BdF PE - Ed. Especial Palafitas

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Recife, 27 de maio a 03 de junho de 2022 . Ano 6 . Edição Especial 01/2022 . distribuição gratuita

CHAMAS DO DESCASO Depois de perderem casa e trabalho, moradores das Palafitas do Pina terão que reconstruir a vida com R$ 1.500,00

Foto: Rebeca Martins


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Recife, 27 de maio a 03 de junho de 2022

É possível construir uma casa com R$1.500? Esse será o valor da indenização após incêndio INFLAÇÃO. Valor é o mesmo do cálculo feito em 2013, quando salário mínimo custava R$ 678; Recife tem o segundo aluguel mais caro do país. Maria Lígia Barros, de Recife (PE)

or volta das 16h do P dia 6 de maio, os moradores das Palafitas

do Pina, na Zona Sul do Recife, foram surpreendidos por um incêndio que rapidamente tomou conta das moradias e os deixou desabrigados. No cadastro realizado pela prefeitura, foram 180 famílias que perderam tudo. Nas mesas de negociações entre as famílias, movimentos populares e a administração pública, foi estipulado o pagamento de uma parcela única de indenização de R$ 1.500 até o fim de maio e de auxílio moradia mensal de R$ 200 a partir de junho. Os valores, para muitos, parecem insuficientes para reconstruir a vida na capital com o segundo aluguel mais caro do país, atrás apenas de São Paulo, segundo o índice FipeZap+ mais recente. Exatos 17 dias depois do incêndio, a moradora Valdéria Santana, de 37 anos, encara, através da janela da Cozinha

Expediente Edição: Vanessa Gonzaga Redação: Vinícius Sobreira e Maria Lígia Barros Articulistas: Carlos Augusto Pereira, Pedro Stilo e Rud Rafael Diagramação: Ma Nascimento Tiragem: 10 mil exemplares

Misael perdeu a casa e todos os instrumentos do seu trabalho de pescador. Foto: Maria Lígia Barros

Solidária das Palafitas, a paisagem desolada pelo fogo. Foi o seu primeiro dia de volta como cozinheira voluntária no equipamento montado por movimentos populares onde se preparam marmitas para as famílias. As lágrimas não deixaram de escapar en-

Um aluguel é R$ 500, R$ 600. quanto ela recordava as lembranças daquela noite. “Eu tinha saído no dia do ocorrido e, quando cheguei, encontrei minhas coisas queimadas. Você não sabe a dor que a gente sente de construir, de gastar sem ter e ver tudo destruído pelo fogo”, lamentou. Valdéria morava há cerca de quatro anos na comunidade, onde sustenta cinco filhos - o mais

novo de 1 ano e 4 meses - com o benefício do Bolsa Família e, agora, do Auxílio Brasil. Enquanto aguarda o pagamento dos auxílios, ela e os filhos se dividem entre casas de parentes. Essa é a realidade de boa parte dos que perderam tudo no incêndio: morar de favor, pelo menos temporariamente. É o caso da marisqueira Vilma Costa, de 60 anos, abrigada na casa de uma vizinha. Ela catava sururu na maré quando as chamas consumiram as palafitas: “Eu perdi foi tudo, não foi nem em minutos, foi em segundos”. Por ter na atividade de pesca sua fonte de renda, Vilma não quer ir morar muito longe. Mas o levantamento de preços que fez no entorno mostram que o custo da locação de um imóvel está muito superior a R$ 200. “Um aluguel é R$ 500, R$

600. Eu não posso sair daqui para outro canto porque minha área de serviço é aqui”, disse. A questão preocupa o pescador Misael Fernandes, 56 anos. Ele só salvou metade dos documentos; todo o resto se foi, até o freezer com mercadoria. Misael não teve condições de voltar a trabalhar porque perdeu também seu material de trabalho. A possibilidade de mudança para longe da maré também o assusta: “Eu indo para outro lugar não tenho como ter mi-

Você não sabe a dor que a gente sente nha pesca. Vou sobreviver de quê?”. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pernambuco, Renan Castro, critica os valores de indenização e auxílio propostos pelo município. “A prefeitura deveria editar um novo decreto que pudesse regulamentar diversas medidas de proteção para as famílias - dentre elas, uma indenização de maior valor”,

defende. O advogado afirma que o auxílio “não resolve nem aquilo a que se propõe”. A última vez que a Prefeitura do Recife aumentou o auxílio-moradia foi em 2013, por meio do decreto nº 27.286 que alterou o valor anterior de R$ 151. Desde então, esses benefícios eventuais concedidos estão congelados em R$ 200. Para se ter ideia, o salário mínimo custava R$ 678 em 2013. Hoje, R$ 1.212. Em abril daquele ano, o preço da cesta básica era R$ 298,35. Hoje, R$ 582,74. O custo de vida subiu, mas o benefício, não. A reportagem procurou a Prefeitura do Recife, que afirmou em nota que “os valores dos auxílios (pecúnia e Auxílio Moradia) são valores previstos por instrumentos legais do município, regulamentados por decreto e lei” e que “a comissão de moradores das palafitas do Pina concordaram com o pagamento do auxílio” . A lista com os nomes dos moradores beneficiados já foi publicada no Diário Oficial do Município. O órgão informou também que “foi pactuado que, após o pagamento da pecúnia, o local será desocupado”.


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Recife acumula obras paradas enquanto milhares de famílias estão sem teto DÉFICIT HABITACIONAL. Prefeitura alega que Governo Federal não tem repassado verbas, mas o próprio município não investe o prometido capital pernambucana. O bairro de Santo Antônio, na ilha de mesmo nome, região central do Recife, tinha 41% dos imóveis desocupados. Outro bairro central, a Boa Vista, tinha no momento 1.238 imóveis (17% do total do bairro) também sem residentes.

Vinícius Sobreira, de Recife (PE)

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incêndio que atingiu 180 moradias na comunidade de palafitas do Pina jogou novamente os olhares para o déficit habitacional do Recife, um problema antigo. Para lidar com a questão, a capital pernambucana deveria construir no mínimo 70 mil moradias, mas há pouco mais de 1.500 em construção – a maioria com obras paralisadas. São quase 5 mil moradias improvisadas no Recife, das quais parte considerável são palafitas sobre os rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió; só na comunidade do Bode, são 1.300 palafitas. “Mas se for olhar atrás do shopping RioMar e após a ponte do Pina, acho que chegaríamos perto das 3 mil”, avalia Ana Karla da Costa, moradora de uma ocupação no bairro do Pina e militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Na comunidade atingida pelo incêndio estima-se que vivam 400 famílias – mas destas, menos da metade aguardam moradias em construção pelo poder público. “Em oito anos Geraldo Julio não fez quase nada. Não executou o recurso para habitação. E não vejo diferença com João Campos”, critica Karla Costa. No Recife foi iniciada a construção de seis conjuntos habitacionais. O do Pilar, no bair-

Construtora prevê orla no lugar das sados cinco meses a palafitas

Projeto de edifício da Moura Dubeux não prevê presença das palafitas no local. Foto: Moura Dubeux/divulgação

Só no Recife havia 43,5 mil imóveis não ocupados ro do Recife, em 2010; o Sérgio Loreto, em São José, em 2009 e os Vila Brasil I e II, iniciados antes de 2010, em Joana Bezerra, com obras próximas à conclusão, prevista para este ano. E por fi m os habitacionais Encanta Moça I e II, anunciado em 2012 com obras contratadas somente em 2018 e iniciadas pouco depois no terreno do antigo Aeroclube, na comunidade do Bode, bairro do Pina. É nestas habitações que serão alocadas cerca de 160 das famílias que vivem nas palafitas do Beco do Sururu. Com exceção do Vila Brasil I e II, todos os habitacionais estão com obras paralisadas. A liberação da verba para estas obras, através do Minha Casa Minha Vida, ficou mais difícil a partir da derrubada da presidente Dilma Rousseff e o cenário de

restrição se manteve no governo Bolsonaro, com o ministro Paulo Guedes e Rogério Marinho (PL) dificultando recursos para a política habitacionais. Com a dificuldade para acessar os recursos federais, a Prefeitura do Recife optou por não assumir a conta sozinha. Percebe-se isso pelo tempo de paralisação dos empreendimentos e também pela execução orçamentária da Secretaria de Habitação do Recife. Em 2019 o Executivo municipal previa R$ 30,3 milhões em investimentos na área de habitação, mas gastou apenas R$3,5 milhões do previsto. Em 2020, ainda sob gestão Geraldo Júlio, a situação se repetiu: investimento previsto de R$47,5 milhões dos cofres municipais, mas apenas R$6,5 milhões gastos. Já sob João Campos eram previstos R$48,2 milhões em 2021, mas o investido foi R$ 4 milhões. Para 2022 estão previstos R$47,6 milhões, mas pas-

prefeitura empenhou apenas R$2,2 milhões. O Brasil de Fato entrou em contato com a prefeitura questionando sobre o tema, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

São quase 5 mil moradias improvisadas no Recife

Dados levantados pelo Censo de 2010 (IBGE) e organizados em estudo das ongs Habitat Brasil e Fase, só no Recife havia 43,5 mil imóveis não ocupados, sem cumprir sua função social. Esse número corresponde a 8,5% dos imóveis particulares da

Um projeto de mais de 10 anos, que ainda não saiu do papel, prevê a construção de um edifício e um pequeno parque margeando o rio, exatamente no local onde – há décadas – existem as palafitas. O projeto para o terreno do antigo Clube Líbano-brasileiro seria um empresarial de responsabilidade da construtora Conic. Mas após distrato, o terreno foi adquirido e projeto repaginado pela Moura Dubeux, que agora prevê um condomínio residencial com apartamentos de 40m². As imagens do projeto mostram um pequeno parque às margens do rio, com um jardim e uma pequena pista de caminhada, sem a presença das palafitas.


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Cuidado com os tubarões Carlos Augusto Pereira*

Foto: Arquivo pessoal

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s tempos são ameaçadores em todas as cidades do Brasil. A especulação imobiliária e o latifúndio são espadas sobre as nossas cabeças. Quem mora em áreas populares nas regiões urbanas corre o risco de ser expulso para satisfazer os interesses econômicos das construtoras e especuladores. São eles os maiores tubarões. O modo de ocupação das grandes cidades segue o mesmo modelo país afora. Áre-

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as mais valorizadas e perto do trabalho ficam para quem tem dinheiro. Morros, beira de rio, córregos e mesmo sobre alagados e marés, sobram para o povo pobre. No Recife, ao longo dos anos, principalmente a partir da década de 50, animados por lutadores do povo, organizados em partidos de esquerda, na igreja progressista e através de movimentos e organizações populares, nossa gente “botou na lei” o direito de morar no lugar onde ocupou, perto do trabalho. Isso já foi no início dos anos 80. Mas, para garantir moradia, ao longo do tempo, nos-

sa gente ocupou áreas, levou muito empurrão, carreira da polícia e fez mobilizações que resultaram na criação das

Lutar para que o direito à moradia esteja acima do direito à propriedade primeiras 26 Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS, mecanismo legal criado em 1983 e consolidado através da Lei 14.947/1987, Lei do Programa de Zonas Especiais de Interesse Social – PREZEIS. Foi preciso ter coragem. Esse “tirinete” das ocupações deu origem a diversos bairros da

capital pernambucana como: Afogados, Coelhos, Casa Amarela, Coque, Santo Amaro, Roda de Fogo e muitos outros. O Recife tem, atualmente, mais de 500 áreas em condições de serem transformadas em ZEIS. Porém, existem pouco mais de 70 delas. O poder econômico faz de tudo para frear o aumento do número de ZEIS, pelo fato de o mecanismo criar restrições à ganância dos ricos. O que antes era osso virou filé. Regiões como Pina, Brasília Teimosa, Caranguejo Tabaiares, Entra a Pulso, Ilha de Deus e áreas com palafitas são cobiçadíssimas. O que as ajuda é que várias são ZEIS.

Mas, os tubarões estão cercando. Constroem prédios em volta, elegem vereadores, compram “lideranças comunitárias”. Pra piorar, gente da própria prefeitura ajuda nessa estratégia. Afrouxando a legislação, reduzindo as áreas ZEIS ou dificultando a participação popular. A luta não é fácil. O que não nos pode faltar é disposição para lutar para que o direito à moradia esteja acima do direito à propriedade. Nossos corpos precisam de espaço e temos direito sim de morar perto do trabalho, da praia e de onde precisamos de casa para morar, viver e ser feliz! *Carlos Augusto Pereira é radialista e membro do Fórum de Entidades e Pessoas de Brasília Teimosa.

Cidade em chamas: moradia ou morte Pedro Stilo e Rud Rafael*

Fotos: Arquivo pessoal

ecife, a terra de CaR sas Grandes e Senzalas e dos Sobrados e

Mocambos, é hoje a cidade que expressa suas contradições na imagem dos grandes prédios convivendo com palafitas. A razão de ser a capital da desigualdade não se esconde e nem foi superada. Estão ali nas veias abertas da cidade, às margens do Capibaribe. Tentam naturalizar tanta coisa por aqui, mas de repente explode, pega fogo. O incêndio nas palafitas do Pina no último

dia 06 de maio mostra que sobreviver no m² mais caro do Recife nem sempre é tarefa fácil. Para integrar a cidade, famílias de pescadoras(es) e de trabalhadoras(es) informais buscam o chão embaixo d’água. Em pesquisa realizada nas palafitas em 2019, pelo Coletivo Pão e Tinta, o MTST e outras entidades, com o apoio do Mandato do Vereador Ivan Moraes, pudemos visitar cada família das palafitas do bairro do Bode e ouvir histórias de quem há anos está morando em condições degradantes, mas que gasta o que não tem para trocar as estroncas do barraco, desgastadas pelo tempo, para existirem numa terra sem política habitacional. E tão perverso quanto o discurso que responsabiliza essas famí-

lias por estarem nessas condições é a omissão do Poder Público, que não garante o direito à moradia nem quando essas famílias veem virar cinzas tudo que construíram com esforço próprio e solidariedade comunitária ao longo de décadas. É por isso que nos últimos

Sobreviver no m² mais caro do Recife nem sempre é tarefa fácil anos temos ido às ruas e resistido para cobrar solução para esse cenário. Nos últimos 6 anos, foram diversos atos realizados, queimando pneu e levando faixas com “Moradia Pra Quem Tá nas Palafitas”, mas também mostra-

mos que era possível produzir moradia dentro da Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) do Pina, como na ocupação Sítio das(os) Pescadores. Já deu de ver a questão da moradia como problema, é hora de solução. A desculpa que não tem recurso do Governo Federal para investir em moradia popular não pode ser argumento para que os governos locais não tenham orçamento para garantir esse direito. Pensar uma política de

moradia que promova, por exemplo, moradia nos imóveis vazios no centro e em outras áreas bem localizadas (ex. Aeroclube), reajustar o auxílio moradia (que há 8 anos está congelado em insuficientes R$ 200), fortalecer os territórios pesqueiros e as ZEIS custam menos que as nossas vidas e é urgente. *Pedro é acelerador social e coordenador do Coletivo Pão e Tinta e Rud é coordenador do MTST Brasil e Educador da ONG Fase


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