Monografia - Andressa Bittencourt

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ANDRESSA DE BITTENCOURT VIEIRA DANTAS

DOCUMENTÁRIO JORNALÍSTICO E FUNÇÃO SOCIAL: A CONTRIBUIÇÃO DO NÃO CONTA LÁ EM CASA PARA A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO IRÃ

Monografia apresentada ao Curso de Jornalismo do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo. Orientação: Profa. Ms. Kamila Bossato Fernandes

FORTALEZA 2014


ANDRESSA DE BITTENCOURT VIEIRA DANTAS

DOCUMENTÁRIO JORNALÍSTICO E FUNÇÃO SOCIAL: A CONTRIBUIÇÃO DO NÃO CONTA LÁ EM CASA PARA A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO IRÃ

Monografia apresentada ao Curso de Jornalismo do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo.

Aprovada em: 26/11/2014

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Profa. Ms. Kamila Bossato Fernandes (Orientadora) Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Francisco Paulo Jamil Almeida Marques (Membro) Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas (Membro) Universidade Federal do Ceará (UFC)


AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter-nos dado o dom da vida, que, com sabedoria, deve ser usado para pensar sempre no próximo. Aos meus pais, Jailton e Beatriz, e à minha irmã, Amanda, pela convivência diária que me possibilitou a criação de personalidade voltada à ética e à responsabilidade. À minha avó Arinda e ao meu avô José Guilherme (in memoriam), de quem herdei a paixão pelo Jornalismo e a quem agradeço a valorização e leitura de todos os meus “artigos” escritos. A Igres, por todo companheirismo e dedicação e por acreditar em um futuro de sucesso. À professora Kamila, sem a qual este trabalho não teria se concretizado, pela orientação e ajuda e, principalmente, pela amizade e exemplo. À equipe do Não Conta Lá em Casa, em especial a André Fran, pela solicitude em oferecer conteúdo de apoio a esta pesquisa. A todos os amigos que sempre apoiaram a minha escolha e àqueles que, assim como eu, acreditam em um Jornalismo voltado para o bem e para a construção de um mundo melhor.


“‫ب نی آدم اع ضای ی ک پ ی کرن د‬ ‫ک ه در آف ری نش ز ی ک گ وهرن د‬ ‫چو ع ضوى ب ه درد آورد روزگ ار‬ ‫ق راردگ ر ع ضوها را ن مان د‬ ‫ت و ک ز مح نت دی گران ب ی غمی‬ ‫آدمی ن ه ند ن امت ک ه ن شای د‬ Human beings are members of a whole, In creation of one essence and soul. If one member is afflicted with pain, Other members uneasy will remain. If you have no empathy for human pain, The name of human you cannot retain. Os seres humanos são parte de um todo, Na criação de uma única essência e alma. Se um membro sofre dor, Outros membros inquietos permanecerão. Se você não tem empatia com a dor humana, Você não pode ser considerado humano.” (Saadi Shirazi, tradução livre para o português)


RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo verificar de que forma o programa de viagens Não Conta Lá em Casa contribui para a construção da imagem do Irã. O trabalho justifica-se pela falta de estudos acadêmicos sobre a temática e pela pretensão que o programa tem de desmistificar estereótipos dos países visitados. Os principais conceitos discutidos são: construção da realidade; estereótipo; função social; jornalismo de resistência; infotenimento; reality show e documentário jornalístico. A pesquisa foi feita qualitativamente, tendo caráter descritivo, com base nos episódios relativos ao Irã, da primeira temporada do NCLC, que somam 1h1min4seg. Por meio da análise do discurso dos apresentadores e dos entrevistados, assim como pela observação das imagens, dos sons, da abordagem do filme e da postura dos apresentadores, chegou-se à conclusão de que o programa apresenta, predominantemente, características de documentário jornalístico e que alcança o objetivo de mostrar aspectos poucos conhecidos do local visitado, exaltando as qualidades do país pelo viés do cotidiano. A abordagem influenciada pelo infotenimento, por outro lado, deixa a desejar explicações mais claras acerca de aspectos negativos do país, como a segregação de gênero. O programa constrói uma imagem positiva do Irã, sobretudo por meio do reconhecimento com a cultura ocidental, contribuindo para a amenização do estereótipo do país. O Não Conta Lá em Casa possibilita que o espectador conheça a nação para além do senso comum, exercendo, por consequência, uma função social. Palavras-chave: Construção da realidade. Documentário jornalístico. Estereótipo. Função social. Infotenimento.


ABSTRACT The present research aims to verify how the travel program Não Conta Lá em Casa contributes to the construction of Iran’s image. The study is justified by the lack of academic studies about the subject and the claim that the program has to debunk stereotypes of the countries visited. The key concepts discussed are: construction of reality; stereotype; social function; Journalism of resistance; Infotainment; reality show and journalistic documentary. The research is done qualitatively and descriptively, based on the episodes of the travel to Iran, in the NCLC’s first season, which have 1 hour 1 minute and 4 seconds together. Through the discourse analysis of the presenters and the respondents, as well as by the observation of the images, the sounds, the approach of the film and the posture of the presenters, it was concluded that the program shows predominantly features of journalistic documentary and that they achieve the goal of showing little known aspects of the place visited, extolling the qualities of the country by the bias of everyday life. The approach influenced by Infotainment, on the other hand, leaves without clearer explanations about negative aspects of the country, such as the gender segregation. The program builds a positive image of Iran, particularly by means of recognition with the western culture, contributing to the easing of the stereotype of the country. Não Conta Lá em Casa makes it possible for the viewer knows the nation beyond common sense, therefore exerting a social function. Keywords: Construction of reality. Journalistic documentary. Stereotype. Social function. Infotainment.


SUMÁRIO

1.

INTRODUÇÃO.............................................................................................................9 1.1 Corpus empírico, metodologia e resultados..........................................................11

2.

O JORNALISMO DO NÃO CONTA LÁ EM CASA................................................14 2.1 Por que visitar o Irã?...............................................................................................14 2.1.1 O Irã........................................................................................................................16 2.2 A mídia e a construção da realidade......................................................................20 2.2.1 Enquadramento.......................................................................................................24 2.3 Senso comum, estereótipos e ideologia..................................................................26 2.4 Função Social...........................................................................................................29 2.4.1 Interesse coletivo....................................................................................................32 2.5 Jornalismo Interpretativo e Jornalismo de Resistência.......................................34

3.

GÊNEROS E FORMATOS........................................................................................38 3.1 Infotenimento...........................................................................................................38 3.2 Reality Show versus Documentário Jornalístico...................................................42 3.2.1 Características do documentário jornalístico..........................................................44 3.2.2 Hibridismo de gêneros............................................................................................46 3.3 A voz do Não Conta Lá em Casa.............................................................................48 3.3.1 A construção imagética e o som.............................................................................49 3.3.2 A cronologia dos eventos.......................................................................................51 3.3.3 Modo de representação...........................................................................................52

4.

A JORNADA IRANIANA..........................................................................................55 4.1 Aspectos formais do Não Conta Lá em Casa.........................................................57 4.2 Como o Não Conta Lá em Casa enxerga o Irã.......................................................61 4.2.1 Ocidente versus Oriente..........................................................................................61 4.2.2 O povo iraniano......................................................................................................74 4.2.3 As mulheres e a opressão........................................................................................79 4.2.4 Cultura e ideologia iraniana....................................................................................86 4.2.5 O outro Irã..............................................................................................................90 4.2.6 Reconhecimento e Distanciamento........................................................................93 4.2.7 Discurso autolegitimador........................................................................................96

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................99


REFERÊNCIAS...............................................................................................................103 ANEXOS...........................................................................................................................108 Anexo A – E-mail de André Fran (26 de setembro de 2013)........................................108 Anexo B – E-mail de André Fran (15 de agosto de 2014)............................................109 Anexo C – DVD – Documentário do Não Conta Lá em Casa sobre o Irã (Direção de Leondre Campos)..........................................................................................................110


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CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO Os primeiros quinze anos do século XXI serão lembrados, entre outros acontecimentos, por uma série de episódios envolvendo países do Oriente Médio. O atentado às Torres Gêmeas, de 11 de setembro de 2001, a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos de 2003 a 2011 e mais um capítulo da eterna disputa entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza, que marcou 2014, são alguns exemplos disso. Mesmo sem fronteiras definidas, o Oriente Médio abrange um conjunto de quase 20 países, entre eles: Afeganistão, Síria, Iraque e Kuwait. Devido à frequente aparição na mídia de alguns desses territórios ligados a eventos bélicos, a região foi consolidando, ao longo dos anos, um estereótipo ao qual é associada indiscriminadamente. Entre os países que fazem parte desse conjunto e que sofrem com as constantes e simplistas referências midiáticas está o Irã, um território pouco conhecido pelos ocidentais além de seu senso comum. O Irã é um país de história milenar, mas que tem sido lembrado, desde 1979, apenas por eventos ligados a guerras, protestos, mortes e fundamentalismo religioso. A nação faz parte de um imaginário popular negativo, pois não bastasse os costumes quase que opostos aos ocidentais, o país sofre diversos tipos de sanções dos Estados Unidos há pelo menos 35 anos por causa da Revolução Islâmica – que colocou abaixo tudo que era associado aos EUA e que enfraquecia os preceitos religiosos daquele país. Além disso, o Irã tem sido alvo de recente desconfiança em razão de seu programa nuclear, acusado de ter fins bélicos, e dos protestos ocorridos em 2009 contra a reeleição do então presidente Mahmoud Ahmadinejad, que abalou a segurança acerca da democracia no país. Por causa desse e de outros fatores, a nação tem sido mostrada na mídia sempre de forma pouco positiva. O olhar ocidental sobre esse povo, influenciado pela ideologia e pelo modo de fazer do jornalismo americano, contribuem para uma eterna propagação do estereótipo do Irã, inclusive em países tidos como “neutros” na política internacional, como o Brasil. Nesse contexto, eis que surge, em 2009, um programa de televisão chamado Não Conta Lá em Casa (NCLC) – apresentado por Leondre Campos, Bruno Pesca, Felipe Ufo e


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André Fran –, cuja proposta é visitar países considerados “perigosos”, “inóspitos” e estereotipados para “ver de perto” o que se passa nesses locais e poder tirar uma conclusão própria, em contraposição à imagem que esses lugares carregam no resto do mundo. Veiculado pelo canal a cabo Multishow, do grupo Globosat, onde divide espaço com outras atrações de viagens e turismo, o Não Conta Lá em Casa já percorreu mais de 30 países nas primeiras sete temporadas, com episódios semanais de 30 minutos, e vem tentando, como parte da imprensa, construir uma imagem própria dos locais visitados – imagem esta que pode ser diferente ou não daquela mostrada pela mídia de grande alcance. Esta pesquisa justifica-se, pois, pelo fato de o Não Conta Lá em Casa se diferenciar entre os programas do mesmo gênero exibidos pelo canal Multishow, tratando de temáticas relevantes e tentando mostrar, com um enfoque diverso, países pouco conhecidos ou estereotipados. Tendo em vista a falta de estudos acadêmicos acerca do programa e a pretensão do NCLC de mudar a visão que o mundo tem sobre os países visitados – como afirma um dos apresentadores, André Fran, que vê no Não Conta Lá em Casa “uma ferramenta para quebrar preconceitos, derrubar paradigmas e tentar fazer desse um mundo melhor” (PIRES, 2013) –, torna-se interessante a realização do trabalho, visando a verificar a real contribuição do programa para a desmistificação do estereótipo tradicionalmente associado a esses países, sobretudo o Irã. Desta forma, pretende-se, por meio deste estudo, compreender de que modo o NCLC (re)qualifica a nação. Para tanto, a pergunta norteadora é: De que forma o Não Conta Lá em Casa contribui para a construção da imagem do Irã? Ao longo da pesquisa, tentou-se resolver esse e os seguintes questionamentos: a) O NCLC alcança o objetivo de desmistificar o estereótipo acerca dos países visitados tomando como base o Irã? b) Que elementos (ex.: discurso, imagens, entrevistas, sons) são utilizados pelo NCLC para confrontar o senso comum tradicionalmente associado ao Irã? c) O que o NCLC mostra de diferente no Irã? Isso reforça ou ameniza o estereótipo do país? d) Ao tentar desmistificar o estereótipo do Irã, o NCLC exerce uma função social? e) De que modo o formato do programa (documentário jornalístico) contribui para a mudança de visão sobre o Irã? Tomando como corpus empírico os episódios relativos ao Irã, veiculados em 2009, na primeira temporada do Não Conta Lá em Casa, pretende-se, pois, por meio da pesquisa,


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alcançar o seguinte objetivo: analisar o programa, verificando se ele contribui para a desmistificação do senso comum existente acerca do Irã, criando, consequentemente, uma nova imagem do país. Como objetivos específicos, os que seguem: 

Realizar análise qualitativa dos episódios selecionados, verificando se a imagem do

Irã veiculada pelo NCLC é ou não diferente do senso comum que existe acerca do país; 

Verificar se o NCLC reforça ou desmistifica o senso comum existente acerca do Irã,

analisando as formas de expressão do programa (entrevistas, discursos, imagens e sons); 

Contextualizar os eventos recentes ocorridos no Irã, de 1979 a 2009 (ano da

realização dos episódios), visando a entender de que forma o país é visto pela mídia de grande alcance até aquela data; 

Constatar se, no caso de o NCLC desmistificar ou amenizar o estereótipo do país, ele

exerce uma função social.

1.1 Corpus empírico, metodologia e resultados Embora já tenham sido exibidas sete temporadas até 2014, cada uma variando entre um e três meses de duração, somente a primeira foi lançada em DVD. Portanto, dentre o universo de episódios sobre os mais diferentes países, restou gravado, oficialmente, sobre os seguintes: Mianmar, Coreia do Norte, Irã, Iraque e Afeganistão. No citado DVD, todos os episódios de cada país foram compilados, apresentando-se cada um como um filme, tendo duração de até 1 hora e 30 minutos. A junção dos episódios do Irã em um único “título” ou documentário tem 1 hora, 1 minuto e 4 segundos, sendo, portanto, este o corpus empírico do presente trabalho. No DVD, o título “Irã” é dividido em onze capítulos: 1. Oriente Médio: verdades e mitos; 2. Nossa base na região; 3. Chegando em Teerã; 4. Nossas percepções preconceituosas; 5. O grande bazar iraniano; 6. Na embaixada brasileira; 7. Desbravando o país; 8. Grandes poetas persas; 9. Persépolis e arredores; 10. Os camelos do Ufo; 11. A triste história de Arg-eBam. A escolha pelos episódios relativos ao Irã, nesse caso reunidos em um único documentário, deu-se pelo fato de os integrantes do programa enfatizar a vontade que tinham de verificar a situação do país na época das gravações, desejando, especialmente quanto a essa nação, desmistificar alguns estereótipos. Dessa forma, no segundo capítulo do trabalho, são abordados os conceitos basilares à pesquisa: senso comum, estereótipos, construção da realidade, função social, jornalismo


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interpretativo e jornalismo de resistência. No capítulo seguinte, tratam-se dos gêneros e formatos os quais “emprestam” características ao Não Conta Lá em Casa: infotenimento, reality show e documentário jornalístico. Por fim, observa-se a construção da imagem do país feita pelo programa a partir da análise dos episódios relativos à viagem ao Irã. A metodologia utilizada é análise do discurso, com base no estudo de Patrick Charaudeau (2006), com a aplicação subsidiária da teoria do jornalismo de resistência de Felipe Pena (2012). A pesquisa é feita qualitativamente, tendo caráter descritivo. Tentou-se interpretar e explicar os efeitos das estratégias discursivas utilizadas pelo programa para construir uma nova imagem do Irã. A análise dos episódios se deu basicamente pela observação não participante, descrição e transcrição de partes do discurso, pois esses procedimentos metodológicos se mostraram os mais viáveis em se tratando da análise audiovisual. Para isso, foi observado o discurso veiculado pelo NCLC, em contraposição ao senso comum existente acerca do Irã, englobando também as imagens, as declarações dos entrevistados, a trilha sonora escolhida, a postura dos apresentadores, entre outros meios de expressão. A fim de auxiliar ao máximo a compreensão da imagem do país construída pelo NCLC, foram tomados como documentos auxiliares o capítulo relativo à visita ao Irã do livro “Não Conta Lá em Casa: Uma viagem pelos destinos mais polêmicos do mundo”, escrito por André Fran, além de uma breve entrevista feita com ele por e-mail. Ao final, pôde-se concluir que o programa, de fato, consegue mostrar “outro lado” do Irã, destacando as qualidades do país pelo viés do cotidiano, do corriqueiro, da trivialidade, através de uma visão de reconhecimento com o Ocidente. A abordagem da atração é influenciada pelo seu formato, que associa informação e entretenimento (infotenimento). Por isso, algumas críticas permanecem nas entrelinhas, uma vez que o programa não busca explicações mais claras em relação a alguns aspectos, como é o caso da segregação de gênero no país. O NCLC evita “pôr o dedo na ferida” e acaba, de certa forma, ignorando certos aspectos negativos, silenciando ou minimizando as polêmicas. O grande mérito do programa, na realidade, não é cumprir a sonhada missão de desmistificar estereótipos, mas de ter uma proposta que se destaca das atrações similares do gênero. O Não Conta Lá em Casa dá sua contribuição para o exercício de uma função social no jornalismo quando possibilita ao espectador refletir sobre o Irã de outra maneira, mesmo que de forma ocidentalizada. A tentativa do documentário de mudar uma imagem há décadas


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marcada por estereótipos e preconceitos já é uma forma de contribuir para a democracia entre os povos, sendo uma forma, portanto, de exercer uma função social.


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CAPÍTULO 2 O JORNALISMO DO NÃO CONTA LÁ EM CASA 2.1 Por que visitar o Irã? O Não Conta Lá em Casa (NCLC) é um programa de viagens televisionado pelo canal de TV a cabo Multishow, do grupo Globosat. A atração teve como embrião o documentário Indo.doc, feito pelos mesmos produtores do programa em 2005, após o tsunami que atingiu a Indonésia em 26 de dezembro do ano anterior e do terremoto que se deu na mesma região em 28 de março de 2005. Para a feitura do documentário, Leondre Campos, Felipe Ufo e Bruno Pesca, ajudados pela produção de André Fran, transformaram o que seria uma viagem de surf em uma aventura humanitária. Sem temer outras catástrofes que poderiam ocorrer no país asiático, os três amigos decidiram ir à Indonésia de qualquer forma e verificar o que estava acontecendo lá logo após esse grande desastre natural. Os rapazes voltaram ao Brasil com mais de 50 horas gravadas, realizando, então, o filme que seria selecionado para a 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, servindo de inspiração para a criação do programa. O Não Conta Lá em Casa tem exibição semanal em programas de 30 minutos. Desde 2009, quando foi veiculado pela primeira vez, até 2014, o NCLC já teve sete temporadas. Nesse ínterim, Leondre, Bruno, Felipe e André já percorreram mais de 30 países, entre eles: Mianmar, Coreia do Norte, Irã, Iraque, Afeganistão, Haiti, Cuba, Etiópia, Egito, Ucrânia, Tunísia, Japão e Somália. Com a saída de Leondre e de Bruno, após a quinta temporada, e a entrada de Michel Coeli no elenco, o programa também visitou Israel, Palestina, Rússia, Crimeia, Islândia e Ilhas Faroe (Dinamarca). Segundo os produtores da atração, o Não Conta Lá em Casa tem como objetivo revelar um outro lado de países que se encontram em situação de guerras, ditaduras, crises ambientais e/ou fechados para o mundo. NCLC visa, então, explorar a questão social e política dos lugares escolhidos – que geralmente são países pouco conhecidos ou estereotipados pela mídia de grande alcance –, e tenta mostrar “a fundo” as situações vividas pelos cidadãos e seus pontos de vista1. O programa foi batizado com o nome “Não Conta Lá em Casa” justamente pelo fato de as viagens serem direcionadas a locais considerados “perigosos” ou “inóspitos”, conforme 1

NÃO CONTA LÁ EM CASA. Multishow. Disponível em: <http://multishow.globo.com/Nao-Conta-La-emCasa>. Acesso em: 29 ago. 2013.


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explica André Fran no livro “Não Conta Lá em Casa: Uma viagem pelos destinos mais polêmicos do mundo”: “Batizamos a série com esse nome pois imaginamos que, se fôssemos alertar nossos familiares sobre os locais para onde iríamos ou o que estávamos pretendendo fazer, corríamos o risco de nem sequer dar o primeiro passo” (PIRES, 2013, p. 12). O NCLC divide espaço no Multishow com diversos outros programas de viagem, a saber: Lugar Incomum, Nalu Pelo Mundo, Vai Pra Onde?, entre outros. Diferentemente, porém, de todas as citadas atrações, o NCLC apresenta características de documentário jornalístico – como será tratado em momento oportuno neste trabalho –, explorando a situação de diversas nações que vivenciam os mais diferentes tipos de conflito. Em 2010, o programa ganhou o Prêmio Monet2 na categoria Melhor Reality Show; foi considerado o 2° Melhor Programa da TV Fechada (Revista da TV - O Globo) e foi premiado no Festival Input TV3 (Hungria)4. Os destinos visitados pela equipe do Não Conta Lá em Casa durante a temporada de estreia, gravada entre 2008 e 2009 e veiculada em 2009, foram: Mianmar, Coréia do Norte, Iraque e Irã – esta última viagem que será o objeto do presente estudo. Na primeira temporada, foram 13 episódios para apresentar o ‘Eixo do Mal’, na definição nada simpática de George W. Bush. Conhecemos a ditadura opressora de Mianmar, que agride monges indefesos e prende seus cidadãos por cometerem o crime de contar piadas sobre seus governantes, vimos do lado de dentro a realidade surreal da fechadíssima Coreia do Norte, fizemos amizades (femininas!) no polêmico Irã e quase choramos de medo nas ruas de um Iraque que mais parecia um cenário de Rambo. (PIRES, 2013, p. 13)

Até o momento da viagem ao Irã, o que a equipe sabia, pois, sobre esse país era o que se veiculava na mídia de grande alcance. No contexto tratado, George W. Bush, antigo presidente dos Estados Unidos (2000 - 2008), havia denominado Coreia do Norte, Irã e Iraque como o “Eixo do Mal” em um discurso no ano de 2002, acusação segundo a qual tais países seriam hostis aos EUA e possuiriam armas de destruição de massa (um reflexo do medo ocasionado pelos atentados de 11 de setembro de 2001). O que seria um “lema contra o 2

Premiação promovida pela Revista Monet (Editora Globo), que elege, por voto popular, os melhores programas da TV por assinatura em mais de 10 categorias. (GNT CONCORRE COM 12 PROGRAMAS AO PRÊMIO MONET. SAIBA COMO VOTAR. GNT. Disponível em: <http://gnt.globo.com/maisdatv/noticias/GNTconcorre-com-12-programas-ao-Premio-Monet--Saiba-como-votar.shtml>. Acesso em: 2 mai. 2014) 3 “O INPUT é uma conferência anual que tem o objetivo de incentivar o desenvolvimento de uma televisão de qualidade, a serviço da formação da cidadania, realizada já há 28 anos, sempre em países diferentes. O Input 2010 aconteceu [...] em Budapeste, na Hungria”. (O MELHOR DO INPUT 2010. Blog da Sala de Cinema P.F. Gastal (Prefeitura Municipal de Porto Alegre). Disponível em: <http://salapfgastal.blogspot.com.br/2010/10/o-melhor-do-input-2010.html>. Acesso em: 2 mai. 2014.) 4 NÃO CONTA LÁ EM CASA. Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/naocontalaemcasa/info>. Acesso em: 11 abr. 2014.


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terrorismo”, tornou-se, na verdade, mais uma forma de evidenciar por meio da imprensa uma imagem muitas vezes errônea e/ou estereotipada dessas nações.

2.1.1 O Irã A República Islâmica do Irã é um país localizado no sudeste da Ásia, no chamado Oriente Médio, tendo população de 75,330,000 e alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)5. Faz fronteira a leste com o Afeganistão e a oeste com o Iraque. Muito embora carregue o rótulo de lugar “perigoso”, o país suscitou a curiosidade dos integrantes do programa, que objetivaram verificar sua situação e tentar desmistificar alguns de seus estereótipos. Por meio de declarações feitas durante a viagem, que aconteceu em 2009 e foi veiculada em outubro do mesmo ano, é possível perceber o interesse da equipe pela nação, como disse Felipe Ufo no documentário sobre o Irã:

Eu tenho, há muito tempo, muito interesse de conhecer o Irã, porque eu acho que é um lugar de uma cultura fascinante, de uma história riquíssima, o berço de várias civilizações, o Império Persa... Você começa a ouvir de Dario, de Ciro... Aí você começa a ficar fascinado com tudo aquilo. Então, já tinha esse ponto histórico, para saber da riqueza histórica que é o Império Persa, hoje chamado de Irã, e outro ponto é por o Irã estar na mídia sempre de uma forma pejorativa, de uma forma negativa. Quando você fala de Irã, vem para você a imagem dos aiatolás, da Revolução Islâmica, de um país meio que proibido, perigoso e naquele em que as pessoas não podem, não deveriam estar indo. Não é essa a imagem que eu tenho do Irã, então eu estou curioso para saber se a imagem que eu tenho é a correta ou é a errada, se a imagem que a mídia passa do Irã é a correta ou é a errada. (6’40’’ a 7’18’’)

Flávio Vinícius Soares de Souza realizou estudo específico sobre a construção da imagem do Irã veiculada pelo Jornal Nacional em 2009. Assim como no presente estudo, esteve sob análise a forma pela qual a imprensa evidenciou o país, em um contexto de turbulência política, destacando o enquadramento pelo qual o mundo ocidental passou a enxergar essa nação a partir da afirmativa de George W. Bush.

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“O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso a longo prazo em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde. [...] Pretende ser uma medida geral e sintética que, apesar de ampliar a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, não abrange nem esgota todos os aspectos de desenvolvimento” (DESENVOLVIMENTO HUMANO E IDH. PNUD Brasil. Disponível em: <http://www.pnud.org.br/IDH/DH.aspx>. Acesso em: 6 nov. 2014.). O IDH do Irã medido em 2012 ficou em 0,742, ocupando a 76ª posição no ranking mundial (ABOUT IRAN. Iran. Disponível em: <http://www.en.iran.ir/about/>. Acesso em: 10 abr. 2014). O Brasil ficou na 85ª colocação, com IDH de 0,730. (BRASIL CONTINUA NA 85ª POSIÇÃO NO RANKING MUNDIAL DE IDH; VEJA RESULTADO DE TODOS OS PAÍSES. Uol. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/infograficos/2013/03/14/brasil-fica-na-85-posicao-no-ranking-mundial-de-idh-vejaresultado-de-todos-os-paises.htm>. Acesso em: 9 ago. 2014.)


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Não pretendemos realizar uma espécie de defesa ou justificação de atos do governo iraniano que podem ser entendidos como deploráveis. Com efeito, o que procuramos foi analisar a cobertura que se constrói de um país que parece ser entendido como uma oposição. A locação deste país num “eixo do mal” por George W. Bush [...] pode servir de indício da maneira como esta nação é vista no contexto da política internacional nestas últimas décadas. (SOUZA, 2010, p. 7)

O que justifica a retaliação dos Estados Unidos contra o Irã, e a consequente propagação de uma imagem pejorativa deste, remonta à primeira metade do século XX. Entre 1925 e 1941, Reza Khan Pahlavi6 ocupou o cargo de Xá (título da monaquia) no Irã. Até 1935, a nação era denominada “Pérsia”, muito embora os iranianos já se chamassem assim. O governo de Reza Pahlevi é tido pelos opositores como sujeito aos governos ocidentais, sobretudo porque este governante “inclinava-se a laicizar o Irã como uma república ocidentalizada” [...], proibindo, para tanto, costumes religiosos já arraigados na cultura local, como o xador (vestimenta preta usada pelas mulheres, cobrindo o corpo inteiro). (SOUZA, 2010, p 31)

Pahlavi havia entrado no poder com a ajuda dos britânicos – temerosos de que o comunismo russo se alastrasse pela região – e também foi deposto indiretamente por eles, quando perdeu seu suporte sob a alegação de simpatizar com o regime nazista (SOUZA, 2010, p. 31). Ficou em seu lugar Muhammed Reza Pahlavi, seu filho, cujo governo durou até 1979, “numa administração muito parecida à de Reza Khan no que se refere à submissão aos governos ocidentais” (SOUZA, 2010, p. 31). Até então, os Estados Unidos eram vistos pelo Irã como uma nação libertadora, devido a sua atuação após a II Guerra Mundial no sentido de expulsar as tropas da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) do território iraniano. No entanto, em 1953, os americanos e os ingleses se envolveram num golpe para derrubar do poder Mossadegh, Primeiro-Ministro iraniano que havia decretado a nacionalização da companhia inglesa (atual British Petroleum) possuidora do monopólio da exploração petrolífera no país. “Esta intervenção secreta americana destruiu a credibilidade dos EUA no Irão: teve um impacto tão negativo que a sua influência perduraria ao longo das décadas, acabando por alimentar o antiamericanismo e os sentimentos de revolta contra o Xá” [...]. Desse modo, começavam a surgir na população iraniana sentimentos de insurreição e inconformismo em relação ao governo de Reza Pahlevi e à presença norte-americana no país, representada, inclusive, na gradativa ocidentalização da cultura iraniana. (SOUZA, 2010, p. 34)

Muhammed Reza implantou, em 1963, um conjunto de reformas econômicas e sociais com o objetivo de tornar o Irã uma potência industrial. O programa não foi bem recepcionado 6

Os nomes próprios traduzidos podem apresentar diferentes grafias, como “Pahlavi” e “Pahlevi”.


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pelo clero e pelos setores aristocráticos do país, devido a mudanças como a reforma agrária e a concessão de direitos a mulheres – o que seria contra a tradição religiosa xiita. Em um contexto em que a religião ia perdendo autoridade, apareceu uma figura emblemática, o aiatolá Ruhollah Khomeini (1902 – 1989). O “aiatolá” (o mais alto dignatário da hierarquia religiosa, expoente do conhecimento dentro do Islã Xiita e descendente direto de Maomé) liderou o que se chamaria “Revolução Islâmica”, movimento de insurreição da população iraniana contra o governo do Xá. A base dos protestos era o antiamericanismo e a luta pela permanência dos valores religiosos. Em 4 de novembro de 1979, houve a tomada da embaixada americana em Teerã, capital do Irã, pelos revolucionários, que fizeram 52 americanos reféns durante 444 dias. Um mês após a ocupação, uma nova Constituição foi aprovada, criando o regime islâmico. Após a vitória dos iranianos, o Xá foi derrubado, e o Irã rebatizado oficialmente de República Islâmica do Irã, que se tornou um estado teocrático. A Constituição de 1979 designa Aiatolá Khomeini como o jurista piedoso ou faqih (guia de políticas e tomador de decisões finais)7. A partir desse momento, o país deixa de viver uma dinastia e passa a ser uma república. A Revolução Iraniana ainda é, para o governo americano, uma importante demonstração de que o Irã deve ser compreendido como um opositor dos Estados Unidos. Inclusive, ainda persiste na mentalidade de grande parte da população americana – e mesmo de outros países ocidentais – a ideia de que o Irã é constituído por governantes perversos e uma população fanática. (SOUZA, 2010, p.36)

Um ano após a deflagração da Revolução Islâmica, Irã e Iraque entram em conflito por causa de disputas políticas e territoriais. A guerra entre as duas nações durou quase oito anos, iniciando em 22 de setembro de 1980, quando o Iraque invadiu o país vizinho. O governo de Saddam Hussein queria se precaver contra a “exportação da revolução islâmica” pregada pelo Aiatolá Khomeini [...]. Saddam temia que os fundamentalistas iranianos instigassem, não só com palavras, mas também com armas, uma revolta da maioria xiita da população iraquiana. No campo territorial, Saddam desejava reafirmar a soberania iraquiana sobre o canal de Shatt al-Arab, via crucial de acesso ao Golfo Pérsico, e cobiçava o Cuzistão, província iraniana rica em petróleo. [...] Em 11 de março de 1988, quando o conflito contabilizava um milhão de mortos e 1,7 milhão de feridos, o Irã concordaria com um cessar-fogo mediado pela ONU. Em 1990, uma década depois do início da guerra, Irã e Iraque reataram relações. Saddam retirou-se do território vizinho e dividiu com Teerã a soberania sobre Shatt al-Arab.8 7

IRAN: History. Iran. Disponível em: <http://www.en.iran.ir/about/history/>. Acesso em: 6 abr. 2014. GUERRA IRÃ-IRAQUE DUROU DEZ ANOS E CONTABILIZOU UM MILHÃO DE MORTOS. Acervo O Globo. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/guerra-ira-iraque-durou-dez-anoscontabilizou-um-milhao-de-mortos-10264306>. Acesso em: 30 nov. 2014. 8


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O estereótipo de nação bélica e fundamentalista, regida por uma religião de preceitos extremos, inclusive, foi reavivada nos últimos seis anos com a volta do Irã à mídia, principalmente em razão dos protestos, ocorridos em 2009, contra e a favor da reeleição do então presidente Mahmoud Ahmadinejad e devido às críticas ao programa nuclear iraniano. As aparições mais recentes do Irã na mídia iniciaram no final de 2013, quando o país negociava um acordo nuclear entre Teerã e o Grupo 5+1 (Estados Unidos, Rússia, China, França, Grã-Bretanha mais Alemanha). O combinado seria o Irã diminuir o enriquecimento de urânio para 5% durante seis meses até que o acordo definitivo fosse firmado; suspender a expansão e permitir o acesso dos inspetores internacionais às instalações nucleares, entre outras atividades9. Em compensação, parte das sanções impostas à nação desde 1979 – em represália à tomada da embaixada norte-americana – deveria ser aliviada, além de o país poder retomar transações comerciais em euro10. O atual presidente do Irã, Hassan Rohani, no poder desde 2013, afirmou, em setembro daquele ano, que o país não abriria mão de seus direitos nucleares: “No âmbito nuclear, nosso governo não renunciará nem um milímetro aos direitos absolutos do Irã, mas ao mesmo tempo tentará fazer (as negociações) avançarem com racionalidade e argumentos” 11. A despeito da declaração, em 24 de novembro do mesmo ano, o acordo provisório foi concluído em Genebra, Suíça. Em janeiro de 2014, o pacto entrou em vigor, valendo até julho, e, até o fim do ano, um acordo definitivo deve ser firmado. A polêmica acerca do assunto remonta a meados da década de 2000, quando o Irã passou a ser acusado de tentar se dotar de armas nucleares, amparando-se em programa civil, o que Teerã desmente, alegando que o enriquecimento de urânio é exclusivo para fins pacíficos. Desde 2012, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), tentava alcançar acordo para verificar as suspeitas sobre o possível objetivo militar do programa iraniano, que nunca foi confirmado. Durante o governo do antigo presidente Mahmoud Ahmadinejad (2005 – 2013), a pressão e as investigações acerca do suposto plano de criação de uma bomba nuclear foram intensas.

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IRÃ começa a cumprir acordo até janeiro. O Povo, Fortaleza, 30 nov. 2013. Mundo, p. 14. EUA desbloqueiam US$ 8 bilhões do Irã após acordo nuclear. O Povo, Fortaleza, 26 nov. 2013. Mundo, p. 16. 11 IRÃ DIZ NÃO RENUNCIAR A DIREITOS NUCLEARES. O Povo Online. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/mundo/2013/09/11/noticiasjornalmundo,3127240/ira-diz-nao-renunciara-direitos-nucleares.shtml>. Acesso em: 9 abr. 2014. 10


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Desde 2006, a ONU aplica sanções ao Irã, nas quais se incluem a restrição financeira e de viagens a pessoas e companhias ligadas ao programa nuclear; a limitação da importação de artigos de tecnologia; a proibição da exportação de armas e da comercialização de qualquer tipo de material e tecnologia que possam contribuir para o programa nuclear do país. As autoridades iranianas alegam que o programa nuclear tem utilidade exclusivamente pacífica. O presidente Mahmoud Ahmadinejad já condenou publicamente a utilização de armas nucleares, no que foi corroborado pelo Líder Supremo, o aiatolá Khamenei. O impasse, entretanto, permanece, e a mídia fica no meio dessas negociações e acordos, fornecendo uma visão própria dos acontecimentos. (SOUZA, 2010, p. 37)

Somada à discussão sobre o Irã pretender ser ou não um país bélico, o que gerava uma imagem negativa para a comunidade internacional, a série de protestos em 2009 relativos à reeleição de Ahmadinejad, fortemente veiculados pela mídia, consolidaram o verdadeiro estereótipo de nação em guerra. Considerado ultraconservador e profundamente religioso, Ahmadinejad foi um político bastante polêmico. Durante seu governo, eventos garantiram a presença do Irã na mídia, não necessariamente de uma forma positiva: a condenação da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani à morte por ter cometido adultério em 2010; a negativa do presidente de que o holocausto nunca existiu12; o já tão falado programa nuclear. Não obstante a má fama de Ahmadinejad no Ocidente, em 2009 ele se reelegeu com 62,6% dos votos. Milhares de partidários do principal candidato da oposição, o reformista Mir Hussein Mousavi, foram às ruas protestar, alegando fraude na apuração. Isso gerou uma série de confrontos, repressão extremamente violenta e até a emblemática morte de uma manifestante captada pelas câmeras de um cinegrafista amador e espalhada pelo mundo todo via Youtube (considerada a morte mais assistida pela humanidade, devido ao caráter viral que as fortes imagens ganharam na internet). (PIRES, 2013, p. 89)

Durante as manifestações ocorridas em junho de 2009, outras 20 pessoas também morreram nos confrontos. O fato de os protestos terem sido duramente reprimidos pôs em desconfiança a solidez da democracia no país.

2.2 A mídia e a construção da realidade Programa nuclear, protestos, guerra contra o Iraque, ditadura religiosa, confrontos e mortes. A imagem do Irã veiculada pela mídia de grande alcance não só serviu de informação

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AHMADINEJAD NEGA HOLOCAUSTO E PEDE UNIÃO GLOBAL CONTRA ISRAEL. Terra. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/mundo/oriente-medio/ahmadinejad-nega-holocausto-e-pede-uniaoglobal-contra-israel,c8fbfa2aa9aea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>. Acesso em: 10 abr. 2014.


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sobre os acontecimentos ocorridos em 2009, mas também como meio de consolidar para a sociedade mundial certos preconceitos existentes acerca do país. Tantos eventos que violam direitos humanos, cuja tendência é serem cada vez mais protegidos no Ocidente, foram edificando no imaginário13 popular um Irã perverso, perigoso e atrasado. Não por acaso, como muitos setores orientados pelo capitalismo americano, a mídia ocidental teria muito mais facilidade para se inclinar ao enquadramento de uma grande potência, com costumes similares aos de grande parte dos povos, que procurar desvendar o que há por trás de um país distante geográfica e culturalmente14. Isso acontece porque o que se denomina “real” é relativo. Cada nação, cada grupo ou até mesmo cada indivíduo toma para si as crenças e os valores consolidados por anos em um universo de criação comum. O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido que imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles. (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 36)

Dessa forma, assim como rejeitar o “estranho”, é comum e até compreensível que muitas práticas sejam rechaçadas em razão de uma divergência cultural. “O aparecimento de um outro possível universo simbólico representa uma ameaça porque sua simples existência demonstra empiricamente que o nosso próprio não é inevitável” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 147). Mas a grande questão, na realidade, não está no fato de os integrantes de uma comunidade não aceitarem os costumes do outro, mas serem induzidos a tanto – não por se tratar de agentes “passivos”, mas por receberem uma carga simbólica maior do que se poderia contestar. Como diz Nelson Traquina, “o jornalismo, devido à sua ‘autonomia relativa’, tem 13

“O termo ‘imaginário’ vem sendo cada vez mais utilizado e tendo maior penetração nos estudos teóricos, entretanto esta difusão e utilização são responsáveis por uma grande variedade no seu sentido e conceito. Normalmente ele não é definido de forma rigorosa e acaba por incluir várias noções e conceitos considerados de uso comum, mas que são vagos tais como a imaginação, a fantasia, o ilusório, o fictício, o irreal entre outros” (SERBENA, 2003, p. 3). Nesse sentido, Guiomar Dutra Lima suscita a conceituação de Gilbert Durand acerca dos termos “imagem” e “imaginário”: “A imagem é a matéria de todo o processo de simbolização, fundamento da consciência na percepção do mundo. Imaginário é a capacidade individual e coletiva de dar sentido ao mundo. É o conjunto relacional de imagens que dá significado a tudo o que existe. Uma resposta à angústia existencial frente à experiência ‘negativa’ da passagem do tempo. Durand (1989:14) define imaginário como: ‘O conjunto das relações de imagens que constituem o capital pensado do homo-sapiens’.” (LIMA, 2011). 14 Outras razões que podem ser apontadas como motivos para essa “afinidade” com a abordagem norteamericana são o papel exercido pelos Estados Unidos na produção jornalística mundial – com a venda de informações pelas agências e canais de notícias para o restante do mundo –, a presença de correspondentes estrangeiros no país, afinando o enfoque de suas matérias à visão deste, e, principalmente, a dependência econômica e cultural que as outras nações têm em relação a essa potência mundial.


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‘poder’, e, por consequência, os seus profissionais têm poder. Os jornalistas são participantes ativos na definição e na construção das notícias e, por consequência, na construção da realidade” (2005, p. 26). É possível, então, dizer que, além da “responsabilidade de mediar os acontecimentos do espaço público” (PENA, 2012, p. 31), o jornalismo exerce um papel ainda maior: o de construtor da realidade, como explica Patrick Charaudeau:

O universo da informação midiática é efetivamente um universo construído. Não é, como se diz às vezes, o reflexo do que acontece no espaço público, mas sim o resultado de uma construção. O acontecimento não é jamais transmitido em seu estado bruto, pois, antes de ser transmitido, ele se torna objeto de racionalizações [...]. Assim, a instância midiática impõe ao cidadão uma visão de mundo previamente articulada, sendo que tal visão é apresentada como se fosse a visão natural do mundo. Nela, a instância de recepção encontrará pontos de referência, e desse encontro emergirá o espaço público. (CHARAUDEAU, 2006, p. 151)

Felipe Pena relaciona o exercício do jornalismo com o antigo conceito de esfera pública, o qual remonta à Grécia Antiga, onde a vida na sociedade girava em torno nas ágoras, locais de discussão. Transpondo para o século XXI, ele afirma: “A mídia (a imprensa como parte dela) assumiu a privilegiada condição de palco contemporâneo do debate público. E a palavra palco não foi escolhida aleatoriamente. Na contemporaneidade, as representações substituem a própria realidade” (PENA, 2012, p. 29). No contexto de convergência midiática o qual presenciamos, nesse mesmo raciocínio entende Muniz Sodré: Hoje, em plena vigência da mídia eletrônica de massa, tem-se consciência de que a notícia não apenas representa ou “transmite” aspectos da realidade – hipótese embutida no modelo funcionalista – mas de que ela é também capaz de construir uma realidade própria. Isto não quer dizer que todo e qualquer acontecimento seja um mero artefato midiático, independente da dinâmica social, e sim que a mídia também produz efeitos de real. (SODRÉ, 2009, p. 25, grifos do autor)

Percebe-se, pois, ser pacífico o entendimento o qual afirma que “a ideia de que as mídias fundamentalmente ‘representam’ o social cedeu diante de sua ascensão como atores sociais, diante de sua legitimidade como sujeitos que intervêm ativamente na realidade” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 74 e 75). Assistir a um noticiário ou ler uma notícia são, hoje, o modo mais comum de se manter informado. Nem todos podem conferir com os próprios olhos o que se passa além de onde se está presente e é impossível ter conhecimento de tudo o que ocorre em todo lugar. A despeito disso, “queremos, pelo menos, acreditar que sabemos o que acontece nos mais


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longínquos rincões do universo, e, para isso, mandamos correspondentes, relatores ou alguma tecnologia que possa substituir o relato do homem” (PENA, 2012, p. 22 e 23). Juntando-se à ignorância acerca dos costumes de uma sociedade como o Irã às notícias que refletem a linha editorial de cada veículo, tem-se uma gama de possibilidades de interpretação sobre os acontecimentos. No processo jornalístico, ainda deve-se levar em conta o fato de os próprios jornalistas, na maioria das vezes, também não estarem presentes junto aos fatos. Como um “telefone sem fio”, as notícias se propagam de um local para o outro, ganhando novas conotações a partir de quem as reproduz. Nesse contexto, o receptor da mensagem tem a tarefa de escolher no que irá acreditar. Voltando à discussão de ser mais provável tomar como certo o discurso de uma potência como os Estados Unidos, invariavelmente o telespectador tomará partido contra a nação que, pelo menos aparentemente, pratica atos condenáveis em relação ao seu povo e aos demais integrantes da “sociedade mundial”. Nesse momento, ganha destaque a ideia de “jornalismo internacional”, citada por Flávio de Souza, quando se fala de mediação e recepção de notícias: O jornalismo internacional é uma importante fonte de informação para a formulação do pensamento que se tem de determinadas culturas internacionais. De fato, tendo o telespectador meios restritos para verificar, corrigir ou abrandar a cobertura que se faz da cultura de outro país, o jornalismo internacional ganha autoridade para determinar, em parte, aquilo que se pensa ou como se concebe uma cultura que se considera distante. (SOUZA, 2010, p. 45)

Levar um “porta voz” a locais remotos, a fim de manter os receptores informados, não garante, entretanto, uma abordagem imparcial do assunto. Não se fala aqui da subjetividade do repórter, mas da objetividade do procedimento de apuração. Isso quer dizer que o mediador (ou construtor) do fato deve pôr em prática a mais básica lição que se aprende na escola de jornalismo: ouvir sempre os dois (ou múltiplos) lados da história. A objetividade é definida em oposição à subjetividade, o que é um grande erro, pois ela surge não para negá-la, mas sim por reconhecer a sua inevitabilidade. Seu verdadeiro significado está ligado à ideia de que os fatos são construídos de forma tão complexa que não se pode cultuá-los como a expressão absoluta da realidade. Pelo contrário, é preciso desconfiar desses fatos e criar um método que assegure algum rigor científico ao reportá-los. [...] A objetividade, então, surge porque há uma percepção de que os fatos são subjetivos, ou seja, construídos a partir da mediação de um indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais e outras indiossincrasias. E como estas não deixarão de existir, vamos tratar de amenizar sua influência nos relatos dos acontecimentos. (PENA, 2012, p. 50)

Embora se fale de jornalismo de um modo geral, é importante ressaltar que, como parte da mídia, o Não Conta Lá em Casa também está inserido no rol de agentes passíveis de


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construir uma realidade a partir do que é veiculado pela atração. O que se pretende discutir é: qual é a realidade que o programa traz sobre o Irã? Essa imagem reforça estereótipos da nação? O NCLC tem uma clara proposta de tentar desmistificar o senso comum que existe acerca dos países por eles visitados, mas será que eles conseguem, de fato, convencer que existe outro lado de um mesmo tema que possa pelo menos “aliviar” o semblante grotesco ao qual o Irã é associado?

2.2.1 Enquadramento É necessário, para responder a essas perguntas, que haja um esclarecimento acerca dos meios utilizados pela mídia para a construção da imagem do que está tratando, pois “com suas regras discursivas peculiares, não apenas garante a publicidade e a visibilidade, mas, ao realizar a mediação, ela organiza o mundo a seu modo próprio” (MAFRA, 2006, p. 39 e 40). Chama-se, então, “enquadramento” o método que consiste em “selecionar alguns aspectos da realidade percebida e torná-los mais salientes em um texto de comunicação, de forma a promover uma definição particular do problema, interpretação causal, avaliação moral, a recomendação de tratamento dado para o item descrito” (ENTMAN, 1993, p. 52, tradução livre). O “enquadre” constitui, assim, um sistema de referências (regras, esquemas interpretativos) que possibilita a atribuição de sentido a uma ocorrência ou uma situação qualquer, de modo a organizar a experiência social. [...] o enquadramento midiático é a operação principal pela qual se seleciona, enfatiza e apresenta (logo, se constrói) o acontecimento. (SODRÉ, 2009, p. 38)

Sendo “selecionar” e “salientar”, portanto, tarefas básicas do Jornalismo, o enquadramento se torna a grande ferramenta para a construção da realidade. A imprensa é invariavelmente acusada de “manipular” os fatos, de fazer abordagens sensacionalistas, de mentir e inventar. O que se pretende discutir não é se essas afirmações estão corretas. Não se quer fazer mais um discurso contra o trabalho midiático, função essencial para a sociedade, mas mostrar que o jornalismo, como dito por Traquina (2005, p. 26) tem, sim, poder. Com sua gramática própria, a mídia pode favorecer ou desfavorecer alguns temas, excluir ou incluir determinados acontecimentos, enquadrar e narrar os fatos à sua maneira, mesmo porque a visibilidade midiática é um processo determinado, em grande parte, pelos interesses da própria mídia – fato que justifica a sofisticação de processos de agendamento que buscam fazer com que causas sociais possam adentrar o espaço midiático (MAFRA, 2006, p.48).


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Desse modo, a formação do senso comum existente acerca do Irã pode ser atribuída à constante propagação de eventos pouco positivos à imagem do país. Não se pode afirmar com exclusividade que o Irã comumente mostrado na mídia – como um país opressor e, principalmente, “vilão” – tem a ver com as retaliações feitas à nação desde a Revolução Islâmica, pois há, por óbvio, muito outros fatores que contribuem para a imagem pejorativa do país. Entretanto, é necessário reiterar que, como o maior poderio econômico e político do mundo, os Estados Unidos têm grande influência na abordagem e no enquadramento do Irã nas notícias nos últimos 35 anos, fato que, como já dito, favorece a difusão de conotações cada vez mais distantes, entre um veículo e outro, do que de fato se passa nesse país. Isso se dá devido ao fato de os EUA também exercerem uma influência discursiva sobre as outras nações, orientando não só a forma como são criadas as representações sobre os próprios, mas também sobre os outros países, sejam “aliados” ou “opositores”. Como afirma Sodré (2009, p. 98), “a imprensa não tem certamente uma homogeneidade discursiva, mas a cooperação jornalística, em sua predominância social, tem sido até hoje uma espécie de intelectual coletivo e orgânico das classes dirigentes”. Nesse caso, mais do que “classe dirigente”, trata-se aqui de toda uma nação hegemônica15. A força política de determinadas regiões em detrimento de outras ainda é uma realidade. Certas culturas e povos são vistos com privilégio pela mídia, e o conceito de que determinadas nações e culturas são superiores a outras é difundido. Disso resulta um afastamento em relação à cultura de determinadas regiões. Na verdade, há culturas e nações que chegam a ser completamente ignoradas pela mídia. (SOUZA, 2010, p. 11)

Assim, sendo mostrada de forma pejorativa, em um enfoque maniqueísta, a imagem do Irã, ao longo do tempo, foi sendo sedimentada de forma a ser possível acreditar que o país não possui qualidades que possam fazer um contraponto ao que usualmente é veiculado sobre ele. Não se quer aqui, no entanto, negar condutas que vão de encontro ao que se acha “normal” ou “aceitável” no Ocidente. A condenação de Sakineh Ashtiani à morte em 2010 15

A hegemonia trata-se da supremacia de uma classe sobre a outra, seja uma cidade, um país, uma nação, etc., a partir de duas ideias: dirigir e dominar. “Nas palavras de Gramsci (2002, pp. 62-63): ‘a supremacia de um grupo se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a ‘liquidar’ ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições fundamentais inclusive para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também [dirigente].” (ALVES, 2010 , p. 78 e 79). Acerca da hegemonia discursiva, “Portelli (1977, p. 69) aponta que o aspecto essencial da hegemonia é justamente a criação de um bloco ideológico que permite à classe dirigente manter o monopólio intelectual, através da atração das demais camadas de intelectuais. Ele ressalta, no entanto, que esse monopólio ideológico garante não apenas que a classe fundamental exerça sua função dirigente, mas também sua função dominante, como no caso do ‘transformismo’, o qual seria a absorção dos intelectuais dos grupos inimigos e a decapitação da sua direção política e ideológica”. (ALVES, 2010 , p. 79)


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por ter cometido adultério é um exemplo disso. Além de ter sido um evento o qual mobilizou inúmeras nações do mundo inteiro, inclusive o Brasil16, esse fato é reflexo de uma série de costumes locais internamente aceitos como verdadeiros e respaldados pela legislação daquele lugar. Difícil é, para os ocidentais, aceitar que haja outros aspectos de uma mesma religião que, ao passo que condena e mata, também é sinônimo de segurança e crescimento a determinado povo. Longe de abordar outras facetas de nações como o Irã, a mídia, querendo ou não, acaba sendo levada pelas já discutidas influências internas e externas, que corroboram com a propagação da ideia de haver um povo contra “nós”. Em oposição ao movimento de difundir algo já calcado como perverso, chega a parecer heroica a proposta de desmistificar um senso comum tão arraigado quanto o que existe sobre o Irã. O plano do Não Conta Lá em Casa de “conferir de perto” o que acontece nesse país é uma pequena forma de começar a enxergar a nação com outros olhos, tentando perceber, pelo menos aparentemente, outros modo de ser do Irã, um modo diferente daquele mostrado por seu estereótipo.

2.3 Senso comum, estereótipos e ideologia Ao mesmo tempo em que um programa como o NCLC tenta “desconstruir” uma realidade, ou seja, confrontar um senso comum já existente, ele constrói outra, não necessariamente melhor que a primeira. Ainda não entraremos no mérito se o Irã mostrado pela atração é diferente ou não do que usualmente se pensa do país, pois é possível que o discurso dos “aventureiros” seja somente um modo de destacar o programa para o público. Como diz Felipe Pena, “a consciência dos estereótipos não me livra deles. E o pior é que essa é uma engrenagem multiplicadora, autorreprodutiva. Estereótipos produzem estereótipos, em um ciclo interminável” (PENA, 2012, p. 94). Inobstante tal afirmação, à medida que se propõe a desmistificar um estereótipo tão severo quanto o do Irã, “a própria televisão se converte em uma reivindicação fundamental das comunidades regionais e locais, em sua luta pelo direito à construção de sua própria imagem, que se confunde com o direito à sua memória” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p. 35, grifos do autor).

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BRASIL FORMALIZA OFERTA DE ASILO PARA CONDENADA. Carta Capital. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/internacional/embaixador-do-brasil-no-ira-formaliza-oferta-de-asilo-paracondenada>. Acesso em: 14 abr. 2014.


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No caso do Irã, como já bastante discutido, se há uma memória ou imagem que possa ser associada ao país, esta será, inevitavelmente, ligada a um dos eventos marcantes da nação que, não por acaso, também envolvem os Estados Unidos e/ou outras grandes potências. Exemplo disso é o programa nuclear, que implantou o medo na sociedade ocidental nos últimos seis anos, e, mais remotamente – porém não menos polêmica –, a Revolução Islâmica. No fogo cruzado está a imprensa, “mediando” os acontecimentos e reproduzindo, segundo Flávia Biroli, informações e visões homogêneas que confirmam as perspectivas dominantes. Dessa forma, os meios de comunicação “poderão ser vistos como propagadores privilegiados dos estereótipos. Trabalhariam, nesse caso, a favor da reprodução de estereótipos que justificam ou são uma espécie de ‘caldo de cultura’ da própria dominação.” (BIROLI, 2011, p. 71 e 72, grifo da autora). A construção de sentidos começa, então, não no momento em que o receptor da mensagem liga o aparelho de TV ou abre um jornal para ler as notícias. A partir do instante em que o repórter inicia o processo de apuração, selecionando e salientando o que será tratado em seu produto jornalístico – ou seja, realizando o enquadramento do fato –, já se pode dizer que há construção da realidade. E quando as conotações sintetizadas pelo jornalista em um material midiático se propagam para o público, que se apropria do conteúdo e o ressignifica, estabelece-se o que Muniz Sodré (2009, p. 14) chama de ideologia: “Onde existe discurso (produto básico do mercado simbólico da comunicação), há disputa em torno da produção de sentido, logo, ideologia”. Constituindo-se como esse espaço do movimento, as práticas comunicativas participam também do lento processo de sedimentação e cristalização dos sentidos, tecendo discursos e representações que orientam o curso da vida em sociedade. Dessa maneira, pela comunicação também são reproduzidos sistemas de ideias, ideologias são materializadas e perpetuadas, relações de força mantidas, consensos e padrões hegemônicos constantemente recriados. (DIONÍZIO, 2011, p.15)

Uma das formas de utilização do discurso ideológico, como explica Teun Van Dijk, é a adjetivação. Os grupos costumam utilizar termos positivos ao tratar de si próprios, enquanto usam expressões negativas para falar do grupo oposto. Van Dijk afirma, entretanto, que não apenas os grupos dominantes possuem ideologias, como as minorias também, servindo o discurso, nas relações de dominação, como uma forma de apoiar ou questionar essas posições sociais. Além disso, as ideologias propulsionam os grupos sociais a se organizar e atuar ativamente acerca de determinadas questões sociais.


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Dependendo da sua posição, cada grupo irá selecionar no repertório de normas e valores sociais, próprios da cultura geral, aqueles que realizem de forma otimizada seus objetivos e interesses e se servirão destes valores como os componentes que edificam suas ideologias de grupo. Assim, o valor de ‘igualdade’ ou a norma de ‘não discriminação' será um ponto culminante na ideologia das mulheres, das minorias e de outros grupos dominados. (VAN DIJK, 1996, p. 19, tradução livre)

Importante ressaltar, também, que contribuir para a consolidação de uma imagem pejorativa não significa somente reproduzi-la, mas omitir os aspectos que poderiam pôr em dúvida o estereótipo. A mídia, pois, perpetua lugares comuns a partir de uma dupla atividade: “favorecendo certas formas de expor tópicos e mantendo certas áreas estratégicas em silêncio” (HALL et al., 1999, p.236). Ao suprimir uma grande parcela de determinado tema, resumindo a história de uma nação milenar a eventos pontuais, cria-se tão somente uma imagem fragmentada do que seria o “real”. Já enquadrado como um país de poucas – ou talvez nenhuma – qualidades, o Irã é conhecido pela população massiva a partir de um estereótipo que, dado à “credibilidade” dos grandes veículos de comunicação, confunde-se com a própria realidade. A imprensa produz estereótipos tão estapafúrdios quanto consolidados. [...] Como conclui o professor Nilson Lage: tais modelos estão prontos; sua aceitação é garantida. Por isso, bastam alguns pontos em comum para que se funde um reconhecimento. É por esse meio que se instaura a generalidade do particular e as notícias tornam-se exemplos de algo sobre o que há um consenso ideológico. (PENA, 2012, p. 95).

A ideologia, como leciona Sodré (1989, p. 46), é a forma discursiva do exercício do Poder, definindo aquilo que se pode ou se deve ser. O que é mostrado sobre o Irã invariavelmente reforça preconceitos, ao passo que se tornam invisíveis todos os outros aspectos de uma nação bem mais complexa. Ou seja, a partir do exercício midiático, constróise “uma visão adequada dos objetivos das mídias, mas bem afastada de um reflexo fiel”, como afirma Patrick Charaudeau. As mídias mostram, “cada um à sua maneira, um fragmento amplificado, simplificado, estereotipado do mundo” (CHARAUDEAU, 2006, p. 20). A invisibilidade está relacionada ao fato de que suas perspectivas sociais são silenciadas. Aparecem pela ótica de outros grupos, em estereótipos que os “confinam a uma natureza que é frequentemente vinculada de algum modo aos seus corpos” e que é difícil de ser contestada. (BIROLI, 2011, p. 79)

A omissão, a silenciação e a simplificação de tantos aspectos desse país acabam construindo uma “nação-sujeito” contrária a “nós”, em uma atividade midiática “impelida a uma homogeneização dos diversos conteúdos culturais, isto é, a redução dos mesmos a


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modelos facilmente aceitáveis pelo público” (SODRÉ, 1989, p. 78). Por essa razão, tido o estereótipo como real, a missão de desmistificá-lo, aliviá-lo ou pelo menos contestá-lo tornase cada vez mais difícil. Na década de 20, Walter Lippmann [...] já alertava que a democracia é um sistema essencialmente falho, pois o povo só conhece o mundo de forma indireta, através de imagens que forma por intermédio da imprensa. Para Lippmann, essas imagens são distorcidas e marcadas pelas irremediáveis fraquezas do jornalismo, portanto, apenas reforçam a ignorância. A opinião pública, então, é facilmente manipulada. E a forma mais utilizada para a manipulação é recorrer a padrões maniqueístas de análises. (PENA, 2012, p. 118)

Diante de um quadro tão pessimista para a imagem do Irã, eis que surge um programa como o Não Conta Lá em Casa, prometendo mudar, ou pelo menos entender, o senso comum que há sobre o país a partir de suas próprias representações. Nesse exercício de “nadar contra a maré” é que desponta a real possibilidade de mudança de visão. A iniciativa por si só já é de grande valia, pois facilita a compreensão e a possível desmistificação do preconceito que há sobre o Irã e de suas origens. Como afirma Biroli (2011, p. 76): “Entender que os estereótipos são distorções equivale a vê-los como uma espécie de nuvem de fumaça que impede o acesso à realidade, mas que, ainda que fique impregnada por algum tempo aos objetos, poderá ser afastada”. As informações, e melhor dizendo, a multiplicação das informações – e das opiniões – disponíveis seria a base para a superação dos preconceitos associados aos estereótipos. Haveria uma correlação positiva entre a quantidade e a variedade das informações disponíveis e a possibilidade de superação das visões distorcidas ou estereotípicas da vida social. (BIROLI, 2011, p. 72)

Assim, oferecendo ao espectador uma leitura nova acerca da mesma temática, com interpretações que, ao menos inicialmente, evitam partir de pressupostos já constituídos, o Não Conta Lá em Casa, pelo menos neste momento, compartilha de alguns princípios que poderiam supor o exercício de uma função social do programa.

2.4 Função Social Definir um conceito de “função social” do jornalismo não é tarefa fácil. A complexidade da temática perpassa por noções como jornalismo cidadão/cívico, interesse público, jornalismo como quarto poder, ética, responsabilidade social, entre outras. A ideia do que seria “função social”, porém, surgiu no século XIX, quando houve mudanças na história do jornalismo, como a industrialização da imprensa. Nesse período,


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nasceu um novo paradigma na profissão, com a definição de dois polos dominantes, como explica Traquina: a) o polo “econômico” ou “comercial” – com a comercialização da imprensa no século XIX, as notícias são a mercadoria de um negócio cada vez mais lucrativo; b) o polo “ideológico” ou “intelectual” – com a identificação da imprensa como elemento fundamental da teoria democrática, o jornalismo é visto como um serviço público em que as notícias são o alimento de que os cidadãos precisam para exercer os seus direitos democráticos. (TRAQUINA, 2005, p. 125)

A relação entre jornalismo e democracia, como esclarece o pesquisador português, nasce das teorias democráticas do século XIX. Nesse período, os “utilitaristas ingleses” encontraram na Teoria Democrática do Estado a legitimação para o exercício da imprensa. O jornalismo seria um elo entre a opinião pública e as instituições governantes, servindo de instrumento de controle social. Para isso, os profissionais da mídia exerceriam um duplo papel: “como porta-vozes da opinião pública, dando expressão às diferentes vozes no interior da sociedade que deveriam ser tidas em conta pelos governos, e como vigilantes do poder político que protege os cidadãos contra os abusos (históricos) dos governantes” (TRAQUINA, 2005, p.47 e 48). Mais recentemente, entre o fim da década de 1980 e o início da de 1990, surge em Portugal uma tendência semelhante ao ocorrido no século XIX. Trata-se do chamado “Jornalismo Público”, que adota mudanças no “fazer jornalístico”, reorientando as rotinas profissionais e propondo uma ligação diferenciada entre a atividade midiática e o meio social: a função social do jornalismo seria a arte de fazer a democracia funcionar (BORGES, 2009, p.97). O movimento do Jornalismo Público propôs uma alteração da tradicional relação entre os media noticiosos e a vida pública. A função social do jornalismo passa a ser entendida numa perspectiva mais alargada, cabendo-lhe impulsionar uma vida pública mais democrática, o que significa formar o público, e não meramente informá-lo. (BORGES, 2009, p.95)

Nesse contexto, implementar um jornalismo mais próximo do público reflete a responsabilidade que a profissão exerce, independentemente do “tipo” de jornalismo feito, seja ele enquadrado como “público” ou não. Essa responsabilidade nasce, como afirma Felipe Pena (2012, p.31), do fato de que “o homem comum não se informa mais pelos relatos da praça, mas sim pelo que os mediadores do novo espaço público trazem até ele”. Assim, a atividade midiática tem um papel fundamental para a democracia: “no sentido de ser uma instância privilegiada para gerar visibilidade e, com uma força simbólica considerável,


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conferir existência pública a temas que antes poderiam não ser problematizados com tamanho alcance e audiência” (MAFRA, 2006, p. 39 e 40). O exemplo que se pode invocar é o da presença de nações como o Irã na mídia. Colaborar com a democracia, no sentido aqui tratado, seria explorar aspectos da cultura e dos costumes desses povos de forma mais ampla. Não se trata de abolir o “enquadramento”, mas de proporcionar ao receptor a oportunidade de refletir sobre a temática com mais recursos. As mídias apresentam-se como um organismo especializado que tem a vocação de responder a uma demanda social por dever de democracia. Justifica-se assim a profissão de informadores que buscam tornar público aquilo que seria ignorado, oculto ou secreto. Essa profissão se define como devendo exercer uma função de serviço: um serviço em benefício da cidadania. (CHARAUDEAU, 2006, p. 58, grifos do autor)

Dando, pois, ao leitor/ouvinte/espectador/internauta as informações sobre determinada temática, para que eles possam, além de se informar, criar uma consciência crítica acerca do tema, o jornalismo exerce uma finalidade: Que finalidade é essa? Exercendo-se pela difusão de informações e comentários em torno da atualidade, o jornalismo tem por objetivo precípuo informar e orientar as populações de uma região determinada e de todo o mundo. A opinião nasce do conhecimento de fatos e situações, que o receptor confronta com uma ideologia. Esta ideologia resulta, por sua vez, de crenças e anseios individuais que, traduzidos em códigos, programas e ações grupais, vão resultar em cultura. O jornalismo traz a essa cultura grupal não só a atualidade dela própria como a alienígena, com vistas a esclarecê-la de modo a que a opinião se manifeste publicamente, dinamizando a atividade coletiva no sentido do progresso, da paz e da ordem social. Em resumo, o jornalismo tem como objetivo a promoção do bem comum. (BELTRÃO, 1976, p.14, grifos do autor)

Nesse sentido, é necessário reiterar que, dentre os meios de expressão do jornalismo, a TV é considerada uma das grandes fontes de influência do receptor massivo. Para o bem ou para o mal, os gêneros televisivos, tais como o telejornal e o documentário jornalístico, funcionam como informantes e até mesmo educadores, quando fornecem os dados objetivos que aclarem a opinião pública, permitindo à comunidade agir com discernimento na busca do progresso, da paz e da ordem justa, já que nenhuma ação pode ser construtiva se seu agente desconhece os fatos, as ideias que os geram, seus antecedentes e possíveis consequências (BELTRÃO, 1976, p.30 e 31). Mostrar um lado desconhecido de uma nação é dar voz a ela e permitir que os outros povos a conheçam para além do senso comum. Desmistificar um estereótipo, ou pelo menos tentar fazê-lo, é uma forma de ser responsável, exercendo, portanto, uma “função social”. Dessa forma, é exigido dos jornalistas que trabalham com televisão uma responsabilidade


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especial, pois a rapidez do suporte, assim como a internet atualmente, tem um “impacto destruidor” privilegiado em se tratando de suas falhas ou distorções (RIVERS; SCHRAMM, 1970, p.210). Por essa razão, é que se torna salutar agir de encontro às “distorções”, que invariavelmente não passam de simplificações, preconceitos e modelos pré-concebidos. A imprensa tem por função dar visibilidade à "coisa pública", e a visibilidade é uma condição da democracia. É a imprensa que permite ao cidadão alargar o seu conhecimento sobre as questões públicas, evidentemente, não sobre o todo, e sim sobre parte do que se passa na sociedade. (ABREU, 2003, p. 26)

Em resumo, levando em conta todas as noções tratadas por diversos pesquisadores ao longo de dois séculos, a ideia de “função social” se sustenta no serviço público o qual o jornalismo prestaria em razão de seu privilégio ou poder de atingir grande parte das massas, não somente informando, mas também orientando. Ou seja, o serviço público o qual personifica a função social do jornalismo é proporcionar ao receptor massivo todos os elementos possíveis acerca de determinada temática, a fim de que a sociedade possa fazer seu próprio juízo crítico sobre o assunto, colaborando com o melhor entendimento dentro dessa comunidade e entre os diferentes povos, impulsionando, inclusive, à ação em torno do bem comum. Além disso, a base para a “função social” seria a ética e a responsabilidade no exercício da profissão.

2.4.1 Interesse coletivo Como afirma Luiz Beltrão (1976, p. 27), o jornalismo é “informação de ideias, situações e fatos atuais, interpretados à luz do interesse coletivo e transmitidos periodicamente à sociedade, com o objetivo de difundir conhecimentos e orientar a opinião pública, no sentido de promover o bem comum”. A partir dessa definição de jornalismo, deve-se dar destaque a um conceito em particular: o “interesse coletivo”. Assim como “função social”, trata-se de noção difícil de definir. Isso porque o interesse coletivo depende de qual coletividade se está falando. O interesse coletivo estadunidense certamente possui divergências em relação ao interesse coletivo iraniano, por exemplo. Mas o que se sabe sobre o conceito é entendido a partir de uma visão macroscópica. São de interesse coletivo para a “sociedade mundial” temas que envolvam autoridades políticas, guerras, confrontos, catástrofes, epidemias, entre outros. O Irã esteve em evidência na mídia, nos últimos 35 anos, em razão de seu envolvimento com algumas dessas temáticas ou similares. A partir desse raciocínio, pode-se entender, então, que falar de Irã faz parte do


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interesse coletivo, até mesmo porque, se o assunto fosse de baixa relevância, pouco se falaria sobre ele. O interesse pelo Irã também é associado ao fato de os eventos com os quais o país é associado também contam com a presença dos Estados Unidos, a maior potência mundial. E por que não seria interessante para a coletividade, então, falar do Irã de outra forma? Itânia Gomes (2006, p. 7) explica que a “responsabilidade social” da profissão “tem a ver com a noção de compromisso com o interesse público e com as prerrogativas básicas para o exercício profissional, a liberdade de expressão e de informação”. Se o período atual demanda por mais igualdade, liberdade e compreensão entre os povos, é de relevância que a imprensa se utilize de sua responsabilidade para evidenciar temas de interesse coletivo a fim de que, de fato, o debate seja benéfico a todos. “A responsabilidade básica da comunicação de massa é conseguir produtos da melhor qualidade possível, o que exige que desenvolva uma consciência de profundidade e amplitude das necessidades e interesses do público” (RIVERS; SCHRAMM, 1970, p.341). No caso da imprensa, ‘nos sistemas totalitários, os jornalistas estão sob a disciplina do grupo dominante e, voluntariamente, ajudam a adaptar e a condicionar os indivíduos de acordo com o plano elaborado. Em sistemas que tentam reconciliar diversos grupos e seus diferentes conceitos de função social, a imprensa é o meio pelo qual os grupos que constituem a sociedade se tornam cientes de suas diferenças e são levados a aceitar o intercurso baseados no princípio da tolerância... Na maior parte do Ocidente, o jornalista é um colaborador dos partidos, dos grupos, dos governos – um partidário e professor de ideias controversas [...], sendo um instrumento indispensável à moderna civilização’ (BELTRÃO, 1976, p. 25).

É nesse entendimento de que a imprensa deve servir também para fins de pacificação social que entra o Não Conta Lá em Casa e sua proposta de desmistificar os preconceitos existentes sobre os países visitados, sobretudo o Irã. Em momento oportuno deste trabalho, será analisado se de fato o programa consegue contribuir para o exercício da função social do jornalismo, ou seja, se fornece informações suficientes e diferenciadas que deem ao espectador a oportunidade de refletir sobre a nação de forma mais ampla do que comumente é feito. Conclusões precipitadas à parte, pode-se afirmar, sem prejuízo da análise que será posteriormente realizada, que tentar mudar uma imagem há décadas marcada por estereótipos e preconceitos já é uma forma de contribuir para a democracia entre os povos. Através desse conhecimento de ideias, situações e fatos do presente, o homem como que alimenta o seu espírito, fortalecendo-se no exame das causas e possíveis consequências da atualidade e tonando-se apto à ação. O mesmo ocorre com as coletividades: a divulgação de informações e a exposição de pontos de vista sobre os assuntos relatados contribuem decisivamente para formar a opinião pública e, em decorrência, impulsionar os agrupamentos humanos às decisões e realizações da vida social. (BELTRÃO, 1976, p. 15 e 16)


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Para tanto, é necessário que sejam discutidas as formas pelas quais a função social é exercida. Dentro de uma redação, com rotinas profissionais bem definidas, o modus operandi é diferente do que é feito com mídias independentes. O Não Conta Lá em Casa, atração que faz parte do canal pago Multishow, do grupo Globosat, segue princípios de duas vertentes: o “jornalismo interpretativo”, trazido por Beltrão (1976), e o “jornalismo de resistência”, explicado por Pena (2012). O assunto será tratado com mais detalhes no tópico a seguir.

2.5 Jornalismo Interpretativo e Jornalismo de Resistência Considerando todas as atribuições referentes ao exercício da função social do jornalismo, é interessante perceber as vertentes da atividade que tomam para si essa incumbência como pressuposto. A primeira vertente é chamada de “jornalismo interpretativo”, que, segundo Beltrão (1976, p. 42), configura-se como “um jornalismo em profundidade, à base da investigação, que começa a representar a nova posição da imemorial atividade social da investigação de atualidade. Um jornalismo que oferece todos os elementos da realidade, a fim de que a massa, ela própria, a interprete”17. O pesquisador esclarece que “o jornalismo será interpretativo, não por dar a interpretação feita, digerida, mas por permitir fazer essa interpretação a quem legitimamente deve fazê-la, que é o público” (BELTRÃO, 1976, p.52). Delegar à massa o encargo de não só receber, mas também interpretar a informação, coaduna-se com a teoria democrática tratada no item anterior, que aponta claramente, de acordo com Traquina (2005, p.128), para os meios de comunicação o papel de “mercado de ideias” em uma democracia, em que as diversas opiniões da sociedade podem ser ouvidas, discutidas. A televisão, segundo Beltrão, seria um suporte propício para esse debate:

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Aline Baroni estuda a proposta de Luiz Beltrão, criada em 1960, e explica: “Tal gênero busca o contexto dos fatos e fenômenos em questão, não apenas o quente da notícia, de modo a oferecer ao leitor subsídios para sua interpretação. Trata dos antecedentes e previsões, e para isso baseia-se em pesquisa intensa a fontes documentais, pesquisas científicas, livros e entrevistas. O objetivo é oferecer um panorama completo do objeto analisado em detrimento do relato rápido dos meios eletrônicos” (BARONI, 2008, p. 4). Importante observar, também, que alguns autores não concordam com a definição de “jornalismo interpretativo”, afirmando que todo jornalismo assim o é, como afirma José Marques de Melo (1985, p. 48): “Entendemos que a interpretação (enquanto procedimento explicativo, para ser fiel ao sentido que lhe atribuem os norte-americanos) cumpre-se perfeitamente a partir do jornalismo informativo”. Nesse contexto, o destaque que a vertente criada por Luiz Beltrão tem é quanto ao tempo de apuração – e, consequentemente, o aprofundamento e a contextualização do assunto tratado – e ao suporte. Entendemos que o jornalismo interpretativo, originalmente proposto em relação ao jornal impresso em detrimento dos meios audiovisuais, não se deve restringir ao suporte, dado que o aprofundamento de um conteúdo jornalístico pode ser feito em formatos televisivos mais longos, por exemplo. É o que diz Walter Sampaio: “pela riqueza de imagens e pela própria extensão do tempo, o documentário, como grande reportagem em TV, é por excelência jornalismo interpretativo na TV” (SAMPAIO, 1971, p. 101).


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Fazendo a audiência participar do acontecimento e deixando a seu critério a análise e o juízo sobre a situação, parece-nos que o telejornalismo foi a primeira das modalidades da informação de atualidade a confiar na massa, e não considerá-la meramente passiva e incapacitada para o exercício da opinião. (BELTRÃO, 1976, p.27)

O fazer jornalístico que toma a opinião pública como ponto de partida pode enveredar para a especialização de outra vertente, o chamado “jornalismo cívico” ou “jornalismo cidadão”, cuja ideia central é resgatar a “identidade individual e coletiva da sociedade na qual está inserido. Procurando valorizar a cultura local através do despertar de um ‘sentimento de pertença’ do indivíduo pela sua comunidade” (RIBEIRO; ORTIZ, 2007, p.4). O jornalismo cívico tem uma abordagem mais próxima do público à medida que é pautado pelos acontecimentos da comunidade, despertando nos integrantes o sentimento de “peça indispensável do veículo”, como explicam Ribeiro e Ortiz (2007, p.6): “O jornal deve fazer com que o cidadão se orgulhe do seu território e desmistifique os mitos externos construídos pela atual globalização”. Quando se pensa em “comunidade”, entretanto, pode surgir no imaginário as comunidades locais, os grupos de pessoas rechaçados dentro das cidades, vivendo em favelas, em meio a condições de pobreza, ou até mesmo grupos étnicos deixados de lado pelo “restante” da população, tais como os indígenas. Necessário, nesse contexto, esclarecer que “comunidade” pode representar qualquer grupo específico que reconheça uma identidade comum, seja local, nacional ou internacional. No presente estudo, o qual trata da “comunidade” iraniana, pode-se, por analogia, aplicar tais conceitos, mesmo que o grupo tratado faça parte de outro país. Muniz Sodré discorre sobre o assunto: Ganham hoje espaço acadêmico e prático a ideia de ‘comunicação comunitária’ ou de ‘jornalismo cidadão’, que põe em segundo plano a informação periodizada em favor de recortes factuais afinados com os interesses dos grupos humanos diferenciados, em geral segmentos de classe economicamente subalterna, no interior da sociedade global. A pauta editorial orienta-se, assim, na direção de temas mais diretamente antenados com o ‘comum’ daqueles que se reconhecem como membros de um grupo específico e que eventualmente se autointitulam ‘comunidade’. (SODRÉ, 2009, p.56)

Levando em conta, então, a ressalva de que a definição de “comunidade” não se restringe necessariamente a um pequeno grupo, mas pode fazer referência até mesmo a uma nação inteira, alguns aspectos devem ser destacados, segundo levantamento de Felipe Pena, em relação aos conceitos fundamentais do jornalismo cívico:


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 O jornalismo deve ser uma força de revitalização da vida pública;  O jornalismo deve redefinir seus valores e aproximá-los da comunidade;  A objetividade é o primeiro conceito a ser abatido, pois conduz os jornalistas e enquadramentos viciados;  Deve-se evitar o excessivo negativismo e concentrar-se em uma agenda positiva;  A missão de dar as notícias deve ser substituída por outra: ajudar a melhorar a vida pública;  O jornalismo deixa de ser observador desprendido e assume o papel de participante justo;  O público não deve ser concebido como consumidor, mas como cidadão;  O próprio jornalista é um ator político;  As velhas rotinas devem ser quebradas. (PENA, 2012, p. 171)

O pesquisador suscita ainda uma vertente “irmã” do jornalismo comunitário, o “jornalismo de resistência”. Segundo ele, “a diferença está na abordagem. Enquanto o primeiro concentra-se na atividade, o segundo aponta o foco para os ativistas”. Com características comuns, o autor esclarece que o exercício da profissão baseada nos preceitos da resistência pode se dar junto às “redações dos megaconglomerados de mídia”, adaptando as práticas jornalísticas, ou “em veículos alternativos, em que a mudança é radical” (PENA, 2012, p. 171). O autor conceitua o termo da seguinte maneira: O que chamo de jornalismo de resistência consiste na aplicação prática de preceitos ligados à função social da profissão. Ou seja, resistir à concepção mercadológica de jornalismo. Nada a ver com a pretensão de transformar a sociedade pela via revolucionária, o que produziria distorções e recairia numa concepção teórica instrumentalista. Muito menos com a interpretação messiânica de alçar o jornalismo à categoria de salvador da pátria. Não estou defendendo uma prática marxista de produção noticiosa [...] Mas também não me contento com a classificação da notícia como simples mercadoria ou com as limitações das rotinas produtivas. Acredito nas possibilidades de construção social da realidade através do jornalismo e ainda vejo no profissional da imprensa um papel importante nessa dinâmica. (PENA, 2012, p. 168)

Assim, segundo Pena, o jornalismo de resistência em uma empresa de comunicação, dentro de sua lógica comercial, é exercido a partir de pressupostos como: a autocritica do jornalista antes e depois da reportagem, procurando enxergar preconceitos, estereótipos e limitações; a busca por elementos novos e as possibilidades de inversão de eixo na abordagem da matéria; a inserção de opiniões de setores representativos da comunidade, evitando ressaltar autoridades e experts; a utilização da linguagem com sutileza e precisão, procurando as entrelinhas e os discursos não verbais como estratégias de resistência; a feitura de entrevistas com perguntas que privilegiem as demandas da comunidade, procurando dar um tratamento que as torne interessantes até para os indivíduos que não fazem parte dela; o envolvimento com a reportagem, procurando o seu foco social e não sendo observador neutro. (PENA, 2012, p. 171 e 172).


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Pena ressalta, ainda, o “completo afastamento do ranço etnocêntrico” como outra característica importante do jornalismo de resistência. O pesquisador afirma ser um dever do jornalista “enxergar com os olhos da comunidade”, ou seja, “substituir modelos padronizados e estereotipados de apreensão da realidade por estratégias simbólico-discursivas que ressaltem a visão da comunidade sobre si mesma, reforçando suas identidades e valores” (PENA, 2012, p. 188). Dessa forma, partindo do pressuposto de que o Não Conta Lá em Casa busca entender uma realidade pouco conhecida, interpretá-la, desmistificando seu estereótipo e divulgando essa nova realidade ao público, poderíamos supor, ao menos preliminarmente, que alguns aspectos do programa se encaixam na definição de jornalismo interpretativo. Quanto ao “modo de fazer”, também é possível visualizar características de jornalismo cívico e jornalismo de resistência, sobretudo com o privilégio de entrevistas com fontes “independentes” ou “não oficiais” em detrimento de especialistas, como será analisado mais detidamente no quarto capítulo deste trabalho. Importante frisar que a abordagem relativa ao “jornalismo de resistência”, no caso do NCLC, é feita dentro da lógica comercial, ou seja, seguindo os pressupostos elencados por Felipe Pena, visto que o programa pertence ao canal pago Multishow, do grupo Globosat, não sendo, portanto, veículo alternativo.


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CAPÍTULO 3 GÊNEROS E FORMATOS 3.1 Infotenimento O Não Conta Lá em Casa é um programa de viagens do canal pago Multishow, o qual conta, em sua grade de programação, com diversas outras atrações de temas similares (viagens e turismo), além de outros que tratam de lazer, humor, música e comportamento. A difusão de “hard news” não é do perfil do canal, nem há um programa específico de notícias. Isso não significa, no entanto, que seus produtos sejam totalmente alheios à informação factual ou ao debate de temáticas de relevância social. O que se pode perceber é que, dado à linha editorial do veículo, as informações são pulverizadas nas atrações de caráter mais “sério”, que tratam de assuntos eminentemente “frios”. Os temas “quentes” aparecem nas coberturas musicais (quando há algum festival no País, por exemplo), ou quando uma temática de relevância é tomada como gancho para tratar do assunto de forma diferenciada, privilegiando o debate em detrimento da abordagem “pontual”. Isso ocorre, por exemplo, no programa Conexões Urbanas18, que trata de temas como violência, racismo, sustentabilidade e cidadania. Esse formato televisivo, que une diferentes gêneros – no caso, o informativo e o entretenimento – e no qual se inclui o NCLC, é chamado infotenimento.

As primeiras utilizações de infotenimento pelos veículos de comunicação brasileiros foram identificadas, com maior força, nos anos de 1990. O termo começou a ser empregado ainda na década de 1980, mas só ganhou notoriedade nacionalmente na década que se seguia, quando profissionais e acadêmicos passaram a citá-lo ao fazer referência ao jornalismo que mesclava informação, prestação de serviço e divertimento. (SIEBRA, 2013, p. 33)

É importante ressaltar, como afirma Siebra (2013, p. 34), que “esta segmentação do jornalismo não é temática de unânime acordo dentro da área acadêmica. Há um receio pela busca do divertimento no momento em que se pretende informar, pois pode ser mais uma

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Conexões Urbanas é um programa do canal Multishow apresentado por José Junior, integrante do Grupo Cultural AfroReggae. No ar desde 2008, o programa suscita temas como sustentabilidade, tecnologia social, cidadania e paz. É veiculado por temporadas, uma vez por semana, em episódios de 30 minutos cada. Em 2013, já na sexta temporada, o programa mostrou a rotina de profissionais e pacientes do Instituto Nacional do Câncer (Inca), contou histórias como a da transexual Rafaella e abordou temas como a pedofilia. (CONEXÕES URBANAS. AfroReggae. Disponível em: <http://www.afroreggae.org/conexoes-urbanas>. Acesso em: 9 nov. 2014)


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estratégia de se conquistar o público através do popular, das sensações e do coloquialismo”19. Essa “desconfiança” ocorre, sobretudo, quando se trata de formatos como o telejornal, o qual, pela tradição, demandaria mais seriedade e menos informalidade. Quando se fala, por outro lado, de programas eminentemente “diversionais”, a questão que se põe é se existiria informação embutida, dúvida que é facilmente sanada com a observação atenta dos programas televisivos: ressalvadas as atrações ficcionais, dificilmente um programa não contará com o mínimo de informação. Programas de auditório, documentários e até reality shows, por exemplo, às vezes divulgam informações por meio de matérias, análises ou debates, dependendo do caso. Como discorre Horstmann (2011, p. 86), a emergência do infotenimento ocorre devido a “alterações na sociedade”, não sendo um evento isolado no jornalismo. O público não se contenta mais com a informação “limpa e seca”, e, para suprir essa demanda, os veículos de comunicação inserem elementos que chamam a atenção e aproximam o espectador das temáticas tratadas.

O conteúdo do jornalismo de infotenimento, de acordo com Fábia Dejavite (2006, p. 88) é recheado de elementos como o sensacionalismo, a personalização, a dramatização de conflitos e matérias com fotos, infográficos e tabelas. A autora identifica 32 temáticas que podem conter infotenimento. (SIEBRA, 2013, p. 33 e 34)

Cultura, arte, esportes, curiosidades, eventos e viagens são alguns exemplos de assuntos passíveis de serem tratados sob o viés do infotenimento. Nesse contexto, é importante ressaltar o modo de expressão desse formato:

Esse processo de aproximação entre a informação e o entretenimento nos telejornais não se dá apenas pela escolha do assunto a ser transmitido, mas também pelas técnicas na construção da reportagem como, por exemplo, o uso da linguagem cinematográfica nos telejornais (HORSTMANN, 2011, p. 12).

Além disso, como observa Horstmann, o conceito de “entretenimento” não pode ser restringido à evasão, ao escape e à diversão. A autora utiliza a definição de Itânia Gomes para conceituar o termo: entretenimento é “um valor das sociedades ocidentais contemporâneas

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Como exemplo da não unanimidade, o pesquisador sueco Mats Ekström trata da relação entre informação e entretenimento definindo três modos de comunicação audiovisual: informação, contação de histórias (storytelling) e atrações. O pesquisador analisa as intenções, os processos de produção e as bases de participação do público para diferenciar cada uma das classes. Segundo Ekström (2000, p. 487, tradução livre), essa “tricotomia é mais abrangente e proveitosa, em relação à análise, do que outras estruturas, tais como a comumente aplicada dicotomia informação e entretenimento”.


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que se organiza como indústria e se traduz por um conjunto de estratégias para atrair a atenção de seus consumidores” (GOMES, 2008, p. 99 apud HORSTMANN, 2011, p. 42). Elementos que, em princípio, seriam exclusivos do cinema, são, pois, usados como táticas para tornar o produto jornalístico mais atrativo ao telespectador, como “o close20, o travelling21, as panorâmicas, os planos, o ponto de vista do personagem, as elipses, os ângulos, a montagem, ou dramatização provocada ou explicitada pelo uso desses elementos” (HORSTMANN, 2011, p. 12). Quanto à abordagem, “os elementos de entretenimento no jornalismo podem ser definidos como: o sensacionalismo, a personalização, a dramatização de conflito e, geralmente matérias que fazem uso de fotos, infográficos, tabelas, entre outros recursos” (OLIVEIRA, 2012, p. 8). O Não Conta Lá em Casa, como já dito, tem como foco a descoberta e a análise de aspectos pouco abordados de países “inóspitos”, “perigosos” e, invariavelmente, estereotipados. Como uma atração que transita entre o documentário e o reality show (como será tratado no próximo tópico desta pesquisa), as técnicas utilizadas para a realização do programa são fortemente influenciadas pelo modo de fazer cinematográfico, lançando mão dos recursos do infotenimento acima citados. “A personalização aparece quando se dá destaque ou quando se caracteriza uma pessoa. Para criar uma identificação com o público, o personagem é apresentado de maneira mais humanizada” (OLIVEIRA, 2012, p. 15). Essa característica é facilmente percebida no NCLC, já que a atração se debruça sobre os “personagens” dos locais visitados: cidadãos que vivenciam a realidade veiculada na tela. Pessoas como Muhammed, Sonja e Hussein, alguns dos entrevistados pela equipe do programa durante a viagem ao Irã, servem de exemplo palpável ao espectador. A partir do momento em que as consequências da Revolução Islâmica ou dos protestos ocorridos em 2009 contra a reeleição de Ahmadinejad são mostradas pelo discurso de um cidadão iraniano – ou até mesmo pelo seu silêncio ou modo cotidiano de ser –, o assunto se aproxima de quem assiste à atração, mesmo que os costumes permaneçam essencialmente distantes. Além disso, os próprios apresentadores fazem o papel de “personagens”, quando evidenciam suas impressões a partir da vivência retratada. Em

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Também chamado “Close-up”, o close é um tipo de plano no qual o objeto retratado é enquadrado de forma “fechada”, isto é, apenas uma parte é mostrada. No caso das pessoas filmadas em close, apenas o seu rosto aparece, uma vez que a câmera está suficientemente próxima (ou com pequeno ângulo de abertura da lente). 21 Movimento de câmera no espaço que pode ser obtido com o deslocamento do cinegrafista com a câmera na mão ou por equipamentos. Difere do movimento de panorâmica, no qual há giro da câmera em seu próprio eixo, não havendo necessariamente um deslocamento.


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resumo: o telespectador vê “gente como a gente” vivendo toda a situação, e não apenas recebe a mensagem pelo discurso do apresentador. A dramatização de conflito, por sua vez, “aparece quando o narrador dá ênfase para um problema, um conflito existente no tema da sua reportagem” (OLIVEIRA, 2012, p. 15). Essa é outra propriedade aplicada ao NCLC, sendo talvez a mais apropriada pelo programa. Relevantes problemas ocorridos desde 1979 no Irã são utilizados como gancho para a narração e contextualização do que ocorria naquela sociedade em 2009, ano da produção e veiculação da viagem. Infográficos não são utilizados pela atração, somente sendo mostrados mapas das localidades percorridas pela equipe, o que facilita a noção do telespectador acerca dos lugares visitados. Outros efeitos, como a trilha sonora, são largamente utilizados. Há a frequente inserção de vídeos e fotos de arquivo – para mostrar os eventos ocorridos no Irã no passado –, bem como músicas, geralmente instrumentais, que dialogam com as cenas do programa. A utilização da câmera subjetiva também está presente nas produções do Não Conta Lá em Casa. A técnica, que consiste na filmagem a partir de um ponto de vista pessoal, subjetivo, colocando o público dentro da ação, vivendo o acontecimento como se fosse uma experiência própria (HORSTMANN, 2011, p. 30), é usada em praticamente todo o programa, mostrando desde os entrevistados, que aparecem muitas vezes “de frente”, como se estivessem conversando com a câmera (ou seja, com o espectador), até a postura dos próprios apresentadores nas mais diversas situações: dormindo, conversando, tomando café da manhã e passando o tempo livre, por exemplo. Além de construir o material midiático de modo que seja mais atrativo ao receptor, a utilização dos recursos cinematográficos presentes no formato infotenimento também serve, como discorre Horstmann (2011, p. 82), como meio de construir a notícia como informação. Assim, o formato do programa Não Conta Lá em Casa, além de divertir, por neste caso mostrar o breve cotidiano de quatro rapazes brasileiros em terras pouco conhecidas ou estereotipadas, também informa, ao passo que discute marcantes acontecimentos para determinadas sociedades além do Ocidente, trazendo ao conhecimento da “comunidade mundial” as consequências de tais fatos na medida do alcance da veiculação do programa.


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3.2 Reality Show versus Documentário Jornalístico Além de tratar da função social do Não Conta Lá em Casa, é necessário também evidenciar algumas particularidades de seu gênero22. O programa é formalmente conceituado como “reality show”, porém encontra características outras que sugerem ser a atração um documentário jornalístico23, ou pelo menos ser um produto híbrido entre os dois conceitos. Samuel Mateus (2012, p. 236) discorre sobre a abrangência e o vasto número de programas televisivos que são referidos como “reality shows”. Segundo o pesquisador, o gênero “traz a experiência subjectiva do indivíduo vulgar para a publicidade que a televisão abarca”, fazendo-o “simultaneamente com um forte enfoque na vida de todos os dias, e dos conflitos e tensões que a vida em sociedade comporta”. O autor destaca, no entanto, que as

atrações assim classificadas, “de forma nem sempre assumida, cruzam as fronteiras da informação e do entretenimento, do drama e do documentário, da ficção e da realidade”. Sob esse ponto de vista, como afirma, seria difícil delimitar o que realmente seria ou não reality show. Por isso, o pesquisador elenca três “aspectos constitutivos que nos permitem separar, como notável nível de precisão e firmeza, os limites do género” (MATEUS, 2012, p. 238): a saliência da vida cotidiana; a escopofilia; a emancipação do espectador. Acerca do primeiro aspecto, o autor destaca a trivialidade mostrada pela mídia. “Numa tentativa de proximidade com os espectadores, eis uma televisão preocupada em acompanhar a vida diária, nas suas mais variadas facetas, seja a profissional, pessoal ou íntima” (MATEUS, 2012, p. 238). Assim como no “Big Brother”, entre outros programas veiculados 24h por dia, o telespectador tem a oportunidade de se identificar com o que é mostrado na tela, pois suas ações podem ser muitas vezes as mesmas que o personagem da TV está realizando. “Há como que uma replicação da vida quotidiana que os reality shows tendem a operar, mesmo quando são transmitidos em diferido” (MATEUS, 2012, p. 238). A segunda característica – a escopofilia24 – relaciona-se com o prazer de observar (nesse caso, a “vida cotidiana” mostrada na tela). O espectador tem à sua frente uma realidade

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É preciso esclarecer que a definição de “gênero” não é homogênea entre os pesquisadores da comunicação. Enquanto Jost (2004); Melo, Gomes e Morais (2001) e Samuel Mateus (2012), por exemplo, definem documentário e/ou reality show como “gêneros”, Elizabeth Bastos (2004), acompanhada de Itânia Gomes (2007), crê na classificação de tais tipos de programa como “subgêneros” ou formatos da produção televisiva. Diante da divergência de classificações, optamos por considerar a que entende “documentário” e “reality show” como gêneros televisivos, haja vista que a maioria dos autores citados neste trabalho interpreta da mesma forma. Visamos, pois, a assegurar um melhor entendimento entre as obras de referência desta pesquisa, evitando contradições conceituais. 23 A nomenclatura “documentário jornalístico” aqui utilizada é uma apropriação do conceito traçado por Melo, Gomes e Morais (2001), como será discutido neste tópico. 24 Do dicionário: “es·co·po·fi·li·a (grego scopos, -ou-, que observa + -filia). Substantivo feminino. 1. [Psicologia, Psiquiatria] Desejo patológico de se exibir ou ser observado pelos outros. 2. [Psicologia,


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pela qual é convidado a ser testemunha “numa relação muito particular entre a verdade, a visibilidade e a verificabilidade daquilo que vemos no ecrã” (p. 240): O espectador torna-se cúmplice daquilo que visiona. Ao ceder à escopofilia, ao mirar o quotidiano dos indivíduos, ele não pode afirmar que não sabe; e não pode fazê-lo porque o viu. O espectador dos programas televisivos de realidade olha, mas este mirar não é inocente: é um observar avaliativo e, sobretudo, um olhar que envolve um consentimento automático. (MATEUS, 2012, p. 240)

Por fim, o terceiro carácter é a emancipação do espectador, que compreende dois subaspectos:

Um, a transformação do espectador em actor, e sobretudo, em agente discursivo, isto é, a uma invasão das suas preocupações e dos seus sentimentos pessoais pela cena televisiva adentro, essa possibilidade de ele tomar a palavra e fazer da televisão um confessionário público; dois, a possibilidade dos tele-espectadores deixarem de se compreenderem como uma simples e tradicional audiência televisiva e passarem a serem parceiros de sociabilidade, quasi-interlocutores dessa “quasi-interacção mediatizada” [...] no momento em que são o objecto a quem se dirige os discursos que perpassam nessa confissão catódica. (MATEUS, 2012, p. 242 e 243)

Fazendo jus à classificação, de fato, o Não Conta Lá em Casa apresenta pelo menos duas das três características, a saber: a) a saliência da vida cotidiana, quando mostra os apresentadores conversando, dormindo, tomando café da manhã e realizando as mais triviais ações do dia a dia; b) a emancipação do espectador, à medida que põe anônimos – tais quais quem assiste o programa – como protagonistas, ao passo que destaca seus discursos e os utiliza como a própria verdade. A escopofilia, por sua vez, é um aspecto que deve ser observado sob o ponto de vista de quem assiste ao programa, ou seja, quem recepciona a mensagem, o que não será tratado neste trabalho. Percebe-se, portanto, que o NCLC é um tipo de reality show, porém diferente dos programas de realidade comumente veiculados na televisão. Exemplo disso é que a “realidade pura” tal como se espera de uma atração do gênero, no caso do NCLC, aparece de forma fragmentada: as entrevistas são editadas, as câmeras são estrategicamente posicionadas, há um trabalho de produção e edição posterior, incluindo a tomada de cenas que seguem um roteiro prévio, entre outros aspectos que aproximam o programa de um documentário, gênero entre o qual fazemos o contraponto com o reality show, a fim de melhor entender a atração.

Psiquiatria] Prazer sexual que advém da observação de órgãos ou atos sexuais”. (ESCOPOFILIA. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/escopofilia>. Acesso em: 6 nov. 2014.)


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3.2.1 Características do documentário jornalístico Embora também vise a mostrar fragmentos da realidade, o documentário difere em muitos aspectos do reality show, a começar pelo seu objetivo. Oliveira, Carmo-Roldão e Bazi (2006, p. 14) afirmam que o documentário tem como premissa “levantar questionamentos, inquietações que possam servir para reflexão posterior do espectador”. Partindo da hipótese de que o Não Conta Lá em Casa poderia também ser classificado como um documentário – pelo fato de que apresenta suas características, como aprofundaremos logo a seguir –, segundo a categorização trazida pelos autores, o programa se encaixaria no modo participativo, sendo este marcado por mostrar a participação do documentarista e de sua equipe na realidade objeto da produção audiovisual. Dessa forma, torna-se um sujeito ativo no processo de gravação/filmagem, pois aparece em conversa com a equipe e provoca o entrevistado para que este fale. “Assim como uma ‘mosca na sopa’, incomoda e evidencia sua presença” (OLIVEIRA; CARMO-ROLDÃO; BAZI, 2006, p.13). Os autores ainda explicam que a lógica da opção por um tema para a produção de um documentário é diferente das pautas rotineiras no jornalismo:

A procura é exatamente pela descoberta de histórias e pessoas que deixaram de ser contadas e mostradas e que têm uma importância para a sociedade. Não a importância imposta pela chamada agenda setting, mas sim uma importância cultural e social. Além disso, o documentário, muitas vezes, é reconhecido pelo seu caráter histórico, ou seja, a importância que se dá para a reconstrução da história, contada com base em documentos orais e escritos. O documentário sempre irá “tomar partido” e apresentar a sua leitura do tema em questão. (OLIVEIRA; CARMO-ROLDÃO; BAZI, 2006, p.13 e 14)

Importante salientar, nesse contexto, a pesquisa realizada por Melo, Gomes e Morais (2001, p. 5 a 9). Esses autores apontam cinco características definidoras do documentário como gênero jornalístico: a) veiculação praticamente limitada aos canais de TVs educativas ou nos canais de TV por assinatura; b) o seu caráter autoral, ou seja, é marcado pelo “olhar” do documentarista sobre o seu objeto, evidenciando uma parcialidade; c) a não obrigatoriedade da presença de um narrador; d) uso de imagens e depoimentos, funcionando como documentos; e) ampla utilização de montagens ficcionais no sentido de simular fatos. A primeira característica se dá porque a produção do documentário demanda tempo, dinheiro e público específico, recursos que muitas emissoras de TV aberta não dispõem ou não têm como reservar para a realização desse tipo de programa, o que acaba levando TVs educativas e por assinatura a assumirem o encargo de realizá-los. Já o segundo aspecto – caráter autoral – é evidenciado pela subjetividade do autor do filme:


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O documentarista busca ouvir a opinião de várias pessoas sobre determinado acontecimento ou personalidade, seja para confirmar uma tese (caso, por exemplo, dos documentários biográficos), seja para confrontar opiniões (caso dos documentários sobre conflitos urbanos, sociais, raciais, religiosos etc). No entanto, apesar de apresentar um emaranhado de vozes, que muitas vezes se opõem e se contradizem, uma voz tende a predominar: aquela que traz em si o ponto de vista do autor. (MELO; GOMES; MORAIS, 2001, p. 6)

Esse ponto de vista, entretanto, não desvirtua o caráter jornalístico, mas funciona como uma “linha editorial”. No caso do NCLC, o ponto de vista é contra “situações gerais”, como as guerras, os conflitos econômicos entre países, as ditaduras, a degradação ambiental etc. Visto dessa forma, poder-se-ia supor que o documentarista chega bem perto da “neutralidade jornalística”, pois, ao narrar um acontecimento, consegue dar voz a outras vozes, deixando que elas mesmas travem um diálogo no interior do documentário (MELO; GOMES; MORAIS, 2001, p. 7)25. A terceira característica (não obrigatoriedade da presença de um narrador) é possível justamente pelo fato de as entrevistas poderem “falar por si sós”, a partir de um jogo de edição o qual possibilita que o encadeamento das falas dos entrevistados ou das imagens mostradas no documentário faça sentido. O uso de imagens e documentos, quarto aspecto apontado pelos autores, é a própria essência do documentário, sem a qual não haveria sentido classificar uma produção audiovisual como tal, podendo, caso contrário, ser apenas dita como “filme”. Sobre isso, explanam Melo, Gomes e Morais:

O documentário, enquanto gênero, é produzido com objetivos bem claros de evidenciar recortes da realidade. Partindo de um fato, procura mapear outros fatos correlacionados, acontecimentos interligados, causas e consequências. Traz consigo o tom de explicação, apresenta imagens e depoimentos que comprovam o que é dito e também funcionam como registro, como mecanismo de resgate da memória humana. (MELO; GOMES; MORAIS, 2001, p. 8)

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Indo ao encontro de tal característica, há ainda uma vertente específica do cinema chamada “Cinema Verdade”, nascida na década de 1950 na França, em contraposição ao “Cinema Direto” americano, explicada por Laécio Rodrigues: “Nesta vertente, em vez do recuo e da discrição da câmera, típicos da escola americana, vislumbramos um envolvimento e interação direta do realizador com o tema e os sujeitos abordados. Em síntese, é a presença do cineasta/câmera que aciona a interlocução e propicia a fabulação do personagem [...]. Por conseguinte, em vez de relatos pretensamente objetivos ou de registros orientados por um ideal de ‘invisibilidade’ da equipe, testemunhamos unicamente a ‘verdade de um encontro’, com suas hesitações, ênfases, revelações ambíguas e reinvenção de subjetividades diante da câmera. Em outros termos, instigados pelos cineastas e pelas lentes, os personagens se põem a fabular sem deixar de ser verdadeiros. E o documentarista, ciente da impossibilidade de atingir um real intocado, assume a condição de ator social em interação com os demais sujeitos (embora com certo nível de poder e controle dos acontecimentos, pois é ele quem manuseia a câmera e responderá pela edição final)”. (RODRIGUES, 2011, p. 139 e 140)


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Por fim, a utilização de montagens ficcionais no sentido de simular fatos, segundo os autores, embora elemento controvertido, também tem seu papel na construção da realidade. “Não apenas o uso de personagens e elementos ficcionais, mas também o emprego da metáfora mostram o quanto ficção e realidade estão intrinsecamente relacionados, ainda que alguns insistam em acreditar que o documentário trabalhe apenas com elementos reais” (MELO; GOMES; MORAIS, 2001, p.9). Dessas características, quatro são exercidas indubitavelmente pelo Não Conta Lá em Casa: o programa é veiculado em um canal de TV a cabo; como a própria atração faz questão de salientar, o NCLC é feito a partir de uma nova visão que os apresentadores querem dar sobre os países visitados, mostrando, pois, a subjetividade da equipe; a atração utiliza basicamente depoimentos de cidadãos pertencentes aos locais percorridos, assim como imagens de arquivo e pesquisas na internet (ou seja, documentos), para embasar o programa; além dos relatos e entrevistas “reais”, por vezes também utiliza simulacros para elucidar uma realidade tal como se cotidiana fosse (é o caso do posicionamento estratégico da câmera, que filma os quatro apresentadores como se houvesse um quinto integrante na ação, quando na verdade não há ninguém por trás da câmera, e aquele cotidiano é apenas uma representação do que de fato aconteceu). Por outro lado, o Não Conta Lá em Casa não cumpre uma das características: até a quinta temporada, possui

narrador em voice over26 (Leondre Campos), além de ter a

interferência de todos os apresentadores durante os episódios, explicando, opinando e contando a história do local visitado. O não “cumprimento” de todas as características, em nosso entender, no entanto, não elimina a possibilidade de o programa ser classificado como um documentário jornalístico, como trataremos a seguir.

3.2.2 Hibridismo de gêneros Mesmo que o reality show refira-se “a um vasto e plural género televisivo autónomo, não obstante integrar e adaptar elementos de outros géneros televisivos como o documentário, o concurso, o drama, a ficção ou a novela” (MATEUS, 2012, p. 243), esse tipo de programa difere do que aqui convencionou-se chamar “documentário jornalístico”, principalmente em relação à função e ao objetivo.

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“Voice over” é um termo técnico que designa a fala posta sobre as imagens. A fala de quem narra é dissociada espacialmente daquilo que é mostrado na tela, ou seja, o narrador não se encontra no local ou na situação vistos na imagem, apenas a sua voz é escutada.


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Enquanto o primeiro procura evidenciar a vida cotidiana por ela mesma, o segundo tem escopo mais abrangente. Segundo Diego Portales Cifuentes (2002) apud Fagundes e Zandonade (2003, p. 43), o documentário desempenha o papel de desenvolvimento cultural a partir da exposição de detalhes sobre os temas abordados. Ele o define como “programas da vida real que requerem uma pesquisa científica e/ou jornalística básica e um relato com o tempo suficiente para desenvolver o tema dentro de um contexto e com profundidade”. O documentário, de acordo com Paulo Baroukh (2002) apud Fagundes e Zandonade (2003, p. 41), “é uma poderosa ferramenta educacional, não só na transmissão do conhecimento como na formação da consciência crítica e fomentação de reflexão a respeito dos temas que apresenta”. Assim, embora o programa seja classificado como “reality show”, não concordamos com a categorização. Mais do que apenas mostrar/evidenciar a vida cotidiana, o Não Conta Lá em Casa relembra e reconstrói uma história de importância social e cultural, tenta aprofundar o debate sobre uma temática pouco discutida e ainda utiliza recursos, como já falado, que diferem dos programas de realidade propriamente ditos, como a produção prévia, o roteiro e a tomada de cenas. Por isso, a opção por tratar o programa, neste trabalho, como um documentário jornalístico. A fim de elucidar tal decisão, André Fran, um dos apresentadores do NCLC e autor do livro homônimo, foi consultado e, perguntado por e-mail (anexo A) acerca da classificação do programa como “reality show” em vez de “documentário”, Fran opinou em defesa do hibridismo da atração27:

Acho que mais por conveniência/ costume, principalmente pelo canal onde o programa está inserido. Documentário acaba sendo usado mais para longa metragens. Séries documentais algo mais comum em canais educativos. Na forma, ele é sim um documentário. Mas a divisão em canais como o Multishow geralmente é série de ficção ou reality shows. E, uma série documental como o NCLC também atende às características de um reality show, por mais que o termo esteja mais associado a game-shows e outros programas de conteúdo bem distinto do nosso. (PIRES, 26 set. 2013)

Como exemplo das características do NCLC, André explica que, embora conheçam pessoas aleatoriamente durante as viagens, muitos encontros e entrevistas são agendados 27

No site da produtora do programa, a Base#1 Filmes, o NCLC não tem apenas uma classificação: “Não Conta Lá em Casa é uma série de viagens que mistura reality-show, documentário e reportagem jornalística. Na teoria, é um programa de viagens, mas na prática é algo totalmente diferente e original. As viagens são realizadas por quatro aventureiros, que com sua coragem e, principalmente, curiosidade, transformam suas viagens em verdadeiras matérias jornalísticas, repletas de imagens incríveis, entrevistas reveladoras e depoimentos emocionantes.” (SÉRIE DE TV NCLC. Base#1 Filmes. Disponível em: <www.base1.tv/nclc/>. Acesso em: 7 set. 2014).


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previamente por meio de contatos feito antes da partida (PIRES, 15 ago. 2014). Além disso, a equipe sempre inicia a viagem com um “roteiro base”, que pode mudar ao longo da jornada 28. Tais ações elucidam o fato de que o planejamento de uma “agenda”, muito além da simples edição – que também ocorre nos programas de realidade –, aproxima a atração do gênero documentário em detrimento do reality show. Optando, pois, por considerar o Não Conta Lá em Casa um documentário jornalístico, infere-se a harmonia entre forma (documentário) e conteúdo (jornalismo interpretativo), tendo em vista que, após a explanação de todos esses conceitos, percebe-se a importância do gênero do programa na contribuição para o seu caráter social, voltado a desvendar e aprofundar temas relevantes e/ou pouco conhecidos pela sociedade.

3.3 A voz do Não Conta Lá em Casa Considerando o Não Conta Lá em Casa um documentário jornalístico, cabe, neste momento, tratar de que forma o gênero é trabalhado na atração. Marcius Freire (2009, p. 200) define o documentário como um “discurso imagético-sonoro que se constrói organizando peças retiradas do mundo histórico, assumindo posturas diante do destino do homem e pondo em prática princípios de responsabilidade perante esse destino”. Esse tipo de produção, já dizia Walter Sampaio (1971, p. 99) “representa para a televisão o que a grande reportagem representa para o jornal. É a experiência de levar para o vídeo o ‘palco da ação’ de um determinado acontecimento ou a história de um determinado fato, na sua maior dimensão possível”. A partir da definição desses autores, infere-se que o próprio fato de o programa ser categorizado como “documentário” pressupõe um caráter voltado à realização de um produto midiático “diferente”, um produto que busca explorar aspectos mais abrangentes e mais profundos acerca da temática tratada. Para tanto, mesmo que o gênero seja aquele o qual chamamos “jornalístico”, é necessário um elemento que definirá toda a abordagem desse produto, qual seja, a subjetividade do documentarista, haja vista que, como defende Arlindo Machado:

nenhum documentário é realmente um documentário puro. Aliás, um documentário puro seria algo inimaginável, pois sempre há a interposição da subjetividade de um (ou mais) realizador(es), sempre são feitas escolhas, seleções, recortes e é inevitável que essas mediações funcionem como interpretações. Para o bem ou para o mal. Na verdade, o documentário puro nem é desejável, pois seria algo insípido, incolor e inodoro, além de inútil, e, como vimos acima, a própria noção de documento 28

Os e-mails trocados com André Fran Pires constam nos anexos A e B, ao final da pesquisa.


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depende de um engajamento da parte de quem lida com ele. (MACHADO, 2011, p. 10, grifo do autor)

Essa subjetividade é a origem de onde se construirá toda a realidade que se quer mostrar, considerando, no caso, que o processo de realização do documentário perpassa todos os conceitos já citados neste trabalho, como a construção da realidade, o enquadramento e o jornalismo interpretativo. É a partir do ponto de vista do diretor que o objeto analisado/estudado/documentado será “moldado”, ou seja, passará pelo enquadramento – a partir do processo de apuração e edição – para, enfim, chegar ao espectador, a fim de que ele possa interpretar a realidade exposta e criar, então, um juízo crítico sobre o assunto. A subjetividade do diretor emerge no documentário por meio de um discurso, a “voz” do documentário, que compreende os elementos constitutivos da obra, desde a idealização até a edição final.

Entendemos a voz como as escolhas realizadas pelo documentarista no processo de produção do documentário, o que não se limita somente ao que é dito pelo narrador e/ou pelos entrevistados. Nichols estabelece quatro meios de constituição da voz: a construção imagética, o som, a cronologia dos eventos e o modo de representação. (OLIVEIRA; CARMO-ROLDÃO; BAZI, 2006, p.8, grifo nosso).

Analisemos esses quatro aspectos, a fim de entender a ligação entre a constituição da voz do documentário e a abordagem acerca do objeto documentado no Não Conta Lá em Casa.

3.3.1 A construção imagética e o som Imagem e som, cada um a seu modo, podem exercer funções e finalidades iguais ou distintas. Quando andam juntos, no entanto, invariavelmente se completam, não sendo um mais importante que o outro; apenas diversos. Trataremos aqui de ambos os aspectos conjuntamente, haja vista que o produto analisado é um documentário “audiovisual”, um filme que não só mostra imagens e sons como também lança mão de trilha sonora, montagens e imagens de arquivo. Antes de Leondre, André, Felipe e Bruno iniciarem as atividades do Não Conta Lá em Casa, outro filme foi seu antecessor. Indo.doc, um documentário realizado pela mesma equipe, foi o embrião do programa, aquilo que inspirou o início da série de viagens dos apresentadores aos destinos mais “polêmicos” do mundo. Em dezembro de 2004, um tsunami atingiu a Indonésia. Três meses depois, um terremoto. Com uma viagem de surf marcada para a região na época, a equipe foi ao local,


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mas, em vez de apenas curtir as perfeitas ondas de Bali, foram conferir os estragos da catástrofe natural que acometeu a região de Sumatra, assim como os esforços de toda uma população em busca de reconstruir sua história. Voltaram ao Brasil com 50 horas de filmagens gravadas. Dessas, apenas 72 minutos resumiram o percurso da viagem humanitária. Para lapidar tamanho

material

cinematográfico, afinando-o

aos

interesses,

particularidades e objetivos os quais almejavam os produtores do documentário, foi utilizado o processo de edição, o mesmo procedimento usado não só em filmes ou séries documentais, como é o caso do NCLC, mas até mesmo nas mais simples matérias dos noticiários jornalísticos. A edição, porém, não apenas serve para “cortar gordura”. Serve também, e principalmente, para construir o sentido e a imagem daquilo que se quer mostrar. É por meio desse procedimento que imagens e sons deixam de ser apenas registros e passam a se tornar produtos midiáticos cheios de significações. Como explica Cezar Migliorin (2009, p. 247), “a montagem está presente para organizar um discurso que nos levaria ao que não está ali, recriando uma unidade dentro daquelas imagens”.

Essa aproximação entre várias imagens não se dá no sentido de uma problematização da imagem em si, mas da utilização dessas imagens para produção de um sentido que não está em nenhuma delas. O encontro entre imagens deve produzir um sentido palpável e organizável. (MIGLIORIN, 2009, p. 248)

Por meio do exemplo acima, tentamos esclarecer como a produção de um programa de episódios de meia hora pode ser muito mais complexa do que aparenta. Em 2009, durante a viagem ao Irã, a equipe permaneceu no país durante pouco mais uma semana, captando entrevistas, depoimentos, filmando o cotidiano daquele povo e o seu próprio, mesmo naquele curto período de tempo. O resultado das gravações foram três episódios de cerca de vinte minutos cada, analisados, aqui, conjuntamente, como um filme documentário de pouco mais de uma hora. Assim como na realização do Indo.doc, finalizar um episódio que seja da atração exige selecionar e salientar (ou seja, “enquadrar”) os aspectos mais relevantes a serem tratados no filme, de acordo com a visão da equipe produtora. Essa visão se destaca pelos posicionamentos de câmera, pela escolha da trilha sonora, pelo discurso do narrador, entre outras formas de criação de sentidos, como discutiremos, mais especificamente no caso do NCLC, no próximo capítulo.


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Uma observação que deve ser feita, nesse contexto, é sobre a postura do diretor diante do processo de edição. Por ter nas mãos um “poder”, uma forma de conseguir modificar completamente uma realidade captada, é que entra a ética na atividade. Como explica Maria Dora Mourão (2009, p. 216), “a ética é uma questão que está diretamente relacionada com todas as etapas da realização documental, e que permeia o pensamento crítico do gênero desde os seus primórdios”.

Atualmente, com as facilidades de captação e montagem através de procedimentos digitais, a questão ética ganha outra dimensão, pois as possibilidades de recriação de imagens e sons através da reconstrução possibilitada pela tecnologia digital tornaram-se infinitamente maiores. A ética deve estar presente já no momento das filmagens, em especial na maneira como o documentarista se relaciona com o objeto filmado; e ainda durante a montagem, momento em que as imagens e sons são estruturadas e agenciadas podendo criar novos sentidos. (MOURÃO, 2009, p. 216)

Ao transformar, pois, uma vasta realidade em produto midiático, o agente deve ter noção de responsabilidade social e saber das consequências e alcances de sua produção. Quando uma reportagem, um documentário ou um telejornal, por exemplo, seguem a ética nesse sentido, eles contribuem também para a consolidação de uma mídia responsável, uma mídia que exerce sua função social.

3.3.2 A cronologia dos eventos O terceiro aspecto que compõe a voz do documentário é a cronologia de eventos, que “diz respeito ao tempo de duração do filme, dos planos e, principalmente, ao tempo dedicado para cada sonora” (OLIVEIRA; CARMO-ROLDÃO; BAZI, 2006, p.9). Analisaremos mais profundamente a cronologia de eventos do NCLC no próximo capítulo, mas já podemos adiantar, como inclusive já falado, que o programa é veiculado por temporadas, em episódios semanais de 30 minutos (contabilizando o tempo dos intervalos comerciais). Escolhidos os episódios da viagem ao Irã, que, juntos, têm duração de 1h1min4segs, observaremos o produto como se fosse um filme só, assim como é disponibilizado no DVD do programa. O início do documentário traz as justificativas porque a equipe decidiu ir conhecer o Oriente Médio, iniciando a viagem pelo Irã. Contam, nesse momento, um breve histórico do país, mostrando imagens de arquivo dos acontecimentos de 1979 e de 2009, passando, em seguida, a falar diretamente com cidadãos iranianos, pessoas que expressam seus pontos de vista sobre o que ocorre no país. Como explica Felipe Pena (2012, p. 57), “a fonte de qualquer informação nada mais é do que a subjetiva interpretação de um fato. Sua visão sobre


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determinado acontecimento está mediada pelos ‘óculos’ de sua cultura, sua linguagem, seus preconceitos”. O Não Conta Lá em Casa privilegia as fontes independentes, ou seja, aquelas que não são nem oficiais, nem oficiosas:

As fontes oficiais são sempre as mais tendenciosas. Têm interesses a preservar, informações a esconder e beneficiam-se da própria lógica do poder que as colocam na clássica condição de Instituição. Governo, institutos, empresas, associações e demais organizações estão nessa categoria. Como classificação conceitual, entretanto, se a pessoa que fala por elas não está autorizada, então a fonte é oficiosa. E quando não tem nenhum vínculo direto com o assunto em questão, trata-se de uma fonte independente. (PENA, 2012, p. 62, grifos do autor)

Foram entrevistados, com exceção dos membros da Embaixada do Brasil em Teerã, cidadãos encontrados por acaso nas ruas, nos hotéis onde a equipe do NCLC se hospedou, nos mercados iranianos, enfim, foram entrevistados todos aqueles cujo vínculo com a história do país se limitava ao que viram, viveram ou ouviram, não tendo tido poder de decisões tais como um governo pode ter, mas tendo vivenciado, como um cidadão comum, o desenrolar dos acontecimentos no Irã. Poderiam também ser chamados de “fontes testemunhais” ou “primárias”:

Como o próprio nome diz, ela tem relação direta com o fato, já que á sua testemunha. Mas é preciso lembrar que seu relato sempre estará mediado pela emoção, pelos preconceitos, pela memória e pela própria linguagem. Testemunha é apenas a perspectiva de um fato, jamais sua exata e fiel representação. Por sua relação direta com a informação, ela também está inserida na categoria de fonte primária. Já a secundária é o tipo de fonte usada para contextualizar a reportagem. Em uma matéria sobre a Guerra do Iraque, por exemplo, soldados e moradores de Bagdá seriam fontes primárias, enquanto cientistas políticos e analistas militares seriam fontes secundárias. (PENA, 2012, p. 64, grifos do autor)

O lugar de fala dessas fontes delimita o seu discurso, o qual, por sua vez, é transmitido, transformado e interpretado ao se tornar parte de um documentário, pois, como defende Migliorin (2009, p. 250), “não é mais um filme filmando uma identidade, mas uma identidade que está se criando junto com o filme”.

3.3.3 Modo de representação Por fim, o último aspecto que compõe a voz do documentário é seu modo de representação, ou seja, a categorização de que tipo de documentário é feito. No caso do Não Conta Lá em Casa, pode-se classificá-lo como “participativo”, ou seja, um modo que põe em


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evidência a interação entre o documentarista e o objeto documentado, podendo ocorrer de diversas formas, como explica Laécio Rodrigues:

A entrevista é o procedimento recorrente desta escola, mas outras formas de integração entre cineastas e personagens podem despontar, conforme se busque um maior ou menor nível de envolvimento com o outro em cena. Ao assistirmos aos filmes desta vertente, portanto, nos deparamos com um documentário realizado por alguém ativamente engajado na representação e, não, algo feito por um diretor que observa o mundo discretamente; suas tomadas nos revelam o corpo-a-corpo dos sujeitos em cena e seus níveis de engajamento, em encontros muitas vezes carregados de emoção. Testemunhamos, pois, o embate de mise-en-scènes, de desejos e de angústias; as recusas, esperas e desconfianças; a adesão e a rejeição; o afeto e a violência implicados neste processo. Em certo sentido, o que se registra é a tensão de um evento que inexistia antes do posicionamento da câmera, uma realidade que desponta pela mediação e agenciamento do cineasta, reconfigurando experiências de vida – a dele, a dos personagens e, talvez, a do espectador. (RODRIGUES, 2011, p.140, grifo do autor)

O modo participativo, como já citado no tópico anterior, põe o documentarista em posição ativa, como “uma mosca na sopa”, na definição de Oliveira, Carmo-Roldão e Bazi (2006, p.13), incomodando e evidenciando sua presença. Este modo, diferentemente de algumas outras categorizações29, escancara a subjetividade da equipe de produção, mostra opiniões, confronta a imagem do documentarista com o objeto documentado. O diretor dá “a cara a tapa”, desnudando seu ponto de vista. É importante ressaltar, nesse contexto, a reflexão que Laécio Rodrigues levanta acerca da “legitimidade” do documentário. O pesquisador questiona a polêmica com relação à “verdade do documentário”, ou seja, se a representação no filme seria honesta ou não com a realidade quando é inserida a subjetividade do documentarista. Rodrigues defende que uma produção documental de caráter participativo, por exemplo, tem sim seu valor como obra, afirmando que “a ‘verdade no documentário’ é sempre parcial diante da complexidade dos fenômenos e sujeitos abordados” (2011, p.141). O autor afirma que “reconhecer o documentário como representação, como construção parcial e seletiva, todavia, não implica em demérito para o domínio; tampouco deve acarretar condenações precipitadas” (2011, p. 151).

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A título de exemplo, Oliveira, Carmo-Roldão e Bazi (2006, p.13) apresentam seis modos de representação do documentário: poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático. Não trataremos de todas as classificações aqui, apenas do modo participativo. Para mais detalhes, recomenda-se a leitura de: OLIVEIRA, Ana Paula Silva; CARMO-ROLDÃO, Ivete Cardoso do; BAZI, Rogério Eduardo Rodrigues. Documentário e video-reportagem: uma contribuição ao ensino de telejornalismo. In: 9° Fórum Nacional de Professores de Jornalismo. Campos dos Goytacazes. 2006.


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Como já disse aqui, é da natureza da representação “amputar” o real e, não, mimetizá-lo ou reproduzi-lo; em outras palavras, no embate com a realidade complexa, o documentário leva sempre desvantagem. O que não invalida o empreendimento fílmico consciente de suas restrições. [...] a experiência é sempre mais rica do que o filme; mas sem os filmes, ela corre o risco de permanecer confinada unicamente aos seus protagonistas. (RODRIGUES, 2011, p.151)

Em resumo, sendo da própria natureza do jornalismo destacar os fatos relevantes a serem tratados e discutidos, não seria diferente com o documentário jornalístico. O que qualifica o gênero, no entanto, é a possibilidade de o documentarista inserir-se na produção de forma mais ativa, utilizando sua subjetividade durante as etapas de realização do produto, diferentemente do que normalmente ocorre nas reportagens jornalísticas corriqueiras, diante do “mito da objetividade”. O documentário se caracteriza pelo que propõe a relatar, assim como a abordagem e como é feito: tenta ser mais profundo e abrangente sobre o tema tratado e possui uma “voz”, ou seja, aspectos constitutivos que o constroem e, consequentemente, constroem o objeto documentado. No próximo capítulo, analisaremos de que forma o Não Conta Lá em Casa constrói a imagem do Irã.


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CAPÍTULO 4 A JORNADA IRANIANA Originado a partir de um filme documentário, o Não Conta Lá em Casa já nasceu com uma proposta ambiciosa. Como disse André Fran, “muito mais ágil que um documentário em longa metragem [...], com uma série de episódios formatados para a televisão seríamos capazes de abordar um número bem maior de destinos em um tempo mais curto” (PIRES, 2013, p. 12). E assim fizeram. A primeira temporada estreou em outubro de 2009. De lá para cá, já se passaram outras seis e mais de 30 países visitados pela equipe do programa. Em 2013, aliás, houve mudanças no elenco. Leondre Campos e Bruno Pesca se despediram da atração, dando lugar a Michel Coeli, que compõe agora um trio junto com André e Felipe Ufo. O programa começou com a visita a quatro países: Mianmar, Coreia do Norte, Irã e Iraque. Locais “fechados para o mundo”, “perigosos”, e – como se não bastasse a situação de isolamento em razão de conflitos internos e externos – qualificados por George W. Bush como “Eixo do Mal”. Leondre, Bruno, Felipe e André partiram, então, para executar a “missão de conferir de perto” o que se passava nessas nações em 2009, almejando ultrapassar as fronteiras territoriais e os preconceitos solidificados pelo senso comum difundido ao longo dos anos, como sintetiza Flávio Souza:

A fronteira, instituição humana, passou a determinar valores, a qualificar culturas, a reduzir a complexidade de algumas questões, instituindo verdades que guiam a vida daqueles que delas se apoderam. E assim o faz com análises reducionistas que levam, na maior parte dos casos, a conclusões ligeiras e noções limitadas, estabelecendo preconceitos. (SOUZA, 2010, p.15)

Neste capítulo, analisaremos como o programa Não Conta Lá em Casa enxerga o Irã, o terceiro e penúltimo destino visitado durante a primeira temporada. Será observado de que forma o programa (re)qualifica a nação, construindo uma nova imagem do país. Estará sob análise o discurso veiculado pelo NCLC, em contraposição ao senso comum existente acerca do Irã, englobando também as imagens, as declarações dos entrevistados e a trilha sonora escolhida para compor a atração. Para isso, será utilizado o DVD da primeira temporada do Não Conta Lá em Casa, no


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qual todos os episódios de cada país visitado foram compilados, apresentando-se, portanto, cada um como se fossem “filmes”, tendo duração de até 1 hora e 30 minutos. A junção dos episódios do Irã em um único “título” ou documentário tem 1 hora, 1 minuto e 4 segundos, sendo, portanto, este o corpus empírico do presente trabalho. No DVD, o título “Irã” é dividido em onze capítulos: 1. Oriente Médio: verdades e mitos; 2. Nossa base na região; 3. Chegando em Teerã; 4. Nossas percepções preconceituosas; 5. O grande bazar iraniano; 6. Na embaixada brasileira; 7. Desbravando o país; 8. Grandes poetas persas; 9. Persépolis e arredores; 10. Os camelos do Ufo; 11. A triste história de Arg-eBam. O documentário relata a viagem dos quatro brasileiros ao Irã, partindo inicialmente de Istambul, na Turquia (local de apoio para a inserção da equipe no Oriente Médio), passando às cidades iranianas de Teerã (capital), Shiraz, Persépolis, Yazd e Arg-e-Bam, nessa ordem. Em Teerã, a equipe busca entender os fatos ocorridos no país entre 1979 e 2009. Visitam o Museu Nacional do Irã, o Grande Bazar Iraniano, o Mausoléu de Aiatolá Khomeini, a Azadi Tower (monumento na entrada de Teerã) e a Embaixada do Brasil em Teerã. Conhecem três iranianas que os guiam pela cidade e fazem contato com outros cidadãos do local. Na segunda parte da viagem, os apresentadores buscam a história antiga, conhecendo as cidades milenares do Irã. Visitam os túmulos dos poetas Saadi e Hafez, em Shiraz, as colunas dos antigos palácios de Persépolis, passam pela cidade de Yazd (cujo lema é “se perca em Yazd”) para visualizar sua arquitetura e finalizam a viagem em Arg-e-Bam, a cidade em reconstrução cinco anos após um terremoto. A escolha pelos episódios relativos ao Irã, nesse caso reunidos em um único documentário, deu-se pelo fato de os integrantes do programa enfatizar a vontade que tinham de verificar a situação do país na época das gravações, desejando, especialmente quanto a essa nação, desmistificar alguns estereótipos, como será tratado a seguir. A metodologia utilizada será análise do discurso, uma vez que é por meio dele – seja em palavras, imagens ou sons – que a mídia exerce seu poder de construção da realidade, formando sentidos sobre o enquadramento do objeto retratado. Assim explica Patrick Charaudeau:

Os acontecimentos que surgem no espaço público não podem ser reportados de maneira exclusivamente factual: é necessário que a informação seja posta em cena de maneira a interessar o maior numero possível de cidadãos – o que não garante que se possam controlar seus efeitos. Sendo assim, as mídias recorrem a vários


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tipos de discursos para atingir seus objetivos. (CHARAUDEAU, 2006, p. 60, grifo nosso)

As estratégias utilizadas pelos produtos midiáticos, considerando o discurso informativo30, concretizam o poder da imprensa, uma vez que “toda instância de informação, quer queira, quer não, exerce um poder de fato sobre o outro. [...] as mídias constituem uma instância que detém uma parte do poder social” (CARAUDEAU, 2006, p. 63). Daí a necessidade de compreender o alcance dos sentidos produzidos pelo discurso do Não Conta Lá em Casa, tendo em vista a posição do programa como parte da instância midiática, o que lhe dá o privilégio de construir uma “verdade” acerca daquilo que pretende mostrar, ou seja “o outro lado do Irã”. E essa “verdade”, como destaca Charaudeau (2006, p. 63) “não está no discurso, mas somente no efeito que produz. No caso, o discurso de informação midiática joga com essa influência, pondo em cena, de maneira variável e com consequências diversas, efeitos de autenticidade, de verossimilhança e de dramatização”. Tentar-se-á verificar, assim, de que forma o discurso do NCLC produz efeitos em relação à imagem do Irã e a eles próprios (em uma enunciação discursiva autolegitimadora). O conceito de Felipe Pena (2012) sobre jornalismo de resistência será aplicado subsidiariamente, procurando-se observar as características dessa vertente jornalística (tratadas no segundo capítulo da pesquisa) aplicadas ao programa. A análise qualitativa do documentário, portanto, será feita basicamente por observação não participante, descrição e transcrição de partes do discurso (considerando também os aspectos imagéticos e sonoros), interpretação e explicação do objeto analisado, pois esses procedimentos metodológicos se mostram os mais viáveis em se tratando de uma análise audiovisual. Serão destacados aspectos considerados mais relevantes no documentário, como a forma que a atração mostra o povo iraniano, a postura dos apresentadores e o discurso de autolegitimação do programa.

4.1 Aspectos formais do Não Conta Lá em Casa Antes de iniciar a análise propriamente dita do documentário sobre o Irã, é necessário destacar alguns elementos formais da atração, haja vista que “todo dispositivo formata a mensagem e, com isso, contribui para lhe conferir um sentido. [...] Não há, como está

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Discurso informativo é aquele que não é propagandista, científico ou didático, na diferenciação de Charaudeau (2006, p. 60 a 63).


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consagrado na linguística e como o sabem e dizem os poetas, forma sem conteúdo, significante sem significado, mensagem sem suporte” (CHARAUDEAU, 2006, p. 105). O Não Conta Lá em Casa, como um programa de entretenimento que traz informações, lança mão dos recursos inerentes ao infotenimento, ao reality show e ao documentário jornalístico, como veremos adiante. À época da realização e gravação da viagem, os quatro apresentadores contavam com idade entre 25 e 35 anos. Eles já se conheciam e era amigos desde antes do início do programa (já tinham, inclusive, realizado o documentário Indo.doc juntos em 2005). Isso quer dizer que a interação entre a equipe se dá, durante os episódios, de forma natural. A linguagem utilizada e o tratamento conferido entre uns para com os outros é feita sem formalidades. Embora o roteiro base da viagem seja pré-estabelecido, não há script nem falas demarcadas para os apresentadores. Nesse sentido, é utilizada, durante todo o programa, a linguagem oral, dialógica, simples, direta e “jovem”, sendo usadas, inclusive, estratégias discursivas como humor, gírias e até palavrões, remetendo às conversas cotidianas. Esse recurso aproxima os apresentadores do público e reforça o efeito de verdade31 da produção, que é uma das características do infotenimento (a personalização), do reality show (a saliência da vida cotidiana) e do modo participativo do documentário. Uma das formas de emergência desse modo, aliás, se dá pela utilização da câmera subjetiva. Por meio dessa técnica, o espectador é imerso na ação que está sendo mostrada como se vivesse uma experiência própria. Acontece, por exemplo, quando os entrevistados são mostrados de frente, em close, como se conversassem diretamente com o público. A postura dos apresentadores, quando são mostrados em ações cotidianas, como tomar café da manhã e dormir (imagem 1), também contribui para esse efeito.

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Na definição de Charaudeau (2006, p. 49), “o efeito de verdade está mais para o lado do ‘acreditar ser verdadeiro’ do que para o do ‘ser verdadeiro’. Surge da subjetividade do sujeito em sua relação com o mundo, criando uma adesão ao que pode ser julgado verdadeiro pelo fato de que lhe é compartilhável com outras pessoas, e se inscreve nas normas de reconhecimento do mundo. [...] O efeito de verdade não existe, pois, fora de um dispositivo anunciativo de influência psicossocial, no qual cada um dos parceiros da troca verbal tenta fazer com o outro dê sua adesão a seu universo de pensamento e de verdade. O que está em causa aqui não é tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de ‘credibilidade’, isto é, aquilo que determina o ‘direito à palavra’ dos seres que comunicam, e as condições de validade da palavra emitida”.


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Imagem 1. André é filmado dormindo dentro do ônibus que leva a equipe à cidade de Yazd. Esse recurso contribui com o efeito de verdade do programa.

As citadas estratégias, que procuram dar ao programa a qualidade da espontaneidade, levando à aproximação do reality show, são, contraditoriamente, acompanhadas de outra técnica: o posicionamento de câmera. Ao passo que dá a impressão de “flagrante” da ação cotidiana da equipe – o que facilita a aproximação com o público, que tem a impressão de ser o próprio cinegrafista –, a câmera estrategicamente posicionada é uma das características que põem em xeque a ilusão do programa como um reality show “puro”. Exemplo disso ocorre aos 3min20segs. Leondre explica que ele e Bruno já se encontram em Istambul, enquanto Felipe e André ainda estão no Brasil. Deduz-se que Bruno é quem segura a câmera filmadora enquanto Leondre faz a explicação. Ocorre que, alguns segundos antes, em 3min13segs, Leondre e Bruno são filmados juntos andando por uma rua da cidade turca (imagem 2). Como a câmera está parada, e sabe-se que os dois apresentadores estão sozinhos, pode-se concluir que a filmadora fora posicionada em um lugar que mostrasse tanto a equipe quanto o local de ação, destacando feitos corriqueiros na viagem, como passear pelas ruas ou almoçar em um restaurante. Tal recurso, que simula uma ação espontânea, é uma das características do documentário jornalístico – como elucidado por Melo, Gomes e Morais (2001, p. 8 e 9) –, qual seja: a representação da realidade. Esta qualidade funciona como “construção” e também tem seu papel de informação, haja vista que não está “mentindo”, mas (re)construindo um fato que realmente aconteceu sendo representado da forma que melhor se adequa aos propósitos da atração.


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Imagem 2. Leondre e Bruno andam pelas ruas de Istambul enquanto são filmados por uma câmera estrategicamente posicionada.

Aos 16min12seg, assim como em diversos outros momentos, a estratégia se repete. Do lado de fora do Museu Nacional do Irã, os apresentadores sentam nas escadas, enquanto leem um guia de viagens (imagem 3). A impressão é que um quinto integrante (no caso, o próprio espectador), capta a imagem. A utilização dessa técnica argumenta a favor de o Não Conta Lá em Casa ser classificado como um documentário, em vez de reality show.

Imagem 3. André, Felipe, Bruno e Leondre (em sentido horário) são filmados nas escadas do Museu Nacional do Irã.

Em determinados momentos do filme, são utilizadas estratégias discursivas de modo a torná-lo mais atraente, dando o tom de suspense e expectativa ao telespectador, para, logo em seguida dar um desfecho à situação. Exemplo disso acontece quando os apresentadores se dirigem da cidade de Persépolis em direção a Yazd e, até o momento, é feito certo mistério para saber qual será o próximo destino da equipe.


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Outro aspecto formal do programa é o uso de trilha sonora, que, no caso do NCLC, é majoritariamente instrumental. As músicas dão o tom das cenas (por vezes alegres, por vezes cômicas, por vezes tristes), mas não são usadas à exaustão, isto é, há grande parte do filme que não conta com música de fundo, apenas som ambiente. Não há a utilização de gráficos ou tabelas, mas há, principalmente na primeira metade do documentário, a inserção de imagens de arquivo e a representação dos mapas das regiões percorridas pela equipe no Oriente Médio. Quanto ao tratamento dos entrevistados, todos eles são filmados de frente, em close, e as sonoras contam com, em média, 30 segundos cada (variando de 7 segundos a 2 minutos). É característico do Não Conta Lá em Casa a inserção de opiniões de setores representativos da comunidade, ou seja, dos próprios cidadãos iranianos. As únicas autoridades consultadas durante todo o documentário são os representantes da Embaixada do Brasil em Teerã, enquanto as outras fontes são independentes. Essa característica faz parte do conceito do jornalismo de resistência, traçado por Felipe Pena (2012). Os apresentadores também costumam falar diretamente para a câmera, em primeiro plano, tanto em imagem estática quanto em movimento, que ocorre neste caso, por exemplo, quando a equipe transita por algum lugar no destino e, durante o percurso, um dos quatro explica o que está acontecendo enquanto outro, caminhando ao lado, filma a ação. O documentário é dirigido e narrado em voice over por Leondre Campos, em primeira pessoa, tem roteiro de Leondre e Felipe Ufo e texto de André Fran.

4.2 Como o Não Conta Lá em Casa enxerga o Irã 4.2.1 Ocidente versus Oriente Tracemos, portanto, algumas considerações sobre o contexto de produção da viagem ao Irã pela equipe do Não Conta Lá em Casa, iniciando pela impressão que o programa quer passar e como isso foi-se dando nas primeiras cenas do documentário. Desde a criação do NCLC, em 2009, a vinheta de abertura da atração permanece a mesma. Ela tenta mostrar a proposta e a identidade que o programa quer construir: em apenas 10 segundos, o VT sugere que, inevitavelmente, falar-se-á de conflitos e/ou guerras. Isso é percebido pelos elementos que compõem a vinheta: uma montagem ao estilo bricolagem, que remete a imagens retiradas de revistas, sem nenhuma palavra, frase ou créditos de produção, envolvida por uma trilha sonora frenética e alarmante. A música prenuncia as imagens: um som de corneta semelhante a um “toque de recolher” ou a um chamado de exército vem acompanhado das imagens de placas de “perigo”,


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“contra mão”, “material inflamável”, “cuidado com quedas” e “eletricidade”, todas elas entrecortadas pela silhueta de uma cerca de arame farpado contra um fundo neutro (imagem 4).

Imagem 4. Placas indicam perigo.

situações

de

Em seguida, quando a batida se intensifica e ouve-se ao fundo o som de “multidão”, a representação de pessoas protestando aparece. Em segundo plano, cartazes são levantados, enquanto alguém filma ou fotografa a ação, o que talvez possa ser atribuído à própria mídia. Em primeiro plano, pessoas sem rosto – a representação de “qualquer um” –, levantam os braços e empunham megafone (imagem 5).

Imagem 5. Representação de manifestantes em protestos.


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Ao som de tiros que lembram jogos de videogame, a imagem de crianças jogando bola e andando de bicicleta se confunde com um exército em posição. Semelhante ao cotidiano de muitos países, vê-se também a figura de militares empunhando cassetetes, em uma representação contraditória de algumas tristes realidades (imagem 6).

Imagem 6. Crianças brincando de bola e andando de bicicleta se misturam a soldados e policiais.

O frame32 vira de ponta a cabeça e mostra, na sequência, uma sentinela militar. Uma torre (provavelmente um farol) ocupa o centro. Em primeiro plano, é possível ver apenas o topo do capacete de soldados carregando suas armas enquanto caminham do lado interno de uma propriedade protegida por portões e cercas de arame farpado (imagem 7). A propriedade é, como se percebe pela colagem ao fundo, um “país tropical”, com árvores densas e pássaros voando.

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“Frame”, do inglês “quadro ou moldura”, representa um quadro ou imagem fixa de um produto audiovisual.


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Imagem 7. Soldados protegem o que parece ser um país tropical.

Até que um barulho de avião conclua a transição para o último frame, uma série de sons e imagens já relataram a imensa quantidade de informações que em segundos podem surgir no contexto tratado. O nome do programa “Não Conta Lá em Casa”, que finaliza a vinheta, é gravado em vermelho e preto contra o fundo neutro, acima de mais uma cerca de arame farpado, sendo acompanhado do som de metralhadoras (imagem 8). As cores fazem referência a sangue e luto, elementos indicativos de guerras.

Imagem 8. O nome do programa vem acompanhado da imagem de uma cerca de arame farpado.


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A simbologia da abertura dá a sensação de que os apresentadores enfrentarão situações de perigo em seus destinos. Ao mesmo tempo em que serve para criar tensão no espectador, com a rapidez das imagens e da trilha sonora, o VT reflete a forma ocidentalizada como os lugares que o programa pretende visitar são lembrados. As imagens de protestos, guerras, armas e soldados são exatamente os elementos que surgem no imaginário popular – sobretudo o ocidental – quando se evoca o nome de países como Irã e Iraque, os destinos da atração. A abertura, na verdade, acaba reforçando o senso comum, em clara oposição à proposta real do programa de desmistificar estereótipos – o que gera um sentido irônico ao reproduzir certo “sensacionalismo” usado normalmente ao se tratar desses países sob o viés apenas da violência. No caso do Irã, a imagem de nação em guerra e marcada por conflitos políticos internos acompanhou os apresentadores do NCLC até que eles pudessem, de fato, enxergar mais além do que se passa nesse país. Se, como afirma Felipe Pena (2012, p. 23), “a natureza do jornalismo está no [...] medo do desconhecido, que leva o homem a querer exatamente o contrário, ou seja, conhecer”, o objetivo do Não Conta Lá em Casa foi exatamente tentar conhecer e mostrar uma cultura geográfica e culturalmente distante além de suas superficiais e estereotipadas representações. No discurso de abertura, Leondre Campos narra como o destino escolhido é tratado pelo senso comum: [Locutor] Ao ouvir o termo “Oriente Médio”, os primeiros países que vêm à cabeça são Irã e Iraque. Ao pensar em guerra, também. Conflito com os Estados Unidos? Irã e Iraque de novo. Obviamente que, dentro da nossa proposta do nosso projeto de viagens, a gente tinha que ir conferir esses dois lugares de perto, fosse para desmistificar ou comprovar o que se passa por lá, torcendo, obviamente, para que a roubada não fosse tão intensa. Um passo de cada vez, escolhemos o Irã para ser o primeiro da lista na nossa jornada ao Oriente Médio. (0’10’’ a 0’48’’)

A narrativa é acompanhada por imagens de arquivo: inicia-se com o mapa do Oriente Médio, em transparência a figuras pouco claras de soldados em guerra, seguido de registros midiáticos sobre o Irã e o Iraque – um “Breaking News” sobre a guerra neste último, uma notícia online com o título “EUA-Irã: Inimigos íntimos” e uma comparação sobre ataques dos dois países mostrada por programas televisivos (imagem 9).


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Imagem 9. No discurso de abertura, o Oriente Médio é logo associado a situações de guerra.

Em seguida, a palavra “Attacks” sob o nome do Irã, uma foto de soldados em posição e mais uma imagem de TV, esta com os dizeres “Irã deve ser atacado antes que consiga a bomba” são outros recursos utilizados para evidenciar o estereótipo do país, antecipando a consequente aparição do mapa do Irã, que finaliza a primeira parte do discurso de introdução à viagem, dando espaço para que um breve histórico da nação seja contado:

[Locutor] A história recente do Irã é marcada por eventos e conflitos internacionais, e a presença desse país na mídia nem sempre vem acompanhada dos melhores adjetivos. O Irã, a partir dos anos 50, foi governado à mão de ferro por um Xá, um ditador apoiado pelos Estados Unidos. E o que se seguiu daí, no fim dos anos 70, foram os famosos episódios da tomada da embaixada americana por estudantes, o que durou mais de 400 dias; a Revolução Islâmica, liderada pelo Aiatolá Khomeini; o inicio de uma conturbada relação com os EUA; e, obviamente, uma sangrenta guerra contra o seu vizinho Iraque, de Saddam Hussein. Mais recentemente, o Irã volta às primeiras páginas dos jornais, mas dessa vez por causa dos protestos contra a reeleição supostamente fraudulenta do presidente Ahmadinejad. Não bastasse isso, a comunidade internacional vem criticando duramente o país pelo seu programa nuclear. (0’48’’ a 1’52’’)

Percebe-se, pela passagem do locutor, a utilização de termos contraditórios. Ao passo que afirma ser o país frequentemente acompanhado de adjetivos pouco positivos, há uma replicação de tais “qualidades”. Intencionalmente ou não, ao tentar criticar o senso comum associado ao Irã, o discurso suscita as palavras “conturbada”, “sangrenta” e “fraudulenta”. Daí pode-se ter uma dupla interpretação: 1. A narração reflete uma visão influenciada pelos estereótipos os quais critica, em uma relação de ambiguidade; ou 2. A utilização dos citados termos fora feita propositalmente, com o objetivo de causar estranhamento aos receptores da


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mensagem (a ironia está no fato de que as palavras usadas também chamam a atenção ao discurso porque causam reconhecimento a quem compactua com a ideia do Irã como país bélico). Apenas com a observação do restante do programa se poderá visualizar minimamente para qual das duas posições os produtores estavam mais inclinados. Continuemos, pois, com a análise. Manifestantes correndo entre fumaça, carregando cartazes ou armas e beijando a foto de um líder religioso são os arquivos que marcam a segunda parte do discurso. A foto do Xá Reza Khan Pahlavi, a imagem de Khomeini, a manchete “EUA diz: Irã é o país mais ativo no suporte ao terrorismo” e mais imagens de guerras e de protestos (tanto os da década de 1970 quanto os mais recentes) são os elementos utilizados para escancarar por que o Irã tem sido tratado como uma nação bélica, sendo este argumento arrematado com a figura de Ahmadinejad e do programa de energia nuclear (imagem 10).

Imagem 10. O Irã é mostrado por meio de seu estereótipo: fanatismo religioso, guerras, protestos e programa nuclear.

Por fim, tentando minimizar o estigma da nação, o discurso passa a justificar por que valeria a pena conhecer o país e descobrir outros aspectos além do senso comum:

[Locutor] Obviamente, não era só isso que nos interessava. Ainda tinha um outro lado histórico muito rico que nos atraía muito. Saber que a história da humanidade passa inevitavelmente pelo Irã, pelo milenar Império Persa e pelo incomparável sítio arqueológico de Persépolis; o próprio fato de os iranianos não serem árabes, como o mundo pensa, mas persas; todas essas questões despertavam a nossa curiosidade e levaram a gente em direção ao país. Isso sem falar na vontade que tínhamos de conhecer o mundo islâmico e compreender um pouco mais dessa religião, que é hoje a segunda maior do planeta, mas que, por outro lado, é tão associada a fanatismo e


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terrorismo. Queríamos ver de perto as restrições feitas às mulheres dentro dessa religião. Enfim, queríamos ver com os próprios olhos todo aquele mundo tão próximo e tão distante de nós. (1’55’’ a 2’51’’)

Na cobertura desta última passagem, são mostradas fotos da Pérsia antiga, das ruínas históricas, assim como de pessoas em cultos religiosos, antes de questionar, assim com na notícia reproduzida, “Quantos muçulmanos são terroristas?”. Finalizando a apresentação, retratam-se mulheres com a cabeça coberta pelo típico véu e o mapa da Turquia – a “base” de onde os brasileiros sairiam em direção ao Oriente Médio (imagem 11).

Imagem 11. Imagens tentam justificar outras razões para conhecer o Irã além do estereótipo.

Assim termina capítulo introdutório da viagem ao Irã, que, como se pode perceber, é carregado tanto em imagens quanto em palavras que refletem o estereótipo disseminado ao longo dos anos acerca do país. Soldados, armas, protestos e representações midiáticas compõem o discurso de introdução e mostram, se não a realidade, aquilo com o qual estamos acostumados a associar à nação e que marcam o entendimento do espectador, o que Thompson chama de “mundanidade mediada”:

Nossa compreensão do mundo fora do alcance de nossa experiência pessoal, e de nosso lugar dentro dele, está sendo modelada cada vez mais pela mediação de formas simbólicas. Esta difusão dos produtos da mídia nos permite em certo sentido a experiência de eventos, a investigação de outros e, em geral, o conhecimento de um mundo que se amplia para muito além de nossos encontros diários. Os horizontes espaciais de nossa compreensão se dilatam grandemente, uma vez que eles não precisam estar presentes fisicamente aos lugares onde os fenômenos observados ocorrem. (THOMPSON, 2008, p. 39)


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Somente estando presente é que a “mundanidade” deixa de ser mediada e passa a ser “real”. Assim, os quatro apresentadores procuram conhecer a “mundanidade” relativa ao Irã e iniciam a jornada pelo Oriente Médio. Até agora, no entanto, o programa não traz nenhuma informação nova além do estereótipo do país. Curiosamente, antes de desembarcarem em Teerã, capital do destino, havia entre os apresentadores um conflito de opiniões acerca das expectativas da viagem. Felipe Ufo é quem primeiramente justifica a vontade de visitar a nação:

[Felipe] Eu tenho, há muito tempo, muito interesse de conhecer o Irã, porque eu acho que é um lugar de uma cultura fascinante, de uma história riquíssima, o berço de várias civilizações, o Império Persa... Você começa a ouvir de Dario, de Ciro... Aí você começa a ficar fascinado com tudo aquilo. Então, já tinha esse ponto histórico, para saber da riqueza histórica que é o Império Persa, hoje chamado de Irã, e outro ponto é por o Irã estar na mídia sempre de uma forma pejorativa, de uma forma negativa. Quando você fala de Irã, vem para você a imagem dos aiatolás, da Revolução Islâmica, de um país meio que proibido, perigoso e naquele em que as pessoas não podem, não deveriam estar indo. Não é essa a imagem que eu tenho do Irã, então eu estou curioso para saber se a imagem que eu tenho é a correta ou é a errada, se a imagem que a mídia passa do Irã é a correta ou é a errada. (6’21’’ a 7’18’’)

O questionamento de Felipe Ufo, na visão de Muniz Sodré, é algo que deveria ser intrínseco a todo jornalista: contestar o senso comum, evitar a repetição e aprofundar o olhar sobre as questões arraigadamente aceitas:

Um jornalismo que não consiga ultrapassar, ainda que minimamente, a aparência estabilizada das coisas pelo senso comum, não possui outro papel além da tão criticada retificação declaratória da realidade. Jornalista seria, acima de tudo, o intérprete qualificado de uma realidade que deve ser contextualizada, reproduzida e compreendida nas suas relações de causalidade e condicionamentos históricos. (SODRÉ, 2009, p.62 e 63)

Essa ideia se coaduna com a afirmação de Pena (2012, p. 118) de que “qualquer consenso é muito perigoso e deve ser relativizado”. O pesquisador critica simplificações maniqueístas de análise, tais como “Estados Unidos são bons” e “Irã e Iraque são maus”. Porém, mais do que um olhar jornalístico, o discurso de Felipe é um meio de reforçar e legitimar o propósito do programa (numa autorreferência implícita), que busca desmistificar os estereótipos veiculados na mídia acerca desses países. O apresentador adota essa estratégia de modo pessoalizado, colocando-se como personagem para criar uma empatia com o público e se legitimar enquanto enunciador e locutor dessa história. Bruno Pesca é o outro que concorda com o colega – “vai ser a viagem mais interessante do ano, na minha opinião” (8’07’’ a 8’10’’) –, enquanto André e Leondre têm


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suas dúvidas quanto à segurança do país, como explica o narrador:

[Locutor] Pelas informações que a gente tinha, relatos de conhecidos e pesquisas recentes, havia razão para desconfiar que a viagem podia ser um pouco mais tensa. Fazia pouquíssimo tempo dos protestos ocasionados pela reeleição do presidente Ahmadinejad, quando milhares de pessoas foram às ruas a favor e contra o presidente eleito, o que gerou confrontos e repressão extremamente violentos. Em um desses confrontos, inclusive, ocorreu a emblemática morte de uma manifestante, que foi captada pela câmera de um cinegrafista amador. (8’13’’ a 8’44’’)

Ao longo do discurso, mais imagens de arquivo são mostradas: os protestos em razão da reeleição e a manifestante morta na rua, enquanto seu corpo é socorrido antes mesmo de cair ao chão, uma imagem semelhante a que se costuma ver em programas policiais. A declaração de Felipe e Bruno, que parecem estar “abertos” para conhecer o país, entra em choque com o medo dos dois outros apresentadores. Leondre e André se mostram nitidamente tensos, demonstrando tanto com palavras quanto com a linguagem corporal a apreensão de ir visitar um local que viveu, recentemente, “confrontos e repressão extremamente violentos”. André diz, enquanto enxuga o suor de nervosismo do rosto (imagem 12): “Irã, Teerã... Não estou preparado para declaração agora. É um momento tenso” (8’49’’ a 8’59’’). Leondre olha para os lados e faz cara de desconfiança quando se refere a Felipe e Bruno (imagem 13): “O Ufo e o Pesca ficam nessa de que é tranquilo... De que o Irã é tranquilo, que vai dar tudo certo...” (8’59’’ a 9’04’’).

Imagem 12. André Fran enxuga o suor de nervosismo do rosto ao tentar falar da viagem ao Irã.


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Imagem 13. Leondre desconfia que a viagem ao Irã seja “tranquila”.

De acordo com a narração, no entanto, até mesmo Felipe e Bruno começavam a apresentar sinais de tensão à medida que o Irã se aproximava. Chegando a Teerã, contaminados pelo medo, os apresentadores mostram ambiguidade quando às primeiras impressões sobre o país. A surpresa inicial foi o frio da madrugada iraniana, seguida pela admiração quanto às boas condições das estradas da capital. Os apresentadores expressam misto de espanto e questionamento.

[Locutor] Nossa primeira impressão do Irã já era bem diferente do imaginário de, com certeza, a grande maioria dos ocidentais, inclusive o nosso. As estradas eram super bem cuidadas, iluminadas e, até certo ponto, modernas. Mas logo atentamos para os carros bem antigos que circulavam por elas, o que já podia ser um indicativo de outros aspectos do país. (11’21’’ a 11’41’’)

Imagem 14. A primeira impressão da equipe sobre o Irã já é diferente do senso comum. Os apresentadores acham as estradas conservadas, iluminadas e modernas.


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Logo na sequência, o programa não deixa de mostrar que a equipe é vítima de um golpe por parte de um taxista que os levaria do aeroporto ao hotel, que cobrou 10 vezes mais que o combinado. O preço acordado seria pago em Tumans, uma das moedas do Irã, mas, ao chegar ao destino, a viagem foi cobrada em Rials, deixando os brasileiros indignados. Somado a isso, os apresentadores ficam apreensivos com o local do hotel que, segundo André, é “sinistro” (12’08’’) e se mostram claramente desapontados com a receptividade na chegada: “[Leondre] Cinco minutos de lobby de hotel, um casal de italianos já olhou e falou ‘Journalists are not welcome’33. Eu falei, ‘pô, a gente não é jornalista’34. Nem começamos a filmar nada e já estamos levando chamada.” (13’11’’ a 13’24’’). Na manhã seguinte, a equipe parece mais relaxada e confiante para começar o dia. Os quatro partem para iniciar o passeio pelas ruas de Teerã, um momento em que é possível perceber que os apresentadores chegaram ao país com uma visão ocidentalizada, estereotipada e preconceituosa em relação ao Irã.

[Bruno] Primeiro dia em Teerã. O hotel é bem simples, mas a gente dormiu muito bem, a comida muito boa. (Pausa) Trânsito intenso! Hoje é domingo! Domingo de manhã. [André] É o primeiro dia de trabalho deles. [Bruno] Domingo é o primeiro dia de trabalho deles? (Risos) [Leondre] Caraca, é mesmo! (Risos) (Pausa) [Felipe] Só tem homem aqui na rua, tava sentindo uma coisa estranha aqui, só não estava sabendo o que que era. To começando a ficar com alergia (Risos). [Felipe] Mas assim... Não é nenhuma mesmo, não tem nenhuma mulher passando com compras, fazendo um agradinho, vendendo um negocinho na rua, voltando da academia, nada! Indo para a praia, nada! (Risos) [André] Depois de seis quarteirões, é a primeira mulher que a gente avista no Irã. (13’41’’ a 14’33’’)

Ruas lotadas (de homens) e trânsito intenso no domingo foram motivos de espanto para a equipe, tendo em vista o primeiro choque de realidade comparado aos costumes ocidentais. Como explica Priscila Dionízio (2011, p. 10), “relatos de viagem e reportagens especiais que buscam explorar novos lugares, povos, modos de ser e estar em comunidade ocupam o espaço midiático, trazendo o exótico e o distante como objetos de fascínio e conhecimento”.

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“Jornalistas não são bem-vindos” (tradução livre). A título de elucidação, apenas André Fran é jornalista por formação. Os outros três apresentadores, embora trabalhem com TV e cinema, não possuem título de jornalistas (Leondre é formado em Direito e Bruno e Felipe são economistas). O fato de os apresentadores, nesse momento, não considerarem o trabalho que fazem como “jornalístico”, não desqualifica a atração como tal, como pudemos observar pela análise de todas as características do programa, que levam a crer tratar-se de um documentário jornalístico. 34


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No caso do NCLC, além de surpresa, os hábitos diversos dos iranianos impulsionaram uma reflexão acerca do modo como os apresentadores iriam se debruçar sobre esse povo e sua forma de viver. A autocrítica, uma das características do jornalismo de resistência (PENA, 2012), é expressa na narração de Leondre:

[Locutor] Na verdade, a área do nosso hotel ficava em meio a dezenas de oficinas mecânicas, então era óbvio que por ali não ia mesmo ter mulher nenhuma circulando. De cara, já percebíamos que nossas percepções preconceituosas precisavam ser revistas de imediato. (14’35’’ a 14’48’’)

É possível observar esse tipo de percepção principalmente na fala de Felipe Ufo. O discurso do apresentador evidencia um ponto de vista eminentemente ocidental, quando imagina as mulheres na rua “indo para a praia” ou “passeando com compras”. O estranhamento por não ter visto facilmente iranianas circulando naquela localidade se coaduna perfeitamente com o imaginário de que as mulheres do Oriente vivem uma vida de restrições. O ponto de fala de Felipe reflete um estereótipo comum no Ocidente, ou seja, aquele que considera que as mulheres orientais não podem realizar simples ações cotidianas – como fazer compras e andar na rua – principalmente por causa de determinações religiosas. Ao perceber que não era “apenas isso”, uma vez que essa visão simplista impedia uma análise imparcial sobre o cotidiano do povo iraniano, foi preciso que a equipe admitisse que havia chegado lá com percepções viciadas em razão dos estereótipos. Em resumo, as considerações que podemos fazer quanto à imagem inicial que é passada pelo programa em relação ao Irã é que ela é majoritariamente negativa, explícita ou implicitamente. A equipe chega ao país assumidamente apreensiva, o que causa tensão inclusive no espectador, prejudicando uma análise imparcial sobre o lugar. Além disso, as imagens mostradas com o fito de contextualizar a história recente do Irã replicam o estereótipo, em uma relação ambígua de influência e crítica. Por fim, os apresentadores exprimem opiniões e falas ocidentalizadas, provando que até mesmo os que estavam “abertos” a conhecer o país não necessariamente estavam preparados para olhá-lo de forma isenta ou cética. Ao mostrar mais aspectos negativos que positivos nessa introdução – que parte da vinheta de abertura até os 14min50seg –, a primeira impressão que é passada acerca do Irã não é muito diferente de seu estereótipo.


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4.2.2 O povo iraniano O estigma do Irã começa a mudar quando a equipe do Não Conta Lá em Casa entra em contato com o povo iraniano. A primeira conversa com um nativo acontece à porta do Museu Nacional do Irã, onde um senhor já em seus 60 anos, aborda não só os apresentadores, mas todas as pessoas que se encontravam sentadas à escada do museu. Pedindo para bater fotos e colhendo endereços e cartões de visitas de todos, o “velhinho”, como apelidou André Fran, conquistou a simpatia das pessoas e ainda acabou sendo ponte para que os quatro conhecessem três iranianas que os levariam para conhecer mais da cidade. O “velhinho” ganha de André a qualidade de “muito gente boa” (16’39’’). A simpatia e a afabilidade do daquele povo são representadas também por Mr. Hussein, 30 anos, um vendedor de tapetes persas. Leondre, Felipe, Bruno e André o conhecem, por acaso, no Grande Bazar, um centro comercial com lojas típicas e no entorno do qual se encontra o mausoléu do Aiatolá Khomeini. Mr. Hussein leva os brasileiros à sua loja, onde passam um tempo conversando (imagem 15).

[Locutor] Ainda no Bazar, a hospitalidade iraniana era representada por esse típico vendedor de tapetes persas, que podemos dizer que, com menos de cinco minutos de papo, virou nosso amigo. Mesmo sabendo que a gente não ia comprar nada, ele nos deu uma aula sobre os tapetes persas: como eram feitos, de onde vinham e sobre os povos que se dedicavam há séculos a essa atividade. (26’31’’ a 26’52’’)

Sorridente e simpático, Hussein dá as boas vindas aos apresentadores e despende parte de seu tempo para introduzi-los à cultura iraniana. Após explicar sobre o processo de fabricação de tapetes e servir chá à equipe, o comerciante fecha a loja e conduz os apresentadores à Embaixada do Brasil em Teerã. Durante o trajeto, o vendedor explica à equipe sobre hábitos muçulmanos e a vida na sociedade iraniana.

Imagem 15. Personagem central da conversa, entre Felipe (esq.) e André (dir.), Hussein explica como são feitos os típicos tapetes persas.


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Contrariando todas as expectativas de que o povo iraniano talvez não fosse confiável, o comerciante é mostrado de forma singela e espontânea, passando a impressão de que todos os iranianos são assim. Tal como os outros nativos entrevistados, não se sabe o sobrenome de Hussein; ele é mais um iraniano, na representação de uma coletividade, que se atreve a conhecer e recepcionar estrangeiros que, por sua vez, estão desbravando o seu país. A adjetivação é uma das formas de mostrar as qualidades dos nativos, mas o programa também lança mão de outros fatores, como o privilégio às imagens em que os iranianos aparecem sorrindo ou com semblante positivo. Assim aconteceu, por exemplo, quando, na cidade de Yazd, os brasileiros conhecem Mr. Hamed, um aficionado por futebol.

[Felipe] O que você sabe sobre o futebol brasileiro? [Mr. Hamed] Eu conheço todos os jogadores brasileiros. Oscar, Batista, Neto, César, Juninho, Toninho, Amaral, Décio, Perez, Zico, Sócrates, Éder, Falcão, Serginho, Cerezo, José Leandro, Paulo Isidoro, Eduardo, Careca, Quinha, Jauler, Mozer, Muller. O Brasil tem bons jogadores, boas pessoas. Isso é o que eu sei pela TV. Eu gostaria de ir ao Brasil e conversar com as pessoas. O Brasil é famoso por três coisas: futebol, café e lambada (Risos). (48’59’’a 49’40’’)

A conversa bem humorada com Mr. Hamed termina com os apresentadores presenteando-o com uma camisa da seleção brasileira (imagem 16). O homem parece bastante alegre e agradecido com o presente.

Imagem 16. Mais um personagem iraniano, Mr. Hamed, o aficionado por futebol, é presenteado com uma camisa da seleção brasileira.

Um gesto comum por parte dos iranianos, que acontece mais de uma vez durante o programa, é o oferecimento de caronas. Na cidade de Shiraz, saindo do túmulo do poeta Hafez em direção ao do poeta Saadi, a equipe aceita a gentileza de um nativo, que, com um


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simples gesto, os deixa impressionados: “[Locutor] De novo, a hospitalidade daquele povo se mostrava pra gente. Era difícil de imaginar até que ponto ela chegaria. Transporte de graça, dicas, chazinho iraniano...” (37’37’’ a 37’48’’). Pretendendo seguir para o hotel, a equipe consegue outra carona com um habitante do lugar. Para agradecer ao favor, os apresentadores presenteiam o motorista também com uma camisa da seleção brasileira. A narração exalta a cortesia dos iranianos: “[Locutor] Agora, meio que acostumados, a gente já contava com toda aquela hospitalidade como parte do nosso cotidiano” (38’23’’ a 38’29’’). É importante destacar o tratamento conferido aos nativos pela edição do programa. Mesmo falando do contexto de protestos ocorridos durante a reeleição de Ahmadinejad, em momento algum nenhum dos entrevistados expressou tristeza. Pelo contrário, todos se mostraram alegres e afáveis. As únicas cenas, durante todo o programa, que mostram sofrimento por parte do povo iraniano são mostradas nos momentos finais do documentário, quando os brasileiros visitam a cidade de Arg-e-Bam, patrimônio histórico mundial atingido por um terremoto em 2003 (imagens 17 e 18). A catástrofe, como explica a narração (52’52’’ a 53’17’’), colocou abaixo 80% das construções da cidade e fez mais de 20 mil vítimas “naquele lugar que era considerado a joia do turismo no Irã”.

Imagem 17. Arg-e-Bam antes do terremoto, que aconteceu em 2003.


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Imagem 18. A reconstrução da fortaleza de Arg-e-Bam em 2009, quase seis anos após o terremoto.

No hotel onde se hospedaram, Leondre, Bruno, Felipe e André conheceram o dono, Mr. Akbar, e o filho dele, o guia turístico Mohammed, um rapaz na faixa dos 30 anos, que os leva para conhecer aos principais pontos da cidade. Durante o passeio, Mohammed se mostra cabisbaixo e compenetrado (imagem 19). Ele explica que ficou soterrado por quatro horas no hotel após o desastre natural, e seu melhor amigo de infância, o qual dormia a seu lado no momento, morreu na tragédia. Diferentemente de outras passagens do programa que contaram com trilha sonora “alegre”, dessa vez, a música que toca é uma batida de tambor ritmada ao som de uma corneta, quase uma releitura de uma marcha fúnebre. O clima construído com a montagem das cenas de Arg-e-Bam é de tristeza. Não só o iraniano que acompanha a equipe parece melancólico, como o discurso do narrador também expressa lamentação por parte dos apresentadores:

[Locutor] Chegando na cidadela, o verdadeiro ponto turístico principal de Arg-eBam, a cada passo que a gente dava, parecia inacreditável que esse lugar fosse praticamente desconhecido no Ocidente. Me lembro como se fosse hoje que a gente tentava ao menos vislumbrar a dimensão e o impacto visual daquele lugar antes do terremoto. Isso sem falar que a gente ficava muito triste de só estar visitando essa cidade depois de ela estar totalmente destruída. Nosso amigo Mohammed se via na obrigação de nos levar e explicar cada detalhe da arquitetura de Arg-e-Bam, suas torres, salões e praças, ainda que agora estivesse tudo praticamente irreconhecível. A impressão que a gente tinha é que era quase uma tortura pra ele andar pelas vielas do castelo. (54’36’’ a 55’28’’)


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Imagem 19. Quase sempre cabisbaixo, Mohammed conduz a equipe do NCLC pela reconstrução da fortaleza de Arg-e-Bam.

A equipe percebe o comportamento contido de Mohammed e o questiona sobre o fato de, mesmo após tantas visitas depois do terremoto, ele ainda se emocionar com o ocorrido. A resposta do iraniano pode ser interpretada para além de um desconforto pela perda de um ente querido. Emocionado, ele fala da importância que aquele monumento tinha em sua rotina e, como se falasse de algo que lhe dava orgulho, como aquilo poderia ser importante para a humanidade. O lamento do guia turístico traduz a tristeza de um povo que vê algo de grande valor para a cultura e para o crescimento econômico de seu país literalmente desmoronar.

[Mohammed] Eu ainda não consigo acreditar. Parece um sonho. Eu costumava vir aqui todos os dias com pessoas diferentes. Todos os dias, centenas de turistas de diferentes partes do mundo vinham aqui visitar. As pessoas choravam quando chegavam aqui. Isso aqui era um grande monumento. Seria uma grande parte da história no futuro. (55’31’’ a 56’06’’)

Terminada a visita pelo castelo de Arg-e-Bam, os cinco retornam ao hotel e encontram Mr. Akbar, o dono, “uma figura simpaticíssima e quase folclórica na cidade, justamente por sua simpatia” (56’33’’ a 56’37’’). Mr. Akbar dá o seu depoimento sobre o desastre ocorrido em Bam. [Mr. Akbar] Foi uma coisa horrível, de verdade. Eu acordei e não consegui acreditar. Depois de uma semana, as coisas começaram a melhorar. Todos começaram a vir, a ajuda começou a chegar. Mas eu tenho que agradecer o mundo. O mundo nos ajudou. Agora eu percebo que ainda há corações batendo por aqueles que estão precisando de ajuda. (56’47’’ a 57’12’’)

O proprietário do hotel é mostrado de forma serena e, mesmo falando de um grave acontecimento, ele faz questão de ressaltar gratidão pela ajuda recebida, demonstrando força, superação e humildade (imagem 20).


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Imagem 20. Mr. Akbar fala serenamente sobre a tragédia e demonstra gratidão pela ajuda recebida.

Percebe-se, portanto, que o Não Conta Lá em Casa tende a tratar os iranianos de forma positiva, diferentemente da imagem estereotipada que existe em relação a esse povo. É utilizada, para legitimar tal posição, a fala do embaixador brasileiro no Irã, Antonio Luiz Salgado (29’32’’ a 29’46’’): “Trata-se de um povo altamente civilizado, muito educado, afável, não tem nada a ver com a imagem que comumente se faz no Brasil e em outros países”. Em nenhum momento se fala de religião, fanatismo ou terrorismo. Até mesmo nos momentos mais sérios, as cenas ainda mostram os habitantes daquele lugar sendo espontâneos, conversando, rindo e prestando atos de gentileza. Nesse aspecto, o senso comum é desconstruído.

4.2.3 As mulheres e a opressão Quando se imagina mulheres iranianas, surge à mente símbolos como a burca e o véu. Quando se pensa no modo de viver dessas mulheres, logo vêm imagens de opressão, limitações sociais e restrições religiosas. Diante desse cenário, a equipe do Não Conta Lá em Casa teve de observar, dentro de suas possibilidades, como as iranianas eram tratadas no país naquela época, a fim de concluir se as proibições de fato ocorrem da forma como são mostradas da mídia ocidental. O questionamento por parte dos brasileiros acerca do modo de vida delas começou antes de chegarem a Teerã.

[Locutor] Ainda no avião, percebi que as mulheres que vinham dos mais diferentes pontos do mundo de volta para Teerã, e que até então não estavam com a cabeça


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coberta, pouco a pouco iam colocando o véu obrigatório para as mulheres em território iraniano. O curioso é que, mesmo com a cabeça coberta, elas ainda procuravam deixar sempre um pedaço do cabelo de fora. Insubordinação? Protestos? Charme? Bom, até então não dava para tirar nenhuma conclusão. (10’23’’ a 10’51’’)

O primeiro contato feito com mulheres no Irã ocorreu, como já citado, na porta do Museu Nacional. Os apresentadores conhecem Sonja, uma alemã de família iraniana que estava acompanhada de duas parentes. A moça se oferece para levar a equipe para conhecer a cidade, algo surpreendente tanto para o espectador quanto para os brasileiros. Assim disse André: “Cara, a maior surpresa do mundo, até porque ela mesma disse que antigamente, quando ela vinha por aqui, andar junto com homem na rua era totalmente proibido. Era mal visto e chamado até a atenção. Mas ela disse que recentemente isso tem melhorado um pouco” (17’25’’ a 17’38’’). É necessário que se destaque esse acontecimento. O fato de os apresentadores terem logo conhecido mulheres suficientemente independentes a ponto de os guiarem por certo período durante a estadia no Irã é o bastante para perceber como a visão do mundo sobre as iranianas é equivocada. É claro que não se sabe até que ponto as mulheres com quem a equipe conviveu naquele curto período no Irã representam (ou não) uma maioria. A questão é que a maior parte do tempo as jovens parecem à vontade com os brasileiros. O tratamento direto e com igualdade entre a equipe do programa e as nativas mostra que a imagem comumente associada à mulher oriental é passível de desmistificação, muito embora seja difícil. Mesmo em sociedade tradicionais, como o Irã, é possível haver mudanças e abertura para novos costumes, mesmo diante de preceitos sociais e religiosos severos. Consequentemente, com a flexibilização dos modos de viver, representações como as da mulher iraniana podem ser aos poucos mudadas. É necessário atentar, no entanto, que, apesar do esforço em querer mostrar “o outro lado” do cotidiano das mulheres no Irã, a equipe só pode fazê-lo do ponto de vista ocidental, do seu próprio olhar. Com isso, podem sugerir uma amenização da visão de que as iranianas são oprimidas – já que, afinal, elas falaram com os brasileiros livremente – ainda que, no cotidiano, elas sofram inúmeras restrições por causa da cultura do país. Constrói-se um efeito de transformação social talvez maior do que o que de fato está ocorrendo lá. Para o passeio, então, os sete utilizam o transporte público. Dentro do ônibus, o clima de descontração contrasta com um costume visivelmente segregacionista: homens entram pela porta da frente, enquanto mulheres ocupam o espaço de trás. Não é permitido que ambos sentem-se juntos ou conversem no transporte coletivo.


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O hábito (ou lei) iraniano, no entanto, não foi empecilho para que os brasileiros e as iranianas pudessem trocar palavras e risadas, descobrindo os costumes diversos, ainda que sob os olhares surpresos dos demais ocupantes do espaço público, como elucidou Felipe Ufo: “A gente está sendo a atração aqui da rua, ta todo mundo olhando pra gente sem entender direito quem são esses quatro caras com três iranianas” (18’09’’ a 18’16’’). Além do tour de ônibus, a equipe do NCLC ainda foi convidada para almoçar com as nativas, “uma audácia impensável alguns poucos anos atrás” (18’21’’ a 18’24’’). Ressaltar que havia olhares de reprovação dos demais habitantes contra o novo grupo de amigos é uma forma de evidenciar o fato de aquele país ter costumes que, quando praticados diversamente, causam estranhamento. Por outro lado, quando o locutor fala que almoçar com nativas seria uma “audácia impensável poucos anos atrás” dá a entender que, progressivamente, as ideias naquele lugar vão se “modernizando”35. Foi necessário, entretanto, outro trajeto de ônibus para que mais indagações surgissem. Bruno questiona às anfitriãs sobre a segregação de gênero no transporte coletivo (imagem 21). A resposta é direta: “[Sonja] Aqui no ônibus não é tão fácil de falar porque estamos em público” (19’50’’ a 20’04’’). A simples resposta de Sonja já é suficiente para entender que a separação entre homens e mulheres não só nos transportes coletivos, como em outros locais públicos, faz parte de um modo de viver instituído e difícil de ser explicado. Sonja, que vive em um país ocidental, mas professa a religião muçulmana, compreende o questionamento dos brasileiros e mostra empatia. A prova disso é a forma como a jovem acena e sorri para a câmera sem medo, conversa com os apresentadores e serve de intérprete para as familiares iranianas. Por outro lado, Sonja também mostra que, embora pense de forma mais ocidentalizada, não pode simplesmente ferir os hábitos iranianos, principalmente pelo fato de estar acompanhada por habitantes locais e utilizar o véu, como devem fazer as mulheres por lá.

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Ressalte-se que esta afirmação é feita sob parâmetros e ponto de vista ocidentais, ou seja, o fato de que o Irã tem aceitado gradativamente a prática de ações tipicamente do Ocidente não é sinônimo de “modernidade”, e sim de tolerância com hábitos de países diversos. O uso da palavra “modernizando” tem a ver com o que se convenciona ser “comum” no Ocidente.


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Imagem 21. Bruno questiona às iranianas o que elas acham sobre a segregação de gênero nos transportes coletivos. A resposta reflete uma das restrições impostas à nação: “É difícil falar porque estamos em público”.

A jovem, ao mesmo tempo em que arrisca conversar com os brasileiros em lugares públicos e andar acompanhada deles (ressaltando-se o fato de serem todos solteiros, ou seja, não são casais andando na rua juntos), não pode colocá-los em uma situação que os comprometa até mesmo legalmente. Por isso é compreensível a postura da germano-iraniana de se abster de comentar ou criticar, dentro do ônibus, a forma como as mulheres são tratadas no Irã, mesmo que ela própria seja um exemplo de “exceção”. Os sete se acomodam então em uma lanchonete, onde Sonja pode expressar sua opinião sobre o questionamento de Bruno, assim como sobre outros aspectos do país:

[Sonja] Se ocorrerem mudanças, elas vão ser muito lentas. Algumas coisas poderiam ser mudadas, mas outras não podem ser mudadas porque as pessoas são muçulmanas, e isso é típico. São as leis islâmicas. E eles não querem que certas coisas mudem. Mas algumas coisas pequenas poderiam mudar, como: todos deveriam poder escolher se querem usar o véu ou não. (20’04’’ a 20’38’’)

Sonja também comenta sobre a repercussão dos acontecimentos do Irã em 2009 e sobre a forma como o país vinha sendo retratado pela mídia, ocasionando a consequente propagação de uma imagem negativa da nação: “[Sonja] Os iranianos sabem que os Estados Unidos têm uma imagem muito ruim do Irã. Eles pensam que o Irã é somente aquilo que o governo deles mostra. Isso é muito negativo para eles. O Irã é muito mais do que eles mostram na mídia” (20’43’’ a 21’08’’).


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Imagem 22. Sonja critica a forma como a mídia trata o Irã.

Bruno concorda com Sonja e se mostra indignado com o desconhecimento das pessoas acerca da situação do Irã. A germano-iraniana deixa entender que a forma como o país é tratado na mídia tem fundo político.

[Bruno] Pessoas que têm 17 anos não sabem o que aconteceu aqui trinta anos atrás, mas eles ouvem essa história de “Eixo do Mal” o tempo todo. Isso é um crime! [Sonja] É uma loucura o poder que a mídia tem sobre as pessoas e os objetivos políticos que a seguem. Digo, o que há por trás do que a mídia diz. (21’36’’a 21’59’’)

A crítica de Sonja tem a ver com o poder de construção da realidade e do enquadramento do Irã feito pela mídia. O comentário mostra que não apenas os ocidentais sabem da imagem ruim que aquele país carrega, mas que a própria nação tem consciência disso e se preocupa com o preconceito que é gerado a partir da disseminação desse senso comum. Como afirma Felipe Pena (2012, p. 119), “a opinião pública ‘compra’ essas mensagens até com mais facilidade, pois elas vêm carregadas de espetacularização e reforçam preconceitos humanos. A verdade acaba esquecida, ofuscada pelo panfleto e pelo drama. A ética é pisoteada pelo maniqueísmo”. No livro “Não Conta Lá em Casa: Uma viagem pelos destinos mais polêmicos do mundo”, André Fran comenta sobre a postura das iranianas, assim como a preocupação delas de tentar desmistificar o estereótipo do Irã:

O discurso central delas tinha algo em comum que soava quase como um apelo. As denúncias e as críticas não eram o foco de suas falas. Elas pareciam mais felizes e excitadas por estarem participando dos movimentos jovens democráticos de protesto do que rancorosas e resignadas em viver em um estado teocrático regido pelos


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aiatolás. Na verdade, nossas amigas pediram enfaticamente que mostrássemos o seu país tal qual era de verdade. Com suas mazelas, sim, mas também com suas belezas tão raramente expostas na mídia ocidental. Não como uma forma de denúncia ou súplica, porém de correção que elas consideravam uma grande injustiça e uma falsa representação de seu país. (PIRES, 2013, p. 95 e 96)

Importante lembrar que, ao tomarem como fonte de informação as mulheres iranianas – ou seja, a parcela da população que, em regra, possui as maiores restrições no país –, os apresentadores invertem o eixo de abordagem do documentário, exaltando sujeitos cujo ponto de fala, sob o viés da cultura iraniana, não deveria ser credível. Sonja, que foi quem expressou opiniões abertamente, teve a liberdade de falar como qualquer habitante de um país democrático teria. Ela expressa exatamente o oposto da subordinação que as iranianas costumam representar. Encontrar três mulheres intelectualizadas e minimamente independentes no Irã, além de surpresa, gerou à equipe do Não Conta Lá em Casa um sentimento positivo, como expressa a narração de Leondre:

[Locutor] Esse lanche de despedida em Teerã e esse papo altamente revelador foram o pontapé inicial perfeito da nossa jornada pelo Irã. Saímos daqui com novas percepções e perspectivas não só da mulher iraniana, como do povo iraniano e até mesmo do próprio país. (22’08’’ a 22’23’’)

Mesmo com essa boa impressão, a equipe não deixa de questionar entre si o tratamento segregacionista de homens e mulheres no Irã. Durante a conversa que tiveram com o vendedor de tapetes, Mr. Hussein explicou aos brasileiros que era muito difícil encontrar mulheres para namorar. Até o fim da faculdade, segundo o comerciante, os rapazes, já em seus 24 anos, passam a vida inteira separados das meninas, seja nos transportes públicos, nas salas de aula ou em outros lugares. Quando os apresentadores e Mr. Hussein se dirigem ao metrô de Teerã, assim como no ônibus, são vistos vagões separados para homens e para mulheres. A segregação é explícita: “Women only” (apenas mulheres) é o que está escrito na janela de um dos vagões, através da qual se vê um grande número de iranianas tipicamente vestidas, todas de preto e com a cabeça coberta pelo véu. A imagem dá a impressão de que as moças estão aprisionadas (imagem 23).


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Imagem 23. O metrô de Teerã reserva vagões para homens e para mulheres.

Os apresentadores não deixam de comentar a situação e criticam a segregação de gênero no transporte coletivo: [André] Pra mim, até agora, de todas essas interferências da religião com política, nada mais chocante do que a forma como eles tratam as mulheres. [Felipe] Parece meio que um apartheid, aquilo que a gente vê na história da África do Sul. Aqui acontece a mesma coisa. É um apartheid sexual. A mulher entra por um lado, o homem por outro, tem o vagão de um, o vagão do outro... (28’22’’ a 28’50’’)

Assim como a visível desconfiança expressa por André durante a viagem, o apresentador ainda escreveu acerca do assunto no livro sobre o Não Conta Lá em Casa: “Esta espécie de apartheid sexual era o que nos causava maior estranhamento no Irã, e que nos fazia ainda ter um certo ‘pé atrás’ antes de cair em elogios àquele país pacífico, hospitaleiro e belíssimo, que se revelou uma agradável surpresa” (PIRES, 2013, p. 93). Deve-se observar, no entanto, que, mesmo diante do fato de se espantarem com esse modo de viver na sociedade iraniana, a abordagem dos apresentadores acerca do apartheid sexual não passa de um mero questionamento pessoal. Eles não vão atrás de saber mais sobre as limitações das mulheres. Poder-se-ia pensar que uma das alternativas para tentar compreender por qual razão as iranianas permanecem separadas dos homens nos espaços públicos, por exemplo, fosse buscar respostas nos setores representativos da sociedade iraniana – igrejas ou governo. Porém, a crítica ao costume permanece nas entrelinhas. O documentário não chega a desmistificar de fato a imagem da mulher iraniana que é vítima de opressão religiosa e social. Mostra que há exceções, sim, que elas têm opiniões e conhecimento sobre o meio em que vivem e que aos poucos alguns costumes vão mudando.


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Porém, o questionamento acerca da segregação não chega a ter explicações claras. As perguntas que Leondre se faz no início da viagem quanto ao uso do véu, por exemplo, permanecem sem resposta, dando ao espectador mais atento a sensação de que o programa omitiu ou ignorou esse aspecto, o que pode levar à desconfiança acerca do que a atração se propõe a abordar.

4.2.4 Cultura e ideologia iraniana Um dos aspectos abordados a partir da segunda metade do documentário é a cultura iraniana, especialmente em relação à poesia. Saindo de Teerã, a equipe se dirige à cidade de Shiraz, onde se encontram os túmulos dos poetas persas Saadi e Hafez, como explica a narração:

[Locutor] Uma de nossas principais razões de ir até essa cidade era mostrar um importante aspecto da cultura persa. Shiraz é o berço de dois dos principais poetas iranianos, conhecidos em todo o mundo. E, antes de ir dali para Persépolis, queríamos visitar seus túmulos, já que esses autores são referência na literatura mundial, e esses túmulos são pontos importantíssimos de peregrinação para o povo iraniano. (34’06’’ a 34’31’’)

Quando os apresentadores chegam ao mausoléu do poeta Hafez, Felipe explica que Hafez e Saadi tiveram uma grande importância na história do Irã porque, graças a eles, o país permaneceu com a língua persa – no caso, o farsi –, não tendo sido transformada em árabe, como aconteceu com a religião. Chegando ao segundo túmulo, sem mostrar muitos detalhes do lugar, a narração de Leondre destaca a valorização dos dois escritores na sociedade iraniana. [Locutor] Era muito interessante ver o valor que eles davam aos seus poetas. Saadi e Hafez são cultuados por representarem o Irã na poesia. E suas poesias são admiradas nos mais diversos centros, mesmo tendo sido escritas em farsi, e especialistas garantirem que é quase impossível manter sua beleza após a tradução. (37’57’’ a 38’16’’)

A inserção de Shiraz no roteiro da viagem é uma forma de mostrar que aquele país não vive de guerra e que a cultura é elemento importante e presente na vida daquela nação. As imagens e o discurso tentam reforçar o que o embaixador brasileiro Antonio Luiz Salgado já havia falado à equipe sobre o Irã: “É um país de rica tradição cultural, com uma história que remonta 2.500 anos atrás” (29’49’’ a 29’54’’). Outro aspecto usado no programa para evidenciar a solidez da cultura iraniana são as imagens feitas na cidade de Persépolis, uma das mais antigas do Irã, declarada Patrimônio da


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Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 1979. As filmagens procuram exaltar a grandiosidade das ruínas de Persépolis, e o fazem, principalmente, mostrando a reação dos apresentadores diante daquele lugar, que abusam da adjetivação em seu discurso. O narrador faz uma autorreferência: “[Locutor] A chegada, de cara, já dava mostras da grandiosidade do lugar, sua história, sua importância. Somado ao fato de que a gente estava lá, já dava um clima de empolgação difícil de esconder nas fotos e imagens que fizemos ali” (39’22’’ a 39’35’’). Esse momento da viagem, assim como outros, causa espanto nos apresentadores. Neste caso, porém, percebe-se que o fascínio com o objeto conhecido ocorre justamente pelo fato de os quatro não terem, antes de chegar ao local, dimensão do que iriam encontrar. Esse capítulo da viagem é dedicado quase exclusivamente a destacar o encanto praticamente infantil dos brasileiros, que se mostram boquiabertos com a beleza do lugar (imagem 24).

[Felipe] Cara, é impressionante, é como eu imaginava nos livros, era o que me fascinava aqui no Irã principalmente. Aqui é o começo, acho, que dos grandes impérios. O Irã ficou por muito tempo o maior império da humanidade. Só de imaginar que isso aqui foi construído 500 anos antes das grandes construções de Roma, já dá pra ter uma noção de quanto antigo é, né. (39’49’’ a 40’11’’) [Leondre] Chegando aqui, dá pra entender o que o Hussein falou pra gente lá em Teerã. O vendedor de tapetes falou pra gente que, enquanto na Europa as pessoas comiam com as mãos e se escondiam em cavernas, aqui na região eles já recebiam os hóspedes em palácios, em salas gigantes como essa aí. (40’34’’ a 40’55’’) [Bruno] Não dá nem pra falar que é diferente do que eu tinha imaginado, porque eu nunca tinha nem imaginado. (41’03’’ a 41’06’’)

Imagem 24. A grandiosidade das ruínas de Persépolis causa perplexidade à equipe.


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Interessante ressaltar a reflexão de Bruno ao chegar a Persépolis. Maravilhado com a imponência do lugar, o apresentador admite que não havia pensado no Irã sob o ponto de vista de sua história antiga antes de chegar lá.

[Bruno] Quando a gente decidiu vir pro Irã, eu fiquei empolgado, mas toda a minha curiosidade girava em entender o Irã de hoje, e a gente conversou bastante vindo para cá, no aeroporto, que aqui pelo menos a gente não ia ser preso, não ia ter ninguém tacando bomba nem dando tiro, ia ser a viagem mais tranquila, mais lenta, a gente ia se deparar com muita história... Mas a história que eu tinha na cabeça e que eu tava intrigado para entender era a Revolução Islâmica, coisa de 1979, e o porquê de um povo evoluído ter apoiado a revolução, partindo para um regime teocrático... Só que a história aqui vai muito além disso, muito além disso. (41’46’’a 42’26’’)

Isso reflete o fato de que os acontecimentos recentes, pela sua presença na mídia, podem ter influenciado o “esquecimento” ou a falta de interesse do apresentador em descobrir mais sobre a nação além do que está relacionado aos eventos de 1979 a 2009. O apresentador faz um relato que poderia ser o mesmo de um leigo espectador ao assistir aquelas imagens grandiosas. O depoimento de Bruno ganha um tom de confissão, reforçando a procura por humanizar os apresentadores e dar a eles a espontaneidade da conversa cotidiana, o que é feito a todo instante nessa busca por criar uma narrativa fluida e verossímil. Além da preservação de monumentos históricos em Persépolis e Shiraz, há também, em Teerã, uma expressão curiosa da ideologia iraniana. Tratam-se das pinturas nos muros do prédio onde se localiza a Embaixada dos Estados Unidos no Irã até 1979. O local, que foi palco de um dos principais atos da Revolução Islâmica, quando os revolucionários tomaram a embaixada, atearam fogo em algumas áreas e fizeram 52 americanos reféns por 444 dias, carrega mensagens contra os Estados Unidos, expressando repulsa e desejo de vingança contra esse país (imagens 25 e 26).

Imagens 25 e 26. Os muros da antiga Embaixada dos Estados Unidos no Irã carregam frases contra esse país. Parte delas é de autoria do Aiatolá Khomeini, líder religioso que tomou à frente a Revolução Islâmica.


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Enquanto relembram a história que se passou no local, imagens de arquivos mostrando os protestos de 1979 são utilizadas como ilustração. Bandeiras americanas sendo queimadas, manifestantes correndo pelas ruas, armas e fumaça são os símbolos usados. Felipe parece impressionado em estar no local, reconhece os muros pelo que viu na televisão e posa para fotos ao lado das pinturas contra os Estados Unidos. O comportamento é alvo de críticas por parte de Bruno, e ambos travam uma discussão acalorada sobre o assunto.

[Bruno] Eu estou achando interessante, mas não estou tão empolgado nem orgulhoso de estar como você. [Felipe] Isso é história, brother! Tu tá num local que, falar de Irã hoje, tem que falar disso daqui! Os caras dos Estados Unidos botaram um Xá que não tinha legitimidade pelo povo, o Xá matou não sei quantos milhares de iranianos, entendeu? Assinava a caneta a sangue! [Bruno] Beleza, fica passando esse ressentimento para as gerações futuras, as gerações novas agradecem. [Felipe] Isso é história, o país é feito de história, as gerações são feitas da história do país. Você não pode nunca esquecer a história do seu país! Isso aqui está refletindo a história deles, cara. O país hoje se chama República Islâmica do Irã. A República Islâmica do Irã surgiu aqui, cara. Você pode concordar ou não com a República Islâmica do Irã, ela surgiu aqui. [Bruno] Eu sei, por isso que eu vim visitar, agora não vou tirar foto do lado da bandeira tachando o outro de satã. (23’37’’ a 24’30’’)

Sem chegar a uma conclusão sobre quem estaria certo ou errado, a discussão pelo menos serviu para mostrar como os próprios apresentadores possuem visões diferentes sobre a questão, dando novos tons à narrativa, ganhando um momento de tensão no documentário e reforçando o lado “humano” dos apresentadores. Ao passo que Irã é tachado de país em guerra, carregando uma imagem pejorativa disseminada pela mídia, o mesmo povo faz questão de manter conservado um monumento


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que é símbolo do antiamericanismo. A inscrição nesses muros são elementos simbólicos que mostram o papel da ideologia iraniana. Como afirma Van Dijk (1996, p.16), as minorias também lançam mão de formas discursivas nas relações de dominação para apoiar ou questionar essas posições sociais. No Irã, a conservação daquele monumento parece ter a finalidade de se contrapor aos EUA da mesma forma como o país oriental é tratado, mesmo que com base em estereótipos. O choque da equipe do NCLC foi se deparar com o mesmo tipo de difusão ideológica que vivenciam no Ocidente, só que com o viés inverso. A partir desse fato, enquanto Bruno se mostra mais diplomático, discordando do tratamento do Irã em relação aos EUA (uma verdadeira reversão de papéis), Felipe acredita ser essa forma de expressão parte da história do Irã, que não deve ser ignorada, muito menos esquecida. Cada um defendendo seu ponto de vista, percebe-se um equilíbrio de visões.

4.2.5 O outro Irã O objetivo principal do programa ao visitar o Irã era “ver com os próprios olhos” o que se passava naquele país, “comprovando ou desmistificando” a imagem comumente associada a ele na mídia. Vimos que, na introdução do documentário, os estereótipos são mostrados e os apresentadores têm uma postura ocidentalizada em sua visão. Porém, ao longo da estadia naquele país, o programa aos poucos vai encontrando e mostrando indícios de que o Irã possui mais qualidades do que seu senso comum sugere. No início, ainda há certa resistência dos brasileiros em crer que o país seja “tranquilo”. Na Embaixada do Brasil em Teerã, exatamente no meio do documentário, Bruno Pesca tem a cautela de perguntar que tipo de cuidados a equipe deve ter quanto às filmagens, haja vista a “hostilidade com que a mídia ocidental é tratada no Irã” (29’57’’ a 30’02’’). Felipe Flores Pinto, conselheiro da embaixada, é quem responde:

[Flores Pinto] Essa questão de filmar, realmente, existem algumas restrições. Deve evitar filmar prédios públicos, instalações militares... Por conta desse processo político, desde a eleição (de Ahmadinejad) também ficou mais complicado, mas, enfim, isso aqui é um lugar em que as pessoas levam uma vida muito normal, a vida cotidiana das pessoas é bastante... Então, acho que tem que se desfazer um pouco essa imagem de que o Irã é um estado policial. Não é. Tem problemas como qualquer outro país do mundo tem, tem problemas com direitos humanos, assim como nós temos no Brasil. (30’12’’ a 30’52’’)

Mesmo falando positivamente do Irã, no entanto, em um momento do discurso de Flores Pinto é mostrada a imagem da iraniana morta durante os protestos contra a reeleição de Ahmadinejad. Por ser uma forte representação de um tenso momento vivido pelo país, ao


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inserir tal imagem, o espectador tem consciência de que, mesmo que o Irã não seja um “estado policial”, como alega o conselheiro, há situações de insegurança que não podem ser ignoradas. O programa, nesse momento, não deixa esquecer que a nação não é nenhum paraíso. Apenas a partir da segunda metade do documentário é que o programa admite “abertamente” que há um “outro” Irã, um “verdadeiro”. Nesse ponto da viagem, Leondre, Felipe, Bruno e André, por meio do discurso (com adjetivações) e das ações (confiando e demonstrando reconhecimento com/dos iranianos), admitem que o “verdadeiro Irã” é diferente daquele mostrado pela mídia: “[Locutor] Dava até pena de deixar Teerã quando as coisas estavam acontecendo tão naturalmente. Mas a gente tinha que seguir viagem e, do nosso jeito, ir desbravando e descobrindo o verdadeiro Irã que se apresentava para a gente” (31’14’’ a 31’26’’). A cada conversa que os apresentadores têm com os nativos, “novas percepções vão surgindo” para eles. O espectador pouco a pouco consome as qualidades que implicitamente são mostradas e, a partir do sétimo capítulo da viagem, o processo de convencimento se intensifica. Saindo de Teerã, o primeiro destino da equipe é Shiraz. A locução de Leondre exalta o estado de ânimos da equipe: diferentemente do início da viagem, quando “até os mais corajosos deixavam escapar insegurança”, agora todos eles se viam na maior tranquilidade. Pela experiência dos dias anteriores na capital, onde, teoricamente, os recentes eventos envolvendo manifestações, mortes e protestos deveriam sugerir maior instabilidade, mas que, na verdade, mostrou-se um local propício ao convívio pacífico entre pessoas tão diferentes, indo para o interior, em direção às cidades que basicamente continham a cultura e a história milenar no Irã, não havia por que ter medo. O discurso do narrador é carregado de adjetivações:

[Locutor] Bem diferente do nosso sentimento ao viajar para novos destinos desconhecidos e, pelo menos, teoricamente “inóspitos”, na nossa partida de Teerã, nós já estávamos totalmente tranquilos. O clima era bem de curtição de viagem mesmo. Nossa ideia agora era partir para desvendar o máximo possível desse país meio incompreendido, bem particular, mas extremamente convidativo e hospitaleiro. (31’40’’ a 32’04’’)

As imagens que mostram o ônibus o qual leva a equipe à Shiraz são acompanhadas da locução que, mais uma vez, qualifica positivamente a viagem. Curiosamente, a narração destaca que, em apenas dois aspectos, Irã correspondeu aos que eles esperavam.


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[Locutor] Viajamos a noite inteira em um ônibus super confortável, por estradas muito bem cuidadas, e passando por visuais únicos e muito bonitos. O cenário era de desertos bem ao estilo do imaginário visual que tínhamos antes de vir para cá. Pelo menos nesse aspecto, a nossa ideia correspondia exatamente à expectativa. Outra coisa que não dava para deixar de mencionar e que correspondia perfeitamente às expectativas que tínhamos de Irã: o calor. Pelo que dava para ver da janela, devia estar fazendo uns cinquenta graus lá fora. (33’21’’ a 33’57’’)

Percebe-se que, já neste momento da viagem, a equipe não poupa qualidades ao país. Há, porém, um momento decisivo no documentário, um instante em que o NCLC dá a entender que toda a imagem que os apresentadores tinham antes de chegar ao Irã, somado ao medo e a insegurança inicial, caem por terra. Esse momento ocorre durante um passeio pelas ruas de Yazd, quando Leondre, com bom humor, comenta a tranquilidade da viagem ao país: “Esse Irã é uma paz, não acontece nada nesse Irã. A gente anda, visita, passeia, turista... De ‘Não Conta Lá em Casa’ não tem nada aqui” (35’54’’ a 36’04’’, grifo nosso). Mesmo dita em tom de brincadeira, a afirmação de Leondre não é diferente do que de fato aconteceu – ou do que o programa procurou mostrar. A equipe não havia enfrentado nenhuma situação perigosa, inóspita, não havia tido problemas em andar pelas ruas, em conhecer pessoas ou até mesmo em realizar as filmagens em locais públicos. Pelo contrário, tudo que os quatro brasileiros haviam feito até o momento foram amizades e passeios que, cada vez mais, davam indícios de um Irã diferente do estereótipo – dentro, é claro, de seus costumes, ideologia e modos típicos de viver. Todo o medo inicial, o receio de qual seria a situação do país naquele momento, foi-se amenizando com a construção de uma nova imagem do Irã que o programa quis passar. Não uma imagem totalmente diferente do que se costuma pensar, porém com alguns aspectos diversos, como a intelectualidade e hospitalidade do povo iraniano e a independência de (algumas) mulheres iranianas. Outro fator importante que deve ser destacado é a questão da segurança no Irã. Ao contrário do sentimento vivido antes de chegar ao país – de que o lugar provavelmente seria perigoso e instável –, desbravando Yazd, os quatro concluem que a segurança, na verdade, é uma das qualidades do lugar. Assim expressou a locução:

[Locutor] Os becos labirínticos de Yazd eram perfeitos para se perder mesmo. Mas, pelo visto, nenhum de nós se importava muito. Ficamos rodando até quase de noite, tentando achar o caminho de volta pro hotel, mas agora sem medo nenhum. Já com algum tempinho de Irã, a gente ia percebendo que a segurança era algo com que a gente não precisava se preocupar. Na verdade, naturalmente, a gente já se sentia bem mais livre e desencanado para andar à vontade por qualquer lugar e a qualquer hora. Mesmo perdidos, a gente não perdeu a oportunidade de escalar um terraço para fazer umas imagens da vista geral da cidade. (45’40’’ a 46’18’’)


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Associadas ao discurso que claramente exalta a nação, quase como uma propaganda positiva, as imagens também buscam privilegiar a beleza natural e arquitetônica do lugar, como foi feito em Yazd (imagem 27).

Imagem 27. A arquitetura de Yazd é voltada para amenizar o calor.

De fato, o Não Conta Lá em Casa mostra aspectos poucos conhecidos do Irã, que vão além de seu estereótipo. Porém, é necessário questionar se, ao buscar mostrar o quanto o pensamento ocidental sobre o país é repleto de estereótipos, o programa não acaba reduzindo problemas graves que ainda existem por lá, como é o caso da segregação de gênero. Na metade final do documentário quando o programa passa a mostrar o interior do país e tratar da história antiga, não se fala mais de conflitos, protestos ou do programa nuclear; essas questões passam a ser “ignoradas” diante da busca pela adoção de empatia pela cultura alheia.

4.2.6 Reconhecimento e Distanciamento À medida que os dias passam e os apresentadores se sentem mais seguros no país, é possível perceber que há momentos em que os brasileiros se imiscuem entre os iranianos, não no sentido de praticar as mesmas ações dos orientais, mas encontrando situações diante das quais surgem fatores de identificação de ambas as partes. A primeira vez que isso ocorre é dentro de um taxi em Teerã, dentro do qual o motorista afirma que os quatro apresentadores têm feições iranianas. A inserção de cena, simples e quase inocente, sugere que, assim como os brasileiros iam ficando cada vez mais à vontade no país, surgia também, por parte dos nativos, um reconhecimento. Outra situação na qual as diferenças culturais são amenizadas acontece quando Felipe


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e Leondre encontram um garoto nas ruelas de Yazd (imagem 28). O que seria, a princípio, um passeio fracassado, se tornou um motivo de boas imagens e reflexões. O calor não foi empecilho para que os brasileiros jogassem futebol com o garotinho, em uma interação tipicamente brasileira, mas que foi estimulada pelo acaso e pela universalidade da brincadeira de bola. Naquele momento, não havia pessoas de nacionalidades diferentes. A trivialidade do jogo nivelou adultos e criança, brasileiros e iraniano em uma só equipe buscando o mesmo objetivo: se divertir.

Imagem 28. Felipe Ufo joga futebol com um garoto iraniano encontrado por acaso

A cena, que acontece já no fim do documentário, vem acompanhada de uma narração que procura exaltar a “interação futebolística”, destacando o sentimento de empatia entre as duas nacionalidades para gerar um efeito de “final feliz”.

[Locutor] Responsável por essa nossa travessia pelos desertos iranianos atrás dos seus camelos, o Ufo é aquele cara que está sempre motivado, sempre a fim de sair do hotel a qualquer hora. Ele sempre diz que, se a gente sair por aí com uma atitude positiva, as coisas naturalmente vão acontecendo. O pior é que, quase sempre, pro bem ou pro mal, ele estava certo. [Felipe] 15:40, deve estar fazendo uns 55 graus. Não tem ninguém na rua, só a gente. [Locutor] Então, pra um cara tipo ele, propor uma voltinha pra vivenciar o calor assassino de Yazd era algo super normal. E é claro que quem acabava pagando o preço de levar uma câmera de cinco quilos pra registrar as sandices do nosso Indiana Jones era eu. O curioso é que esses sacrifícios sempre valem a pena, e as coisas sempre começam a acontecer pra gente. E são sempre essas coisas, por mais simples e banais que acontecem em nossas viagens, que fazem as nossas visitas a esses países se tornarem tão especiais e inesquecíveis pra gente. Assim como visitar a enorme Persépolis, os milhares de templos em Bagan, em Mianmar, ou as estátuas monumentais do great leader, na Coreia do Norte, essa interação futebolística em uma ruela de Yazd, onde ninguém se arriscava a sair de casa durante o dia, com um molequinho iraniano que entendeu no máximo que éramos brasileiros, e isso foi suficiente para que ele abrisse um enorme sorriso, certamente foi um dos momentos mais significativos da nossa passagem pelo Irã e que nos dão motivação para seguir


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para mais e mais destinos atrás de histórias e imagens, por mais corriqueiras que elas possam parecer. (46’44’’ a 48’18’’)

É necessário, porém, perceber que se trata, na verdade, de uma cena em que se busca apagar todos os estereótipos do lugar, enfatizando o quanto a equipe teve coragem de encarar o desafio de ir buscar “o verdadeiro Irã”. É algo que favorece o país, mas que beneficia, sobretudo, o programa, que retoma essa descoberta, o encantamento e o envolvimento da equipe como méritos, não como algo natural. Outro momento que sugere descontração e despreocupação por parte dos brasileiros é quando a equipe se encontra na rodoviária de Teerã, de onde seguiriam para Shiraz. Enquanto aguarda a hora da partida, André Fran comenta a curiosa forma como os iranianos encaram os estrangeiros. Com um pouco de humor, ele os imita (imagem 29): “[André] As pessoas aqui olham pra gente, tipo, elas ficam olhando. Você olha para elas, vê que elas estão te olhando e elas continuam te olhando”. (32’41’’ a 32’46’’)

Imagem 29. Já sem medo ou insegurança, André usa o humor para imitar a forma como os iranianos encaram os estrangeiros.

Essa cena poderia passar despercebida, se não fosse inusitado pensar em quatro brasileiros fazendo piadas sobre um povo acusado de ser terrorista em seu território. Nesse momento, a trilha sonora é leve, sugere um momento de descontração. É exatamente essa a mensagem passada pela expressão de André ao imitar os iranianos curiosos. Já sem medo algum ou insegurança, o apresentador transmite a sensação de estar tão à vontade naquele lugar que nem mesmo fazer uma gozação seria motivo de afronta. É como se ele estivesse “em casa” com seus pares. É possível, por outro lado, perceber que a equipe também mostra distanciamento


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quando os costumes brasileiros e iranianos conflitam. Isso acontece no início da viagem, como já tratado, quando os apresentadores chegam e se espantam com as divergências culturais, principalmente em relação ao tratamento conferido às mulheres. Um momento específico em que o discurso do programa propositalmente evoca esse distanciamento acontece quando a equipe visita a Azadi Tower, um dos principais monumentos de Teerã. Em razão do calor, Bruno Pesca senta à grama, debaixo de uma árvore, e é abordado por um vigia do monumento para que se retire. A advertência da autoridade local surpreende a equipe, mostrando mais uma discordância entre os costumes orientais e ocidentais: “[Locutor] Cada um fugia do calor à sua maneira, e a maneira do Pesca quase que rende uma cadeia já no nosso primeiro dia de Teerã. Parece que pisar na grama é uma ofensa meio grave ali” (18’48’’ a 19’09’’). A inserção da palavra “ali” é feita estrategicamente para evidenciar que se trata do outro, do diferente, justamente quando uma divergência surge. É como se o programa dissesse “não estamos fazendo nada errado, eles é que interpretam assim”. Isso é uma maneira de se diferenciar, isentando e legitimando a própria ação ao mesmo tempo em que inculpa o outro. Essas cenas, tanto as que mostram reconhecimento quando as que sugerem distanciamento, apenas reforçam o ponto de fala dos apresentadores. Mesmo que tentem imergir naquela nação, a visão ocidentalizada não é deixada de lado. As piadas, o bom humor e o futebol são características universais cuja presença no cotidiano brasileiro é marcante. Em contrapartida, não poder pisar na grama é um problema que “só acontece” em outros países, como é o caso do Irã. Essa é mais uma tática usada pelo programa para gerar empatia do público e legitimar a atuação da equipe.

4.2.7 Discurso autolegitimador Não é todo programa de televisão que tem um objetivo como o do Não Conta Lá em Casa, e os produtores da atração sabem disso. Durante todo o documentário, são expressas, implícita ou explicitamente, formas de legitimar a atuação da equipe, valorizando a produção, reforçando sua função social junto ao público e destacando como um programa que merece ser visto pelo papel que exerce na (des)construção de representações. Os entrevistados cumprem a função de porta-vozes da atração, elogiando e valorizando o trabalho da equipe:

[Sonja] Ela (a familiar) diz que agradece muito o apoio de vocês, pois vocês vieram


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ao Irã nesse período em que não estamos assim tão sem problemas. Se, no final das contas, as pessoas assistirem a esse filme, pode ser muito importante para os iranianos, porque pode mudar muito na cabeça das pessoas a imagem ruim que elas têm do Irã. (21’09’’ a 21’35’’) [Antonio Salgado] Realmente, é necessário desmistificar algumas coisas que correm na opinião pública sobre alguns países. Então eu acho que o esforço de vocês é muito válido. (30’53’’ a 31’06’’, grifos nossos)

Desde o discurso de Felipe, ainda no início da viagem – afirmando que queria visitar o Irã para confrontar a imagem que o país carrega na mídia –, até as últimas cenas do documentário, a todo instante surgem formas discursivas para exaltar o programa. A entrevista com Mr. Akbar, o dono do hotel em Arg-e-Bam atingido pelo terremoto de 2003, também há passagens nesse sentido:

[Mr. Akbar] Se você vem aqui no momento do terremoto, sua ajuda é boa, mas agora é que é importante. Agora é a hora de visitar Bam. A sua visita vai encorajálos, elevar seus espíritos. Eles vão pensar: ‘Olhem! As pessoas ainda visitam a gente!’. Isso é ótimo. Algumas pessoas têm a sorte de compreender que todas as pessoas do mundo todo, todas as pequenas coisas fazem parte da mesma essência. Como um corpo. [Bruno] Eu conheço um poeta que costumava dizer isso. [Mr. Akbar] “Todos os homens e mulheres são membros de um único corpo. Cada um de nós foi elaborado da cintilante essência da vida. Quando um de nós se fere, todos sentimos a dor. Você, que não sente a dor do outro, não tem o direito de ser chamado de humano”. Saadi. (Pausa) Vocês devem sempre deixar seus corações baterem pelos outros. (57’37’’ a 58’32’’, grifo nosso)

O programa, aliás, não busca apenas evidenciar sua função social como procura garantir que a missão foi devidamente cumprida. O discurso final do documentário afirma que o país é altamente amigável e que a experiência não poderia ter sido melhor. A locução vem acompanhada de uma retrospectiva das melhores imagens dos entrevistados, dos apresentadores e de pessoas encontradas por acaso nas ruas de Irã. Todos eles estão sorrindo.

[Locutor] Nessas nossas viagens, a gente escolhe a dedo lugares considerados inatingíveis ou até desaconselháveis por muitos. Mas isso nem sempre quer dizer que a gente vai viver altos dramas e colocar a nossa vida em risco. Nossa missão com esse projeto não é tirar onda de corajoso e ir a lugares perigosos só pelo fato de dizer “eu fui”. [Leondre] Em nenhuma viagem que a gente fez, a gente fez tantos amigos em tão pouco tempo. [Locutor] Nosso passeio tranquilo e revelador pelo Irã talvez tenha muito mais a acrescentar do que denunciar a ditadura opressora de Mianmar ou o regime fechado da Coreia do Norte. O Irã se mostrou pra gente como um lugar fantástico, com uma cultura e história fascinantes, um povo altamente intelectualizado e receptivo como jamais tínhamos visto. No final das contas, tudo bem diferente da imagem preconceituosa que alguns de nós, incluindo eu, tínhamos antes de chegar ali. [...]


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Tudo que podíamos, que queríamos esperar, na verdade, é que as boas surpresas que tivemos no Irã e as lições que recebemos lá pudessem se repetir no restante da nossa aventura. (58’48’’ a 1h00’05’’)

O discurso de encerramento lança mão, mais uma vez, da adjetivação e da exaltação das boas surpresas vividas no Irã para gerar o efeito de final feliz. Com essa narração, que conta com uma música instrumental que dá o tom emotivo, faz nascer no espectador o sentimento de que os objetivos do programa foram cumpridos e que, ultrapassando as barreiras do preconceito e das divergências culturais, os apresentadores se tornam uma espécie de “heróis”. Pelo ritmo que o documentário foi tomando – partindo de uma visão eminentemente ocidentalizada, passando ao reconhecimento de qualidades e, por fim, com a equipe imergindo naquela nação durante aquele curto período de tempo – a conclusão do filme é previsível e, ao mesmo tempo, inusitada. Quando se analisam as primeiras cenas e as cenas finais, o choque é grande. Porém, à medida que o programa vai tratando o Irã de uma forma positiva, rechaçando os estereótipos e ignorando os aspectos negativos do país, é de se esperar que o desfecho acontecesse mais ou menos dessa forma. É também passada certa sensação de “alívio” pela jornada ter-se finalizado e ter ocorrido tudo bem. Mesmo com as adversidades que acometeram o país em um passado recente, a nação, de um modo geral, é mostrada mais pelas suas qualidades, com um povo hospitaleiro e gentil, fazendo um contraponto à imagem negativa que o Irã carrega na mídia ocidental.


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CAPÍTULO 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Se alguém dissesse na televisão que o Irã é um país amigável, estruturado e com pessoas gentis e intelectualizadas, talvez ninguém acreditasse. Diante de anos de veiculação preconceituosa na mídia, a imagem desse país, cujo IDH é considerado alto, tem sido frequentemente associada a guerras, fanatismo religioso, opressão às mulheres, entre outros fatos que no Ocidente são considerados violadores de direitos humanos. Essa associação, que simplifica uma nação de história milenar aos acontecimentos ocorridos nos últimos 35 anos, corrobora com a propagação de um viés simplório e estereotipado sobre esse país. O senso comum difundido desde a Revolução Islâmica, de 1979, até o polêmico programa nuclear iraniano, já no fim da década de 2000, ofusca a possibilidade de uma análise mais aprofundada – e cética – sobre esse povo. O poder de construção da realidade exercido pela mídia tem grande relevância nesse processo. A credibilidade dos veículos de imprensa induz o espectador a “comprar” aquilo que está sendo noticiado como verdade, não em razão de o receptor ser alienado, mas sim pelo fato de a carga simbólica recebida ser difícil de contestar. Desde a idealização da pauta até a chegada da notícia ao espectador, que se apropria dela e lhe atribui uma interpretação, as várias significações de um determinado fato cada vez mais se distanciam do que seria essa “verdade”. Como parte da mídia, o programa Não Conta Lá em Casa também realiza seu poder de construção da imagem do Irã ao tentar interpretar o cotidiano do país de uma forma diferenciada. A proposta, já expressa desde o primeiro discurso do narrador – quando fala que a equipe deveria ir ao Irã para “desmistificar ou comprovar o que se passa por lá” (0’32’’ a 0’35’’) – obteve alguns resultados36. Diferentemente do estereótipo que o país carrega, o Irã mostrado pelo NCLC tende a ser quase uma propaganda positiva da nação. A equipe evoca o senso comum associado a esse povo e, ao longo de encontros, entrevistas, passeios e outros fatos ocorridos naquele breve

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É importante ressaltar o fato de que esta pesquisa possui limitações de ordem subjetiva. Por se tratar de um trabalho em Ciências Humanas, os resultados aqui encontrados não significam uma verdade absoluta. Pelo contrário, expressam uma análise que pode ter diversos outros desfechos a partir do olhar de diferentes pesquisadores. Ademais, diante desta subjetividade limitante, a pesquisa não se furta de conter possíveis falhas humanas.


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cotidiano durante o qual Leondre, Bruno, Felipe e André estiveram viajando pelo país, o discurso do NCLC constrói, pouco a pouco, uma nova imagem do Irã. A nação é mostrada por meio de um enquadramento positivo. Sendo um documentário jornalístico do tipo participativo, o NCLC utiliza largamente a subjetividade dos apresentadores – que também realizam a produção, a direção e a edição do programa. O viés do discurso deles vai sendo amenizado a cada etapa da viagem: no início, apenas Felipe e Bruno expressam curiosidade e confiança para ir ao Irã, enquanto os outros temem a viagem; durante as primeiras entrevistas, os quatro se deparam com um povo gentil e afável, diferente da visão preconceituosa que eles próprios tinham; por fim, a atração assume que a viagem ao país foi tranquila e surpreendente, que lá os apresentadores fizeram muitos amigos e que a experiência fora tão boa que poderia se repetir. A receptividade dos iranianos foi motivo de surpresa, assim como a estrutura da cidade, que possui estradas modernas e bem conservadas, como foi citado no programa. A valorização dos monumentos e da cultura por parte dos iranianos mostrou aos brasileiros como aquele povo é intelectualizado. Esses são alguns dos fatores principais que promoveram a construção de uma nova imagem do Irã pela atração. É louvável a ideia de ir conhecer países tidos como “vilões” para desconstruir estereótipos, mas é importante questionar, porém, até que ponto o programa tenta se eximir de buscar explicações mais concretas acerca de questões que afetam a população iraniana diariamente. Quando os apresentadores afirmam que buscam conhecer outros aspectos do país, de fato, eles o fazem pelo viés do cotidiano, do corriqueiro, da trivialidade. Talvez esse método se adeque melhor à “linha editorial” do programa, que exalta o lado bom, silenciando o ruim. Isso pode ser percebido, por exemplo, quando é mostrada a indignação da equipe diante da segregação de gênero, enquanto explicações mais claras são deixadas de lado; a equipe questiona para si própria, não para o outro. Da mesma forma acontece em relação ao programa nuclear. Não são feitas investigações acerca da polêmica e, por causa disso, não se discute se a nação é ou não bélica, mas apenas se há argumentos que mostrem ser o país mais que uma nação fechada e fundamentalista. As críticas permanecem nas entrelinhas, enquanto as qualidades que emergem do cotidiano são evidenciadas ao longo do documentário. É claro que não se pode também esquecer as limitações do programa (tempo, orçamento, planejamento) e do grau de abertura daquele país para uma investigação jornalística estrangeira.


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Talvez a melhor explicação para a abordagem feita pelo NCLC seja o propósito da atração: não se trata de um programa que traz grandes reportagens, no sentido jornalístico do termo, mas que trabalha dentro do viés do infotenimento, suscitando a informação mais descontraidamente em razão do gênero diversional. O programa faz questão de legitimar sua função junto ao público, exaltando a importância de buscar aspectos pouco abordados acerca da nação diante do que comumente é visto na mídia de grande alcance. Além de fazer um discurso autolegitimador – por meio de declarações próprias e dos entrevistados –, o documentário traz situações em que os brasileiros se reconhecem e são reconhecidos por aquele povo. Tais ações se dão, propositalmente ou não, pela relação com hábitos bastante presentes no Ocidente (como jogar futebol ou fazer piadas). Dessa forma, é inegável que o programa se debruça sobre o país sob um viés ocidentalizado. No início, contaminados pelo medo e pelos próprios preconceitos, os apresentadores acabam reforçando e replicando alguns estereótipos difundidos no Ocidente. Por outro lado, quando o discurso começa a mudar e a abordagem passa a ser positiva, o tratamento dado ao país parece melhorar porque os brasileiros encontram os fatores de reconhecimento, o que influencia, também, na estratégia de aproximar o público da atração. Mesmo que o Não Conta Lá em Casa não desmistifique o estereótipo do Irã – ou até mesmo dos outros países visitados pela equipe –, há uma clara construção de uma nova imagem. Por meio do programa, o semblante grotesco ao qual o Irã é associado não só é “aliviado” como, em certos momentos, esquecido. Por essa inversão de papéis, são percebidas algumas características do jornalismo de resistência (PENA, 2012, p. 171 e 172) no programa, em especial a inserção de opiniões de setores representativos da comunidade, evitando ressaltar autoridades e experts (apenas a Embaixada do Brasil em Teerã representa uma fala oficial em todo o documentário, todas as outras fontes são independentes); a autocrítica, quando os apresentadores assumem que tinham visão preconceituosa sobre o Irã; e a feitura de entrevistas com perguntas que privilegiem as demandas da comunidade, procurando dar um tratamento que as torne interessantes até para os indivíduos que não fazem parte dela. Em resumo, o objetivo do Não Conta Lá em Casa de ver um “outro lado do Irã” foi cumprido, mesmo com a ressalva de que os apresentadores poderiam ter-se debruçado sobre explicações mais claras acerca do modo de viver daquele povo, em vez de fazer um tipo de “propaganda positiva”.


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O grande mérito do programa não é, entretanto, cumprir a sonhada missão de desmistificar estereótipos, mas de ter uma proposta que se destaca dos programas do gênero similares. Por ser uma espécie de exceção, o NCLC merece uma observação mais atenta. A análise aqui feita se deu sobre a primeira temporada, ou seja, ainda quando o programa estava em fase de maturação. Talvez os próprios erros cometidos nesse início servissem para que a atração progredisse em suas abordagens, tratando mais ampla e profundamente sobre os aspectos os quais pretende criticar. Em suma, a tentativa de desmistificar um estereótipo não é apenas uma forma de suprir uma curiosidade, mas sim de ser responsável. Mostrar uma faceta desconhecida de uma nação frequentemente associada a fanatismo e terrorismo é dar voz a ela e permitir que o resto dos povos a conheça para além do senso comum. Isso é o exercício de uma função social. Informar e, sobretudo, orientar são parte da atividade jornalística e consequência de seu poder de atingir a grande massa. O jornalismo exerce um serviço público quando proporciona ao receptor da mensagem os elementos necessários para que ele possa interpretar determinado assunto e formar um juízo crítico sobre ele. O exercício da função social colabora para um melhor entendimento dentro de uma comunidade e também entre os povos em relação à temática tratada, impulsionando, ainda, a ação em torno no bem comum. O Não Conta Lá em Casa dá sua contribuição para o exercício de uma função social no jornalismo quando possibilita ao espectador refletir sobre o Irã de outra maneira, mesmo que de forma ocidentalizada. A tentativa do documentário de mudar uma imagem há décadas marcada por estereótipos e preconceitos já é uma forma de contribuir para a democracia entre os povos, sendo uma forma, portanto, de exercer uma função social.


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ANEXOS ANEXO A – E-mail de André Fran (26 de setembro de 2013)


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ANEXO B – E-mail de André Fran (15 de agosto de 2014)


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ANEXO C DVD – Documentário do Não Conta Lá em Casa sobre o Irã (Direção de Leondre Campos)


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