Beira 153

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ISSN 1982-5994

anos

UFPA • Ano XXXIV • n. 153 • Fevereiro e Março de 2020

Em Belém e Manaus, vereadoras usam Facebook para engajar eleitores Páginas 6 e 7

Nesta edição • Mestre Vieira: a história por trás da guitarra • Denúncias não impedem morte de mulheres no Pará


Universidade Federal do Pará

JORNAL BEIRA DO RIO cientificoascom@ufpa.br Direção: Prof. Luiz Cezar Silva dos Santos Edição: Rosyane Rodrigues (2.386-DRT/PE) Reportagem: Aila Beatriz Inete, Flávia Rocha e Gabriel Mansur (Bolsistas); Walter Pinto (561-DRT/PA). Fotografia: Alexandre de Moraes Ilustração da capa: Walter Pinto Charge: Walter Pinto Projeto Beira On-line: TI/ASCOM Atualização Beira On-Line: Rafaela André Revisão: Elielson Nuayed e Júlia Lopes Projeto gráfico e diagramação: Rafaela André Marca gráfica: Coordenadoria de Marketing e Propaganda CMP/Ascom Impressão: Gráfica UFPA Tiragem: Mil exemplares © UFPA, Fevereiro/Março, 2020

Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho Vice-Reitor: Gilmar Pereira da Silva Secretário-Geral do Gabinete: Marcelo Galvão Pró-Reitor de Ensino de Graduação: Edmar Tavares da Costa Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Maria Iracilda da Cunha Sampaio Pró-Reitor de Extensão: Nelson José de Souza Jr. Pró-Reitora de Relações Internacionais: Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira Pró-Reitor de Administração: João Cauby de Almeida Jr. Pró-Reitora de Planejamento e Desenvolvimento Institucional: Raquel Trindade Borges Pró-Reitor de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal: Raimundo da Costa Almeida Prefeito Multicampi: Eliomar Azevedo do Carmo Assessoria de Comunicação Institucional – ASCOM/ UFPA Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto Rua Augusto Corrêa. N.1 – Prédio da Reitoria – Térreo CEP: 66075-110 – Guamá – Belém – Pará Tel. (91) 3201-8036 www.ufpa.br


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esde 1997, quando foi criada a cota eleitoral determinando que 30% dos candidatos de qualquer partido político sejam do sexo feminino, as mulheres seguem lutando por uma representatividade real nas arenas políticas. Em dissertação defendida no PPGCom/ILC, a jornalista Natália Kahwage analisou os discursos de vereadoras de Belém e de Manaus em vídeos postados em seus perfis sociais e em fanpages no Facebook. Neste espaço, essas mulheres ora ressignificam, ora negam, ora recorrem aos velhos estereótipos. As especificidades da advocacia praticada por indígenas são o tema discutido por Breno Cavalcante, baseado nas trajetórias de Luiz Henrique Eloy Amado, da etnia Terena; Ricardo Weibe Nascimento Costa, do povo Tapeba; e de Paulo Pankararu. Com culturas diferenciadas, esses profissionais do Direito provocam um pluralismo jurídico e reivindicam políticas que garantam a permanência de alunos indígenas nas universidades. Leia também: denúncias não impedem homicídios de mulheres no estado do Pará; Dissertação revela a história de Mestre Vieira, o músico que deu às guitarras paraenses um sotaque próprio e inconfundível; Mulheres seringueiras fazem relatos de dor e resistência; Agroturismo pode ser opção de desenvolvimento para áreas produtoras de cacau.

Rosyane Rodrigues Editora

Nesta Edição Zélia Amador de Deus, amiga emérita .................................4 Denúncias não impedem homicídios ......................................5 Pelo direito de serem ouvidas ...........................................6 Simplicidade, técnica e talento .........................................8 Uma arte nova e livre .................................................. 10 A vida talhada com o machadinho ................................... 12 Um olhar de perto e de dentro ....................................... 14 “Do cacau ao chocolate” ............................................... 16 Quatro séculos de presença portuguesa na Amazônia ............. 18

“Esse rio é minha rua. Minha e tua, mururé” Paulo André e Ruy Barata Rio Guamá. Foto Alexandre de Moraes


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FOTOS ALEXANDRE DE MORAES

Opinião Zélia Amador de Deus, amiga emérita

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a amiga, não preciso falar, pois a Zélia é uma estrela e, como tal, se possui algum “não predicado”, eu confesso que olvidei. Aliás, ao falar de Zélia Amador, as/os amigas/os lembram bons feitos, como diz Rosani de Fatima Fernandes, emergem as múltiplas facetas “... professora, artista, atriz, diretora, pesquisadora, ativista e mulher negra em movimento na luta por direitos ...”, ou como Tadeu Oliver Gonçalves informa: “... me senti um privilegiado, pois conheço, há décadas, a Zelinha ou Pretinha, como eu a trato carinhosamente ...”. Caso eu insistisse em solicitar outros depoimentos, os qualificativos viriam de forma abundante, a ponto de as linhas deste espaço não serem suficientes para conter as expressões de júbilo daqueles que veem Zélia transformada em Ananse – aranha da mitologia africana que

negociou com Nyame – o Deus do Céu – o resgate das histórias da humanidade que estavam escondidas e espalhou-as pelo mundo. A Ananse das muitas teias incorporou-se na Zélia, e a amiga nos desafia diuturnamente a tecer as redes da resistência forjada na luta pela descolonização e pelo antirracismo. Destemida, ela nos ensina com as suas muitas histórias a tornar positivos os direitos de povos, comunidades e pessoas etnicamente diferenciados e historicamente subalternizados no mundo. Com olhos de lince, ela vê o que nos escapa e ensina, de maneira firme, a lutar pelos/as excluídos/as. O fato lhe vale reconhecimento regional, nacional e internacional como liderança lúcida e incansável, como registra Tadeu. Rosani afirma que ouvi-la e analisar a trajetória de vida de Zélia “... é renovar as forças e as esperanças diante das adversidades. É acreditar que a igualdade que respeita a diversidade é possível!”. E nos convoca: “... sejamos Zélia(s)!”. É urgente inspirar-se em Zélia e escrever nossas histórias, em tempos difíceis, na(s) Amazônia(s), pois temos a obrigação de nos apresentar ao mundo como pessoas, intelectuais e, sobretudo, como cidadãos/ãs que somos, com a utopia de abraçar o pluralismo e a diversidade neste espaço social de pertença e/ ou acolhimento que chamamos Amazônia(s). As loas que tecemos à amiga fizeram sentido aos/às demais colegas, pois recentemente nossa Zélia foi içada à condição de professora emérita da UFPA, aclamada pelos/as membros/as do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe), em data inesquecível, 19 de novembro de 2019, às vésperas do Dia da Consciência Negra. Não houve uma premeditação quanto à data da concessão do título que lhe foi concedido, mas, ao içá-la por mérito, agitamos a “bandeira da esperança” e assinalamos

aos/às demais o valor da nossa emérita colega. A outorga de um título honorífico é o reconhecimento da capacidade, do compromisso, da responsabilidade e da dedicação às atividades acadêmicas. É um ritual que celebra situações ímpares, que, no caso das universidades, é o coroamento de uma carreira consistente. Creio que o dia da entrega da comenda à professora doutora Zélia Amador de Deus será uma data que marcará, de forma indelével, nossa instituição, pois a Universidade Federal do Pará não quer ser, apenas, uma grande instituição. A comunidade universitária tem por pleito ser democrática, plural e diversa, pois, só assim, ela cumpre com o compromisso que lhe atribuímos, qualidade e excelência dentro das Amazônia(s). Zélia é a figura que mantém a chama da luta acesa. Preserva a tradição de professora qualificada, pois quem foi/é estudante em sua sala de aula não a esquece. Quem a escutou em eventos aqui ou em Durban, na África do Sul, reconhece-a como intelectual de peso. Aqueles/as que leram seus escritos, publicados ou não, sabem que as palavras são muitas, mas “não se amontoam”, uma vez que são tratadas com elegância. Quem é alvo de seus gestos conhece o acolhimento, que o digam os/as quilombolas, os/as indígenas, os/as refugiados/as e tantas outras pessoas a quem entrega o melhor de si. Zélia é a professora que queremos laurear. Tê-la como colega é um regozijo. Quero expressar o meu agradecimento a todos/as os/as colegas que me ajudaram com seus depoimentos, tanto para a emissão do parecer ao Consepe como para a escrita deste texto. Agradeço, também, ao professor Dr. Emmanuel Zagury Tourinho pela sensibilidade de convocar a comunidade universitária a homenagear Zélia Amador de Deus. Jane Felipe Beltrão – Professora titular da UFPA e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), nível 1C. E-mail: janebeltrao@gmail.com


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Violência doméstica

Denúncias não impedem homicídios Pesquisa traça perfil de vítimas e de autores de crimes contra a mulher ACERVO DA PESQUISA

Flávia Rocha

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riada em 2006, a Lei Maria da Penha estabelece que a violência doméstica e familiar contra a mulher pode ser expressa por meio de: violência física (empurrões, mordidas, tapas, socos e golpes com o uso de objetos), violência sexual (entendida como qualquer ação que obrigue a vítima a qualquer atividade sexual não consentida, por meio da intimidação, da ameaça ou do uso da força física ou do impedimento do uso de anticoncepcionais), violência psicológica (ameaças, chantagens, xingamentos, vigilância constante e limitação do direito de ir e vir). No ano de 2015, foi criada a Lei do Feminicídio, que alterou o Código Penal para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado, quando o crime for praticado contra a mulher, em decorrência do fato de ela ser mulher. Em 2018, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 500 mulheres foram agredidas fisicamente a cada hora. Cerca de 16 milhões de mulheres acima de 16 anos já haviam sofrido algum tipo de violência, 42% delas foram vítimas de violência dentro de casa. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde considera a violência contra a mulher um problema de saúde pública. A violência como forma de intimidação é uma prática antiga, presente em todas as classes sociais, nas instituições, nas religiões, nas culturas e nos grupos etários. “A naturalização da violência impede que as mulheres se percebam vítimas da agressão, fazendo com que o número de casos seja subdimensionado e difícil de contabilizar”, afirma a enfermeira Valquiria Rodrigues Gomes, autora da dissertação Vitimização por

homicídio de mulheres vítimas de violência doméstica no estado do Pará. A pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de investigar se as mulheres vítimas dos homicídios relacionados à violência doméstica em 2015, registrados no Sistema Integrado de Segurança Pública, realizaram ocorrência formal nas delegacias, de 2010 a 2015, no estado do Pará. “Buscamos identificar o perfil socioeconômico e demográfico dessas vítimas e dos autores do homicídio, além de apontar o papel do enfermeiro na prevenção e na redução de homicídios de mulheres vítimas de violência doméstica”, explica a pesquisadora. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PPGENF/ICS), com orientação da professora Vera Lúcia de Azevedo Lima.

Acima, o mapa mostra a distribuição dos homicídios de mulheres (por seus parceiros) em território paraense.

Situações de violência acontecem dentro de casa Baseado no banco de dados da Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal (SIAC), foram identificados 238 Boletins de Ocorrência de homicídios de mulheres no Pará. Destes, foram excluídos 140 BOs por não tratarem de violência doméstica e 31 por insuficiência de informações, restando 67 BOs, os quais constituíram a população da pesquisa. “Com base na análise dos homicídios, observa-se que 22% das vítimas tinham de 25 a 29 anos; e 14%, 20 a 24 anos. Em

relação aos autores do homicídio, 21% tinham a idade entre 25 e 29 anos, seguidos daqueles que tinham 30 a 34 anos (19%)”, expõe Valquíria Rodrigues Gomes. A pesquisa aponta que o homicídio de mulheres em razão de violência doméstica caracteriza-se pelo vínculo afetivo entre vítima e autor do crime. Os Boletins de Ocorrência indicam que 45% das mulheres foram mortas pelo companheiro ou marido; 20%, pelo ex-companheiro ou ex-marido; e 16%, pelo namorado/amante.

Dos 67 casos de homicídios de mulheres vítimas de violência doméstica analisados, apenas duas vítimas registraram ocorrência por violência doméstica pelo mesmo autor do crime. No primeiro caso, a vítima realizou três registros de ocorrência, nos meses de outubro e novembro de 2014, e foi morta em janeiro de 2015. Já a segundo a vítima denunciou o agressor à polícia em julho de 2015 e veio a óbito em setembro do mesmo ano.

“O enfermeiro torna-se importante para a realização de um planejamento de estratégias para a redução deste problema, pois este profissional atua na assistência direta e integral às vítimas. É importante capacitar os profissionais das áreas de saúde, de segurança pública e de outras áreas do conhecimento para que eles possam identificar a violência doméstica no seu contexto e realizar o acolhimento adequado às vítimas”, afirma a pesquisadora.


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Pesquisa

Pelo direito de serem ouvidas Dissertação discute luta feminina por espaço nas arenas políticas Gabriel Mansur

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istoricamente, as mulheres têm sido excluídas das discussões na sociedade. Desde a Antiguidade, elas são silenciadas. Na Grécia Antiga, não eram consideradas cidadãs, por isso não faziam parte das discussões da polis, por exemplo. Quando lutavam contra o silenciamento, eram vistas como aberrações. Na Idade Média, as mulheres que tinham um modo de vida diferente do que lhes era imposto eram consideradas bruxas, perseguidas e, diversas vezes, assassinadas. Desde o final do século 19, entretanto, as mulheres têm conseguido avanços cada vez maiores em relação a sua representação na politica e, como consequência,

conquistado mais direitos. Na política formal, com a primeira onda feminista, adquiriram o direito ao voto e o direito de serem votadas. Em 1997, foi criada a cota eleitoral estipulando que 30% dos candidatos de qualquer partido político fossem do sexo feminino. Em 2010, Dilma Rousseff foi eleita a primeira presidente do Brasil. Entretanto, apesar dos avanços, a representação feminina na política ainda é baixa. Em âmbito regional, nas eleições de 2016, foram eleitas apenas 13% como vereadoras, e são 12% do total de prefeitos. Como jornalista, por diversas vezes, a pesquisadora Nathália Lima Kahwage se deparou com reportagens a respeito da sub-representação feminina na política. Procurando entender o

motivo para esse desequilíbrio, Nathália Kahwage apresentou a dissertação Representação Política, Gênero e Relações de Poder: análise de aspectos discursivos da atuação das vereadoras de Belém e de Manaus no Facebook. Orientada pela professora Danila Gentil Rodriguez Cal Lage, a dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Política e Amazônia (PPGCOM/ILC). O estudo busca investigar como as relações de poder influenciam os discursos das vereadoras de Belém e de Manaus, com base nos vídeos postados nos seus perfis e na fanpages no Facebook, um ambiente em que elas dominam o próprio discurso, ressignificando, recorrendo ou negando estereótipos.

As consequências da sub-representação feminina A jornalista chama atenção para três fatores que levam à sub-representação. A associação da mulher à vida doméstica, o que diminui a sua rede de contatos; a dupla jornada de trabalho feminina, o que diminui o seu tempo livre para outras atividades; e o padrão social imposto às mulheres, que não têm sua imagem associada à política, papel historicamente masculino. Além disso, as mulheres que chegam aos cargos eletivos sofrem com a exclusão da sua atuação para

manutenção dos privilégios masculinos no campo. As mulheres, então, buscam “outros tipos de política, que estão relacionados com a organização, a atividade e o engajamento, entre os quais se destacam os movimentos feministas e os grupos de mulheres. A política que exercemos no dia a dia para conquistar mais direitos”, pontua Nathália Kahwage. Apesar disso, a pesquisadora chama atenção para o fato de que, mesmo imprescindível para a democracia, limitar-se a

fazer política fora das instituições não é suficiente. Nathália encontrou, na figura das vereadoras Marinor Brito (PSOL), Simone Kahwage (PRB) e Blenda Quaresma (MDB), em Belém; e na figura de Glória Carratte (PRP), Joana D’arc (PR), Professora Jacqueline (PHS) e Professora Therezinha (Democratas), em Manaus, seu objeto de pesquisa para entender como as relações de poder e a utilização dos estereótipos pelas próprias representantes

Câmaras municipais em números Belém (3 mulheres e 32 homens)

Manaus ( 4 mulheres e 37 homens)

Marinor Brito: 60 anos, professora. Eleita pela primeira vez em 1996, atualmente no 5º mandato. Saiu em 2018 para a ALEPA. Simone Kahwage: 39 anos, administradora. Primeiro mandato (2017-20). Vice-presidente da CMB. Blenda Quaresma: 33 anos, empresária e estudante de Direito. Primeiro mandato (2017-20)

Gloria Carrette: 57 anos. Eleita pela primeira vez em 2000. Professora Jacqueline: 55 anos, professora. Eleita pela primeira vez em 2012. Joana D’arc: 30 anos. Bacharel em Direito. Eleita pela primeira vez em 2016. Atualmente, na ALEAM. Professora Therezinha: 66 anos, professora. Eleita pela primeira vez em 2006. Atualmente, na ALEAM.


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influenciam na comunicação fora dos muros institucionais. A pesquisa analisou 210 vídeos no período de agosto de 2015 até 8 de março de 2018, data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher. A jornalista buscou alguns conceitos para fundamentar sua

pesquisa, como o de power over, power to e power with, e a associação de estereótipos de mãe, guerreira ou profissional. Power over são as relações de dominação; power to, as relações de empoderamento e∕ou resistência; e power with, de solidariedade. A figura de

“mãe” está relacionada ao estereótipo de mulher carinhosa, atenciosa e sensível. A “profissional” é incansável, trabalhadora e multitarefa, e, por fim, a “guerreira” é a que toma iniciativa, rompe convenções sociais e, por conseguinte, se aproxima do “modelo masculino”.

Resistência e empoderamento no Facebook Nathália Kahwage percebeu que as vereadoras de Manaus são mais engajadas nas suas páginas do que as de Belém. Entre elas, a vereadora Joana D’arc se destaca. Joana, por ser ativista da causa animal, usou o Facebook como uma plataforma para fazer sua campanha e, depois de eleita, não deixou de utilizá-lo. Além disso, a pesquisa mostrou que as vereadoras de Manaus produzem mais conteúdo, com maior quantidade de tempo de vídeo. A jornalista salienta a necessidade de estabelecer continuidade e periodicidade nos vídeos para manter as pessoas engajadas e estabelecer um relacionamento. “Elas poderiam ter feito mais, investido mais. Pensando no custo e na rapidez, poderiam tentar ampliar esse público que não tem acesso às sessões da Câmara Municipal, em Belém ou Manaus”, pontua. A jornalista destaca que, “normalmente, toda situação de dominação gera uma reação de resistência. Isso foi algo que me surpreendeu. Achei que as situações de dominação estariam mais explícitas, mas não. O que eu mais vi ali foram reações de resistência e empoderamento, ou seja, em segundo plano, está a dominação. São elas reagindo, de alguma forma, se empoderando e rompendo com a ideia de passividade e submissão ligada aos estereótipos femininos”. Por fim, a pesquisadora percebeu que as vereadoras apresentaram nos vídeos do Facebook aspectos discursivos que indicaram a predominância do estereótipo de mãe, sendo Marinor Brito a única que divergiu, usando o estereótipo de guerreira. “Ele [estereótipo de mãe] tem essa ‘pegada’ de dominação, está muito ligado ao papel clássico da mulher, o que é esperado da mulher na sociedade, sob o olhar masculino”. Apesar de, à primeira vista, parecer opressora, essa tipologia apresentou muita mobilidade, com a análise dos resultados. “Dentro do trabalho, foi o que mais chamou atenção. Cada uma delas apresentou um padrão diferente para o mesmo estereótipo de mãe. A “mãe” da Joana D’arc cuida do meio ambiente, dos animais e da floresta. A Blenda Quaresma está relacionada ao assistencialismo e à promoção de ações sociais a famílias carentes. A Simone Kahwage, por exemplo, apresenta o sentido clássico de mãe, com viés afetivo, carinhoso e de proximidade. Por várias vezes, utiliza a palavra ‘cuidar’ nos vídeos”, ressalta Nathália. Isso significa que, mesmo ligado ao padrão social estabelecido pela sociedade

para as mulheres, as vereadoras ressignificaram esses estereótipos, em especial o de “mãe”, nos vídeos postados nas suas páginas e nos perfis no Facebook, redefinindo-os de acordo com o contexto e com as diferentes relações de poder, isto é, ainda que enfrentem diversas situações de dominação no dia a dia, elas não foram passivas e mostraram resistência. Assim, ainda que o campo político seja historicamente masculino, as parlamentares buscaram alternativas – nas mídias digitais, por exemplo - para superar os obstáculos institucionais que as silenciavam e marginalizavam-nas.

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LUCIANA MEDEIROS

Simplicidade, técnica e talento Mestre Vieira deu sotaque único para as guitarras do Norte Aila Beatriz Inete

M Criador de uma técnica "difícil de tocar e impossível de copiar", Mestre Vieira conquistou o mundo com a sua guitarrada.

estre Vieira foi um músico paraense muito querido, seu talento deu grande contribuição para a música e a cultura paraenses. A criação da guitarrada trouxe uma nova forma de se tocar a guitarra elétrica no norte do país. A simplicidade, a técnica e o talento de Vieira eram tão impressionantes que conquistaram o mundo. Assim, embalado pelos ritmos, o guitarrista e professor Saulo Christ Caraveo desenvolveu a dissertação A Nascente de um Rio e Outros Cursos: A Guitarrada de Mestre Vieira, no Programa

de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/ICA), orientado pela professora Sônia Chada. De acordo com Saulo Caraveo, a representatividade do Mestre Vieira motivou-o a pesquisar sobre a “guitarra da guitarrada” e a entender mais as técnicas, pois este era um tema que o autor já estudava. Mas, após iniciar a pesquisa, a dissertação se transformou em um percurso antropológico sobre a história de Vieira. “Toda a ideia de escrever sobre questões harmônicas e melódicas, dos arpejos e dos gêneros que incentivavam as composições, ficou de lado”, conta o pesquisador.

“Eu morei perto de uma sede onde tocavam as gafieiras e também aconteciam as festas de aparelhagens. Tive muito contato com esse universo. Um dos objetivos do trabalho era fazer uma análise musical das guitarradas e, principalmente, da trajetória de Vieira e de como ele instalou esse tipo de música, colocando-o em um lugar na história da guitarra, no mundo”, relembra Saulo. O processo metodológico foi a Etnografia, com a abordagem do trabalho dentro da Etnomusicologia. Foram feitas entrevistas com o próprio Mestre Vieira e com outras pessoas que fizeram parte da trajetória do artista.


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Memória Pesquisa revela o olhar de um guitarrista para outro Saulo Caraveo entrevistou Vieira meses antes de seu aniversário de 83 anos. De acordo com o professor, a entrevista foi reveladora. “Após a morte de Vieira, conversei com Dejacir Magno, o primeiro cantor da banda dele chamada ‘Os Dinâmicos’. Em meio a tudo isso, surgiu o Clube da Guitarrada e eu participei de vários eventos do clube. Os filhos do Vieira também tocaram lá. Foi um envolvimento tão intenso que me deu essa propriedade para falar sobre o assunto sob a minha perspectiva como guitarrista, pesquisador e fã do Vieira”, afirma o pesquisador.

De tanto se envolver com a história de Mestre Vieira, a dissertação acabou virando uma etnografia muito particular, trazendo a visão de um guitarrista sobre outro. “O fato de Vieira ter desenvolvido um gênero musical baseado na sua vivência é maravilhoso. E eu consegui contar essa história com os depoimentos dele e dos filhos, da visita ao acervo da família e da documentação que encontrei”, revela Saulo Caraveo. Saulo destaca que Vieira foi muito importante para o surgimento de outros cantores na música paraense. “A

guitarrada surge nos anos de 1970, diante de um contexto histórico muito importante. O fato de ele sair de Barcarena (PA) e conquistar o mundo é fantástico! Alguns dizem que ele cria a lambada nessa mesma época, e, nessa trajetória, vem o Beto Barbosa, a Banda Kaoma”, conta o músico. Com o crescimento desses artistas, a guitarrada e a lambada instrumental que Mestre Vieira fazia caíram um pouco em desuso. Nesse sentido, o pesquisador chama atenção para a importância do músico paraense Pio Lobato. Segundo

Saulo Caraveo, Pio resgata a guitarrada com seus trabalhos. Contudo o professor acredita que muitas pessoas, aqui mesmo no Pará, não conhecem a guitarrada, e isso fica claro nos momentos em que apresenta os resultados da pesquisa. “Existe uma luta sobre quem é o criador da lambada. Vários artistas reivindicam a autoria. Eu acho que está tudo dentro de um contexto de contribuição para o surgimento da lambada. Só que o Vieira foi especial. Ele deu tons finais para o que é a guitarrada hoje”, avalia Saulo Caraveo.

Movimento pós-moderno na Amazônia brasileira Hoje, a guitarrada é um gênero musical instrumental, uma “nova” forma de se tocar guitarra no mundo. “A guitarrada tem esse sotaque que é particular e não é fácil tocar”, afirma Saulo Caraveo. Por isso Caraveo acredita que o Mestre Vieira merecia um lugar especial na historiografia mundial da guitarra elétrica, pois a técnica desenvolvida por ele é quase impossível de copiar.

Para o músico, existe agora uma nova geração de guitarristas. “O Pio Lobato e o Félix Lobato fazem parte dessa geração contemporânea da guitarrada, e outros estão surgindo. Para mim, a guitarrada se tornou um movimento pós-moderno, considerando cultura, espaço e tempo na Amazônia brasileira”, revela o pesquisador. Em Barcarena, Mestre Vieira era um ídolo e

um grande representante da cultura local. Suas histórias eram conhecidas na cidade e contadas com muito orgulho e apreço. Mestre Vieira morreu em 2 de fevereiro de 2018, aos 83 anos. Deixou mais de 15 discos gravados e um legado que serve de inspiração para muitos artistas paraenses. Para homenagear a história de Vieira, a Prefeitura Municipal de Barcarena decretou o dia 29 de outubro, data de seu

nascimento, o Dia Municipal da Guitarrada. “A minha pesquisa tem o meu olhar como guitarrista. Eu me envolvi muito com o movimento da guitarrada. Conhecer o Vieira e entrevistá-lo foi uma maneira de me aproximar do criador. Perceber o que ele sentia quando falava sobre a sua criação foi enriquecedor. Esta foi a primeira dissertação sobre o assunto e espero que outras pessoas deem continuidade”, finaliza.

Preservando a memória do Mestre Inventário Mestre Vieira – o Projeto Inventário Mestre Vieira tem como objetivo atualizar o site em memória de Mestre Vieira, com conteúdos inéditos sobre a sua carreira; lançar um songbook com 30 partituras; disponibilizar sua discografia completa e publicar uma linha do tempo com a sua trajetória. A apresentação do projeto, com a realização de workshops, está prevista para ocorrer em abril/2020. Coisa Maravilha - A Invenção da Guitarrada – ainda em 2020, será lançado pela jornalista, produtora cultural e coordenadora do projeto, Luciana Medeiros, o documentário Coisa Maravilha - A Invenção da Guitarrada, que conta a história do Mestre. Espaço de memória – existe um projeto de transformar a casa do Mestre Vieira em um espaço de memória, com suas guitarras e objetos pessoais preservados. Os Dinâmicos – filme de animação que conta a história de Vieira e seus amigos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TQlCJWbzw9s&t=7s Dia Municipal da Guitarrada – 29 de outubro, data do nascimento de Mestre Vieira, foi decretado pela Prefeitura Municipal de Barcarena para homenagear o guitarrista. Mais informações: www.projetomestreviria.com.br

DIVULGAÇÃO


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Entrevista

Laura Malosetti Costa

Uma arte nova e livre Para Laura, os jovens artistas universitários são mais comprometidos Walter Pinto

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convite do Programa de Pós-Graduação em Artes, da UFPA, a professora Laura Malosetti Costa, doutora em História da Arte, diretora do Programa de Pós-Graduação em História da Arte Latino-Americana da Universidade de San Martin, Buenos Aires, esteve em Belém participando de uma série de eventos que discutiu, entre outros temas, o desenvolvimento do ensino e da pesquisa em artes, no continente. A presença da professora em Belém faz parte da

Arte e universidade No século XX, firmou-se uma tradição que diz: a academia mata a arte. Trata-se de um preconceito a respeito da possibilidade de uma arte nova, livre, ser gerada dentro das universidades. Creio que a grande novidade, hoje, são os novos vínculos entre as artes e as ciências – ciências exatas, naturais, humanas e sociais. As ciências, cada vez mais, estão se alimentando das artes; e as artes, das ciências, com vista à produção de novas ideias transformadoras do homem. Neste processo, as universidades têm importante papel a cumprir. Durante muito tempo, a ciência causou desastres inimagináveis ao Planeta. Hoje, vivemos as consequências da ação dessas ciências que cresceram absolutas, acreditando em suas “verdades perfeitas”. No princípio do século, por exemplo, a ciência afirmava o predomínio dos homens brancos sobre os negros e os índios. Demonstrava isso com leis. Hoje, os artistas denunciam essa ciência, por meio de uma arte que trabalha com as ferramentas da ciência, como o uso de arquivos. Tudo está em processo de produção nas nossas universidades, que também formam artistas. Há artistas dedicados ao estudo do Antropoceno, esse período de cem anos de desastre causado pela ciência, há milhões de anos de evolução natural do Planeta.

estratégia de estabelecimento de intercâmbio entre grupos de pesquisa da UFPA e de instituições estrangeiras, com o apoio do Programa de Cooperação Interinstitucional, das Pró-Reitorias de Pesquisa e Pós-Graduação e de Relações Internacionais da UFPA. Autora de vários livros e artigos, Laura Malosetti Costa, nascida no Uruguai, radicada em Buenos Aires, diz, nesta entrevista, que os jovens artistas estão rompendo com antigos preconceitos, entre os quais o de negar a possibilidade de fazer nascer uma arte nova e livre, com o suporte das universidades.

Então, se há um lugar onde as artes podem ser criativas e críticas, este lugar é a universidade. Aos poucos, a mudança vai se processando no mundo das artes pela ação dos jovens artistas que, ao entrarem no mercado, buscam rejeitar aquela antiga concepção de um mercado garantidor de privilégios aos nomes consagrados do passado e da prática da compra de obras para especulação financeira. Hoje, estamos vivendo um novo tempo. Os jovens artistas já não querem prestar-se a essa especulação. Estão cada vez mais comprometidos com causas sociais, ecológicas, políticas e humanitárias.

Convergência arte e ciência Uma das mais fortes tradições entre arte e ciência ocorre com a música e as ciências exatas, especialmente a matemática, compreendida pela forte semelhança. Outro exemplo de relação nos deu o artista argentino Tomás Saraceno, com suas máquinas de olhar estrelas. Os vínculos entre a arte e os movimentos sociais são vistos, quase sempre, como política, mas não se restringem a ela, perpassam pela sociologia ou pela história, por exemplo, que são disciplinas que interagem bastante com as artes. Há muitos artistas trabalhando com arquivos, em diferentes partes do mundo. No Brasil, penso em Rosângela Rennó, que trabalha

com imagens de arquivos dos trabalhadores mortos na construção da capital federal (Brasília). Há muitas experiências de artistas operando com as mais diferentes formas de ciência.

Argentina: arte crítica Algo bem interessante está sendo produzido na Argentina, país de forte tradição de pintores extraordinários, desde o século XIX. Um dos grandes nomes desse cenário foi Antonio Berni, um ícone da primeira metade do século XX. Além de excelente pintor, ele dominava outras técnicas, que o faziam enveredar por diferentes formas de arte. Na Argentina, é significativa a escola de pintura em linha direta com a figuração crítica, na qual se destacam, entre outros nomes, Raquel Forner, Carlos Alonso, Marcia Schvartz. Esta tradição de arte crítica não deixou de existir nem mesmo durante a última ditadura (19761983), uma das mais sangrentas, responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas. Foi o momento de consolidação de vínculos entre a arte e o Movimento das Mães da Praça de Maio, que continua a se manifestar, todas as sextas-feiras, em Buenos Aires, exigindo do governo informações sobre filhos e netos desaparecidos. Muitos artistas atuaram e atuam com esse movimento, produzindo uma arte verdadeiramente engajada.


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ALEXANDRE DE MORAES

Pós-Graduação, arte e movimentos sociais Meu programa de pós-graduação não é um programa para artistas, mas, sim, para historiadores, antropólogos, sociólogos. É um programa mais teórico. Na Universidade de San Martin, formamos artistas em nível de graduação. Há, no entanto, na Argentina, universidades que oferecem pós-graduação para artistas. Mas nossa pós-graduação procura estabelecer vínculos entre ciência e arte. Um bom exemplo é Ana Longoni, socióloga e doutora em artes, que trabalha com os vínculos entre arte e movimentos sociais e atualmente atua como curadora em projetos no Museu Reina Sofia, na Espanha. Ela também recuperou a figura de Oscar Masotta, artista conceitual dos anos 1960. Outro exemplo é Andrea Giunta, historiadora e doutora em artes, autora de um livro muito importante sobre vanguarda, internacionalismo e política nos anos 1960, responsável pela forma-

ção de muita gente e, hoje, está engajada fortemente no movimento feminista.

Os artistas e a arte engajada Na Argentina, o marco da vanguarda modernista aconteceu dois anos depois da Semana de Arte Moderna no Brasil. Os vínculos entre artistas dos dois países se consolidaram ao longo da história. O pintor muralista brasileiro Cândido Portinari e a Academia de Belas Artes da Argentina, então dirigida por um pintor muralista, mantiveram um diálogo bem estreito, que se expandiu para a escola muralista mexicana. Inclusive, escrevi livro e artigos sobre a relação entre muralistas brasileiros e argentinos. Nos anos de 1940 e 1950, formou-se uma espécie de rede de intenso intercâmbio entre artistas abstracionistas de Montevideo, Buenos Aires, São Paulo e Rio de Janeiro. Na ocasião, formou-se um movimento abstracionista que buscava dialogar com o mundo. Era uma arte nova,

feita por artistas quase todos socialistas e anarquistas, que acreditaram estar contribuindo para a produção de uma nova sensibilidade e de um homem novo. Hoje, essa convergência ainda existe, sobretudo entre o grupo de jovens ativistas da arte, que lutam pela causa ambiental, pelo respeito às diferenças sexuais, pela defesa dos povos oprimidos, pela extinção da miséria nos grandes centros urbanos. Há muitos jovens que colocam sua arte a serviço dessas e de outras causas humanitárias. No Brasil de hoje, chama atenção o engajamento dos jovens artistas na luta pela punição aos assassinos de Marielle Franco. Em Belém, percebi a presença muito forte de discursos políticos na produção dos artistas do Arte Pará 2019. Há vários exemplos que poderia citar: o filme sobre o incêndio na Floresta Amazônica, a performance das sirenes, os trabalhos que afirmam as diferenças. Enfim, propostas que denunciam a violência e buscam estabelecer vínculos sociais mais tolerantes.

História da Arte na América Latina Na América Latina, o México se destaca como berço dos estudos acadêmicos sobre a História da Arte. Penso que, lá, a pesquisa e a pós-graduação atingiram um altíssimo nível de desenvolvimento. Em Buenos Aires, que tem um perfil eminentemente europeu desde o século XIX, os estudos acadêmicos da História da Arte surgiram na década de 1950, introduzidos pelo crítico de arte Júlio Payró, com o auxílio de outros artistas e pensadores, entre os quais Jorge Romero Brest. No Brasil, esses estudos desenvolveram-se bastante. Conheço grupos de pesquisa e Programas de Pós-Graduação em História da Arte de algumas importantes universidades brasileiras, entre as quais USP, UFRJ, Campinas, UFBA, UFRGS e, agora, UFPA. Penso que eles estão sendo fundamentais para a consolidação da arte como campo de ensino e pesquisa.


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Cametá Engenharia

A vida talhada com o machadinho Mulheres seringueiras fazem relatos de dor e resistência Aila Beatriz Inete

O

chamado “Ciclo da Borracha” teve o seu centro na Região Amazônica. Proporcionou transformações culturais, sociais, arquitetônicas e deu grande impulso para o crescimento de Belém, Manaus e Porto Velho. Entretanto esse desenvolvimento econômico foi usufruído apenas pela elite local e portuguesa. Os seringueiros, em sua maioria, recebiam baixos salários e viviam em péssimas condições. Os homens iam, todos os dias, para os seringais, para um dia de trabalho exaustivo e quase sem descanso, enquanto as mulheres ficavam em casa para cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos. Assim conta a história. Mas, recentemente, algumas pesquisas mostraram que as mulheres também iam para os seringais: eram mulheres cortadoras de

seringueiras. Uma dessas pesquisas é da educadora Meurygreece Caldas Farias: Prática, saberes e resistência de mulheres no contexto histórico e cultural no período da extração da borracha na ilha de Itanduba, município de Cametá/PA. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura (PPGEDCU/CAMETÁ), sob a orientação da professora Benedita Celeste de Moraes Pinto. “Quando menina, eu morava na localidade de Itanduba e acompanhava minha avó materna, que ia para o mato cortar a seringueira. A vida da mulher que ia para o mato, com o machadinho e o pairé (paneiro feito de um cipó chamado jacitara), buscar o seu sustento sempre esteve presente na minha memória”, relembra Meurygreece Farias. Segundo a pesquisadora, todas as vezes em que ela estudava o Ciclo da Borracha

na região, sentia-se incomodada ao ouvir falar apenas do trabalho dos homens. Essa inquietação a acompanhou por muito tempo, até poder falar sobre isso. Seu objetivo era investigar qual foi a participação das mulheres ribeirinhas na extração da borracha no interior da Amazônia Tocantina, especialmente na localidade de Itanduba, município de Cametá (PA), “além de compreender o cotidiano dessas mulheres e o importante papel desempenhado por elas, tudo com base nas lembranças arquivadas pelo tempo e transformadas em um silêncio adormecido em mentes esquecidas”, afirma Meurygreece. A pesquisa contou com oito mulheres, com idade entre 60 e 89 anos, e a coleta de dados se deu nos anos de 2017 e 2018. Foram realizadas entrevistas, e cada mulher se identificou como mulher seringueira.

A Ilha de Itanduba foi um lugar para construir sonhos Segundo a pesquisadora, na Ilha de Itanduba, mulheres e homens têm histórias de vidas bastante similares, apesar da origem diversificada. Os relatos evidenciam que a comunidade é constituída por

negros, indígenas e descendentes de portugueses. “Na região, os indígenas tiveram grande influência nas lutas de resistência e por sobrevivência, assim como a população negra. E de onde esse povo

‘se achegava’? A Ilha de Itanduba tem inúmeras histórias, todas com o propósito comum de adquirir um pedaço de terra para construir seus sonhos de vida”, conta Meurygreece Farias.

Maria da Glória dos Santos

Maria José Nunes

Maria das Graças Gomes

Maria José de Fr

seringueira, 68 anos. Viúva, mãe de 16 filhos (14 vivos), diz que não consegue contar a quantidade de netos que já tem.

seringueira, 72 anos e mãe de cinco filhos. Foi criada e também criou os filhos com recurso advindo da seringueira.

61 anos, mãe de 12 filhos e “amante da própria sorte”. Hoje tem sua casa “florida por netos”.

72 anos, viúva e m filhos. Já era casa que cortava serin


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Engenharia A pesquisa descreve as mulheres como trabalhadoras, detentoras de responsabilidades e também como mulheres de negócios. “Além de acumularem o trabalho do mato, elas tinham o dever e a responsabilidade de serem boas mães, cuidando e zelando pelos filhos, muitas vezes sem a presença de maridos ou companheiros. Eram responsáveis sozinhas pela família”, revela a pedagoga.

Além disso, essas mulheres se definem como “solteiras”, “amantes da própria sorte”, “casadas” e “viúvas de marido vivo”. “Nas falas daquelas que se definem como ‘solteiras’, observa-se certa inquietação com essa situação do passado. Várias delas ‘arrumaram um homem’ para companheiro, em algum momento da vida, em virtude das cobranças da sociedade. A cobrança forçou muitas mulheres a ‘se juntarem’ com alguém apenas para constar, diante dos olhos

alheios, que tinham um marido”, explica Meurygreece Farias. A pedagoga destaca que as mulheres possuíam uma riqueza nativa, típica da época. Também eram detentoras de técnicas de manipulação e cultivo de plantas, ervas, árvores e frutos. “Era preciso ‘viver, conviver e sobreviver com as artimanhas do mato’, afirma uma das entrevistadas da pesquisa, definindo como era a vida vivida entre as árvores nesta região“, conta a pesquisadora.

Artesanato e consumo movimentavam a economia Nas entrevistas, as mulheres compartilharam suas memórias e relembraram uma vida inteira de desafios. “Mesmo após o ciclo de riqueza do látex na nossa região, elas – mulheres ribeirinhas e resistentes – continuaram embrenhadas entre o mato, os rios e os igarapés para sobreviver às adversidades e manter suas famílias. Hoje, no processo de rememorar seu vivido, algumas sofrem por lembrar as situações de tristeza, constrangimento, angústia e dor”, ressalta Meurygreece Farias. A pedagoga relembra um momento tenso durante as entrevistas. “Deparei-me com olhares e falas de mulheres que foram vítimas de violência sexual por alguém que se valia da situação de estar sozinho com uma mulher para assediá-la. Eram dias de muita

reitas

mãe de cinco ada na época em nga.

luta. Elas articulavam seus saberes com o que a natureza podia lhes proporcionar para enfrentar as dificuldades”, relata. Exploração – De acordo com a pesquisa, as mulheres tiveram papel fundamental nesse período, pois também contribuíram para a economia da região com a venda de seus produtos (artesanatos) e também com o consumo de outros. “É certo que a relação comercial exercida pelas mulheres seringueiras, de acordo com suas falas, caracteriza a exploração por ser mulher, por ter pouco estudo, por ser dependente de tal produto”, completa a pesquisadora. Meurygreece Farias diz que as mulheres não tiveram a oportunidade de estudar, mas possuem uma sabedoria que tem origem na sua relação com

a natureza e foi primordial para desempenhar o seu papel como mulher seringueira. Para a pedagoga, sua pesquisa possui grande importância social ao mostrar que, durante um período em que se evidenciava somente o trabalho dos homens como protagonistas da história, mulheres também estiveram presentes “no meio do mato, cortando seringas, sobrevivendo às adversidades, aos preconceitos e à discriminação”. “Quero que todos saibam que as mulheres que cortavam seringa também ajudaram a construir a nossa história econômica, social e cultural. O que a história não pode negar é que cada mulher enfrentou o sistema e venceu seus desafios”, finaliza a pesquisadora Meurygreece Farias. FOTOS ACERVO DA PESQUISA

Lindalva Caldas Soares

Benedita de Nazaré Macia de Melo

Margarida Mendes de Souza

79 anos, viúva e mãe de 13 filhos. Conta que sempre cortou seringa para ajudar a manter os irmãos e, depois, os filhos.

71 anos, casada, mãe de oito filhos. Avó de 10 netos. Para ela, ser mulher seringueira é motivo de orgulho.

89 anos, viúva, mãe de 10 filhos, netos “a perder de vista”. Conta que viveu extraindo tudo o que a natureza podia lhe oferecer.


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Direito

Um olhar de perto e de dentro A prática da advocacia feita por indígenas em defesa do seu povo Flávia Rocha

A

sociedade brasileira, de forma geral, vive segundo princípios de uma visão eurocêntrica. Isso é tão presente na mentalidade dos indivíduos que, inevitavelmente, se reflete na criação das leis que regem a vida em sociedade. Assim, o fato de essas leis não contemplarem a totalidade da população do país não é uma surpresa. Embora já tenha havido avanços no campo dos Direitos Huma-

nos, o racismo institucional e a repressão cultural ainda são alguns dos desafios enfrentados pelos povos indígenas. A ocupação de espaços por indígenas nas carreiras jurídicas é algo recente. O primeiro indígena advogado do Brasil, Paulo Celso de Oliveira - também conhecido como Paulo Pankararu -, fez sua inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1995. É possível notar que, desde então, surgiram novas gerações de indígenas

advogados que procuram defender os direitos de seus povos por meio de uma nova prática de advocacia. Desse pressuposto, o pesquisador Breno Neno Silva Cavalcante desenvolveu o estudo intitulado As sementes do chão da aldeia: os indígenas advogados nas fronteiras do mundo colonial. Para a pesquisa, Breno entrevistou três proeminentes indígenas advogados. Eles são: Luiz Henrique Eloy Amado, da etnia Terena; Ricardo Weibe

Nascimento Costa, do povo Tapeba; e Paulo Pankararu. “A partir da pesquisa, entendi que a atividade dos três configura uma advocacia indígena de fronteira. Essa é uma das práticas que se insurgem contra o direito hegemônico e se alinham com os movimentos sociais”, explica. A dissertação foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD/ICJ), com orientação da professora Jane Felipe Beltrão e coorientação da professora Cristina Terezo.

A coexistência entre direitos e pluralismo jurídico “ Po v o s i n d í g e n a s e suas comunidades, por terem culturas diferenciadas, podem ter regras de direito diferenciadas. Por mais que não sejam regras oficiais, referendadas pelo Estado Nacional, não deixam de instituir juridicidade. Baseados nessa coexistência entre direitos, nós podemos pensar em pluralismo jurídico. Consideramos que os advogados que atuam dessa forma estão na fronteira entre o Direito que emana das visões de mundo indígenas e o Direito que é produzido pelo Estado”, expõe o jurista.

Dentro da advocacia indígena de fronteira, a identidade étnica é acionada em determinados momentos durante a discussão do Direito, e a atuação desses advogados está em função da agenda política do movimento indígena. Muitas vezes, a própria decisão de cursar Direito vem da vontade de oferecer assistência às suas comunidades no plano jurídico. “As palavras têm significados construídos socialmente e a ordenação delas em uma frase tem implicações importantes. O uso da expressão ‘indígenas advogados’ na dissertação é

uma escolha metodológica e política, para colocar a categoria ‘indígena’ na frente da categoria profissional”, afirma. Um exemplo desse tipo de advocacia aconteceu com o advogado Ricardo Weibe, durante uma audiência pública, ocorrida em 2017. Duas imobiliárias queriam fazer um empreendimento e, para isso, usar parte do território do povo Tapeba. Foi feita uma proposta de comprar terras em outro local e deslocar as famílias da etnia para lá. A resposta foi não, pois o povo Tapeba tem uma ligação vital

e afetiva com aquele território específico. No dia da audiência, Ricardo Weibe não foi vestido de terno e gravata, mas de pés descalços, com as vestes tradicionais do povo Tapeba. Lá se apresentou como puxador de toré, que é uma dança tradicional de alguns povos indígenas. “Eu acredito que a nossa espiritualidade é o que nos mantém muito de pé, sabe? Quisemos mostrar isso pro juiz e explicar o que é espiritualidade dentro de um contexto de debate jurídico”, afirmou Weibe, em entrevista concedida ao autor da dissertação.

Grade curricular dos cursos de Direito é alvo de críticas Essa visão de mundo vai de encontro às convenções sociais já estabelecidas. A função social da propriedade, presente na Constituição Federal Brasileira, é usada como exemplo na dissertação. Segundo Ricardo Weibe, na visão ocidental, a propriedade tem que servir à sociedade de algum modo. Porém, para a

sociedade majoritária, essa função está correlacionada a edificações e aos empreendimentos. Uma área de floresta não estaria cumprindo a sua função social nessa visão. Para esses advogados, os desafios para assegurar os direitos dos povos indígenas se mostraram desde a faculdade. No caso de Paulo Pankararu, as

discussões sobre ações afirmativas nas universidades ainda não apresentavam maiores resultados quando ele entrou na graduação. Uma das principais críticas dos entrevistados foi em relação à grade curricular dos cursos de Direito. De acordo com Ricardo Weibe, algumas faculdades possuem uma disciplina voltada para o tema, a

qual, geralmente, é optativa. Breno Cavalcante afirma que a Faculdade de Direito da UFPA é uma exceção nesse sentido: “Desde 2007, ela conta com a disciplina obrigatória ‘Direito Indígena e Afro-Brasileiro’ em seu Projeto Político-Pedagógico”. Outro agravante são as discriminações de gênero


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que mulheres indígenas sofrem nos meios jurídicos e acadêmicos. O estudo ressalta que a colonização tem, como ponto fulcral, o racismo e a desorganização do ambiente social dos povos originários por

parte dos invasores europeus. Essa desorganização veio acompanhada do estupro e de outras violências contra as mulheres indígenas, tendo consequências em seus corpos e em suas vidas até hoje. “A advogada Joê-

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nia Wapichana afirma que, em muitos espaços do Direito, ser indígena já é uma espécie de barreira, e ser indígena mulher aumenta as dificuldades, dentro do mundo indígena e do não indígena”, conta o pesquisador.

Presença indígena nas universidades traz mudanças Agora, com a presença cada vez maior de indígenas nas universidades, o desafio é amansar e indianizar uma instituição construída pelos brancos e para os brancos, que não foi preparada para aceitar outras formas de conhecer o mundo. A presença do movimento indígena na UFPA culminou em vários eventos, entre eles o Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas: Desafios para uma Educação Superior no Brasil. “Esse seminário foi um marco na discussão sobre formação jurídica para Povos Indígenas no ensino superior. Foi organizado pela UFPA, em parceria com o La-

boratório de Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (Laced), do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As discussões do seminário perpassaram a questão curricular das Faculdades de Direito; as dificuldades dos estudantes indígenas com relação à permanência nas instituições e a não consideração dos sistemas jurídicos indígenas nas disciplinas”, conta o pesquisador. Os encaminhamentos do seminário estimularam realizações concretas no âmbito da UFPA. Em 2009, foi aprovado o Processo Seletivo Especial (PSE) para Povos Indígenas, com um sistema de reserva

de vagas em todos os cursos da UFPA. Em 2011, no Campus de Altamira, houve a abertura do curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento, que recebe apenas estudantes oriundos de povos e comunidades tradicionais. “Apesar da conjuntura adversa em que vivemos, acredito que a tendência é que existam cada vez mais pessoas indígenas formadas em Direito e, por consequência, o aumento dessa prática de advocacia. Penso que teremos uma discussão mais próxima em outros países da América Latina, sobre o pluralismo jurídico”, avalia Breno Cavalcante. ALEXANDRE DE MORAES

Desde 2009, a UFPA conta com um processo seletivo especial para os povos indígenas, com reserva de vagas em todos os seus cursos.


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Pará

“Do cacau ao chocolate” Agroturismo pode ser opção de desenvolvimento para produtores de cacau SIDNEY OLIVEIRA / AGÊNCIA PARÁ

Aila Beatriz Inete Em 2018, a produção de cacau no Pará chegou a 132 mil toneladas e cerca de 90% vieram da agricultura familiar.

A

Rodovia Transamazônica foi construída ainda no período da ditadura militar, com o objetivo de integrar a Amazônia às outras regiões do Brasil. No Pará, a Transamazônica é marcada por obras inacabadas, desmatamento, conflitos e pouco desenvolvimento econômico e social. Apesar desses problemas, a área produz o melhor cacau do Brasil e faz do Pará o maior produtor do país. O município de Medicilândia, localizado às margens da rodovia, é conhecido como “capital nacional do cacau”. Esse fruto nativo da Amazônia pode ser encontrado em outras regiões do Brasil. A Bahia já foi o estado com maior volume de produção e ainda é o maior exportador no Brasil. “Nós observamos que a história contada dizia que o fruto

tinha origem na Bahia, mas o cacau chegou à Bahia por um francês que transportou uma amêndoa daqui do Pará”, conta a pesquisadora Hyngra Suellen de Jesus Nunes, autora da dissertação Do Cacau ao Chocolate: Contribuição do Agroturismo ao Desenvolvimento Territorial na Região Transamazônica(PA), orientada pelo professor Aquiles Simões e defendida no Programa de Pós-Graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (PPGEDAM/Numa). De acordo com Hyngra Nunes, a pesquisa teve como objetivos fazer um resgate histórico do que era o chocolate dentro da nossa região, saber como isso influenciou no desenvolvimento territorial e, principalmente, analisar as potencialidades de contribuição do turismo para o desenvolvimento territorial da região Transamazônica, por meio da valori-

zação da cadeia produtiva do cacau. Para realizar a pesquisa, foram colhidas informações em Secretarias do estado, como a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme) e a Secretaria de Turismo (Setur), com uma abordagem qualitativa e com caráter descritivo e exploratório. De acordo com a pesquisa, por mais de um século (1730 e 1840), o cacau foi o principal produto de exportação de Belém. Em virtude de uma epidemia de varíola e do início do Ciclo da Borracha, a produção foi deixada de lado. De maior produtora no final do século XIX, a região passou a representar apenas 1% da produção nacional em 1970. Nesse mesmo período, a Bahia deteve uma produção de 95%. Mas, em 2017, a produção de cacau no Pará foi de 116.419 toneladas. Em 2018, esse número chegou a 132 mil toneladas.


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Excesso de informalidade prejudica cadeia produtiva Hyngra Nunes conta que, com a pesquisa em campo, ela pôde perceber a importância do cacau para a região. “Fiquei sete dias em Altamira, fiz entrevistas em Secretarias, com produtores e com empresários locais. Apesar de a Transamazônica ser a maior produtora de cacau do nosso estado, isso ainda não reflete de maneira positiva no local. Eles têm os maiores deficit de educação, de saúde, de economia, porque há muita informalidade dentro dessa cadeia”, revela. A turismóloga conta que

quase 90% da produção é de agricultura familiar, com pequenos e médios produtores. “Infelizmente, menos de 50% do valor gerado com a venda da produção retorna para o agricultor e, por conseguinte, não gera desenvolvimento e qualidade de vida para essas famílias”, avalia. Hyngra Nunes ressalta que, com a criação do Fundo de Desenvolvimento da Cacauicultura do Pará (Funcacau), dentro do Programa de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva da Cacauicultura (Procacau), a produtividade

paraense aumentou. Daí a importância do incentivo ao cultivo e dos financiamentos para os agricultores familiares. “O núcleo maior de produção está dentro da Transamazônica, mas temos mais cinco regiões produzindo (sudeste paraense, nordeste paraense, Baixo Tocantins, Médio Amazonas e outros)”, aponta Hyngra Nunes. Segundo a pesquisadora, outro diferencial está no solo, principalmente na região de Medicilândia, onde é chamado de ‘terra roxa’, um solo fértil, que produz cacau

de qualidade e é excelente para a produção de chocolate. “O volume de exportação gerado com os produtos derivados da amêndoa do cacau, que possui retorno financeiro maior, aqui acontece de forma pontual. Nós só transportamos a nossa amêndoa daqui para a Bahia e São Paulo. Muito pouco é beneficiado no Pará”, aponta Hyngra Nunes. Nesse sentido, sua proposta para a região vem com o objetivo de levar renda e reconhecimento para a localidade, aliando o turismo ao desenvolvimento territorial.

Serviços incluiriam visita, divulgação e venda de produtos Com as investigações no território, surgiu a proposta do agroturismo. “Entendemos que o cacau e o chocolate partem de um produto agroalimentar com alta qualidade nutricional. Isso explica a possilibidade de incluir o turismo como uma ferramenta dentro dessa cadeia para levar desenvolvimento aos pequenos produtores”, afirma Hyngra Suellen de Jesus Nunes. O objetivo é fazer um catálogo de serviços com dados de pequenos e médios produtores que possam receber visitas, divulgar

e até vender os seus produtos, criando, assim, uma cesta de bens e serviços locais. “O turismo requer uma infraestrutura mínima, que a região não tem ou que precisa ser melhorada, como vias de acesso, sinalização, locais de acolhimentos, hotéis e restaurantes. Essa não é uma proposta de turismo invasivo, que chega com depredação e com transformação territorial, sem beneficiar ninguém. A proposta está dentro das condições locais e deve gerar renda para essas

famílias”, argumenta Hyngra Nunes. Também é importante contar com uma base de apoio com governo, associações, cooperativas e líderes comunitários. Atualmente, existem cinco regiões produtoras de cacau no Brasil: Roraima, Amazonas, Bahia, Espírito Santo e Pará, e cada uma produz um tipo de chocolate. O chocolate feito com o cacau paraense tem a maior aceitação global, de acordo com pesquisa realizada na Unicamp. “Por muito tempo, se disse que o nosso cacau era refugo e mal

fermentado. Tiravam qualquer qualidade da produção do cacau do Pará”, relembra Hyngra Nunes. “Digo que temos muito potencial. É possível aumentar a produção, sem necessariamente expandir as áreas de produção, apenas melhorando a qualidade. Essa é uma das potencialidades que mostro neste estudo”, ressalta. Hyngra Nunes finaliza dizendo que procurou resgatar a verdadeira história do cacau e contribuir para o reconhecimento do Pará nesse ciclo. MÁCIO FERREIRA / AGÊNCIA PARÁ


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Resenha Quatro séculos de presença portuguesa na Amazônia Walter Pinto

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istórias de vida, arte, engenharia, diplomacia, imprensa, educação, literatura. Esses são alguns dos temas da rede de relações tecida entre Portugal e a Amazônia que a coletânea O imenso Portugal – estudos luso-amazônicos traz à tona, em suas 400 páginas. Organizado pelos historiadores Maria de Nazaré Sarges, Aldrin Moura de Figueiredo e Maria Adelina Amorim, o livro revela novos aspectos dessa convivência, desde a chegada de Castelo Branco à representação que se fazia dos portugueses na capital paraense, segundo a recriação literária de Dalcídio Jurandir, no clássico Belém do Pará. Editado pela UFPA/Cátedra João Lúcio de Azevedo, O imenso Portugal é uma coletânea de 17 artigos escritos por historiadores e literatos de Belém e de Manaus “sobre esse novelo de narrativas que encenam a presença portuguesa no extremo norte da ALEXANDRE DE MORAES

América do Sul”, como sintetizam os organizadores na apresentação da obra. A coletânea é mais um contributo da Cátedra João Lúcio de Azevedo para estreitar os vínculos de cooperação entre a Amazônia e Portugal. A instituição foi criada em 2017, por meio de protocolo entre a Universidade Federal do Pará e o Camões - Instituto da Cooperação e da Língua. Dirigida pela historiadora e professora da UFPA Maria de Nazaré Sarges, a cátedra começou a funcionar em junho de 2018 e, em pouco mais de um ano, esteve à frente de eventos importantes, como a exposição “Saramago – os pontos e a vista”, a montagem do espetáculo “A Carta de Caminha” e a mostra “Maria da Glória: Princesa e Rainha de Portugal”. A homenagear o historiador João Lúcio de Azevedo com o seu nome, a cátedra faz o reconhecimento ao importante intelectual português que viveu no Pará desde os 18 anos e foi um dos maiores historiadores da vida luso-amazônica, autor do clássico Os jesuítas no Grão-Pará. O título O imenso Portugal remete à relação singular que o Grão-Pará manteve com a metrópole lusa comparada ao restante do Brasil, numa época em que a colônia do extremo norte era considerada “A Sentinela do Norte na América lusitana”. Além disso, diz respeito também à vida lusitana na Amazônia durante o Império e o alvorecer da República no Brasil. O livro registra, no texto de Aldrin Figueiredo, uma consequência da chegada dos portugueses ao extremo norte: o apagamento da memória tupinambá, como o topônimo Mairi, que denominava aquelas terras, substituído por novos nomes brancos, de origens lusas, ainda hoje presentes na vida dos moradores de Belém, entre os quais Forte do Castelo, Largo da Sé e Ladeira do Castelo. Wânia Viana e Rafael Chambouleyron voltam ao período de expansão da economia colonial no Maranhão e no Pará, para examinar a trajetória dos engenheiros milita-

res portugueses Pedro de Azevedo Carneiro, José de Azevedo e Carlos Varjão Rolim como construtores de fortalezas que serviram à defesa da Amazônia Colonial, assim como a própria inserção deles na sociedade local. A historiadora Magda Ricci busca, na inquietação reinante na região, entre o final do século XVIII e a segunda metade do século XIX, as raízes coloniais da Cabanagem, tema em que se tornou especialista. Foca sua atenção, sobretudo, na ação dos governadores do Grão-Pará durante a guerra entre Portugal e França. Diferentemente dos estudos historiográficos que buscam explicar a formação histórica da Amazônia por meio de sucessivos ciclos extrativistas, Daniel Barroso e Mábia Freitas partem do caso do comerciante lisboeta Joaquim Antônio da Silva, que, tendo chegado à Amazônia aos 16 anos, amealhou considerável fortuna, calculada em mais de 100 contos de réis, posse sobre 157 escravos, extensas propriedades rurais, além de imóveis em Belém. Os autores buscam, assim, observar transformações operadas na economia do Pará que vão além dos ciclos extrativistas. A doutoranda Anndrea Tavares traz à tona um núcleo de portugueses pouco conhecidos da literatura historiográfica local - os naturais do distrito de Aveiro, imigrados para o Pará, onde se dedicaram a atividades nos rios da região. A coletânea é formada, ainda, por outros doze artigos sobre as experiências dos portugueses em terras amazônicas. Segundo seus organizadores, a coletânea é um “espólio de conhecimento e de memórias com as quais a Cátedra João Lúcio de Azevedo e a Universidade Federal do Pará vislumbram novos quadrantes do imenso Portugal, investindo na leitura do passado, em constante diálogo com o presente”. Serviço: O imenso Portugal - estudos luso-amazônicos. Edição: UFPA/ Cátedra João Lúcio de Azevedo. 400 páginas. À venda na Livraria da UFPA.


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A Histรณria na Charge

#minhaufpa



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