteça acerca de WikiLeaks. Sobre o governo direitista sueco e a máfia belicista da OTAN, que tanto gostam de invocar a liberdade de imprensa e os direitos humanos, cairá a responsabilidade de que se possa conhecer ou não a verdade sobre a cínica política dos Estados Unidos e seus aliados. As ideias podem ser mais poderosas que as armas nucleares. Fidel Castro Ruz é ex-presidente de Cuba.

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A POLARIZAÇÃO do campo político Consolidado o modelo econômico e social - com as adequações que já começaram a ser implementadas -, uma necessidade se torna central: a da construção de uma nova forma de sociabilidade, distinta daquela centrada fundamentalmente no mercado, no consumismo, na concepção de que tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra, que faz do shopping center o modelo do tipo de sociedade que se queria. Gerações já foram educadas na visão de que o objetivo da vida é a ascensão individual, através da competição selvagem pelo mercado, numa luta de todos contra todos. Uma visão que fragmenta a sociedade, gera discriminações, preconceitos, exclusões, marginalizações intolerâncias, em detrimento de todos os valores portadores de sociabilidades alternativas - como os de comunidade, cidadania, Nação, Estado, sociabilidade, solidariedade, diversidade cultural. A cultura é o que dá os sentidos de tudo que fazemos, de tudo o que somos, de todos os Brasis contidos dentro do Brasil, de todos os corpos e almas de todos os brasileiros. Precisamos de um mundo cultural em que caibam todos os mundos, em que se alimente o experimentalismo e a criatividade, nas suas formas mais ousadas, ao mesmo tempo que o apoio e o resgate das formas mais tradicionais de expressões culturais. Precisamos fomentar as mais diversificadas formas de cultura, que expressem as infinitas formas de criatividade do nosso povo e das nossas vanguardas culturais, para a criação de novas formas de sociabilidade, não geradas no confronto e na exclusão, mas na agregação, na solidariedade, na fraternidade, no humanismo, no respeito aos valores alheios. O que o Brasil faz de melhor, de mais rico, de mais diverso, de mais avançado, de mais criativo, de mais expressivo de todas as suas almas, e’ a cultura, nas suas mais distintas expressões. Um embate central dos próximos anos se dará no plano cultural, no plano dos valores, da disputa de distintas formas de sociabilidade - daquela centrada no mercado, no consumo e no consumidor, na competição excludente, na esfera mercantil e daquela outra, centrada nos direitos para todos, na cidadania, na esfera pública. sugestões de leitura O VALOR DO SOCIALISMO

Adolfo Sánchez Vazquez Editora Expressão Popular

LUTA DE CLASSES NA ALEMANHA

Karl Marx e Friedrich Engels Boitempo Editorial

INTRODUÇÃO À TEoRIA E À PRÁTICA DO DIREITO BRASILEIRO:

A EXPERIÊNCIA DA RENAP Alberto Kopittke Editora Expressão Popular

Emir Sader é cientista político.

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Gershon Knispel

Prêmio Nobel da Paz? Ou a perda de uma oportunidade

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ão era a primeira vez que o Prêmio Nobel da Paz foi entregue à pessoa errada. No caso do Prêmio de Literatura, por exemplo, nenhum escritor recebe o prêmio pelo primeiro livro que escreveu, e ainda assim às vezes os jurados erravam: foram premiados escritores que acabaram por ser esquecidos. E há escritores que nunca foram premiados, como Bertoltd Brecht, cujas peças, 56 anos após seu falecimento, continuam a ser encenadas em teatros do mundo inteiro. Ele se tornou imortal. Mas, por razões políticas, foi ignorado pelo júri do Prêmio Nobel, morrendo sem ser premiado. Sartre rejeitou o Prêmio fornecido a ele. Na trajetória dos Prêmios Nobel da Paz, os mais respeitados de todos os Nobéis, as decisões do júri parecem em vários casos exageradas e prematuras. No caso de Gorbatchev, ele se mostrou incapaz de dominar seu país, e a Perestroika virou um fracasso total, que levou a União Soviética ao caos (será que foi esse o motivo da premiação?) Foram três pessoas que receberam o Prêmio Nobel de 1995, pela sua contribuição à paz no Oriente Médio: os israelenses Itzhak Rabin e Shimon Perez e o líder da OLP, Yassir Arafat. O primeiro foi assassinado pelos extremistas fanáticos israelenses, por sua corajosa tentativa de selar a paz com os palestinos. Perez, que odiava Rabin, tomou posse como primeiro-ministro e ordenou o bombardeio contra o vilarejo de refugiados palestinos, Kafer Kana, do que resultaram mais de cem mortos civis e centenas de feridos, e cancelou as conversações de paz com os palestinos. Hoje, como presidente de Israel, encabeça o mais radical governo israelense, recusando qualquer negociação com os palestinos, espalhando mais colônias judaicas pelos territórios palestinos ocupados. Contribuiu indiretamente para liquidar o parceiro de Itzhak Rabin na luta pela paz, Yassir Arafat, ao mandar cercar o quartel-general em Ramallah, deixando Arafat isolado. O líder palestino morreu misteriosamente sem ver mais a luz do dia. Mas a recente premiação de Barack Obama foi a mais chocante. Sem cumprir ainda o primeiro

ano no poder, ele ganhou o Nobel da Paz. Já de início havia dúvidas sobre se não era prematura a sua premiação. Mas, conforme as últimas revelações do WikiLeaks, essa premiação virou uma piada grosseira. Bush não podia ser mais feliz, tendo ficado bem atrás, em mentiras e intrigas, do próprio sucessor, que está pondo na sombra os seus crimes. Obama ganhou as eleições com o voto de protesto da maioria dos eleitores estadunidenses, que acreditava que “só ele era capaz”, com a maioria dos votos, “de virar Washington de cabeça para baixo”. Do mesmo modo que foram grandes as expectativas, as decepções e as frustrações foram ainda maiores. Obama continuou obsessivamente a sangrenta invasão e a brutal ocupação do Iraque e Afeganistão e até passando ao Paquistão e ameaçando o Irã. Jogou mais milhares e milhares de tropas dos fuzileiros navais, colocando como piada a sua promessa de “devolver, dentro de alguns meses, o soldado para casa”. Repetindo agora mesmo, nesta véspera de Natal, o famoso roteiro de Bush, ao fazer uma visita clandestina de apoio moral às suas tropas no Afeganistão, ele elogiou “os bravos patriotas que se sacrificam pelos valores democráticos e pela defesa da paz”. Se isso não bastasse, chegam a cada dia novas revelações sobre a rede de intrigas que vão deixar Shakespeare pálido, tirando a máscara do jovem e charmoso presidente que prometeu “acabar com as relações duvidosas costuradas nos bastidores de Washington e trocar os combates sangrentos por diálogos abertos e transparentes, assim ganhando a confiança mútua que, só ela, leva à desejada paz”. Não resta dúvida sobre por que o jovem presidente não cumpria a tarefa prometida no Cairo, semanas depois da posse, de que iria “estabelecer um Estado palestino nos próximos seis meses”. Conforme os documentos do WikiLeaks, a preferência foi dada à substituição das promessas generosas por um acordo secreto com as monarquias árabes e Israel, para manter a existência dessas ditaduras árabes que estão cada vez mais ameaçadas de ser derrotadas pelas forças populares.

Nada mudou em Washington, a não ser para pior. No dia 30 de novembro foi publicado na Folha de S. Paulo: “Telegramas confidenciais de diplomatas dos EUA divulgados pela ONG WikiLeaks revelam que o país vê a política do Ministério das Relações Exteriores (do Brasil) como ‘antiamericana’, informa Fernando Rodrigues. Os mesmos documentos mostram que os americanos enxergam o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que será mantido no governo Dilma Rousseff, como aliado e ‘líder confiável’, contrapondo-o à ação do Itamaraty”. Nesse caso, a chantagem já triunfou? Talvez tenhamos aqui uma explicação de por que Nelson Jobim está mantido no cargo e Celso Amorim está fora. Quando Washington se vê ameaçada, acaba a liberdade de imprensa, que os Estados Unidos estão pregando cada vez mais. Ainda a Folha de 4 de dezembro informa: “Países e empresas fazem cerco a WikiLeaks – Firma americana suspende endereço do site, que fica fora do ar por seis horas; França ameaça com expulsão”. A 7 de dezembro, Assange foi preso. Que coincidência! Justo no dia em que começou o vazamento de 250 mil documentos, havia começado a caça a Assange. Com bom motivo. Os documentos iluminaram intrigas envolvendo todos os países relacionados com os Estados Unidos. Até a Suécia, onde o australiano Julian Assange se radicou, e não é para se estranhar: a prestigiosa Fundação Nobel, orgulho dos suecos, se colocou na defensiva: como explicar que o seu premiado Obama esteja envolvido num escândalo de grandes proporções? O principal “crime” de Assange foi cumprir a promessa de Obama de tornar Washington transparente. Seria justo que a Fundação Nobel entregasse o Nobel da Paz para o nosso prisioneiro, vítima da luta para liberdade da imprensa, assim melhorando a reputação que a Suécia perdeu. Gershon Knispel é artista plástico. janeiro 2011

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Ilustração: Rafael Calixto

As revelações do site WikiLeaks podem criar situação constrangedora para a premiação da academia sueca a Barack Obama.

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Otaviano Helene

O caso do Enem (Ou ocaso do Enem?) Diferentemente do que ocorreu em outros países, a introdução de um exame de final de ensino médio não surge como solução.

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Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) surgiu no final da década de 1990, com finalidades e características bastante parecidas com as dos exames equivalentes existentes em diversos países. Entretanto, diferentemente do que ocorreu em outros países, a introdução de um exame de final de ensino médio não surgiu como uma solução para eventuais problemas educacionais. Entre os argumentos que justificavam a introdução do Enem estava a expectativa de que ele, ao avaliar as “habilidades e competências”, daria maiores chances para os estudantes desfavorecidos na disputa por vagas no ensino superior. Entretanto, essa expectativa não corresponde à realidade. Qualquer que seja o tipo de exame, desde que bem feito, leva a resultados basicamente equivalentes. Se a ordem dos classificados por um procedimento de avaliação não é exatamente igual à de outro, isso é irrelevante para qualquer finalidade prática. E no topo da lista estarão os estudantes que frequentaram boas escolas e provenientes das camadas mais favorecidas da população. Para esse grave problema da segregação social e econômica do nosso sistema escolar, o Enem não é uma solução. Inicialmente, o resultado do Enem foi usado como um processo seletivo apenas por instituições privadas pouco disputadas. Adotando o Enem, essas instituições têm vários ganhos: recebem uma espécie de aval das instituições públicas, no caso o próprio MEC, que faz o exame; passam a atrair estudantes de regiões mais distantes; e economizam dinheiro, pois não precisam fazer seus exames de seleção.

Sistema unificado A partir de 2009, o Enem passou a ser adotado por diversas instituições federais como um sistema de seleção unificado nacionalmente, com a justificativa (verbete Enem da Wikipedia, consultada em 16/12/2010) “que o vestibular tradicional desfavorece candidatos que não podem se locomover pelo território. Assim, um jovem que queira prestar medicina e tenha problemas financeiros, dificilmente poderá participar de processos seletivos de diferentes faculdades – e terá suas chances de aprovação diminuídas”. Ora, se um estudante não tem condições financeiras de se locomover pelo território, também não terá

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condições de se manter fora de casa. Além disso, a distância entre o local de moradia e o local de estudo é um fator associado à evasão escolar. Ainda pior, como a procura qualificada pelos cursos mais concorridos tem como origem as regiões mais ricas do país, esse fato prejudicaria exatamente as regiões mais pobres. Outro aspecto que ilustra que o pretenso mérito do Enem pode ser um demérito diz respeito à promoção do desenvolvimento regional feita pelas instituições de ensino superior que ocorre basicamente pela formação de quadros profissionais. Ao “importar” estudantes de outras regiões do país e que, depois de formados, tenderiam a voltar para suas cidades e estados de origem, uma instituição teria o seu papel de promoção do desenvolvimento local muito reduzida. Outro argumento a favor do uso do Enem afirma que ele se opõe ao vestibular tradicional em vários sentidos. Um deles é quanto à tensão típica dos estudantes. Ora, o Enem é um vestibular e como tal provocará todas as tensões que os outros vestibulares também provocam. É importante ainda observar que há um grande grau de desconfiança em relação ao Enem por parte das instituições com cursos mais concorridos. Essa desconfiança fica patente quando vemos que nesses cursos a nota do Enem ou entra na composição final com um peso muito pequeno em relação à nota do vestibular tradicional, ou é usado como uma primeira fase. Neste caso, o Enem não só não resolve problema algum, como cria um: embora a ordem de classificação seja a mesma caso a instituição adote ou não o Enem, os estudantes são obrigados a fazê lo, pois, do contrário, poderão ser prejudicados na média final ou mesmo excluídos se o Enem for usado como uma pré-seleção.

Enem e ensino médio Outro argumento a favor do Enem é o fato que ele seria uma referência unitária para as escolas de ensino médio de todo o país. Primeiro, há a crítica daqueles que discordam que impor um padrão unitário de educação seja adequado ao país. Questões regionais são relevantes quando se trata de vários aspectos do ensino, como nas disciplinas de História e Geografia ou no uso da língua. Cabe a pergunta: quem disse que unificar é bom? Além disso,

as poucas escolas que dispõem de recursos suficientes, bons professores e infraestrutura adequada, não precisam dessa indução, pois sabem o que devem fazer e têm condições para tal. Quanto à enorme maioria das escolas públicas, não é a falta de uma referência clara que as impede de serem melhores, mas, sim, a falta de recursos e as péssimas condições de estudo e trabalho que oferecem.

Prouni e avaliações Há duas confusões relativas ao Enem. Uma delas é quanto à relação entre esse exame e o sistema de bolsas Prouni. Como a atribuição de bolsas é feita com base no resultado do Enem, muitas pessoas pensam que o Prouni só existe por causa do Enem. Não é assim. As bolsas do sistema Prouni são concedidas por instituições privadas que se beneficiam de isenções de taxas e impostos. Esse sistema pode existir independentemente do Enem e a seleção de beneficiários poderia ser feita de formas mais adequadas. Como o sistema Prouni obriga os estudantes a fazerem o Enem, um empresta falsa legitimidade ao outro e, ambos, confundem a opinião pública e os estudantes. Outra confusão é quanto à função avaliadora do Enem. Ora, o Enem avalia mal e é desnecessário. O “mal” se refere ao fato que é opcional e pode ser repetido várias vezes, não tendo, assim, as características necessárias de um bom instrumento de avaliação. E é desnecessário, pois há outros sistemas de avaliação, mais rigorosos e precisos.

Prioridades Colas, provas erradas, vazamento de temas, provas feitas por “pilotos”, roubo da folha de questões etc colocam uma questão adicional: é possível fazer uma prova confiável para mais do que três milhões de estudantes espalhados por mais do que 100 mil salas? Pela experiência, parece que não. Há ainda muitos aspectos que poderiam ser analisados. Entretanto, os citados parecem suficientes para que possamos tomar algumas decisões quanto ao Enem. Afinal, que problemas ele resolve? Que problemas ele cria? Vale a pena envolver milhões de estudantes para resolver pouquíssimo problemas e criar muitos outros? Certamente, não. O sistema educacional brasileiro tem problemas muito claros e bem conhecidos, como péssimas condições de trabalho dos professores, falta de atrativo para o exercício do magistério, falta de equipamentos e materiais adequados nas escolas etc. O Enem tem sido usado como a roupa do rei nu, que continua nu, e provoca discussões que acabam por colocar de lado o ataque às verdadeiras questões. Enquanto isso, o nosso sistema educacional continua ruim e, em não sendo verdadeiramente melhorado, piorando. Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e mantém o blog http://blogolitica.blogspot.com/

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IDEIAS DE BOTEQUIM Renato Pompeu

A CORREÇÃO DE UM ERRO, mais algumas novidades. Os atentos leitores Geraldo Magela Maia, professor em Belo Horizonte, e David Moreno Montenegro chamam a atenção para a informação equivocada, publicada nesta coluna em novembro último, de que o crítico literário e cultural inglês Terry Eagleton era “recém-falecido”. Eagleton está vivo e atuante e agradeço a Maia e Montenegro a correção do erro. Tanto que a Civilização Brasileira está lançando mais uma obra de Eagleton, O problema dos desconhecidos – Um estudo da ética, que gerou o seguinte comentário do mais famoso ensaísta marxista da atualidade, o esloveno Slavoj Zizek: “Claro e espirituoso, este livro consegue o impensável: uma ponte entre a alta reflexão e os populares manuais de filosofia”. Que a história das ideias é uma temática ao mesmo tempo importante e prazerosa está mais uma vez demonstrado pelo volume O passado, a memória, o esquecimento – Seis ensaios da história das ideias, editado pela Unesp, em que o pesquisador italiano Paolo Rossi analisa o que lembramos e o que esquecemos a partir de obras como as do escritor argentino Jorge Luis Borges e do neuropsicólogo soviético Aleksandr Luria. Um dos lançamentos interessantes do mês é Canção popular no Brasil, da Civilização Brasileira, em que a pesquisadora Santuza Cambraia Naves, da PUC do Rio, analisa a “canção crítica”, surgida segundo ela a partir dos anos 1950 e que teve como maiores nomes, segundo o apresentador Evando Nascimento, os cantores e compositores Caetano Velloso e Chico Buarque. Notemos de passagem que, antes disso, havia muitas canções críticas, como “O pedreiro Waldemar, que faz a casa e não pode entrar” Ainda da Civilização Brasileira, outro pesquisador, Frederico Coelho, igualmente da PUC-Rio, lançou Eu brasileiro confesso minha culpa e meu pecado – Cultura marginal no Brasil das décadas de 1950 e 1960, que se centra principalmente nas obras do artista plástico Hélio Oiticica e do poeta e letrista Torquato Neto. Os riscos que os recursos naturais e o meio ambiente da América Latina correm se continuar a sua exploração sem peias está retratado na coletânea de artigos de especialistas “Capitalismo globalizado e recursos naturais”, publicado pela Lamparina, em que quinze autores, entre eles Carlos Brandão, Henri Acselrad e Luis Fernando Novoa Garzon, pretendem “despertar uma reflexão sobre os desafios e possibilidades que se abrem a um país continental como o Brasil, rico em diversidade social e ávido de inovação política para fazer de seus vastos recursos territoriais o meio de construção de uma sociedade capaz de fazer valer sua multiplicidade cultural – inclusive no que concerne à cultura material –, liberando-se, por essa via, dos inaceitáveis níveis de desigualdade social que nele perduram”. A história da Guerra Civil Espanhola dos anos 1930 foi muito ex-

plorada por historiadores e cientistas políticos, mas aqui está um relato mais pessoal: o bem-sucedido publicitário brasileiro Oscar Boronat conta no volume Quatro Caminhos, edição do autor, a saga de familiares seus que combateram na Espanha, inclusive seus pais. É mais uma contribuição para esclarecer a veracidade dos fatos, já que existem a versão stalinista, a versão trotskista, a versão anarquista, a versão simplesmente republicana e a versão franquista. No dia-a-dia das pessoas mais comuns, a versão se torna ao mesmo tempo mais detalhada e mais complexa. Militante agora do PSOL do Ceará, Gilvan Rocha relata a sua vida em Meio século de caminhada socialista, em que passou, por exemplo, pelas Ligas Camponesas e pelo exílio, mas nunca arrefeceu em seu entusiasmo pela luta por uma sociedade melhor. O livro é de 2008, mas só ultimamente tem chegado ao Sudeste. Pode ser obtido em gilvanrocha50@yahoo.com.br Dentro da Coleção Revoluções do Século 20, dirigida pela grande historiadora Emília Viotti da Costa, a Unesp lançou A Revolução Argelina, de Mustafá Yazbek e A Revolução Mexicana, de Carlos Alberto Sampaio Barbosa. Embora ocorridas, a segunda há cem anos e a primeira há meio século, ela ainda são fontes de inspiração, mesmo porque muitas de suas promessas não foram cumpridas. Finalmente, a Hedra lançou uma nova edição do Manifesto Comunista de Marx e Engels, numa tradução bem mais precisa, por Marcos Mazzari, do que as usuais. Uma oportunidade para distinguir o que há de datado e o que há de permanente nesse texto de 1848, considerado décadas depois por Marx como de interesse “eminentemente histórico”. Da Hedra é também a rara edição em português do livro A fábrica de robôs, do tcheco Karel Tchápek, que cunhou a palavra “robô” nos anos 1920, em tradução de Vera Machac. “Robot”, em tcheco, significa “trabalhador”.

Renato Pompeu é jornalista e escritor. www.renatopompeu.blogspot.com rrpompeu@uol.com.br> janeiro 2011

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