Leitura de Hegel

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A Crítica Dualista Na Leitura de Hegel 2006 © By J.Lumier

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A CRÍTICA DUALISTA NA

LEITURA DE HEGEL Jacob (J.) Lumier

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A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC CARACTERÍSTICAS DESTE PRODUTO CULTURAL COMO LITERATURA DIGITAL: Arquivo Word/ Document Estilo: Normal, verdana11pts, preto, justificado; entre linhas: simples; recuo à esquerda 18 pts. Margens: esquerda 85,05 pts; direita 73,3 pts. Microsoft Théme: Ice 011 Melhor visualizado na resolução máxima do computador (1024 por 768 pixels) e no zoom de 130%. Número de folhas formatadas:88; Número de linhas por página:50/52; Número total de linhas:4.032; Número máximo de palavras por página completa: 586; Número total de palavras: 36.451 E-book universitário Produção do Website Leituras do Século XX - PLSV: Literatura Digital http://www.leiturasjlumierautor.pro.br Direitos Reservados 2006©Jacob (J.) Lumier Classificação do Ensaio Área de Comunicação Social/Série Sociologia da Literatura e da Filosofia/ Disciplinas de interesse: 1º) antropologia filosófica 2º) história da filosofia moderna e contemporânea 3º) filosofia religiosa.

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DEDICATÓRIA

Dedicado a Maria Clara “Pequetute”, Balthazar, Maria Olinda, Montse, Fernanda, Roser e Thais. Pessoas queridas que reconhecem a perenidade das Letras e sempre estão ao lado e a favor deste autor. Abril 2006 Jacob Lumier

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4 A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè.doc Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC APRESENTAÇÃO Esta obra visa antes de tudo ser prestante aos “Estudos Hegelianos” e orientar a leitura de “A Fenomenologia do Espírito”, ainda que nos mostre um estudo sobre a noção histórica do mito. Mais precisamente, nos mostra como a antropologia filosófica desemboca na filosofia estética. Sendo um autor sociólogo, não foi por acaso que me apliquei na reflexão sobre o dualismo para compor este ensaio sobre a leitura de Hegel baseado, sobretudo nos ensinamentos de Alexandre KOJÉVÈ, embora com aproveitamento dos esclarecimentos de Ernst BLOCH e de Ernst CASSIRER. Sabe-se que o dualismo no pensamento histórico despertou o interesse de grandes sociólogos como Max WEBER, cujos estudos sobre a teodicéia repercutem a influência do hegelianismo. Podemos confirmar isto se, como veremos, tivermos em conta o seguinte: primeiro, que, por um lado, a compreensão do elemento simbólico do mito já está no Prefácio da “Fenomenologia do Espírito” numa formulação definindo a conexão entre a ciência e a consciência sensível, em que Hegel estabelece a problemática geral estrutural aplicada à conexão do conhecimento e da consciência mítica. Segundo: por outro lado, será o problema crítico cultural do espiritualismo ou da teodicéia, será a questão sobre a transposição do conservadorismo hegeliano no século XX levando à crença de que uma ordem nova pode surgir como criação ex-nihilo, que se repercutirá na sociologia. A noção histórica do mito liga-se em Hegel à figura da razão como fluente substância universal partilhada ao mesmo tempo em muitos seres inteiramente independentes, conscientes dentro de si próprios de que são estes seres independentes e individuais, através do fato de cederem e sacrificarem sua individualidade particular. Sem dúvida a afirmação de um mente perfeita, absoluta, identificada ao grande homem histórico e sua vontade universal será uma linha hegeliana desdobrada daquela figura de razão. Tal afirmação, implicando sustentar contra a liberdade intelectual de Spinoza a impossibilidade de descobrir a substância ética numa lei tida por meramente formal, encontra uma explicação se tivermos em conta certas orientações da sociologia. De fato, tivera Max WEBER observado que o impacto da cultura afirmando os juízos de valor veste uma nova roupagem à teodicéia, cujo problema central deixa de ser o da existência do sofrimento e do mal para se concentrar no da imperfeição do mundo condenado ao pecado. Tivera ocorrido uma reação, um verdadeiro “processo moral” contra a cultura (incluindo nesta a história legislativa) difundida a partir do século XVIII, com os valores sendo alvos de acusação. A teodicéia aparece então para Max WEBER como a questão essencial das religiões monoteístas, estando na base das escatologias messiânicas, das representações relativas às recompensas e aos castigos na outra vida, sobretudo na base das teorias dualistas, em que se confrontam “bem e mal”, até o triunfo definitivo do bem em um tempo indeterminado. Será no marco desse dualismo que a ligação entre a teodiProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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céia e a crença metafísica na mudança histórica como criação ex-nihilo, acima referida, é estudada por Max WEBER. E isto lhe aparecia desse modo em razão das dificuldades crescentes colocadas para a “teodicéia do sofrimento”. De fato, a sociologia observa como demasiado freqüente “o sofrimento individualmente imerecido”, pois, nas representações coletivas pesquisadas à época, não eram os homens “bons”, mas os “maus” que venciam - Max WEBER sublinha que isso acontecia mesmo quando a vitória era medida pelos padrões da camada dominante e não pela “moral dos escravos” (∗). A estrutura mental da teodicéia aparece a Max WEBER como o conjunto das respostas “racionalmente satisfatórias” para explicar a “incongruência entre o destino e o mérito”, de tal sorte que teríamos aí a configuração de uma “necessidade racional”; uma “exigência inerradicável” levando à “concepção metafísica de Deus e do Mundo” configurada na afirmação da crença na mudança histórica como criação ex-nihilo. Essa necessidade racional levando à concepção metafísica do mundo é o mito, expressa a noção histórica do mito detectada em Max WEBER, que deve ser aplicada como quadro de referência para compreender a Hegel desde o ponto de vista sociológico. Desta forma, desse ponto de vista da questão sobre a transposição do conservadorismo hegeliano no século XX, o dualismo em Hegel e sua teoria da mente absoluta ou perfeita como substância dos seres individuais idênticos, poderá ser lida como repercutindo o impasse da teodicéia na passagem dos séculos modernos. Em Junho de 2006 Jacob Lumier sociólogo Membro da ISOC

(∗) WRIGTH MILLS, C. e GERTH, Hans - Organizadores : « Max Weber : Ensaios de Sociologia », tradução Waltensir Dutra, revisão Fernando Henrique Cardoso, 2ªedição, Rio de Janeiro, Zahar, 1971, 530 pp.(1ªedição em Inglês : Oxford University Press, 1946), pp. 318 sq, pp.409 sq.

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6 INDICAÇÕES PARA FICHA CATALOGRÁFICA

Lumier, Jacob (J.) (1948-...) Internet, “A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: Uma reflexão a partir de A. Kojévè”. E-Book Universitário/Ensaio: 88 págs., Abril/2006; com bibliografia. Índices remissivo e analítico. Através de http://www.leiturasjlumierautor.pro.br ISBN 1.Comunicação Social - Análise e Interpretação; 2.Filosofia; 3.Sociologia. I.Título. II. Série

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“A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: Uma reflexão a partir de A. Kojévè.” Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier sociólogo a Autor publicado na O.E.I.( ) Membro da internet society - ISOC

Rio de Janeiro, Junho 2006. Obra originalmente recebida junto ao EDA/BN (∗)

(a ) Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura. (∗) Serviço de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional no Rio De Janeiro.

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Convenção As “Referências bibliográficas” foram mantidas ao modo tradicional: com entradas entre parêntesis após a citação no texto com asterístico ou letra (*) ou (a ) e inseridas como notas de rodapé no final da página, sem prejuízo da “Lista de Referências Bibliográficas” no final da obra.

As “Notas Complementares” estão igualmente agrupadas no final desta obra e obedecem aos números correspondentes colocados entre parêntesis em sobrescrito, com hyperlink, ao longo do texto.

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SUMÁRIO

A CRÍTICA DUALISTA NA LEITURA DE HEGEL: Uma reflexão a partir de A.Kojévè. Apresentação: - p. 4 Índice Analítico: - p.10 Prefácio: - p. 12 Primeira Parte: Sob a teoria da Gestalt: - p. 14 Segunda Parte: A Fenomenologia do Mito: - p. 52 Notas Complementares: - p. 65 Bibliografia: - p. 74 Cronologia: - p. 76 Sobre o Autor: - p. 78 Índice de Assuntos: - p. 79

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A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC ÍNDICE ANALÍTICO

1. A Problemática feuerbachiana lança uma luz produtiva sobre a leitura da “Fenomenologia do Espírito” notando a abertura da razão totalista no sentido humanizador. - p.14 2. A Crítica Dualista sugere que na “Fenomenologia do Espírito” há uma complementaridade e não há contradição entre os três Capítulos VI, VII e VIII, por necessidade mesma do tema, isto é, por exigência da exposição mesma ou da própria produção do conceito da ciência hegeliana, de tal sorte que esta última tem dois aspectos: o aspecto do espírito privado de forma concreta, ou noção abstrata do espírito, e o aspecto deste como se revelando ele mesmo a ele mesmo tal qual ele é, ou o conceito concreto do espírito. - p.22 3. Segundo a Crítica Dualista, a “idéia-dogma" hegeliana de que a evolução teológica desemboca em uma antropologia universalista ou atéia não invalida a teoria da Gestalt, como teoria de análise do saber religioso. Pelo contrário, é através do estudo dessa teoria na própria “Fenomenologia do Espírito” (para-além do antiteismo e apesar dele) que se torna possível reabrir o caminho para a oposição da filosofia e da teologia. – p.30 4. Segundo Alexandre Kojévè não se deve concluir da controvérsia “teístas/ateístas” que para Hegel há um Deus que se revela a ele mesmo pelas diferentes religiões e nas diferentes religiões que ele engendra nas consciências humanas no curso da História. Pelo contrário. Há que tomar as palavras “Religião” e “Realidade essencial absoluta” no sentido que lhes dá um “ateu” ⎯ ou que lhes deu Feuerbach ⎯ isto é, como Espírito humano que se revela a ele mesmo. p.38 5. Na Fenomenologia do Espírito, os temas religiosos se mostram revestidos pelo enfoque do Mito, da Antropologia inconsciente, simbólica, de que a evolução teológica seria o material. Em face deste enfoque do Mito, a questão a ser verificada e que está na base do vir a ser da Antropologia universalista é a da atitude existencial do indivíduo humano a respeito da Realidade essencial absoluta que ele considera como sendo outra coisa que não ele mesmo, ou seja, a atitude em que prevalece a consciência exterior. – p.41 ∗

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6. A Crítica está a nos dizer que, na fenomenologia de Hegel, a Religião nasce do dualismo, da separação entre o ideal e a realidade, entre a idéia que o homem se faz dele mesmo - seu Si (“Selbst”) – e sua vida consciente no mundo empírico — seu “Da-sein” (“ser-aí”, ser no mundo). Enquanto essa separação subsistir, haverá sempre tendência a projetar o ideal para fora do Mundo, quer dizer que haverá sempre Religião, teísmo, Teologia. p.48 7. Segundo a Crítica Dualista, a análise de Hegel nos coloca diante de diversas observações sobre as várias religiões “primitivas” ou que precederam logicamente (idealmente) ao cristianismo, notando o elemento do majestoso ou do sublime como caráter essencial que subsistirá em todas as religiões, ainda que esse elemento seja tornado inessencial. - p.53 8. Podemos então notar que a análise hegeliana distingue uma “teoria” da insuficiência do deleite artístico que pode provocar apenas a alegria, mas não a superação do desejo, pois a satisfação só acontece se o desejo se orienta não para uma coisa dada, mas para um outro desejo (“o vazio ávido”). É o desejo de tal reconhecimento, é a ação que decorre de tal desejo que cria, realiza e revela um “Eu humano — não biológico”. – p.55 9. Para A. KOJÉVÈ a leitura hegeliana insistiria que o teísmo propriamente dito, como conteúdo divino da consciência, houvera morrido com o mundo pagão — e a arte com ele — de tal sorte que o cristianismo de Hegel é o vir a ser do ateísmo (∗). – p.60

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(∗) Ver adiante as “Notas Complementares”, especialmente a Nota 03.

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12 A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo/Membro da ISOC PREFÁCIO Concluído no fundamental em 2001, este escrito pode ser lido como uma reflexão integrada no ‘novo’ impulso dos estudos sobre Hegel no século XX. Como se sabe, “La Phenomenologie de l’Esprit” veio a ser considerada a peça mestra e sempre fecunda de uma renovação estimulada a repensar Hegel em função de Kierkegaard, da qual os cursos de Alexandre KOJÉVÈ nos anos de 1930 são tidos como a principal referência, sendo exatamente essa renovação que busquei neste ensaio. Todavia, procurei não deixar de lado o interesse sociológico na análise kojévèana sob os três pontos seguintes: (a)-a acentuação do enfoque humanizador nos temas da filosofia do espírito ou da “cultura” (em detrimento do componente místico predominante da dialética de Hegel, deixando esta de lado); (b) - por via deste enfoque, a acentuação da noção de Gestalt, posta então no centro do método fenomenológico da “Fenomenologia do Espírito”; (c)-na exposição compreensiva do desenvolvimento deste método fenomenológico, a acentuação da noção de “Espírito Materializado”, estabelecendo uma ponte para a filosofia estética (a religião tratada em sentido muito amplo sendo identificada à Arte ou à História da Arte tirada do mundo helênico). Simultaneamente, o interesse filosófico predominante não foi desatendido e consiste, sobretudo em direcionar a Gestalt para a noção de Atitude Existencial, deixando para outro ensaio os aspectos da célebre crítica alcançando a “Lógica” de Hegel desenvolvida por Kierkegaard em “O Conceito de Angústia”. Desta forma, nas páginas subseqüentes, mais do que um exercício, se encontrará uma aplicação do princípio de circularidade da reflexão filosófica do Hegel fenomenólogo, tal como desenvolvido por Alexandre KOJÉVÈ, em vista de esclarecer sobre os quadros conceituais do pensamento religioso, como ‘quadros vagos’, levando à produção da teoria da “Gestalt”, do conceito de Mito e à exposição das suas configurações nos estritos limites da “Fenomenologia do Espírito”, deixando de lado os cursos e as obras posteriores de Hegel. Por fim, no interesse dos “Estudos Hegelianos”, meus comentários limitam-se aos aspectos dualistas da interpretação do ‘Capítulo VII’ de “La Phenomenologie de l’Esprit”, apreciando o tema da ‘antropologização’ e abordando o problema da supressão e da recuperação da oposição da filosofia e da teologia. Utilizei o texto de Jean HYPPOLITE para a versão francesa de “Die Phaenomenologie des Geistes”, referindo esta última na abreviação “Ph. des G.”, após citação de texto. Para não sobrecarregar minha exposição, algumas observações críticas de relevo estão relacionadas nas ‘Notas Complementares’, no final desta obra. ***

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PRIMEIRA PARTE

“SOB A TEORIA DA GESTALT”

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14 A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC PRIMEIRA PARTE “SOB A TEORIA DA GESTALT”

Primeira Seqüência A Problemática feuerbachiana lança uma luz produtiva sobre a leitura da “Fenomenologia do Espírito” notando a abertura da razão totalista no sentido humanizador.

Há quem diga que Hegel é sempre atual como se o pensamento dialético que dele verte tivesse ainda esse vigor pretendido. É o otimismo à maneira de Ernst BLOCH. Sem entrar no mérito - Hegel é um pensador místico racional do prolongamento do século XVIII, o Século das Luzes - a distância que nos separa dele é considerável. Muita coisa aconteceu em profundidade nesse ínterim com notados prejuízos para a crítica histórica, inclusive para essa dialética de tipo ascendente/descendente característica da vertente hegeliana tão questionada por Marx. Em alguns dos mais abalizados intérpretes dialéticos de Hegel vemos a preocupação de uns para justificálo e de outros nem tanto: é a dualidade da qual não escapa quem se atreve na leitura dessa obra. Sem dúvida a dualidade não terá sido a menor experiência dos discípulos agrupados na então influente “Escola Hegeliana”, tanto que a história gravou a divisão da mesma em duas alas —direita e esquerda— e o fez não para desmentir a circunstância ensejadora de que se podia - e à época se podia - interpretar a filosofia hegeliana da religião de maneiras muito diversas. Aliás, se a divisão teve origem nesse plano, ela se projetou mais tarde também no plano político, sendo hoje admitido, todavia a relativa incongruência entre os grupos, deixando a desejar a correspondência das posições respectivas num e noutro plano ⎯ com a ocorrência de uma posição de centro indicando isso. Para a ala esquerda - que congregava aqueles que ficariam conhecidos como os jovens hegelianos: D. F. Strauss, Bruno Bauer e notadamente Ludwig Feuerbach, o mais "secular" dentre eles— importava a crítica do dogmatismo religioso — em Hegel e a orientação para a antropologia, como explicação necessária da teologia, de tal sorte que, ao valorizarem o tema da mediação hegeliana entre o divino e o humano, não restava grande coisa para o divino. Por sua vez, os antigos hegelianos - o grupo de antigos amigos e discípulos mais próProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ximos do mestre desejavam preservar as idéias de Hegel da reconciliação de filosofia e religião e, acreditando que o sistema de Hegel era o definitivo, limitavam-se a escrever a história da filosofia. * Não que a ocorrência de diversas interpretações invalide a unidade da obra de Hegel. Como nota Ernst BLOCH (∗), a mesma fórmula o mesmo "conhece-te tu mesmo" é recorrente em cada um dos degraus da “Fenomenologia do Espírito”. Quer dizer, cada um dos múltiplos conjuntos estruturais dialéticos que para Hegel constitui a relação sujeito-objeto é pleno do princípio de que “o todo é por todos os lados” (omnia ubique) de tal sorte que o efeito de espelho daí decorrente faz com que cada parte não cesse de refletir o todo, garantindo assim a unidade da obra em sua diversidade dialética. A forma que o espírito tem do seu saber, sendo o movimento em espiral que se trata de pôr em relevo, é o trabalho que o espírito completa como história efetiva - o que é concebido e o que advém formam um em Hegel. Portanto, a leitura -a mirada- deve enfocar sempre o existente, que não cessa de se dividir, de se recompor e se dividir novamente. E o existente é o espírito em marcha, que se reconhece, vem a ser para si, se assemelha com si mesmo. Nada obstante a dualidade parece retornar. O enfoque pela história mostra um Hegel que não bem o mesmo encontrado no enfoque pelo saber. Quer dizer, temos o Hegel pensador da “Restauração” e o Hegel fenomenólogo. O primeiro tido como o do “realismo” é aquele que abandona o legado do iluminismo, a precedência do Entendimento (abstrato) sobre a Razão Todavia, mantendo sua recusa do “particularcontingente-fútil”, do que é exterior no "Eu” (Selbst), incluindo as superstições e as crenças não justificadas perante a razão, este Hegel não deixa de ser fiel ao prometeísmo do século XVIII ⎯ apesar de repelir o individualismo e a maneira não-histórica de pensar por arrazoamentos (01). Nada obstante, é este Hegel que concebe a razão como rica em conteúdo e concreta, não-exterior ao curso do mundo levando-a a uma identificação com o que a tradição comporta de real. Não se pense, porém, que este Hegel da Restauração, identificado à vitória das antigas forças históricas sobre os jacobinos de 1793, é um romântico e que ao identificar a razão ao real se torne um cultor sentimentalista de obscuridades e profundezas abissais. Ele se distingue dos reacionários de seu tempo por submeter a tradição ao teste do conceito antes de, no final das contas, justificá-la. Quer dizer, ele não se afasta da razão, ainda que seja aquela tortuosa, de molde totalista, pertinente ao Estado da Restauração, que não tem escrúpulo em inviabilizar a oposição. Para ele a filosofia supõe o estabelecimento de instituições livres e começa no mundo grego. O real existente, demonstrado como verdadeiro pela razão, será sua condição para fazer o jogo da reação antivoltaireana. Quanto ao Hegel fenomenólogo, o perfil se traça não a partir de uma recusa do particular como o que é exterior no Eu (Selbst), mas, antes, a partir da realidade sensível como mediação dialética, cuja fluidez leva a tornar a si mesmo o que ainda é exterior no homem e no objeto. Segundo Ernst BLOCH, é preciso ter em conta que o Eu (Selbst), o sujeito, (∗) Cf. BLOCH, Ernst: “Sujet-Objet: Éclaircissements sur Hegel”, Paris, Ed. Gallimard, 1977, 498 pp.; Versão francesa por Maurice de Gandillac a partir da edição alemã de Frankfurt, editorial Surhkamp, 1962; (1ª edição em alemão: 1951).

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a “essência material presente”, ainda não recebeu o predicado que convém ao seu conteúdo não ainda plenamente enunciado, objetivado, manifesto. Quer dizer, o “Eu renuncia a si na outra coisa das coisas, mas isto a fim de que as coisas cessem de ser outra coisa”. E o meio para alcançar isso é a “atenção”. Ou seja, a atenção como operação cognitiva da realidade sensível levando a tornar a si mesmo tudo o que ainda é exterior no homem e no objeto, contém a negação do ato de se fazer si mesmo valer e do ato de se dar si mesmo ao seu assunto - dois momentos necessários à marcha do espírito. Nota o aqui lembrado Ernst BLOCH que essa operação implica uma atitude de devoção ao mundo, uma decisiva orientação para fora traço de um objetivismo católico: no sentido de Malebranche “a atenção é a prece natural da alma” (cf.ib.op.cit.). Mas não é tudo. Hegel quer suprimir o distanciamento entre o sujeito e o objeto - captar o interior mesmo da natureza e contestar assim o agnosticismo. Então a atenção implica que o Eu se imerja na coisa na mesma medida em que a coisa se imerja no Eu, que ela tome carne nele. Dirá Hegel que pertence ao si penetrar e digerir a inteira riqueza de sua substância, e isto até a supressão da suprema oposição entre o Eu e a coisa ∗. A finalidade da operação cognitiva é assim desmentir a falsa aparência que faria do objeto alguma coisa de exterior ao espírito. Até que tudo esteja pronto para o ser- para- si do conhecimento de si. Então coincidem o Eu e a coisa: “felicidade, reconciliação". Tal é em Hegel o conhecimento de si como vir a ser de si, isto é, do espírito humano. Pensador otimista ⎯ ou até apologista ⎯ guarda a convicção de que, para este conhecimento de si do espírito humano, tudo tem medida, tudo serve necessariamente o melhor do mundo. É um saber da consciência ⎯ e não psicologia do indivíduo ⎯ trabalhando em cada um de nós, ou trabalhando na totalidade do mundo em direção a Nós, portanto, um saber mediatizado, uma fenomenologia ⎯ história do espírito em vir a ser no seu aparecer (02). * E aí entra Feuerbach: fazer com que as coisas deixem de ser outra coisa é recolocar a diferença: exige levar a doutrina do mestre até o fim; impõe chegar ao ateísmo, mas também aponta para uma espécie de humanismo religioso. Feuerbach escreve: “meu primeiro pensamento foi Deus, meu segundo a razão, meu terceiro e último, o homem”. E a “filosofia nova” ⎯ antropológica ⎯ é tida se encontrar, a respeito da filosofia racional de Hegel, na mesma proporção que esta a respeito da teologia. Hegel havia dito que no homem Deus se conhece ele mesmo; Feuerbach retorna a proposição: em seu Deus, o homem se conhece ele mesmo somente. Por conseqüência, os magníficos atributos divinos que o homem conferiu no mais além à sua própria alienação, devem ser restituídos à sua verdadeira origem: o coração humano, o amor humano, a tendência humana à perfeição. Como nota Ernst BLOCH (cf.ib.op.cit.) não é aí que reside a contribuição original de Feuerbach. O ponto de vista da antropologização já está em Hegel e, como veremos, constitui a chave de sua fenomenologia da religião. É claro que, às voltas com a dualidade, Hegel oscila entre o sujeito humano e o objeto divino, mas mesmo de maneira antropológico-mística dissolve o conteúdo divino na consciência humana antes que não dissolve esta em Deus, de maneira objetivo-mística (03). Feuerbach apenas apaga ∗

Ver Nota 01.

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essa dissolução mística e prossegue com mais rigor lógico a dissolução antropológica. Ao modo encontrado na época do iluminismo, ele reduz os deuses a sombras gigantescas da ignorância, ao mesmo tempo em que os apresenta como a melhor parte do homem duplicado, até defini-los como as projeções transcendentes do conteúdo dos desejos humanos ⎯ aspirações do coração transformadas em seres efetivos. Tal sua contribuição, Feuerbach se empenhou para levar a sério a importância e a dificuldade da religião para a “filosofia nova”. Ele se contrapôs à indiferença que, a esse respeito, contaminou o ambiente após o desaparecimento de Hegel ⎯ quando se tomava por ateísmo o que não passava de omissão para com a esfera do religioso. Sua antropologização abre então uma possibilidade de reflexão sobre o problema de um legado religioso, e o ateísmo, ao invés de ser um fenômeno de rejeição, recebe um conteúdo. Foi Feuerbach quem chamou a atenção de Marx para o termo "alienação", empregando-o para descrever a sujeição da humanidade à religião que ela própria criara. Enfim, essa problemática feuerbachiana dos primeiros escritos de Marx está, como se sabe, na origem da chamada “concepção materialista da história”. Portanto há que distinguir nessa problemática feuerbachiana dois aspectos da mesma ambivalência: um que aponta para a compreensão de Marx ⎯ e conseqüentemente afasta de Hegel; outro que suscita a contribuição de Feuerbach ⎯ e se mantém na polêmica com Hegel. * Nota Georges GURVITCH –como veremos adiante- que a razão pela qual a primeira crítica da filosofia de Hegel por parte dos seus próprios adeptos tinha como alvo o compromisso que ele procurava estabelecer entre a religião e a sua filosofia deve-se a que todo o destino da dialética hegeliana ⎯ que os seus partidários ditos “de esquerda” se preparavam para aplicar à análise da sociedade que os rodeava a à sua ação política ⎯ aí estava em jogo. A dialética hegeliana ⎯ mística racional ⎯ não era um princípio, antes um fim, e representava uma reação na história da dialética, já que se liga ao emanatismo místico de Plotino guardando ademais una forma ascendente-descendente particular da mística propriamente germânica (04). Daí que, em face de o chamado dos novos caminhos, sentido pelos hegelianos “de esquerda”, a dialética desdogmatizadora de Marx se desenvolva em antagonismo à de Hegel, e Feuerbach se mantenha em polêmica com esse mesmo Hegel. Como se sabe, o campo cultural da dialética hegeliana é marcado pelo interesse na teodicéia que é um tema crítico no estudo do século XX desde os pontos de vista filosófico e sociológico. Segundo Ernst CASSIRER (∗), a teodicéia de Hegel liga-se a sua visão da história do mundo que nesse filósofo é distinta da história da humanidade. Tal visão da história do Mundo em Hegel que será bem desenvolvida somente após a “Fenomenologia do Espírito”, nos seus cursos de Filosofia da Religião, é pautada na recusa em acolher a oposição clássica da Filosofia cristã entre, por um lado, o conteúdo que os pensadores cristãos chamavam “reino da natureza” e, por outro lado, o “reino da graça ou dos fins” – que tem paralelo na “Fenomenologia do Espírito” através da oposição da filosofia e da teologia. Pensadores como Pascal, por exemplo, acentuavam que o Deus dos cristãos será sempre um obstáculo inamovível para todos os filósofos, (∗) Cf. CASSIRER, Ernst: “O Mito do Estado”, trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro, Zahar editor, 1976, 316 pp. (1ªedição em Inglês, Londres, 1946).

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já que é um Deus oculto envolvido em mistério. Por contra, Hegel empreendeu revelar esse mistério. Para Ernst CASSIRER em “O Mito do Estado” (op. cit, pp.267 a 294), o que Hegel apresenta na sua filosofia da história é um paradoxo: é um racionalismo cristão e um otimismo cristão. É a pretensão de que a religião cristã deve ser interpretada no seu sentido positivo e não no seu sentido negativo. No dizer do próprio Hegel: “Deus revelou-se, isto é, permitiu-nos compreender aquilo que ele é; daí não ser mais uma existência oculta ou secreta”; em conseqüência os dois fatores “tempo” e “eternidade” não se encontram separados um do outro: interpenetram-se. A eternidade não transcende o tempo; pelo contrário: é no tempo que ela se encontra, de tal sorte que o tema da filosofia será alcançar “o reconhecimento da substância que está imanente no que é temporal e transitório, e do eterno que está presente”. Em seu comentário, Ernst CASSIRER sublinha que, ao contrário de Platão, Hegel não procura a “idéia” em qualquer espaço supercelestial, mas encontra-a na atualidade da vida social do homem e das lutas políticas. A verdadeira vida da Idéia, do Divino, começa na história. Ernst CASSIRER nos esclarece que os pensadores filosóficos ou teológicos falaram da história como de uma revelação divina, mas no sistema hegeliano a história não é mera aparência de Deus, mas a sua realidade: Deus não só tem história, ele é história. Deste modo se compreende que a concepção hegeliana do Estado desprende-se da sua concepção de história como teodicéia e, por esta via, enseja o problema crítico da evolução do sistema filosófico de Hegel, ao qual já nos referimos na “Apresentação” deste ensaio: quer dizer, o problema da sua transposição como expressão do conservadorismo para, ao contrário disso, tornar-se ideologia que salta as etapas do processus histórico. Compreenderemos isso se tivermos em conta que na filosofia de Hegel o sistema (o qual será qualificado “sistema hegeliano” exatamente pelo que se segue) “canoniza o existente como tal” e -no dizer de Ernst CASSIRER- esse “sistema filosófico” era fartamente superior ao seu conteúdo imediato, de tal sorte que “muito depois da morte de Hegel e depois da queda da sua metafísica, o sistema continuava a funcionar”, devendo tal supervivência ser atribuída ao caráter geral do método dialético em Hegel, projetando o dogmatismo de que “toda a existência finita tem de perecer a fim de dar lugar a formas novas e mais perfeitas”. Ernst CASSIRER resume que, nas antípodas do conservador e aristocrata Platão, a razão em Hegel guarda um enfoque profundamente conservador, mas contrariamente ao tipo platônico - que implica a responsabilidade individual, com desprezo do costume, do hábito e da tradição ou “justa opinião” (“idoxa”), e valoriza o conhecimento, a “episteme”, tida como a nova forma de racionalidade e consciência moral descoberta por Sócrates - em Hegel, pelo contrário, a “noção da realização de uma razão consciente de si própria cumpre-se na vida de uma nação”. A razão aparece aqui como a fluente substância universal, a qual se partilha ao mesmo tempo em muitos seres inteiramente independentes. Eles estão conscientes dentro de si próprios de serem estes seres independentes e individuais, através do fato de cederem e sacrificarem a sua individualidade particular; e sabem que essa substância universal é a sua alma e essência. Acentuando o paradoxo de Hegel, nos diz CASSIRER que o filósofo tem clareza sobre seu modo de tratar o problema da sabedoria divina como teodicéia, como justificação dos procedimentos de Deus, e que isso é formulado pelo próprio Hegel ao sustentar que a Providência se manifesta também na história universal e não apenas “em Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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animais, plantas e ocorrências isoladas”, de tal sorte que “o mal que se encontra no mundo pode ser compreendido, e o Espírito pensante reconciliado com o fato da existência do mal”. HEGEL, ele mesmo, prossegue: “na verdade, em parte alguma existe uma visão tão harmoniosa quanto na história universal, e só pode ser alcançada pelo reconhecimento da existência positiva, na qual esse elemento negativo é uma nulidade subordinada e vencida” (∗). Segundo Ernst CASSIRER resulta então inegável que Hegel “canoniza o existente como tal” e tenta justificar a dura e cruel “realidade desprezada”. O mal não aparece como um fato acidental ou como horrível necessidade: o mal em HEGEL não é apenas “razoável”: é a própria encarnação e atualização da razão. Não no sentido da razão como imperativo moral, mas a razão que vive no mundo histórico e que o organiza. * Na verdade não eram a "alienação religiosa” nem o problema do ateísmo que interessavam a Marx, mas a construção de uma nova ciência do homem e da sociedade em ato (nos termos de Saint-Simon), a Sociologia, como bem esclareceu Georges GURVITCH. A “alienação” é um termo que tem ascendência no humanismo prometeico comum à maior parte dos filósofos do Século XVIII e que Marx, influenciado por Feuerbach, foi buscar na “Fenomenologia do Espírito” dando-lhe, porém vários sentidos sociológicos que tal termo nunca tivera em Hegel nem em Feuerbach. Em Hegel, é primeiro que tudo Deus e em seguida é o Espírito e a Consciência como as suas emanações que “se alienam no Mundo” (Entfremden sich), para reconduzir o Mundo a Deus e a sua eternidade vivente. Para Marx, a alienação tem ao menos três significações, seguintes: (a)-“medida da autonomia do social” (Verselbstandigung), (b)-“exteriorização do social” (Veraeusserung) e (c)-“perda da realidade” (Entwirklichung), sendo as significações (a), (b) e (c) compreendidas como graus de cristalização da realidade social que podem entrar em conflito com os elementos espontâneos desta, levando-a a tornar-se vítima de ideologias falazes e tendo por resultado a dominação e a sujeição, que ameaçam as coletividades tanto quanto os indivíduos (a). Seja como for, a problemática feuerbachiana lança uma luz produtiva sobre a leitura da “Fenomenologia do Espírito”, de Hegel, notando a abertura da sua razão totalista no sentido humanizador. * A atitude a respeito dos deuses compreendida nessa problemática feuerbachiana em termos de atitude neo-hegeliana ⎯ ou de um neo-hegeliano⎯ tratando-os como sombras gigantescas da ignorância e como projeções no mais-além afastando a humanidade de si mesma, chama a atenção para a aplicação em Hegel, ao modo de uma teoria analítica, da concepção iluminista do erro na função da religião, como erro que deve ser superado pela antropologização, mas que ao mesmo tempo mostra a religião como essencial na formação do espírito humano. Além disso, e de maneira com-

(∗) HEGEL,G.W.F.: “La Raison dans l’Histoire”, introdução, notas e tradução Kostas Papaioannou, Paris, ed.10/18-Plon, 1965, 311pp. (traduzido da edição alemã de 1955), pp.67 sq. Ver igualmente: HEGEL, G.W.F.: “Lectures on the Philosophy ou History”, p.16, apud CASSIRER, E.: “O Mito do Estado”, op.cit, p.274). (a) cf. GURVITCH, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia” – Volume II, Lisboa, Ed. Cosmos, 1986, 567 pp., (Tradução da 3ª edição francesa: Paris, PUF, 1968).

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plementar, o ponto de vista da antropologização permite aprofundar a dissolução do conteúdo divino na consciência humana, não só como um processo anterior ou subjacente à psicologia do individuo, mas também como o outro lado, como o correlativo da não-dissolução desta consciência no transcendente. A dificuldade é como desenvolver essa contribuição de Feuerbach à leitura de Hegel; é não somente mostrar como se faz para chegar a essa consciência-radical aberta ⎯o ponto de vista da antropologização ⎯ sem a qual à “filosofia nova” feuerbachiana resta uma criação desprovida de situação no mundo, resta sem viabilidade como “conhecimento verdadeiro fora da verdade”; mas é também mostrar como descobrir os quadros vagos do pensamento que incorpora essa diferença específica, a diferença dessa consciência em estado de realidade, tendo em conta o “orgulho da razão”. Ou, com outras palavras, mostrar como se descobre os quadros do pensamento religioso em face da supressão da oposição que marca o domínio representativo, o domínio da verdade em Hegel, como revelando um componente totalista na formação do saber na e pela ciência hegeliana (05). Note-se que este componente se revela um verdadeiro obstáculo à sua fenomenologia da religião a qual, então, só pode ser verificada regressivamente, a partir do cotejo dos Capítulos VI, VII, e VIII da “Fenomenologia do Espírito”, como é da competência da crítica hegeliana e no âmbito desta o faz Alexandre Kojévè (b). Não que o problema dos quadros conceituais do pensamento religioso se reduza à aplicação da problemática feuerbachiana, mas, antes, é esta que se torna mais clara se tivermos em conta o posicionamento sociológico na matéria. Com efeito, como se sabe, os quadros conceituais do pensamento religioso, como conhecimento de tipo teológico, ⎯ ou, em linguagem antropo-sociológica, como interpretação grupal do processus religioso, como mito ⎯ são as referências humanas que ampliam e aprofundam a noção das relações entre o divino e o humano, tomando em consideração o conjunto. Quer dizer que os quadros conceituais tornam possível delimitar a realidade religiosa em sua existência e diferenciá-la em sua especificidade de outras esferas do real. Por outras palavras, realidade e conhecimento se interligam dialeticamente nos quadros conceituais ⎯ que então se mostram como aspectos privilegiados dos fenômenos religiosos tomados na perspectiva do conhecimento, da compreensão. Onde há perspectivas há quadros, há reciprocidade do Eu cognoscente e do objeto, com o fenômeno religioso sendo considerado como realidade humana que se oferece a um conhecimento igualmente humano. Desta sorte, não pode haver antagonismo entre a forma, a matéria e o conteúdo na realidade dos quadros conceituais do conhecimento teológico ⎯ isto é, não pode haver antagonismo entre o componente grupal ou de interpretação grupal, a atividade ritual e a vida religiosa. Então quando se fala de quadros sociais do conhecimento fala-se preferencialmente de correlações funcionais ⎯não sendo outro, aliás, o sentido positivo do termo “enteléquias”, de Aristóteles, a que Leibniz se referia ao falar de “autômatos incorpóreos”. Que essas referências têm também ⎯ pelo enfoque dos filósofos ⎯ um valor confirmativo ou finalístico nos mostra Ernst CASSIRER ao comentar o posicionamento de Hegel em fi(b) Cf. KOJÉVÈ, Alexandre: “Introduction à la Lecture de Hegel”, Paris, Gallimard, 1971, 2º ed., publicado por R. Queneau (1º ed. 1947) 598pp.

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losofia da religião. Para Hegel, o teor espiritual de cada religião e a significação que ela pode ter como momento necessário na totalidade do processus religioso, só se manifestam integralmente nas formas do seu culto, que dão ao conteúdo íntimo dessa religião sua manifestação exterior. Quer dizer, há uma correlação entre a interpretação grupal do processus religioso e as formas do seu culto, entre a essência universal do culto e suas formas particulares, de tal sorte que, mesmo na sua multiplicidade as formas exteriores e sensíveis do culto revelarão delas mesmas uma tendência espiritual única que as arrasta em uma interiorização progressiva. Para Hegel, no culto, o deus aparece de um lado e o eu, com o sujeito religioso e existencial em perspectiva, do outro lado, sua determinação, entretanto, consiste ao mesmo tempo em restabelecer a unidade concreta dos dois termos, que permite ao Deus tomar consciência do Eu (Selbst) e ao Eu (Selbst) tomar consciência do Deus. Nota ainda Ernst CASSIRER que se vê aqui confirmada a conexão entre o interior e o exterior, que serve de máxima para compreender todas as formas de expressão do espírito, a saber, a idéia segundo a qual o Eu só se encontra e só se compreende ele mesmo por sua alienação aparente. * Para Hegel, a esfera do culto torna efetiva a unidade entre o Eu e o absoluto, a reconciliação que restitui o sujeito e sua consciência de si sendo constituída exatamente por esse efetivar do sentimento de participar do absoluto e da unidade com ele, quer dizer por esse suprimir e superar assim a divisão ou o ponto de vista da separação entre o eu e o absoluto. O culto deve ser tomado como uma prática que compreende de uma só vez a interioridade e o fenômeno exterior, ou seja, como o processus eterno do sujeito para se tornar idêntico a sua essência. Ernst CASSIRER faz essas observações sobre a correlação na filosofia da religião de Hegel em defesa da tese ⎯ partilhada por vários antropólogos ⎯ de que a prática é o elemento primeiro ao qual a explicação mítica, a interpretação grupal do processus religioso ⎯ o “hiéros logos” ⎯ só se junta "aprés-coup" ∗. Essa explicação que se apresenta somente como relato está presente, na ação sagrada, como uma realidade imediata. Por isso, o relato mítico não é a chave que permite compreender o culto, mas, pelo contrário, o culto é que constitui o estágio preliminar do mito e sua base objetiva. É claro que quem entra em reciprocidade de perspectivas nessa correlação, quem constitui o quadro conceitual da interpretação mítica é o grupo religioso ⎯ e não os seus representantes intelectuais ⎯ coincidindo, então, quadro conceitual e quadro social do conhecimento religioso. Todavia, o problema que nos interessa se torna mais complexo porque se trata de “quadros vagos”, isto é, se trata da compreensão hegeliana dos quadros conceituais do pensamento religioso tal como considerados na "Fenomenologia do Espírito”: os quadros referidos quando se torna problemática ou duvidosa a determinação do culto em restabelecer a unidade concreta que permite ao Deus tomar consciência do Eu e ao Eu tomar consciência do Deus. E para chegar à perspectiva desses quadros não-confirmativos é preciso primeiro aprofundar no campo da "Crítica Hegeliana” expondo sobre as “seqüências (∗) Cf. CASSIRER, Ernst: “La Philosophie dês Formes Symboliques – La Penseé Mythique”, Paris, Les Editions de Minuit, 1972, 342 pp., (Versão do Alemão por Jean Lacoste).

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antropogênicas” e mostrar a via de acesso à abordagem do Hegel fenomenólogo, isto é, pôr em obra a “reversão do totalismo” do saber absoluto. ***

Segunda Seqüência A Crítica Dualista sugere que, na “Fenomenologia do Espírito”, há uma complementaridade e não há contradição entre os três Capítulos VI, VII e VIII, por necessidade mesma do tema, isto é, por exigência da exposição mesma ou da própria produção do conceito da ciência hegeliana, de tal sorte que esta última tem dois aspectos: o aspecto do espírito privado de forma concreta, ou noção abstrata do espírito, e o aspecto deste como se revelando ele mesmo a ele mesmo tal qual ele é, ou o conceito concreto do espírito.

Com efeito, o totalismo do saber absoluto é verificado pela Crítica Dualista no desenrolar de uma aparente contradição envolvendo a produção do conceito de ciência hegeliana ⎯ precisamente no que se refere à ordem das análises da revelação do espírito. Sendo a plenitude da revelação do espírito exatamente aquilo a que a ciência hegeliana dá formação se observa que a revelação teológica desse espírito deve ser menos perfeita ⎯ quer dizer que essa revelação não compreende o espírito como se revelando ele-mesmo a ele-mesmo tal qual ele é, já que essa plenitude só é alcançada no e pelo saber absoluto da própria ciência hegeliana. Conseqüentemente, a análise da revelação teológica deve então preceder essa outra análise da revelação pela ciência hegeliana. Consideração essa tanto mais relevante se tivermos em conta que a produção do conceito da ciência hegeliana é um procedimento fenomenológico compreendido como reconstituído no e pelo estudo cotejado dos Capítulos VI, VII e VIII da “Fenomenologia do Espírito” e que, por esse cotejo a ciência hegeliana já apareceu no final do Capítulo VI. Ou seja, a aparente contradição é que a análise do saber religioso ⎯ aí compreendida a revelação teológica ⎯ é feita no Capítulo VII, vindo portanto após o fim do Capítulo VI, parecendo por isso contradizer a conclusão necessária de que a revelação teológica deve ser menos perfeita e sua análise deve então preceder a análise da revelação pela ciência hegeliana. Hegel diz que só falará no Capítulo VIII da “Gestalt” ou forma exterior plástica concreta do espírito, quer dizer, do espírito tal como ele aparece na teologia. Hegel ali acrescenta que “nós” (Hegel e seus leitores) conhecemos o espírito privado de forma concreta, ou seja, a noção abstrata do espírito, porque essa noção está contida no fim do Capítulo VI ⎯ na interpretação do indivíduo Estado ⎯ admitindo-se que é o próprio Hegel que fala aí como o indivíduo identificado ao espírito tal qual ele aparece na e pela ciência hegeliana. Entretanto, do ponto de vista da Crítica Dualista tal como o faz Alexandre KOJÉVÈ, não há em fato coisa alguma de contradição naquela aparente inversão da ordem das análises da revelaProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ção, contrapondo o saber religioso e a ciência hegeliana. Esta última, em seu conjunto (com ênfase na palavra conjunto) está analisada ⎯ sob o nome de “Saber Absoluto” ⎯ no Capítulo VIII, de tal sorte que a análise do saber teológico precede então a análise da ciência hegeliana. Para apagar todo o traço de contradição, é preciso somente dizer que aquilo que apareceu no fim do Capítulo VI não é mais do que uma parte, ou melhor, um aspecto da ciência hegeliana; aspecto que, para formar o todo do saber absoluto do Capítulo VIII, deve ser completado pelo aspecto que se vai constituir na e pela análise do saber religioso do Capítulo VII. É exatamente isso o que Hegel indica no parágrafo inicial da Introdução à 1ª seção do Capítulo VII, seguinte: “(...) Na consideração da religião [que terá lugar no Capítulo VII] se trata unicamente dessa forma concreta [na qual o espírito se aparece ou se revela a si mesmo e se sabe ou se conhece]. Pois sua realidade essencial privada de forma concreta, quer dizer seu conceito puro ou abstrato, se apresentou como resultado [do que precede; a saber: no fim do Capítulo VI]”. (apud A.Kojévè, op.cit, p.225). Note-se que Hegel diz aí “noção abstrata”, enfatizando que é ainda essa noção abstrata da ciência hegeliana ⎯ e do espírito que se revelou na e por ela ⎯ que apareceu no fim do Capítulo VI. Quanto ao outro aspecto, o conceito concreto, aparece só no Capítulo VIII. Esse elemento do concreto lhe virá da concreção da “Gestalt” que aparecerá no Capítulo VII: o conceito do Capítulo VIII é a noção abstrata do capítulo VI mais a forma plástica concreta ou “Gestalt” do Capítulo VII, ficando assim repelido todo o traço de contradição. * Podemos agora retomar a exposição sobre o totalismo do saber absoluto. Temos o que nos apareceu no fim do Capítulo VI (interpretação do indivíduo-Estado) que é sem dúvida o Hegel como o último dos filósofos do idealismo alemão que se opõe ainda à religião e que, por esse motivo, exige necessariamente um complemento teológico. É o aspecto particularista da ciência hegeliana que nos apareceu ali. Esse aspecto deve ser completado por um aspecto universalista para formar o totalismo do saber absoluto. Na Crítica Dualista, esse saber é absoluto unicamente porque o lado particular aí está ligado ao lado universal ⎯ que, por isso mesmo, deixa de ser uma teologia e se torna uma antropologia universalista, completando a filosofia particularista e assim prestando conta da totalidade do espírito como um espírito humano. Desta forma, se pode concluir que é por essa ligação que Hegel é não somente o último representante da filosofia que se opõe à religião, mas é ainda o primeiro pensador que a substitui, que põe a ciência no lugar da religião ao invés de se opor a esta. No Capítulo VII Hegel vai mostrar como e porque a teologia se torna finalmente uma antropologia atéia - ou seja, uma antropologia que permanece tão universal e concreta quanto a teologia da qual ela nasceu. É como se houvesse três exposições interligadas: a do Capítulo VI, centrada na noção abstrata do espírito; a do Capítulo VII, referida na forma plástica concreta do espírito e, finalmente, a exposição do Capítulo VIII, que trata do conceito concreto do espírito. A Crítica Dualista sugere que há uma complementaridade e não há contradição entre os três capítulos, por necessidade mesma do tema, isto é, da exposição mesma ou da própria produção do conceito da ciProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ência hegeliana, de tal sorte que esta tem dois aspectos: o aspecto do espírito privado de forma concreta ou noção abstrata do espírito, e o aspecto deste como se revelando ele-mesmo a ele-mesmo tal qual ele é, ou o conceito concreto do espírito. Entre esses dois aspectos ⎯ o abstrato e o concreto ⎯ nota-se que, para formar o todo do saber absoluto, o aspecto abstrato deve ser completado pelo aspecto concreto, como aquele que vai se constituir pela análise e na análise do saber religioso, o qual compreende a concreção da forma plástica exterior (Gestalt) como a forma concreta na qual o espírito se aparece ou se revela a si mesmo e se sabe ou se conhece. Então podemos entender que, do ponto de vista do totalismo do saber absoluto, não somente não há oposição da ciência hegeliana à religião, mas que a análise do saber religioso é uma referência imprescindível como transição ao processus de formação do próprio saber absoluto, como plenitude da revelação do espírito pela ciência hegeliana. Além disso, o ponto de vista do totalismo hegeliano põe em questão a filosofia na sua vertente dita "pré-hegeliana" como saber dependente de um complemento teológico por oposição ao qual se constitui ou se caracteriza como filosofia, sendo por esse caráter de um saber de oposição que a filosofia é tida como particularista. Mas o ponto de vista do totalismo como modelo da ciência hegeliana, constituído no cotejo dos Capítulos VI, VII e VIII em vista de restabelecer o conhecimento sobre a própria produção do conceito da ciência hegeliana, vai mais longe e põe em questão a oposição mesma da filosofia ao seu complemento teológico. Não que Hegel deixe de ser um filósofo ou que o totalismo do saber absoluto opere a supressão da filosofia. A oposição deixa de existir na medida em que dá lugar a uma ligação, ou melhor: à medida que o aspecto particularista da filosofia pode ser complementado, pode figurar como o lado particular que é ligado ao lado universal do saber absoluto. É, todavia o complemento teológico que é suprimido no processus de formação do saber absoluto. Neste, o lado particular está ligado ao lado universal e, por efeito desse modo de ser ligado que caracteriza o saber absoluto, o lado universal deixa de ser uma teologia que, por definição, não pode ser ligada a coisa alguma de particular - para então, se tornar uma antropologia universalista, a qual, por sua vez, pode completar a filosofia particularista, e a completa, e por este completar ⎯ como modo de operar do ser ligado no todo do saber absoluto— é que o processus de formação chega a dar conta da totalidade do espírito como de um espírito humano propriamente dito. Portanto, a Crítica Dualista nos deixa ver que o processus de formação do saber absoluto se resolve como o modo de operar do ser ligado pelo todo no todo desse saber levando a completar a filosofia, sendo esse desafio de completar a filosofia que estaria por trás do esforço de produção do conceito da ciência hegeliana. * A supressão do “complemento teológico” aparece então como resultado do modo de ser ligado que caracteriza o saber absoluto, haja vista a impossibilidade do que a teologia possa figurar como um universal ligado ao particular. Ora, como a eficácia dessa impossibilidade não é uma determinação conceitual abstrata mas um efeito real, pelo qual a oposição da filosofia à religião deixa de existir, podemos então verificar um modo de operar do ser ligado pelo todo no todo do saber absoluto, sendo a partir desse modo de operar que se pode caracterizar, por sua vez, o totalismo do saber absoluto como o processus pelo qual a teologia se torna uma antropologia universalista. Isto significa que o totalismo como processus se caracteriza Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ou se integra num quadro de referência exatamente a partir do modo de operar do ser ligado, de tal sorte que o totalismo do saber absoluto aparece como função do esforço de completar a filosofia: na medida em que esse esforço tem êxito o totalismo hegeliano se configura. E o que nos dá essa medida é a análise do saber religioso como levando à descoberta do espírito humano. Ademais, essa compreensão do alcance humano da análise do saber religioso mostra como Hegel chega a dar conta do homem do Estado da Restauração, como o homem concreto ⎯ ou que, para chegar a essa identificação do indivíduo-Estado, Hegel necessita passar pela aná1ise do saber religioso. Com efeito, é no Capítulo VII que - como já o notamos com Alexandre KOJÉVÈ - Hegel vai mostrar como e por que a teologia se torna finalmente uma antropologia atéia, uma antropologia que permanece tão universal e concreta quanto a teologia da qual ela nasceu. Assim como é no Capítulo VI que Hegel mostrou a origem do aspecto particularista da ciência é no Capítulo VII que ele mostrará a origem do aspecto universalista. Daí porque o Capítulo VIII não se siga imediatamente ao Capítulo VI. Daí também porque o Capítulo VII é intercalado entre a primeira aparição da ciência hegeliana ao final do Capítulo VI e sua última análise no Capítulo VIII. Acontece que o Capítulo VI desemboca na interpretação do indivíduo-Estado-histórico por Hegel. Observando isso, podemos notar o esclarecimento dos limites de tal interpretação. É-nos dito que esse indivíduo particular ele mesmo é um homem concreto. Ele é mesmo o mais concreto, o mais real, de todos os homens, posto que, sendo o Estado (da Restauração), ele é a primeira realização da individualidade, da síntese do particular e do universal (06). Entretanto, o limite é que, no fim do Capítulo VI a ciência hegeliana não dá conta senão apenas do aspecto particularista da individualidade. Nada obstante, a ciência hegeliana mostra esse indivíduo histórico não como particular propriamente dito (oposto ao Estado). Pelo contrário, ela mostra que o indivíduo histórico e o Estado formam apenas um. Mas ela mostra esse todo apenas no seu aspecto particularista. Quer dizer, que a ciência hegeliana mostra o indivíduo histórico da Restauração como criador do Estado; ela faz ver que o Estado é a realização da particularidade de tal homem, mas não fala ainda do Estado napoleônico ele mesmo, ou seja, ela não mostra que o indivíduo-histórico só é o que ele é (só é o indivíduo-Estado) por meio exatamente do Estado que ele criou. Mas não é tudo. Hegel chega a indicar essa situação declarando que tal homem é um Deus; ou mais exatamente ainda: o Deus revelado aos homens na plenitude de sua realidade. Acontece que no fim do Capítulo VI isso fica inexato, pois não se sabe ainda o que é deus. É que deus, ele mesmo como Deus só aparece no Capítulo VII. De tal sorte que é preciso conhecer todo o Capítulo VII para saber o que é o indivíduo-Estado. Pois, se ele é o Deus revelado plenamente, ele é a integração de todos os deuses que se revelaram ao homem no curso da história — como aprendemos justamente nesse Capítulo VII. Ou seja, não se poderá prestar conta do indivíduo-Estado histórico senão dizendo dele tudo o que os homens já disseram de seus diferentes deuses. E nós só aprendemos o que eles disseram no Capítulo VII. Tanto que no fim desse Capítulo VII, no cristianismo protestante, o Deus-homem, o Cristo, se revela como comunidade dos crentes ⎯ a "Gemeinde”. Então, nota a Crítica Dualista, a ciência hegeliana não terá mais do que um passo a dar: bastará dizer que essa "Gemeinde" é o Estado (e não a Igreja), que é o Estado Napoleônico, como o dirá Hegel e ao dizê-lo estará ele prestando conta do indivíduo–Estado histórico, Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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quer dizer, do homem concreto (o homem da restauração). E à medida que se chega assim, pela "Gemeinde", à descoberta do espírito humano, correlativamente se terá a configuração do totalismo do saber absoluto, com o esforço de completar a filosofia sendo realizado pela antropologia universalista e na antropologia universalista nascida assim da teologia. * Podemos então notar que a ciência hegeliana se apresenta ao tratamento da Crítica Dualista como um procedimento correlacional caracterizado pela implicação mútua entre a "Gemeinde" e o totalismo do saber absoluto, de tal sorte que, se não há independência desses elementos, tampouco há subdependência entre eles, sendo a notar a autonomia relativa da "Gemeinde" em face do totalismo hegeliano e vice-versa. Ou seja, será a existência da "Gemeinde" que viabilizará a descoberta do espírito humano, pois a interpretação do indivíduo-Estado histórico por Hegel se funda no conhecimento do fato de que a "Gemeinde" está fora da Igreja, não lhe restando outra instância histórica que o Estado ⎯ da mesma maneira que ao indivíduo histórico não restará outra base social religiosa para seu Estado do que essa ‘comunidade desprendida'. Sendo o encontro acidental de um e da outra que dá lugar ao homem concreto. Por outro lado, e da mesma maneira em que a existência do cristianismo protestante é condição para a descoberta do espírito humano, será a transformação da teologia em antropologia universalista que possibilitará a realização do esforço de completar a filosofia, pelo qual o totalismo do saber absoluto se configura, como o ponto de vista do qual se descortina a ciência hegeliana como um todo (07). É também desse ponto de vista que se pode empreender a análise do saber religioso, sendo exatamente o que Hegel faz. Para ele, o espírito é de uma só vez realidade se mantendo no pensamento agente e pensamento se realizando na e pela ação: o espírito é o homem real concreto tomado no conjunto da sua atividade consciente criadora - que é a história universal e o Estado. Para fazer ressaltar a diferença com a religião, entretanto, é preciso considerar que o ponto de vista do religioso enfoca o espírito como uma entidade autônoma, diferente do homem, quer dizer: há na religião uma distinção entre a consciência exterior e a consciência de si, de tal sorte que, na sua concepção do homem, a religião mantém o ponto de vista da própria filosofia, em que o homem é visto como entidade particular que deve, por conseqüência, ter um complemento universal exterior. Se para a filosofia esse complemento é a natureza, para a religião é Deus. Segundo a Crítica Dualista, toda a diferença está aí ⎯ de tal sorte que a possibilidade para um filósofo chegar a uma antropologia universalista partindo da religião não parece tão inatingível. A oposição entre a consciência do exterior e a consciência de si, na religião, se encontra situada no interior da consciência de si. É nele mesmo que o homem religioso encontra a oposição do particular e do universal; o universal não é verdadeiramente fora do homem, e o homem não é completamente inumano: o universal está no homem, é espiritual, é espírito, é Deus e não natureza. Por conseqüência, sendo vinculado ao particular, ao homem, esse universal não é natureza inumana: mas é um espírito quase-humano e, todavia, é nãohumano, já que oposto ao homem: é Deus. Com outras palavras, sendo vinculado ao particular humano ⎯ e como acontecendo no âmbito da consciência de si do próprio religioso ⎯ o universal é, ele também, humano ou espiritual, no sentido de que é ele pensamento, consciência, consciência de si e ação livre autônoma ou, numa palavra, é espírito. Mas, sendo ao Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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mesmo tempo oposto ao particular humano, não sendo sua obra, produto de sua ação, esse espírito é não humano, exterior ao homem, dado a ele, estático nele mesmo ou, numa palavra, é um ser (sein) simples. Porém, como é um ser espiritual, temos que esse espírito existente como um ser simples é Deus. Desta maneira, a interpretação dualista nos mostra que o procedimento correlacional da ciência hegeliana encontra nessa formulação do espírito existente como um ser simples ou como um Deus, o elemento que faz a ponte entre a interpretação do Indivíduo ⎯ histórico por Hegel e o tornar-se da teologia em antropologia universalista ou “a-téia”. * Mas essa formulação diferencial do espírito como um ser simples existente como um Deus — formulação produzida pelo cotejo da filosofia e da religião desde o ponto de vista do totalismo do saber absoluto, levando a ressaltar ou a operacionalizar, numa concepção fenomenológica, a diferença com a religião ⎯ é exatamente uma formulação para aplicar na análise da religião, como saber religioso, sendo essa concepção do espírito existente como um ser simples, como um Deus, a expressão mesma desse saber religioso em sua diferença específica. Em vista dessa aplicação se faz notar que o espírito concebido como um ser simples existente, como um Deus, é necessariamente uma entidade dotada de um caráter fixo, estável, dada uma vez por todas — uma “Bestimmtheit der gestalt”. Podemos então falar de uma teoria da forma exterior plástica concreta do espírito ⎯ Gestalt ⎯ como “metodologia” ou teoria de aplicação do ponto de vista do saber absoluto para a análise da religião. É que a eficácia do espírito tal qual ele aparece na teologia ⎯ o espírito como forma plástica concreta ⎯ se verifica no estatuto que aí é atribuído ao homem, tendo em conta que o saber religioso vem antes da ciência hegeliana e o espírito é aí diferente do homem. Ou seja, pela ciência hegeliana e na ciência hegeliana ⎯ em que o homem é verdadeiramente consciência de si ⎯ o homem sabe que ele é ação e ele sabe que o objeto ao qual ele se reporta é sua obra. Ele sabe, então, que este objeto é em realidade ele mesmo, que ele se conhece a si mesmo conhecendo o objeto. Acontece que podemos operar uma redução fenomenológica e ver o homem antes dele vir a ser Hegel ou o homem hegeliano ⎯ essa individualidade identificada à ciência hegeliana: quer dizer, o homem como não sendo mais do que consciência exterior. O homem que, tomando consciência do objeto, do mundo onde ele vive ele não sabe que é dele mesmo que ele toma consciência, que ele é nesta sua obra e que a obra é ele. E não o sabendo, o homem limitado à consciência exterior é descrito fenomenologicamente em três planos de referência seguintes: primeiro: ele crê que a obra ou o objeto ou ambos são um ser simples (sein) fixo e estável: isto é, constituem uma entidade independente e oposta a ele (Entgegen-Gesetztes); segundo: esse objeto é, então, para ele uma entidade determinada (Bestimmtheit der Gestalt) dotada de um caráter fixo, imutável: uma forma plástica e concreta; terceiro: se reconhecendo assim na obra, ele se compreende, então, ele mesmo como uma coisa fixa dada, tendo qualidades determinadas e estáveis (ele se compreende ou se conhece como uma “Bestimmtheit”, coisa fixa dada; e como uma “Gestalt” ou conjunto de qualidades determinadas e estáveis). Portanto, o estatuto do homem no saber religioso, o modo como o homem se compreende na religião ou teologia, está expresso quando Hegel diz que não falará de outra coisa no Capítulo VII senão da “Gestalt”, da forma exterior plástica e concreta do espírito — quer dizer, da essência universal do culto Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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e de suas formas particulares. Por esse estatuto, por essa “teoria de aplicação”, temos que, na religião, o homem se contempla na sua obra sem saber que é sua obra; desconhecendo a condição de ser sua, esta obra é, na seqüência para ele uma Gestalt e um ser simples (sein): um ser divino, imutável, dado uma vez por todas, e não uma ação ou o resultado ou o produto de uma ação. E ele mesmo em face desse ser (divino) é também um ser simples, é um “homem—coisa” em relação fixa e dada uma vez por todas com o “deus—coisa”. * A formulação pela qual Hegel expressa essa teoria é - como já vimos- que na religião o homem inconscientemente toma consciência do homem concreto. Quer dizer que a teoria da Gestalt é agora desdobrada em sua aplicação na fenomenologia da religião, sobre a qual será imposta a antropologia universalista. O esquema dessa fenomenologia compreende uma evolução da religião na qual é articulada a própria diferença com a religião. É o desdobramento da teoria da Gestalt em sua aplicação que informa esse pensamento e dá procedência à visão de uma evolução da religião ⎯ “visão” porque essa evolução é destinada pelo hegelianismo a tornar-se antropologia universalista ou atéia. A seqüência dedutiva do texto hegeliano ⎯ seqüência antropogênica ⎯ em que essa evolução está enfocada, constitui o argumento da formulação fenomenológica mencionada, pela qual, sendo o espírito diferente, na religião, o homem toma inconscientemente consciência do homem concreto. É-nos dito que o homem concreto implica todos os elementos constitutivos do ser humano — a sensação, a percepção, o entendimento, a razão, o desejo. Por conseqüência, não pode haver mais que uma só religião, pois cada religião particular contém todos os elementos que se encontram também em todas as outras. As religiões se distinguem então entre elas pela acentuação, ou seja: em cada religião particular um dos elementos constitutivos é acentuado mais do que os outros, de maneira que os outros elementos ficam quase inconscientes. Segundo a Crítica Dualista, esse elemento acentuado corresponde sempre ao elemento da existência humana que se realiza de modo particular no mundo histórico ou no povo que engendra a religião em questão e toma nela, inconscientemente, consciência de si. Mas não é tudo. A aplicação da Gestalt ou da forma exterior plástica e concreta do espírito, indicando a eficácia da teoria correspondente, está bem evidenciada na seguinte fórmula de Hegel: “Uma religião difere ou se distingue de uma outra conforme a determinação específica da forma concreta na qual o espírito se sabe ou se conhece nela”. (apud A Kojévè, ib, op.cit, p.233). Na seqüência dessa passagem, Hegel nos esclarece que é preciso remarcar que a teologia, como saber, não esgota a religião como atitude – daí a possibilidade de uma evolução da religião. Assim, a apresentação do saber ou conhecimento ⎯ quer dizer, a teologia ⎯ que o espírito tem dele mesmo em conformidade com aquela determinação específica particular e isolada da forma concreta, “não esgota, em fato, o conjunto de uma religião objetivamente real”, não esgota o conjunto dos elementos constitutivos do ser humano, como as qualidades determinadas e estáveis (Gestalt) que constitui a forma plástica concreta do espírito que se compreende na religião ⎯ que constitui a essência universal do culto e de suas formas partiProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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culares. Naquele saber, “a série consecutiva das diferentes religiões não apresenta senão os diferentes aspectos de uma só e única religião”, tanto quanto ⎯ Hegel acrescenta ⎯ os diferentes aspectos “de cada religião particular e isolada”. (...). Quer dizer, a forma plástica concreta do espírito é chamada a operar em modo que torne possível a conciliação entre a série das diferentes religiões, por um lado e, por outro lado, cada religião particular isolada. No fundo, segundo Hegel, não há então mais do que uma só religião sobre a Terra. Todavia, a diferença das acentuações não é, em absoluto, negligenciável e é preciso dizer assim que há diversas religiões diferentes. Mas, como na ciência hegeliana não se pode conciliar a unidade e a pluralidade senão na e pela noção de vir-a-ser, decorre daí a visão de uma evolução da religião, cujas etapas seriam chamadas as religiões, havendo uma marcha geral dessa evolução exposta na seqüência antropogênica do seguinte texto de Hegel: “Todavia, a diferença ou diversidade deve ao mesmo tempo ser considerada também como uma diferença ou diversidade da religião. Pois, sendo dado que o espírito se encontra situado na diferença ou distinção de sua consciência (exterior) e de sua consciência de si, o movimento (dialético) tem por finalidade suprimir dialeticamente essa diferença ou distinção principal, e dar à forma concreta que é (o) objeto coisista da consciência (exterior) a forma da consciência de si. Ora, esta diferença ou distinção não é suprimida dialeticamente somente pelo fato de que as formas concretas que implica a consciência (exterior) são também nelas mesmas o elemento constitutivo do Eu pessoal, e que o Deus é representado exteriorizante como (uma) consciência de si. O Eu pessoal representado exteriorizante não é o (Eu pessoal) objetivamente real. Para que o Eu pessoal, assim como toda outra determinação especificante mais precisa da forma concreta, pertença a essa (forma concreta) em verdade, é preciso – de um lado – que esse (Eu pessoal) seja posto nela pela atividade da consciência de si, (e) -por outro lado- a determinação especificante menos perfeita deve se mostrar como sendo suprimida dialeticamente e compreendida conceitualmente pela determinação especificante mais perfeita. Pois a entidade representada exteriorizante deixa de ser alguma coisa de representado exteriorizante, e de estranho ao seu saber ou ao seu conhecimento, unicamente pelo fato de que o Eu pessoal a produziu e contempla em seguida a determinação especificante do objeto coisista como (sendo) a sua própria, e (que ele se contemple) assim a si mesmo neste objeto coisista” (“Ph. des G.” , p.481,1.28; p.482,1.18; apud A.Kojévè, p.235). Como se nota nessa visão, a finalidade da marcha geral da evolução da religião é a supressão da oposição entre a consciência exterior e a consciência de si, quer dizer, precisamente, a supressão da transcendência, a compreensão do espírito não mais como divino mas como humano. Para que isso tenha lugar é preciso que o homem compreenda que é ele quem criou Deus. E. para poder fazê-lo, ele deve de início se fazer uma idéia de Deus que se assemelhe à idéia que ele se faz dele mesmo. Ou seja, o homem deve, de mais em mais, antropomorfizar Deus. E é isso que caracteriza a evolução teológica. Por outro lado, ele deve constatar que as formas religiosas ultrapassadas são obra sua, quer dizer, ele deve saber que ele é quem criou ou inventou os "ídolos" que ele venerava antes de ter tomado consciência do verdadeiro Deus, feito à sua imagem como Eu pessoal Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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(Selbst). E isso também se efetua pela evolução religiosa e na evolução religiosa ⎯ evolução essa que a Crítica Dualista nota como sendo o “reflexo ideológico" da evolução histórica real, ativa, pois qualifica a obra do homem, incide sobre o que é produto da ação. Podemos então observar que a visão de uma evolução da religião compreende esse processus como a antropomorfização de Deus, cujo processamento, todavia, não tem outra impulsão senão o próprio fato do reconhecimento pela mediação do Cristo como Deus pessoal, que também lhe serve de base. É na idéia do Cristo que a antropomorfização de Deus alcança seu ponto mais elevado: depois vem a compreensão do fato de que essa idéia é um produto do espírito humano, sendo nesse momento que o homem se reconhece ele mesmo no Cristo ⎯ só depois vem o "reflexo ideológico". *** Terceira Seqüência Segundo a Crítica Dualista, a “idéia-dogma" hegeliana de que a evolução teológica desemboca em uma antropologia universalista ou atéia não invalida a teoria da Gestalt, como teoria de análise do saber religioso. Pelo contrário, é através do estudo dessa teoria na própria “Fenomenologia do Espírito” (para-além do antiteismo e apesar dele) que se torna possível reabrir o caminho para a oposição da filosofia e da teologia. Em face do que foi dito sobre a antropomorfização, temos que a teoria da "Gestalt" opera com eficácia junto ao fato do reconhecimento pela mediação do Cristo, sendo este fato que, ao ressaltar as vias do esforço para a autocompreensão torna possível que se construa a visão de uma evolução teológica ⎯ sobre a qual será imposta a antropologia hegeliana. Devemos notar, entretanto, que a teoria da “Gestalt” operada na análise de Hegel tem valor próprio e não está subordinada ao esquema totalista do hegelianismo, podendo então ser apreciada com relativa autonomia. Neste sentido, sobressai que a junção da “teoria da Gestalt” com a “visão de evolução” é estabelecida como necessária somente no juízo crítico de que “só é possível conciliar a unidade e a pluralidade pela noção do vir-a-ser e nesta noção”. Quer dizer, a ciência hegeliana leva a tomar a possibilidade de conciliar como sendo de imediato uma síntese necessária no vir-a-ser, de tal maneira que a diversidade fica reduzida e a variedade das religiões ⎯perdida sua eficácia ⎯ não passa de uma série de aspectos de uma única religião. A contradição é que a mesma possibilidade de conciliar retorna no âmbito da própria visão de evolução como uma questão de fato, haja vista o processamento da evolução projetada não ter outra impulsão senão o próprio fato do reconhecimento pelo Cristo. Ou seja, esse fato do reconhecimento atualiza a possibilidade, mostrando que a síntese é parcial, é só uma possibilidade em vias de se fazer e não síntese acabada, de tal sorte que o esforço de conciliar é recorrente tanto quanto a tensão entre a unidade e a pluralidade o é igualmente. Assim, a "idéia-dogma" hegeliana de que a evolução teológica desemboque em uma antropologia universalista Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ou atéia não invalida a teoria da Gestalt como teoria de análise do saber religioso operada por Hegel e posta em relevo pela Crítica Dualista, paraalém do antiteismo e apesar dele. Tanto mais que o estudo dessa teoria dialética de análise fenomenológica na "Fenomenologia do Espírito", independente ou contraposta à ciência hegeliana e dela tirada, possibilita reabrir o caminho para a oposição da filosofia à teologia em outro plano, oposição essa que a formação totalista do saber absoluto havia substituído pela ligação entre o seu lado particular e o seu lado universal. Em suma, para reencontrar a teoria da Gestalt como teoria dialética de análise fenomenológica na “La Phenomenologie de l’Esprit” é preciso então desmontar a ligação entre o lado particular e o lado universal do saber absoluto mediante o aprofundamento na tensão encoberta pelo totalismo do saber absoluto, ou seja a tensão entre a unidade e a pluralidade na fenomenologia da religião, a que corresponde a recorrência do esforço de conciliar a variedade das religiões numa única religião ⎯ ficando então suprimida toda idéia de passagem a uma antropologia atéia ou universalista absorvendo inteiramente a evolução teológica. Quer dizer que a compreensão fenomenológica de que, na religião, o homem inconscientemente toma consciência do homem concreto, não exige que a religião se suprima ela mesma e se torne antropologia hegeliana ⎯ pois esta é um juízo de valor e aquela um conhecimento (místico-simbólico) com experiência (vivida). Neste sentido temos como já ressaltamos a observação de Ernst CASSIRER em favor da máxima para compreender todas as formas de expressão do espírito: a idéia segundo a qual o Eu só se encontra e só se compreende ele mesmo por sua alienação aparente ⎯ o que, evidentemente, não exige a supressão da religião. Ademais disso, o fato de que o homem se reconhece ele mesmo no Cristo, significando a suposta realização da religião, não justifica tampouco a conclusão de que a religião por isso se suprime ela mesma, como transcendência. Em realidade, o anti-transcendentalismo deve ser tratado como um desvio do pensamento fenomenológico do próprio Hegel, desvio centrado na sua interpretação do Estado e que pode ser observado a partir da afirmação de que o homem que se reconhece no Cristo passa necessariamente a compreender que é dele como homem que ele devia dizer tudo o que ele disse de seu Deus. Hegel mesmo diz isso: o homem se contempla a si mesmo no "espírito objetivo", concebido anteriormente como espírito divino, no momento em que ele compreende que esse espírito é o Estado, o qual é sua obra, e o homem compreende isso pela filosofia estadista de Hegel e nessa filosofia, como homem hegeliano, quer dizer, compreende isso pela ciência e na ciência (filosófico-hegeliana) que reconhece o Estado como absoluto ou perfeito, a qual é ou deveria ser reconhecida pelo homem como individualidade absoluta. O antitranscendentalismo é a projeção na fenomenologia da ambição pessoal de Hegel em se tornar o filósofo oficial do Estado-potência. Sem dúvida, é essa projeção que instaura como finalidade da evolução da religião a supressão da oposição entre a consciência exterior e a consciência de si, oposição essa identificada à transcendência, como se o fato do reconhecimento pela mediação do Cristo não significasse a impossibilidade de uma compreensão do espírito como exclusivamente humano ou do humano como antitranscendentalista. Essa projeção às avessas do teísmo, esconde nos termos do próprio hegelianismo a realidade de que a presença e a permanência do Cristo são essenciais para que o homem se reconheça renovadamente, de tal sorte que esse reconhecimento pode se traduzir, na melhor Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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das hipótese, numa moralidade autônoma, numa compreensão autônoma do espírito como humano esforço para conciliar a diversidade das religiões numa única religião. O humano tem autonomia, mas não é excludente e não pode ser exclusivo enquanto a diversidade das religiões não se tornar insignificante e negligenciável. Tal o ponto de vista da teoria da forma plástica concreta ou teoria da Gestalt, que o próprio Hegel opera ao admitir que a diferença não é negligenciável – e, portanto, ao admitir isso, admite também a impossibilidade da tese contrária; admite a impossibilidade de que a diferença seja negligenciável ou venha a ser negligenciável. A projeção mesma do anti-transcendentalismo entra aqui como artifício contra essa aquiescência assim bloqueada, contra esse conhecimento igualmente do hegelianismo, mas “rejeitado”, conformando-se à impossibilidade de um conhecimento sem diversidade, aquiescência esta em que pontifica a teoria da forma plástica concreta ou teoria da Gestalt, como teoria dialética de aplicação fenomenológica, que expressa a oposição nos termos da filosofia e da teologia, da Natureza e de Deus, num ponto de vista novo: o do esforço. * Seja como for, inegável é que o fato do reconhecimento pela mediação do Cristo introduz uma alteração no modelo do totalismo do saber absoluto, de tal sorte que o ser ligado pelo todo no todo desse saber passa a mostrar um aspecto pragmático e um outro puramente conceitual. Pragmática é a possibilidade de que a teologia possa figurar como um universal capaz de ser ligado ao particular, ao humano. Conceitual é a conclusão de que resulta da indeterminação dessa possibilidade a supressão da religião; ou que uma só antropologia atéia — desprovida do elemento divino, sem transcendência — pode figurar como universal ligado ao particular humano. Ou seja, passa a ser uma questão de fato, uma criação coletiva, que o aspecto particularista da filosofia possa ser completado e possa figurar como o lado particular que é ligado ao lado universal do saber pretenso absoluto. O modelo do totalismo do saber absoluto, voltado para completar a filosofia, pressupõe o modo de operar do ser ligado no todo desse saber absoluto, como abstração da diversidade, sendo por via dessa abstração que o processo de formação desse saber chega a dar conta da totalidade do espírito como de um espírito exclusivamente humano. Então, se antes da análise do saber religioso, no Capítulo VI, esse modelo estabelecia, por uma noção abstrata, que o ser ligado era o “Estado-potência” da Restauração, a descoberta do fato do reconhecimento pelo Cristo, faz ressaltar que o ser ligado é uma criação coletiva, é em vias de se fazer pelo esforço e no esforço e não uma individualidade hipertrofiada, feita e acabada. O “saber do reconhecimento”, sendo pragmático, não é pois totalista, como o saber que o encobre, mas, nem por isso, é menos completo e soberano do que este último. Sendo uma compreensão autônoma do espírito como humano esforço, compreende o modo de operar do ser ligado como não se limitando à redução da diversidade; como escapando ao procedimento conceitual da antropologização atéia hegeliana ⎯ procedimento este que prejudica a noção mesma de uma evolução da religião, bloqueando o processus fenomenológico complexo marcado pela tensão e pelo esforço de conciliar em face da diversidade das religiões. Quer dizer que o fato do reconhecimento pelo Cristo, ao viabilizar uma compreensão autônoma do Espírito como esforço humano, gera uma atitude coletiva moral configurada na base do ascendente do esforço, que –logo o veremos- o próprio Hegel irá sublinhar Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ao tratar da diferença entre o cristão e o pagão. Temos então que a compreensão autônoma é o que está em perspectiva na teoria da forma plástica concreta e que esta última, por sua vez, está configurada como a expressão e a racionalidade da atitude de abertura para o esforço, de tal sorte que essa teoria presta conta do modo de operar do ser ligado pelo todo no todo concreto da evolução da religião e não do “todo abstrato” do saber absoluto - desse modo reduzido ou revertido este último a uma possibilidade objetiva, isto é, reduzido ou revertido à antropologização ou, mais precisamente, à antropomorfização da religião como possibilidade objetiva ⎯ da mesma maneira que é também objetiva a possibilidade de que a teologia possa figurar como um universal capaz de ser ligado ao particular humano. ∗ Com efeito, o método de Hegel é o do fenomenólogo da religião. Para bem caracterizá-lo cabe observar que o historiador das religiões descreve uma religião dada tal qual ela aparece àqueles que nela acreditam ou acreditavam. O fenomenólogo da religião, por sua vez, não descreve senão o caráter essencial desta religião. Quer dizer, ele tenta situá-la no conjunto da evolução religiosa; ele quer indicar o papel desempenhado por uma religião dada nesta evolução. Por outras palavras, ele quer compreender como e por que o resultado geral dessa evolução é o resultado de uma evolução que passa por tais ou quais etapas dadas. E para facilitar a compreensão ele “idealiza” as etapas, quer dizer: ele toma uma religião dada não tal como ela houvera sido em fato, mas como ela houvera devido ser se ela se compreendesse perfeitamente ela mesma, se ela realizasse perfeitamente sua missão histórica. E para fazê-lo ele deve religar cada religião ao mundo que a engendrou — daí falar-se de “consciência possível”. Mas não é tudo. Que o próprio saber absoluto pode se tornar uma possibilidade objetiva e a antropomorfização da religião não chegar ao totalismo hegeliano é demonstrado pelo próprio Hegel lá onde se admite que, enquanto o Estado ainda não descobriu que ele é a realidade objetiva do Espírito, o homem não verá na objetivação do espírito sua própria obra. Então, o espírito será compreendido sob a forma de um ser simples, um ser dado quase natural, tal como a compreensão do espírito que se efetua na teologia. Sem dúvida, essa possibilidade objetiva posta como a realidade objetiva do espírito “ainda não descoberta”, embora revelando o componente de utopia no totalismo de Hegel, no vir-a-ser do saber absoluto, funciona antes como uma reversão do saber absoluto e não como uma anunciação dele, pois enquanto a antropomorfização resta uma possibilidade, a forma plástica concreta (Gestalt) resta uma realidade (atualizada na mediação pelo reconhecimento do Cristo) que Hegel considera como oposta à consciência ao dizer que, na religião, o homem inconscientemente toma consciência do homem concreto. Quer dizer que a forma plástica não chega a se tornar uma forma consciente dela mesma ⎯ a que Hegel, incluindo o mundo técnico e histórico chama obra e na qual se expressa o Eu pessoal ⎯ mas tampouco é uma forma refratária à consciência como função representativa em geral, embora lhe seja oposta. É a forma plástica concreta como realidade descoberta na base da fenomenologia da religião ou do próprio método de Hegel, como fenomenólogo ⎯ é a realidade da evolução da religião e que é posta em perspectiva na “visão de evolução” anteriormente observada. Devemos, então, retroceder neste tema até o estágio em que, em fato, a religião não é ainda substituída pela ciência hegeliana. Se pode então ver, Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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que, na abordagem de Hegel é pela teologia e na teologia que o homem toma consciência da humanidade real que é a expressão da “realidade essencial do real” (das absolutes wesen). Ou seja, é pela teologia e na teologia que o homem toma consciência da humanidade considerada no seu conjunto espaço-temporal ⎯ como povo ou Estado ou realidade sóciopolítico-histórica. Vale dizer que, na abordagem de Hegel, e enquanto a religião não era ainda substituída pela ciência hegeliana, a religião é também uma ideologia, já que é pela religião e na religião que se constitui o povo como individualidade humana, ou que o povo toma consciência de si. A evolução religiosa é vista como um elemento constitutivo da evolução histórica real, ativa, sendo este processus real no seu conjunto que determina as forma particulares das diferentes religiões. Uma religião ou uma teologia dadas refletem os caracteres específicos do espírito real, quer dizer do espírito do povo. Então, uma religião é uma projeção no mais-além do caráter da realidade social já formada. Todavia, o povo não se constitui como uma unidade homogênea senão pelo fato de ter elaborado uma religião comum a todos os seus membros. Assim, por exemplo, o cristianismo resulta das transformações reais que formaram o mundo burguês no Império romano. Sem esse império ao cristianismo restaria uma simples seita galiléia. Mas a nova unidade social, o mundo cristão, só se constitui porque houve projeção na religião cristã. * Acontece que a abordagem de Hegel não é assim tão simples, e a circunstância de estarmos no estágio em que a religião não é ainda substituída pela ciência hegeliana tem conseqüências “metodológicas”. Tanto é assim que, segundo os críticos, e diante dessa referência da religião como ideologia, seria de esperar que Hegel oferecesse a exposição de um paralelismo entre a análise da evolução religiosa e a análise da evolução histórica real. Não é isso o que se tem. Pelo contrário. A abordagem de Hegel conduz a uma teoria da função formadora da religião, com a própria religião adquirindo autonomia própria relativamente à análise da evolução real. É a teoria de que o povo toma consciência de si na religião, ocorrendo isto porém de modo inconsciente, para-além de qualquer paralelismo que se pretenda estabelecer com a análise de uma evolução histórica real. Chega-se a essa teoria levando-se em conta o peso desta condição inconsciente sobre a análise que Hegel faz dos elementos constitutivos do ser humano, uns após os outros, a saber: as análises da sensação, da percepção, do entendimento, da razão, do desejo. É que todos esses elementos constitutivos do humano real ⎯ a que se refere a forma plástica concreta como o conjunto das qualidades determinadas e estáveis do espírito que se compreende na religião, do espírito do povo ⎯ somente são reais no homem concreto. O homem concreto, por sua vez, só tem existência efetiva de modo coletivo, isto é no seio da sociedade, do Estado, do povo. Ora, se o povo toma inconscientemente consciência de si na sua religião, é então a teologia que reflete o conjunto dos elementos constitutivos do ser humano; é a teologia que reflete a realidade humana - e não é a Experiência sensível, nem a Física, nem a Psicologia, etc. que estão em medida de refletí-la. Cada teologia, como saber, dá uma visão global da realidade humana, onde os “atributos da substância” — esta substância sendo o povo como tal (incluindo a sociedade e o Estado) — aparecem sob a forma de “predicados” que se atribui ao “sujeito”, quer dizer a Deus. Assim, as diferentes religiões são etapas do vir a ser da consciência de si da humanidaProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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de, e não fragmentos dessa consciência que deveriam ser adicionados para formar o todo ⎯ como acontece nos episódios da evolução histórica real (lembrando que não há paralelismo entre a análise da evolução religiosa e a análise da evolução histórica real). Cada religião como atitude, por sua vez, é uma visão total da realidade humana, e não há vir a ser da religião senão porque há vir a ser dessa realidade. Entretanto, se “em-si” e “paranós” cada religião constitui a totalidade, o mesmo não é assim para aqueles que a professam. Cada religião dada acentua um elemento constitutivo mais do que os outros característica esta que pressupõe e condiciona a predominância real de tal elemento na vida histórica do povo que tem essa religião. Em face dessa constatação introduzindo uma duplicidade dos aspectos da totalidade ou do conjunto dos elementos constitutivos do ser humano, tomados pela religião e na religião como visão dessa realidade humana, a abordagem de Hegel, como esforço de conciliar a diversidade das religiões, desdobra dessa duplicidade o seguinte: (a) - que se verifica uma tensão entre a totalidade constituída na religião em-si (ou para-nós) e a sua manifestação como expressão da particularidade dos homens da época; (b) - que essa tensão, por sua vez, como constitutiva da totalidade atual ou atualizada, deixa ver que esta última (essa totalidade atual) é uma integração dos elementos constitutivos do ser humano que são parcialmente atualizados nas diferentes religiões. Então, considerando que as diferentes religiões são etapas do vir a ser da consciência de si da humanidade, a abordagem de Hegel vai dizer que há consciência de si completa, como noção de análise fenomenológica, e que essa consciência de si completa é uma soma ou uma integração das tomadas de consciência parciais que se efetuam pelas religiões e nas religiões. Mas a abordagem de Hegel não pára aí. Como apresentação do ponto de vista do fenomenólogo, essa abordagem de Hegel se explicita na trajetória conduzindo ao pensamento religioso como filosofia teológica e não ciência hegeliana perfeita. É claro que a consciência de si completa não se confunde à consciência de si “perfeita” que é a religiosa e na qual o homem sabe que é dele que ele toma consciência e não de Deus ⎯ como convém à ciência hegeliana (...). São as tomadas de consciência parciais que se relacionam à consciência de si completa e elas são teológicas e não filosóficas hegelianas. Quer dizer, o homem toma parcialmente consciência da sua realidade humana imaginando uma forma particular de divindade. A questão que surge é de saber qual o estatuto dessa consciência completa, já que ela é uma forma de integração das consciências parciais teológicas, mas não chega a se identificar à consciência de si hegeliana, perfeita. Então, é preciso considerar a diferença entre consciência completa e consciência parcial. Segundo a Crítica Dualista, essa diferença é a que Hegel observa “entre o espírito objetivamente real (parcial) e esse mesmo espírito que se sabe ou se conhece como espírito (completo). Quer dizer, é a “distinção entre si-mesmo tomado como consciência exterior (parcial) e si-mesmo tomado como consciência de si (completa)”. É claro que essa diferença ou distinção é suprimida dialeticamente no “espírito que se sabe ou se conhece segundo sua verdade objetiva”, pois a “consciência exterior e a consciência de si desse espírito são igualadas” (cf.“Ph. des G.”,p.479,1.3-8;apud A.Kojévè, p.221). Nada obstante, resta a observação de que Hegel, contrariando o ponto de vista do totalismo do saber absoluto ⎯ com essa passagem textual ⎯ ele mesmo trata numa oposição o conhecimento religioso ou teológico ⎯ incluindo neste último o “espírito objetivamente real” das tomadas de consciência Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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parciais que se efetuam nas diversas religiões, bem como esse mesmo “espírito que se sabe ou se conhece como espírito”, em foco na tomada de consciência de si completa, isto é na teologia. Ou seja, Hegel opõe o conhecimento religioso ou teológico ao conhecimento a-religioso e ateu do saber absoluto ⎯ o espírito que se sabe ou se conhece na sua verdade ou na sua realidade revelada é o espírito hegeliano do saber absoluto, que, do ponto de vista do totalismo hegeliano, não entrava em oposição ao saber religioso até este momento! Como veremos adiante, está então retomada em outro plano –no qual será questão de “Gestalten als Geister”- a oposição da filosofia e de seu complemento teológico; está então operada a reversão do totalismo do saber absoluto! (∗) * Para melhor compreender esse ressurgimento da oposição em outro plano, temos em conta não só que a religião, no sentido próprio do termo, é a teologia ⎯ reunindo a atitude e o saber religiosos ⎯ mas que a teologia por sua vez é a forma imediata da ciência, é a antropologia não mediatizada pela negação de Deus, como projeção do antiteismo. Segundo a Crítica Dualista, a ciência não mediatizada pela negação compreende a filosofia não dialética pré-hegeliana. Ela é positiva no sentido de que ela substancializa o espírito, compreendendo-o como um simples ser dado (sein), um ser, em fato, natural, não-humano, mas concebido aqui como um ser divino, todo poderoso, eterno, idêntico a ele mesmo. O espírito concebido como tal ser é Deus. A filosofia imediata é então melhor teologia e não antropologia. Deus é um ser dado (“Bestimmtheit der gestalt”), mas um ser espiritual: é o “espírito materializado”, síntese acabada da filosofia e do seu complemento teológico. E esse “espírito materializado” cria não a natureza, não o mundo sensível, mas formas concretas espirituais (“Gestalten als Geister”), quer dizer: cria deuses. Com outras palavras, o homem, o espírito humano, como ser religioso, cria não as formas e as leis naturais, não os mundos reais empíricos, mas as teologias. Então, nessa condição de criações do espírito humano, identificadas, todavia pela filosofia positiva a Deus como um ser dado, um ser com a qualidade dos seres naturais de serem “dados”, mas que é um ser espiritual (o qual, sendo espiritual em fato, é negação do dado), ou seja, revelando um “espírito materializado”, as teologias são compreendidas na abordagem de Hegel como mitos ou manifestações espirituais de conteúdo antropológico e forma teológica (08). Segundo a Crítica Dualista, o que Hegel vai descrever como evolução religiosa é o vir a ser deste “espírito que cria os deuses”; é a evolução do pensamento religioso assim entendido; é a seqüência lógico-temporal das diversas teologias elaboradas no curso da história. De qualquer maneira, a religião não pode deixar de saber que o aspecto acentuado em cada religião é “realmente essencial” (Wesentlich), porque, na realidade empírica, o homem vem de realizar pela ação o elemento constitutivo da sua existência, do qual ele toma consciência sob a forma do caráter essencial do seu Deus. Com outras palavras, o homem atribui, por seu pensamento religioso ou teológico, tal caráter ao seu Deus porque ele realizou pela ação esse caráter em seu mundo. Não há, pois, verdade em uma religião senão na medida em que a idéia implicada na teologia se realiza no mundo onde essa teologia tem curso. Enfim, o caracte(∗) ver adiante Nota 08.

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rístico do pensamento religioso é pensar o ideal em “categorias teológicas”, é projetá-lo no mais-além. (O ideal da individualidade teria sido projetado pela teologia cristã no Deus-pessoa ou na pessoa como divina e humana; quer dizer, teria sido a projeção de uma fusão do universal e do particular que é tida como um ideal buscado no mundo cristão). A expressão do pensamento religioso, como pensamento compreendido nas três etapas da evolução teológica, está formulada no seguinte texto da “Ph. des G.” em que a abordagem de Hegel como fenomenólogo está exposta: “A primeira realidade objetiva do espírito na religião é a noção abstrata da religião ela mesma, a religião tomada como imediata, e por conseqüência, natural. Nessa religião natural, o espírito se sabe ou se conhece como seu objeto coisista em uma forma concreta natural, imediata. Quanto à segunda realidade objetiva do espírito na religião, ela é necessariamente aquela aonde o espírito chega a se saber ou se conhecer na forma concreta do Eu pessoal. Essa segunda realidade objetiva é, por seqüência, a religião artificial ou artística. Pois a forma concreta se eleva à forma do Eu pessoal pela produção criadora da consciência exterior, por seqüência do que, esta última contempla no seu objeto coisista sua ação, ou seja, precisamente, o Eu pessoal. Enfim, a terceira realidade objetiva do espírito na religião suprime dialeticamente a unilateralidade das duas primeiras: o Eu pessoal é aí igualmente um Eu pessoal imediato, tanto quanto a imediatez é aí um Eu pessoal. Se, na primeira realidade objetiva religiosa o espírito como tal é na forma da consciência exterior e, na segunda, é na forma da consciência de si, ele é, na terceira realidade objetiva, na forma da união das duas, quer dizer, da consciência exterior e da consciência de si. Ele tem aí a forma concreta do ser em e para si. E, na medida em que o espírito é aí representado e exteriorizado tal como ele é em e para si, é a religião revelada ou manifesta. Entretanto, ainda que nesta religião revelada o espírito seja elevado, é verdade, à sua forma concreta verdadeira ou verídica, essa forma concreta ela mesma e a representação exteriorizante são ainda, precisamente, um aspecto não superado a partir do qual o espírito deve passar no conceito, a fim de dissolver completamente nele a forma da objetividade coisista; nele que enclausura igualmente em si mesmo o seu oposto que é o objeto coisista. Nesse momento, o espírito aprendeu ele mesmo o conceito de si mesmo da mesma maneira em que nós (Hegel e seus leitores) viemos de tê-lo feito; e a forma concreta desse espírito, quer dizer o elemento de sua existência empírica, na medida em que ela, a forma concreta, é conceito, é esse espírito ele mesmo”. (“Ph. des G.”, p.480, 1.3-27; apud A.Kojévè, ib, op. cit, p.223). Notando que, segundo os críticos, essa última forma concreta do espírito, que ela mesma é espírito, é o “sage”, o pensador na sua existência empírica, é o Hegel como identificado à ciência não mediatizada pela negação de Deus.

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38 Quarta Seqüência Segundo Alexandre Kojévè não se deve concluir da controvérsia “teístas/ateístas” que para Hegel há um Deus que se revela a ele mesmo pelas diferentes religiões e nas diferentes religiões que ele engendra nas consciências humanas no curso da História. Pelo contrário. Há que tomar as palavras “Religião” e “Realidade essencial absoluta” no sentido que lhes dá um “ateu” ⎯ ou que lhes deu Feuerbach ⎯ isto é, como Espírito humano que se revela a ele mesmo. Em face desse texto em que a abordagem de Hegel como fenomenólogo está exposta ⎯ sendo reconhecido “o aspecto não superado” do pensamento religioso ⎯ torna-se inevitável aprofundar na crítica ao hegelianismo, sobretudo no que diz respeito à visão de uma evolução da religião como antropomorfização de Deus levando necessariamente à supressão da oposição da filosofia e da religião bem como à eliminação da diferença entre as diversas religiões ou, em duas palavras, levando à supressão da transcendência. Com efeito, a Crítica Dualista nos oferece várias contribuições esclarecedoras das ambigüidades na leitura de Hegel cuja apreciação nos facilitará o acesso à problemática fenomenológica dos quadros conceituais do pensamento religioso. Consta, inicialmente, a controvérsia com o modelo de interpretação dos chamados “hegelianos de direita”, os quais entenderiam o capítulo VII da “Fenomenologia do Espírito” como admitindo um espírito outro que não seja o espírito humano. É o debate sobre a significação da passagem da primeira parte da Introdução desse Capítulo VII (p.473,1. 3-10 da “Ph.des G.”, apud A.Kojévè, p. 197) em que é apresentada a noção de Realidade essencial absoluta – a que já nos referimos – seguinte: “É verdade que a Religião, compreendida como Consciência exterior da Realidade essencial absoluta como tal, aparece também nas formações concretas que nós (Hegel e seus leitores) consideramos até aqui, e que — de uma maneira geral — se distinguem umas das outras como Consciência exterior, Consciência de si, Razão e Espírito. No entanto, a Religião apareceu aí do ponto de vista da Consciência exterior que toma consciência da Realidade essencial absoluta. Não é então, a Realidade essencial absoluta em e para si mesma, não é a Consciência de si do Espírito que apareceu nessas formações concretas”. Para a Crítica Dualista, nesta passagem acima (∗), seria equivocado tomar “Realidade essencial absoluta” (das absolutes wesen) e “Espírito” (Geist) como significando aqui Deus. Quer dizer, significando a maneira como Deus toma Consciência de si pela Religião e na Religião, independentemente de sua revelação aos homens. Desta sorte, a passagem em epígrafe (∗)

O leitor recém-chegado deve ter em conta que, deixando de lado toda a consideração sobre as instâncias do sistema, no texto filosófico referente a Hegel as maiúsculas são empregadas para designar preferencialmente os níveis conceitual e simbólico, não os conteúdos diretamente apreendidos.

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implicaria a idéia de que há um Deus, um Espírito outro que não o Espírito Humano, que se revela a ele mesmo pelas diferentes Religiões e nas diferentes Religiões que ele engendra nas consciências humanas no curso da História. Segundo a Crítica Dualista, esta interpretação dita “teísta”, adotada pelos “hegelianos de direita” é absolutamente impossível ⎯ e não só porque Hegel nega valor histórico à teocracia. É-nos dito que, se a “Fenomenologia do Espírito” tem um sentido, o Espírito de que é questão não é coisa alguma de outro que o Espírito Humano: não há Espírito fora do Mundo e o Espírito que é no Mundo é o Homem, a Humanidade, a História Universal. Assim, a Crítica Dualista nos oferece uma reflexão sobre o que é a “Realidade essencial absoluta” (das absolutes wesen) para o autor da “Ph. des G.” É-Nos dito que a Realidade é o Mundo que implica o Homem, o Homem que vive no Mundo. Na medida em que o Homem é outra coisa que não o Mundo, mesmo não podendo existir senão no Mundo, o Homem é a Realidade essencial do Real existente – seu “wesen”, sua essência, sua enteléquia, sua idéia, sua “causa funcional”. E esta posição do Homem como a Realidade essencial do Real existente ⎯ o Eu pessoal ⎯ é um traço que identifica a Hegel juntamente com todo pensador judeu-cristão. Mas, nessa referência, não é o indivíduo humano (o Particular) e sim a humanidade tomada no seu conjunto espaço-temporal. A Realidade essencial do Real está compreendida no que Hegel chama Espírito objetivo, Espírito do Mundo, Espírito do Povo, História e, mais concretamente, Estado ⎯ incluindo a Sociedade. * Mas a controvérsia não é assim tão simples e seria apressada a conclusão de que a interpretação dita teísta é completamente equivocada, ou que a Realidade essencial absoluta não pode em hipótese alguma significar “Deus” na Religião, que se autocompreende sim, mas sem que isso signifique independência absoluta de sua revelação aos homens. Assim nota-se na passagem em epígrafe que a Realidade essencial absoluta é descoberta do “ponto de vista da consciência exterior” ⎯ que toma Consciência daquela Realidade essencial absoluta, que, portanto, a assimila em si, e que é assim que a Religião apareceu “até aqui”, ou seja, antes da Ciência Hegeliana e no momento inicial da abordagem de Hegel sobre o fenômeno religioso, o Hegel como fenomenólogo, que se desenvolve no capítulo VII. Segundo os críticos, essa referência em que a Realidade essencial passa ou se assimila na Consciência exterior, configura a consciência do não-Eu como oposto ao Eu; a consciência do objeto concebido oposto ao sujeito cognoscente: a consciência da realidade exterior. Então, temos essa interpretação dita “a-teísta” ⎯ por oposição à interpretação dos outros hegelianos tida como teísta ⎯ e vemos que naquela passagem em epígrafe se tratava então da atitude que tomava o indivíduo humano ⎯ o Particular ⎯ a respeito do Homem como tal, tomado como Realidade essencial do Real em geral, esta Realidade essencial sendo para este Homem (o Particular) qualquer coisa de exterior, de autônomo, de oposto a ele. Desta maneira, a interpretação a-teísta quer nos mostrar que, se a Realidade essencial absoluta é a humanidade tomada no seu conjunto espaço-temporal, se ela é a “enteléquia” desse conjunto do Real, ela é também a enteléquia de cada indivíduo humano ⎯ haja vista a impossibilidade da tese contrária, a impossibilidade de que não seja assim. Em conseqüência, a interpretação “ateísta reintroduz a possibilidade objetiva do Estado como integração dos cidadãos ⎯ os Particulares ⎯ já que cada cidadão não é o que é senão por Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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via de uma participação no Estado. A “leitura” dita “a-teísta” se caracteriza então por tomar em conjunto a frase da passagem em epígrafe, seguinte: “(...) ponto de vista da Consciência exterior que toma consciência da Realidade essencial absoluta” ( que toma consciência do Homem como significando outra coisa que não o Mundo, mas que está no Mundo exterior) de tal sorte que tornou possível considerá-la como enteléquia, como uma referência conceitual de um pensamento que não é exclusivamente religioso nem exclusivamente antropológico, pois não passa de uma possibilidade objetiva inscrita na Consciência da Realidade essencial absoluta como Consciência da Realidade exterior, em destaque na frase inicial da passagem em epígrafe. Quer dizer que, enquanto o Homem não se dá conta dessa situação de ser participante no Estado ou, reciprocamente, enquanto a realidade exterior da vida política não revela explicitamente esse fato, o Homem se opõe ao Estado e ele vê no Estado uma entidade independente, autônoma. Assim ocorre na atitude da Consciência exterior. Se pode então dizer ⎯ retomando a passagem em epígrafe ⎯ que “até aqui” foi questão das diversas atitudes que o indivíduo que se opõe à humanidade, à totalidade, ao Estado, toma a respeito deles. Tal o esquema básico da interpretação dita “a-teísta”. Porém a leitura continua. Ou seja, do ponto de vista do Homem da Consciência exterior, a Realidade essencial não é somente o Estado. Quer dizer, então, que há dualidade e o esquema da interpretação “a-teísta” não é enfim excludente. * Com efeito, já vimos que essa referência em que a Realidade essencial passa ou se assimila na Consciência exterior configura a Consciência do não-Eu como oposto ao Eu, de tal sorte que este Homem da Consciência exterior opõe também o Mundo ao Eu, ele vê aí uma entidade autônoma. A Realidade essencial desse Mundo será então ela mesma para ele uma realidade autônoma, oposta a ele. E é assim que ela é para ele uma Realidade essencial divina. Para ele, a Realidade essencial absoluta (absolutes wesen) é Deus, ou de uma maneira mais geral, o Divino. Temos, então, que a interpretação dita “a-teista” ⎯ mas que é uma interpretação dualista ⎯ leva a entender que, falando da Realidade essencial do ponto de vista da Consciência do exterior ⎯ como está na passagem em epígrafe ⎯ Hegel deveu falar da atitude que toma o Homem a respeito do seu Deus: ele deveu falar da Religião. Hegel falava não que há Espírito outro que não o humano, mas falava da Religião no sentido mais amplo do termo, como realidade autônoma oposta ao Homem, que então ali vê Deus. Em conseqüência, os críticos reconhecem que a primeira parte da interpretação dita “teísta” estava certa, que a “Realidade essencial absoluta” aparece na passagem como significando Deus — mas, para Alexandre Kojévè, isto não leva a concluir que para Hegel há um Deus que se revela a ele mesmo pelas diferentes religiões e nas diferentes Religiões que ele engendra nas consciências humanas no curso da História. Pelo contrário. Há que tomar as palavras “Religião” e “Realidade essencial absoluta” no sentido que lhes dá um “ateu” ⎯ ou que lhes deu Feuerbach ⎯ isto é, como Espírito humano que se revela a ele mesmo. Portanto, segundo a Crítica Dualista desenvolvida por Alexandre Kojévè, na segunda parte da passagem em epígrafe, lê-se que se trata da “Realidade essencial absoluta tomada em e para si mesma”. Ou seja, se não há Espírito outro que não seja o Espírito humano, então, na passagem em epígrafe, é questão do Homem como tal, do Homem coletivo vivendo no Mundo ⎯ “Espírito do Mundo” (Weltgeist); “EspíProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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rito do Povo” (Wolksgeist); enfim, o Estado (Staat). Porém, aqui, não se trata mais do ponto de vista da Consciência do Exterior, do indivíduo que se opõe ao Estado e o vê desde fora. É questão da Consciência de si do Espírito (Selbstbewusstsein der Geistes) ou do Espírito que se compreende ele mesmo como tal e não somente na e pelas atitudes dos indivíduos a respeito dele. Só que, para Hegel, esta autocompreensão do Espírito ou do Espírito do Povo se efetua na e pela Religião (no sentido amplo de realidade autônoma oposta ao Homem que ali, então, vê Deus). Será, portanto, questão do conteúdo do saber religioso, quer dizer da teologia. *** Quinta Seqüência Na Fenomenologia do Espírito, os temas religiosos se mostram revestidos pelo enfoque do Mito, da Antropologia inconsciente, simbólica, de que a evolução teológica seria o material. Em face deste enfoque do Mito, a questão a ser verificada e que está na base do vir a ser da Antropologia universalista é a da atitude existencial do indivíduo humano a respeito da Realidade essencial absoluta que ele considera como sendo outra coisa que não ele mesmo, ou seja, a atitude em que prevalece a consciência exterior. Neste ponto encontramos mais uma complexidade. Já vimos que, por efeito da síntese entre a Filosofia e a Teologia, o pensamento religioso é um “Espírito Materializado” que cria formas concretas espirituais (Gestalten als Geister) as quais, na abordagem de Hegel como fenomenólogo, configuram manifestações espirituais de conteúdo antropológico e forma teológica. Então, a interpretação dita “a-téia” ou “a-teísta” ao invés de desembocar num impasse, já que estabelece que a autocompreensão do Espírito do Povo se dá através do conteúdo da teologia, encontra aqui sua confirmação, pois, em fato, aquele conteúdo é um conteúdo antropológico. Há então, uma confluência entre a abordagem de Hegel como fenomenólogo e a interpretação “a-téia” ou “a-teísta” do Capítulo VII. Com efeito, nesta interpretação fica claro que a síntese da Filosofia e da Religião é tornada possível pela hipótese de realidade do Estado absoluto e que a possibilidade objetiva dessa síntese é a Ciência Hegeliana. Quer dizer: no momento em que o Estado for uma “integração universal de ações particulares”, onde a ação de cada um é a de todos e inversamente, o Homem verá que a Realidade essencial absoluta é também a sua própria. De um só golpe ela deixará de ser oposta a ele, ela cessará de ser divina. Ele a conhecerá não em uma Teologia, mas por uma Antropologia. E esta mesma Antropologia lhe revelará também sua própria realidade essencial: ela substituirá não somente a Religião, mas ainda a Filosofia. Na interpretação “a-téia” ou “ateísta” se insiste, portanto que Hegel fala de Religião em um sentido definitivamente muito ampliado, que torna incompatível a interpretação contrária. Desta maneira a fala de Hegel naquela ora discutida passagem inicial da Introdução do Capítulo VII, deve ser reportada às passagens em que, falando na suposição de uma Religião Greco-romana, ele fala menos Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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de Teologia Pagã e mais de arte antiga. Ou seja, o que a interpretação “ateísta” tem em vista é fazer ressaltar que, na “Fenomenologia do Espírito”, se expressa o processus remarcadamente geral de evolução da antropologia inconsciente, simbólica, mítica, de tal maneira que se vê ali o Homem falar dele mesmo crendo falar de outra coisa. Trata-se do Mito no sentido próprio do termo, e esse Mito é tanto arte quanto teologia. É, portanto, a Religião e a Arte (primitiva e antiga) que revelam ao Homem sua Realidade Universal (social, política) enquanto que a Realidade Particular (privada) do indivíduo se revela a ele pela Filosofia e na Filosofia, no sentido estrito da palavra. Seja como for, podemos ver que a interpretação “ateísta” mostra a teoria do erro na função simbólica, pela qual a Religião aparece como um erro que deve ser superado ⎯ estando aqui a dualidade desta interpretação ⎯ sendo compreendido paralelamente a este suposto erro ou até mesmo como seu aspecto não errático, o vir a ser da Antropologia universalista ⎯ síntese da Filosofia e da Teologia ⎯ figurando a alternativa que substituirá a Religião autosuprimida na hipótese de realidade do Estado absoluto, estabelecendo a Ciência Hegeliana. Quer dizer que os temas religiosos se mostram revestidos pelo enfoque do Mito, da Antropologia inconsciente, simbólica, de que a evolução teológica seria o material. Em face deste enfoque do Mito, a questão a ser verificada e que está na base do vir a ser da Antropologia universalista é a da atitude existencial do indivíduo humano a respeito da Realidade essencial absoluta que ele considera como sendo outra coisa que não ele mesmo, ou seja, a atitude em que prevalece a consciência exterior. * Como se sabe, essa noção de “Realidade essencial” (Wesen) apareceu pela primeira vez na “Fenomenologia do Espírito” lá onde foi questão do Entendimento e da Ciência “vulgar”, notadamente da Física newtoniana. A passagem textual em que Hegel ele mesmo faz um resumo do que ele havia dito é a seguinte: “Já a Consciência do Exterior, na medida em que ela é Entendimento, vem a ser Consciência exterior do Supra-sensível, quer dizer do Interno ou Íntimo da existência empírica objetiva ou coisista. Mas o Supra-sensível, o Eterno, pouco importa o nome que se lhe dê, é privado do Eu-pessoal (Selbstlos). Não é senão a entidade universal que é ainda muito longe de ser o Espírito que se conhece como Espírito” (“Ph.des G.”, p.435; 1.11-16; apud A.Kojévè, op. cit). Entramos então na reflexão da atitude existencial no plano do Entendimento, que é criador das noções abstratas (Verstand). No primeiro momento, o Homem do Entendimento (abstrato) vê a Realidade essencial como supra-sensível por trás do fenômeno do Mundo sensível. Ela está não somente acima desse Mundo, mas é também supra-humana, aparecendolhe como outra coisa que não ele. Há então um paralelo na própria condição desse Homem do Entendimento, porque essa Realidade essencial tida por supra-humana corresponde para ele ⎯ no seu íntimo, como existência empírica objetiva ou coisista, isto é, como Escravo ⎯ à Realidade essencial de um Mundo pertencente a um outro que não ele, o Senhor dominante. E o fato dessa correspondência que está na origem da noção de Realidade essencial se reflete, então, na determinação de seu conteúdo, de tal sorte que a Realidade essencial fica assimilada, para o Escravo, como uma espéProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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cie de Senhor todo poderoso; um Deus que cria, ou pelo menos, domina o Mundo sensível. Daí que, no processus de determinação desse conteúdo, a Física newtoniana das forças e das leis tenha por complemento necessário uma Teologia transcendentalista, da mesma maneira em que, inversamente, esta Teologia engendra uma interpretação mecanista do Mundo. Agora, ocorre que este processus de determinação do conteúdo da Realidade essencial, à medida que se desenrola no plano das noções abstratas, é limitado exatamente a essas noções abstratas ou não representativas. O Entendimento por ele só não se eleva a uma Teologia propriamente dita ⎯ não chega à concepção de um Deus-pessoa. Ele não constitui senão os quadros conceituais nos quais vai se situar o conteúdo propriamente teológico. Mas esse conteúdo deve vir de outra instância. Temos, então, que os quadros conceituais do pensamento religioso restam vagos e que o Entendimento, situando a Religião em seus quadros (vagos, abstratos) mostra a esta como uma força irresistível e uma lei implacável. Tal a teoria (compreensão) dos quadros conceituais do pensamento religioso. Sua formulação deve ter em conta que, no plano do Entendimento ⎯ e malgrado a Consciência exterior do Escravo ⎯ a Realidade essencial é a do Mundo natural, do não-Eu. Essa Realidade essencial será, então, também um nãoEu. Ela não será um Eu supra-sensível, uma Realidade essencial consciente dela mesma, ela não será um Espírito (Geist). Nada obstante, aquilo que se disser do Espírito divino ou transcendente, como sendo em face do Homem uma força irresistível e uma lei implacável virá se colocar nos quadros conceituais do pensamento religioso ainda vagos, formados pela noção do supra-sensível transcendente (o Senhor) elaborado pelo Entendimento do Escravo. Tal o processus de determinação do conteúdo da Realidade essencial no plano do Entendimento. Quer dizer, Hegel descreveu a atitude-típica existencial que o indivíduo humano toma a respeito da Realidade essencial que ele opõe a ele mesmo, na medida em que esta atitude é puramente cognitiva, contemplativa. Ele descreveu os quadros de toda teologia compreendida como conhecimento. Entretanto, para preencher esses quadros com um conteúdo teológico, para transformar o “wesen” abstrato em Espírito divino consciente de si (Deus-pessoal) é preciso ter o recurso de outra coisa ainda a mais do Entendimento e da atitude contemplativa ou cognitiva em geral. Para compreender a origem da Teologia é preciso analisar não somente o pensamento, a noção, mas ainda o sentimento da transcendência. * Entramos, então, no segundo momento da reflexão da atitude existencial, em que o Homem vai se elevando em direção à sua Individualidade. A análise da atitude cognitiva que o Particular tem diante da Realidade essencial deve ser completada por uma análise de sua atitude emocional. É preciso descobrir não somente os quadros de todo o pensamento teológico, mas ainda os quadros mesmos de toda a psicologia religiosa. O texto resumo de Hegel é o seguinte: “Em seguida, a Consciência de si, que tinha sua perfeição e seu acabamento na forma-concreta (Gestalt) da Consciência Infeliz, era somente a dor do Espírito que, de novo, faz esforços para elevar-se à objetividadecoisista, mas que não a alcança. Por conseqüência, a união da Consciência de si particular e de sua Realidade essencial imutável, à qual se conduz es-

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ta consciência de si, resta um Mais-além desta última” (“Ph. des G.”, p.473, 1.16-22; apud A.Kojévè, op.cit.). Como é sabido, a Consciência Infeliz ou “insatisfeita” (Malheureuse) é a Consciência Cristã; é a psicologia do Cristão (o Cristão é para Hegel o tipo mais perfeito do religioso). A descrição dessa psicologia ressalta, para começar, que o cristão quer se objetivar, realizar seu ideal, que, enquanto não é realizado se revela a ele no sentimento da insuficiência, da dor. Mas, enquanto ele resta religioso, ele não chega lá. Com efeito, o que é realizar seu ideal, objetivar seu ideal senão fazê-lo reconhecer pelos outros, por todos os outros? Dito de outro modo é realizar a Individualidade, a síntese do Particular e do Universal. E é precisamente esta individualidade que o Cristão procura no seu sentimento religioso. Se ele imagina uma divindade e se refere a um Deus, a uma realidade exterior absoluta, é porque ele quer ser reconhecido por ele, ser reconhecido pelo Universal na sua particularidade a mais particular. Só que ele não chega lá. O Homem imagina Deus porque ele quer se objetivar. E ele imagina um Deus transcendente porque ele não chega a se objetivar no Mundo. Mas querer realizar a Individualidade por união com um Deus transcendente é realizá-lo no transcendente, no Mais-além do Mundo (Jenseits) e de si mesmo, tomado como consciência do exterior, como Vivente no Mundo. É então renunciar à realização do ideal no aqui-em-baixo. É por seqüência, ser e se saber infeliz neste Mundo. Dito por outro modo, vê-se que, por um lado a atitude emocional religiosa nasce do sentimento da dor causada pela experiência da impossibilidade de se realizar neste Mundo; ela engendra e alimenta, por outro lado, este sentimento. E é essa nostalgia que se projeta no Maisalém, que preenche com um conteúdo teológico os quadros da transcendência do plano do Entendimento (quadros vagos, abstratos), situando aí a imagem de um Deus pessoal, de uma realidade consciente dela mesma, de um Espírito que, em fato, não é senão a projeção no Mais-além da infelicidade, do sofrimento da Consciência religiosa. Então, nutrir, cultivar a nostalgia, o sentimento doloroso da insuficiência da realidade que se vive, é se encontrar na atitude religiosa, ou até cristã. Inversamente, se colocar nessa atitude, é alimentar e cultivar a infelicidade ou sofrimento e a nostalgia. Escapar à psicologia religiosa é então suprimir a desgraça da Consciência, o sentimento de insuficiência. * Neste ponto, o vir-a-ser da Antropologia Universalista, o antropo-teísmo de Hegel como possibilidade objetiva ⎯ como ponto de vista de uma consciência não representativa ou de uma “intenção” inconsciente impulsionando eficazmente a evolução teológica exterior ⎯ encontra-se ressaltado pela aproximação entre o Século das Luzes e as filosofias alemães préhegelianas. Os quadros da Teologia transcendentalista, elaborados no plano das noções abstratas (não-representativas) pelo Entendimento (Verstand) e preenchidos de um conteúdo positivo pela Consciência Infeliz são de novo esvaziados pela crítica do século XVIII. A hipótese de realidade do Estado absoluto é interveniente aqui, de tal sorte que esses quadros eles mesmos já vagos, quer dizer a noção mesma de transcendência, são suprimidos. Portanto, a atitude existencial dá lugar ao Homem como aquele que sabe que é ele e não Deus que é a Realidade essencial do Mundo. Tal o vir-a-ser da Antropologia Universalista de Hegel. Todavia, esse plano não passa de uma possibilidade objetiva enquanto o Homem não se dá Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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conta da hipótese de realidade do Estado absoluto, como sendo o Estado de verdade. Então, o Homem continua ainda (com Kant, com Fichte) a falar de Deus, embora, em fato, ele não se interesse mais senão a ele mesmo, e sua teologia é assim essencialmente contraditória e impossível. É desta Religião ou pseudo-Religião da Moralidade (Moralitat), quer dizer da filosofia dita pós-revolucionária alemã, que Hegel nos fala no texto seguinte (Ph.G.p.474,1.29-37): “Enfim, na Religião da Moral refletida se restabeleceu a situação na qual a Realidade-essencial absoluta é um conteúdo positivo. Mas esse conteúdo positivo é unido à Negatividade do Século das Luzes. Esse conteúdo é um Ser dado (Sein), que é igualmente retomado no Eu-pessoal e que aí resta enclausurado; e é um conteúdo distinguido ou diferenciado, cujas partes são negadas de uma maneira tão imediata quanto elas são postas. Quanto ao Destino no qual naufraga esse movimento dialético contraditório e contradizente, é o Eu-pessoal que toma consciência dele mesmo como do que é o Destino da Realidade essencial (Wesenheit) e da Realidade objetiva” (“Ph. des G.”, p.474,1.29-37; apud A. Kojévè, op.cit.). Como se sabe, em fato, nas filosofias alemães pós-revolucionárias, o Homem é já posto no lugar de Deus. Mas esta nova concepção dita “a-téia” do Homem é ainda introduzida nos quadros cristãos teístas. Daí uma contradição perpétua: a negação do que é posto, a re-posição do que se negou. E o “Destino” desse a-teísmo inconsciente é o antropo-teísmo de Hegel, sua deificação do Homem. Homem esse que, pela hipótese de realidade do Estado Napoleônico, pudera então dizer de si mesmo tudo o que ele atribuía aos diversos Deuses – tidos agora por inexistentes ou como existindo somente no pensamento semi-consciente dos Homens de ação. Desta sorte, e empregando juntamente com Hegel um termo da moral do paganismo, temos que o “Destino” da pseudo-religião dos filósofos alemães ditos pós-revolucionários, assim como o Destino de todas as Religiões em geral, é o Eu-pessoal humano (Selbst) que se sabe ser ⎯ e que, pela hipótese de realidade do Estado absoluto, “é” ⎯ o Destino da Realidade essencial e da Realidade objetiva. Sem dúvida, não deixa de ser significante que Hegel faça sua análise em termos míticos de “Destino” ao tratar o tema do papel da Religião na história da humanidade, da Religião propriamente dita, no sentido estrito da atitude referida a um Deus transcendente. É que, como vimos não se trata ainda aqui do conteúdo das doutrinas teológicas elas-mesmas, das figuras evolutivas do saber religioso, mas antes, das relações entre estas doutrinas e os Particulares. Daí a importância dada ao paganismo ⎯ como “religião” dos Particulares ⎯ ao falar da Religião do Iluminismo, como se quisesse associar a este com o paganismo que surge do Mundo da moral costumeira, como a fé na noite desconhecida e aterradora do Destino e nas Eumenidas do Espírito separado ou falecido. Associação esta tanto mais notada quanto o Destino do Paganismo é o Cristianismo ⎯ cujos quadros o Iluminismo torna esvaziados. E sobre o Cristianismo como a Religião do Mundo burguês cristão, nascido sob o paganismo, Hegel oferece a seguinte passagem: “Esta fé no nada da necessidade do Destino e no Reino subterrâneo vem a ser a fé no Céu, porque o Eu-pessoal separado ou falecido deve se unir à sua Universalidade, desenvolver e ostentar nela o que ele contém e tornarProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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se assim claro a ele mesmo. Mas nós vimos que este Reino da fé não desenvolvia seu conteúdo senão no elemento do pensamento – sem o conceito (Begriff); e é por isso que nós o vimos obscurecer no seu Destino – à saber : na Religião do Século das Luzes. Nesta Religião do Iluminismo(Aufklãrung), o Mais-Além supra-sensível do Entendimento se constitui de novo, mas de tal sorte que a Consciência de si se apóia, estando satisfeita, no aqui-em-baixo, e não vê no Mais-Além supra-sensível, agora vago e do qual se pode então igualmente pouco conhecer quanto pouco temer, nem um Eu-pessoal nem uma Potência (Macht)” (“Ph. des G.”, p.477,1.1528; apud A. Kojévè, op.cit.). E o Destino do Cristianismo é o antropo-teísmo hegeliano, de que o Iluminismo fora a preparação. E esse momento do vir a ser da Antropologia universalista em que já se atingiu o ponto de vista da Ciência Hegeliana, se esclarece ⎯ inclusive sob o aspecto da teoria do erro na função da Religião levando à concepção dos quadros conceituais do pensamento religioso como sendo vagos ⎯ se tivermos em conta as observações de que o Espírito que se manifesta nas Religiões, o Espírito do qual é questão nas Teologias, é também um Espírito que se conhece ele mesmo, e que a Teologia é uma Consciência de si do Espírito. Na expressão mesma de Hegel temos a seguinte frase: “Na Religião, o Espírito que se conhece ele mesmo é de uma maneira imediata a sua própria consciência de si pura”. Então, podemos dizer que, na Teologia, o Espírito é consciente de si “emsi” e não “para-si”. Quer dizer: é somente em fato que ele toma consciência de si, porque em fato não há outro Espírito senão o Espírito humano. E “em-si” (an sich) significa também para-nós (fur uns); e “Nós” (Hegel e seus leitores) é que sabemos que toda Teologia não é em fato senão uma Antropologia. Aliás, é esse procedimento de Hegel introduzindo uma reciprocidade (do em-si e do para-nós) na forma mesma do Espírito ⎯ isto é na realidade humana ⎯ que a Crítica Dualista opera em sua compreensão da complementaridade entre as interpretações “teísta” e “a-teísta”. Reciprocidade esta tanto mais eficaz se tivermos em conta que o Homem que faz Teologia não sabe que toda Teologia não é em fato senão Antropologia ⎯seus quadros conceituais restando vagos. Ele crê falar de Deus, de um Espírito outro que não o Espírito Humano. Sua consciência de si não é então, para-si Consciência de si; para ele, ela é somente consciência de uma entidade exterior ao Homem, de um Mais-além, de uma divindade transcendente, extra-mundana, supra-humana. Enfim, é isso que caracteriza toda Teologia qualquer que ela seja. A diferença aparece então como inscrita na forma plástica concreta ela mesma, de tal sorte que o Espírito na dimensão da Consciência exterior não se reconhece no seu Mundo, no Mundo em que toma Consciência de si. É o que Hegel nos diz na seguinte passagem: “As formas concretas (Gestalten) do Espírito que foram consideradas ⎯ a saber: o Espírito verdadeiro ou verídico (correspondendo ao paganismo); o Espírito alienado ou tornado estranho a ele-mesmo (correspondendo ao Cristianismo); e o Espírito subjetivamente certo dele mesmo (correspondendo à pseudo-Religião da Filosofia e da Teologia Protestante alemães Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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pós-revolucionárias) – constituem no seu conjunto o Espírito na Consciência exterior, Consciência esta que, se opondo ao seu Mundo, não se reconhece nele” (“Ph. des G.”, p.474,1.39 e p.475,1.3; apud A. Kojévè, op.cit.). Por todo lado, então, onde há teologia há incompreensão, mal entendido pelo lado do homem: o Homem que vive no Mundo toma de qualquer maneira inconscientemente consciência de si, crendo tomar consciência de um ser espiritual extra-mundano e supra-humano. É o conjunto de todas as Teologias imaginadas pelo Homem no curso da História que constitui o Espírito na sua Consciência do Exterior (Bewusstsein), quer dizer o Espírito que, em fato, toma Consciência de si crendo tomar consciência de outra coisa que não ele mesmo. Este Espírito se opõe ao Mundo real e ao Espírito que é neste Mundo, quer dizer, ao Homem, e ele não se reconhece aí mais. É deste Espírito que será questão em Hegel, ou seja, da Antropologia que se apresenta sob a forma de uma Teologia. Portanto, mais do que uma dualidade, há dualismo na Fenomenologia de Hegel. E esse dualismo é recorrente até a síntese imposta pelo totalismo do Saber de verdade, absoluto. A análise da Filosofia já é feita então na perspectiva dessa síntese hegeliana. Daí que Hegel a chama de “Moralitat”, quer dizer, Filosofia ainda teológica e Teologia já filosófica, notando que a transformação da Teologia em Filosofia já é anunciada. Ao identificar aqui o terceiro grande período histórico ⎯ que vem depois do período teológico que sucede às religiões naturais ⎯, Hegel mostra que sua Antropologia consciente e “a-téia” aparece como o resultado necessário da evolução dialética deste período da “Moralitat”. O texto que se refere a isto é o seguinte: “Mas, na Consciência-moral (Gewissen), o Espírito se submete tanto seu Mundo objetivo ou coisista quanto sua representação e seus conceitos determinados, e ele é agora Consciência de si existente nela mesma. Nesta Consciência de si, o Espírito, representado como objeto ou coisista, tem para ele mesmo a significação ou valor de ser o Espírito universal, que contém em si toda a Realidade essencial e toda a Realidade objetiva. Mas este Espírito não é na forma da Realidade objetiva livre ou autônoma, quer dizer, ele não é na forma da Natureza aparecendo independentemente do Espírito. Por certo, na medida em que o Espírito é o objeto coisista de sua Consciência-exterior, ele tem uma forma concreta (Gestalt), quer dizer a forma do Ser dado (Sein). Mas posto que na Religião a Consciência exterior é posta na determinação essencial de ser Consciência de si, a forma concreta do Espírito é perfeitamente transparente para ela mesma. E a Realidade objetiva que contém este Espírito é enclausurada nele, quer dizer suprimida dialeticamente nele precisamente da maneira em que isto tem lugar logo que nós dizemos: toda a Realidade objetiva; esta Realidade objetivo é então a Realidade objetiva universal pensada” (“Ph. des G.”, p.475, 1.3-18; apud A. Kojévè, op.cit.). Portanto, esse texto sobre a “Moralitat” nos mostra ⎯ segundo a Crítica Dualista ⎯ a aproximação entre os pensadores alemães. Por um lado, os chamados poetas românticos (Schelling, Jacob, e até Kant) que, no enfoque da Antropologia hegeliana como necessária, nos aparecem como divinizando, em fato, o homem. Para eles, o homem é o valor supremo, ele é absolutamente autônomo. Por outro lado, para os pensadores identificados Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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à Teologia, Deus não tem sentido e realidade senão na medida em que ele se revela no e pelo homem, a religião se reduzindo à psicologia religiosa. Não obstante essa atitude de valorização do homem, todos esses pensadores continuavam a falar de Deus. Isto porque eles não chegavam a identificar o Homem do qual eles falavam com o homem real, consciente, que vive no Mundo. Eles falavam da “alma”, do “Espírito”, do “sujeito cognoscente”, etc. e não do Homem Vivente, real tangível. Eles opunham — como todos os intelectuais burgueses do Mundo Cristão concebido por Hegel — o Homem ideal, que vive no e por seu arrazoamento, ao Homem real, que vive na e por sua ação no Mundo. Eles são então ainda Cristãos: separam o Homem em dois e fogem do real. E esse dualismo idealista reveste necessariamente uma forma teísta: a alma oposta ao corpo; Mundo empírico por oposição a um Espírito “puro”, supra-sensível — por oposição a um Deus. Então o Homem se atribui um valor supremo, mas não ousa aceitar este Mundo como um ideal. Quer dizer que ele atribui um valor não a ele como vivente, como agente no Mundo concreto, mas o atribui ao que há de extra-mundano ou de puramente mental nele. Tal o enfoque da Antropologia hegeliana como necessária. A conclusão é que, na Moralitat, há uma recusa — proveniente da atitude do Escravo, no sentido notado pela interpretação a-teísta anteriormente observada — recusa a aceitar o Mundo real; o desejo de fugir no ideal-extra-mundano, que é a base de toda a Religião e de toda a Teologia. *** Sexta Seqüência A Crítica está a nos dizer que, na Fenomenologia de Hegel, a Religião nasce do dualismo, da separação entre o ideal e a realidade, entre a idéia que o homem se faz dele mesmo - seu Si (“Selbst”) – e sua vida consciente no mundo empírico — seu “Da-sein” (“seraí”, ser no mundo). Enquanto essa separação subsistir, haverá sempre tendência a projetar o ideal para fora do Mundo, quer dizer que haverá sempre Religião, teísmo, Teologia. Seja como for, se é correto que o dualismo constitui o ponto de partida da Ciência hegeliana, será exatamente por motivo de repelir esse dualismo que Hegel opera uma teoria do erro na função histórica da Religião e do pensamento religioso, erro tido como devendo ser superado, produzindose aqui, ao operar a compreensão dessa teoria, como a atitude identificada na interpretação dita “a-teísta”, a própria abordagem de Hegel como fenomenólogo. Quer dizer, o dualismo tem dupla função no pensamento de Hegel e leva tanto ao totalismo do saber absoluto quanto à fenomenologia da religião, ambos caracterizando a dualidade desse pensamento, sua dupla orientação, místico-racional e idealista-sistemática. Portanto, não é sem procedência que podemos notar as formulações da Crítica Dualista a qual, entretanto, sublinha o alcance da interpretação “a-teísta”, como a atitude intermediária nessas duas orientações. Temos, então, o dualismo entre o ideal — a imagem ideal que o eu-mental faz do próprio eu-mental Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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— e a realidade — a que o eu-mental afirma ser ou pertencer — que está na base do dualismo entre o Mundo e o Homem no Mundo, por um lado e, por outro lado, Deus e o Mais-além. Segundo a Crítica Dualista, é a objetivação desse dualismo pelo pensamento teológico e no pensamento teológico que Hegel vai estudar no Capítulo VII da “Ph. des G.” Ele tenta mostrar como a evolução das Religiões — a antropomorfização de Deus — anula pouco a pouco esse dualismo e finaliza no “a-teísmo” pós-revolucionário, como a outra face da hipótese de realidade do Estado absoluto, igualando ideal humano e realidade humana, realizando o ideal no Mundo. Com isso, a Crítica está a nos dizer que, na Fenomenologia de Hegel, a Religião nasce do dualismo, da separação entre o ideal e a realidade, entre a idéia que o homem se faz dele mesmo - seu “Si” (Selbst) - e sua vida consciente no mundo empírico — seu “Da-sein” (“ser-aí”, ser jogado no mundo). Enquanto essa separação subsistir, haverá sempre tendência a projetar o ideal para fora do Mundo, quer dizer que haverá sempre Religião, teísmo, Teologia. Inversamente, em toda a Religião há um reflexo desse dualismo: por um lado, no pensamento religioso, na Teologia, que sempre opõe o Divino ao mundano e humano; por outro lado, há uma dualidade na realidade religiosa mesmo. Como a Religião não engloba jamais a totalidade da existência humana, a existência religiosa se desenrola ao lado do “Da-sein”, ao lado (à margem) da vida no mundo concreto, e o religioso é sempre mais ou menos um monge destacado do mundo, distanciado do Século. Nada obstante, nota-se que a teoria do erro na função histórica da Religião, como erro devendo ser superado, está articulada na fórmula do hegelianismo de que a hipótese de realidade do Estado absoluto supõe a realização da Religião no Mundo, pelo que a mesma se suprime como Religião. O raciocínio hegeliano seria de que o dualismo encontrado na base da Religião e engendrado por ela é, no fim das contas, ilusório, pois o ideal não realizado e sua subseqüente transposição em Deus não existem, de tal sorte que o dualismo não pode se manter eternamente, senão ele seria real. Em conseqüência, temos, por um lado, que a Religião é então um fenômeno passageiro: no momento em que o ideal é realizado, o dualismo desaparece e com ele a Religião e o teísmo..., chegando-se, então, à Ciência Hegeliana. Por outro lado, e com anterioridade relativamente à hipótese de realidade do Estado, se o dualismo é ilusório, então vê-se confirmado que os quadros conceituais do pensamento religioso permanecem vagos, apenas desprovidos de conteúdo divino e não assimiláveis ao Estado. E disso não saímos — a menos de nos reconciliarmos com o Hegel pensador do Estado da Restauração, que é bem diferente do Hegel fenomenólogo. E essa diferença que penetra a “Fenomenologia do Espírito” por todos os lados — o ponto de vista da antropologização, de que nos falou Feuerbach (∗) —, como a diferença específica da qual são correlatos os quadros conceituais do pensamento religioso, aparece inscrita na forma plástica concreta ela mesma, quer dizer na essência universal do culto e de suas formas particulares. Daí que o religioso viva afastado do Mundo, a vacuidade dos quadros do pensamento a que se identifica revela a visão da diferença, como atividade não representativa do Espírito na dimensão da Consciência exterior, que não se reconhece no seu mundo, no mundo em que toma consciência de si. Essa visão da diferença é que, em aparente (∗) Ver adiante as Notas Complementares, em especial a Nota 02.

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paradoxo, configura a abertura para o conhecimento, quer dizer, constitui o elemento simbólico do mito, como a manifestação exterior da Religião (espírito materializado), com a mesma visão da diferença se operacionalizando em visão de uma evolução antropológica da Religião. Como vimos Hegel enclausura essa “visão de evolução” sob a hipótese de realidade do Estado absoluto, o Estado da Restauração, de tal sorte que essa evolução passa a ter, à maneira dos mitos do Mundo Grego, um Destino, o qual lhe aparece como a supressão da oposição entre a consciência exterior e a consciência de si, a supressão da transcendência — tirando-se daí, em contrapartida, a concepção de que o saber terá como referência sua instrumentação em face das situações históricas. Nada obstante, como visão da diferença, essa “visão de evolução antropológica” implica o “vazio ávido” do qual será questão na sua análise da religião da arte levando a superar o desejo biológico, bem como na sua teoria da insuficiência do deleite artístico, pelas quais Hegel estabelece uma ponte para a filosofia da arte, para a Estética filosófica, de que trataremos na Segunda Parte deste ensaio. *** Fim da Primeira Parte

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A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC

SEGUNDA PARTE: A FENOMENOLOGIA DO MITO

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A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC SEGUNDA PARTE: A FENOMENOLOGIA DO MITO

Segundo Ernst CASSIRER a compreensão do elemento simbólico do mito já está no Prefácio da Die Phaenomenologie des Geistes (“Ph. des G.”), em que, definindo a conexão entre a ciência (hegeliana, filosófica) e a consciência sensível, Hegel estabelece a problemática geral estrutural que se aplica à conexão do conhecimento e da consciência mítica, pois “o ponto de partida autêntico de todo vir-a-ser da ciência, o elemento imediato que está na sua origem, se encontra menos na esfera sensível que na intuição mítica” (∗). Com efeito, Hegel escreve que: “O espírito que se sabe desenvolvido como espírito é a Ciência. Ela é sua realidade efetiva e o reino que (o espírito) se constrói no seu próprio elemento. (...) O começo da filosofia pressupõe ou exige que a consciência se encontre nesse elemento. Mas esse elemento recebe sua perfeição e seu caráter de transparência somente mediante o movimento de seu vir a ser. Ele é a pura espiritualidade, como o universal que tem o modo da simples imediatez.(...) Por seu lado, a Ciência reclama da consciência de si que seja elevada a esse éter para que possa viver nela e com ela, e para que viva. Inversamente, o indivíduo tem o direito de exigir que a Ciência lhe conceda ao menos a escala que o conduz a esse cume, e a indique a ele nele mesmo. (...) Se o ponto de vista da consciência — consistindo em um saber das coisas objetivas em oposição a ela e em um saber de si mesmo em oposição a essas coisas — vale para a Ciência como o Outro — aquilo em que a consciência se sabe perto de si mesma, primeiro do que (se sabe) como a perda do espírito — inversamente, o elemento da Ciência é para a consciência um longínquo mais-além no qual ela não se possui mais a si mesma. Cada uma dessas duas partes parece constituir para a outra o inverso da verdade (...). Que a ciência seja nela mesma o que ela quererá, ela se apresenta na sua relação à consciência de si imediata como o inverso desta; ou ainda, sendo dado que essa consciência de si tem, na certeza de si mesma, o princípio de sua realidade efetiva, a Ciência, quando esse princípio para-si é fora dela, assume a forma da não-realidade efetiva. A Ciência deve então unificar um tal elemento com ela mesma, ou antes ela deve mostrar que esse elemento lhe pertence e o modo segundo o qual ele lhe pertence. Carecendo da realidade efetiva, a Ciência é somente o conteúdo como o em-si; ela é a meta (“le but”) que de início é só um interior, (∗) Cf. CASSIRER, Ernst: “La Philosophie des Formes Symboliques – La Penseé Mythique”, Paris, Les Editions de Minuit, 1972, 342 pp, (Versão do Alemão para a edição francesa por Jean Lacoste) ; p.11.

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ela não é como espírito, ela é de início como substância espiritual. Esse em-si deve se exteriorizar e deve vir a ser para-si mesmo, o que significa somente que esse em-si deve pôr a consciência de si como sendo uma com ele (...). O saber como ele é de início, ou espírito imediato, é o que é desprovido de atividade espiritual, a consciência sensível. Para elevar-se ao saber propriamente dito ou para engendrar o elemento da Ciência, que é para a Ciência seu puro conceito, esse saber deve percorrer penivelmente um longo caminho. (Hegel, ”Ph. des G.”, 1807, p.XXVIII sq.,apud E. Cassirer;cf. p.23 sq. da edição francesa.) Temos então que, do ponto de vista do elemento imediato que é na origem da Ciência, e antes da consciência de si aceder ao trabalho teórico sobre o dado que produz os elementos sensíveis dos diferentes domínios da percepção — que é chamado “Mundo da percepção” e que é constituído pela consciência sensível —, tal consciência de si continua a viver em meio às produções da consciência mítica, quer dizer em um mundo constituído não por coisas e suas propriedades, mas por potências e forças míticas, por figuras divinas e demoníacas. Por conseqüência, se a Ciência, em conformidade ao que demanda Hegel, deve pôr em evidência para a consciência natural a escala que conduz até ela própria, terá a mesma que adicionar um degrau nesta escala: não se pode compreender integralmente o desenvolvimento da Ciência — considerada em um sentido ideal, e não temporal — senão à condição de 1º.) mostrar como ela procede da esfera da imediatez mítica e se elabora a partir dela, e de 2º.) tornar inteligível a lei desse movimento — que para Hegel será a concepção instrumentalista do saber, como favorecendo a melhor adaptação a uma situação histórica particular. Quer dizer, a análise de estrutura espiritual do mito que leva ao seu conhecimento e ao seu reconhecimento, será feita por Hegel como análise da evolução do saber religioso, em que, todavia, cada figura evolutiva expressa um saber teológico — no sentido mais amplo do termo — tido como ajustado ou conformado à realidade de uma situação histórica particular (ou, pelo menos, como favorecendo essa adaptação do espírito). * Segundo a Crítica Dualista, a análise de Hegel nos coloca diante de diversas observações sobre as várias religiões “primitivas” ou que precederam logicamente (idealmente) ao cristianismo, notando o elemento do majestoso ou do sublime como caráter essencial que subsistirá em todas as religiões, ainda que esse elemento seja tornado inessencial. Segundo a Crítica Dualista, a análise de Hegel nos coloca diante de diversas observações sobre as várias religiões “primitivas” ou que precederam logicamente (idealmente) ao cristianismo, notando que, em relação à religião indo-iraniana da luz — que corresponderia ao Maná estudado nas sociedades arcaicas pelos etnólogos desde os finais do

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século XIX, o qual é desconhecido de Hegel (∗)— haveria um resumo do aspecto ontológico ou metafísico que Hegel faz do seu sistema, de tal sorte que as observações feitas aparecem como introdução geral à série dessas religiões naturais, já que essa religião da luz teria no elemento do majestoso ou do sublime um caráter essencial que subsistirá em todas as religiões, ainda que esse elemento seja tornado inessencial. Assim, retomando os pontos básicos das seqüências antropogênicas hegelianas, temos que o homem é aqui nesse estádio da religião da luz um “Eu dado” (Ich Reines): o desejo é ainda vazio de conteúdo e o homem ainda não agiu. Ele toma consciência do divino como ser simples natural, como qualquer coisa dada não modificável — por aí ele toma consciência de um aspecto dele mesmo como desejo, como qualquer coisa igualmente dada, natural. Só que esse ser dado é humanizado e tem a forma de um senhor (ser divinizado) só que senhor antes da luta (o futuro senhor do paganismo), portanto nada mais que manifestação do “homem do desejo não satisfeito” (o desejo satisfeito desaparece). Essa manifestação da religião natural como sublime mostra então que o homem toma consciência do divino porque é não somente consciência exterior (teologia), mas também consciência de si (antropologia). Na passagem dessa religião da luz ao totemismo, se alcança o estádio da satisfação natural do desejo, de tal sorte que é a luta ela mesma que é considerada, não a vitória que realiza o senhorio. Na passagem à religião egípcia aparece o trabalho como religião natural (aspecto biológico, físico), de tal sorte que importará somente o homem que trabalha e não o homem para quem se trabalha, não o Senhor. Se santifica o trabalho condicionado pelo dado, pelo mais urgente, pois se trabalha para não morrer de fome. É a atitude correspondente ao Entendimento. Segundo a Crítica Dualista, Hegel pensa em relação à religião dos egípcios que se manifesta sob a forma abstrata da pirâmide e do obelisco como coisas que não existem na natureza e que simbolizam por conseqüência o trabalho humano como racional, ou atividade que não se limita a reproduzir a natureza e realiza o que só existe no espírito humano. Santificar-se-á a linha reta, que é útil (a alavanca, etc.), e a ferramenta, que deve ser simples. A coisa vai se tornando mais complexa a cada progresso, e o homem se tornando superior ao Deus da etapa precedente — é progresso para o Cristianismo tanto quanto para o ateísmo (daí o sublime). Na passagem do estádio da religião egípcia para a “religião“ grega (religião no sentido mais amplo), tem-se como símbolo dessa passagem a esfinge, mas a esfinge que fala. O homem agora vai falar dos Deuses — mitologia — e vai falar aos Deuses — preces. A religião não é mais natural: o homem fala e o Deus se assemelha ao homem. A forma plástica concreta, como essência universal do culto ou essência divina, se torna consciência exterior (Bewusstsein), toma a aparência humana. Aparece o processus do trabalho em que, no começo, a matéria primeira domina, - com o “eidos” ou “essência eidética” do que será produto e produção restando em potência - para, no fim do processus, dar lugar à forma humana ou nãonatural, como o que é em ato. Quer dizer que é o homem como trabalhador intelectual que se põe em fato a falar dele mesmo acreditando falar dos Deuses. E o mundo desse saber, no qual o homem pode falar e não (∗) Como se sabe foi somente em 1891, com CODRINGTON, em sua célebre obra “Melanesians”, que o Maná foi objeto de descrição etnográfica completa e eficaz (cf.GURVITCH: “A Vocação...”, vol.II, op.cit, p.73).

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trabalhar pelo mais urgente é a Cité, é a Cidade grega. É o mundo do reconhecimento — os escravos reconhecem os senhores. Chega-se assim à religião artística ou religião da arte (kunst-religion) em que Hegel inclui o paganismo como religião dos senhores — os quais se distinguem pelo lazer, encontrando os produtos do escravo como sendo belos e os apreciando como estetas. Diviniza-se então o ser simples como beleza, separandoa de sua condição de obra humana. Quer dizer, os produtos são destacados do esforço da produção e, logo, do produtor. Continua-se a construir os templos, mas o que conta é a beleza do templo e é o homem que a aprecia (não o Deus para quem os templos são erguidos). A religião grega é a religião da arte porque é religião de classe (os senhores). É a classe dos senhores que se dá conta da beleza do trabalho do escravo. Mas a divisão em classes repousa sempre sobre um resto natural: o escravo trabalha para satisfazer as necessidades naturais do senhor. É por isso que toda classe tende sempre a se transformar em “casta” (hereditariedade). Surge, entretanto, uma questão: para que haja religião, é preciso que o homem se transcenda, é preciso que o homem e o cidadão não sejam idênticos — o cidadão como membro do Estado, o qual aparece na história com a Cidade grega e com a divisão não natural do trabalho, divisão em classes e não em castas como no Egito, compreendendo as classes dos senhores e dos servidores-escravos — enfim, é preciso que haja uma oposição entre o homem e seu mundo, que o homem seja um revoltado (a função do saber “religioso-mítico” sendo de favorecer a adaptação). A única figura capaz de objetivar o homem não-satisfeito ou em medida de se tornar um revoltado é aqui o senhor ocioso, de tal sorte que a religião só pode ser a sua religião — o senhor ou bem se embrutece no prazer, ou bem “trabalha” sem trabalhar, divinizando a arte. Para mostrar que o esteta aspira a uma religião, nos é dito pela análise hegeliana não só que há duas religiões no paganismo — a religião familial e a oficial — mas também que a religião oficial nasce do descontentamento do cidadão — estando o servidor-escravo à margem do paganismo, como religião artística, por estar fora do Estado, já que, nos gregos, a religião exprime o Estado. * Podemos então notar que a análise hegeliana distingue uma “teoria” da insuficiência do deleite artístico que pode provocar apenas a alegria, mas não a superação do desejo, pois a satisfação só acontece se o desejo se orienta não para uma coisa dada, mas para um outro desejo (“o vazio ávido”). É o desejo de tal reconhecimento, é a ação que decorre de tal desejo que cria, realiza e revela um “Eu humano — não biológico”. Podemos então notar que a análise hegeliana distingue uma “teoria” da insuficiência do deleite artístico. Essa teoria reflete certa disposição da Cidade grega, a qual repele para o ostracismo, para a natureza, aquele que quer impor sua particularidade à universalidade, ao Estado — sendo atribuída a essa disposição a dificuldade de compor uma síntese no paganismo. A essência do mundo da moral costumeira, de que procede a disposição observada, se revelando na e pela religião da arte, expõe uma dialética que desemboca no espírito subjetivamente certo dele mesmo, — compreendendo o proprietário de escravos, o senhor. Daí que, como esteta Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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subjetivamente certo dele mesmo e, portanto querendo impor sua particularidade, esse senhor esteta não consegue ser reconhecido como tal, nem pela massa urbana, nem pelos outros estetas — estando em obra a disposição da Cidade grega como contrária a essa pretensão do particular. Aí reside a insatisfação do esteta, que então chora a perda do seu mundo, e foge do mesmo, por não ousar mudá-lo a fim de torná-lo conforme ao seu ideal estético: e, ao fugir do mundo, ele evidencia o comportamento típico de quem aspira a uma religião. Segundo a análise hegeliana, admite-se, entretanto, que o deleite que produzem os produtos do trabalho de um outro poderia viabilizar a síntese entre o particular e o universal no paganismo. Na verdade, esse deleite estético pode provocar apenas a alegria, mas não a satisfação, não a superação do desejo, com a insuficiência acontecendo porque a ação mediadora do trabalho não é aqui a ação daquele que “desfruta”(∗). Então, o homem, não estando satisfeito pela obra de arte, pensará que ela foi feita para um outro, para um deus. Tal a conclusão de que o esteta aspira a uma religião e, portanto, que a religião oficial no paganismo é a religião da arte, favorecendo a adaptação do espírito que aspira. Segundo a análise hegeliana, são observados três estádios em relação à religião estética. Primeiro: o estádio da estátua e da arte representativa plástica. Aqui, o artista venera a natureza e crê na beleza — concebida como “Maná”, isto é, como símbolo da interação entre as trevas e a luz, símbolo posto entre o desejo vazio diante da natureza pura, abstrata. Corresponde também à epopéia, como descrição estática (não é teatro). Segundo: o estádio do hino, como expressão do coro. Corresponde à poesia lírica, como a luta no que ela tem de mais geral, antes mesmo da luta física: interação puramente verbal. A comunhão só se efetua pela palavra. Sua insuficiência é compensada no Terceiro estádio, quer dizer, no culto. Aqui a interação é mais real. A ação é repartida entre os participantes; há luta simbólica. É o estádio da construção do templo, pois o culto não pode se aplicar ao conjunto da vida real: a totalidade da existência humana não é santificada. O templo representa o universal e a estátua o particular, correspondendo à desarmonia entre a vida privada do senhor e o Estado pagão — sua vida como Cidadão. O templo grego é mais racional (ou mais “ateu”) do que as formas precedentes: se parece com uma habitação humana — nada de pirâmide ou obelisco. O estádio do templo se complica pela aparição das relações irracionais — quando o senhor se apercebe do seu engano relativamente à imagem que ele se fazia do cosmos, do mundo natural, como sendo já racional, como se essa racionalidade não resultasse do trabalho do escravo. Ao se aperceber disso, desse papel essencial do escravo, o senhor deixa transparecer a irracionalidade das relações senhor/escravo. Só o trabalho torna racional a natureza, quer dizer, humaniza-a, tornando-a conforme ao homem. Segundo a análise hegeliana, a insuficiência da arte plástica liga-se ao fato de que o artista, ao se fazer reconhecer apenas pela estátua imóvel e muda, não faz reconhecer sua atividade. Quer dizer, ele faz reconhecer a obra ela mesma e não sua produção, nem seu consumo. Seu deleite é assim abstrato, não é humano, porque o homem não é ser, é ação. O que é verdadeiramente humano é precisamente a produção e o consumo das obras de arte, não essas obras e(∗) Para Hegel a elevação acontece à medida que o desejo se orienta não para uma coisa dada, mas para um outro desejo (“o vazio ávido”). É o desejo de tal reconhecimento, é a ação que decorre de tal desejo que cria, realiza e revela um “Eu humano — não biológico”.

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las mesmas. No que concerne ao segundo estádio, em que aparece o hino como expressão do coro, destaca-se a importância da palavra, que tem dois aspectos: a) sua existência empírica como som e, b) sua existência não natural como sentido. Pela linguagem, a subjetividade é reconhecida por todos os outros. Mas esse reconhecimento pela compreensão verbal é imediato: tal sua insuficiência. Essa existência parcial reconhecida na linguagem poética tende então a se apresentar como “outro alheio a mim”. Quer dizer, a poesia tem tendência a se reaproximar do divino, a vir a ser religiosa: é o hino religioso. O deus do poeta tem sua atividade no interior dele mesmo; essa atividade é pura e abstrata, imediata: não será então um deus criador, será o deus “perfeito”, bastando-se a ele mesmo — os deuses de Epicuro. O hino como existência empírica corresponde à oração. No hino, o poeta fala aos deuses. No oráculo, o deus fala ao homem e dos homens. O oráculo se liga à religião natural e é a primeira forma de linguagem como “Logos”, na Terra. Mas ainda não é uma linguagem verdadeiramente humana. Ela não tem conteúdo universal, mas releva do dado e nada além do dado — quando é compreensível. O oráculo não sofre mudança, mas quem muda é a atitude daquele que se utiliza do mesmo (daí sua ligação com a religião natural e seu caráter conformista). Quanto ao terceiro estádio da religião artística, o culto é apresentado como síntese da estátua e do hino. É-nos dito que só há religião e culto quando há fuga, quer dizer, não satisfação pela ação. No culto, porque há ação simbólica, a transcendência é atenuada: o deus toma parte como o homem nesta ação do culto. Há então interação entre o homem e o deus — sendo a interação o elemento do trabalho. São três os elementos dialéticos do culto: 1) oração mística (=desejo); 2) sacrifício (=luta); 3) construção do templo (=trabalho). O culto nasce do hino e não da arte plástica. O elemento místico existe em todo culto, mas não lhe é essencial. O místico é ativista enquanto o poeta apenas mostra o objeto desejado, mas não quer consumilo: é um ato frustrado. A mística é uma atividade de estrutura ativa, já que há supressão do objeto e sua identificação ao sujeito — mas isso se passando no imaginário. * Em relação à religião judaica, a Critica Dualista ressalta que Hegel só trata disso em nota e não como assunto da “Ph. des G.”. Tal religião figura como a perfeição da religião natural. Não é uma religião identificada aos senhores (os que dispõem de ócio), pois o Estado dessa religião não era reconhecido com Estado. O judeu vive num mundo pré-político, mas não chega a se impor como povo guerreiro, portanto, não tem uma ligação totêmica com seu Deus. Ele retorna então ao estádio primitivo do DeusManá, do Um abstrato. Todavia, o raciocínio hegeliano nota que, por não conseguir se impor como povo guerreiro, o povo judeu configura a vitória de um povo sobre ele mesmo, pois seu deus houve por querer aquela derrota, seu deus é vencedor. Mas, o povo judeu é também um construtor de templos: temos então uma situação paradoxal de um Deus-Maná que age no trabalho. Segundo a análise hegeliana, o Deus bíblico sendo Um, sem concorrente, pode mudar sem tornar-se menos do que ele era; os deuses pagãos, pelo contrário, devem permanecer eles mesmos — “perfeitos” — ou então, são rebaixados. O Deus bíblico termina por ser uma perfeição que vem a ser — o que é incompreensível para a razão abstrata. Ele vem a ser o Deus cristão e se preserva sob essa forma porquanto dure a história. Segundo a Crítica Dualista, a importância desta nota sobre a religião judaiProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ca é que o hegelianismo se define por contraposição aos filósofos racionalistas exatamente por afirmar que se deve compreender a história como o vir a ser da verdade. Os outros se enganam ao crerem que eles podem só pela razão se elevar ao conhecimento da verdade (o que refuta a tese do “panlogismo” de Hegel). * Mas o exame do vir a ser no paganismo ainda não acabou. Há uma passagem da religião artística propriamente dita para a religião literária. É-nos dito que o mundo literário, como o novo mundo que sai da imperfeição do mundo esportivo — onde não há individualidade verdadeira ou integral (só o corpo é reconhecido) e, portanto, não há verdadeira satisfação — é um mundo que carece de realidade objetiva. É, entretanto um mundo religioso: o homem foge do mundo real construindo o mundo literário. Aliás, toda religião enseja um mundo literário, melhor, uma literatura, a qual aparece de início como sagrada, depois profana, mas se atribuindo sempre um valor supremo. Toda literatura é criadora de um mundo. O mundo literário pagão, que é religioso, nasce com a epopéia, vive na tragédia e morre com a comédia. Daí as três etapas dialéticas: 1) a epopéia: os quadros desse mundo; 2) a tragédia: o ator que age no interior desses quadros; 3) a comédia: o resultado da ação desse ator. A epopéia compreende a primeira união dos povos em uma nação para um fim comum: por exemplo, a guerra de Tróia. Essa unidade só é feita por exclusão: é “união contra...”. No mundo épico, há comando único, mas não governo único, o que se reflete no Panteão — corresponde ao estádio da sensação, não ainda o da percepção/tragédia ou do entendimento/comédia. Não há herói verdadeiro, não há um único ator. Quando este aparece, ele destruirá a união dos povos em uma nação: será a tragédia. Então, se manifestará de uma maneira aberta o conflito entre o universal e o particular, que é latente no mundo da “união sagrada”. O povo, agindo por meio de seus heróis e individualizado neles, serve de meio termo entre o Olimpo — representando o universal — e o canto épico, que encarna o particular. O cantor épico cria esse mundo, ele não o reproduz: não há realismo. Os deuses agem — este é um elemento novo em relação à religião artística, pois na arte o homem tomava consciência de si como existência empírica ou natural (ser simples), e agora, na literatura, ele toma consciência de si como ação. O herói épico vai destruir a calma da nação, sua pseudo-síntese — a união é apenas uma justaposição — e manifestar sua contradição interna: não é um Estado que preside à coalizão das nações; não é tal nação que é vitoriosa, mas as nações unidas. Então, a alternativa posta diante do herói leva ao fim do mundo épico: ou se suprime a vitória, ou se suprime as diferentes nações, integrando-se num Império. Mas, o conflito se manifesta também no mundo divino da epopéia — e não somente no mundo dos heróis do povo. Os deuses esquecem em suas querelas sua natureza eterna e não se sabe por que eles lutam se não há vitória que houvesse podido mudar sua natureza: é um simples jogo, sem resultado nem sucesso. * A análise hegeliana da tragédia, por sua vez, tem por base a obra “Orestes”, de Ésquilo. O personagem novo e importante é o ator. O herói épico era mudo, o rapsodo, o cantor épico, é quem falava por ele — o narrava. O herói trágico fala, quer dizer o ator fala por ele — o narrava. O herói trágico fala, quer dizer o ator fala por ele e toma sua máscara, seu papel. Na epopéia há que saber o que se passa; na tragédia Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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há que saber o que se diz. A tragédia manifesta a contradição e o conflito entre a ação universal e a atividade particularista que cada povo (e cada homem) encontra nele mesmo. No mundo épico, essa contradição parecia exterior e suprimível; agora, no mundo trágico, ela se torna necessária, manifesta e essencial. No esquema dessa passagem, nos é dito que, exatamente antes da tragédia, havia uma situação da religião literária concebida como silogismo épico, seguinte: num extremo, o destino imperial, representado pelos deuses; no meio, a nação ou o povo heróico; no outro extremo, o rapsodo que vê a chegada do Império e o compreende, o anuncia: mas assim fazendo, ele se exclui da nação/povo e se aniquila. Na tragédia aparece o ator no qual se atualizam os dois extremos — pois o autor, que, antes, como rapsodo, compreende o destino, deve tornar-se ativo. Então, o ator percebe a solução do conflito — a integração no Império — mas não pode realizá-la (não é imperador). São três os elementos constitutivos da tragédia: 1) o coro; 2) o ator; 3) os espectadores. A primeira condição da situação trágica é que o povo — isto é, o coro — é passivo. A ação não é sua. Ele vê os dois heróis, os dois atores, irem à ruína sem poder intervir (só pode haver dois atores na tragédia, e não pode haver um terceiro, porque não pode haver meio termo que resolveria o conflito). O coro vê o conflito, mas não vê a possibilidade de resolvê-lo e se lamenta. É o personagem mais trágico da tragédia, juntamente com o autor, porquanto este se solidariza com o coro. Além disso, o coro sabe que o fim da ação será trágico e, todavia, ele faz agir o herói. A situação é análoga à religião mística: o herói é um bode expiatório. Mas não o é a sério: não se mata o ator, evidentemente. Finalmente, o conflito será resolvido no momento em que o herói perderá a qualidade trágica para tornar-se cômico. De tudo isso, temos que a análise hegeliana da tragédia nos lembra que a sociedade, a essência (wesen) da sociedade dos senhores, é contraditória nela mesma e, atualizando-a pela ação, se faz com que ela desapareça — ela, a sociedade dos senhores. É que essa ação, se efetuando no interior de um mundo fechado é criminal: é a guerra civil — o crime por excelência. Tal o tema trágico. Assim, nos é dito que o politeísmo da epopéia se torna na tragédia um dualismo. De um lado, os deuses da Citè que são superiores; de outro lado, os deuses infernais, os deuses da família. Quer dizer, correspondentemente: Apolo, Zeus, Atena, de um lado e, de outro lado, as Erinéias – na obra “Orestes”, de Ésquilo. Nesta obra, temos que o sacrifício de Ifigênia manifesta a contradição entre o Estado e a família. Pelo homicídio de Agamenon, o princípio mesmo da realeza — ou do Estado — é suprimido e a família toma todo o lugar do Estado (Égistho não é um rei). Ao destruir a família (matando a mãe), Orestes quer restituir a realeza a seu pai, tornando-se rei ele mesmo: pois então Agamenon se tornará pai de rei, e será assim, rei. Orestes será morto pelos deuses infernais. Não há solução, não há saída. Mas não é tudo. Para prestar conta da passagem à comédia, a análise hegeliana nota uma comparação entre as tragédias modernas e a gregas. Assim, “Hamlet” é definido como tragédia de intelectual, assim como “Fausto”, tidas ambas como as únicas tragédias modernas. É a tragédia burguesa ou cristã: uma tragédia da inação. A tragédia do senhor pagão é, por contra, uma tragédia da ação. Nas tragédias modernas aparece o intelectual — como autor e como personagem. Segundo a análise, o intelectual pode ser trágico porque, não trabalhando, ele se assemelha ao senhor. Mas ele tampouco luta — no que se assemelha ao escravo. Ele é burguês, é escravo sem senhor. Então, há Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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tragédia da inação, ou comédia da ociosidade pacífica ou até pacifista. O termo aplicável aqui é “embuste” (“tromperie”) ou impostura, hipocrisia. O ideal do senhor, por sua vez, não é viável: pode-se apenas morrer como senhor. Aquele que pretende viver como um senhor é um impostor. Ele desempenha um papel trágico (Orestes), uma hipocrisia, um mascaramento. Segundo a análise hegeliana já haveria em Ésquilo uma proposta de solução para esse impasse do trágico: seria a inatividade do Estado, a paz, por um lado, ou, por outro lado, retomar a guerra estrangeira, quer dizer, retornar à epopéia, o que não acontecerá. Então, com a paz, teremos enfim, a transformação de um Estado guerreiro de senhores em uma democracia burguesa, quer dizer, comédia. * Para A. KOJÉVÈ, a leitura hegeliana insistiria que o teísmo propriamente dito, como conteúdo divino da consciência, houvera morrido com o mundo pagão — e a arte com ele — de tal sorte que o cristianismo de Hegel é o vir a ser do ateísmo (∗). Em relação à comédia, temos que o mundo cômico é homogêneo. Não há mais conflito absoluto; não há mais fuga para fora do mundo: um mundo homogêneo é um mundo sem deus. Este ateísmo é essencialmente novo, e é o que aporta a comédia. A arte como religião se suprime e a religião da arte igualmente. O homem ultrapassa o estádio dessa religião; seus deuses, que pretendiam ser absolutos se tornam ridículos, cômicos. Mas, para poder rir dos deuses, o homem deve ainda assim crer em deus. Ele não é ainda verdadeiramente ateu na comédia. O burguês — em seus começos gregos, e mais tarde, o intelectual — é irônico; mas, em seguida, ele deve tornar-se sério e fazer alguma coisa de bem. O tema da ação cômica é a realização do particular como particular. Mas o homem não esquece o universal que surgiu na tragédia. Ele tenta na comédia uma síntese; mas se não é ainda uma síntese verdadeira, é pelo menos a elaboração unilateral do particular em vista da síntese futura com o universal. Não há então satisfação cômica (do desejo); o burguês irônico fica religioso, ele conserva uma arte, uma literatura. Os deuses morrem na comédia, mas essa morte tem ainda um valor religioso (note-se que a representação da comédia faz parte da vida religiosa dos atenienses). A teologia que releva daí, segundo a análise hegeliana, será a teologia cristã do Deus Crucificado. Enfim, temos que, para o burguês, a natureza não passa daquilo que lhe permite perseverar no seu ser simples ou natural (beber, comer, etc.). A comédia acaba assim a morte da religião natural (a arte mata a natureza). O burguês busca a verdade: é a dialética de Sócrates que destrói tudo: é o relativismo, a ironia crítica, o emprego de noções vagas ou abstratas do belo e do bem. O resultado da comédia é a auto-deificaçao do homem privado; o burguês que esqueceu o senhorio, que se regozija no bem estar e vive no seio da família, e que crê esgotar assim todas as possibilidades existenciais. Mas, para a análise hegeliana, aí há ausência de satisfação, pois a religião conclusiva dos burgueses, o protestantismo, completa a consciência infeliz, mas não a extingue. Neste ponto, a análise hegeliana chega à religião teológica propriamente dita. O caminho percorrido passou pelas reli(∗) Ver adiante as “Notas Complementares”, especialmente a Nota 03.

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giões primitivas, chegou à religião dos senhores e agora à teológica, onde pontifica o cristianismo. Logo de início nos é assinalado a íntima ligação deste com a comédia, em cuja ligeireza estaria afirmado que a realidade essencial absoluta é o eu-pessoal (o si). Um esquema da história das religiões nos é proposto. A primeira religião é a religião natural, correspondendo ao deus sem homem, a consciência do divino ou divinizada. O primeiro ateísmo é a comédia, correspondendo ao homem sem deus, quer dizer à dissolução dos conteúdos divinos. Depois vem o cristianismo, correspondendo ao deus que se faz homem. O segundo e último ateísmo é a ciência hegeliana, correspondendo ao homem que se faz deus. Hegeliana. Para compreender o começo do cristianismo no paganismo, se considera que, na comédia, o paganismo se suprime ele mesmo, e a arte também, pois o paganismo é uma religião da arte. A arte atinge na comédia a vida real, e é esta mesma vida real que se reflete no saber da comédia que deu nascimento ao cristianismo, ou seja, à vida burguesa. Em seqüência, a própria comédia que mostrou a possibilidade da vida profana se suprime como comédia. Resta então o burguês que se toma em sério e que vive a vida que lhe apresentava a comédia: é o burguês cristão, aquele que fará a teologia cristã. No mundo da comédia, o bem estar burguês é completado pela consciência infeliz que produz o cristianismo. Assiste-se então a uma reviravolta dos valores, a uma renovação do teísmo, mas não se retorna à religião natural, não se retorna à transcendência divina da religião da luz. O teólogo cristão que fala de deus sabe que fala também dele mesmo. O ateísmo da comédia era inconsciente; no teólogo o ateísmo não é mais do que em germe na sua teologia de homem-deus — o teólogo é semi-consciente de sua circunstância, do seu saber de si. O Deus cristão não é mais um ser simples, natural, mas um “si”, um Eu-pessoal. Ele é então um Deus humanizado, mas ele não é ainda absolutamente identificado ao homem. Para compreender essa situação de ocultamento do Deus, a análise hegeliana observa os três fenômenos paralelos que se fusionam na consistência do mundo burguês cristão: a propriedade privada; a pessoa jurídica (do direito romano); o monoteísmo (judeu). Considera-se também as três ideologias que exprimem a realidade do mundo burguês: o estoicismo, o ceticismo e a consciência infeliz. Esta é a nostalgia do universal (o Estado perdido): o burguês que se reduz à sua propriedade privada (o capital) lamenta a perda do mundo real que era identificado ao Estado dos senhores e imagina, construído no e por seu pensamento, um mundo transcendente, o mais-além. A grande novidade que aporta o cristianismo é a “dura-palavra”: Deus é morto. O burguês tenta fazer uma religião dessa conclusão à qual desemboca o mundo pagão. Para KOJÉVÈ, a leitura hegeliana insistiria que o teísmo propriamente dito, como conteúdo divino da consciência, houvera morrido com o mundo pagão — e a arte com ele — de tal sorte que o cristianismo de Hegel é o vir a ser do ateísmo. * Seja como for, se pode distinguir na análise hegeliana três etapas dialéticas do desenvolvimento da teologia cristã: 1) a idéia do homem-deus (Jesus Cristo) — que seria desconhecida do neo-platonismo; 2) o discurso evangélico e São Paulo; 3) a teologia pós-evangélica e a Igreja cristã (compreendendo catolicismo, protestantismo e ateísmo). A fórmula cristã será uma síntese entre o teísmo primitivo “naturalista” do maná — o primeiro universalismo — e o ateísmo “cômico” burguês — o primeiro particularismo. Não será então um retorno, uma marcha para trás. Deus só Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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será Deus universal encarnado em um homem particular (Jesus), porque é um Deus individual. Nota a análise hegeliana que a idéia de indivíduo aparece pela primeira vez no direito romano, mas a pessoa jurídica é vaga e abstrata. Ela se concretiza de início na noção cristã da pessoa divina e é chamada a se realizar em Jesus Cristo. Para o cristão, o indivíduo não é um ideal a realizar: ele já existe — embora no mais-além — é o Cristo Ressuscitado, transcendente. Há então uma substancialização da idéia de indivíduo. O que o cristão diz de Jesus Cristo é absolutamente verdadeiro, à condição de que aquilo que se diz seja referido ao espírito humano. Assim o homem deve ter “uma mãe objetivamente real” — deve haver corpo — e um “pai transcendente” — quer dizer, uma idéia transcendente, um fim a terminar, um projeto a realizar pelo ação da luta e do trabalho. Segundo a crítica dualista, o nascimento do Cristo que Hegel tem em vista não é o do relato evangélico. Ele pensa no nascimento da teologia cristã, cujos “parentes” são, no plano ideológico, o neo-platonismo e, no plano real, o Direito e o Império Romano. O neo-platonismo é um esboço fracassado do cristianismo porque muito teísta, isto é, pagão. Ele ultrapassa a comédia grega; ele conhece um Deus infinito, mas ele não sabe que o deus se tornou homem. Seu Deus é absolutamente transcendente (exaltação da idéia pagã de perfeição). É o Um do qual nem se pode dizer que existe. O neo-platonismo plana no vazio e no abstrato; ele jamais pode criar uma Igreja. O neo-platonismo sempre ficou como uma seita de intelectuais, uma divagação mística, aquém da função de adaptação do saber hegeliano: o neo-platonismo desaparece exatamente porque ele não corresponde à realidade social — o burguês romano não se reconhece na teologia de Plotino. O Cristianismo é uma religião revelada porque ela revela a identidade de Deus e do Homem, identidade que precisará ser tomada ao pé da letra: o primeiro cristão é Jesus, o primeiro homem que sabe esta identidade. Nota-se então o caráter sensível e material do homem — Jesus — que é identificado a Deus. Os apóstolos que vêem esse homem que diz ser Deus e o crêem, o reconhecem como tal. Esse Deus ao qual um certo homem é identificado não é um deus qualquer: é o Deus judeu, quer dizer síntese dos elementos da religião natural — Um universal mais Deus guerreiro ou Totem mais Demiurgo — e da idéia pagã da perfeição. E essa síntese não deve ser identificada a não importa qual homem: deve ser o homem integral, tendo realizado todas as possibilidades existenciais e que disso tomou consciência. Agora, a Igreja. É-nos dito que Jesus não era louco quando disse que ele era Deus, pois ele criou uma seita que o admitiu como verdadeiro Deus, e esta seita se tornou uma Igreja, quer dizer um mundo real no qual o homem vive. A idéia cristã, nascida no mundo pagão, se desenvolveu em teologia no mundo cristão, criado pela ação negadora daqueles que creram na divindade de Jesus. É na e pela Igreja que o Cristo, a idéia de Cristo, se realiza no mundo real, cria o mundo cristão. A Igreja não é outra coisa que o Cristo ressuscitado; é ela que realiza a idéia da ressurreição. A verdade do Cristianismo — como realidade revelada — é a comunidade cristã — Igreja — reunindo cristãos de carne e osso reconhecidos como tais, vivendo em um mundo cristão real e sabendo que são o autor desse mundo (são o “subjekt”). Nota ainda a Crítica Dualista que Hegel condena toda tentativa de retorno à simplicidade evangélica. A análise hegeliana da Teologia se efetua em três etapas: a) o pensamento abstrato cristão: a teologia, sobretudo a Trindade e o Cristo-logos (cristologia); b) as relações entre Deus, o homem e o mundo: a ação ou a moral Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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cristã (teológicas); c) a maneira pela qual a Igreja se compreende como Igreja: a política cristã — paulinismo, catolicismo, protestantismo. ***

Fim da Segunda Parte

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A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC

NOTAS COMPLEMENTARES

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65 A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC NOTAS COMPLEMENTARES (1) - O problema da teoria do conhecimento como problema crítico sobre a filosofia de Descartes tem, sem dúvida, um lugar importante. É-nos dito que Descartes não podia realizar a filosofia absoluta, porque, no momento onde ele vivia, “a história não havia ainda acabado”, sendo essa determinação imprescindível para a auto-coerência da filosofia hegeliana. Tanto para Hegel como para a crítica da filosofia hegeliana, a possibilidade de realizar a filosofia absoluta — ou a sua não-possibilidade — constitui um fator de reflexão que a filosofia hegeliana opera sobre si e sobre a filosofia alheia. Mas, o problema crítico sobre a filosofia de Descartes tem um componente específico cuja análise tem desdobramentos para a formação do conceito fenomenológico da Consciência de si. Argumenta-se que a resposta cartesiana ao “que sou eu” é insuficiente por ser parcial. Mesmo se Descartes se houvesse plenamente compreendido ele-mesmo, ele não teria concebido mais do que uma parte da realidade humana, e seu sistema, fundado sobre essa auto-compreensão, seria necessariamente insuficiente e falso, por não alcançar a totalidade. Além disso, sua resposta “eu sou um ser pensante” era não somente muito sumária, mas ainda falsa porque unilateral. Ao partir do “eu penso” Descartes fixou sua atenção apenas sobre o “penso”, negligenciando completamente o “Eu”. Ora, sendo esse “Eu” essencial tem lugar uma formulação na qual nos é dito que o Homem não é somente um ser que pensa, um ser que revela o Ser por meio do Logos, pelo Discurso formado de vocábulos tendo um sentido. O homem revela ainda — igualmente por um Discurso — o ser que revela o Ser, o ser que ele é ele mesmo, o ser revelador que ele opõe ao ser revelado, lhe atribuindo o nome de “Ich”, de “Selbst” (Moi). Nesse esquema, é admitido não haver existência humana sem Consciência do mundo exterior, que está ao nível do “penso”. Todavia, o que o ponto de vista do “Eu essencial” (Selbst) aporta ao problema crítico sobre a filosofia de Descartes é a convicção de que, para haver verdadeiramente existência humana, portanto, que possa vir a ser uma existência filosófica, é preciso que nisso haja ainda consciência de si. E para que aí haja consciência de si, é preciso que haja o Eu: esta certa coisa especificamente humana, que o homem revela, que se revela, quando o homem diz: “Eu”... . Dessa forma, antes de proceder à teoria kantiana do conhecimento, imbricada no “Je pense”; antes de analisar a relação entre o sujeito (consciente) e o objeto (concebido), é preciso então se perguntar o que é esse “sujeito” que se revela no e pelo “Eu” do “Eu penso”. Há que se indagar quando, por que e como o homem é levado a dizer: “Je”... . A análise esclarece que a consciência previamente requerida pela teoria do conhecimento se identifica na revelação do Ser Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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pela Palavra, ou pelo único vocábulo Ser. Posteriormente, é esse Ser que será chamado mais tarde “ser objetivo, exterior, não-humano, Mundo, Natureza, etc”. Todavia, no estádio dessa formulação do Eu essencial, esse Ser é ainda neutro, posto que aí não há ainda consciência de si, e, por conseqüência, não há ainda oposição entre sujeito e objeto, Moi e non-Moi, entre o humano e o natural. Em nível do conhecimento do Ser e de sua revelação pela Palavra, se estuda a forma mais elementar da consciência, que Hegel nomeia “Certeza sensível”, sendo que, a partir desta consciência, ou deste conhecimento, não há meio algum de chegar à consciência de si. Vale dizer que esse conhecimento é contemplativo e a revelação do Ser pela palavra é passiva, deixando o Ser tal qual ele é em si, isto é, independentemente do conhecimento que o revela. Note-se que a formulação do Eu essencial (Selbst) leva à descoberta da contemplação como atitude em perspectiva na negligência cartesiana do Eu. A reflexão agora se vê na contingência de descrever algumas formulações críticas sobre a contemplação, a fim de esclarecer essa mudança de plano, pela qual a noção de uma existência verdadeiramente humana foi anteposta à resposta cartesiana para a questão do “que suis je”, tida assim por insuficiente. (2) – Do ponto de vista da Crítica Dualista tal como nos comunica Alexandre KOJÉVÈ as “seqüências antropogênicas” caracterizam o aspecto expositivo do método fenomenológico de Hegel, aspecto esse que decorre do encaminhamento e posição hegeliana a respeito do “problema crítico sobre a filosofia de Descartes”. Quer dizer, a antropogenia, o caráter humanizador das seqüências dedutivas expostas na “Fenomenologia do Espírito” é resultante tanto quanto é uma exigência do conceito hegeliano complexo de “consciência de si”, sua reprodução. Como se sabe, a antropologia fenomenológica hegeliana tem quatro premissas indedutíveis possibilitando compreender a existência humana: 1. a possibilidade elementar da revelação do “Ser-dado” pela Palavra — implicando na Certeza sensível; 2. a ação destruidora ou negadora do “Ser-dado” — que nasce pelo Desejo e do Desejo; 3. a pluralidade dos desejos — configurada sobre a ação do reconhecimento; 4. a existência de uma possibilidade de diferença entre os desejos dos (futuros) Senhores e os desejos dos (futuros) Escravos. Para ser antropogênico o desejo deve então se orientar não para uma coisa dada, mas para um outro desejo (“o vazio ávido”). É o desejo de tal reconhecimento, é a ação que decorre de tal desejo que cria, realiza e revela um “Eu humano — não biológico”. As seqüências antropogênicas põem em obra os esquemas dedutivos privilegiados pela análise hegeliana do vir a ser, como resultantes da crítica à contemplação e ao desejo biológico, por um lado e, por outro lado, como desenvolvimento da racionalidade da ação transformadora e do reconhecimento — frutos da atitude do filósofo da existência humana, voltado para resgatar a Filosofia, tida como sabedoria prejudicada pela negligência cartesiana para com o Eu essencial. Nota-se enfim, que a crítica à contemplação torna possível um processus histórico que chega ao fim nas guerras napoleônicas... e na “escrivaninha do filósofo Hegel”, que então escrevia a “Fenomenologia do Espírito”. São os esquemas resultantes dessa crítica que as seqüências antropogênicas põem em obra de reprodução da consciência de si do... “leitor de Hegel”! (3) - O tema da eliminação da transcendência divina em Hegel, pela antropomorfização de Deus, nos leva diretamente a Kierkegaard. A concepProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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ção kierkegaardiana do paradoxo e da diferenciação absoluta de Deus está enlaçada à da autonomia do espírito (como negação sistemática de Deus); espírito esse que, finalmente, elimina a transcendência divina ao ter que construir dialeticamente a Deus e à sua necessidade à partir de si mesmo. A eliminação da transcendência se aplica na doutrina gnóstica de Kierkegaard da “prisão de Deus” — a qual introduz sua doutrina central do “paradoxo cristão”: “E agora o homem-Deus! É Deus, porém elegeu ser este ser humano individual. Como já se disse, tal coisa constitui o incógnito mais profundo, ou a incognoscibilidade mais impenetrável que seja possível; posto que a contradição que se dá entre ser Deus e ser um homem individual é a maior contradição possível, uma contradição infinita quanto à qualidade. Porém é sua vontade, sua livre decisão, e, portanto constitui um incógnito todo poderoso livremente mantido. Mas, ainda, em certo sentido, ao permitir ser engendrado, se aprisionou de uma vez por todas; sua incognosicibilidade foi mantida com tanto poderio que pode se dizer que, em alguma medida, se encontra em poder de seu incógnito, no qual assenta a realidade literal de seu puro sofrimento humano, que não é somente uma aparência, mas que, em certo sentido, constitui o domínio adquirido pela incognosicibilidade assumida sobre ele mesmo” (Cf. “Exercícios de Cristianismo”, Werke, vol.IX, Yena, Ed. Eugen Diederich, 1912, p.118; apud. Adorno, Teodor W.: “Kierkegaard”, trd., Caracas, Monte Ávila Ed., 1969, p.185). Diz-nos ADORNO que, se uma teologia do “absolutamente diferente” estivesse ou não proibida de fazer qualquer afirmação sobre “a aflição de Deus”, é certo, todavia, a ruína completa da mesma tão logo se propusesse negar a liberdade de Deus e colocar o Deus convertido em homem sob uma necessidade da qual não pode subtrair-se. Neste sentido, o esquema de Hegel em sua doutrina da auto-destruição necessária da Religião se propõe igualmente negar a liberdade de Deus, haja vista a ligação por ele estabelecida como necessidade absoluta, entre supressão da transcendência e manifestação do homem deificado do Estado napoleônico. Embora essa ligação tenha em Hegel o caráter de uma hipótese redentora da realidade, imposta pelo sistema — enquanto que a doutrina espiritualista de Kierkegaard releva de seu idealismo sistemático, crítico do sistema (Adorno) — tudo indica que a atitude de negação da liberdade de Deus é a mesma atitude gnóstica (a determinação do homem como algo puramente espiritual se projetando em uma teologia em que Deus também é submetido nas categorias do espírito humano puro). Portanto, o antropoteísmo de Hegel é menos um ateísmo do que o é gnosticismo. (4) - Como se sabe, há um sentido do mistério nos filósofos idealistas proveniente das doutrinas dos neo-platônicos que afirmam ser o princípio supremo imanente às coisas (como o “Um” de Plotino) “mais-além do inteligível”; ou, nas palavras de Joseph DE FINANCE: “o real transborda o ser, não somente por baixo (matéria), mas pelo alto. Seu fundo escapa ao pensamento e só é acessível ao contato supra-intelectual do êxtase” (Cf. “Connaissance de l’être”, p.131). Esse “sentido do mistério” se encontraria em muitos místicos ou pseudo-místicos especulativos como Jacob Bohme e um filósofo idealista como Schelling, identificados à “idéia de um fundamento tenebroso, irracional, em Deus”. Segundo DE FINANCE, “o existenProdução leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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cialismo de inspiração cristã retoma de bom grado esse tema: se trata freqüentemente menos de negar em Deus a inteligência que de afirmar a total heterogeneidade entre sua inteligência e a nossa. Deus pode fazer o que para o homem é absurdo, irracional, contraditório”. (ib.) (5) - A expressão “totalitarismo” — ao invés de “totalismo” — aplicada ao processo de formação do saber absoluto, como se lê em KOJÉVÈ (op.Cit, p.230), parece artificial ou exagerada para designar a supressão da oposição como operação da razão em Hegel. Trata-se, na verdade, de um conjunto totalizado que prevalece sobre o que resta em vias de integração e não do “re-totalizar-se” do que já é totalizado. A oposição encobre as brechas da antropologização, como ponto de vista da consciência exterior, e resta nessa dimensão do espírito. Tomá-la como recorrência servindo de obstáculo a transpor no acabamento da consciência de si do espírito, significa fazer o jogo do totalismo do saber absoluto levando à auto-dissolução da religião na hipótese de realidade do Estado da Restauração; quer dizer, significa reduzir a eficácia da oposição em favor de um artifício do si do espírito, impedindo-a que passe a se manifestar em outro plano do processamento, do caminhar incessante do espírito, contrariando assim o movimento dialético — que faz ressaltar a diferença por todos os lados — ademais de contrariar o próprio prisma da análise kojévèana, que insiste no caráter antropogênico ou humanizador das seqüências dedutivas expostas na “Fenomenologia do Espírito”. Além disso, que se trata de “totalismo” e não “totalitarismo”, nos mostra a observação de que o orgulho da razão em Hegel leva a desprezar os “impenetráveis” ao conceito (E.Bloch, op.cit.p.38), os restos que não chegam a ser assimilados pelo sistema da verdade, de tal sorte que a negação do conceitual, do que transcende a experiência sensível, fica sempre na amplitude da consciência exterior, nas suas vias. “Totalitarismo” é conceito político e se refere à supremacia direta dos interesses particulares sobre o conjunto do Estado. Kojève o utiliza como veremos, para designar o processus pelo qual o aspecto particularista da filosofia pode figurar como o lado particular que é ligado ao lado universal do saber absoluto, sendo o estabelecimento dessa ligação que define o saber como absoluto. Posto que, por essa ligação, a oposição da filosofia ao seu complemento teológico deixa de ter lugar e o próprio complemento teológico vem a ser suprimido, poder-se-ia ver aí uma hipertrofia do particular que se universalizou pela operação do saber absoluto, a qual, então seria “totalitarismo”. Quer dizer, seria “totalitarismo” à medida em que tal operação corresponda à eficácia da hipótese de realidade do Estado da Restauração, ou seja, que ela se compreenda como operação dos interesses particulares atingindo — sem mediação — o domínio político do Estado e expulsando a religião. Então, o uso daquela expressão ou seria analógico ou a ciência hegeliana não teria autonomia em face da Restauração. O fato que, conforme o idealismo conservador de seu tempo, Hegel desenvolve um instrumentalismo da verdade, ao vincular sua ciência à hipótese de realidade do Estado da Restauração, concebendo um saber recorrente que permite a melhor adaptação a uma situação efetiva, adaptação esta que é também critério de verdade, não significa a perda de autonomia desse saber em face das situações — pelo menos não inteiramente, já que essa vinculação é mediatizada pela “Gemeinde”, como se notará neste estudo. Além do mais, o uso do termo “totalitarismo” em relação ao Estado da Restauração é bastante contestável. Tanto que o influente crítico do fim Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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da história como realização da razão em Hegel, Herbert Marcuse, fez sublinhar que “O Estado deificado” de Hegel não é por isso um equivalente dos Estados de tipo fascista, que representa “a supremacia totalitária direta dos interesses particulares sobre o conjunto” (o que não exclui o Estado nos regimes comunistas). Diz-nos ainda Marcuse que “a filosofia de Hegel é um sistema subinserindo todos os domínios do ser sob a idéia totalizante da Razão” (Cf. “Raison et Revolution”: Hegel et la Naissance de la théorie sociale”. Paris, Les Editions de Minuit, 1968 (New York, 1954), p.72 e p.260). (6) - A vinculação que Hegel estabelece entre a ciência hegeliana e a hipótese de realidade do Estado da Restauração, reflete sua concepção instrumentalista do saber como permitindo a melhor adaptação a uma situação efetiva: um saber consistindo em favorecer o encontrar-se a si mesmo do espírito através de todas as suas aventuras no mundo para regressar ao absoluto (Cf. Gurvitch, “Dialectique et Sociologie”, p.107/8 ). Quer dizer, tal vinculação é a forma particular que toma a conciliação entre a filosofia e a realidade no sistema final e que, segundo Marcuse, se explica pela situação histórica na Alemanha à época. Como se sabe, Hegel formula seus primeiros conceitos em um império germânico em franca decadência, chegando mesmo a declarar, em 1802, que o Estado Germânico do último decênio do século XVIII “não é mais um Estado”. Os restos do despotismo feudal persistem sempre, tanto mais sufocantes quanto são fragmentados em arbítrios mil que rivalizam uns com outros. O Império, sem receita, não possuía um único soldado; não havia jurisdição centralizada; o regime do servo da gleba era sempre a regra e o camponês tratado como besta de carga; príncipes vendiam seus súditos como mercenários para países estrangeiros; uma censura implacável intervinha ao menor sinal de pensamento esclarecido. À diferença da França, a Alemanha não tinha burguesia forte, consciente dela mesma e politicamente educada para levar o combate contra o absolutismo; a nobreza comandava sem oposição; a burguesia urbana era dispersada em inúmeras comarcas com seus governos e interesses locais, e portanto, incapaz de cristalizar e de exercer uma oposição eficaz, embora houvessem conflitos entre o patriciado dirigente e as corporações e os artesãos —que não alcançavam jamais as proporções de um movimento revolucionário. Segundo Marcuse, depois da Reforma, os alemães se fizeram a idéia de que a liberdade é um valor interior compatível com toda forma de servilismo, que a obediência ao poder estabelecido é uma condição preliminar da Salvação eterna e que labor e pobreza são uma bênção aos olhos de Deus. Um longo hábito de disciplina havia interiorizado neles a carência de liberdade e de razão. Para Marcuse, uma das funções decisivas do protestantismo na Alemanha havia sido de conduzir os indivíduos emancipados a aceitar o novo sistema social, o feudalismo das manufaturas, e a deslocar reivindicações e desejos do exterior para o interior. Segundo aquele autor, Lutero havia estabelecido a liberdade cristã como valor interior a realizar independentemente de toda condição exterior. Tratando-se da verdadeira essência do homem, a realidade social era tida por indiferente. O indivíduo aprendeu assim a buscar a finalização da sua vida dentro dele mesmo e não no mundo exterior. Para Marcuse, a cultura alemã não pode ser dissociada de sua origem protestante, de tal forma que o anúncio pela reforma luterana de um Reino de beleza, de liberdade e de moralidade invulnerável às realidades e aos conflitos do Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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mundo exterior, se encontra na origem de uma tendência manifesta do idealismo alemão, a saber: o desejo de reconciliação com a realidade social existente. (Cf. H. Marcuse, “Raison et Revolution: Hegel et la naissance de la théorie sociale”. Paris, Editions de Minuit, 1968 (N.Y.1954), p.62 sq.op.cit.). (7) - Sobre o tema da “Gemeinde” ou comunidade de crentes, como integrando a concepção hegeliana do Estado napoleônico, se, por um lado, configura um aspecto da forma particular que toma a tendência manifesta do idealismo como desejo de reconciliação com a realidade social existente, por outro lado, expressa o esforço filosófico em busca da unidade e da universalidade da Razão, em face da ausência manifesta de uma comunidade racional. Desse contraponto entre “busca” e “ausência”, Marcuse (op.cit.p.66 sq) remarca que a aspiração de uma ordem racional universal tem por contrapartida, no plano da epistemologia do idealismo alemão, a busca de um princípio unificador, capaz tanto de salvaguardar os ideais fundamentais da sociedade individualista (pelos quais a estrutura do arrazoamento individual — a subjetividade— fornece as leis e os conceitos gerais representando as normas universais de racionalidade) sem por isso sucumbir aos seus antagonismos (entre a declaração dos direitos e a situação de dependência e injustiça reinante). Assim, os idealistas alemães ligam a razão teórica à razão prática: em Kant uma ligação entre a análise da consciência transcendental e a exigência de uma comunidade dos cidadãos do mundo; em Fichte, entre o conceito do Eu puro e sua construção de uma sociedade totalmente regulada e unificada; e, enfim, em Hegel, entre a idéia de razão e sua definição do Estado como união do interesse geral e dos interesses particulares e, por aí, como realização da Razão. Entretanto, é sabido que toda concepção idealista da história relaciona diretamente as grandes inflexões de seu decurso com as modificações religiosas. Assim, ao investigar as causas sociais da decadência do republicanismo antigo, o jovem Hegel vê no Cristianismo o culpado essencial daquela evolução. Não que essa concepção seja casual, mas, pelo contrário, que há uma conexão histórica objetiva entre o Cristianismo e todo o desenvolvimento europeu moderno; tanto que Hegel admite e busca de maneira recorrente uma superação religiosa das contradições. Apesar de reconhecer assim a importância da relativa identidade de Hegel com o Cristianismo, Lukacs se opõe, todavia, reiteradamente, à conclusão de que Hegel era um filósofo do Cristianismo Protestante por inteiro e sem reservas (Cf. “El Joven Hegel y los problemas de la sociedad capitalista” Grijalbo, 3ªed. 1972, p.119/120,133,141,193). Nada obstante, sabe-se que Hegel não se considerava um ateu, mas um luterano ortodoxo (Cf. Mc Lellan: “Marx y los Jóvenes Hegelianos”, pp.14.15). Resta ainda o fato de que Hegel chama “destino” ao Estado para apoiar sua concepção religiosa — embora Lukacs acuse aqui uma “contradição do objetivo consciente de Hegel” (ib. p.212). Portanto, há poucas dúvidas de que o tema da “Gemeinde” seja integrante da concepção hegeliana do Estado napoleônico — a filosofia da religião de Hegel cruzando-se com sua filosofia mística da história. (8) - A tomada de consciência “a-religiosa” que, contraposta à filosofia teológica, viabiliza na análise do vir a ser a reversão do totalismo do saber absoluto está manifesta na crítica do idealismo como atitude de Kierkegaard ligando mito e história. Como se sabe (Cf. Adorno, “Kierkegaard”, p. Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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49 sq.145 sq.) o idealismo entra em crise à medida em que tenta livrar sua consciência dos limites da função representativa em geral — isto é, da imanência subjetiva em que a tinha aprisionado, já que, nessa tentativa, assume a pretensão de totalidade, ambicionando fundar a realidade no pensamento e cai em antinomias sem fim. Hegel impôs o método dialético que transforma essa pretensão de totalidade. Porém, ao fazê-lo, foi tão radical que, ao invés de obter os fenômenos individuais a partir dos conceitos superiores sistemáticos abstratos, deixa ao sistema a pretensão de deduzir a realidade. Daí seu totalismo como supressão da oposição, já que essa realidade deduzida equivaleria à própria realidade produzida dos fenômenos históricos individuais. A crítica do idealismo passa por Kierkegaard, Feuerbach e Marx e todos desmontam o dispositivo que faculta ao sistema deduzir a realidade — Feuerbach com seu conceito iluminista do homem e Marx com a categoria do valor de troca, a mercadoria como conceito superior básico da totalidade das relações entre todos os fenômenos da sociedade capitalista. Quanto à posição de Kierkegaard, como crítico do sistema, comporta muitas nuances, já que ele se insere no idealismo e segrega um espiritualismo, como figura histórica da “interioridade sem objeto”, que ele constrói — tanto mais dificultoso esse posicionamento de crítico do sistema se tivermos em conta que Kierkegaard questiona em Hegel o próprio procedimento dialético de remissão à totalidade para alcançar toda afirmação rigorosa referente a uma existência presente, como expressão dos fenômenos individuais. Nada obstante, Kierkegaard reencontra a oposição dentro do idealismo e sua pretensão de totalidade. Neste sentido é que se pode associá-lo à posição de crítico do sistema. Quer dizer, na medida em que a consciência se estabelece como a contradição suprema do seu idealismo, já que, neste seu idealismo, a consciência já não é imanência subjetiva, mas figura como existência condicionada, não autosuficiente. É o que Adorno chama “idealismo sistemático, tendo em conta a referência da prerrogativa do pensamento, como autoregulador, a fundar a realidade — em que Kierkegaard esta referência está num plano equivalente ao dos conceitos superiores sistemáticos abstratos, portanto, não relegada ao sistema. A filosofia de Kierkegaard tem fundamento mítico e função histórica e deve ser considerada no marco da crise do idealismo, isto é, do idealismo como tragédia histórica do pensamento mítico, em que é posta em questão a pretensão de totalidade. Se trata de um pensamento imbricado na contradição, mas voltado para recuperar o sentido ontológico — do qual o discurso kierkegaardeano sobre a existência humana havia denunciado a redução à pura subjetividade. Neste discurso sobre o “estar em situação de ruptura” com as relações fundamentais da existência humana — ou discurso sobre a alienação entre sujeito e objeto — se trata da antinomia em que Kierkegaard concebe o “sentido ontológico” como, de uma só vez, radicalmente integrante do eu — ou pura imanência subjetiva, — e como uma transcendência inalcançável à qual se abandonou. A subjetividade livre atuante é para Kierkegaard a portadora de toda a realidade, como fundo de toda a “comunicação existencial”: “à medida que a reflexão permanentemente reflexiona sobre a reflexão mesma, o pensamento entra num beco sem saída e qualquer passo que dá adiante naturalmente o afasta cada vez mais de todo o conteúdo” (1). Por sua vez, a confirmação da redução de todo o “sentido” à pura subjetividade aparece em contra de Hegel na seguinte passagem de outro texto: “em lugar de dar razão ao idealismo, porém advertindo claramente que toda a interrogação relativa à Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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realidade (a pergunta por uma coisa em si que se evade da consciência) havia sido rebaixada, em sua relação com o pensamento, ao terreno de uma luta” — quer dizer, ao domínio ético — “a qual, em semelhança com outros combates, não pode ser concluída por uma rendição; em lugar de fazer frente ao erro de Kant, que reduziu a realidade a uma relação com o pensamento; em lugar de atribuir realidade ao ético, Hegel seguiu adiante, incorrendo em fantasias e superando o ceticismo do idealismo mediante o recurso ao pensamento puro, o que constitui uma hipótese fantástica, quando ele mesmo não se apresenta como hipótese (...)”(2). A categoria crítica que permite a Kierkegaard romper o poder do sistema e resgatar o “sentido” ontológico será a do “sacrifício paradoxal”. Nota Adorno que, em nenhuma parte a pretensão da consciência a fundar a realidade é levada tão longe, nem tão completamente negada, como o é no “sacrifício da consciência” — entendido como realização da redenção ontológica. Quer dizer, de um modo verdadeiramente pascaliano, a dialética de Kierkegaard oscila entre a negação da consciência e a afirmação de sua prerrogativa suprema. A consciência, como subjetividade em existência condicionada, deve desprender-se, no movimento de uma “resignação infinita”, de todo o ser exterior, a fim de extrair de si mesma todos os seus conteúdos em plena liberdade de escolha e decisão e para, finalmente frente à aparência de seu próprio todo-poderio, abandoná-los e, ao sucumbir, purificar-se da culpa em que incorreu ao pensar que podia constituir-se em autonomia. Segundo Adorno, estaria aí configurada a relação central entre o mítico e a história, imanente na dialética de Kierkegaard, sendo mítico o movimento de uma “resignação infinita” levando à afirmação da sua “interioridade sem objeto”, como desprendimento de todo o ser exterior, e que é a condição mesma do “sacrifício paradoxal”, o qual, por sua vez, afirma-se então como história imanente à consciência à medida em que esta, abrindo mão da aparência do todo-poderio de si como consciência auto-reguladora, decide abandonar seus próprios conteúdos de si extraídos e, ao ficar vazia, entra em vias de purificar-se — prolongando então o momento mítico original numa tensão perpétua, ontológica, com a história imanente, de tal sorte que o sacrifício paradoxal se consuma não somente na totalidade sistemática dos conceitos superiores (na teoria), mas também no plano dos fenômenos que integram o sistema (na história). — cf. Adorno, Theodor W.: “Kierkegaard”, Caracas, Monte Ávila, 1969. (Suhrkamp – 1966), 1ªed. em alemão de 1933; pp.49 sq.175 sq. As passagens de Kierkegaard citadas são, respectivamente: (1) ”Sobre o conceito de Ironia”, dissertação universitária traduzida ao alemão em 1929, p.228; e de (2) “Postscriptum não-científico definitivo”, segunda parte, Werke, v.VII, 1910, p.26; e “Etapas no Caminho da Vida”, W. IV, 1914, p.409. Apud Adorno, ibidem. Ver também a exposição de Lucien Goldmann no Colóquio da Unesco (Paris, 21-23, Abril, 1964): “Kierkegaard Vivant”, NRF/Gallimard, 1966, p.125 sq. Notando esse autor que Kierkegaard desemboca no paradoxo de uma “teoria da religião” (estetizante e romântica) em que “a subjetividade da fé religiosa é tudo e que a verdade objetiva do dogma e da divindade não apresenta mais importância alguma”(p.159 sq) — Goldmann diverge de Lukacs (Cf. “El Asalto a la Razón”, p. 223 ) e defende os “aspectos positivos” dos “críticos radicais” no início do século XX (Kierkegaard, o surrealismo, Brecht, Kafka, o existencialismo e, nos anos 60, a chamada “literatura e arte de vanguarda”) a que ele chama “literatura e pensamento da recusa radical”. Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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73 *** FIM DAS NOTAS COMPLEMENTARES

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BIBLIOGRAFIA REFERIDA

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75 HEGEL, G.W.F.: “La Phénoménologie de l´Espirit” – Tome I e Tome II, Paris, Aubier, 1939 (Tome I), 358 pp.; 1947 (Tome II), 359 pp.; Versão francesa por Jean Hyppolite tirada da Edição Lasson – J. Hoffmeister, W. II, 4º ed., 1937; título em Alemão: “Die Fhaenomenologie des Geistes”. KOJÉVÈ, Alexandre: “Introduction à la Lecture de Hegel”, Paris, Gallimard, 1971, 2º ed. , publicado por R. Queneau (1º ed. 1947) 598pp. LUKACS, Georges: “El Jóven Hegel y los Problemas de la Sociedad Capitalista”, Barcelona, Grijalbo, 1972, 3º ed., 551pp, Trad. Por Manuel Sacristan (1º ed. Em alemão: Berlim, Aufbau, 1954). LUKACS, Georges: “El assalto a la Rázon – La Trayectoria del Irracionalismo desde Schelling hasta Hitler”, Barcelona, Grijalbo, 1972, 3º ed., 707 pp. (1º ed. Em alemão: Berlim, Aufbau, 1953). MARCUSE, Herbert: “Raison et Revolution – Hegel et la Naissance de la Théorie Sociale”, Paris, Les Editions de Minuit, 1968, 472pp, (New York, 1954). MCLELLAN, David: “Marx y los Jóvenes Hegelianos”, Barcelona, Martinez Roca, 1971, 186 pp. (Londres, Macmillan, 1969) ***

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76 A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC

CRONOLOGIA

1770 - (27 de Agosto) – Nascimento de Hegel (Georg Wilhelm Friedrich Hegel ) à Stuttgard. 1788- Hegel entra no seminário protestante de Tubingue. Amizade com Schelling e Holderlin a quem ele deverá seu culto da Grécia Antiga. 1793 – Saída do Seminário. È preceptor em Berne até 1796, depois em Frankfurt de 1797 à 1800. Nesses sete anos, acompanha apaixonadamente os acontecimentos da França; estuda Kant, Fichte e Schelling. 1801 – Hegel é nomeado diretor “privat-docent” na universidade de Iena, junto de Schelling. 1807 – Publica a sua primeira grande obra: “A Fenomenologia do espírito”, que consagra sua personalidade e marca a ruptura entre os dois filósofos. Desloca-se à Barmberg para ocupar a direção de um jornal político. 1808 – Hegel é nomeado diretor do ginásio de Nuremberg onde ficará até 1816. Durante esses anos prepara sua segunda grande obra. “Ciência da Lógica”, que aparece de 1812 à 1816. 1816 – É nomeado professor de filosofia à Heildelberg. 1817 – Publica para uso dos seus estudantes a “Enciclopédia das Ciências Filosóficas”, grande esboço que abarca o essencial do seu sistema. 1818 – Reconhecido como o maior filósofo alemão do seu tempo, Hegel é chamado à Universidade de Berlim onde ocupará a cadeira de Fichte, até 14 de Novembro de 1831. 1820 – Tornado o mestre pensador da Alemanha, Hegel publica sua “Filosofia do Direito”. Nos anos subseqüentes publica uma nova edição consideravelmente remanejada da “Enciclopédia”; ensina a “Filosofia da História”, a “Estética”, a “Filosofia da Religião”, as “Provas da Existência de Deus”, a “História da Filosofia”, que constituem as obras póstumas (publicadas de-

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pois de 1831) baseadas em seus cursos. Faz algumas viagens aos Países Baixos, à Áustria e à França. (Fonte: “Biografie” in Hegel: “Propedeutique Philosophique”, paris, ed. Gonthier, 1963, Traduzida do alemão por Maurice de Gandillac, pp.196197.) ***

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78 Sobre o Autor Jacob (J.) LUMIER Proprietário deste arquivo e dos originais desta obra CPF 373712237/72 Professor do ensino superior, o autor Jacob (J.) Lumier é Titulaire d'une licence de l'Université de Paris VIII - Vincennes, section Philosophie. Durante o prolongamento dos anos sessenta freqüentou a antiga EPHE-VIéme Section (Sorbonne). É sociólogo profissional e exerceu a docência, lecionando Sociologia e Metodologia Científica junto a universidade privada e junto a universidade pública. Exerceu também as atividades de pesquisador com o amparo de fundação científica. É o autor de “Aspectos da Sociologia do Conhecimento: reflexão em torno às análises sociológicas de Georges Gurvitch.doc”, e-book, 548 págs., (897kb. Zip), 2005, com bibliografia específica comentada e índices remissivo e analítico eletrônicos, através de http://www.leiturasjlumierautor.pro.br; é o Autor do recente artigo “Tópicos Para Uma Reflexão Sobre A Teoria de Comunicação Social (relações entre tecnologias da informação e sociedades)” -PDF- publicado no Boletin nº47 da O.E.I., Dezembro 2005, e em <Sala de Lectura CTS+I; sección Sociedad de Información> da Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura-O.E.I. ver: http://www.campusoei.org/salactsi/. ***

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A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Membro da ISOC /ÍNDICE DE ASSUNTOS/∗

/A / /ANÁLISE: / /(do saber religioso, de Hegel, hegeliana, kojévèana, da sociedade, da revelação teológica, pela ciência hegeliana, ordem das _s, levando à descoberta do espírito humano, teoria de _ , como extensão da teoria da Gestalt, fenomenológica, da evolução, “_s da sensação/da percepção/do entendimento/da razão/do desejo/”, da atitude cognitiva, da atitude emocional, em termos míticos, da Filosofia, o vazio ávido como questão na _ , de estrutura espiritual do Mito, da tragédia, três etapas dialéticas do desenvolvimento da teologia cristã na _ , do problema crítico sobre a filosofia de Descartes, do vir-a-ser, como se expressando nas seqüências antropogênicas, da consciência transcendental, a tomada de consciência “a-religiosa” contraposta à filosofia teológica na _) – 11, 12, 17, 22, 23, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 34, 35, 43, 45, 47, 50, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 65, 66, 68, 70. / /ANTROPOLOGIA: / /(universalista, como explicação necessária da teologia, fenomenológica, hegeliana, inconsciente/simbólica/mítica, não-mediatizada, consciente e atéia; filosófica) – 10, 14, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 30, 31, 32, 36, 41, 42, 44, 46, 47, 48, 54, 66. / /ARTE: / /(como sentido amplo da religião, antiga, como aspecto do Mito, primitiva, análise da _ , filosofia da _ , religião da _ ou paganismo,

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divinizada, e moral costumeira, obra de _ , representativa, plástica, consumo da _ , e culto, e consciência de si, e literatura, no burguês irônico, contra a natureza, se suprime, na comédia, de vanguarda) – 12, 41, 50, 54, 55, 56, 57, 58, 60, 61.

/ /ATITUDE: / /(de devoção ao mundo, a respeito dos Deuses, neo-hegeliana, coletiva moral, de abertura para o esforço, como modo da religião, a respeito do Homem como tal, da Consciência do exterior, _s do(s) indivíduo(s) humano(s), a respeito do seu Deus, existencial, a respeito da Realidade essencial absoluta, e a Antropologia universalista, reflexão da _ , no plano do Entendimento, cognitiva, contemplativa, emocional, e a psicologia religiosa, referida a um Deus transcendente, de valorização do Homem, do Escravo, identificada à interpretação “a-teísta”, intermediária, a _ muda ou cambia, em perspectiva na negligência cartesiana do Eu, do filósofo da existência humana, de negação da liberdade de Deus, gnóstica, de Kierkegaard) – 16, 19, 28, 32, 33, 35, 36, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 54, 57, 66, 67, 70.

/ /C

/ /CONCEITO (Begriff): / /(da ciência hegeliana; produção do _ ; concreto; do espírito; teste do _ ; puro ou abstrato; o espírito deve passar no _ ; de si mesmo; e o elemento do pensamento; fenomenológico; de consciência de si; os impenetráveis ao _ ; do Eu puro; iluminista; e teoria) – 10, 15, 22, 23, 24, 37, 45, 47, 53, 65, 66, 68, 69, 70, 71.

/ /CONHECIMENTO: / /(de si, e episteme, verdadeiro, fora da verdade, de tipo teológico, e realidade, como compreensão, humano, e enteléquias, quadro do _ , e quadros vagos, e produção do conceito, e a gemeinde, que o espírito tem dele mesmo, e o Eu pessoal (Selbst), com experiência, e diversidade, rejeitado, religioso, ateu, e saber absoluto, abertura para o _ , e consciência mítica, e reconhecimento, da verdade, teoria

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do _ , teoria kantiana do _ , e revelação, e Certeza sensível, contemplativo) – 16, 18, 20, 21, 24, 26, 28, 29, 31, 32, 35, 36, 43, 49, 52, 53, 57, 65, 66.

/ /CONSCIÊNCIA: / /(_(s) humanas; do exterior; conteúdo divino na _ ; saber da _ ; moral; como emanação; sua não-dissolução no transcendente; radical-aberta; em estado de realidade; do Eu (Selbst); do Deus; de si; do objeto; toma de _ ; do homem; oposição entre a _ do exterior e a _ de si; possível ; realidade oposta à _ ; como função representativa; da humanidade real; vir a ser da _ ; completa; parcial ; perfeita; tomadas de _ parciais; da Realidade essencial absoluta; do não-Eu; da realidade exterior; ponto de vista da _ ;atitude da _ ; do Supra-sensível; Infeliz; particular; religiosa; desgraça da _ ; nãorepresentativa; dele mesmo; pura; de um ser espiritual; de outra coisa; existente; sensível; mítica; se encontra no elemento em que o espírito é Ciência; se sabe perto de si mesma; e o trabalho teórico; como existência empírica ou natural; como ação; conceito fenomenológico da _ ; previamente requerida pela teoria do conhecimento; forma elementar da _ ; do “leitor de Hegel”; transcendental; “areligiosa”; e os limites da função representativa; como contradição do idealismo de Kierkegaard (já não é imanência subjetiva); pretensão da _ a fundar a realidade (no idealismo); “sacrifício da _ ; negação da _ ; como subjetividade em existência condicionada; história imanente à _ ; auto-reguladora) – 10, 11, 16, 18, 19, 20, 21, 26, 27, 28, 29, 31, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 49, 52, 53, 54, 58, 60, 61, 62, 65, 66, 68, 70, 71, 72.

/ /D

/ /DESEJO: / /(humano, biológico, vazio, não-satisfeito, e aspirações, e homemconcreto, e a teoria da função formadora da religião, e Moralitat, e satisfação natural, como vazio ávido, e culto, e satisfação cômica, e Ser-dado, e realidade social) – 17, 28, 34, 48, 50, 54, 55, 56, 57, 60, 66, 70.

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82 / /DUALISMO: / / (a Religião nasce do _ ; como separação entre o ideal e a realidade; como separação entre a idéia que o homem faz dele mesmo [seu SI ou "selbst"] e sua vida consciente no mundo empírico [seu "Da-sein"]; e os aspectos dualistas da interpretação do Capítulo VII; e a dualidade "Hegel pensador da Restauração/Hegel fenomenólogo"; e a dualidade "sujeito humano/ob-jeto divino"; e a interpretação dualista; e a dualidade no esquema de interpretação a-teísta; na fenomenologia de Hegel;recorrente; idealista [reveste uma forma teísta]; constitui o ponto de partida da Ciência Hegeliana; e a teoria do erro na função histórica da Religião; tem dupla função no pensamento de Hegel; entre o Mundo e o Homem no Mundo, por um lado, e, por outro lado, Deus e o Mais-além; objetivação do _ ; a antropomorfização de Deus anula o _ ; reflexo do _ ; e a dualidade na realidade religiosa; engendrado pela Religião; não pode se manter eternamente; desaparece no momento em que o ideal é realizado; é ilusório; o politeísmo da epopéia se torna na tragedia um _ .) - 11, 12, 14, 15, 16, 27, 40, 42, 47, 48, 49, 59.

/ /E

/ /EXISTÊNCIA HUMANA: / /(como portadora de um elemento que corresponde ao homem concreto constituído de sensação/percepção/entendimento/razão /desejo; se realiza de modo particular no mundo histórico que inconscientemente toma consciência de si na religião; é efetiva de modo coletivo no seio da sociedade, do Estado, do Povo; suscita o problema crítico sobre a filosofia de Descartes; é compreendida nas quatro premissas indedutíveis da antropologia fenomenológica hegeliana; como existência presente e expressão de fenômenos individuais suscita a crítica de Kierkegaard a Hegel) – 4, 18, 19, 20, 26, 28, 34, 36, 37, 42, 49, 56, 57, 58, 65, 66, 71, 72.

/ /G Produção leituras do século XX http://www.leiturasjlumierautor.pro.br


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83 / /GESTALT: / (teoria da _ ; noção de _ ; posta no centro do método fenomenológico de "La Phenomenologie de l'Esprit"; direcionada para a noção de "atitude existencial"; produção da teoria da _ ; no Capítulo VII; como forma exterior plástica concreta do espírito; no Capítulo VIII; concreção da _ ; como referida na noção de um Deus ou um ser simples existente dotado de um caráter fixo, estável, dado uma vez por todas ("Bestimmtheit der gestalt"); como servindo à "metodologia" ou teoria de aplicação do ponto de vista do saber absoluto para a análise da religião; como o conjunto de qualidades determinadas e estáveis que é referido na noção do ser simples existente ou dado [no qual o homem se compreende como uma coisa fixa, dada, como uma "Bestimmtheit"]; a teoria da _ como tendo valor próprio e não estando subordinada ao esquema totalista do hegelianismo; junção da teoria da _ com a visão de evolução; a antropologia universalista ou atéia não invalida a teoria da _ para a análise do saber religioso; exige se desmonte a ligação entre o lado particular e o lado universal do saber absoluto; leva a admitir a impossibilidade de um conhecimento sem diversidade; expressa a oposição da filosofia e da teologia, da Natureza e de Deus do ponto de vista do esforço; resta uma realidade; compõe as formas concretas espirituais ("Gestalten als Geister") como criações do "espírito materializado"[o espírito que já não é mais somente um ser simples, dado como uma coisa]; como forma concreta da Consciência Infeliz trazendo a perfeição e o acabamento da consciência de si.) - 10, 12, 22, 23, 24, 27, 28, 30, 31, 32, 33, 36, 41, 43, 46, 47.

/ /M / /MÉTODO: / /(fenomenológico, dialético, de Hegel) – 12, 18, 33, 66, 71. / /MITO: / /(é tanto arte quanto teologia ; enfoque do _ , conceito de _ , do Estado, como qualidade da interpretação grupal do processus religioso, estágio preliminar do _ , base objetiva do _ , _(s) como manifestações espirituais de conteúdo antropológico e forma teológica, como

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antropologia inconsciente, e o elemento simbólico, _(s) do Mundo Grego, a fenomenologia do _ , estrutura espiritual do _ , e mitologia, e história) – 10, 12, 18, 20, 21, 36, 41, 42, 49, 52, 53, 54, 71.

/ /Q

/ / QUADROS: / / (conceituais; do pensamento religioso; vagos; do pensamento que incorpora a diferença da consciência em estado de realidade; o problema dos _ ; e a reciprocidade do Eu cognoscente e do objeto; do conhecimento teológico; sociais do conhecimento; na compreensão hegeliana; e a determinação duvidosa do culto; não-confirmativos; a problemática fenomenológica dos _ ; como suportes do conteúdo teológico; da transcendência do plano do entendimento; teoria [compreensão] dos _ ; formados pela noção do Supra-sensível transcendente; como atitude existencial cognitiva; de toda a psicologia religiosa; da teologia transcendentalista; elaborados no plano das noções abstratas [nãorepresentativas]; eles mesmos; suprimidos; cristãos teístas; como suportes da concepção atéia do Homem; tornados esvaziados na referência do Iluminismo; conceituais do Homem que faz teologia; não assimiláveis ao Estado; como correlatos da diferença específica introduzida pela antropologização; do pensamento a que se identifica o religioso; do Mundo literário pagão.) - 12; 20, 21, 38, 43, 44, 45, 46, 49, 58.

// R / / REALIDADE: / / (essencial absoluta [absolutes wesen]; e o espírito humano que se revela a ele mesmo; atitude existencial a respeito da _ ; separação entre o ideal e a _ ; sensível; como mediação dialética; tem na "atenção" a sua operação cognitiva; no sistema hegeliano; de Deus na história; desprezada; perda da _ ; graus de cristalização da _ ; como estado da consciência; religiosa; em sua existência; se interliga ao conhecimento nos quadros sociais; humana que se oferece a um conhe-

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cimento humano; dos quadros conceituais; imediata; essencial privada de forma concreta; se mantendo no pensamento agente; como estado do objeto; como referência para tratar o antitranscendentalismo em Hegel; da qual a presença e a permanência de Cristo são essenciais para que o homem se reconheça renovadamente; objetiva do Espírito; da Gestalt; descoberta na base da fenomenologia da religião; da evolução; essencial do real; tem na humanidade real a sua expressão; sócio-politico-histórica; caráter da _ se projeta no mais-além; é refletida pela teologia; visão global da _ ; visão total da _ ; vir-a-ser da _ ; o homem toma parcialmente consciência da sua _ ; revelada; do espírito hegeliano do saber absoluto; empírica; como instância onde o homem realiza pela ação o elemento constitutivo da sua existência; objetiva do espírito na religião; como noção abstrata da religião; como religião artificial ou artística; como forma da união da consciência exterior e da consciência de si; no Capítulo VII; Consciência exterior da _ ; exterior da vida política; autônoma; divina; do Estado Absoluto; Universal; Particular; hipótese de _ ; vista como supra-sensível por trás do fenômeno do Mundo sensível; de um Mundo pertencente a um outro; para o Homem do Entendimento[tomado este Homem, por sua vez, como existência empírica ou coisista]; o paralelo que está na origem da noção de _ se tira da reflexão da atitude existencial; consciente dela mesma; Destino da _ ; dualidade na _ ; de uma situação histórica particular; mundo que carece de _ ; afirmada como o eu-pessoal [o si]; do mundo burguês; conciliação entre a filosofia e a realidade no sistema final de Hegel; como indiferente; a pretensão do idealismo em fundar a _ no pensamento leva a antinomias sem fim; como fundo de toda a comunicação existencial; a interrogação relativa à _ é a pergunta por uma coisa em si que se evade da consciência; como qualidade que se atribui ao ético.) - 10, 11, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 23, 25, 26, 27, 31, 33 a 49, 52, 53, 58, 60, 61, 62, 65, 67, 68, 69, 71, 72.

/ /S / /SUJEITO / /(cognoscente; e objeto; como "selbst"; como essência material presente, humano, religioso e existencial, e sua consciência de si, e predicados, e alienação) - 15, 21, 34, 39, 47, 57, 65, 66, 71. /

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/ /V / /VIR-A-SER / /(da Antropologia univesalista; do ateísmo; de si; espírito em _ ; _ o homem hegeliano; da consciência de si da humanidade; da religião; as diferentes religiões como etapas do _ ; do espírito que cria os deuses; a atitude existencial do indivíduo está na base do _ ; o antropoteísmo hegeliano como momento do _ ; como o movimento do elemento do espírito construindo a Ciência hegeliana; _ para si mesmo; o _ religiosa da poesia; da verdade; o _ no paganismo; _ uma existência filosófica; análise hegeliana do _ ; a reversão do totalismo do saber absoluto na análise do _.) - 10, 11, 16, 27, 34, 35, 36, 41, 42, 46, 52, 53, 57, 58, 60, 61, 65, 66, 70. ***

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Final da obra A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Ensaio de sociologia da filosofia por Jacob (J.) Lumier Sociólogo Autor publicado na O.E.I. Membro da ISOC

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Nome do arquivo: A Crítica Dualista Nova Agosto 2006 matriz final.doc Pasta: C:\HOME Modelo: E:\Documents and Settings\Jacob\Dados de aplicativos\Microsoft\Modelos\Normal.dot Título: A Crítica Dualista na Leitura de Hegel: uma reflexão a partir de A.Kojévè. Assunto: Ensaio de Sociologia da Filosofia Autor: Jacob (J.) Lumier Palavras-chave: Comentários: Data de criação: 22/8/2006 18:20:00 Número de alterações: 6 Última gravação: 22/8/2006 18:48:00 Salvo por: homer Tempo total de edição: 7 Minutos Última impressão: 22/8/2006 18:48:00 Como a última impressão Número de páginas: 87 Número de palavras: 35.035 (aprox.) Número de caracteres: 189.192 (aprox.)


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