Maternidade Terceirizada

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nOvembro • 2015

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Maternidade terceirizada

de trabalhar na casa do Haroldo, ela vivia no Piauí. O salário não era suficiente para cuidar de duas crianças, então aceitou uma proposta de uma mulher para se mudar para Brasília e trabalhar na casa dela. De acordo com a diarista, era um truque. A antiga patroa foi ao Piauí procurar uma pessoa com pouca educação e sem conhecidos na cidade para não ter como saber que é explorada. Ela cuidava do filho da mulher por 12 horas por dia e ainda lidava com acusações. “O menino era um bicho custoso. E ela fazia assim: O menino caía, a culpa era minha” explicou. Segundo Ana Maria, até as outras empregadas da região diziam que ela era humilhada. Foram elas quem deram a dica de sair de lá e de procurar outro emprego. Conheceu Haroldo e tomou uma decisão, nunca mais trabalha como cuidadora de crianças. “Gosto de cozinhar, de limpar, menos de cuidar de menino. Menino dá muito trabalho” falou. Depois de algum tempo em Brasília, trouxe os dois filhos, que ficaram com a mãe. Valto e Crisna vieram ainda crianças. Ele com quatro e ela com sete anos. O menino não gostou da cidade e voltou para o Piauí para morar com a avó. Já Crisna ficou em Brasília com a mãe. No começo, a responsável pelo lote onde moravam cuidava da garota enquanto Ana Maria trabalhava. Com o tempo, ela perdeu a paciência e a empregada teve que cuidar de Crisna sozinha. Depois de tanto trabalho com a filha,

hoje é agradecida ao genro. O casamento tirou várias das responsabilidades dos ombros da avó de apenas 42 anos. Mesmo que a filha trabalhe como doméstica, não acha ruim. “Se o emprego é honesto, não importa se ela trabalha lavando a rua” disse. Mas acha que a filha poderia estar em um lugar melhor, só que lhe falta interesse.

“ Gosto de cozi-

nhar, de limpar, menos de cuidar de menino. Menino dá muito- Ana trabalho” Maria

Consequências

A psicóloga Mariana Bárbato disse que deixar a responsabilidade do cuidado das crianças para terceiros pode acarretar em quadros de depressão para os infantes. E piora caso o afeto não seja encontrado nas mães substitutas. De acordo com a psicóloga, a criança

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tem nas figuras paternais e nos cuidadores a referência de valores. O mundo dela é a casa, então ela espelha o ambiente. O que ela vê da família e das cuidadoras é o que ela aprende e leva para a vida. Distanciados dos pais, a figura da babá ou da empregada que fica no lugar precisa preencher o carinho de alguma forma. O quadro depressivo se agrava sem nenhuma presença afetiva. Este distanciamento de figuras que demonstram apreço pode ir além da depressão. “O afeto é muito importante para o desenvolvimento saudável da criança em todos os níveis: cognitivo, emocional e intelectual” explicou Mariana. Por conta disso, o afastamento pode causar dificuldades no crescimento e na socialização. A psicóloga enfatizou que a fonte de carinho não precisa ser dos pais. Como existe a necessidade de terceirizar esta fonte, não há como ter certeza de que a pessoa contratada é capaz de suprir essa falta. A psicóloga disse que isso pode colocar a criança em situação vulnerável. Bárbato aponta que é importante lembrar que existem mães carinhosas que precisam de uma profissional para cuidar de seus filhos. “A gente sabe que a maioria das mulheres trabalham e precisam continuar trabalhando logo após o nascimento do filho, inclusive para garantirem o emprego”. Ela lembra que, justamente por ter afeto, o processo é tão sofrido para a mãe. Para ela, é diferente das mães sem afeto

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que apenas transferem a responsabilidade para outra pessoa. Por conta de complicações como essas, a psicóloga afirma que cada caso é um caso. Os dois fatores que Mariana citou foram os níveis de afeto da profissional que cuida das crianças e a qualidade da relação entre mãe e criança.

“ Por mais que a criança não entenda algumas coisas, de alguma forma ela é capaz de captar esta distância dos pais em relação a ela” - Mariana Bárbato

Camila Campos

Vinícius Brandão

Empregadas domésticas criam filhos de outros e são forçadas a abandonar os próprios

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Ana Paula (esquerda) e Ana Karine (direita) dividem o convívio com Leonardo. A primeira é a mãe biológica e a segunda, mãe terceirizada Vinícius Brandão

vincius.brand@gmail.com

Marina Silva

msn_da_marina@live.com

I

sadora, de 1 ano e dois meses, experimenta os primeiros passos da vida, ainda que cambaleante. Nessas caminhadas, procura auxílio, no dia a dia, com uma pessoa em especial. Quando está com fome ou sono, o olhar é para ela: Ana Karine Souza Gomes, de 21 anos. Não é a mãe, mas a babá. Trata-se da pessoa que fica mais tempo com a criança, o dia inteiro. A funcionária dorme no emprego, em um apartamento de três dormitórios no Guará. Ela se torna a primeira pessoa a olhar para o bebê no dia seguinte. Histórias como essa mostram que a terceirização da maternidade não está restrita ao cinema e não é exceção. Filmes nacionais como “Que horas ela volta?” (que foi indicado pelo Brasil ao Oscar) discutem essa delicada relação entre famílias e empregadas domésticas. O irmão de Isadora, Leonardo, de seis anos, gosta tanto de Ana Karine que a quer sempre por perto. A mãe dele, Ana Paula de Castro, relata que quando o menino viu a ajudante com as bagagens prontas para ir ao retiro da igreja, entrou em pânico. “Ele forçou ela a abrir todas às três malas que tinha arrumado para ter certeza que ela não estava abandonando ele”, lembra. O sentimento é recíproco.

“O que eu sinto por

eles é amor. Eu amo demais a Isadora e o Leonardo” Eu não sei se eu consigo mais viver longe da Isadora”, disse Ana Karine. Tanto que ela se esforça para visitar os meninos quando passa o fim de semana fora. Para “alívio” de Ana Paula, a empregada não tem filhos ou esposo, o que possibilita que a moça viva na casa. “Tomara que continue assim por 20 anos” desabafa Ana Paula. Com a moça perto, a patroa, tem ajuda 24 horas por dia, todos os dias da semana, para arrumar a casa e cuidar das crianças. A proximidade é tanta que a empregada faz parte da família. Por isso, a patroa acha que os novos direitos trabalhistas impostos pelo FGTS, a partir de outubro deste ano, são um exagero. “Eles querem que nós tratemos nossa casa como uma empresa. Não tem jeito, as coisas se misturam, sim. Existe um respeito, mas é uma relação familiar”. Desde que a vida de trabalho foi conquistada pelas mulheres, que não precisavam mais ser as donas de casa, os filhos passaram a requerer mais cuidados. Para resolver o problema, as empregadas domésticas tornaram-se as cuidadoras das

casas e das crianças.

Confiança

Jeane tem três filhos e é casada. Filha, neta e irmã de empregadas domésticas, ela começou a trabalhar como auxiliar administrativa e depois como babá. Hoje, relata que a carteira de trabalho está assinada como empregada doméstica, mas o melhor serviço é o de babá. De acordo com ela, cuidar de crianças e de casa é cansativo, mas, o descanso vem quando os patrões saem e os menores relaxam. Na primeira casa Jeane trabalhou com três crianças e o apego foi recíproco. Lá, ela chegava às sete horas da manhã e ficava quase até às nove da noite. Ela diz que chegou ao ponto de um dos garotos a chamar de mãe e à progenitora de babá. Era tanto tempo com os filhos dos outros que ela trocava os nomes quando chegava na própria casa. Mas, os patrões não se importavam, sentiam-se seguros com a presença de Jeane. Já chegaram a viajar com um dos filhos doentes, deixando-os com ela. “Se estão te pagando, é obrigação sua o que eles estão pedindo. Pra quem tem dinheiro, pode pagar uma babá e tem referência, eles podem confiar” relata Jeane. A confiança era tanta que a deixavam usar um cartão de crédito. Para ela, a regulamentação da carreira sempre foi organizada. Na primeira família onde trabalhou, todos os direitos eram pagos em dia. Ela relata que a patroa até

arrumou um contador para organizar os novos salários com a mudança no FGTS da legislação trabalhista para as empregadas domésticas. Mas Jeane não quer que a herança de família prossiga, ela espera que a filha mais velha, Maria Gabriela, de 17 anos, se forme em música.

Avó

Não é o caso de Ana Maria Benício de Moraes, cuja filha de 26 anos, Crisna, começou a trabalhar como empregada com 18 anos e engravidou com 20. Com 42 anos, Ana Maria diz que sempre trabalhou em horários integrais como doméstica e acha que a distância entre ela e a filha ajudou no mau comportamento da menina. De acordo com ela, não tinha como ter certeza de que Crisna ia para a escola ou se a garota ia namorar e matar aula. Ana Maria foi doméstica de Haroldo Nera por 14 anos, mas depois que o patrão faleceu, tornou-se diarista. Ele era separado e tinha três filhos crescidos que já haviam saído de casa. A relação com o patrão era ótima, ela o considerava como um pai. A amizade com os filhos de Haroldo, Vitor, Felipe e Rafael, ainda é forte. Ana Maria, não tinha hora certa de entrar e sair do serviço. O tempo que levava para arrumar a casa determinava o horário de ir embora. Mas a vida de doméstica nem sempre foi tão tranquila para Ana Maria. Antes

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