Fotografia e memória: a presença de uma ausência

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SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL Faculdade Senac RJ

Elisabeth Barone

Fotografia e memória: a presença de uma ausência

Monografia apresentada ao SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) como requisito para obtenção do título de Especialização em Artes Visuais Cultura e Criação.

Orientador: Bruno Melo Monteiro

São Paulo - SP 2013


ELISABETH BARONE

FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: A PRESENÇA DE UMA AUSÊNCIA

Monografia apresentada ao SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) como exigência final para obtenção do título de especialização em Artes Visuais – Cultura e Criação. APROVADO EM ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Prof. Bruno Melo Monteiro - SENAC Orientador

___________________________________________ Profª. Mara Bastos - SENAC Primeiro Membro

___________________________________________ Prof. Caio Dias - SENAC Segundo Membro


Ă€ Angelina Iovine Barone, in memorian.


AGRADECIMENTOS

Ao Sérgio Pinto, que fez comentários inestimáveis sobre o original, concedendo-me constante apoio e sugestões preciosas.

Ao Elias Muradi, que me fez ver a importância da arte na vida das pessoas, e cujo incentivo e imensurável abertura de oportunidades, me impulsionaram nesta direção.

Ao núcleo de arte contemporânea oNúcleo, cujos coordenadores e membros me incitaram a refletir sobre o que é arte e me incentivaram e orientaram na produção artística.

Aos coordenadores, tutores e a todo pessoal envolvido na infraestrutura do SENAC, em especial ao meu orientador Bruno Melo Monteiro, pelos importantes e lúcidos comentários feitos durante toda a pesquisa.

Aos amigos e parentes pela confiança, constante apoio e ajuda que me ofertaram com suas palavras e gestos, em especial à Karlene Bianca e à Angela Camata.

E a todos os alunos que passaram por mim nesses 23 anos de atividade letiva na área da fotografia, pela troca de conhecimentos.


“O real é infotografável.” François Soulages


RESUMO

Pensar a fotografia como um objeto de memória povoa o senso comum que se baseia na ideia de que esse meio mecânico pretensamente objetivo, que faz cópias do mundo através da natural refletividade da luz, é confiável e produz o efeito de reprodução mimética. Entretanto, procuramos apresentar aqui uma resumida história da memória, seguida de uma pesquisa que defende a ideia de que, longe dela ser um espelho do mundo, ela interpreta e transforma o real, carregando, do seu referente, apenas traços de semelhança que afirmam sua existência naquele dado momento. Procuramos, também, pesquisar dois teóricos da psicologia – Freud e Pinker - investigando as diferenças que existem entre o modo de ver do homem e da câmera fotográfica e de como uma imagem, ao ser armazenada na memória, sofre todo tipo de deformação. À semelhança da imagem mental, a fotografia, quando contemplada, passa a ter significados distintos afetados pela interpretação conceitual individualizada, afastando-se, ainda mais, daquela ideia inicial de realidade objetiva. Dentro deste universo são apresentados quatro trabalhos artísticos da série Amnésia, cuja finalidade é refletir sobre a fotografia como ausência, como esquecimento.


ABSTRACT

To consider photographs memory objects belongs to common sense, based on the idea that this allegedly objective mechanic means, copying the world through a natural reflectivity of light, is reliable and produces the effect of reproduction of memory. However, what we attempt to present here is a summary of the History of memory, according to research that defends the idea that memory interprets and transforms reality, instead of mirroring it, by only carrying resemblance to its referent which in turn affirms its existence on that given moment. It is also attempted to research two theoreticians of Psychology, Freud and Pinker, investigating the differences between the way they see mankind and the camera and also the way images suffer all kinds of disruption when stored as memory. Just as it happens to a mental image, photographs get distinct meanings when contemplated. These meanings are affected by an individualized conceptual interpretation, diverting photographs even further from the original idea of objective reality. Within this universe, four artistic works from the “Amnesia� series are presented, whose aim is to reflect about photography as absence and forgetfulness.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..................................................................................................9

2 FOTOGRAFIA E MEMÓRIA..........................................................................19 2.1 A questão do realismo na fotografia segundo Dubois...........................19 2.2 Ver e memorizar segundo Pinker..............................................................26 2.3 O inconsciente e as metáforas freudianas sobre memória....................30

3 A SÉRIE AMNÉSIA........................................................................................37 3.1 Amnésia......................................................................................................39 3.2 Amnésia 2...................................................................................................42 3.3 Amnésia 3...................................................................................................46 3.4 Amnésia 4 – A Paisagem...........................................................................51

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................53

REFERÊNCIAS.................................................................................................55


9

1. INTRODUÇÃO

Difícil dizer com exatidão quando e onde se originaram as primeiras ideias a respeito da memória. Segundo a mitologia grega, no princípio de tudo surgiu Gaia (a Terra) e Urano (o céu) e, juntos, eles teriam gerado os Titãs. Entre os Titãs estaria a figura de Mnemósine, palavra grega que está ligada ao verbo mimnéskein, que significa "lembrar-se de", personificando a figura da Memória. Mnemósine também procriou. Unindo-se com Zeus ela teve nove filhas, nove musas cantoras, cujo canto evoca a Memória, trazendo o conhecimento do mundo. Segundo “A história da memória”1, os gregos foram os primeiros a arriscar algumas teorias. O texto destaca os seguintes períodos:

- os séculos V e VI a.C., com os filósofos gregos Parménides e Diógenes de Apolônia, relacionando a memória com uma mistura de luz e escuridão, de calor e de frio, ou a uma distribuição de ar no corpo. Segundo eles, a partir do desequilíbrio desses fatores, o esquecimento se iniciaria;

- o século IV a.C., com o surgimento de uma ideia mais plausível: a teoria de Platão sobre a Hipótese da Lâmina de Cera que compara a memória a uma placa de cera que aceita marcas sobre sua superfície e que, com o desgaste do tempo, ficaria lisa novamente, levando o sujeito ao esquecimento;

- ainda no final do século IV a.C., Aristóteles atribui ao coração e ao fluxo sanguíneo o registro da memória. Para ele o ato de esquecer teria relação com uma desaceleração deste fluxo;

- o século III a.C., com a colaboração de outro filósofo grego chamado Herófilus. Ele levanta a hipótese de que existem no mundo o que ele chamou de espíritos vitais que habitam o coração e pertencem a uma categoria elevada. Estes espíritos teriam o poder de criar os espíritos animais, incluindo-se aqui a memória, o cérebro e o sistema nervoso. Foi ele também que defendeu a ideia de que seres humanos

1

BUZAN, 2003


10

possuem um número grande de dobras no cérebro o que faria dos homens um ser superior aos animais. Essa ideia acabou, no século XIX, sendo confirmada pela descoberta de que é no córtex cerebral que ocorre o processamento neuronal executando funções complexas como a memória, a atenção, a consciência, a linguagem, a percepção e o pensamento.

Os romanos contribuíram pouco com suas reflexões acerca da memória. Tanto Cícero (séc. I a.C.) quanto Quintilianus (séc. I d.C.) simplesmente aceitaram a Hipótese da Lâmina de Cera. Porém foram os romanos que introduziram a ideia de um sistema de ligação e um sistema de espaço que ajudaram a compreender melhor o seu funcionamento. 2

No

século

II

d.C.,

Galeno

de

Pérgamo,

um

médico e filósofo romano de

origem grega, conseguiu localizar e descrever várias estruturas anatômicas e fisiológicas, investigando as funções e estruturas do sistema nervoso. Ele concordava com a teoria de Herófilus sobre os espíritos vitais e os espíritos animais (onde a memória se alojava) e teve, na Igreja Cristã, uma grande divulgadora, transformando essas ideias em uma doutrina cujo resultado foi uma paralisação no progresso dessas pesquisas por aproximadamente 1500 anos, incluindo-se aqui o próprio Santo Agostinho (século IV) que “aceitou a ideia da Igreja de que a memória era função da alma e que a alma era localizada no cérebro”3, além de Descartes e Thomas Hobbes que praticamente aceitaram, sem grandes questionamentos, as ideias já esboçadas.

Somente a partir do século XVIII é que vão surgir avanços substanciais, levando à conclusão que “a memória é localizada no cérebro, quer dizer, na grande área do cérebro que cobre a córtex”4, tendo ligação direta com o RNA (ácido ribonucleico).

Ainda segundo Buzan, apesar de cada lado do córtex cerebral processar funções mentais específicas, a memória parece estar nele todo. Ele diz que:

2

Id., 2003 Ibid., 2003, s/p 4 Ibid., 2003, s/p 3


11 ...cada e toda parte do cérebro pode, possivelmente, incluir todas as memórias. Este modelo baseia-se na fotografia holográfica. Em termos simples, uma chapa fotográfica holográfica é simplesmente um pedaço de vidro que, quando dois raios laser passam através deste vidro, num dado ângulo, reproduz uma fotografia tridimensional fantasmagórica. Um dos fatos surpreendentes a respeito desta chapa fotográfica é que se você quebrar este pedaço de vidro em 100 pedacinhos e pegar qualquer um destes 100 pedacinhos, você pode enviar o raio laser através deste pedaço e ainda ganhar a mesma imagem (embora um pouco menos nítida). Consequentemente cada pedacinho individual de uma chapa fotográfica holográfica contêm um mini-arquivo ou um mini-registro da imagem total.5

De acordo com recentes notícias veiculadas pelos jornais, o assunto vem avançando e estamos nos deparando com novas pesquisas que tentam comprovar que as memórias - que não são arquivos fixos, mas sim arquivos maleáveis, moldáveis e mutáveis - podem ser apagadas artificialmente ou implantadas em cérebros, abrindo um caminho para aquilo que parecia apenas possível no mundo da ficção.

Entretanto, apesar das importantes e curiosas descobertas na área da fisiologia médica, uma investigação histórica ligada ao desenvolvimento psíquico talvez seja mais adequada para tentarmos compreender a constituição da memória no tocante à sua dimensão discursiva, especulando como teria se desenvolvido esse processo mental e em como esses modos de pensar e de falar sobre memória se inscreveram na nossa maneira contemporânea de lembrar, aproximando-nos mais daquilo que pretendemos neste trabalho: relacionar a memória com as práticas fotográficas.

Poderíamos voltar então para a Grécia antiga e observar outros aspectos no mito de Mnemósine. Segundo Smolka, as musas que ela gerou são as Palavras Cantadas. Ela diz que: Inspirado pela Musa, o aedo6 cria, repete, recita, compõe palavras em ritmos. Inspirado pela Musa, o poeta é suporte e mestre da verdade. Resgata o acontecido do esquecimento, presentifica o passado. Versejar é lembrar. Cantar é lembrar.7

E prossegue:

5

Ibid., 2003, s/p. Poeta grego da época primitiva que recitava ou cantava suas composições. 7 SMOLKA, 2000, p. 169 6


12 Enquanto filhas da Memória, as Musas detém um poder numinoso 8 cuja força, ao mesmo tempo, presentifica e encobre. Elas fazem revelações, alethéa, mas impõem, também, o esquecimento, léthe. É na voz das Musas, pelas palavras, na linguagem, que se dá a nomeação, a presentificação, a revelação, e também o simulacro, a mentira, o esquecimento.9

Assim sendo, nesse primeiro momento, é na força da palavra cantada e recitada que estaria o segredo da comunicação e da memorização. Através da mimese – repetição, imitação – o homem poderia tentar reter as informações, memorizando-as com o auxílio da rítmica. Dessa repetição nasceria, de certa forma, a tradição e a cultura de um povo.

No século V a.C., um poeta e pintor chamado Simônides de Céos, será o primeiro a definir algumas regras para memorização. Diferenciando memória natural (que nasce naturalmente com o pensamento) de memória artificial (que pode ser fortalecida pelo treino), Céos acredita que esta última exige que criemos imagens na memória, enfatizando que é preciso ver intensamente lugares e imagens para que a memorização ocorra. Por lugares entende-se uma casa, um detalhe de arquitetura, uma paisagem. Já as imagens subdividem-se em dois grupos: as imagens para coisas (res) e as imagens para palavras (verba). É, a partir dele, que gregos e romanos começam a publicar manuais sobre mnemotécnica, como Ad Herennium (anônimo), De oratore (Cícero) e Institutio oratória (Quintiliano). Smolka diz: Podemos imaginar que formas dessa arte, eram, de fato, utilizadas pelos bardos e contadores de histórias na Antiguidade. O que Simônides introduz ou formaliza como prática é indicativo, no entanto, de certas mudanças nas formas de produção e organização social, de base exclusivamente oral, em transição para a escrita. Mudanças que transformam a posição do poeta na 10 sociedade.

São esses manuais que enfatizam a necessidade de imaginar figuras humanas incomuns, bizarras, em situações surpreendentes, dramáticas, para associá-las a palavras ou ideias, alegando que esse tipo de imagem mental seria mais eficaz na memorização do que as imagens comuns, que logo se esvaem. “Um método para

8

Estado religioso da alma inspirado pelas qualidades transcendentais da divindade. SMOLKA, 2000, p. 169 10 Id., 2000, p. 170 9


13

lembrar envolve, portanto, disciplina e arte. (...) Essas imagines agentes, essas singulis personis, vão repercutir fortemente na Idade Média”11

Ainda segundo a autora, nos séculos V e IV a.C., a tradição oral e o exercício da mimese, já enraizados na vida das pessoas, começam a se confrontar com a escrita que vai sendo lenta e gradativamente difundida através da alfabetização, caminhando para a universalização das letras. Ao mesmo tempo o conceito de psyche, atribuído a Sócrates, vai disseminando a ideia do homem como um espírito pensante, com personalidade, com um eu diferenciado da massa. Essa percepção do homem como um ser criativo vai contra qualquer prática ligada à repetição e fica assim mais difícil aceitar a mimesis.

Platão, como já vimos, teria levantado a Hipótese da Lâmina de Cera para explicar a memória, porém, vale acrescentar aqui sua crença de que “em cada indivíduo o bloco de cera tem qualidades diferentes”12 e que “uma teoria da Memória é fundamentalmente uma teoria do Conhecimento”13 e esse saber estaria latente na memória dos homens através dos arquétipos, ou seja, através de realidades que a alma conheceu antes de nascermos. Neste particular, Platão defende a concepção de que “a alma humana, antes do nascimento – antes de prender-se ao cárcere do corpo -, teria contemplado as ideias enquanto seguia o cortejo dos deuses.”14 Na encarnação o homem perderia essa memória que só seria recuperada aos poucos, conforme o reconhecimento fosse ocorrendo.

Em Fedro, Platão explica a arte da retórica como uma maneira de se levar a verdade, o conhecimento, aos homens. Segundo o filósofo, essa arte dependeria exclusivamente do conhecimento da alma, ou seja, da lembrança das ideias que ali se encontram. No Fedon, onde ele aborda a teoria das ideias, ele volta a reafirmar que é na recordação que o conhecimento da verdade reside. Claramente contrário ao uso da mimesis como treino da memória, ele manifesta-se contrário também à 11

Ibid., 2000, p. 172 Ibid., 2000, p. 173 13 Ibid., 2000, p. 173 14 PLATÃO: Vida e Obra, 1996, p. XVII 12


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lembrança pela escrita, a qual ele define como “veneno que oblitera a memória (...) perversão da atividade de lembrar”15. Agora, o lógoi in biblíois, um outro modo de falar, uma outra forma de discurso, um outro modo de lembrar: a escrita – Pharmakon – remédio e veneno. (...) As resistências e a desconfiança de Platão com relação à escrita remetem, portanto, aos deslocamentos e às transformações que a difusão do texto escrito provocava na cultura, nos modos de vida e de conhecimento das pessoas...16

Aristóteles - que, como já vimos, relaciona o registro da memória ao coração e ao fluxo sanguíneo - acaba, por outro lado, sendo o primeiro a associar memória a uma dimensão temporal. Observamos que, até agora, ou a memória é objeto de adoração ou fonte de conhecimento vindo de arquétipos da alma, e será ele, no seu tratado Da memória e da reminiscência, contido na obra Parva Naturalia, que acabará finalmente afirmando que “memória se refere ao passado”.17 De acordo com Oliveira: Em Aristóteles a força de Mnemosýne se desvanece, a memória não mais se refere a uma busca do verdadeiro ou a uma fuga da condição humana, aparece, a partir de então, incluída no tempo. Desde os primeiros momentos do tratado, Aristóteles afirma que a memória se refere ao passado. O filósofo faz, dessa forma, uma distinção entre o momento presente, objeto das sensações; o futuro, objeto da opinião e da conjectura e o passado, este sim, objeto da memória.18

Segundo o historiador e antropólogo Jean-Pierre Vernant, o mito de Mnemósine para Platão tem um significado de evasão da condição humana. Já, em Aristóteles, essa associação temporal entre memória e passado “passa a ser a marca da imperfeição humana”.19

Smolka acrescenta que, além do tempo, Aristóteles teria associado memória também às sensações, ao afeto e à imaginação. Aristóteles diz: Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer... Não diferem o historiador e o poeta por escreverem

15

SMOLKA, 2000, p. 174/176 GAGNEBIN, 1997 apud SMOLKA, 2000, p. 176 17 OLIVEIRA, 2011, p. 24 18 Id., 2011, p. 24 19 VERNANT, 1990 apud OLIVEIRA, 2011, p. 24 16


15 verso ou prosa... diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam, e o outro, as que poderiam suceder...20

Apesar de Aristóteles ter se referido ao historiador, a História, como a conhecemos hoje, é atribuída ao grego Heródoto de Halicarnassus, por ter sido ele o primeiro a apresentar uma investigação sobre um dado acontecimento, organizar essas informações e apresentá-las a um público.21 Segundo Gagnebin, “Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento”.22 Smolka complementa: Heródoto não canta mais. Ele não é inspirado pelas Musas, para falar de um tempo longínquo, dos deuses e heróis, para falar das origens. Ele procura a causa dos acontecimentos. Ele fala de um tempo dos homens, de testemunhas. Mas ele não usa documentos escritos. Ele narra – primazia da oralidade – para informar e ensinar, mas também, pelo simples prazer de contar.23

Tucídides, seu discípulo, acredita que a memória – que é frágil, enganadora, seletiva, interpretativa - não garantirá nenhuma fidelidade no relato dessa pesquisa e defende a ideia da escrita da nossa história. Será com ele, portanto, que a escrita nasce como memória, inscrevendo-se “num projeto muito mais amplo, que chamaríamos, hoje, de crítica ideológica, pois memória e tradição formam este conglomerado confuso de falsas evidências, do qual o presente tira sua justificativa”.24

Entretanto, a memória que está se fortalecendo como narrativa escrita e assinada (com autoria), dando os primeiros passos para uma organização de informações sobre os acontecimentos do mundo, envereda por uma concepção ética, por algo que será denominado como memória artificial.

Nesse sentido, o filósofo romano Cícero (século I a.C), que seguiu a filosofia platônica, resolveu descrever a memória como um componente da virtude no homem sábio. Para ele um homem sábio tem quatro virtudes principais: a fortaleza 20

ARISTÓTELES, s/d apud SMOLKA, 2000, p. 177/178 GUTERREZ, 2011 22 GAGNEBIN, 1997 apud SMOLKA, 2000, p. 178 23 SMOLKA, 2000, p. 178 24 GAGNEBIN, 1997 apud SMOLKA, 2000, p. 179 21


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(força), a justiça, a prudência e a frugalidade (temperança), e a memória estaria situada dentro da prudência, junto com inteligência e previdência. Essas virtudes serão essenciais para a teologia cristã e os dominicanos Alberto Magno (Santo Alberto) e Tomás de Aquino (São Tomás) passarão a estudar a memória dentro desse viés artificial.25 Coimbra diz: A memória artificial passa a ser um dever moral e religioso, um meio de se lembrar dos prazeres invisíveis do céu, das promessas de salvação do purgatório e das tormentas eternas do inferno. Assim se cria o imaginário medieval mostrado na pintura espiritual de Giotto e no sistema da Divina comédia.26

Santo Agostinho (século IV) vai reforçar esse tipo de memória criando, em seus textos, imagens cheias de profundidade, referindo-se a locais onde Deus reside como palácios da memória repletos de tesouros, dentre outras descrições fantásticas de lugares nos quais ele nunca esteve. Apesar disso, ele faz contribuições relevantes para o entendimento da memória, defendendo o esquecimento como parte dela e enfatizando a memória como atividade psíquica, além de falar sobre “os vestígios que as imagens deixam na alma”.27

Nesse contexto da memória artificial, em geral formada por imagens mentais oriundas da leitura de textos sagrados, surgem as teorias ocultistas, como a de Giordano Bruno (século XVI), que associam memória à cabala, à astrologia e à magia.28

Assim podemos imaginar como a História - que se pretendia fidedigna, imparcial e objetiva - se desenvolveu. No seu livro “História e memória”, Le Goff relaciona uma série de problemas ligados a essas narrativas escritas de fatos e acontecimentos, levantando a questão da impossibilidade da existência de um historiador isento de opiniões, neutro por excelência. Apesar disso, ele assinala a importância dos documentos históricos que o progresso nos trouxe, dando especial atenção aos monumentos e à fotografia. Ele diz:

25

COIMBRA, 1989 Id., 1989, p. 148 27 SMOLKA, 2000, p. 181 28 LE GOFF, 1990 26


17 Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos. (...) Em numerosos países é erigido um Túmulo ao Soldado Desconhecido, procurando ultrapassar os limites da memória, associada ao anonimato, proclamando sobre um cadáver sem nome a coesão da nação em tomo da memória comum. O segundo é a fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.29

De fato, o invento da fotografia no século XIX, encabeçado pelos franceses Niépce e Daguerre, gerou um grande interesse público seguido de uma polêmica a respeito de sua função no mundo. Sua capacidade em registrar o real foi entendida como uma espécie de duplo da realidade, uma cópia fidedigna, deixando a pintura naturalista que se praticava na época, paralisada. Era como se a fotografia fosse um espelho, uma prova irrefutável dos acontecimentos, uma memória absolutamente confiável.

Enquanto ocorrem avanços na externalização da memória através da imprensa, da fotografia e do cinema, dentre outros meios, estudos ligados à memória individual também avançam e a importância da imagem para a criação e para a manutenção da memória cresce. Bergson, em seu livro Matière et Mémoire (1896), acabará considerando “central a noção de ‘imagem’, na encruzilhada da memória e da percepção” 30.

Freud (séculos XIX e XX), com o desenvolvimento da psicanálise, será uma referência ao estudar a memória depositada no inconsciente, a relação afeto e memória, os esquecimentos, as falhas na linguagem e a imagem simbólica que permite a interpretação dos sonhos. Segundo Le Goff, em Freud “o psiquismo é representado como sendo dominado pelas recordações inconscientes, pela história oculta dos indivíduos.”31

Vygotsky (século XX) tratará de reafirmar que a lembrança se dá com o auxilio das imagens e dos signos. Segundo Smolka, 29

Id., 1990, p. 465/466 Ibid., 1990, p. 471 31 Ibid., 1990, p. 221 30


18

A afirmação de Vygotsky, colocada em interlocução com tantos outros autores, nos leva a refletir sobre a força das imagens/signos na construção da memória. Leva-nos a pensar no que as imagens criadas pelos homens acabam por produzir, no que elas instauram, o que elas encobrem... Levanos a pensar no des-controle da memória, no esvaecimento das imagens, nos esquecimentos... E nos faz indagar sobre as formas de “comunicabilidade” e de sustentação das imagens nas relações com os signos, com as palavras.32

Nessa imediata correlação entre fotografia e memória, pessoas que possuem a capacidade de lembrar com perfeição daquilo que viram ou ouviram, passam a ser identificadas como sujeitos dotados de uma memória eidética, popularmente conhecida como memória fotográfica. Entretanto, se por um lado, a palavra eidética vem do grego eidos, que significa “visto”, a palavra imagem tem origem no termo grego eidolon que significa “fantasma”, “aparição”, referindo-se justamente à presença de fantasmas de pessoas mortas, algo que a fotografia, de alguma forma, também tratará de fazer.

Será nesse elo, nesse denominador comum, entre fotografia, memória e imagem que este trabalho se desenvolverá.

32

SMOLKA, 2000, p. 184


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2. FOTOGRAFIA E MEMÓRIA

2.1 A questão do realismo na fotografia segundo Dubois

Ao que parece, tanto o invento da fotografia, quanto do cinema, satisfizeram definitivamente a busca obsessiva pelo realismo, busca essa que já aparecia na prática dos egípcios em querer embalsamar os corpos e fazer estatuetas de terracota que representassem perfeitamente os mortos, tentando se defender da ação do tempo e obter a salvação do corpo frente a inevitabilidade da morte. Com a evolução da arte e da civilização, essa função de exorcizar o tempo acabou se deslocando para a pintura, porém, a fotografia, mesmo que padecendo da ausência de cores teve, na sua reprodução mecânica, um fator psicológico definitivo de credibilidade.1

Esse entendimento da fotografia como prova irrefutável, tem seu maior argumento baseado nesse mecanicismo. Sua feitura implica apenas na presença de uma fonte de luz que deverá banhar o elemento a ser fotografado (seu referente) e, através do processo de refletividade da luz, o natural registro sobre o material fotossensível (ou sobre o sensor digital) se dá. A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se precisamente “objetiva”. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. (...) Essa gênese automática subverteu radicalmente a psicologia da imagem (...) somos obrigados a crer na existência do objeto representado (...) o poder irracional da fotografia, nos arrebata a credulidade.2

Por conta desse natural mimetismo, a fotografia foi logo entendida como um registro documental que poderia dar total suporte à memória individual ou coletiva, e seu entendimento como atividade artística dividiu opiniões. Segundo Dubois, ...de acordo com os discursos da época, essa capacidade mimética procede de sua própria natureza, de seu procedimento mecânico, que permite fazer aparecer uma imagem de maneira “automática”, “objetiva”, quase “natural” (segundo tão-somente as leis da ótica e da química), sem que a mão do 1 2

BAZIN, 1991 Id., 1991, p. 22


20 artista intervenha diretamente. Nisso, essa imagem (...) se opõe à obra de arte, produto do trabalho, do gênio e do talento natural do artista.3

Em seu livro “O ato fotográfico” (1994), Dubois faz uma extensa pesquisa sobre essa questão. Ele destaca a figura de Baudelaire, poeta e teórico da arte francesa, como tendo sido um dos primeiros a se manifestar sobre o invento dizendo que “a arte é e só pode ser a reprodução exata da natureza” 4. Baudelaire chega a comparar Daguerre - o inventor da fotografia – a um messias, que teria sido mandado por Deus para trazer à humanidade aquilo que ele chamou de arte absoluta e comparou a sociedade que saía freneticamente em busca de seus retratos a uma espécie de Narciso, de adoradores do sol, em busca de sua imagem no metal. Porém, esse discurso irônico foi sintomático do trauma sofrido pelos artistas com essa invenção já que, durante todo o século XIX, a indústria crescia, afastando, cada vez mais, o poético e o imaginário da sociedade.5

Apesar de Baudelaire ter encomendado seu retrato fotográfico duas vezes e ter manifestado seu desejo de possuir um retrato fotográfico de sua mãe, – mesmo dizendo, em uma carta, que os fotógrafos “têm manias ridículas: consideram uma boa imagem a imagem em que todas as verrugas, todas as rugas, todos os defeitos (...) tornam-se muito visíveis”6 - ele procura deixar clara a distinção entre fotografia como memória e arte como criação. Ele diz: o “novo sol” adorado pela multidão idólatra é com certeza a luz que entra na caixa escura, imprime a imagem, sem que o fotógrafo tenha algo a ver com isso: ele contenta-se em assistir à cena, não passa de um assistente da máquina. (...) É portanto necessário que ela volte a seu verdadeiro dever, que é o de servir ciências e artes, mas de maneira bem humilde, como a tipografia e a estenografia, que não criaram nem substituíram a literatura. (...) Que salve do esquecimento as ruínas oscilantes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma desaparecerá e que necessitam de um lugar nos arquivos de nossa memória, seremos gratos a ela e iremos aplaudí-la. Mas se lhe for permitido invadir o domínio do impalpável e do imaginário, tudo o que só é válido porque o homem lhe acrescenta a alma, que desgraça para nós! 7

3

DUBOIS, 1994, p. 27 BAUDELAIRE, 1859 apud DUBOIS, 1994, p. 28 5 DUBOIS, 1994 6 BAUDELAIRE, 1859 apud DUBOIS, 1994, p. 54 7 Id., 1994, p. 28 4


21

Em resumo, o que Baudelaire parece criticar não é a fotografia em si, mas sim, sua utilização, pois se arte é criação, será graças à fotografia que a pintura se verá libertada da necessidade de reproduzir o real. Bazin diz: Niepce e Lumiére foram os seus redentores. A fotografia (...) liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança. (...) a fotografia e o cinema são descobertas que satisfazem definitivamente, por sua própria essência, a obsessão do realismo.8

Identificada com o registro do real, a fotografia avança buscando aprimoramentos que tornem o resultado cada vez mais próximo do olhar humano: ocorrem melhorias nas lentes, surgem a fotografia colorida e a fotografia estereoscópica, com sua ilusão tridimensional superior a qualquer pintura realista feita pela mão humana. A fotografia se rende à sua vocação documental, ela é a própria essência da memória.

Vale destacar que essa concepção é tão forte que, 140 anos depois do invento da fotografia, o filósofo francês Roland Barthes, ainda irá prolongar esse assunto ao publicar o livro A Câmara Clara. O ensaio, longe de ser um tratado sobre fotografia, discorre sobre as experiências do próprio autor ao observar algumas fotografias. Logo numa primeira abordagem ele diz que uma foto “jamais se distingue de seu referente”9 e complementa: Por natureza, a Fotografia (...) tem algo de tautológico10: um cachimbo, nela, é sempre um cachimbo, intransigentemente. Diríamos que a Fotografia sempre traz consigo seu referente, (...): estão colados um ao outro, membro por membro, como o condenado acorrentado a um cadáver em certos suplícios; ou ainda semelhantes a esses pares de peixes (os tubarões, creio eu, segundo diz Michelet) que navegam de conserva, como que unidos por um coito eterno.11

Por conta disso, Barthes, ao começar a esboçar suas primeiras impressões a respeito da fotografia, percebe que “uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos”12, ou seja, deixamos de ver o significante fotográfico para ver o elemento fotografado em si, olhamos através dela e não para ela.

8

BAZIN, 1991, p. 21 BARTHES, 1984, p. 14 10 Relativo à tautologia, vício de linguagem que consiste em dizer, por formas diversas, sempre a mesma coisa. 11 BARTHES, 1984, p. 15 12 Id., 1984, p. 16 9


22

Dubois assinala que no século XX esse discurso sobre o realismo da fotografia sofre um deslocamento. Começa a ficar mais claro que a inegável presença do referente nem sempre produz na fotografia o efeito de mimese com a fidelidade esperada. Na verdade, o que se percebe, é que existe na fotografia um traço transferido do referente para a sua reprodução, mas isso não significa que esse traço se pareça com ele. O autor esclarece: “se, de maneira geral, o discurso do século XIX sobre a imagem fotográfica é o da semelhança, seria possível dizer, sempre globalmente, que já o século XX insiste mais na ideia da transformação do real pela foto”13.

Essa concepção desconstrutora da fotografia surge impulsionada pelas novas teorias da imagem que o século XX traz, como a psicologia da percepção, os estudos de imagem de caráter ideológico e os discursos antropológicos da foto, que vão enfatizar que “a foto é eminentemente codificada” 14.

A primeira dessas análises desconstrutoras surge com as teorias da percepção e com algumas apreciações feitas especialmente pelo psicólogo alemão behaviorista, Rudolf Arnheim. Ele diz: ...em primeiro lugar, a fotografia oferece ao mundo uma imagem determinada ao mesmo tempo pelo ângulo de visão escolhido, por sua distância do objeto e pelo enquadramento; em seguida, reduz, por um lado, a tridimensionalidade do objeto a uma imagem bidimensional e, (...); finalmente, isola um ponto preciso do espaço-tempo e é puramente visual (...), excluindo qualquer outra sensação olfativa ou tátil.15

Em seguida surgem diversas análises que poderíamos chamar de ideológicas, ou seja, análises engajadas que vão contestar a neutralidade e a objetividade da fotografia. Um dos textos mais famosos a esse respeito, desenvolvido justamente após maio de 196816, é de autoria do crítico e teórico do cinema Jean-Louis Baudry. Para ele, os aparelhos óticos (fotografia e cinema), constroem imagens análogas às elaboradas no Renascimento italiano e é essa construção perspectivista que é aplicada na fotografia, produzindo-se aqui o que ele chamou de perspectiva artificialis, observando que ela terá como efeito, 13

DUBOIS, 1994, p. 36 Id., 1994, p. 37 15 ARNHEIM, 1957 apud DUBOIS, 1994, P. 38 16 Movimento ocorrido na França marcado por manifestações públicas contra o governo que teve inicio em maio de 1968. 14


23

... um recentramento – ou, pelo menos, um deslocamento do centro -, indo se fixar no olho, o que significa assegurar a instalação do “sujeito” como foco ativo e origem do sentido. Sem dúvida, poder-se-ia questionar o lugar privilegiado que as máquinas óticas parecem ocupar no ponto de cruzamento da ciência com as produções ideológicas. (...) Sua base científica lhes assegura uma espécie de neutralidade e evita que se tornem objeto de questionamento.17

Essa mesma concepção ideológica já havia sido desenvolvida anteriormente por Hubert Damish (1963) e Pierre Bourdieu (1965), ambos insistindo “no fato de que a câmara escura não é neutra e inocente, mas que a concepção de espaço que ela implica é convencional e guiada pelos princípios da perspectiva renascentista” 18. A esse respeito Pierre Bourdie diz: Se a fotografia é considerada um registro perfeitamente realista e objetivo do mundo visível é porque lhe foram designados (desde a origem) usos sociais considerados “realistas” e “objetivos”. E, se ela se propôs de imediato com as aparências de uma “linguagem sem código nem sintaxe”, em suma de “uma linguagem natural”, é antes de mais nada porque a seleção que ela opera no mundo visível é completamente conforme, em sua lógica, à representação do mundo que se impôs na Europa desde o Quatroccento.19

Dubois também destaca os discursos desconstrutores do efeito de real na fotografia, publicados pela revista de cinema Cahiers de Cinema nos anos 70. Dentre os inúmeros textos no plano ideológico, um de seus colaboradores, Alain Bergala, publica, em 1976, um artigo chamado “La pendule”, denunciando especialmente a fotografia

de

imprensa

(foto-scoop)

e

seu

poder

em

produzir

imagens

estereotipadas, controladas, encenadas, imprimindo no imaginário coletivo uma espécie de memória que marca, para sempre, um dado acontecimento histórico. Bergala diz: Antes de mais nada, o espaço da representação fotográfica não deve deixar que dele se suspeite como espaço de enunciação. Constrói-se pela grande angular como um espaço envolvente no qual nos encontramos capturados brutalmente, mas sempre como por acaso, por acidente (...). A grande angular trabalha maciçamente em benefício do humanismo choramingão; isola o personagem, a vítima, em sua solidão e dor...20

17

BAUDRY, 1983, p. 384 DUBOIS, 1994, p. 39 19 BOURDIE, 1965 apud DUBOIS, 1994, p. 40 20 BERGALA, 1976 apud DUBOIS, 1994, p. 41 18


24

Com a ideia da fotografia como documento exato do fato ocorrido, desmoronando, surge, em 1981, um artigo publicado pelo fotógrafo Allan Sekulla, que comprova a codificação cultural da imagem fotográfica. O artigo denominado On the invention of photography meaning, diz: O antropólogo Melville Herskövits mostrou (…) a uma aborígene uma foto de seu filho. Ela foi incapaz de reconhecer a imagem até o antropólogo atrair sua atenção para os detalhes da foto (...). A fotografia não comunica qualquer mensagem para aquela mulher até que o antropólogo a descreva para ela. Uma proposta, como “isto é uma mensagem” e “isto está no lugar de seu filho”, é necessária à leitura da foto. Uma transposição para a língua que torne explícitos os códigos que procedem à composição da foto é necessária para sua compreensão pelo aborígene. O dispositivo fotográfico é, portanto, de fato um dispositivo codificado culturalmente.21

Frente a essas revelações, como continuar acreditando na fotografia transparente, inocente e realista? Seria, de fato, a fotografia um objeto de memória confiável ou, na verdade, ela seria fruto de um conceito pré-estabelecido pelo fotógrafo, que cria uma espécie de falsos documentos nos quais apoiaremos nossas memórias?

Neste ponto, Dubois estabelece um paralelo entre a fotografia e a semiótica desenvolvida por Ch. S. Peirce, identificando-a, primeiramente, como ícone (representação por semelhança) e, posteriormente, como símbolo (representação por convenção real, na qual faz-se necessária uma carga cultural e histórica para que o observador possa decodificar a mensagem implícita nela) e assinala que foi apenas após a sua desconstrução como efeito do real e como mimese que ela volta a tratar da aderência do real na fotografia, identificando-a finalmente com a ideia de índice, por ser traço de um real. Ele diz que: De fato, tal impulso nas reflexões atuais pode ser compreendido principalmente pela evolução das concepções, tal como se retraçou seu percurso até aqui: seria necessário passar pela fase negativa de desconstrução do efeito do real e da mimese para poder recolocar finalmente, positivamente, mas de outra forma, a questão da pregnância do real na fotografia. Nesse sentido, os discursos denunciadores das ilusões da foto-espelho, tanto pela moda semiótica-estruturalista quanto pela onda das críticas ideológicas, terão permitido (...) voltar a questão do realismo referencial sem a obsessão de se cair no ardil do analogismo mimético, livre da angústia do ilusionismo.22

21 22

SEKULLA, 1981 apud DUBOIS, 1994, p. 42 DUBOIS, 1994, p. 45-46


25

Para Dubois, esses mesmos eixos, o semiótico e o ideológico, que desconstruíram a identificação com o real, irão, agora, tornar a debater a ligação da imagem fotográfica com seu referente de maneira mais nítida. Ele salienta que não foi por acaso que um autor como Barthes insiste, em plena década de 1980, a, ainda, discutir a questão da mimese. Não teria sido por acaso também que, no mesmo ano em que Bergala critica a fotografia de imprensa, Pascal Bonitzer publica um artigo na própria revista Cahiers de Cinema, dizendo que apesar dele concordar com as análises feitas por Bergala de que há uma ideologia, algo de estereotipado, nas fotos-documentos, é indiscutível que aquela cena, de fato, ocorreu na frente da câmera e do fotógrafo.

Com a ideia de aderência do referente voltando ao círculo de discussão é que, neste terceiro momento, irá se levantar a questão de que essa impressão com a luz regida pelas leis da física “não implica a priori nem que se passe por um aparelho de fotografia, nem que a imagem obtida se pareça com o objeto do qual é o traço. A mimese e a codificação perceptual da câmara escura não são seu princípio”23.

Um exemplo dessa concepção pode ser observado em toda uma gama de fotografias obtidas sem câmera, através da técnica do fotograma 24, como nos trabalhos de Moholy-Nagy e de Man Ray, por exemplo. Poderíamos incluir aqui também os diversos trabalhos feitos com a aplicação de química reveladora sobre papel fotográfico, feitos, por exemplo, pelo artista Maurice Tabard, que resultavam em imagens abstratas, sem referente. Ou mesmo a técnica de solarização 25, cujo efeito resulta numa distorção dos detalhes reais de uma imagem, como em alguns trabalhos de Raoul Ubac que parecem “obter o irreal no próprio plano da realidade”26, além de diversas outras técnicas nas quais o referente é parcial ou totalmente ausente, afastando completamente a ideia da fotografia como objeto de memória.

23

Id., 1994, p. 50 Técnica que implica na colocação de objetos sobre uma folha de papel fotográfico sobre os quais se deposita uma fonte de luz e posterior revelação. 25 Técnica de laboratório que consiste na inversão parcial dos tons de uma imagem feita através de uma rápida exposição à luz antes da completa fixação dessa imagem. 26 ARTES Visuais: Cultura e Criação, 2005 24


26

Outra questão que passou a ser considerada é que todas as decisões tomadas pelo fotógrafo antes da execução da fotografia – que câmera ele vai usar, qual lente, que filme será utilizado (no caso de uma câmera analógica), como ele vai definir o estilo de suas imagens (no caso do digital), quais regulagens serão feitas em termos de foco, abertura, velocidade, qual será seu ponto de vista – e depois da sua execução – edição, manipulação, revelação (no caso do analógico), difusão, tiragem – fazem com que o registro do traço seja apenas um momento neste conjunto de atitudes que envolvem o fazer fotográfico.

Com isso, segundo Barthes, mesmo nos casos em que o referente é identificado na foto, na sua representação por semelhança, poderíamos dizer que uma foto até pode funcionar como testemunho: atestar sua existência, mas não o sentido de uma realidade. E completa: ... a lógica do índice que hoje assinalamos no centro da mensagem fotográfica utiliza plenamente a distinção entre sentido e existência: a fotoíndice afirma a nossos olhos a existência do que ela representa (...), mas nada diz sobre o sentido dessa representação (...). O referente é colocado pela foto como uma realidade empírica, mas “branca”, (...) sua significação continua enigmática para nós, a não ser que sejamos participantes da situação de enunciação de onde a imagem provém. Como índice, a imagem fotográfica não teria outra semântica que não sua própria pragmática. (...) Vemos que estamos muito longe (...) dos discursos da mimese.27

Nessa terceira concepção, na qual a imagem obtida não pode se separar do ato de sua feitura, até podemos ter a atestação da existência de um referente, porém, não há garantia de que ela se assemelhe a algo e/ou que tenha algum tipo de significado inerente.

2.2 Ver e memorizar segundo Pinker

No final dos anos de 1990, o psicólogo Steven Pinker publica um livro intitulado Como a mente funciona, que tenta explicar como o homem se relaciona com o mundo, baseando-se na teoria da evolução de Darwin e nas modernas teorias da cognição, incluindo-se aqui as teorias computacionais. Logo no inicio do livro ele

27

DUBOIS, 1994, p. 52


27

levanta a seguinte pergunta: “O que é necessário para construir um robô?”28. O autor começa a formular hipóteses sobre as habilidades humanas simples, incluindo-se aí o ato de enxergar. Ele diz que “nos filmes frequentemente nos mostram uma cena da perspectiva do olhar de um robô, com a ajuda de convenções artísticas como a distorção das lentes olho-de-peixe ou a retícula de fios cruzados”29, porém ele esclarece que isso funciona num filme pois nós, os espectadores, já temos a equação olhos x cérebro funcionando. Um robô veria o mundo como uma sequência de números, alguns mais baixos outros mais altos, representando o brilho de cada minúscula parte que compõe o campo visual, assim como uma câmera eletrônica o faria. Ele diz que essa forma de ver pode até se assemelhar às... ...taxas de disparo de algumas das fibras nervosas que vão do olho ao cérebro quando uma pessoa olha para uma mão. Para reconhecer objetos e não trombar com eles, o cérebro de um robô - ou um cérebro humano precisa processar laboriosamente esses números e adivinhar que tipos de objetos existentes no mundo refletem a luz que os fez aparecer. O problema é humilhantemente difícil.30

Após conseguir processar o que está à frente do que está atrás e de separar um objeto do outro, enfrenta-se o problema de distinguir o que é claro do que é escuro, algo que nem a melhor das câmeras fotográficas consegue fazer. A câmera não mente; se deixada a seus próprios recursos, ela mostra cenas ao ar livre como leite e cenas de interior como lama. Os fotógrafos, e às vezes microchips existentes na câmera, com jeitinho persuadem o filme a fornecer uma imagem realista, servindo-se de truques como regulagem do tempo do obturador, aberturas das lentes, velocidades de filme, flashes e manipulações na câmara escura. Nosso sistema visual faz muito melhor. De algum modo, ele permite que vejamos o brilhante carvão ao ar livre como um objeto preto e a escura bola de neve dentro de casa como algo branco. Esse é um resultado adequado, pois nossa sensação consciente de cor e luminosidade condiz com o mundo como ele é em vez de com o mundo como ele se apresenta aos olhos. (...) A harmonia entre como o mundo parece ser e como ele é tem de ser uma realização de nossa magia neural, pois preto e branco não se anunciam simplesmente na retina.31

O curioso é que depois de reconhecer a imagem nos diferentes planos, diferenciar as cores dos objetos nas diferentes fontes de iluminação, de resolver o problema da óptica invertida e de lidar com a tridimensionalidade do mundo real, o cérebro, ao 28

PINKER, 2001, p. 15 Id., 2001, p. 15 30 Ibid., 2001, p. 16 31 Ibid., 2001, p. 17-18 29


28

ser colocado diante de uma tela de TV, do cinema ou mesmo da visualização de um slide, se comporta da maneira habitual – enraizada pelos anos e anos de treinamento da espécie – e acredita estar frente à própria realidade, mesmo sabendo que não. Essa forma condicionada de enxergar é a responsável por cairmos nas armadilhas das ilusões de óptica (incluindo-se aqui a perspectiva) que tanto fascínio exercem sobre as pessoas. Ele diz: A fascinação que elas exercem é óbvia. "Em quem você vai acreditar, em mim ou em seus olhos?", pergunta Groucho Marx a Margareth Dumont, jogando com nossa fé em que a visão é o caminho certo para o conhecimento. E o que dizem as expressões: bem se vê que; ver para crer; temos uma testemunha ocular; vi com meus próprios olhos. Mas se uma imagem diabólica pode nos fazer ver coisas que não estão ali, como poderemos confiar em nossos próprios olhos em outras ocasiões?32

Nessa mediação do aparelho perceptivo com o mundo é que o homem vai apreendendo a realidade que o cerca valendo-se de, no mínimo, quatro tipos principais de representação: a imagem visual, a representação fonológica, a gramatical e, segundo Pinker, o mentalês, ou seja, o pensamento conceitual.

No tocante às imagens visuais, elas vão se transformando em imagens mentais, incorporando-se à memória. Esse processo usa... ...um esboço bidimensional que em vários aspectos assemelha-se a uma figura. Ele é um mosaico de elementos que representam pontos no campo visual. Os elementos são dispostos em duas dimensões, de modo que elementos vizinhos no arranjo representam pontos vizinhos no campo visual. As formas são representadas inserindo-se alguns dos elementos em um padrão que corresponde aos contornos projetados da forma. Mecanismos de análise de formas (...) processam informações no esboço sobrepondo referenciais (...). Uma imagem mental é simplesmente um padrão (...) que é trazido da memória (...) e não dos olhos.33

Pinker destaca que, apesar das imagens mentais serem uma faculdade humana complexa e bem articulada, não é possível reconstituir toda uma cena vista, ou seja, as imagens mentais são fragmentárias. Ele diz: Recordamos vislumbres de partes, as quais arranjamos em um quadro mental, fazendo depois malabarismos para reavivar cada parte quando ela desbota. E o pior: cada vislumbre registra apenas as superfícies visíveis de 32 33

Ibid., 2001, p. 227-228 Ibid., 2001, p. 305


29 um ponto de observação, distorcidas pela perspectiva. (...) Para lembrar um objeto, nós o viramos de um lado e do outro ou andamos em volta dele, e isso significa que nossa lembrança dele é um álbum de visões separadas.

Ou seja, a imaginação não está condicionada a um ponto de vista e a um momento específico, como numa fotografia. O que uma fotografia ou pintura ou desenho podem fazer é evocar uma imagem mental, mas isso, mesmo uma pintura ou desenho sem o auxílio da perspectiva, podem.

Outra limitação é a de que as imagens precisam sofrer algum tipo de organização da memória para serem acessadas e não haveria espaço suficiente para armazenar tudo o que apreendemos do mundo. Ele diz: Não seria possível nosso conhecimento do mundo caber em uma grande figura ou mapa. (...) E nossa memória visual também não poderia ser, proveitosamente, uma caixa de sapatos repleta de fotografias. Não haveria modo de encontrar a que você precisa sem examinar cada uma para reconhecer o que há nela. (...) As imagens da memória têm de ser rotuladas e organizadas em uma superestrutura proposicional, talvez um tanto semelhante à hipermídia, onde arquivos gráficos são associados a pontos de anexação em um grande texto ou base de dados. O pensamento visual com freqüência é governado mais intensamente pelo conhecimento conceitual que empregamos para organizar nossas imagens do que pelos próprios conteúdos das imagens.34

Além disso, Pinker esclarece que apesar da memória estar, de fato, povoada de imagens mentais, essas imagens não tem o poder de representar conceitos abstratos (liberdade, fraternidade), conceitos negativos (um não lugar, uma não música), conceitos disjuntivos (ou um gato ou um pássaro) nem proposições (todos os homens são mortais). E é aí que entra o pensamento. Ele diz: Se uma imagem mental é usada para representar um pensamento, precisa ser acompanhada por uma legenda, um conjunto de instruções sobre como interpretá-la - em que prestar atenção, o que desconsiderar. As próprias legendas não podem ser imagens, ou voltaríamos ao ponto de partida. Quando sai de cena a visão e entra o pensamento, não há como contornar a necessidade de símbolos abstratos e proposições que selecionem aspectos de um objeto para a mente manipular. (...) Em algum ponto entre contemplar e pensar, as imagens precisam dar lugar às idéias.35

Mesmo com toda essa limitação, as “artes da memória” ou mnemotecnia vão se valer das imagens mentais para criar uma espécie de banco de dados no qual a 34 35

Ibid., 2001, p. 313-314 Ibid., 2001, p. 316-317


30

base do sistema deve ser um lócus, ou seja, uma topografia onde se possa percorrer em pensamento com facilidade (como os cômodos de uma casa, partes do corpo, etc.) onde serão depositadas as imagines, “que, na maioria das vezes são signos simbólicos, alegóricos, compósitos”36, de preferência impressionantes, que poderão ser apagados conforme não formos mais precisando rememorar aquele item específico. Segundo Dubois, nas técnicas de mnemotecnia, há... ...como que uma dupla natureza que trabalha as imagines: por um lado, a referência permanece constante na escrita, nas figuras do escritural (o autor anônimo de Ad Herennium recorre também a essa definição: “a arte da memória é exatamente como uma escrita interior”); e, por outro, elas traduzem evidentemente a valorização que é feita do sentido da visão (Cícero de novo: “de todas as nossas impressões, as que se fixam mais profundamente na mente são as que nos foram transmitidas pelos sentidos; ora, de todos os sentidos, o mais sutil é a visão; recorrer à imagem é, portanto, o meio mais seguro de conservar a lembrança de algo, mesmo se se tratar de uma palavra, ou de um pensamento” – De oratore II, 87, 357). (...) E é por aí, sem dúvida, que a arte da memória alcança a fotografia (imagem mental)...37

De uma forma geral, a memória é uma das funções mentais mais estudadas pela psicologia cognitiva que empreende pesquisas bem específicas sobre sua codificação, armazenamento e evocação. É na ciência cognitiva que vamos encontrar subdivisões dos diferentes tipos de memória que o ser humano utiliza diferenciando as de curto prazo das de longo prazo, das autobiográficas, das episódicas e das sensoriais. Entretanto, trata-se de um ramo da psicologia que não se aprofunda na noção de inconsciente, “onde” as memórias se armazenam.

2.3 O inconsciente e as metáforas freudianas sobre memória

Um dos primeiros teóricos a falar no inconsciente foi o filósofo francês Henri Bergson. Foi ele quem publicou, em 1896, o livro Matéria e Memória, no qual ele traça relações entre memória e inconsciente dizendo que “o passado se conserva inteiro e independente no espírito; e que o seu modo próprio de existência é um modo inconsciente”.38 O que ele quer dizer com isso é que toda lembrança de um ser humano está sempre potencialmente em estado latente, abaixo do nível da consciência, ou seja, no inconsciente. Ele diz: 36

DUBOIS, 1994, p. 315 Id., 1994, p. 316 38 BOSI, 1979, p. 14 37


31

... o papel da consciência, quando solicitada a deliberar, é sobretudo o de colher e escolher, dentro do processo psíquico, justamente o que não é a consciência atual, trazendo-o à sua luz. Logo, a própria ação da consciência supõe o “outro”, ou seja, a existência de fenômenos e estados infraconscientes que costumam ficar à sombra. É precisamente nesse reino 39 de sombras que se deposita o tesouro da memória.

No livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, a psicóloga Ecléa Bosi esclarece que, para Bergson, a lembrança é uma espécie de sobrevivência do passado que se conserva dentro do espírito de cada ser humano e que “aflora à consciência na forma de imagens-lembrança. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos devaneios”40.

Freud não apenas aperfeiçoou como modificou a ideia dizendo que o inconsciente faz parte do sistema psíquico juntamente com o consciente e o pré-consciente. O estudo do inconsciente e da memória em Freud é extremamente complexo, fruto da experiência direta com seus pacientes. Em A Interpretação dos Sonhos, escrito entre 1900/1901, ele diz: É o sistema perceptivo, que não tem capacidade de reter modificações e, assim, não possui memória, que supre nossa consciência com toda a multiplicidade das qualidades sensórias. Por outro lado, nossas lembranças – sem excetuar aquelas que se acham mais profundamente gravadas em nossas mentes – são, em si próprias, inconscientes. Elas podem ser tornadas conscientes, mas não pode haver dúvida de que podem produzir todos os efeitos enquanto se acham numa condição inconsciente.41

Segundo ele, “restam traços em nosso aparelho psíquico, das percepções que com ele colidem. A eles podemos descrever como ‘traços de memória’ e à função que lhe é relacionada damos o nome de ‘memória’.”

42

. Esses traços mnêmicos permanecem

na psique em estado latente. Para ascender à consciência essa memória precisaria passar pelo pré-consciente, que faz uma seleção do que pode e do que não pode ascender. Em geral, o que não provoca desprazer ascende com facilidade, mas o que incomoda e que, por conseguinte, é o mais importante no tratamento

39

Id., 1979, p. 14 Ibid., 1979, p. 15 41 FREUD, 1972, p. 575-576 42 Id., 1972, p. 574 40


32

psicanalítico, esse material, para se manifestar, dependeria da regressão induzida ou da ocorrência espontânea nos atos falhos ou nos sonhos, por exemplo.

Como se sabe, a vida psíquica, para Freud, sempre foi concebida em termos de aparelho. Dubois, no livro O ato fotográfico e outros ensaios, dedica um capítulo à teoria freudiana, denominado Palimpsestos43: A fotografia como aparelho psíquico (princípio de distância e arte da memória). Dubois explica que esse aparelho psíquico contém “a ideia de dispositivo, de transmissão e de transformação de energia, a ideia de funcionamento e de trabalho (a elaboração psíquica), de organização no espaço, de arranjo com funções localizadas (as tópicas) etc.” 44

Freud utilizava a expressão aparelho psíquico mais como um modelo, uma figura de linguagem, do que se referindo a um órgão visível e palpável. Esse conceito tem um caráter didático, uma forma de tentar compreender algo, para ele, abstrato, que precisaria ser descrito e definido. Dessa forma, o aparelho psíquico é uma espécie de “ficção” e Freud utilizará uma série de metáforas para descrevê-lo.

Dubois investiga três metáforas importantes na obra de Freud, das quais vamos nos ater a duas: as metáforas arqueológicas e as metáforas fotográficas. Segundo o autor, apesar de Freud nunca ter desenvolvido especificamente uma teoria da memória, ideias sobre como ela se inscreve no psíquico e como elas lá se mantém surgem nas metáforas arqueológicas: uma sobre a cidade de Roma – no inicio do livro Mal-estar na civilização - e outra sobre a cidade de Pompéia - no texto Delírio e sonhos na “Gradiva” de Jensen.

Logo no inicio de Mal-estar na civilização, Freud diz: Nada na vida psíquica consegue se perder, nada do que se formou desaparece, tudo é conservado de uma maneira qualquer e pode reaparecer em certas circunstâncias favoráveis, por exemplo, durante uma regressão suficiente.45

43

Manuscritos sob cujo texto se descobre a escrita ou escritas anteriores. DUBOIS, 1994, p. 317-318 45 FREUD, 1971 apud DUBOIS, 1994, p. 319 44


33

A fim de esclarecer essa ideia, Freud utiliza a cidade de Roma como modelo. Ele diz que Roma é, ao mesmo tempo, Ruína – possui vários tempos sobrepostos, várias camadas

históricas,

tudo

fragmentado,

incompleto,

parcialmente

destruído,

sedimentado – e Cidade Eterna – possui a perenidade e a conservação integral no imaginário. Dubois diz: Questão de ângulo de visão e de rotação que autoriza uma espécie de transparência do olhar. Roma cidade virtual, como as memórias de mesmo nome, onde bastaria, em espírito, fazer o olhar girar para que cada visão (...) revelasse um aspecto intacto seu, imagem após imagem, camada após camada, como páginas de fotografias acumuladas – e em três dimensões. Um holograma, em suma, ou uma imagem de síntese.46

Em Delírio e sonhos na “Gradiva” de Jensen, Freud discute a noção de recalcamento. Freud diz que é o recalcamento que torna a lembrança inacessível. É ele que “o conserva intacto, só pode ser comparado (...) ao enterramento, como o sofrido no destino de Pompéia e fora do qual a cidade conseguiu renascer sob o trabalho da pá”47. Segundo Dubois, Freud estaria fazendo, aqui, uma analogia entre recalcamento e enterramento e se referindo ao renascimento da cidade como o retorno do recalcado, como uma espécie de exumação. Dubois diz: Ora, essa preservação só é possível pela instantaneidade do enterramento, que tornou Pompéia, ao final de uma catástrofe única, uma cidade suspensa de repente para todo o sempre. Pompéia só nos oferece de seu passado uma única imagem, uma única camada/corte histórico, mas no-la fornece quase intacta.(...) Uma verdadeira cidade fotográfica.48

Em paralelo à essas metáforas arqueológicas, Freud também utilizou em seus textos diversas metáforas fotográficas. Uma delas diz respeito à própria câmera fotográfica e ao processo de revelação de uma imagem. Segundo Dubois: ...por um lado (o lado Pompéia), Freud fará referência ao próprio aparelho fotográfico, à sua parte ótica e mecânica, ao sistema “objetiva-cofre” – como se diz, o sistema “Percepção-Consciência”; por outro (o lado Roma), remeterá à imagem fotográfica, à sua parte química e (...) ao processo de revelação (o papel da imagem latente, a passagem do negativo ao positivo).49

46

DUBOIS, 1994, p. 319 FREUD, 1979 apud DUBOIS, 1994, p. 320 48 DUBOIS, 1994, p. 320-321 49 Id., 1994, p. 322 47


34

Por várias vezes Freud fez comparações entre a psique humana e a câmara fotográfica, ou eventualmente o microscópio ou a luneta. São sempre aparelhos formados por diversas partes, com algum tipo de entrada para captação do mundo exterior, um sistema de focagem, algum tipo de travessia para essas percepções seguirem rumo a uma superfície onde serão inscritas.

Dubois assinala que apesar de Freud não conhecer fotografia em profundidade, ele distingue as três fases com exatidão: a imagem do inconsciente é a imagem latente (na qual nada se pode ver, nem se sabe ao certo o que foi inscrito ali), a do préconsciente é a imagem negativa (semivisível, não completamente revelada) e a do consciente é a imagem positiva (já transposta em papel). Dubois acrescenta: Se tudo se inscreve na memória psíquica e ali permanece gravado intacto, nem tudo volta. O recalcamento é originário, e sempre haverá restos perdidos, parcelas inacessíveis à consciência. Sempre haverá uma parcela de imagem invisível. Ou melhor, sempre haverá invisível na imagem. Sempre haverá uma espécie de latência no positivo mais afirmado, a virtualidade de algo que foi perdido (ou transformado) no percurso. Nesse sentido a foto será sempre assombrada. Sempre será, em (boa) parte, uma imagem mental.50

Nesse sentido, Dubois acredita que as fotografias podem ser consideradas como as lembranças encobridoras que Freud utiliza ao falar da interpretação dos sonhos. Um sonho pode trazer uma imagem em lugar de outra, encobrindo-a, e caberá ao analista desvendar a imagem original. Ele explica: A foto? Não acreditar (demais) no que se vê. Saber não ver o que se exibe (e que oculta). E saber ver além, ao lado, através. Procurar o negativo no positivo, e a imagem latente no fundo do negativo. Ascender da consciência da imagem rumo à inconsciência do pensamento. Refazer de novo o caminho do aparelho psíquico-fotográfico, sem fim. Atravessar as camadas, os extratos, como o arqueólogo. Uma foto não passa de uma superfície. Não tem profundidade, mas uma densidade fantástica. Uma foto sempre esconde outra, atrás dela, sob ela, em torno dela.51

Dubois ainda acrescenta que na execução da fotografia ocorre uma separação entre a imagem capturada e o mundo real (princípio de distância), separação essa que se dá “no momento exato da exposição, no intervalo preciso entre a abertura e o fechamento do obturador, (...) como uma lâmina de guilhotina que cortasse 50 51

Ibid., 1994, p. 325-326 Ibid., 1994, p. 326


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definitivamente o cordão umbilical que vincula a imagem ao mundo” 52. Numa comparação com o funcionamento das câmeras reflex, Dubois diz que, pelo fato do espelho ter que se levantar para dar passagem à luz refletida, o fotógrafo acaba sem ver o mundo real justamente no momento da exposição do filme (ou sensor digital) à luz, ficando “cego” durante esse precioso tempo. Vale a pena assinalar aqui, que na maioria dos equipamentos fotográficos, incluindo-se os analógicos ou digitais não reflex, esse mesmo fenômeno de invisibilidade se dá, ou seja, “o olho jamais vê aquilo que está fotografando. Ou ainda: fotografar é não ver” 53. Ele avança dizendo: É aqui que o ato fotográfico alcança o mito de Orfeu: de volta dos Infernos, Orfeu, que não aguenta mais, no auge de seu desejo, transgride finalmente o proibido. Ao sair das Trevas, volta-se para Eurídice, a vê e, na fração de segundo em que seu olhar a reconhece e a apreende na Luz, de uma só vez, ela desaparece. Desse modo, qualquer fotografia, no momento em que é feita, remete para sempre seu objeto ao reino das sombras. 54

Essa separação, segundo ele, se amplia com o fato de que, na fotografia analógica, a imagem capturada permanecerá latente até a sua revelação. Essa afirmação poderia parecer datada, porém ele observa que essa latência pode durar de horas a anos ou apenas alguns segundos, no caso das câmeras instantâneas como a Polaroid, que poderíamos ampliar, na atualidade, para a fotografia digital.

Nesse lapso de tempo, hoje bastante reduzido, a imagem, segundo Dubois, estaria num estado virtual, seria uma espécie de fantasma de imagem. Ele diz: ... é exatamente o momento entre as duas fases, está entre um real que já não está mais ali, que foi levado pelo tempo que passa, e uma imagem que ainda não está ali, que está para chegar numa época próxima ou longínqua, mas necessariamente ulterior. A imagem latente só pode então ser uma imagem duplamente sonhada: sonho do que não existe mais e do que ainda não é, é a encarnação da própria distância que fundamenta a fotografia. 55

Quando a fotografia está visível, ou seja, já se encontra em estado manifesto, vem o momento da contemplação no qual também se aplica o princípio de distância. O espectador olha o objeto foto que está à sua frente, no aqui e agora do mundo, observando na imagem algo (o referente) que esteve à frente da câmera num tempo 52

Ibid., 1994, p. 312 Ibid., 1994, p. 312 54 Ibid., 1994, p. 312 55 Ibid., 1994, p. 313 53


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anterior, sentindo seu efeito de ausência (espacial e temporal) e a impossibilidade de tocá-lo. Dubois diz: Ver, ver, ver – algo que necessariamente esteve ali (um dia, em algum lugar), que está tanto mais presente imaginariamente quanto se sabe que atualmente desapareceu de fato – e jamais poder tocar, pegar, abraçar, manipular essa própria coisa, definitivamente desvanecida, substituída para sempre por algo metonímico56, um simples traço de papel que faz as vezes de única lembrança palpável. Frustração ainda mais forte porque o substituto indiciário, ao mesmo tempo que assina a ausência efetiva do referente, se concede, como representação, como um objeto concreto, material, dotado de uma consistência física real (...) justamente quando nos mostra apenas a ausência.57

Ou seja, em fotografia, o produto final é sempre um registro de uma realidade para sempre desaparecida, como as memórias enterradas no inconsciente, “feita de distância na proximidade, de ausência na presença, de imaginário no real (...) única aparição de um longínquo, por mais próximo que esteja”58.

56

Tropo que consiste em designar um objeto por palavra designativa doutro objeto que tem com o primeiro algum tipo de relação, exemplo: trabalho por obra, copo por bebida, bandeira por pátria; transnominação. 57 DUBOIS, 1994, p. 313-314 58 Id., 1994, p. 314


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3. A SÉRIE AMNÉSIA

Enquanto Mnemósine é a deusa da memória, Lete, uma divindade grega, é a deusa do esquecimento, formando par constante com a primeira. Segundo o filólogo e filósofo alemão Harald Weinrich: Lete vem da linhagem da noite. (...) Mas na interpretação desse mito a genealogia tem só um pequeno papel, pois “Lete” (ele ou ela) é sobretudo nome de um rio do submundo, que confere esquecimento às almas dos mortos. Nessa imagem e campo de imagens o esquecimento está inteiramente mergulhado no elemento líquido das águas. Há um profundo sentido no simbolismo dessas águas mágicas. Em seu macio fluir desfazem-se os contornos duros da lembrança da realidade, e assim são liquidados.1

A opção por produzir trabalhos que tratam a fotografia como um objeto que lida com a falta e não com a memória, advém da ideia de que o ato de fotografar é semelhante ao ato de anotar, aquilo que Platão já desconfiava ser o veneno que oblitera a memória, a perversão da atividade de lembrar2, mostrando-se, a seu tempo, resistente com os registros por escrito que começavam a tomar o lugar da tradição oral de transmissão de conhecimento.

A palavra amnésia, usada para dar título à serie, faz referência à diminuição ou perda total da memória de um ser humano, que pode ser atribuída a fatores como idade, doença, emoção, acidente, delírio, etc. A pessoa que sofre de amnésia não pode recordar o que lhe aconteceu no passado ou em algum momento específico da vida.

Tanto a amnésia quanto seu oposto, a hipermnésia (que faz o sujeito lembrar de quase tudo o tempo todo), são consideradas anomalias que, em geral, necessitam de tratamento. Parece-nos relevante mencionar que o tratamento usado na hipermnésia envolve uma terapia de escrever aquilo que deve ser esquecido, facilitando seu ingresso, assim, na área de esquecimento.

1 2

WEINRICH, 2001, p. 24 PLATÃO apud SMOLKA, 2000, p. 174/176


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Nessa pesquisa procuramos mostrar que a fotografia representa sempre algo que não está mais presente. Ela se encontra sempre no passado, funcionando como uma guilhotina que interrompe o fluxo da existência de algo, cujos traços ali registrados necessitam do imaginário para se completar, ou seja, ela é um fantasma, uma espécie de aparição daquilo que foi, mas não é mais. Nesse sentido, ela se assemelha a todo o material que vai se depositar no inconsciente freudiano: algo que fica soterrado e, por vezes, recalcado, impedido de ascender à consciência por mecanismos de defesa variados. Quando ascende, retorna recriado, alterado pela criativa mente humana.

Outra questão que nos levaram à opção de tratar a fotografia como objeto de esquecimento é que, apesar de toda a aderência do referente, vemos que sua objetividade está longe de ser considerada mimese. Como vimos em Barthes, uma foto até pode funcionar como testemunho, mas não atesta sentido, nada diz sobre o que ela representa. E, como vimos em Dubois, o discurso da imagem fotográfica é o da semelhança - mais ligado à presença de um traço e à ideia da transformação do real pela foto - do que pela natural e inocente exatidão que lhe eram atribuídas quando de sua invenção.

Além disso, a foto desbota, descora, se altera (mesmo nos atuais arquivos em JPG), necessita de uma capacidade de organização e legenda para sua posterior identificação, bem como assinalou Pinker ao afirmar que as imagens mentais, que compõem a memória, são sempre fragmentárias, distorcidas e, sem legendas, precisam dar lugar às ideias, algo que se situa entre ver e pensar.

Nas fotos de família, usadas em três trabalhos da série analisada aqui, há o agravante da encenação criada no momento da foto. A ideia geral que norteia esse tipo de fotografia é a de tentar se obter uma imagem que transmita uma harmonia familiar, nem sempre real. Há como que uma opção por se fotografar aquilo que poderia valer a pena “preservar para a posteridade”. Em fotos anteriores à década de 1930/40 isso se torna mais acentuado, pois, devido à falta de câmeras em casa, as fotos eram produzidas em estúdios, com os retratados usando roupas emprestadas, posando em cenários artificiais, em poses teatrais.


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Para um observador comum, distante das reflexões mais profundas sobre a fotografia, fica fácil cair na armadilha de entender a imagem produzida como um objeto de memória confiável. Nesse particular, André Bazin esclarece que elas se tornam facilmente objetos de crença, relíquia ou fetiche afirmando que, mesmo sem nitidez, deformadas ou descoloridas, elas têm seu maior valor ligado à presença do modelo (pessoa, parente) que ali se encontra. Ele diz: Essas sombras cinza ou sépia, fantasmáticas, quase ilegíveis, (...) são a presença perturbadora de vidas detidas em sua duração, libertadas de seu destino, não pelos prestígios da arte, mas pela virtude de uma mecânica impassível, (...) a fotografia não embalsama o tempo, apenas o subtrai de sua própria corrupção. (...) O desenho mais fiel (...) jamais possuirá (...), o poder irracional da fotografia que domina nossa crença.3

No âmbito familiar essas fotos são vistas pelos próprios integrantes que tendem a olhar, como observou Barthes, através dela, e não para ela, como se a fotografia fosse um objeto transparente, levando-as a reconhecer e identificar ali seus parentes, vivos ou mortos. Como nesta série, a proposta é que elas sejam exibidas em espaço público, os espectadores não terão a oportunidade de reconhecer as figuras ali retratadas. Elas funcionarão como uma espécie de simulacro, pela semelhança com as fotos de suas próprias famílias, porém, o não reconhecimento dos sujeitos retratados, facilitará o olhar para a foto e não através dela.

Seguindo essa linha de raciocínio foram desenvolvidos quatro trabalhos: Amnésia; Amnésia 2; Amnésia 3 e Amnésia 4 - A Paisagem, que passaremos a analisar a seguir.

3.1 Amnésia

Para confeccionar o trabalho Amnésia (Figura 1), foi selecionada, num álbum de família, uma fotografia desgastada naturalmente pela ação do tempo. Nessa foto, nota-se na parte inferior direita um apagamento, além de um tom amarelado produzido pela acidez e/ou ação de fungos ou bactérias sobre o papel, provocado pelas más condições de armazenamento, encobrindo parte do jardim e das figuras humanas presentes na imagem. Na escolha desta foto, foi considerada também a 3

BAZIN, 1945 apud DUBOIS, 1994, p. 80


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posição do bebê que tenta escapar da cena e aponta para fora da fotografia, bem como a presença das linhas paralelas na parte superior que também remetem o olhar para fora da área impressa, dirigindo-se tanto para a esquerda quanto para a direita.

Como procedimento, a fotografia original, tirada em 1960, foi escaneada em alta definição e ampliada no tamanho de 100 x 100 cm em papel 100% algodão modelo Velvet, da empresa HP. A escolha do papel se deu pela sua aparência texturizada semelhante a muitas fotos antigas encontradas em álbuns de família.

A presença do apagamento e do amarelamento da foto demonstram que o registro da memória está paulatinamente se desvanecendo, dia após dia. Pelas pistas sugeridas pelo entorno pode-se tentar imaginar o que havia no lugar desse vazio, entrando aqui o pensamento lógico e a imaginação nessa reconstituição mental, assim como fazemos quando temos lembranças parciais de algum acontecimento.

Vimos em nossa pesquisa que, para Freud, tudo aquilo que se vive se inscreve na memória, porém nem tudo volta à lembrança. Ele afirma que o recalcamento faz com que a memória sempre contenha restos perdidos, parcelas inacessíveis à consciência4, algo de invisível nas imagens, já que muita coisa se perde ou se transforma no percurso de nossas existências.

A escolha do tamanho da ampliação é inusitada para uma foto de família. Foi assim escolhido para tornar público, de maneira escancarada, aquilo que habitualmente as pessoas mantêm na esfera privada, por conta do caráter mais intimista que esse tipo de fotografia trata: um tipo de imagem que articula questões afetivas pessoais.

Essa ampliação foi emoldurada com madeira escura e vidro brilhante, cuja refletividade excessiva faz o espectador eventualmente se ver refletido no vidro, criando uma sobreposição de imagens. A moldura e o vidro também trazem à fotografia o sentido de guarda e de proteção, tentando conservar a memória, lutar contra o esquecimento, como se, assim, fosse possível o resgate do passado.

4

DUBOIS, 1994, p. 325-326


41

O apagamento e o amarelamento indicam que essa tentativa será em vão, já que, por se tratar de foto, além dela ser vítima da ação do tempo, ela já carrega em si, como vimos em Dubois, o registro de uma realidade para sempre desaparecida, feita de distância na proximidade, de ausência na presença e de imaginário no real.

Figura 1 – Amnésia, fotografia, 100 x 100 cm


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Figura 2 - Vista parcial da exposição "Distâncias" (2006) na galeria do Cultural Blue Life, em São Paulo.

3.2 Amnésia 2

O trabalho Amnésia 2 (Figura 3) é um objeto composto por uma caixa de madeira antiga que possui o desgaste do uso, dentro da qual foi colocada uma fotografia da década de 1950 (Figura 4). Essa fotografia foi fixada com cantoneiras de época daquelas utilizadas para a fixação de fotos em álbuns antigos – num pedaço de madeira que permanece em posição inclinada dentro da caixa. Essa inclinação, favorável para a observação do espectador, foi estratégica para esconder um sistema sonoro composto por um aparelho de MP3 e um pequeno alto-falante que reproduzem em loop, ininterruptamente, uma trilha sonora composta por Sérgio Pinto, que a criou especificamente para esse trabalho.

A trilha sonora soa constantemente em volume baixo, não invadindo o espaço expositivo. Para ser ouvida, portanto, é necessário que o espectador faça uso de um estetoscópio, pressionando sua campânula sobre um vidro que se encontra sobre a fotografia, conforme pode ser observado na Figura 5. A trilha sonora se encontra disponível

on-line

no

link:


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http://www.flickr.com/photos/bethbarone/5791780148/in/set-72157626593278572. Em sua composição, foram mixados sons de sinos de igreja, num chamamento fúnebre, com chiados e ruídos típicos de um disco de vinil.

Finalmente, em cima do vidro, há duas fitas pretas que sinalizam o luto.

A fotografia retrata a sala de uma casa bem organizada e agradavelmente decorada, em cujo centro há a figura de um homem trajado socialmente. Na parede, próximo à poltrona, há um buraco que desfaz, de alguma maneira, a imagem de lar perfeito. Observa-se também uma iluminação excessiva, oriunda do uso do flash, que cria uma forte sombra preta atrás do homem, ao mesmo tempo em que parte dele desvanece, começando a se dissolver fantasmaticamente.

Na pesquisa teórica observamos que uma das regras para a mnemotecnia envolve a criação de imagens em lugares (como uma casa, por exemplo) e, para haver a retenção da memória, algo de incomum deveria estar presente para a memorização se dar. Nesse aspecto temos na foto a sala de visitas e o buraco na parede. Outra regra seria a da repetição, representada pela trilha sonora em loop infinito.

A sombra preta e a porção dissolvida pela luz reforçam a ideia de que a fotografia, enquanto índice, nos mostra uma cena que, de fato, ocorreu. Porém, logo após a captura, já se inicia imediatamente a morte desse acontecimento, tornando-se, como disse Dubois, um mero traço registrado em papel que se apresentaria atualmente como único elemento palpável. Entretanto, a presença do vidro, impede também esse contato físico com a fotografia, tornando sua consistência real visível, porém intocável.

O objeto conta com uma mistura de linguagens (visual e sonora) e necessita da participação ativa do espectador que é obrigado a interagir com a caixa de fotografia para tentar apreender seu sentido.

O resultado esperado é que o espectador viva uma espécie de experiência particular. A imagem com a presença do disco de vinil e do toca-discos indica que o que será ouvido é a música contida nele, porém a trilha sonora pretende estimular


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uma escuta interior, introspectiva, que joga com suas lembranças pessoais. Nessa interação, a caixa também pode ser vista como aquela caixa de fotografias que pertence ao seu próprio universo. Já o estetoscópio, usado por médicos para auscultar as manifestações sonoras do corpo humano, terá aqui um novo significado, mais ligado aos afetos e àquilo que não mais está presente.

Figura 3 - Amnésia 2 - Objeto (caixa, fotografia e estetoscópio) - 12cm (A) x 36cm (L) x 24,5cm (P)


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Figura 4 - Fotografia utilizada no Amnésia 2.

Figura 5 - Espectador utilizando o estetoscópio para ter acesso à trilha sonora na exposição "Baseado em Fatos Reais” (2007) na galeria Emma Thomas, em São Paulo.


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3.1 Amnésia 3

O trabalho Amnésia 3 é um objeto de madeira que simula, com sua pintura, uma casa velha de apenas um cômodo (Figura 6). Dentro do objeto foi embutida uma câmera fotográfica analógica que teve sua tampa traseira retirada. A lente dessa câmera está voltada para um orifício que simula uma das janelas da casa. A janela que camufla o orifício de captura pode ser observada na Figura 7, trata-se da janela à direita.

Dessa forma a "casa-câmera" capta as imagens daquilo que está à sua frente e as projeta, de ponta cabeça, no interior da mesma. A projeção se dá sobre uma pequena impressão fotográfica transparente, feita com jato de tinta sobre papel vegetal. Nesta impressão há dois olhos abertos extraídos do retrato de um homem. Nas Figuras 8 e 9 há dois exemplos de projeção, a primeira do céu com nuvens e a segunda de uma janela, onde é possível observar a sobreposição das imagens. Como o objeto está encaixado num tripé fotográfico, existe a possibilidade do público alterar a posição da “casa-câmera”, visualizando outras imagens sobre os olhos impressos.

A opção por construir um objeto num formato de uma casa se deu por se tratar de um local onde, em geral, passamos anos de nossas vidas junto aos familiares, transformando-se num ambiente repleto de memórias. A pintura da parte externa, feita por Clarice Sanvicente, dá o sentido do tempo que passou, caracterizando-a como um memorial.

A parte interna da casa é escura, representando aquilo que Freud denominou de inconsciente: o lugar onde as memórias se depositam, mas que permanecem em estado latente, numa espécie de invisibilidade. A única área visível e iluminada é a da projeção formada por duas camadas: a fotografia dos olhos do homem com a sobreposição da imagem em tempo real, criando um contraste entre o passado e o presente, entre o permanente e o transitório, com uma imagem contaminando a outra.


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Como vimos na nossa pesquisa, Freud, para explicar a vida psíquica, utilizou as metáforas arqueológicas, traçando comparações entre a mente e as cidades de Roma e Pompéia, as quais ele chamou, respectivamente, de ruína/cidade eterna e recalcamento/enterramento. Para ele, nada do que um homem vivencia se perde. Ele explica que, assim como Roma, a mente acumula tempos sobrepostos, com várias camadas históricas e, assim como Pompéia, tudo está ali perene, conservado integralmente, porém enterrado no inconsciente. Nesse sentido a projeção sobre os dois olhos faz alusão a Roma enquanto toda a área escura da “casa-câmera” se refere a Pompéia.

Pelos exemplos mostrados nas Figuras 8 e 9 é possível constatar que os dois olhos da foto impressa estão na posição correta, ou seja, na posição em que estamos acostumados a vê-los. Já a projeção ocorre com a óptica invertida, insinuando que aquilo que vemos do mundo nem sempre é como pensamos ser já que nossa mente as interpreta com toda a bagagem anterior de nossas memórias conscientes ou não.

Neste trabalho também foram exploradas a mistura entre linguagens artísticas (fotografia e pintura) e a necessidade da interação entre público e objeto.


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Figura 6 - Amnésia 3 - Objeto (casa de madeira, pintura a óleo, câmera, vidro e impressão de fotografia sobre papel vegetal, tripé) - 30cm (A) x 26cm (L) x 29cm (P)

Figura 7 - Vista parcial da exposição "incômodos" (2012) na Casa do Olhar Luiz Sacilotto, em Santo André.


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Figura 8 - Céu com nuvens e parte de um edifício, projetados por trás da foto impressa em papel vegetal.

Figura 9 - Uma janela, de ponta cabeça, projetada por trás da foto impressa em papel vegetal.


50

Figura 10 - Espectador olhando a parte interna do Amnésia 3, na exposição "incômodos" (2012) na Casa do Olhar Luiz Sacilotto, em Santo André.


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3.1 Amnésia 4 – A Paisagem Em Amnésia 4 – A Paisagem, foi feita uma montagem colocando lado a lado duas fotografias tiradas em épocas diferentes, ambas desvanecidas (Figura 11). Na foto da esquerda uma senhora idosa olha em direção a uma paisagem tão esbranquiçada, que dela nada se vê. Na foto da direita vê-se uma paisagem cujo desbotamento se assemelha a uma névoa. A fotomontagem se aproveita do olhar para a direita, indicando que é para essa segunda foto que seu olhar se lança: uma outra paisagem que nada tem a ver com o que, supostamente, a senhora estaria, de fato, olhando. Esse procedimento simula o afastamento que existe entre aquilo que se vê e aquilo que se fotografa.

Vimos que a fotografia, assim como o olho, se utiliza da refletividade da luz da cena para fazer seu registro natural, porém, sofre deformações por conta da escolha do filme, da revelação, da bidimensionalidade, afastando-se ainda mais daquilo que foi visto e vivido pela pessoa, transformando-se numa outra paisagem.

O próprio ato de enxergar, conforme vimos em Pinker, depende não só do acontecimento fisiológico, como também da interpretação conceitual que cada um faz do seu mundo. E Dubois, ao analisar as teorias freudianas, também acrescentou a ideia de que sempre haverá uma espécie de latência no positivo mais afirmado 5, dizendo que uma foto é sempre assombrada, de que há sempre algo que foi perdido ou transformado no seu percurso, afirmando que uma foto, sempre será, em boa parte, uma imagem mental.

Para a apresentação, a fotomontagem foi impressa em backlight, ou seja, ela foi acondicionada numa caixa de madeira preta com um pedaço de acrílico na frente (Figura 12). Com lâmpadas internas a fotomontagem é vista na contraluz.

A contraluz é, na foto da idosa, a orientação da luz utilizada na tomada fotográfica, que faz dela quase uma silhueta preta indistinta. O backlight reproduz esse direcionamento de luz. Ao olhar o objeto, o espectador recebe essa luminosidade de

5

Id., 1994, p. 325-326


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frente, colocando-se na condição do próprio filme ou sensor, que são os receptores dessa iluminação. Além disso, o backlight nos traz a ideia da imagem fotográfica como transparência, como espectro e enfatiza seu desaparecimento, numa representação do esvaecimento das imagens mentais e do esquecimento.

Figura 11 - Fotomontagem feita para o Amnésia 4 - A Paisagem.

Figura 12 - Amnésia 4 - A Paisagem, fotografia em backlight, 24cm (A) x 73cm (L) x 9cm (P)


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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma primeira intenção ao definirmos o objeto desta pesquisa, foi a de identificar algo em comum entre a psicologia e a fotografia, e a memória nos pareceu ser um elo possível, já que a fotografia é bastante utilizada como registro documental e a psicologia tem, como uma de suas matérias de estudo, a memória e seus problemas, como a amnésia e a hipermnésia.

Parecia-nos óbvio, à primeira vista, que a fotografia pudesse ser naturalmente entrelaçada com a noção de lembrança, como um objeto de memória confiável. Porém, nossa prática fotográfica nos apontava para a possibilidade dela ser o oposto disso, ou seja, um objeto que se pretende usar para dar apoio a ela, mas que acaba resultando, de forma geral, em registros alterados pelas escolhas do fotógrafo, afastando-nos da lembrança real daquele referente.

Os textos analisados demonstraram que, ao longo do século XX, ocorreu um deslocamento de todo esse discurso sobre o realismo da fotografia para uma percepção de que, apesar da fotografia atestar a presença do referente frente à câmera, o que se registra dele é apenas um traço que pode nem ter semelhança com ele, estando, o ato fotográfico, mais ligado à ideia de uma transformação do real pela foto do que pelo registro fidedigno.

Do ponto de vista da psicologia pudemos perceber como a própria percepção é afetada pelas memórias anteriores de cada indivíduo e como o armazenamento dela se apaga, se altera, transformando, assim como a foto, a realidade vivida.

De alguma forma nos parece que a reunião de elementos diversos na confecção da série Amnésia, ao invés de entregar um sentido pronto, convida o público a completar esse significado articulando suas próprias memórias.

Essa pesquisa teórica ampliou a nossa percepção sobre uma poética que, intuitivamente, já vinha sendo aplicada no desenvolvimento de alguns trabalhos, em especial nessa série. Essa temática, ligada a uma reflexão sobre a fotografia como objeto de esquecimento, recorrente no nosso fazer artístico,


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passa a ser alimentada agora por uma sÊrie de informaçþes fundamentadas pelos autores estudados.


55

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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.

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56

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57

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