Superdose

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SUPERDOSE “Soma is what they would take when / hard times opened their eyes / saw pain in a new way / high stakes for a few names / Racing against sunbeams / losing against their dreams / (…) somehow he was trying / too hard to be like them.” The Strokes

Começar esse texto com uma referência direta a Admirável Mundo Novo (romance de Aldous Huxley, publicado em 1932) por meio da citação feita pela canção “Soma”, da banda The Strokes, é uma tentativa de localizar a poética que Louise D.D. vem desenvolvendo desde 2005 não como apocalíptica ou evasiva, mas crítica em relação ao mundo. Se o soma do livro e da música tinha a função de reguladora social, droga que dissipava os dissabores e mantinha a “ordem”, os remédios de Louise funcionam como suturadores subjetivos, “anestésicos para a alma” 1, mas também como catalisadores de percepções e indicadores de vícios, inadequações e consumo coletivos. Se existe alguma função “política” no trabalho da artista, é aí que ela reside. Ao usarmos o termo “política”, entretanto, são necessárias aspas e a inicial minúscula, uma vez que não estamos referenciando o sentido macro ou messiânico do termo – relacionado a governos e a partidos políticos, bem como a vieses panfletários ou de denúncia. Por outro lado, também não estamos nos referindo à Filosofia Política, que estuda as relações humanas e suas organizações comunitárias e coletivas. Partimos, sim, da concepção micropolítica enunciada por Michel Foucault e levada adiante por Suely Rolnik, Jacques Rancière e outros, para tratar dos processos de subjetivação e suas relações com o outro, por meio das práticas de produção e de consumo artístico, seus posicionamentos e “funções” no mundo contemporâneo. No caso de Louise D.D., temos a determinação da identidade do indivíduo pelos produtos que consome – cremes dentais, junk food etc. E, mais ainda, pelo fato de a presente exposição trazer apenas medicamentos, necessariamente caímos nas taxações científicas: depressivo, ansioso etc. A sua linguagem, assim, aborda a banalização do uso dessas substâncias, bem como sua comercialização e dependência. Mais ainda, a artista transforma a galeria de arte não em uma loja comum, mas numa espécie diferenciada de farmácia ou supermercado. Entretanto, estabelece uma descontinuidade entre a Superdose do título e uma montagem mais clean, que privilegia relações mais íntimas entre os espectadores e os trabalhos. Nesse sentido, ao invés de abarrotar o cubo branco com obras, seguindo a lógica do acúmulo de lojas, farmácias, supermercados e da superdosagem sugerida pelo título, Louise opta por expor pontualmente a sua produção, deixando um espaço de respiração para os visitantes. Superdose é a primeira individual que a artista realiza na Cosmocopa Arte Contemporânea e, com ela, nos insere na discussão que há muito vem sendo levantada sobre adequações do comportamento, sentimentos e emoções humanos à ordem social. Sigmund Freud já havia chamado atenção para esse “mal-estar” gerado pela vida em sociedade, os atritos existentes entre id, ego e superego: regras e leis trariam ao comportamento naturalmente impulsivo e desregrado dos seres humanos sensações de desconforto, ansiedade e infelicidade. E mesmo embora a antítese natureza X cultura estivesse na ordem do dia pelo menos desde meados do século XVIII, Freud salientou que certos enquadramentos são necessários para que a própria sociedade não descambe para o Caos, uma vez que um dos A expressão é uma livre tradução da música “Novocaine for the soul”, da banda Eels; a novocaína é um anestésico utilizado por dentistas.

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instintos humanos seria de agressão e autodestruição (princípio de morte, em contraposição ao princípio de prazer). O que ocorreria no mundo atual, diferentemente da ficção de Huxley e da análise feita por Freud em 1930, entretanto, seria o que Maria Rita Kehl e outros psicanalistas contemporâneos vêm denominando “a patologização dos comportamentos e condutas sociais”: embora pareça complicado, o termo nada mais faz do que determinar o excesso de alegria da sociedade do espetáculo. No mundo contemporâneo, parece não haver lugar para o luto, a solidão, a tristeza, o mau humor, uma vez que a sociedade exclui esses sentimentos que, embora desagradáveis, nos tornam humanos. É então que a sensação de estranhamento e não enquadramento fica latente, nos levando a formular as perguntas: novas drogas são criadas para tratar novas síndromes ou novas síndromes são taxonomizadas para expansão da indústria farmacêutica? Vivemos mesmo em uma época doente? Pesquisas recentes demonstram como medicamentos controlados (tarjas preta e vermelha) vêm sendo receitados por não especialistas sem acompanhamento psicológico dos pacientes. A ansiedade (e a ela associados os sintomas de taquicardia, boca seca, pernas inquietas) e a tristeza (a ela relacionadas as manifestações físicas de peito apertado, apatia, desânimo) não necessariamente têm de ser tratadas por remédios, pois não são patologias. A ansiedade diante de uma situação de perigo ou de excesso de cobranças e a tristeza que uma frustração ou coração partido podem gerar fazem parte daquilo que denominamos condição humana. Os medicamentos, então, acabariam funcionando como paliativos, mas não curariam as raízes existenciais dessas angústias e desconfortos. É nesse sentido que Felicidade, Tranquilidade, Sleeping Pills e os dois Rivotril e a Aspirina gigantes de Louise, bem como sua fotografia Tarja Preta, são mais do que operações de apropriação e comentário do tema altamente contemporâneo da ingestão dessas substâncias. Felicidade é um carrinho de supermercado repleto de caixas de antidepressivos. Tranquilidade é uma cesta de compras com embalagens de benzodiazepínicos, ansiolíticos e hipnóticos (tarja preta), também conhecidos como calmantes ou tranquilizantes, que minimizam os sintomas da ansiedade e induzem o sono e o relaxamento. Sleeping Pills são almofadas em forma de Rohypnol, uma droga que chegou a ser proibida em alguns países, tendo em vista seu uso em golpes do tipo “Boa noite, Cinderela”. A artista apresenta também na exposição dois Rivotril: um de 0,5 e outro de 2 mg, respectivamente laranja pálido e branco, sem diferenciação de tamanho, tal como ocorre com os comprimidos em si. O Rivotril é um ansiolítico muito receitado devido a seu baixo custo e extremamente popular no Brasil – é o segundo medicamento mais vendido no país –, podendo ser usado como freio para sentimentos como medo, rejeição, angústia, tristeza e ansiedade, sendo também muito receitado para tensão pré-menstrual. Aspirina, por sua vez, é uma representação em escala macro do analgésico mais popular e consumido em todo o mundo (ficou conhecida como a droga do século XX). E Tarja Preta é uma fotografia da tatuagem que a artista possui em seu antebraço direito, sendo a tarja preta o indicativo contido na embalagem de alguns remédios que alerta tratar-se de um medicamento com alto risco de dependência, que não pode ser usado sem prescrição médica e que só pode ser vendido com apresentação de uma receita específica (azul), que fica retida. Individualmente e pelo seu acúmulo, assim, os trabalhos de Louise D.D. falam de consumo, mas sua aparente autoevidência não diz respeito a uma “facilidade”. Apesar de sua comunicabilidade direta, suas elaborações irônicas nos fazem pensar nas operações cínicas de Andy Warhol. Porém, o que temos aqui, muito mais do que o Pop da loja de Claes Oldenburg, é um ambiente que lembra o clipe de “Fake Plastic Trees”, música da banda inglesa Radiohead. Mas, se no videoclipe temos um excesso de cores artificiais nas prateleiras e corredores pelos quais o vocalista transita dentro de um carrinho de compras, na farmácia ou no mercado de Louise D.D., temos o acúmulo de medicamentos que reiteram a força conceitual dos empreendimentos críticos da artista.


Para finalizar, muito mais do que referenciar A farmácia de Platão, de Derrida, então, talvez devêssemos aludir à banda de rock alternativo Placebo: de seu nome aos discos Meds e Sleeping with Ghosts, passando por letras como “Commercial for Levi” e outras. E se a relação entre rock e drogas recreativas, ilícitas ou socialmente aceitas é comum, terminar o texto com um trecho de uma referência direta da artista não indica que estejamos fazendo uma apologia ou aceitação do uso dessas substâncias. As cosmococas e outros trabalhos que se utilizam de drogas como material ou tema demonstram que enfatizar apenas seus aspectos visuais ou formais seria um contrassenso, uma vez que as questões sobre o seu consumo e comércio estão na ordem do dia. Já que as mesmas perderam o sentido transgressor que possuíam no contexto da contracultura, mencioná-las atualmente é entrar em uma espécie de campo minado. Por outro lado, cair num discurso moralista seria tão equivocado quanto fazer a apologia ao uso. A contribuição do trabalho de Louise está justamente em colocar essas questões por meio da fricção ácida, irônica. Afinal, se certas substâncias psicoativas são usadas com funções místicas, epifânicas, terapêuticas, redentoras, ampliadoras de consciência, catárticas (vide Charles Baudelaire, Walter Benjamin, o próprio Huxley, certas religiões etc.), por que não podem ser um material ou tema com o qual a arte contemporânea possa lidar? Se a produção contemporânea é transdisciplinar por natureza, indo contra a ideia de “pureza”, isso se dá porque “já estão aí imbricadas inúmeras camadas da realidade tanto no plano macropolítico (fatos e modos de vida em sua exterioridade formal, sociológica), quanto no micropolítico (forças que agitam a realidade, dissolvendo suas formas e engendrando outras, num processo que envolve o desejo e a subjetividade” 2. É nesse sentido que a artista nos fornece, na presente exposição, uma superdose poética de “Anestésicos para a alma”. Afinal, “Life is hard / And so am I / You'd better give me something / So I don't die / Novocaine for the soul / Before I sputter out / (...) Life is White / And I am Black / (…) Life is good / And I feel great / Cuz mother says I was / A great mistake / Novocaine for the soul / You'd better give me something to fill the hole / Before I sputter out…” Fernanda Pequeno junho de 2011

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ROLNIK, Suely. “Geopolíitica http://eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt

da

cafetinagem”.

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no

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