Floresta das Letras: Antologia de textos literários

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ESCOLA SECUNDÁRIA DA LIXA Ano Internacional das Florestas 2011

Floresta das letras

Ler

antologia de textos literários

Verde ESL


E iniciativa

sta antologia reúne textos literários alusivos à FLORESTA e resulta da conjunta

da

Biblioteca

e

do

Ecotorgas para celebrar o Ano Internacional das Florestas, no seio da comunidade escolar.


3 Um renque de árvores lá longe…

| Alberto Caeiro

Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta. Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas. Renque e o plural árvores não são coisas, são nomes. Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem, Que traçam linhas de coisa a coisa, Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais, E desenham paralelos de latitude e longitude Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!


4 Poema das árvores

As árvores crescem sós. E a sós florescem. Começam por ser nada. Pouco a pouco se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo. Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos, e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se. Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores, e então crescem as flores, e as flores produzem frutos, e os frutos dão sementes, e as sementes preparam novas árvores. E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas. Sem verem, sem ouvirem, sem falarem. Sós. De dia e de noite. Sempre sós. Os animais são outra coisa. Contactam-se, penetram-se, trespassam-se, fazem amor e ódio, e vão à vida como se nada fosse. As árvores, não. Solitárias, as árvores, exauram terra e sol silenciosamente. Não pensam, não suspiram, não se queixam. Estendem os braços como se implorassem; com o vento soltam ais como se suspirassem; e gemem, mas a queixa não é sua. Sós, sempre sós. Nas planícies, nos montes, nas florestas, A crescer e a florir sem consciência. Virtude vegetal viver a sós E entretanto dar flores. in Obra Poética, Lisboa, edições JSC, 2001

| António Gedeão


5 Poema das folhas secas de plátano

| António Gedeão

As folhas dos plátanos desprendem-se e lançam-se na aventura do espaço, e os olhos de uma pobre criatura comovidos as seguem. São belas as folhas dos plátanos quando caem, nas tardes de novembro contra o fundo de um céu desgrenhado e sangrento. Ondulam como os braços da preguiça no indolente bocejo. Sobem e descem, baloiçam-se e repousam, traçam erres e esses, cicloides e volutas, no espaço escrevem com o pecíolo breve, numa caligrafia requintada, o nome que se pensa, e seguem e regressam, dedilhando em compassos sonolentos a música outonal do entardecer. São belas as folhas dos plátanos espalhadas no chão. Eram lisas e verdes no apogeu da sua juventude em clorofila, mas agora, no outono de si mesmas, o velho citoplasma, queimado e exausto pela luz do Sol, deixou-se trespassar por afiado ácidos. A verde clorofila, perdido o seu magnésio, vestiu-se de burel, de um tom que não é cor, nem se sabe dizer que nome tenha, a não ser o seu próprio, folha seca de plátano. A secura do Sol causticou-a de rugas, um castanho mais denso acentuou-lhe os nervos, e esta real e pobre criatura vendo o solo coberto de folhas outonais medita no malogro das coisas que a rodeiam: dá-lhes o tom a ausência de magnésio; os olhos, a beleza. in Poemas Escolhidos de António Gedeão, Edições JSC, Lisboa


6 Cada árvore é um ser para ser em nós

| António Ramos Rosa

Cada árvore é um ser para ser em nós Para ver uma árvore não basta vê-la a árvore é uma lenta reverência uma presença reminiscente uma habitação perdida e encontrada À sombra de uma árvore o tempo já não é o tempo mas a magia de um instante que começa sem fim a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folhas e de sombras interiores nós habitamos a árvore com a nossa respiração com a da árvore com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses


7 Árvore, cujo pomo, belo e brando

| Camões

Árvore, cujo pomo, belo e brando, natureza de leite e sangue pinta, onde a pureza, de vergonha tinta, está virgíneas faces imitando; nunca da ira e do vento, que arrancando os troncos vão, o teu injúria sinta; nem por malícia de ar te seja extinta a cor, que está teu fruito debuxando. Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo a meu contentamento, e favoreces com teu suave cheiro minha glória, se não te celebrar como mereces, cantando-te, sequer farei contigo doce, nos casos tristes, a memória. in Sonetos


8 Árvore verde

| Fernando Pessoa

Árvore verde, Meu pensamento Em ti se perde. Ver é dormir Neste momento. Que bom não ser 'Stando acordado! Também em mim enverdecer Em folhas dado! Tremulamente Sentir no corpo Brisa na alma! Não ser quem sente, Mas tem a calma. Eu tinha um sonho Que me encantava. Se a manhã vinha, Como eu a odiava! Volvia a noite, E o sonho a mim. Era o meu lar, Minha alma afim. Depois perdi-o. Lembro? Quem dera! Se eu nunca soube O que ele era. In Poesias Inéditas


9 Como um vento na floresta

Como um vento na floresta. Minha emoção não tem fim. Nada sou, nada me resta. N E como entre os arvoredos Há grandes sons de folhagem, Também agito segredos No fundo da minha imagem. E o grande ruído do vento Que as folhas cobrem de som Despe-me do pensamento: Sou ninguém, temo ser bom. in Poesias Inéditas

| Fernando Pessoa


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Entre o luar e o arvoredo

Entre o luar e o arvoredo, Entre o desejo e não pensar Meu ser secreto vai a medo Entre o arvoredo e o luar. Tudo é longínquo, tudo é enredo. Tudo é não ter nem encontrar. Entre o que a brisa traz e a hora, Entre o que foi e o que a alma faz, Meu ser oculto já não chora Entre a hora e o que a brisa traz. Tudo não foi, tudo se ignora. Tudo em silêncio se desfaz. in Poesias inéditas

| Fernando Pessoa


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Árvores do Alentejo

| Florbela Espanca

Horas mortas... curvadas aos pés do Monte A planície é um brasido... e, torturadas, As árvores sangrentas, revoltadas, Gritam a Deus a bênção duma fonte! E quando, manhã alta, o sol posponte A oiro a giesta, a arder, pelas estradas, Esfíngicas, recortam desgrenhadas Os trágicos perfis no horizonte! Árvores! Corações, almas que choram, Almas iguais à minha, almas que imploram Em vão remédio para tanta mágoa! Árvores! Não choreis! Olhai e vede: - Também ando a gritar, morta de sede, Pedindo a Deus a minha gota de água! in Sonetos


12 Árvores

| Gastão Cruz

São plátanos palmeiras castanheiros jacarandás amendoeiras e até as oliveiras que quando a noite cai na infância formam uma cortina escura na estrada frente à casa árvores apagando os dias que a memória avidamente esconde no corpo do seu gémeo Penetra inutilmente na terra essa raiz do branco plátano adolescente e o campo do tempo onde as palmeiras eram pilares do corpo nu símbolo de si mesmo, à luz do dia fixo, já se estende na húmida manhã dos castanheiros Esquecimento que tudo enfim possuis e geras a ofuscante luz igual à da memória, do tempo como ela filho, construtor da ausência, em vão te invoco Tu que mudas a roxa amendoeira em brancas flores do jacarandá entrega a minha vida às árvores que foram na manhã e no crepúsculo no meio-dia e na noite, palavra clara que traz o dia em si fechado in Crateras (2000)


13 Os gemidos da árvore

A Árvore, em pé, no meio das planuras, cheia de riso e flor, verduras, passarinhos, - Ela é o guarda-sol dos frutos e dos ninhos. - É o teto nupcial das conversadas puras. O humilde cavador que foiça as ervas duras dos broncos matagais e escalrachos maninhos, sob ela faz o seu leito, ao cruzar os caminhos, torrado da soalheira ou nas sombras escuras. Contudo, o Homem ingrato esquece a Árvore amiga e prefere a Cidade e a balbúrdia inimiga, onde a alma corrompe em orgias triviais. Mas a Árvore lá fica, a espreitar nas ramadas como a mãe lacrimosa, a olhar sempre as estradas - a ver se o filho volta à cabana dos pais! in Claridades do Sul

| Gomes Leal


14 As árvores e os livros

As árvores como os livros têm folhas e margens lisas ou recortadas, e capas (isto é copas) e capítulos de flores e letras de oiro nas lombadas. E são histórias de reis, histórias de fadas, as mais fantásticas aventuras, que se podem ler nas suas páginas, no pecíolo, no limbo, nas nervuras. As florestas são imensas bibliotecas, e até há florestas especializadas, com faias, bétulas e um letreiro a dizer: «Floresta das zonas temperadas». É evidente que não podes plantar no teu quarto, plátanos ou azinheiras. Para começar a construir uma biblioteca, basta um vaso de sardinheiras. In Herbário, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999

| Jorge Sousa Braga


15 Quem planta uma floresta

| Luísa Ducla Soares

Quem planta uma floresta

Planta a cama mais a mesa.

Planta uma festa.

Planta o calor da lareira acesa. Planta a folha de papel,

Planta a música e os ninhos,

A girafa do carrossel.

Faz saltar os coelhinhos. Planta barcos para navegar, Planta o verde vertical,

E a floresta flutua no mar.

Verte o verde,

Planta carroças para rodar,

Vário verde vegetal.

Muito a floresta vai transportar.

Planta o perfume Das seivas e flores, Solta borboletas de todas as cores. Planta abelhas, planta pinhões E os piqueniques das excursões.

Planta bancos de avenida, Descansa a floresta de tanta corrida. Planta um pião Na mão de uma criança: A floresta ri, rodopia e avança. in A gata Tareca e Outros Poemas Levados da Breca, Lisboa, Teorema, 1990


16 O jacarandá florido

| Matilde Rosa Araújo

O jacarandá florido Brando cantar trazia Branda a viola da noite Branda a flauta do dia O jacarandá florido Brando cantar trazia O vinho doce da noite A água clara do dia Quem o olhava bebia Quem o olhava escutava O jacarandá florido Que o silêncio cantava in As Fadas Verdes (1994)


17 A um carvalho A

Eis o pai da montanha, o bíblico Moisés Vegetal! Falou com Deus também, E debaixo dos pés, inominada, tem A lei da vida em pedra natural! Forte como um destino, Calmo como um pastor, E sempre pontual e matutino A receber o frio e o calor! Barbas, rugas e veias De gigante. Mas, sobretudo, braços! Longos e negros desmedidos traços, Gestos solenes duma fé constante... Folhas verdes à volta do desejo Que amadurece. E nos olha a prece Da eternidade Eis o pai da montanha, o fálico pagão Que se veste de neve e guarda a mocidade No coração! in Antologia poética (1981)

| Miguel Torga


18 Antes de nós

| Ricardo Reis

Antes de nós nos mesmos arvoredos Passou o vento, quando havia vento, E as folhas não falavam De outro modo do que hoje. Passamos e agitamo-nos debalde. Não fazemos mais ruído no que existe Do que as folhas das árvores Ou os passos do vento. Tentemos pois com abandono assíduo Entregar nosso esforço à Natureza E não querer mais vida Que a das árvores verdes. Inutilmente parecemos grandes. Salvo nós nada pelo mundo fora Nos saúda a grandeza Nem sem querer nos serve. Se aqui, à beira-mar, o meu indício Na areia o mar com ondas três o apaga, Que fará na alta praia Em que o mar é o Templo? In Fernando Pessoa, textos, poesias, poemas e frases


19 Na floresta do alheamento

| Fernando Pessoa

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê... Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho. Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro e, incerta, altera-me, como a brisa aos perfis das copas. Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta... Para que há de um dia raiar?... Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer. Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Boio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é este... Surge mas não apaga esta, esta da alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam. Que nítida de outra e de ela essa trémula paisagem transparente!... E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?... Eu nem sei querê-lo saber... A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem... e a essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver... De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual, destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela a paisagem daquele outro mundo... Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma no horizonte dessa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...


20 Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher... Um grande cansaço é um fogo negro que me consome... Uma grande ânsia passiva é a vida falsa que me estreita... Ó felicidade baça!... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe... Lá fora a antemanhã tão longínqua! A floresta tão aqui ante outros olhos meus! E eu, que longe dessa paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades dela, é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro. As árvores! As flores! O esconder-se copado dos caminhos!... Passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava em viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor... No nosso jardim havia flores de todas as belezas... - rosas de contornos enrolados, lírios de um branco amarelecendo-se, papoilas que seriam ocultas se o seu rubro lhes não espreitasse presença, violetas pouco na margem tufada dos canteiros, miosótis mínimos, camélias estéreis de perfume... E, pasmados por cima de ervas altas, olhos, os girassóis isolados fitavam-nos grandemente. Nós roçávamos a alma toda vista pelo fresco visível dos musgos e tínhamos, ao passar pelas palmeiras, a intuição esguia de outras terras... E subia-nos o choro à lembrança, porque nem aqui, ao sermos felizes, o éramos... Carvalhos cheios de séculos nodosos faziam tropeçar os nossos pés nos tentáculos mortos das suas raízes... Plátanos estacavam... E ao longe, entre árvore e árvore de perto, pendiam no silêncio das latadas os cachos negrejantes das uvas... O nosso sonho de viver ia adiante de nós, alado, e nós tínhamos para ele um sorriso igual e alheio, combinado nas almas, sem nos olharmos, sem sabermos um do outro mais do que a presença apoiada de um braço contra a atenção entregue do outro braço que o sentia. A nossa vida não tinha dentro. Éramos fora e outros. Desconhecíamo-nos, como se houvéssemos aparecido às nossas almas depois de uma viagem através de sonhos... Tínhamo-nos esquecido do tempo, e o espaço imenso empequenara-se-nos na atenção. Fora daquelas árvores próximas, daquelas latadas afastadas, daqueles montes últimos no horizonte haveria alguma coisa de real, de merecedor do olhar aberto que se dá às coisas que existem?... Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais... Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena... O movimento parado das árvores: o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinível do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir


21 -lhes de dentro a dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma, do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada - tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingianos, incertamente. Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade do espaço... Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!... Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa... E nós não nos perguntávamos para que era aquilo, porque gozávamos o saber que aquilo não era para nada. Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha extrema onde as montanhas são hálitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la ela estranho como um perfil da cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal... Orlas de mares desconhecidos tocavam no horizonte de ouvirmos, praias que nunca poderíamos ver, e era-nos a felicidade escutar, até vê-lo em nós, esse mar onde sem dúvida singravam caravelas com outros fins em percorrê-lo que não os fins úteis e comandados da Terra. Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós do que a consciência de o ouvirmos. E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono e esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios. Julgávamo-nos imortais... Ali vivemos horas cheias de um outro sentimo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de um outro mundo mais cheio do orgulho de ter mais desmanteladas angústias... E doía-nos gozar aquilo, doía-nos... Porque, apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era húmida da pompa de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto... Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.


22 O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolenta ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastado num cerimonial no crepúsculo. Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada. Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa ideia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa ideia de haver a nossa vida... Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo riríamos sem dúvida de nos julgarmos vivos. O frescor aquecido do lençol acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro, nus. Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós... Não tiremos do dedo o anel mágico que chama, mexendo-se-lhe, pelas fadas do silêncio e pelos elfos da sombra e pelos gnomos do esquecimento... E ei-la que, ao irmos a sonhar falar nela, surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza. Foge de diante dela, como um nevoeiro que se esfolha, a nossa ideia do mundo real, e eu possuo-me outra vez no meu sonho errante, que essa floresta misteriosa enquadra... As flores, as flores que ali vivi! Flores que a vista traduzia para seus nomes, conhecendo-as, e cujo perfume a alma colhia, não nelas mas na melodia dos seus nomes... Flores cujos nomes eram, repetidos em sequência, orquestras de perfumes sonoros... Árvores cuja volúpia verde punha sombra e frescor no como eram chamadas... Frutos cujo nome era um cravar de dentes na alma da sua polpa... Sombras que eram relíquias de outroras felizes... Clareiras, clareiras claras, que eram sorrisos mais francos da paisagem que se bocejava em próxima... Ó horas multicolores!... Instantes-flores, minutos-árvores, ó tempo estagnado em espaço, tempo morto de espaço e coberto de flores, e do perfume de flores, e do perfume de nomes de flores!... Loucura de sonho naquele silêncio alheio!... A nossa vida era toda a vida... O nosso amor era o perfume do amor... Vivíamos horas impossíveis, cheias de sermos nós... E isto porque sabíamos, com toda a carne da nossa carne, que não éramos uma realidade... Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer... Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria... E assim como ela era duas - de realidade que era, a ilusão - assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não ele próprio, se o incerto outro viveria… Quando emergíamos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar... Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados, cheios do tédio inúmero de ser... Cheios, sim, do tédio de ser, de ter de ser qualquer


23 coisa, realidade ou ilusão - e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto... E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem nós, que por ali íamos, ali estávamos... Porque nós não éramos ninguém. Nem mesmo éramos coisa alguma... Não tínhamos vida que a Morte precisasse para matar. Éramos tão ténues e rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora passava por nós acariciando-nos como uma brisa pelo cimo duma palmeira. Não tínhamos época nem propósito. Toda a finalidade das coisas e dos seres ficara-nos à porta daquele paraíso de ausência. Imobilizara-se, para nos sentir senti-la, a alma rugosa dos troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a alma vergada dos frutos... E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparámos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser... Zumbe uma mosca, incerta e mínima... Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica, fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza sossobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece... A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora... Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos... Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera. Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é. Não choremos, não odiemos, não desejemos... Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e morto da nossa Imperfeição... In Livro do Desassossego por Bernardo Soares


24 Kafka à beira-mar

| Haruki Murakami

Nessa tarde decido ir dar um passeio pelo bosque. Oshima alertou para o perigo de me aventurar demasiado na floresta. «Nunca percas de vista a cabana», avisou ele. Mas como o mais provável é eu ficar por aqui durante uns dias, sinto-me na necessidade de apurar mais qualquer coisa em relação a esta muralha maciça de árvores que me rodeia. Parto do princípio que mais vale saber alguma coisa do que ficar na ignorância. De mãos a abanar, deixo para trás a face da colina batida pelo sol e mergulho no misterioso mar de árvores. Existe uma espécie de trilho marcado que vai dar à floresta, acompanhando quase sempre o relevo natural do terreno, mas deixando ver a intervalos regulares algumas pedras lisas com todo o aspeto de ali terem sido postas para facilitar o acesso. Os locais propícios à erosão foram atapetados com pranchas de madeira, por isso torna-se fácil seguir caminho mesmo nos lugares invadidos pelas ervas daninhas. Talvez aos poucos o irmão de Oshima se tenha dado ao trabalho de ir arranjando o caminho, sempre que ficava aqui a viver. Sigo o carreiro até ao bosque. Primeiro sobe, depois desce e contorna um pedregulho alto antes de começar de novo a subir. O caminho é quase todo a subir, mas ainda assim faz-se bem. Árvores altas erguem-se


25 de ambos os lados, com troncos de cor escura e ramos grossos que se estendem em todas as direções, encimados por copas de densa folhagem. O terreno apresenta-se coberto de arbustos e fetos que absorvem o máximo de luz fraca que podem. Nos sítios onde o sol não chega, espessas e escuras camadas de musgo cobrem a superfície das pedras. Como alguém a quem vão faltando as palavras para contar uma história, também o carreiro se vai estreitando à medida que avanço, cercado de vegetação por todos os lados. Para lá de um certo ponto, torna-se difícil dizer se existe na realidade ou se não passa de um arremedo de caminho. Às tantas, os seus vagos contornos ficam por completo submersos num mar de fetos. Pode muito bem acontecer que siga em frente, mas, uma vez ali chegado, prefiro deixar a exploração para a próxima vez. (...) Um emaranhado de troncos de árvore com aspeto ameaçador tapa-me a vista. Reina a obscuridade, o ar está impregnado de clorofila e os pássaros deixaram de se ouvir. (...) Agora sei que a floresta pode ser perigosa. E espero bem nunca o esquecer. (...) Nunca imaginei que as ávores pudessem ser tão estranhas e perturbantes. Vendo bem, as únicas plantas que até agora me lembro de ver ou de tocar eram tudo árvores bem tratadas e arbustos bem aparados. Mas as que aqui existem – as que aqui vivem – são totalmente diferentes. Possuem como que uma força, roçando com o seu sopro qualquer humano que por ali se aventure, assestando o olhar sobre o intruso como se tivessem vislumbrado a sua presa. Como se possuíssem desde tempos imemoriais algum ancestral e obscuro poder mágico. Como as criaturas do fundo do mar dominam os oceanos, também as árvores são donas e senhoras das florestas. Caso fosse essa a sua vontade, a floresta poderia facilmente rejeitar-me, ou então engolirme. Quer-me parecer que pode não ser má ideia adotar uma atitude onde se misturem, de uma forma sábia, o medo e o respeito. In Kafka à beira-mar, Casa das Letras, 7ª edição, pp. 173,174,175


26 Equador

| Miguel Sousa Tavares

A navegação ao longo da costa era, de facto, o meio mais prático de chegar da cidade às roças, visto que estas se localizavam preferencialmente no litoral, avançando depois para dentro do mato, até onde a desmatação e o plantio tivessem chegado: o interior da ilha era selva virgem, tal como os portugueses a tinham encontrado em quatrocentos, com os altos picos vulcânicos elevando-se como agulhetas e dos quais o mais alto era o Pico de S. Tomé, com 2142 metros de altura, mas de que raramente se distinguia o cume, eternamente afogado em nuvens e nevoeiro. Nesta densa zona central, que ocupava a maior parte da superfície de S. Tomé, ficava o reino do óbó – a floresta – um inextrincável e cerrado labirinto de árvores gigantescas: jacas, ócás, cipós, micondós, marupiões, mangues, begónias. Por baixo delas, enroladas nelas, trepando desesperadamente por elas acima no esforço vital de alcançarem a luz além daquele perpétuo manto líquido em suspensão, viviam as rastejantes: a lemba-lemba, a corda d’água, a corda-pimenta, a liana-trepadeira. No restolho da selva, ou pendurada nos ramos das árvores, pronta a deixar-se cair sobre um homem passando inadvertidamente por baixo, vivia a terrível cobra negra, cuja picada era um beijo de morte, rápido e dilacerante: contava-se entre os antigos que o único homem que escapara à morte da mordedura da cobra negra fora um preto, fugido da roça Monte Café e que hoje vivia em Angolares, sem um braço. Ao sentir a dentada da cobra no braço, reagiu como um relâmpago e com dois golpes certeiros de catana: com o primeiro cortou o pescoço ao inimigo, com o segundo cortou o próprio braço rente ao ombro – e sobreviveu. Porque o óbó é o território ensombrado para onde fugiam os negros das roças, a quem um momento de loucura, um crime cometido em plena roça, ou apenas um desejo insano de liberdade, acolhia no seu abraço de morte, livre talvez, porém líquido e sombrio. Ninguém mais, em seu perfeito juízo, se aventurava além de uns curtos passos naquele universo opaco e submerso. In Equador, Oficina do Livro, 5ª edição, pp.162,163


27 Os caçadores e os animais selvagens… | Sándor Márai Os caçadores e os animais selvagens gostam deste momento. Já é noite, mas ainda não é dia. O perfume da floresta está tão vivo e selvagem nesse instante, como se todos os seres vivos começassem a despertar no grande dormitório do mundo, como se exalassem os seus segredos e suspiros maldosos, as plantas, os animais e também os seres humanos. Levanta-se o vento tão suavemente, como quando alguém acorda e solta um suspiro, recordando-se do mundo em que tinha nascido. A folhagem húmida, os fetos silvestres, os fragmentos musgosos, caídos das árvores, a trilha da floresta, cheia de orvalho, coberta de pinhas decompostas, folhedos e carumas que, pegados, formam um tapete macio e escorregadio, desprendem um aroma da terra tão intenso, como o perfume do suor que a paixão solta dos corpos dos namorados. É um momento misterioso, os antigos, os pagãos celebraram-no nas profundezas da floresta, com devoção, com braços abertos e com o rosto virado para Oriente, naquela expectativa mágica, em que o homem, atado à matéria, anseia eternamente no coração e no mundo pelo momento da chegada da luz, ou seja, da razão e da compreensão. A esta hora, os animais selvagens dirigem-se para as fontes. A noite ainda não acabou de todo, na floresta acontecem coisas, a caça grande e a vigilância que preenche a vida dos animais selvagens, ainda não terminou, o gatobravo está alerta, o urso devora o último pedaço da sua presa, o veado em cio recorda-se dos momentos da paixão da noite de lua, para no meio da clareira, onde o duelo do amor decorreu, orgulhoso e encharcado, levanta a cabeça ferida na luta e olha em redor, com olhos sérios e tristes, avermelhados da excitação, como quem se lembra para sempre da paixão. A noite ainda está viva no fundo da floresta: a noite e tudo que esta palavra significa, com a consciência da presa, do amor, do vaguear, do prazer de viver desinteressado e da luta pela sobrevivência. É o momento em que não apenas nas profundidades da floresta, mas também na obscuridade dos corações humanos acontece algo. Porque os corações humanos também têm as suas noites, cheios de emoções tão selvagens, como os impulsos da caça que assaltam o coração do veado ou do lobo. O sonho, o desejo, a vaidade, o egoísmo, a ira lasciva do macho, a inveja, a vingança, essas paixões ocultam-se de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente. in As velas ardem até ao fim, Dom Quixote, 21ª edição, pp. 97, 98


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Índice de autores | POESIA | Alberto Caeiro 3

António Gedeão 4, 5 António Ramos Rosa 6 Camões 7 Fernando Pessoa 8,9,10 Florbela Espanca 11 Gastão Cruz 12 Gomes Leal 13 Jorge Sousa Braga 14 Luísa Ducla Soares 15 Matilde Rosa Araújo 16 Miguel Torga 17 Ricardo Reis 18

| PROSA |

Fernando Pessoa 19 Haruki Murakami 24 Miguel Sousa Tavares 26 Sándor Márai 27


Floresta das Letras: Antologia de Textos Literários

Organização

- Biblioteca da Escola Secundária da Lixa - Ecotorgas

Colaboração Especial

Dr.ª Alice Gonçalves

Edição

Biblioteca da Escola Secundária da Lixa Dezembro/2011


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