Jornal A União

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A UNIÃO

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João Pessoa, Paraíba - DOMINGO, 1 de dezembro de 2013

Canibalismo na seca de 1877 Mendiga mata menina em Pombal para comer

FotoS: Evandro Pereira

Hilton Gouvêa

A

hiltongouvea@bol.com.br

mendiga Donária dos Anjos, talvez com os miolos afetados pela devastadora seca de 1877, matou para comer a menina Maria. Ao ser presa, alegou que não aguentava mais a fome e acrescentou que “não provara dos pés nem da cabeça porque eram amargos”. Uma parte da carne ela comeu, a outra enterrou embaixo de uma oiticica que corria na beira de um riacho, onde os cães escavaram deixando uma pista do crime para a polícia. Neste ano, Pombal muito mal havia se recuperado da peste do Cólera Mórbus, que matou centenas de pessoas na região. Agora, era uma cidade forçada a enfrentar um período de seca de três anos, que durou até 1879 e dizimou mais de meio milhão de vidas no Nordeste Brasileiro. A morte trágica de Maria aconteceu há 136 anos. Até hoje, ainda choca quem ouve sua história. O pesquisador Wilson Seixas descobriu os autos do processo contra Donária dos Anjos no Cartório do 1º Ofício de Pombal. A pesquisa de Seixas aguçou a curiosidade de outro historiador, Verneck Abrantes, que esmiuçou os autos e transformou seu conteúdo em livro, para posterior conhecimento das populações sertanejas. Com seu faro de pesquisador, Verneck também forneceu subsídios para a acadêmica Tatiana Ribeiro de Lima elaborar a tese “Antropofagia: Sagrado Crime ou Pecado?”, um trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Ciências das Religiões da UFPB, enfocando, entre outras coisas, o crime de canibalismo registrado em Pombal.

Neste local estava a oiticica onde foi enterrada a cabeça e os pés da menina Maria. O casebre de Donária dos Anjos ficava sob a árvore

O crime contado em detalhes

Em 24 de abril de 1877 – 24 dias após o crime -, “O Publicador”, editado na atual João Pessoa, noticiou a morte da menina Maria, contando em detalhes como tudo aconteceu. Consta que a garota foi abandonada por alguém em Pombal, até ser vista na frente da Casa do Mercado, talvez à cata de alguma coisa para se alimentar. Donária a avistou, aproximou-se e convidou-a para ir até sua casa, que ficava a dois quilômetros do centro, tendo ao lado um cemitério, um riacho e um pé de oiticica. Donária fez a menina entrar para o casebre, asfixiou-a e, depois de confirmar-lhe a morte, retalhou-lhe o corpo com uma faca. Os pés, as mãos e a cabeça foram preservados, porque “tinham sabor amargo”. Parte da carne ela cozinhou e comeu. Outra parte enterrou junto de uma moita. Os cães devoraram o sinistro petisco e atraíram a polícia. A cabeça foi enterrada embaixo de uma oiticica, situada na margem de um riacho que passava rente ao cemitério. Hoje, a oiticica não existe mais e o riacho está reduzido a uma via de esgotos. A polícia exumou a cabeça, para comprovar a identidade da vítima. Historiadores da época contam que, paralelamente, a seca deixava famílias inteiras mortas nos caminhos, sem contar que os pais abandonavam os filhos durante as retiradas, para não vê-los morrer de fome. Por outro lado, mulheres viviam nuas por não terem o que vestir. Não é preciso dizer que o quadro mais comum na zona rural era o de pessoas esqueléticas, com a pele sobrando sobre os ossos, implorando água e comida às almas bondosas. Comerciantes acostumados à presença de Maria, na Casa do Mercado, es-

tranharam sua ausência. Quando a polícia começou a procurá-la – o inquérito não cita a pedido de quem -, logo confirmou que Donária, uma mendiga vinda dos lados de Piancó, fora vista com a menina no caminho do cemitério, entrando num casebre. Presa a suposta assassina, ela confessou o crime com riqueza de detalhes. Nos interrogatórios realizados na polícia e na Justiça, ele deixou transparecer arrependimento. Acabou condenada. A história não registra quando Donária ganhou a liberdade e quanto tempo permaneceu encarcerada. Sabe-se que passou a viver perturbada pelo remorso, e que demonstrava visível debilitação física e mental talvez provocadas pela fome. As más condições da Cadeia de Pombal teriam contribuído para que seu estado de saúde piorasse. O suplício de Maria lembrou aos fiéis católicos que a mártir tinha o mesmo nome da mãe de Jesus. Numa noite quente de 1879 – dois anos e nove meses após o crime – um grupo de pessoas saiu em procissão para a Cruz da Menina, com dezenas de velas e lampiões brilhando no escuro. Um coral improvisado cantava benditos e ladainhas implorando chuva. Ao se ajoelharem diante da Cruz da Menina um vento forte anunciou uma chuva torrencial, seguida de relâmpagos e trovões. Os fiéis continuaram suas preces e a chuva persistiu por grande parte da noite. A oiticica, que por alguns dias dera abrigo funesto à cabeça da menina, era açoitada com violência pelo vento. Os participantes do cortejo atribuíram aquilo a uma resposta da menina, que dera sua vida para salvar Donária da fome. O bom inverno aconteceu mesmo em 1880, tendo a menina Maria como autora das boas chuvas. Até hoje ela é tida como santa, pois lhe atribuem diversos milagres. Continua na página 4


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