Asilo do tucunduba, origem do Bairro do Guamá

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artigo

A história do Asilo do Tucunduba Pesquisador revela aspectos históricos sobre uma colônia de hansenianos José Maria de Castro Abreu Jr.*

Q

uem circula pelo campus da UFPA, no Guamá, passa por um igarapé barrento – o Tucunduba. Poucos sabem que a cidade, sempre transitiva, remodelou completamente aquele espaço na procissão dos anos, na lembrando ali ter funcionado, por mais de um século, uma colônia para hansenianos, marco de uma época em que os sanitaristas achavam que o isolamento dos doentes incuráveis era o suficiente para que as doenças desaparecessem. A história do “Hospício dos Lázaros”, nome original do asilo, começa em 1746 com a fundação da “Fazenda do Tucunduba”, propriedade dos Mercedários, que ali estabeleceram plantações, um engenho e uma olaria, fornecedora de tijolos e telhas para a cidade. Mais tarde, a propriedade seria doada a Santa Casa. No inicio do século XIX, seguindo preceitos médicos da época, a Santa Casa começou a planejar a criação de um local de isolamento para os hansenianos. Em 17 de outubro de 1804 foi feita uma petição ao Conde dos Arcos para a criação de uma loteria visando aquisição de fundos para um “hospício de lázaros”. Em 1810, o Senado da Câmara de Belém recomendou a Santa Casa que estabelecesse um lazareto em Tucunduba. Quatro anos depois, com recursos próprios, foi iniciada a adaptação de um telheiro na antiga olaria para construir um abrigo aos leprosos. A autorização do príncipe regente para a loteria sairia somente em 1815. No ano seguinte, o “Asylo do Tucunduba” era inaugurado com a internação de cinco pacientes. Suas condições Arthur Vianna assim escreveu: “Não se visou a hygiene, nem se attendeu as condições de conforto que um estabelecimento destinado a reclusão de infeccionados devia offerecer; ficou

aberto, devassado, offerecendo múltiplas sahidas aos enfermos, impossibilitando por completo a fiscalização; a promiscuidade de homens e mulheres deu como era de esperar de constituirse o asylo em verdadeira colônia de lázaros, onde a reproducção da espécie implicou em infalivel reproducção da moléstia por hereditariedade”. Em 1820, o asilo abrigava 38 enfermos; três anos depois esse número era de 61, sendo frequentes as reclamações contra a má alimentação fornecida pela Santa Casa. A irmandade, buscando aumentar a arrecadação de fundos para a manutenção do leprosário, colocaria caixas de esmolas nas igrejas de Belém com os dizeres: “Esmola para os doentes do Tucunduba”, prática que permaneceria até o inicio do século XX. Os anos passavam e situação do Tucunduba não melhorava. Em relatório de 1838, o Marechal Soares de Andréa descreve o local como impróprio para a função, mal situado dado sua proximidade a cidade, fazendo com que muitos doentes fugissem para Belém clandestinamente. Geraldo José de Abreu, provedor da Santa Casa em 1848, menciona a “desordem na distribuição de alimentos, da falta de vigilância, dando origem a constantes fugas de doentes, homens que não se conformam com a sorte (...). O guarda não tem nenhum meio a sua disposição para reprimir estas e outras turbulências; em suma vivem sem ordem”. Também que “alli costuma apparecer um Hespanhol a traficar a troco de bebidas tudo que os enfermos podem vender; assim como pretas a comprarem as fructas de suas colheitas e estou informado que são vendidas aos habitantes das cidades”. A reação dos pacientes pode ser compreendida, não apenas pela escassez de alimentos e pela péssima qualidade das edificações, (o alojamento feminino, por exemplo, não possuía uma janela sequer), mas também pelo temor dos arriscados

Prédio do Hospício dos Lázaros, que ficava às margens do Tucunduba, no bairro do Guamá

experimentalismos terapêuticos, já que a título de cura da lepra, as autoridades estimulavam o convívio com pacientes infectados com varíola baseando-se em um conceito do difundido na época que aquele que adquirisse varíola ficaria curado da lepra. Caso sobrevivessem a tudo isso, os pacientes ainda tinham que conviver com os gritos de loucos que ali também eram jogados. Em 1882 havia trinta pacientes, sendo vinte homens e dez mulheres, “amontoados em sete cellas imundas”. Embora em pleno ciclo da borracha, quando a Santa Casa ganhou sua nova sede na rua Oliveira Belo, além de outras unidades hospitalares, como um Hospício (posteriormente Juliano Moreira) e o Hospital Domingos Freire, a lepra era totalmente negligenciada. O médico Isidoro Azevedo Ribeiro descreveria o local em 1898 como “um arraial de horrores” onde “cento e tantos infelizes alli vegetavam”. O século XX chegaria, o ciclo do látex terminaria e o Governador Lauro Sodré citaria em relatório de 1919: “Alastra-se entre nós, de forma assustadora, a lepra”, enquanto o Tucunduba permanecia um “hospital defeituosíssimo, sem possuir os requisitos necessários, tem sua lotação completa”, o que na época correspondia a 235 pacientes. Em 4 de janeiro de 1920, com toda a pompa, Lauro Sodré lançaria a pedra fundamental de um novo le-

prosário situado próximo do antigo. A planta, grandiosa, previa entre outras coisas posto policial, casa de máquinas, hospital para homens, hospital para mulheres, capela e posto médico. Porém como é comum até hoje, em se tratando de obras públicas, o novo leprosário jamais passou da pedra fundamental. Mais de um século depois de sua fundação, alguns aspectos perduravam no Tucunduba, além da sua reinante precariedade. O médico Heráclides de Souza Araújo, chefe do serviço de profilaxia da lepra no Pará, em 1922 ainda refere-se às escapadas dos pacientes: “Actualmente há leprosos no Tucunduba que tem suas amásias na cidade e de lá sahem a noite para se encontrarem com ellas, regressando ao Asylo quando querem . Conheço naquelle estabelecimento um leproso, em estado bastante adeantado, que tem uma amante – mulher sadia – (...) com quem se encontra quase todas as noites na casa della”. Mas o “Hospício dos Lázaros” já estava com seus dias contados; seria substituído pela colônia do Prata, em Marituba, que dava seus primeiros passos. A lepra, embora conhecida ainda hoje em boa parte do mundo por este nome, no Brasil passaria a ser chamada de Hanseníase, provando que em nosso país a melhor forma de erradicar uma doença é mudar seu nome. *Médico Patologista

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