"Isso tudo não me diz nada" – Conversas entre Gustavo Caboco Wapichana e Tipuici Manoki

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ISSO TUDO NÃO “ ME DIZ NADA A NO

IMPERMANÊNCIA COMO ARQUIVO HISTÓRICO DA

PONTO BIENAL

DE ENCONTRO DE SÃO PAULO

conversas com ausências


@picada.livros


conversas entre Gustavo Caboco Wapichana e Tipuici Manoki



AUSÊNCIAS

ou

SINTOMAS?

Fomos convidados, pelas equipes da Fundação Bienal de São Paulo, para pensar/pesquisar sobre as presenças indígenas no Arquivo Histórico Wanda Svevo no final de 2022. Mas algumas perguntas/indagações nos chegaram primeiro. Para começo de conversa: o que é arquivo? Essa ideia, essas práticas, se aplicam às populações indígenas? Ainda mais: o que poderia vir a ser um arquivo-indígena? Há uma prática do esquecimento quando tratamos de memória e arquivo. Quando observamos o cruzamento entre os dados armazenados e os apagados, percebemos que no ato de acessar um arquivo é possível experienciar a correspondência a um estado de anamnese. Passamos a fazer perguntas ao arquivo histórico da Bienal no intuito de ouvir um conjunto de informações e lembranças, e assim o próprio ser-arquivo passou a relatar seus sintomas. Na etimologia, a palavra “arquivo” está ligada a arkhê ou arché, ou seja, o princípio, a origem e o comando. A tentativa de documentar e compreender onde as coisas começam, o princípio da natureza ou o princípio da história gera um anseio do “fazer arquivo”, mas no archê está também a lei: quem domina o arquivo? Em seu livro “Mal de arquivo”, publicado em 1995, Jacques Derrida, um importante pensador franco-magrebino, nos situa que o sentido de arquivo vem do grego, arkhêion, que é inicialmente uma casa, a residência dos magistrados superiores, os assim chamados arcontes, isto é, aqueles que comandavam e eram os guardiões daquelas casas-arquivos. Derrida afirma que eram as figuras privilegiadas dos arcontes que tinham o direito de interpretar os arquivos que estavam sob sua guarda e a partir daí “diziam a lei”. A morada do arquivo nasce desse lugar privado, sob guarda, interpretação e regência de alguns poucos sujeitos que habitam o arkhêion. Acessar o arquivo da palavra “arquivo” pode nos situar na ideia do “fazer arquivo” - arquivo para quem? - e nos direcionar na discussão de arquivos-indígenas. Pois, tratando-se de Brasil, somos ao menos 305 povos originários com archés diferentes, com histórias de origem, subjetividades e modos de nos relacionar distintos, com práticas diversas do “fazer memória” e de diferentes formas de acessar os saberes.


Neste projeto de pesquisa que fomos convidados a fazer no Arquivo Histórico Wanda Svevo, a presença da nossa ausência foi o aspecto mais recorrente em nossas discussões. Realizamos encontros virtuais e presenciais com a cineasta e pesquisadora Tipuici Manoki, o artista Aislan Pankararu e eu, Gustavo Caboco, para refletir sobre aquilo que a Bienal nos propôs a pensar: a “presença indígena nas Bienais”. Mas olhar mais de perto o Arquivo Histórico nos colocou no antagonismo do que nos foi pedido: tivemos acesso ao banco de imagens, de fotografias, de pastas, de textos, de catálogos e de clippings, além do contato com a equipe do arquivo e de educação da Bienal, que se apresentaram de uma maneira disposta a nos dar assistência. Mas foi a nossa ausência no Arquivo e o distanciamento entre as práticas que se apresentaram enquanto sintoma. Não é que não exista uma “presença indígena” (breve) no histórico da Bienal de São Paulo ou que não tenhamos a capacidade de pesquisar neste arquivo. Talvez não fosse do nosso interesse ficar pesquisando palavras-chave como “índio”, “indígena”, “bienal dos índios”, “bienal indígena”, “artista indío” nas ferramentas de busca do Arquivo Histórico. De todo modo, nesse processo, lembrei que, em 2019, tive uma experiência com a publicação “Primeiros ensaios”, um dos materiais produzidos durante a 34a edição da Bienal, e sentamos para debater questões relacionadas ao histórico das ações educativas da Fundação Bienal e o pessoal da equipe de educação nos relatou algumas programações que aconteceram em edições passadas, como diálogos com Daniel Munduruku, Cristiane Takuá, Naine Terena, Álvaro Tukano e Ailton Krenak realizadas na edição de 2016. E lembramos também dos atravessamentos de artistas como o cacique Aritana em 1975, Almires Martins em 2016, Denilson Baniwa em 2018. Cada qual em um contexto e em uma teia de relações distintas: seja na tutela, nos convites, nos hackeamentos, ou ainda nas punições, nos extrativismos ou nas capturas. Sintomas. Os questionamentos e as conversas ao longo dos últimos anos levaram ao convite da Fundação Bienal, que em 2022 nos chamou para refletir sobre a “presença indígena” em seu Arquivo Histórico. Mas a forma como esse convite ecoou em nossa escuta nos levou a pensar sobre uma série de pressupostos que são assumidos a partir do indígena-pesquisador ou da categoria artista indígena.



Correio Braziliense, 17 de outubro de 1975. Arquivo Histórico Wanda Svevo

Ricardo Werá, #DEMARCAYVYRUPA (detalhe da obra), 2023. Giz Pastel e Lápis de cor em Papel Canson. 21 x 29 cm


Talvez o atravessamento do cacique Aritana em 1975, mediado por Bisilliat-Villas-Boas-General-Ismarth-FUNAI, seja uma memória importante para analisarmos a conjuntura atual: quando Aritana afirmou “isso tudo não me diz nada” dentro do pavilhão, referindo-se à 13ª edição da Bienal, por exemplo. Trata-se dum encontro entre as subjetividades, e a presença delas nesse pavilhão é certamente política. Nesta publicação do Correio Braziliense (ao lado) notamos que a primeira participação de uma pessoa indígena na Bienal acontece a partir da tutela. Sintomas: “A FUNAI participa, pela primeira vez, da Bienal de Arte Moderna...”. O destaque à instituição indigenista na 13ª edição da Bienal prevalece em relação à presença do cacique Aritana. A FUNAI, que na ocasição ainda se chamava Fundação Nacional do Índio, hoje passou a ser chamada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas - com a presença da primeira indígena em sua presidência, Joenia Wapichana. Mas em 1975 é preciso relembrar do “Estatuto do Índio” e de que a relação do Estado e da sociedade brasileira com as populações indígenas era de nos colocar como se fôssemos crianças, ou “loucos”, portanto deveríamos ser tutelados. São essas ferramentas de exclusão social que permanecem valendo até hoje quando se fala em “integração”. Mas a FUNAI poderia ocupar que tipos de espaço, enquanto proponente, nesses palcos da Arte? Uma edição da Bienal, um convite, ou convites, um trabalho artístico ou uma publicação isolada não dão conta de resolver os ruídos que se estabelecem desde o “isso tudo não me diz nada”. Precisamos de espaço, de abertura na instituição - rodas de ação - para criar de modo autônomo os contextos para a “presença indígena” aqui na Bienal. Se mantivermos do modo que estamos, apenas a ausência permanece dentro. Sintomas das impermanências. O título da matéria “Trabalho de índio hoje na Bienal de Arte de S. Paulo” reforça o estereótipo do ser-exótico-índio que até hoje continua a ser uma forma de tornar nossa presença objetificada ou espetaculosa. O acesso ao Arquivo Histórico da Bienal é certamente um caminho possível para nossos trabalhos, pesquisas e debates, mas para muitos de nós, nem a palavra Bienal faz sentido. Sintomas ou ausências?


Ausências e sintomas. É que nesses tempos de “revisões”, daqui a pouco alguém vai querer levar terra de alguma aldeia indígena, forrar um pavilhão inteiro com esta terra numa exposição e acreditar que isso é reparação histórica ou algum outro absurdo. Sintomas dos esquecimentos: tratar esses movimentos de artistas indígenas brasileiros como “emergentes” e esquecer das questões históricas, das lutas e dos direitos, como por exemplo as histórias dos artistas indígenas na Austrália nos anos 90, ou da ampliação da atuação dessa “presença indígena” no Canadá em cargos de diretoria em instituições de arte, e uma série de outros exemplos que não são uma “novidade”. No Arquivo Histórico da Bienal encontrei este registro (ao lado), de janeiro de 1968, de uma Bienal de artistas indígenas estadunidenses. A notícia começa assim: “A tradição também pode falar a mesma linguagem de hoje...”. É uma frase de 55 anos atrás, mas em 2023 muitos insistem em separar “tradição” e “contemporâneo”, como se tivessem uma bula de como devemos viver nossas culturas e diversidades.

DEMARCAR TERRAS, DEMARCAR TELAS, DEMARCAR SUBJETIVIDADES, DEMARCAR AUTONOMIAS.


Folha de S. Paulo, 26 de janeiro de 1968. Arquivo Histórico Wanda Svevo




AU S Ê N C I A S Trecho de uma conversa nossa. Fala de Tipuici Manoki gravada no dia 21/03/2023 “(...) A ausência indígena mesmo nesses espaços artísticos: e a gente está falando de um grande espaço, que no caso é a Bienal, daquela estrutura que tem em São Paulo. Eu não sabia até 2016, que foi quando a Naine [Terena] participou, que você lembrou agora - então eu lembrei que a Naine foi na universidade e falou pra nós: “ó, eu vou estar na Bienal, se vocês estiverem em São Paulo vão lá visitar”, e ela mandava foto, e eu ficava pensando: “que que é Bienal?”. (...) 2016 que eu ouvi esse nome [Bienal], então é muito recente pra mim. E aí ela [Naine Terena] explicava lá como é que ela fazia. Mas assim, ela explicando, eu não conseguia, não tinha uma visualização do que era, sabe? Ela trouxe algumas fotos, aí eu perguntava: ‘Mas como é que funciona aí? Tem muita coisa, tudo junto, como é que é? e tal’... Aí ela ia explicando como é que funcionava. Mas aí, essa ausência não é só lá, né? A gente pode colocar essa ausência de artes indígenas - feitas por indígenas - e os indígenas nessa esfera: tanto dos grandes, como São Paulo, a Bienal, você vê no Estado, você vê isso nos municípios, que a gente não tem esse espaço e que a gente não tem apoio também das instituições. As instituições não abrem esse espaço para os artistas indígenas. Eu conheço muitos [artistas], pintores principalmente, indígenas. Tem um que é um [pintor do povo] umutina e eu já vi algumas obras dele. Eu vi algumas obras dele, mais lindas assim que ele faz. Mas eu nunca vi ele em


outros espaços, a não ser naqueles que eu pude ver: já vi na aldeia dele, já vi no espaço que eles criaram no município deles [povo Umutina] mesmo. Eles mesmo criaram um centro cultural. E isso é muito difícil você ver em outros municípios. E a gente não tem. A gente não tem nada, nada que fale sobre esses povos, nem dentro das bibliotecas de escola... Não existe um espaço, na verdade, pra falar sobre a existência desses povos indígenas. Existe um apagamento mesmo, um apagamento dos povos indígenas, da sua existência. E agora acabou que a Bienal também falou isso pra gente, né? Porque, pelo menos do que a gente viu ali, são poucos que já participaram desse espaço. E alguns, os outros [trabalhos] que a gente viu lá, eram contadas as histórias por não-indígenas. Eles que iam lá fazer as exposições e iam contando. Eles não eram indígenas. Então acho que esse apagamento está bem presente aí.”

“MAS O QUE É BIENAL?”



28-00243. Texto de abertura do catálogo da 1ª Bienal de São Paulo (1951)


“Mas o que é Bienal?” No catálogo da 1ª Bienal de São Paulo (1951) encontramos um texto de apresentação do então Ministro da Educação e Saúde. Enquanto ele empodera, em suas palavras, a presença do “ataque dos bandeirantes da Semana de Arte Moderna de 1922”, no ano passado, em 2022, presenciamos uma série de debates sobre as ausências indígenas na História da Arte, em exposições como “Nakoada” (MAM-RJ) e “Um Século de agora” (Itaú Cultural), em debates sobre “onde estavam as populações indígenas em 1922?, e em que contextos de enfrentamento?”. Acho curioso nesse texto de apresentação do ministro, e marquei em destaque na página anterior, quando ele escreve que em tempos de tormenta não é possível ao artista que “guarde a serenidade dos tempos em que a vida era doce como um favo de mel no Himeto”. Acontece que esses tempos da serenidade acabaram mesmo. Quem acompanha as notícias recentes da terra dos arcontes, aqueles guardiões-regentes dos arquivos, sabe que lá no Monte Hymettus [Himeto], nas proximidades de Atenas, na Grécia, aconteceram incêndios florestais em 2022 (e em anos anteriores). Sabe também que esses incêndios são uma ameaça crescente às paisagens em transformação pela ação humana. Também vivemos isso intensamente no Brasil, com as notícias de incêndios na Amazônia, Pantanal, Cerrado, Mata Atlântica, Lavrado. Os tempos podem até estar difíceis para os artistas, mas para as abelhas, as formigas, os morros, as flores e seres que habitam as florestas, a tormenta é iminente. Poderíamos abrir discussões para pensar sobre como a presença indígena e nossas estratégias de cuidado com os territórios são fundamentais para mitigar/diminuir/reverter as mudanças climáticas - isto faz parte da tecnologia e da memória dos povos originários.


Nossa relação com a terra é de fato uma base para pensarmos o arquivo-indígena. Fazer um fio de algodão, por exemplo, exige uma série de saberes complexos que alguns pesquisadores chamam de “etnomatemática” mostrando que há outras formas de se pensar para se fazer ciência. Uma rede de dormir ou uma rede de pesca é um banco de dados para um povo que vai muito além dos saberes técnicos ou práticos. Como sugeriu Derrida naquele livro: a força de um arquivo é melhor compreendida em relação ao impulso arquivístico que cada arquivo inicia. E se um de nossos arquivos-indígenas se iniciar por um fio de algodão?

Gustavo Caboco, Licença para plantar pé de algodão, 2022. Da série encontros di-fusos. Bordado e flor de algodão em tecido. 15 x 20 cm


“ISSO TUDO NÃO


ME DIZ NADA” CACIQUE ARITANA, 1975, NA 13º BIENAL DE SÃO PAULO.


NOSSA RELAÇÃO COM A TERRA É DE FATO UMA BASE PARA PENSARMOS ARQUIVO-INDÍGENA



E SE NOSSAS AUSÊNCIAS NÃO FOSSEM SINTOMAS?



E SE UM DE NOSSOS ARQUIVOS-INDÍGENAS SE INICIAR NUMA FLOR DE ALGODÃO?



E SE A FLOR ESTE FIO-ARQUIVO-VIVO ESTÁ NUM TEMPO HISTÓRICO NÃO-LINEAR?



E SE NOSSO FIO-ARQUIVO SE ORGANIZA NO TEMPO DAS RELAÇÕES SEMENTE-FLORESTA?



E SE NOSSAS REDES DE SABERES SE UNEM PARA FAZER UM FIO-FORTE?



“ISSO TUDO NÃO ME DIZ NADA.” E SE TECERMOS NOSSOS CAMINHOS?



TECENDO

NOSSOS

CAMINHOS

Trecho de uma conversa nossa. Fala de Tipuici Manoki gravada no dia 21/03/2023 “(...) E aí, quando eu vi a exposição do Gustavo lá sobre a linha de tecer e tal, ao mesmo instante já veio o filme que eu dirigi, que foi “Tecendo nossos caminhos”, que a gente fala sobre tecer a rede. Então, a partir da tecedura da rede, a gente vai desenvolvendo todo esse processo de ligação de nós, indígenas, com aquele afazer e como que ele envolve todo um processo e toda essa ligação que a gente tem com os não-humanos também, que existe dentro do nosso território. (...) O trabalho nosso, do coletivo de cinema [Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky], veio pensado também a partir disso: de trabalhar com essa juventude que agora já é da era tecnológica, e que está tendo acesso agora, e que eles possam fazer esses trabalhos, e que eles possam sonhar também com aquilo que eles desejam, que eles possam se ver e ver nas telas o quê que eles podem fazer, a capacidade deles de desenvolver.

Still de vídeo de Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky Tecendo nossos caminhos, 2021


Então acho que as produções, a criatividade, os espaços ocupados hoje pelos artistas indígenas, eles vão muito além daquele ‘eu’. Não é eu, é nós, é para nós. Eu acho que eu vejo dessa forma. Então, acho que é muito pra além de apenas uma pintura, de apenas um vídeo, de apenas uma exposição. Eu acho que a gente está inspirando pessoas, a gente está trazendo essa ancestralidade, mas a gente traz também vidas que hoje têm essa transformação dentro das nossas comunidades. Essa doença do século, ela já entra dentro da nossa comunidade justamente por causa do que vem [de fora]. Então, a gente tem que usar disso para que isso possa trazer benefícios para as nossas comunidades. E eu acho que os jovens, eles são os nossos, talvez, as nossas prioridades, assim, desse cuidado mesmo, de inspirá-los para que eles possam fazer esse trabalho.”


UM FIO DE ALGODÃO, UM CANTO, UMA REDE, UM GRAFISMO SÃO DOCUMENTOS HISTÓRICOS. ARQUIVOS-VIVOS.



OUVIR-ARQUIVO TEMPO-ARQUIVO PLANTAR-ARQUIVO FIAR-ARQUIVO SOPRAR-ARQUIVO TECER-ARQUIVO



nossas avós são nossas bibliotecas As contra-narrativas que criamos por meio das Artes Indígenas são algumas das ferramentas para somar nessa ideia de arquivo-indígena. Povinelli, uma pesquisadora estadunidense que trabalha com construção de arquivo pós-colonial com populações aborígenes na Austrália, publicou um artigo chamado “The Woman on the Other Side of the Wall: Archiving the Otherwise in Postcolonial Digital Archives [A mulher do outro lado do muro: Arquivando o contrário/de outra forma em arquivos digitais pós-coloniais]” em 2011. Nesse texto ela afirma que um arquivo pós-colonial não pode ser meramente uma coleção de “novos artefatos”, nem pode ser reduzido à coleta de histórias ainda “não ouvidas”, mesmo que isso seja importante. Então quais seriam os critérios para constituir arquivos-indígenas? Nessa busca realizei o exercício de acessar o meu arquivo pessoal “Kanau’Kyba”, que reune os registros de todo o processo de criação da instalação que apresentamos na 34ª Bienal de São Paulo - faz escuro mas eu canto (2021). Em nosso processo de pesquisa e criação fizemos uma obra audio-visual chamada “Kasulo da Kuwazaza”, que não foi apresentada na exposição, mas é fruto do nosso “ateliê em deslocamento” e de reflexões sobre arquivos, documentos e tecnologias. Naquele momento, a nossa presença em família Wapichana dentro do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, nos levou a uma percepção de encontros de bibliotecas: foi possível acessar nossa história através do grafismo da Kuwazaza, que identificamos no chão do Real Gabinete. Acessamos o “Arquivo da Kuwazaza” e inclusive este fio conduziu nossa proposta de expografia da instalação. Outro arquivo que acessamos foi o canto que Emanuel Wapichana, artista-mirim de nossa família, ecoou em meio aos milhares de livros daquela biblioteca. Manisfestamos que nossa memória não se apaga mesmo quando nos silenciam. Acessar aquele canto foi um modo de firmarmos um território-memória da nossa história. Acredito que as obras áudio-visuais “Kasulo da Kuwazaza” (2021), de minha família, e “Tecendo nossos caminhos” (2019), da Tipuici, nos movem a uma boa direção para visualizarmos um conjunto de fatores: acessar memória-corporal, tecer relações familiares, a manutenção da língua, a realização de uma avó quando visualiza uma completude ao transmitir um saber, o cinema ou artes indígenas em prol de uma juventude. Enfim, palavras-chave, palavras-rede, palavras-memória para se fazer pensar. Mas esta prática de “fazer-arquivo” ou “fazer-memória” está ligada à vivência e ao presente. O arquivo está no encontro, é vivo, não é apenas o arquivo digital ou registro da experiência. Está no canto, na rede: no “campo invisível das traduções”.


Emanuel Wapichana utilizou de uma das nossas tecnologias de documentação da memória mais antigas: o canto

Still de vídeo de Gustavo Caboco, Lucilene Wapichana, Roseane Cadete, Emanuel Wapichana e Wanderson Wapixana, Kasulo da Kawazaza, 2021


FOGO NO ARQUIVO


Vivemos um momento em que a consciência para “revisões históricas” ou “requalificações” de narrativas estão ativadas. Povinelli, aquela pesquisadora que trabalha com arquivo pós-colonial, perguntou sobre o que fazer com o seu arquivo pessoal para um avô aborígene em uma das comunidades. O senhor sugeriu que colocasse fogo em seu arquivo e depois enterrasse as cinzas. Ouvi essa história assim: Se ninguém conseguir manter viva a constelação de relações que um arquivo precisa para respirar, então ele é um arquivo-morto e que, se está nessa condição, o melhor é tratar como qualquer matéria morta e devolvê-la à terra. retorno à terra.


AFINAL, MEUS PARENTES, O QUE É ARQUIVO?



Gustavo Caboco Wapichana Artista visual Nascido em Curitiba - Roraima (1989), trabalha na rede Paraná-Roraima e nos caminhos de retorno à terra. Sua produção com desenho-documento, pintura, texto, bordado, animação e performance propõe maneiras de refletir sobre os deslocamentos dos corpos indígenas e sobre a produção e as retomadas da memória. Dedica-se também à pesquisa autônoma em acervos museológicos para contribuir na luta dos povos indígenas. Em 2001 fez o seu primeiro “retorno à terra” Wapichana. Em 2018, foi vencedor do Concurso FNLIJ Tamoios de Textos de Escritores Indígenas com o texto “Semente de Caboco”. No ano de 2019, publicou seu primeiro livro, “Baaraz Kawau”, no Museu Paranaense em Curitiba, e participou da Exposição ‘VAIVÉM’ no CCBB. Participou da exposição “VÉXOA - nós sabemos” na Pinacoteca e foi vencedor do 3º Prêmio seLecT de Arte e Educação em 2020. Foi artista convidado da 34ª Bienal de São Paulo e da exposição Moquém Surarï no MAM - São Paulo em 2021. Em 2022, realizou a performance “encontro di-fuso” na Universidade de Manchester durante o “Festival of Latin American Anti-Racist and Decolonial Art”, foi convidado para o encontro indígena “aabaakwad” no pavilhão Sámi na Bienal de Veneza, foi artista convidado do 32ª programa de exposições do CCSP com “Coma Colonial”, realizou a individual “ouvir àterra” na Millan (São Paulo), lançou o livro “Baaraz Ka’aupan” no Museu Paranaense em Curitiba.


Tipuici Manoki Cientista social e cineasta indígena “Sou Tipuici Manoki moro na aldeia Treze de Maio, na Terra Indígena Irantxe, em Brasnorte, Mato Grosso. Mas até dezembro estarei residindo em São Paulo. Sou graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso e atualmente estou cursando o mestrado em Antropologia Social, na Universidade de São Paulo. Minha pesquisa, desde a graduação, é sobre a importância da mulher no processo político e ritual do povo Manoki. Comecei a trabalhar nas filmagens em 2009 e, em virtude dos meus estudos, parei por alguns anos, e voltei a produzir em 2019. Ajudei a criar o coletivo Ijã Mytyli de Cine Manoki e Myky, com apoio do qual dirigi e produzi três documentários. Atualmente estou finalizando meu quarto documentário, sobre a versão Manoki do jogo de bola de cabeça, a partir de uma perspectiva feminina.


FICHA TÉCNICA EDITORIAL Realização: Fundação Bienal de São Paulo Coordenação geral e Realização: PICADA (@picada.livros) Pesquisa no Arquivo Histórico Wanda Svevo: Gustavo Caboco Wapichana Tipuici Manoki Textos e depoimentos transcritos: Gustavo Caboco Wapichana Tipuici Manoki Organização editorial, projeto gráfico e desenhos: Gustavo Caboco Wapichana Fotografias e artes licenciadas: Arquivo Histórico Wanda Svevo Ricardo Werá Tipuici Manóki Gustavo Caboco Wapichana Revisão crítica: Paula Berbert Capa e contracapa Gustavo Caboco Wapichana


Projeto Obra Digital Gustavo Caboco “Ausências ou Sintomas?”, 2023 Realização: Fundação Bienal de São Paulo Artista e Direção: Gustavo Caboco Wapichana Pesquisa no Arquivo Histórico Wanda Svevo: Gustavo Caboco Wapichana Tipuici Manoki Desenho de som: Ian Wapichana Programação criativa: João Antonio de F. P. e Ferreira https://introscopia.github.io/ Adaptação Mobile: WiW https://wiwsic.xyz

AGRADECIMENTOS GUSTAVO CABOCO: Aislan Pankararu Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky Família Wapichana Aritana Yawalapiti Naine Terena Denilson Baniwa Comissão YVYRUPA

Dora Correa Thiago Gil de Oliveira Virava Simone Lopes de Lira Ana Luiza de Oliveira Mattos Amanda Pereira Siqueira Melânie Vargas de Araujo Francisco Bresolin Rafael Falasco Caroline Carrion



Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

patrocínio master

patrocínio

agência oficial

apoio

parceria cultural

realização


Afinal, meus parentes, o que é arquivo?


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