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Plat.'io e Arist6teles
o que ve aquele que possui a ciencia dialetica? Ele ve,
Plat.'io
45
ditemos por intui~ao que
0
que realmente existe e esta mesa
segundo Platao, a essencia de cada coisa. 0 dialetico tem
aqui e aquela outra ali, ele pretende mostrar que as mesas
uma visao completa da realidade. Como pode ver a essencia
concretas sao casos fugidios e secundarios de mesa, que'e
de cada coisa? Vendo a essencia de toda coisa. Para Platao,
pr6pria e primeiramente a mesa inteligivel,
0
que ele
0
que realmente existe e 0 que reconhecemos pelo pensamento,
chamou de Ideia de mesa. A reviravolta esta feita:
nao
realmente esta no dominic da razao; os sentidos nos dao
0
que percebemos com os sentidos. Esta mesa que to co
aqui nao e a mesma que vejo Ja; uma e outra sofrem gaste causado pelo tempo, ambas possuem
0
des-
imperfei~oes,
0
que e
meramente aparencias, que nos poem a pensar, mas que nao constituem realmente
0
mundo. Platao ilustra com freqiien-
que e propriamente a
cia sua doutrina das Ideias com artefatos, como a mesa e a
mesa nao e ora uma coisa, ora outra, tampouco e de um
cama. No en tanto, isso pode ser enganador, pois
modo em um dado momento e de outro em outro momen-
poderiamos pensar que quisesse dizer que a ldeia da mesa e
to. Para Platao, isso significa que
a
esta e de madeira, aquela e de metal;
0
0
que existe realmente nao
concep~ao
que dela temos e com base na qual fabricamos
sao os casos particulares, materiais e sensiveis de mesa (em
as diferentes mesas espalhadas pelo mundo. Isso seria um
nosso exemplo), mas
que ele chamou de Ideia - em nosso
erro, pois, para Pia tao, as Ideias nao sao conceitos ou enti-
caso, Ideia de mesa. A Ideia de mesa e perfeita, eternamente
dades mentais, mas sim modelos natutais, dos quais partici-
mesa, e e a causa, segundo Pia tao, do ser mesa das mesas
pam os objetos concretos e que entao apreendemos pela
0
concretas que usamos. Esta mesa aqui, de madeira,
e mesa
razao:
mundo e como
0
e, para Platao, porque os objetos
na medida em que participa da Ideia de mesa; ela e mesa, mas
materiais participam das Ideias, e temos tais e tais con-
em um grau menor, pois
cep~oes
mente mesa
0
que e real, verdadeira ou pura-
e unicamente a !deia de mesa.
e
no~oes
A doutrina das Ideias
mundo e assim. Como
0
pens amos deste modo, e nao
0
0
mundo
contrario.
e E
bem verdade que Platao nunca explicou claramente como se da essa
participa~ao,
mas via nela seguramente uma
come~ou
rela~ao
causal (a Ideia e causa dos objetos concretos) e uma
do objeto matematico: embora acre-
fun~ao
hierarquica (a Ideia e
Platao esd. concluindo a reviravolta que concep~ao
0
para todo grego, tambem para Platao e porque assim que
com a sua
mentais porque
0
que e primeiramente, e
0
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Platao e Aristoteles
47
Platao
modelo que os objetos concretos imitam imperfeitamente).
De modo similar, as Ideias tambem tern uma hierar-
Nao podemos perceber ou sentir as Ideias, podemos
quia. A Ideia de homem, por exemplo (que Platao tambem
somente concebe-Ias ou compreende-Ias; elas nao existem
chama de o-homem-proprio ou homem-em-si), esta contida na
no mundo sensivel, mas residem alhures, la onde
Ideia de animal e, por conseguinte, e dependente dela (se
0
animal for aniquiIado,
0
0
pensa-
mento as apreende. Entramos assim no
cora~ao
da fllosofia de Platao, a
0
homem e aniquiIado; mas se
homem for destruido, nem por isso
0
animal e destruido);
sua doutrina das Ideias, que e ao mesmo tempo seu ponto
do mesmo modo, a Ideia de animal depende da de ser vivo
mais controverso. Como veremos, Arist6teles recusara. sem
e esta subordinada a ela, e assim por diante. A Ideia mais
hesita~ao
tal doutrina, mas PIa tao cre que ela e 0 unico modo
geral, aquela que abarca todas as outras, e a Ideia de Ser, que,
de salvar a razao, pois, sem ela, nao haveria objeto estavel de
em Platao, identifica-se it Idi'ia de Bem: elas concentram a
conhecimento; por conseguinte, tampouco objeto de racio-
realidade no seu modo eminente, em seu maximo grau, pois
cinio ou discurso verdadeiro.
tudo
Para Platao, dada uma multiplicidade de objetos referi-
0
mais faz apelo it Ideia de S er e it de Bem. Ao unificar
ser e bern, PIa tao colocou no apice da realidade uma Ideia
dos por urn mesmo termo de modo inequivoco, ha uma e
que designa ao mesmo tempo
apenas uma Jdiia, que e
e a norma.
0
modele do qual esses objetos sao
o
as copias. Obviamente, nao ha uma Ideia para qualquer
0
que ee
0
que deve ser,
dialetico e aquele que, tendo abandonado
sensa~6es,
0
0
fato
mundo
nao se lirnitou it compreensao inteligivel das
termo geral de nos sa linguagem (nao ha, por exemplo, Ideia
das
de barbaro ou de grego, mas somente de homem), mas a todo
coisas que a Matematica oferece, mas chegou it visao da Ideia
termo geral que designa uma das junturas ou
articula~6es
mundo corresponde uma Ideia que concentra em si
0
do
ser em
questao, enquanto os objetos materiais existem a titulo meraimita~6es.
suprema, a Ideia de Bem. 0 que ve ele do alto do seu saber? Como a Ideia suprema concentra a realidade e modo eminente, ao contempla-la
0
0
valor
d~
dialetico contempla toda
Os particulares, assim, nao
a realidade. Do alto da pirimide do S er e do Bem, contempla-se
somente estao canticlos nos universals, como tambem sao
a planicie inteira da realidade. Quem conhecer a Ideia m:ixima
concebidos como causados pelos universais, derivados deles
conhece tudo, pois tudo esti concentrado nela, tudo depende
e hierarquizados por eles.
dela, tudo deriva dela. Como, porem, pode
mente de copias ou
0
dialetico chegar
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Platao e Arist6teles
49
Platao
a urna zona de ar tao rarefeito, como pode ele abandonar as
da verdade Ultima aquele que conseguir subtrair-se as paixiies
hip6teses matematicas e apreender fmalmente
e sensa~iies do mundo empirico, se for paciente e inteligente
0
principio
supremo nao hipotetico? A esta altura, poderiamos temer
o suficiente para perseguir ate
0
fun
0
fio da razao.
que Pia tao ou nao tivesse mais resposta, ou fizesse apelo a
A resposta de Platao e, novamente, sedutora: nada de
experiencia mistica e ao inefivel, visto ter-se ja distanciado
experiencia mistica, nenhurn irracional a fundamentar a
tanto do senso comurn com a sua teoria das Ideias. Ele,
razao, apenas
porem, tern urna resposta precisa e clara. Para removermos
dros para esclarecer a si mesmo. Ainda hoje temos forte
as hip6teses e chegarmos ao principio nao hipotetico, aquele
apego a esse procedimento, pois consideramos que toda teo-
que concentra a totalidade do ser e e isento de qualquer resto
ria cientifica tern de ser internamente coerente,
ou obscuridade, devemos corrigit nossas
defmi~iies
com-
0
pr6prio pensamento que vasculha seus mean-
mos pelo seu polimento interno, pela
0
que obte-
compara~ao
e con-
parando-as urnas as outras, tornando-as perfeitamente com-
fronta~ao incansavel de suas hip6teses entre si. Para alguns,
explica~ao
a verdade de urna teoria provem e limita-se a sua coerencia
pativeis entre si e, desse modo, oferecendo uma
interna. No entanto,
unificada do real. Este e
0
grande lance de Plarao: urna vez obtidas as
hip6teses matematicas a partir da apreensao intelectual do que nos e dado por meio da
percep~ao,
a ascensao ao princi-
0
que marca a resposta de Platao e seu
carater radical: nao s6 chegamos a ldeia suprema pelo trabalho interno da razao consigo mesma, como
0
fazemos dando
as costas a experiencia e ao mundo sensivel. No sistema de
pio Ultimo do ser se fad nao mais por apelo a uma experien-
Platao, essa radicalidade e inevitavel porque
cia, seja ela sensivel ou mistica, mas pelo ato da razao de
mente, para ele, nao sao os objetos materiais, mas os mode-
tornar coerentes as nossas hip6teses e teses mediante
exa-
los inteligiveis que as coisas concretas imitam imperfeita-
me rigoroso de suas compatibilidades com vistas a uma teo-
mente. Platao dividiu a realidade em dois mundos: de urn
ria unificada do real. Uma vez instalados no dominio do
lado, hi
inteligivel (pela formula~ao matematica da essencia das coisas
tantemente gerado e destruido, irregular, repleto de exce~iies
materiais), basta acomodarmo-nos confortavelmente nele
e falhas, que, como Plarao diz no Timeu, nunca e realmente; de
para chegar a visao do todo mediante
outro, esra
0
0
uso rigoroso da ra-
zao. A coerencia interna do pensamento garante a descoberta
sempre
0
0
0
que existe real-
mundo concreto, percebido pelos sentidos, cons-
0
mundo das Ideias, uniformemente existente,
mesmo, apreendido somente pelo pensamento,
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Platao e Arist6teles
51
Platao
causa do ser do mundo sensivel. Nesse esquema, nao faz sen-
das sombras de objetos que !he sao projetadas em seus
tido, uma vez al~ado ao dominio das Ideias, querer voltar ao
muros. Sem ver de onde vern essa
mundo irregular e falho das coisas concretas. Platiio estabe-
sombras peias proprias coisas, nao suspeita que os objetos, os
lece urn fosso entre urn mundo e outro;
verdadeiros, se encontrarn fora cia caverna. Se, porem,
0
problema todo
proje~ao
e tomando as
(00-
consiste, para ele, ern sair do mundo enganoso das sensa<;oes
seguir livrar-se de seus grilhoes, veri entao que nao passavam
e entrar no reino tranqiiilo e recompensador das Ideias, nao
de sombras, e tentari, com grande
em transitar continuamente de urn mundo para outro.
nhas da caverna para sair deia; Ii fora, cegado pela luminosi-
esfor~o,
galgar as entra-
dade que desconhecia inteiramente, teri primeiro de acostumar-se com ela para enfun urn dia mirar de frente
0
Sol, fon-
te de toda luz. 0 Sol simboliza a Ideia suprema; a saida da caverna designa
0
abandono do mundo das
sensa~oes
em
proveito unicamente do pensamento; os grilhoes, nossa obstina,ao com
0
mundo da experiencia.
A alegoria da caverna poe em cena 0 esfor~o trigico da ascensao que
0
homem deve fazer para chegar
motivo disso e que,
a ciencia. 0
a disrancia que existe entre a Ideia e 0
objeto material (urn e
0
modelo;
0
outro, a copia), corres-
ponde urn fosso entre 0 conhecimento e a opiniao. A opiniao pode ser verdadeira, mas pode tambem ser falsa; ela e muraA alegoria da caverna de Platao
vel, presa ficil da persuasao, produto de nossas conhecimento, ao contd.rio,
Em urna de suas mais famosas
compara~oes,
Pia tao
sensa~oes; 0
e por essencia verdadeiro e nao
se deixa persuadir, pois e objeto de convic~ao. Nao hi conhe-
e falso,
ilustrou essa passagem com a alegoria da caverna: aquele que
cimento falso; se
acredita somente no que vI', e sente e como urn homem acor-
Ciencia, para Platao, responde aos altos criterios de ser sem-
rentado no fundo de urna caverna que assiste ao espetaculo
pre verdadeira, objeto de convic~ao e resultado do pensa-
entao nao era conhecimento. A
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Plat.lo e Arist6teles
53
Plat.lo
mento que examina com rigor a si mesmo, abandonando
as ciencias matemiticas, que se al~am ao inteligivel, mas
para sempre
operam ainda com hipoteses; por fun, estao os objetos mate-
sensa~oes
0
mundo cambiante, irregular e falho de nossas
e experiencias.
riais e as opinioes que a eles correspondem. Essa hierarquil do saber reflete os graus do ser: no topo, ."
0
que
esumamente,
o perfeito; Ii embaixo,
0
imperfeito; entre eles,
objeto matemitico, inicio da ascen-
0
que mescla ser e nao ser,
0
que e
sao ao inteligiveL Essa hierarquia e acompanhada, por sua vez, de uma perspectiva antropologica: todos temos opinioes, mas, segundo Platiio, a Ciencia e para poucos. Ele refor~a assim, ao termino de seu percurso intelectual, a visao pessimista que tinha dos homens, que
decepcionaram tanto,
0
sobretudo no episodio da condena~ao de Socrates. Platiio havia abandonado a carreira dos cargos publicos para dedicar-se aos estudos, mas pensa agora, com base em suas doutrinas, poder voltar ao mundo da politica. Hi, para Platao, uma ciencia politica, segura e infalivel; e com base As assembleias eram a base da democracia ateniense
nessa ciencia que
0
governante decide a respeito do bern de
seus subordinados, estejam eles de acordo ou nao,' assim como PIa tao e
0
mundo dos homens
0
medico prescreve ao doente
0
exato remedio que
0
curari, queira ele beber ou nao tal po<;ao. Quem possui tal ciencia nao deve, como propunha a Atenas democritica,
Ao subordinar
0
conhecimento matemitico
a Dia-
deliberar e discutir publicamente a respeito das decisoes a
letica, Platiio concebeu uma ordem do saber altamente hie-
tomar, mas deduzir
rarquizada. No topo esti a Dialetica, visao do todo a partir
sas de seu saber. E, como
da Ideia suprema, pois dela todas as demais derivam; abaixo,
ficar limitado pelo que determinara antes, mas unicamente
0
que deve ser feito a partir das premis0
medico altera sua prescri~ao sem