Gavetas da memória

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Sumário Prefácio Gavetas de Memórias / Gestão Pública Gavetas de Memórias

CRAS Brasil 20 “muleques” que perderam o trem Eu, o galo e o Pedro Meus amigos carneiros O último tchauzinho O dia que não chorei Amor apaixonado Eita gata safada! Um olhar. Uma cachaça. Um casamento Cacunda quente A cobra voadora História de repentista A cabrita em queda livre Cabeleireira por um dia Peixe bão se pega com a mão Manhã congelada Menina sapeca Mordida de macaco

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12 15 17 19 21 24 25 27 29 31 33 35 37 39 41 43 44 46


CRAS Natal

A brincadeira que virou coisa séria O menino e a bola Fumantes de quimba de cigarro Buraco no quintal da nuca Isaurinha Cavalo doido Vestido vermelho Medo de velório Professores pardais Três dias de luz acesa Danura de criança Passar anel Salvando o almoço Leite de cabrita Pescaria que nada A montanha de algodão Pinhola nunca mais

CRAS Ipiranga História de cinema A menina do buquê de flores Sonho de Papelão Telhado em chamas Aniversário inesquecível O segredo da rapadura

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A pequena enfermeira Saudade O sabor da rapa

CRAS Alvorada Meu primeiro presente Traquinas do Chiqueiro “Barriga cheia, pé na areia” Cachaça Salgada Dinheiro enterrado Pernas Bambas O bode bêbado Lição de vida com sabor de rosca Ciganinha Cerveja Bandeirinha Caminhãozinhozinho de boi Pimenta de arder o lombo Ajoelhado no milho Brincadeira inocente Limpeza em minha vida Sorrisos pelo correio Macaquinho arteiro

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108 111 112 113 115 116 117 119 121 123 125 127 129 131 133 135 137 139 141



Prefácio Gavetas de Memórias / Gestão Pública O nome “Gavetas da Memória” pressupõe lembranças. Escrever sobre lembranças agradáveis ou não, nos informa que nossos neurônios estão ativos e isto já é muito bom, principalmente aliado ao prazer de produzir. Esta produção literária, valoriza o processo de conhecimento de todos vocês autores deste livro. Parabéns a cada um e ao professor Arth Silva pela orientação deste trabalho que considero brilhante pelo grande alcance emocional, social e cultural do cidadão idoso. Produzir qualidade (vocês perceberam) exige dedicação. Como Prefeito, tenho colocado como foco do meu governo uma gestão que valorize e beneficie o cidadão, que destaque Ituiutaba, como terra das possibilidades. Queremos uma gestão com: • Servidores qualificados; • Melhoria de atendimento; • Qualidade na prestação de serviços; • Infraestrutura urbana que ofereça qualidade de vida a todos. Enfim, modernização de gestão para o cidadão Ituiutabano. Como vocês, o serviço público quer produzir e produzir melhor, nós estamos trabalhando para isto. Grande Abraço. Luiz Pedro Correa do Carmo Prefeito Municipal de Ituiutaba



Prefácio Gavetas de Memórias Gavetas. Gavetas que abrem, gavetas que fecham, guardando histórias de vida; livros, lenços, cartas, jornais, papéis, flores e pétalas secas, retratos de horas felizes, jornais antigos, significativos. Gavetas que abrem, fazendo vivas as lembranças de coisas vividas... E as lembranças invadem a memória, saltam aos olhos e a mão segurando o lápis as transportam para o papel e nasce este livro. Da inspiração de muitos, orientados pelo professor Arth Silva, “Cidadãos” renascem no prazer de escrever. Parabéns para os autores e ao professor que, ensinando, aprende a fazer autoestima. Sônia M.C.Corrêa do Carmo Secretária Municipal de Desenvolvimento Social





CRAS - Brasil

20 “muleques” que perderam o trem

Ana Rosa Azevedo

Com mais ou menos uns 12 anos, lá no estado de São Paulo, eu ajudava meu pai no corte da lavoura, além de ter de preparar e levar o almoço de todos os trabalhadores que ajudavam meu pai na colheita de cana, arroz, feijão. Cada colheita tinha seu tempo, tudo na beira do Rio Grande. Era um ritual cotidiano. Todo dia às 6 horas da manhã eu começava a preparar o rango para os cortadores de cana que trabalhavam com meu pai. Eram uns 6 amigos e meus 9 irmãos, por isso eu tinha de preparar mais ou menos uns 20 “muleques”, era assim que chamávamos as marmitas. Às 8 horas da manhã, eu pegava o trem para chegar no “pé do eito” e entregar os “muleques” para turma de trabalhadores. Eu não podia atrasar. 8 horas em ponto eu tinha que pegar o trem. Então eu disparava na correria com aquele tanto de “muleque” nas costas. Era um aperto, mas eu sempre conseguia. Às vezes chegava mais cedo e, para saber se o trem estava vindo, eu colocava o ouvido no trilho do trem até sentir o tremor. Mas teve uma vez que o trem foi mais rápido que eu... Assim que eu vinha chegando, vi o trem indo embora e eu ficando com aquele tanto de “muleque” nas costas e com um desespero na cara. Eu tinha que fazer alguma coisa. Não podia 15


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções deixar o pessoal sem comida. Então tive uma ideia! Vi um trole, que é aquele carrinho pequenininho, manual, que fica muitas vezes perto da linha do trem. Coloquei todos os “muleques” lá dentro e comecei a empurrar o trole com uma espécie de remo que o carrinho possui; cada vez que eu puxava com força, ele andava um pouco. Foi assim por mais de 40 quilômetros. Se canseira matasse, nem viva eu estaria hoje; estava tão cansada que se deixassem eu chegava e comia sozinha aqueles vinte “muleques”. Quando cheguei, a fome dos homens era tanta que nem repararam que eu tinha atrasado e que estava quase morta de cansaço, mas com um sorriso no rosto por ter conseguido entregar todos os “muleques”. Hoje, mais de 60 anos depois, lembro-me dessa história cansativa com muito orgulho. Foi ali que aprendi que a força de vontade é a coisa mais importante na nossa vida. Graças a isso venci desafios e conquistei vitórias. Atualmente tenho uma grande família de 10 pessoas; para eles preparo os melhores “muleques” e entrego direto na mesa com a maior alegria. E tudo isso, sem precisar pegar nenhum trem.

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CRAS - Brasil

Eu, o galo e o Pedro

Antônio Pedro da Silva

Em uma manhã qualquer, um vizinho pediu, sabe-se lá o porquê, para a minha mãe deixar no nosso terreiro um galo bravo que ele tinha por lá, mas o galo dele era muito briguento e começou a caçar confusão com o galo lá de casa. Todos os dias, eu e meu irmão Pedro levantávamos bem cedinho para ver os galos brigarem. Era uma animação! Até que um dia minha mãe não aguentou mais aquilo e mandou nós molharmos os galos para eles pararem de brigar. E lá fomos nós, pegamos os dois galos e, para molhá-los direitinho, os levamos para o córrego perto da minha casa. Chegando lá, afogamos os galos e nessa molhação de galo toda, sem querer matamos o galo do vizinho. Então meu irmão perguntou: − Jogamos o galo fora ou levamos para comer? Quando minha mãe ficou sabendo da notícia, ela já logo disse desesperada: − Quando eu disse para molhar os galos não era isso que eu estava pedindo, seus moleques! Era só para jogar água em cima deles! Agora vamos ter que pagar o galo do vizinho! Ouvindo aquilo, eu e meu irmão já pensamos rápido: 17


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções − Cozinha o galo e faça coxinha mãe, aí venderemos essas coxinhas para pagar o galo! E assim ela fez. Naquele mesmo dia fomos vender as coxinhas para o próprio vizinho, dono do galo. Com aquele dinheiro deu para pagarmos o galo e ainda sobrou grana para fazermos um monte de coisas naqueles tempos. Ah, dinheirinho bom! Se eu soubesse daquilo antes, teria afogado o galinheiro inteiro!

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CRAS - Brasil

Meus amigos carneiros

Eurípedes Bazílio (Cabo Bazílio)

Quando eu tinha 12 anos, meu pai se mudou para Presidente Olegário, Minas Gerais. Ali ele comprou um carro de boi pequeno e 8 carneiros para puxar o carrinho e nos ajudar no trabalho. Todos os dias eu ajudava meu pai a juntar lenhas nas fazendas e cuidar dos carneiros que, com o tempo viraram meus amigos e companheiros, os quais eu levava para pastar todos os fins de tarde. Antes disso eu até tentei trabalhar com outras coisas. Uma vez quando eu tinha 6 anos, tentei ser engraxate; Saí empolgado pelas ruas de Uberaba com a caixa de engraxate pendurada nos ombros, mas infelizmente, para minha decepção, naquela época, 1947 mais ou menos, quase ninguém tinha era sapato na cidade, por isso desisti. Como eu estava dizendo antes, eu era candeeiro do carro de carneiros do meu pai, que é quem vai à frente guiando os carneiros. Dengoso e Limão, eram os dois carneiros que eu mais gostava e, por isso, iam sempre à frente do restante. Eles me seguiam muito bem. Até que uma vez, ao atravessar um ribeirão, os carneiros ficaram com medo e se recusaram a passar pela água. Meu pai 19


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções que era um homem muito bravo tentou bater nos carneiros com o chicote e ainda assim eles não moviam as patas. Era tanta chicotada que até eu, que estava ali junto deles, levei um punhado nas costas; acho que apanhei mais que os carneiros. Éramos realmente companheiros. Para resolver a situação, meu pai afundou a cabeça dos dois carneiros da frente, Dengoso e Limão, na água para eles se assustarem, correrem e puxarem o grupo. Me deu uma pena daqueles dois naquela hora... Mas deu certo e a viagem continuou. Depois de uns meses meu pai inventou de se mudar para a Usina Junqueira, em São Paulo e por isso quis se desfazer dos meus amigos carneiros. Vendeu um pouco e matou o resto. Fez um almoço caprichado, mas talvez o almoço mais triste da minha vida, no qual eu comi os pedaços daquela carne gostosa, com lágrimas nos olhos e segurando o choro, lembrando daqueles meus companheiros que apanharam junto comigo.

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O último tchauzinho

Célia Maria Santos

Ali no bairro Junqueira, em Ituiutaba, morava minha madrinha Síria. Certa noite enquanto ela fazia umas roscas na cozinha, um gato entrou e começou a se esfregar nas pernas dela. Toda hora ela tocava o bichano e ele voltava. Até que ela não aguentou mais aquele gato esquisito e resolveu tomar medidas drásticas. Como muita gente daquela época, ela usava lamparina em casa, então ela pegou a lamparina, apagou o fogo e derramou todo o querosene que tinha lá dentro em cima do gato, o qual saiu correndo assustado pela casa na hora. Foi quando ela me gritou: − Célia, risca esse fósforo aí do seu lado e joga nesse gato! Com toda inocência, eu risquei e soltei o palito em cima do gatinho. O coitado correu em chamas miando alto pelos terrenos vizinhos... Aquilo me deu um aperto no coração... Depois disso, ele nunca mais apareceu. Passado alguns dias, para o azar da minha madrinha, outro gato apareceu lá na sua casa, fazendo a mesma coisa: roçava nas pernas dela sem a menor vergonha. Aí minha madrinha não pensou duas vezes, já pegou o querosene e foi na direção do gato. 21


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Na hora ela me gritou: − Célia, pega o fósforo! Como todo o remorso que eu havia ficado desde a última vez, eu gritei: − Não vô pô fogo no gato, não! Eu já pedi perdão pra Deus e prometi nunca mais fazê isso! Fazê essas coisas com os animal é maldade, Deus castiga! Se quiser colocar fogo nele, a senhora coloca sozinha! E assim ela fez. Jogou querosene no gato que arisco, saiu correndo pelos quartos, e minha madrinha atrás dele com o fósforo aceso na mão. Quando ela o encantoou, riscou outro fósforo, já que o primeiro já tinha apagado e o atirou nas costas do gatinho. O gato saiu correndo em brasa pelos mesmos lugares onde antes tinha se encostado cheio de querosene. Por onde passou com as costas ardendo de fogo, foi acendendo labaredas e enchendo de fogo todo o quarto. Por sorte, naquele dia conseguimos apagar o fogo no quarto e ninguém se machucou, só o gatinho, o qual fugiu e ainda bem que nunca mais voltou. Eu sempre fui muito apegada a minha madrinha Síria e a sua filhinha, a Sueli. Eu estava ali quase todos os dias e ajudava a cuidar da Sueli, que tinha 2 aninhos e, para mim, era quase uma filha. Naquele mesmo dia, quando eu estava saindo para ir embora, já do outro lado da rua da casa da minha madrinha, olhei pra trás e vi Sueli sozinha, encostada na porta, me olhando e sorrindo como um anjo fofo, de bochechas rosadas. Eu gritei seu nome e ela sorriu mais uma vez, colocou a mãozinha na testa para me ver melhor e deu aquele tchauzinho mais gostoso e inocente, balançando os bracinhos gordos e os cabelinhos de ouro cacheado. No dia seguinte, enquanto eu passava pelo pasto, na beira do rio, de repente ouvi um barulho forte de vento que me arrepiou toda e me fez olhar para trás onde vi uma moita balançando; foi quando por detrás daquele arbusto pequeno, quase que por mágica, surgiu um cachorro grande, todo amarelo, com apenas a ponta do rabo branco; ele me olhou profundamente e ficou ali me encarando por longos minutos sem nem piscar os olhos. Era um animal como eu nunca havia visto. Algo que não tinha a energia 22


CRAS - Brasil de um cão, e sim de um mau pressentimento. E, da mesma forma que surgiu sem nenhuma explicação, quando olhei para o lado devido a outro sopro forte do vento, o cão havia sumido. Naquela noite enquanto minha priminha Sueli brincava no quarto junto com mais 3 crianças, por algum motivo desconhecido, a lamparina caiu sobre a cama de casal onde eles brincavam e foi rolando, até bem próximo deles; nisso o querosene começou a derramar e seguir uma única direção: a minha priminha. Naquele momento, um sopro de fogo riscou a noite e consumiu Sueli por inteira, que nem gritou, apenas ardeu em chamas enquanto as outras crianças choravam de medo. O fogo, por mais surreal que isso seja, não queimou nada no quarto, nem o forro da cama, nem qualquer um dos tecidos do quarto, apenas minha priminha Sueli. No hospital, Sueli, toda enfaixada devido às queimaduras graves, levantou com dificuldade e disse baixinho: − Mamãe! A tia Cota, que a carregava no colo naquele instante, perguntou: − A cumade Síria? A sua mãe? − Não − ela disse novamente bem baixinho, balançando a cabeça. − A Célia? – Minha tia Cota perguntou. Roseli fez que sim com a cabeçinha. − O padrinho foi lá buscar ela – tia Cota respondeu – espera só um pouquinho, que ela já está chegando... Infelizmente não cheguei a tempo de ver os últimos instantes da minha priminha Sueli, mas sei que ela ainda está me esperando em algum lugar. Esperando para me dar um oi tão doce e lindo como aquele último tchauzinho que ela me deu na porta de sua casa, onde eu a vi pela última vez.

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Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções

O dia que não chorei

Dionísio Guimarães

Lá estava eu, na inocência dos meus 5 anos, quando vi aquele tanto de gente entrando na minha casa na fazenda Mariana, na Paraíba. Eu nunca tinha visto tanta gente reunida. A minha casa estava lotada, parecia uma festa. Mas todos tinham o rosto molhado; eu andava entre as pernas da multidão e queria achar minha mãe para perguntar o que era aquela reunião, mas não a encontrava. A porta do quarto dela estava fechada. Na minha ingenuidade da infância, mal sabia que aquela por quem eu procurava, jamais voltaria àquela casa; porque aquilo, não era uma festa, nem reunião, era na verdade, o velório da minha mãe. Um velório que eu nunca chorei. Mas, mesmo ainda não tendo idade para ter sentimentos eu senti que estava perdendo algo muito importante na minha vida.

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CRAS - Brasil

Amor apaixonado

Conceição Cândida de Jesus

Foi em um pagode para lá de animado que encontrei pela primeira vez o moreno mais lindo que já conheci. Era um negro de boa altura, que me conquistou em cada um dos passos de dança “coladinha” daquela noite. Quando eu menos esperava um beijo roubado me acertou os lábios. Fiquei assustada, mas um sorriso escapuliu da minha boca naquele instante e, como resposta eu lhe dei outro beijo que fez aquela noite se tornar inesquecível. No outro dia, para minha alegria, aquele moreninho estava lá em casa para me ver. E, na noite seguinte, a alegria tingiu meu rosto quando ouvi pela janela o violão dele na mais linda serenata. Eu estava apaixonada. Tudo perfeito, só um detalhe atrapalhava tudo. Era meu pai, que dizia com raiva: − Não sei o que você vê nesse “nego”! E eu respondia rápido: − A mesma coisa que o senhor viu na minha mãe – é que minha mãe, para quem não sabe, era bem mulata, quase negra, só que de cabelos bem lisos. − Com ele você não vai se casar! – meu pai resmungava antes de virar as costas e sair. 25


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Eu estava cansada daquilo. Arrumei minhas malas e, sem me preocupar com o que meu pai achava, junto com o meu namorado peguei um ônibus às 7 horas da manhã com destino à felicidade ao lado de quem eu amava. Percorremos um caminho de mais de vinte anos juntos e, nesse tempo colocamos 8 filhos na bagagem. Se hoje eu pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo. Não me arrependo de nenhuma atitude desde que conheci aquele moreno lindo, Adelino Marques dos Santos, com quem compartilhei as melhores lembranças da minha vida.

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CRAS - Brasil

Eita gata safada!

Dionísio Guimarães

Quando eu era pequeno, minha tia Antônia tinha uma gata para lá de atentada, que fazia cocô em baixo da cama todo dia. Então, chegou um ponto que minha tia não aguentou mais aquilo e pediu para o meu irmão, o Antônio, matar aquela gata. E, para ajudá-lo, eu e meu outro irmão, o Ivo, sempre estávamos ali. Para a gata não escapulir, eu a peguei pelas patas da frente, o Ivo pegou pelas patas de trás, enquanto o Antônio segurava pela cabeça e socava ela dentro do saco. Levamos a gata para dentro da mata, lá bem longe de casa, debaixo de um pé de Embu. Antônio me mandou tirar a gata de dentro do saco, mas eu fiquei com medo é daquela gata me arranhar todo e com muito cuidado fui abrindo o saco. Quando eu abri, a gata deu um baita pulo para riba e saiu na correria pelo mato afora. Não podíamos falar para a tia Antônia que não conseguimos matar aquela gata e que tínhamos ido tão longe para nada, por isso, eu dei a ideia de falarmos que a gata estava morta. Ela nunca ia descobrir a verdade. Quando eu, Ivo e Antônio chegamos em casa, contentes por ter “matado” a gata, nos deparamos com os gritos da minha 27


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções tia. Fomos ver o que era e, para o nosso azar, ela gritava pelo pior. Um monte de cocô de gato embaixo da cama. Quando olhamos para o terreiro vimos a gata lá, vivinha, olhando para nós e tirando sarro, como que dizendo: eu sou mais esperta que vocês! Naquele dia minha tia ficou brava demais com a gente. E disse: hoje realmente não era dia de a gata morrer, mais por castigo, vocês, Dionísio, Antônio e Ivo, vão catar a bosta dessa gata, debaixo da cama, todo dia a partir de agora! E esse castigo durou muitos anos, até o dia em que eu não encontrei mais cocô debaixo da cama, encontrei foi a gata morta. Até hoje quando olho para uma cama velha já sinto o cheiro de cocô de gato no meu nariz.

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CRAS - Brasil

Um olhar. Uma cachaça. Um casamento

Divina Maria Domingues

Eu morava no Córrego da Areia, em Ituiutaba, lá perto da “Serra do Corpo Seco”. Tinha meus 15 ou 16 anos e trabalhava na roça, plantando arroz e milho junto ao meu pai, o qual tinha um pequeno pedaço de terra por ali. Era só eu, meu pai e minha irmã cuidando de toda lavoura. Por isso um dia, o fazendeiro vizinho, para ajudar o meu pai na plantação, organizou durante um único dia, um mutirão com um mundo de peões que trabalhavam para ele, a fim de que todos nos ajudassem nos serviços da lavoura. Agora eu, meu pai e irmã, tínhamos companhia e tudo era mais fácil, pelo menos por um dia. Enquanto eu capinava, comecei a observar um rapaz interessante que trabalhava ali bem pertinho de mim; ele era todo caladinho e até bonito comparado com aquele tanto de homem velho e carrancudo. Então comecei a olhá-lo com o rabo de olho e, não demorou para ele perceber e começar a me olhar também. Ficamos ali desse jeito a tarde toda, só comendo um ao outro com os olhos. Fiquei até triste quando o dia de trabalho acabou e aquele rapaz caladinho foi embora... Durante os próximos dias eu não parava de pensar no rapaz cujo nome eu nem sabia. Acho que meus pensamentos foram 29


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções tão fortes que, depois de 15 dias, aquele rapaz com quem troquei olhares na plantação, estava lá em casa; e não era pra trabalhar; foi lá em casa é para pedir ao meu pai a permissão para namorar comigo. Meu pai ficou receoso por não conhecê-lo, mas aceitou. Aí começamos aquele namoro à moda antiga, em que não podíamos nem encostar um no outro e meu namorado conversava mais com meu pai do que comigo. E assim foi por mais de um ano quando finalmente marcamos nosso casamento. No dia do casório, tudo parecia perfeito até que, enquanto eu me vestia e arrumava os cabelos, a irmã do meu noivo chegou apavorada: − Meu irmão não vai se casar mais! Ele disse que não vem! Naquela hora meu chão desabou e minha maquiagem foi embora com as lágrimas... Mas eu não queria aceitar! Aquilo não podia ser verdade! Minha família também não acreditava e pediam para que eu fosse para casa, mas eu bati o pé e falei que iria para o cartório e para a igreja, mesmo que ficasse esperando e fosse abandonada no altar. Eu sabia que ele iria repensar e aparecer! O casamento tinha sido marcado para as 17 horas no cartório; já eram 17h30min e nada dele... O pior ainda estava para acontecer. Foi quando de repente o patrão o meu noivo entrou pela porta do cartório! Ele tinha em suas costas o meu noivo, balbuciando de tão bêbado. E assim foi nosso casamento, meu noivo bêbado tropeçando em tudo e eu até soluçando de tanto chorar. Na igreja me casei enquanto seguravam meu noivo no altar. Aí o padre fez a pergunta: − Você aceita Divina Maria como sua legítima esposa? − Hmmm? – meu noivo respondeu. O padre teve que repetir mais duas vezes até ele responder algo que desse para entender. Foi assim que nos casamos. No outro dia, quando meu marido acordou de ressaca e viu que tinha se casado, quase entrou em desespero, mas depois acabou aceitando. Essa história que hoje me mata de rir, me deu 2 filhos e os melhores momentos da minha vida. Essa é a historia que sempre sou eu quem tenho que contar, até porque, meu marido, por causa da cachaça, não se lembra de nada. 30


CRAS - Brasil

Cacunda quente

João Antônio da Silva

Lá na Fazendo do Córrego do Macaco, em Ituiutaba, eu, com uns 8 anos de idade, ajudava meu avô a puxar milho e cana, tudo com carro de boi. Um dia minha irmã Célia me gritou pedindo um favor para lá de maldoso: − “João, chama o Ari e coloca ele no formigueiro”. Ari era o nosso priminho que tinha 3 anos de idade e morava ali com a gente. Como minha irmã Célia era mais velha e sempre sabia o que estava fazendo, então eu obedeci sem questionar. Com um sorriso no rosto, eu chamei meu sobrinho; ele veio feliz e pulou nos meus braços. Já no colo, não deu outra, me virei para o lado do terreiro e fui colocar o Ari no lugar prometido. Alguns minutos antes, eu soquei um galho no formigueiro e sacudi até ficar pretinho de “formiga-lava-pés”. Ficaram iguais a marimbondos, até estralavam! Ali naquele buraco de formigas alvoroçadas eu coloquei a bunda do meu sobrinho. Não precisou nem segurá-lo, as formigas atacaram com gosto. O menino ficou até preto; era grito, choro para todo lado. Num instante minha mãe apareceu e salvou meu sobrinho que era só calombo. 31


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Nessa hora eu já tinha corrido para longe na capoeira da fazenda. Quando cheguei, minha mãe veio me chamar com cara de brava: − “João! Vem cá”! Eu fui me aproximando devagarzinho e minha mãe não perdoou, me catou, jogou no chão e me chegou sem dó, uma surra servida. Enquanto eu apanhava, vi lá longe minha irmã morrendo de rir pela janela. Ah! Eu não ia deixar isso assim! E minha mãe continuava batendo: −“Isso é procê aprendê a não colocá seu primim no furmiguêro!” − “Mas mãe! – eu gritei – Quem pediu pra eu fazê isso foi a Célia!” − “Larga de mintira!” – ela respondeu – “Ah, se a Célia ia fazê uma coisa dessa! A Célia nunca ia fazê isso cum ninguém!” − “Mas mãe!” − “Cala a boca e apanha minino!” Naquele dia eu apanhei tanto que deve ter doído mais do que as picadas de formiga do meu priminho Ari. Ah, vocês devem estar se perguntando sobre a minha irmã malvada, a Célia. Se eu descontei e aprontei alguma com ela. Eu até pensei em fazer isso, mas se eu fizesse iria apanhar dobrado, então deixei de lado. Até hoje devo uma surra a ela, 70 anos depois daquela surra feia que levei e tive que dormir com a cacunda quente. Ah, mas eu ainda desconto!

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CRAS - Brasil

A cobra voadora

José Divino Pereira

Em 1962, eu tinha 7 anos de idade e morava na fazenda. Certo dia, vi meu tio saindo pra pescar e muito animado, pedi para ele me levar. − Você vai – respondeu ele – mas não teima quando estivermos lá! Ele foi indo para o rio com a vara de pesca no ombro e eu atrás dele, pulando de alegria. Chegando lá no “Ribeirão dos patos”, meu tio, com toda calma, jogou o anzol na água e começou a pescar; eu, sem ter o que fazer e vendo aquilo, não aguentei e perguntei para ele se eu também poderia pescar, mas para minha tristeza, ele não deixou. Aí fiquei por ali, sem rumo, andando perto do barranco enquanto meu tio estava em um galho bem em cima da água do rio. Em um arbusto, achei um pedaço de corda velha que me deu uma ideia. Subi em uma árvore atrás do meu tio, sem que ele visse e, quando ele estava despercebido, joguei a corda no seu pescoço e gritei: − Olha a cobra tiioooo! Ele levou um baita susto! Soltou a vara e caiu do galho bem de costas na água. 33


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Para não apanhar eu corri para o mato até chegar num pasto. Quando meu tio olhou para onde eu estava correndo ele viu um monte de bois bravos e foi correndo para o pasto com o intuito de me acudir, gritando: − Cuidado meu filho! Está cheio de boi no pasto! Sai daí! Mas os bois nem me viram, ficaram furiosos foi com seus gritos e foram para cima dele que agora fugia dos bois. Enquanto isso, eu dei a volta e fui para o rio novamente, peguei a vara do meu tio que estava boiando e comecei a pescar. Quando meu tio voltou todo suado de tanto correr de boi eu já tinha pescado uma Tubarana gorda e estava com um sorriso grande na cara. Como ele já estava cansado, me deixou lá pescando e me divertindo. Só depois, quando ele viu a corda boiando na água que ele foi descobrir a verdade sobre a cobra voadora; mas aí, para minha sorte, ele deixou a raiva para lá e fomos pescar. A partir desse dia, todas as vezes que ele ia pescar sempre me levava junto para contarmos causos e rirmos, principalmente daquela história da cobra brava que o atacou.

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CRAS - Brasil

História de repentista

Maria da Penha Guimarães

Quando eu era pequena, com mais ou menos 11 ou 12 anos, o meu irmão José teve a grande ideia de nós 2 cantarmos repente na rua para podermos ganhar um dinheiro, já que papai não queria nos dar nenhuma moeda para gastarmos na feira. Eu topei na hora, mas questionei: − Zé, como vamos cantar repente sem pandeiro e ganzá? O Zé respondeu rápido, com um sorriso no rosto: − Isso é fácil! Quer ver? Menino esperto que era, fez um pandeiro para ele com uma lata de doce de goiaba, e para mim, fez um ganzá com uma lata de óleo. Aí combinamos: − Eu vou com uma saia da minha mãe – eu disse − e ponho um pano enrolado na cabeça para que ninguém possa me reconhecer; você vai com um chapéu do papai. Estávamos prontos! Chegando lá na feira, eu forrei um pano no chão e, sem medo comecei cantando: − “Ô patrão que vai passando, olhe cá, repare bem, o pecador nega o outro, mas Deus não nega a ninguém!”. Daí eu pegava a bacia e ia passando: 35


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções − Ponha uma moedinha aqui seu Zé, que é pra eu comprá comida pra meus irmãos que ficaram em lá casa com fome! E as pessoas em volta iam se aproximando e jogando moedas na bacia enquanto eu continuava a cantar: − “Eu cantei em bananeira, tu roubaste uma esteira da velhinha se deitar!” Aí meu irmão respondia: − “Eu morava no mar! Eu morava no maaar...” Daí vinha eu: − “Quando Deus gerou o mundo, deixou tudo separado. O sul para plantar cana e o sertão para criar gado, moça pra se dar beijo e eu dar em cantor safaaadoo!” E irmão: − “Eu morava no mar! Eu morava no maaar...” Quando ele terminou, eu já peguei a bacia e fui passando. Todo mundo jogava moedas. Éramos um sucesso! − Seu Zé, ponha uma moeda aqui, pode ser só cinco tostão, que já mata a fome da nossa família! Aí um senhor que passava disse: − Por que tão pedindo dinheiro? Por acaso estão passando fome? Quando eu olhei para a cara do senhor, levei um susto, era papai nos olhando com cara de bravo e desapontado. Naquele momento fiquei com tanta vergonha, que olhei pra baixo e falei: − Nós só estávamos brincando de cantador papai, perdoa a gente. − Vocês me matam de vergonha! – ele respondeu bravo – Vão para casa agora, que eu já chego lá e acerto com vocês dois! Recolhemos nossas coisas e fomos embora tristes e envergonhados, já preparados para uma baita surra. Quando chegamos em casa, entreguei todo o dinheiro que ganhamos a papai. Era tanta moeda naquela bacia pesada que ele até sorriu quando entregamos. Ele ficou tão entretido contando as moedas que até se esqueceu de nós. Acho que foi por isso que nós nem apanhamos...

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CRAS - Brasil

A cabrita em queda livre

Maria Leucade

Fui criada com leite de cabra, e como todo mundo sabe, cabra é um bicho arteiro, pula e sobe em tudo que há. Eita bicho atentado! Então esse leite deve ter contribuído muito para o meu crescimento. Um dia a meninada da vizinhança da fazenda ali perto de Ipiaçu, se reuniu embaixo de uma mangueira enorme para brincar, as meninas faziam comidinha, cantavam, dançavam, enquanto os meninos saiam para matar passarinho e trazer para as meninas cozinharem e todos poderem comer. Estava eu ali embaixo da mangueira, cantando calmamente quando olhei para cima e vi aquela manga graúda, quase que olhando para mim de tão suculenta, era amarelinha, parecia brilhar no meio das folhas. − Vou pegar aquela manga mesmo! – falei alto e com peito estufado. E lá fui eu, com minha agilidade de cabrita, subindo a mangueira como só eu conseguia. Fui escalando o tronco, pulando de galho em galho. Parecia uma trapezista da selva. Ali estava aquela belezura... bem na minha frente; peguei com gosto. Foi quando ouvi um “CRACK!” Era o galho onde eu estava se quebrando. 37


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Caí igual manga madura lá do alto. Fui caindo ligeiro, nem deu tempo de gritar, mas sem largar minha manga graúda, claro. Lá no chão, toda esfolada, fiquei estirada na poeira com a manga na mão enquanto os meninos todos me olhavam assustados. Para piorar, aquela dor já me dizia tudo que tinha acontecido. Meu pai, que limpava um pasto ali perto, ouviu a barulheira da molecada e veio correndo enquanto todos gritavam que eu tinha quebrado o pé. Meu pai não pensou duas vezes. Tirou o correão da cintura e gritou bem alto: − Agora eu te pego sua cabrita! Quem mandô subi nessa árvore, cair e quebrá o pé? Para minha sorte, naquele momento minha mãe veio correndo me socorrer: − Que isso homi! Bate nela não, ela já caiu, tá cum pé quebrado e ocê ainda qué batê nela? Aí, meu pai respirou fundo, deu uma fungada e disse: − Fia minha apanha até se sofrê acidente na rua! Mas graças a minha mãe que muito implorou, daquela vez eu escapei, mas na outra arte que aprontei depois, que nem lembro qual foi de tão sem importância, apanhei servido e sem dó para compensar essa vez que escapei. Apanhei tanto, mas tanto que doeu bem mais do que cair da mangueira.

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CRAS - Brasil

Cabeleireira por um dia

Maria Salete

Quando eu era bem jovem, tinha mais ou menos meus doze anos de idade, queria muito ir à festa de aniversário de um menino da minha rua de quem eu gostava; então pedi para a minha mãe deixar que eu fosse; ela deixou, mas só com uma condição “só se for com seu irmão, porque assim ele te olha!”. Poxa, que raiva! Meu irmão era chato e não deixava ninguém se aproximar de mim. Sem muita escolha eu concordei. Então chegou o dia de irmos para a festa. A mamãe não estava em casa, e eu queria ir nessa festa, só que eu queria ir sozinha; precisava aprontar algo, então falei brava com o meu irmão “você não vai na festa assim! Você está muito cabeludo, vai passar vergonha lá!”; aí peguei uma tesoura e falei mais uma vez com toda a confiança do mundo “senta nessa cadeira e vamos cortar esse cabelo!”; ele falou que eu não dava conta de fazer isso e eu levantei a voz com mais autoridade ainda “dou conta sim! Se você não deixar, você não vai na festa comigo!”. Então ele se sentou e eu comecei a cortar o cabelo dele. Fígaroo! Figaroooo! Deixei a cabeça do meu irmão com tantos erros, tantas falhas, que o cabelo dele parecia o mapa do Brasil com aquele tanto de divisões. 39


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Não satisfeita com aquilo, peguei a Gilette do meu pai “vamos fazer sua barba!”; aí passei sabão nas suas bochechas e comecei então a fazer minha arte. Ficou tão bem feito que raspei até as sobrancelhas dele! Ele ficou realmente ridículo, ele não iria querer ir daquele jeito para a festa. Quando a minha mãe chegou da rua e olhou para o meu irmão “minha nossa! Quem fez isso com você?”, ele apontou para mim e não tive como fugir; mamãe me pegou de cinta e chegou o coro, mas o que mais doeu foi ela gritando “agora que você não vai mesmo pra essa festa!”. No fim, nada tinha adiantado. Meu plano que parecia perfeito foi por água a baixo. O tiro saiu pela culatra: além de ter apanhado, ainda fiquei de castigo e não pude ir para a festa. Mas quer saber? Nos dias seguintes eu ri muito, porque pelo menos eu tinha as minhas sobrancelhas.

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Peixe bão se pega com a mão

Oraides Maria da Silva

Lá estava eu na Fazenda Soledade, no município de Canápolis. E aquele sol forte esquentando o telhado de casa me deu uma vontade de pescar... Ali pertinho tinha um poço onde eu pescava com frequência. Além de dona de casa, sempre fui uma ótima pescadora, por vezes, pescava melhor do que o meu marido. Com a vara e a capanga nas mãos, eu parti para o rio naquela tarde ensolarada ao lado dos meus cunhados, Lucélia e Ranon e também da minha amiga Alice, todos ótimos pescadores. Para a pescaria eu tinha uma tradição especial. Levava toicinho, tripa de frango e a costumeira minhoca. O peixe Piau adorava aquele toicinho, dava até pulos n’água. Chegando lá, armamos nossas varas e jogamos as linhas na água, a minha isca, com toicinho, claro. Ficamos ali de molho. Passaram horas e ninguém pegava nada. Até que de repente minha vara tremeu. – Agora eu pego um peixe! Mas o peixe era tão forte e puxou com tanta, mas tanta força, que quebrou minha vara. Vi com os olhos cheios d’água minha vara indo embora na correnteza. Fiquei ali triste... até que olhei para baixo e vi um pedaço da linha do anzol correndo na beira do rio. Segurei rápido aquela 41


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções linha e comecei a puxar com toda minha força. Fui puxando até ver na ponta da linha um enorme Piau. Peixe grande mesmo! Um butelo! Então, depois de tirá-lo da água, eu levantei bem alto aquele Piau encorpado, para todo mundo poder ver! Meus cunhados olharam surpresos por eu ser a única a pescar alguma coisa naquele dia. Por isso, até hoje, guardo na memória aquela tarde em que consegui pegar o maior peixe da minha vida, e o melhor disso tudo, com a mão.

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Manhã congelada

Osvaldo Gunes

Hoje eu acordei às 6 horas da madrugada. E, às 7 horas, a Van da prefeitura de Ituiutaba passou para buscar minha esposa Rizoleta e levar para a Terapia no IMOT. Nó rapaz, mas tava frio! Eu tremia tanto que parecia que eu estava dançando e, para piorar, minha esposa, para não passar frio sozinha me levou junto. Chegando lá, eu fiquei sentado em um banco, tremendo de frio e esperando a Risoleta terminar a terapia. Às 9 horas ela terminou e eu fiquei aliviado. Ufa! Finalmente eu ia embora sentir frio em casa! Quando cheguei lá em casa, o frio ainda era tanto que passei uma faca no meu braço e nem sangue saiu, estava tudo talhado. Então eu entrei debaixo de 4 cobertas e continuei tremendo de frio, tentando dormir e sonhar com um lugar quentinho e com sol quente.

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Menina sapeca

Rizoleta Alves da Silva

Quando pequena, mais ou menos com meus 8 anos de idade, eu sempre levava para a escola minha boneca que dei o nome de Cassuleta, só pra combinar com o meu. Lá na escola, todas as meninas também levavam suas bonecas para brincarmos no recreio. Só que, como irão ler, eu era muito custosa. Certo dia, eu combinei com minha colega de classe de roubarmos e escondermos a boneca da Fátima, porque ela era a menina mais brigona da escola. E lá fui eu, abri a mochila da Fátima, tirei a bonequinha dela e coloquei dentro da bolsa de uma das minhas amiguinhas da sala, para que o professor, caso procurasse na minha mochila, já que todos sabiam que eu não ia com a cara da Fátima, não encontrasse nada. Na hora certa bateu o sino e todas saíram para brincar; quando Fátima procurou sua boneca e não achou, já veio em cima de mim e foi logo puxando meus cabelos e me acusando. Eu gritei alto e, para minha sorte, o professor veio correndo separar a briga dizendo que ia colocar nós duas de castigo; mas aí eu falei para ele que ela estava me acusando de ter roubado a boneca dela, mas eu não tinha feito isso, que ele podia olhar na minha mochila. Minha cara era de choro e tranquilidade, porque eu sabia que ele nunca ia achar nada, já que a boneca como planejado, estava na mochila da minha coleguinha. 44


CRAS - Brasil Só que para o meu azar, o professor pediu para todas as meninas da classe abrirem suas mochilas. E, como era de se esperar, encontrou a boneca dentro da bolsa da minha coleguinha, que rapidamente falou que não tinha sido ela e quem tinha colocado ali, tinha sido eu. Para piorar, ela contou todo o nosso plano e que eu tinha roubado porque não gostava da Fátima. Então o professor me olhou bem sério e perguntou se tinha sido eu mesma quem tinha feito aquela perversidade. Já aceitando a descoberta deles, eu levantei o queixo e falei que havia sido eu mesma. Por causa disso ele me colocou de castigo e fui punida com a palmatória. Quando cheguei em casa, minha mãe viu minha mão vermelha, me perguntou o que eu tinha feito e, quando eu contei, pensando que minha mãe iria entender, levei foi um castigo pior ainda: daquele dia em diante, ela nunca mais me deixou levar boneca para escola. Eu fiquei com tanta vergonha de ir para o colégio e ser a única menina sem boneca... Por causa disso, aquela boneca que minha mãe não deixou eu levar pra escola ficou tão bem guardada, por tanto tempo que até hoje tenho a minha bonequinha, 76 anos depois dessa história. Ela está aqui em casa, sempre ao meu lado, velhinha como eu, me relembrando histórias inesquecíveis como essa.

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Mordida de macaco

Terezinha Vilhana

Isto aconteceu quando eu tinha 6 anos de idade. Eu não me esqueço, pois meus pais e a marca em minha perna sempre me fazem lembrar deste fato que começou assim: Certa manhã, ganhei da minha mãe um enorme pedaço de bolo; era bolo de mandioca e eu, olhando para aquele bolo saborosíssimo, me lembrei do meu amigo macaco, que morava ao lado da minha casa. Ele adorava comer do bolo de mandioca que minha mãe sempre fazia em nossa casa para o café da manhã ou merenda da tarde. A vizinha, dona do macaco, sempre me dizia para tomar cuidado com ele, principalmente se ele estivesse tomando sol. Mas nesse dia, eu não me lembrei disso e fui correndo até a casa da vizinha dar aquele presente com sabor de mandioca para o macaco. Aquela era uma manhã fria, e o macaco estava lá, todo estirado no terreiro, tomando banho de sol. Quando eu cheguei correndo, ele se assustou e colocou os dentes para fora, fez cara de nervoso e me deu uma enorme mordida na perna. Dona Rosa, a vizinha dona do macaco, ouviu meu grito e veio correndo. − Menina! – ela dizia − Eu já te falei que ele não gosta de ser incomodado enquanto toma sol! 46


CRAS - Brasil Aí, sem chamar minha mãe ou contar para ninguém, ela me levou ao hospital onde tomei vários remédios; o curativo, ela mesma se encarregou de fazer todos os dias, pois minha família não deveria saber que aquele machucado na minha perna era na verdade uma mordida de macaco; pensavam se tratar de um tombo que eu havia levado enquanto brincava e, como a Dona Rosa havia pedido, eu não contei aquele segredo para ninguém. Assim passaram-se muitos dias e minha mãe ficava cada dia mais preocupada em saber como estava meu machucado; se ela me pedia para ela mesma fazer os curativos, eu falava que doía muito e por isso tinha que ser feito pela Dona Rosa, porque ela sabia fazer isso melhor do que ninguém; mas se mamãe perguntava se já tinha sarado, eu sempre respondia que já estava bom e que não doía mais. Intrigada com isso, mamãe me perguntava todos os dias: − Já sarou Terezinha? − Sarou sim, mãe! – eu respondia No outro dia a mesma coisa: − Já sarou Terezinha? − Sarou sim, mãe! No dia seguinte, a mesma coisa: − Já sarou Terezinha? − Sarou sim, mãe! – eu respondia − Mas se sarou e parou de doer, por que não tira esse curativo? – mamãe insistiu Aí eu não agüentei e gritei: − E a senhora pensa que mordida de macaco não dói? Depois dessa, não tive saída. Mamãe não deixou barato, sobrou para o vizinho, para a vizinha, para o macaco, para todo mundo, até para mim... Foi uma confusão! E, mesmo depois de ela me falar para nunca mais chegar perto da casa da vizinha, sempre que ela me dava um bolo de mandioca, eu não resistia, ia lá, de fininho, sem ninguém ver, dar um pedaço para o meu amigo macaco.

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A brincadeira que virou coisa séria

Ana Rosa Mendes

Quando criança, eu e minhas amigas brincávamos de casinha, pique-pega, passar anel, de roda... Aí fomos crescendo e as brincadeiras foram mudando. “Brincadeira” era o nome que usávamos para as festas que aconteciam nas boates e na casa de amigos, onde íamos pra dançar e comer uma boa carne assada. Nessas brincadeiras sempre surgiam os fãs querendo agarrar a mulherada, mas eu sempre fui arisca e conseguia escapar. Todas as minhas amigas bebiam e beijavam um rapaz por festa, eu era a única que não gostava disso. Por isso me chamavam de “Gordinha bobinha”, mas eu nem ligava; não queria ficar passando de mão em mão, pulando de galho em galho feito macaquinha. Foi então que, certo dia, vi em uma festa um rapaz que me chamou muita atenção: era alto, de cabelo bem pretinho e todo arrumado. Para minha surpresa, esse rapaz veio conversar comigo enquanto um outro amigo dele tentava me conquistar. Conversa vai, conversa vem e no fim os dois estavam tentando me conquistar. Faziam propostas que me matavam de rir; foi quando me perguntaram “com qual dos dois você quer ficar?”. Eu olhei bem para a cara dos dois, fiz cara de mistério e disse “Vou pensar!...” Dei as costas e deixei os dois ali intrigados. 53


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Até que um dia, em uma brincadeira dançante na casa de uma amiga, aquele rapaz de cabelo bem pretinho que havia me chamado a atenção há algum tempo, veio novamente falar comigo. Dessa vez não tinha ninguém para atrapalhar nossa conversa e ele sem dificuldades me conquistou em cheio. Namoramos por 2 meses, mas para nossa tristeza, meu pai havia conseguido um emprego para mim no Rio de Janeiro. Fiquei no Rio por 3 anos. Mesmo com essa distância, não queríamos que aquele romance acabasse. Minha alegria foi quando recebi uma carta; era uma carta de amor daquele moreninho bonito que eu namorava em Ituiutaba. Eu respondi e assim foi... Namoramos por carta por 3 longos anos. Enviamos tanta carta um para o outro que daria pra fazer uma estrada com o papel dessas cartas, de Ituiutaba até o Rio. Depois desses anos, finalmente voltei para Ituiutaba e fui direto para os braços daquele moreninho lindo. Namoramos por mais 3 meses quando meu pai disse “Casa minha não é pra esquentá banco! Se namorá tem que casá!” “Eu caso” – respondeu meu namorado – “Mas, só que eu não tenho nada” Aí meu pai riu e disse “Se vira neguinho!” Foi então que nos casamos. Sem muito dinheiro moramos em casa de papelão, de plástico, de pau a pique; mas nós sempre fomos trabalhadores e vencemos cada desafio juntos, mostrando que mesmo com tanta dificuldade, éramos ricos porque a maior riqueza que existe é o amor e a união de uma família. Estou casada até hoje com aquele moreninho arrumadinho, o nome dele é João Francisco da Costa, um grande amor que já dura 40 anos muito bem vividos.

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CRAS - Natal

O menino e a bola

Antônia Batista

Eu sou de uma cidade do interior da Bahia, morávamos na zona rural de lá, eu, meus pais e irmãos. Éramos todos crianças nessa época, o meu irmão mais velho tinha 14 anos quando meu pai resolveu deixar tudo e vir para Minas Gerais. Fomos morar em uma fazenda de Ituiutaba e ali ficamos por 3 longos anos; nesse meio tempo meus pais se separaram. Foi aqui que eu e meus irmãos tivemos que nos virar para ajudar no sustento da casa; então foi um pra cada lado. Eu, com apenas 9 anos fui trabalhar como babá em uma casa de família. Esse foi meu primeiro emprego. Imagine, criança tomando conta de criança. Estava indo até bem, eu dava banho, ajudava o garotinho a comer, vigiava enquanto ele brincava, trocava a roupa dele... Foi quando em um belo dia, essa criança que eu pajeava ganhou uma bola. Brincadeira vai, brincadeira vem, e ele jogou essa bola contra o muro e nesse muro tinha um prego ou ferro solto o qual furou a bola na hora. Aí o menino danou a chorar e gritar. A mãe do menino veio correndo na hora! Eu deixei quieto, e saí, ela iria revolver isso com o filho. Foi quando ela veio de lá brava, jogando na minha cara que foi eu que tinha furado a bola. Não me deixou nem tentar 55


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções explicar. Fiquei P da vida e não pensei duas vezes. Enquanto ela rateava e gritava comigo eu peguei minhas trouxas e a deixei falando sozinha. Fui embora daquela casa com um sorriso no rosto. Não voltei nem para fazer meu acerto.

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Fumantes de quimba de cigarro

Antônia M. dos Santos

Quando eu tinha 10 aninhos, eu e meu irmão que tinha 12 anos aprendemos a fumar. Nós catávamos os tocos de cigarro que meu pai jogava fora, tirava o fumo e fazíamos um fumo para nós dois. Cada um fumava um pouco. Um dia meu pai estava sentado no alicerce do fogão à lenha, fumando seu cigarrão de palha e nós dois pajeando... quando ele jogava fora, nós rapidamente catávamos a quimba para fazer nossos sagrados cigarrinhos. Foi quando ele jogou uma quimba dentro do fogão e meu irmão sem medo, com um tição, puxou o cotoco de cigarro para fora e fizemos “aqueeele” cigarrinho. Meu pai nem percebeu que nós estávamos fumando escondido. Da minha mãe nunca escondemos nossos tragos de quimba. Ela não agüentava mais ver os filhos catando tocos de cigarro para fumar. E, para resolver isso foi reclamar com meu pai: − Sabe, a Antônia e o Laerte? Eles tão catano as quimba que ocê joga fora pra podê fumá. Meu pai, diante daquela revelação ficou furioso, se levantou e gritou: − O quê? Se eu subesse qui eles tava fumano eu mesmo tinha dado o fumo!

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Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções

Buraco no quintal da nuca

Francisca M. dos Santos

Eu e meus irmãos, Zilani, Zilmar e João, íamos toda tarde para o quintal lá do Córrego da Chácara, em Ituiutaba, onde morávamos. Ali podíamos aprontar à beça sem que nossa mãe visse. Em uma dessas brincadeiras, resolvemos nos enterrar. Queríamos cavar um buraco fundo no chão para caber cada um de nós, que éramos pequeninos, cerca de 6 a 7 anos. Talvez por isso éramos tão fraquinhos que só conseguimos dar conta de cavar o buraco até a altura das canelas. Mas éramos brasileirinhos e não desistíamos nunca! Continuamos cavando com o enxadão sem cabo e umas facas que achamos por lá. Enquanto cavávamos para tentar pelo menos fazer um buraco que chegasse à altura dos joelhos, a minha irmã Zilani, endiabrada que só ela, foi tentar me ajudar e, erguendo enxadão sem cabo lá no alto, para pegar impulso e força para fazer um buraco bem fundo quando acertasse o chão, sem querer acertou foi a minha cabeça. O sangue jorrou e eu gritei alto! Até hoje, com 62 anos de idade, a marca forte que tenho na cabeça não me deixa esquecer a tarde em que minha irmã tentou cavar um buraco na terra e fez um buraco foi na minha cabeça. 58


CRAS - Natal

Isaurinha

Aparecida Lelis

Isaurinha surgiu em minha vida como um sopro de esperança e alegria. Aos 6 anos de idade, eu vivia dias tristes, sem companhia e ninguém para brincar. Até que um dia, conheci a Isaurinha, ela era linda, uma boneca com feições de mocinha que falava e se movimentava como gente de verdade; quando ela aparecia, trazia junto consigo uma linda música de ninar, a qual me fazia fechar os olhos e, quando abria, já estava no maravilhoso mundo dela. Lá brincávamos durante horas, tomávamos banho de rio, cantávamos e gargalhávamos sem parar; Aquilo parecia ser um sonho, mas para mim, sempre foi real. Quando eu ficava triste, rapidamente ouvia aquela linda música de ninar que já me fazia sorrir; Isaurinha aparecia e me alegrava com sua conversa amiga e seus abraços de irmã com os quais me levavam para o seu mundo, que era bem diferente do meu, repleto de coisas lindas: raios de sol, gargalhadas, sorvetes de chocolate, guerras de travesseiros, corridas na chuva e... amigos... Um mundo que só fui conhecer anos depois, com quase 12 anos de idade, quando me mudei para a casa dos meus irmãos mais velhos; lá fiz muitos amiguinhos 59


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções e conheci crianças da minha idade. Ali podia brincar com eles e fazer tudo que antes eu só fazia com a Isaurinha. Foi assim que, aos poucos a Isaurinha foi deixando de aparecer porque eu não estava mais só. Nesse momento ela pôde finalmente partir para algum lugar onde, com certeza ela iria fazer companhia para outra criança tão solitária quanto eu havia sido. Hoje sinto saudades e me lembro com muito carinho da minha amiguinha imaginária “Isaurinha”.

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CRAS - Natal

Cavalo doido

Arildo Guimarães (Candinho)

Na Fazenda de Buraca, no município de Quirinópolis, morava toda a minha família; meu pai, Zé Davi Guimarães, era o gerente da fazenda. Nessa época eu tinha por volta de 12 a 13 anos de idade, e ajudava na fazenda cuidando dos porcos, que eram muitos; era tanto porco que não dava nem pra contar. Todo dia cedo e à tarde eu tinha de ir até a cisterna funda da fazenda, buscar água para eles. Um dia estava lá à toa, e meu pai gritou: − Ô Candinho! Espanta esse cavalo solto aí pro curral! Como menino arteiro que eu era, pensei: Ah! Vou tocar esse cavalo nada, eu vou é montar nele e ir galopando calmamente até o curral. Eu sabia que aquele cavalo baio era mansinho, coisa mais dócil, qualquer um fazia amizade com ele por ali; por isso, cheguei bem perto, afaguei a cabeça dele com carinho, segurei na crina e pulei no lombo daquele alazão. Quando estava pronto para guiá-lo até o curral, levei um baita susto! O cavalo disparou com tudo na correria pela capoeira da fazenda, não caí por sorte, mas no meio daquela pressa, só pensei em agarrar o pescoço do cavalo enquanto minha bunda estava no ar por causa dos pulos daquele xucro de quatro patas. Meu pai, me vendo dar uma de peão desesperado nas costas daquele potro, gritava: 61


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções − Paraa! Cê vai caí Candinho! Para esse cavalo! E o cavalo nada de querer parar. Do lado de fora de casa, já se reunia toda a família para ver meu desespero agarrado com todas as forças na crina do bicho. Com aquele movimento e a dor nos meus braços, sem querer eu deslizei de banda e fiquei dependurado no pescoço do cavalo, com as costas perto das patas dele. Se eu soltasse ia direto para o chão e ainda seria pisoteado. Minhas forças já estavam acabando, meus dedos já não agüentavam mais. Eu ia soltar. Para minha surpresa, assim que eu soltei, o cavalo parou e eu caí no chão. Ele parou bem ali, na porta do curral onde eu devia ter o levado. Enquanto o cavalo pastava, agora novamente bem mansinho, eu fiquei lá, estirado no chão, sorrindo para o céu e agradecendo a Deus por ter sobrevivido àquele susto.

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Vestido vermelho

Divina Rodrigues

Eu tinha meus 15 anos quando, em um belo dia de domingo, lá no Baixadão, em Ituiutaba, eu, minha irmã Nilda e minhas primas, saímos para assistir a um jogo de futebol perto da nossa casa. Saíamos todas aprumadas, cada uma mais bonita que a outra, com nossos longos vestidos de renda que por causa das corres marcantes arrancavam olhares por onde passávamos. E lá estávamos nós, caminhando felizes e contentes pela estrada de terra quando já bem pertinho do campo, de dentro do seu cercado, uma vaca ficou nos encarando; com cara de brava ela levantava a pata e arrastava no chão. Quando ela arrebentou a cerca e veio correndo na nossa direção, cada uma foi para um lado. Mas a vaca nem ligou para mim ou para as minhas primas, foi atrás é da minha irmã Nilda, que estava com um lindo vestido, um vestido vermelhinho! Enquanto a vaca corria atrás da Nilda, nós gritamos e pedimos ajuda a todos que estavam assistindo o jogo no campinho. Ouvindo os gritos, todo o campo de futebol veio correndo ajudar aquela moça de vestido vermelho que fugia da vaca, até os jogadores largaram a bola e dispararam na correria para ajudar minha irmã. Quando eles chegaram, a Nilda já estava sendo 63


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções pisoteada e chifrada pela vaca. Para a nossa sorte, os rapazes conseguiram pular em cima dessa mimosa brava, conterem o seu ataque e arrastarem-na para longe. Minha irmã ficou lá no chão, toda machucada, molhada de baba da vaca e com o vestido vermelho todo rasgado. Depois que passou toda aquela confusão, eu vi que o bom daquele vestido ser vermelho é que disfarçou as marcas de sangue. Por causa dessa história, eu e minhas primas nos desfizemos de todos os nossos vestidos vermelhos do guarda roupa, e minha Irmã? Ah, ela nunca mais, até hoje, não usa de forma alguma um vestido dessa cor.

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Medo de velório

Idelpina Soares

Quando eu morava com meus avôs lá no Barreirão, em Ipiaçu, meu avô ficou muito doente e toda família se reuniu em volta de sua cama, rezando para ele melhorar. Antes de ficar doente, meu avô tinha a mania feia de não abrir a boca para cumprimentar ninguém. Várias vezes minha avó ainda tentou avisar: − Joaquim, não nega a palavra pro zoto, não! Se não, no dia de você morrer ocê vai sofrê! E foi dito e feito: meu avô ficou muito doente e para piorar, perdeu toda a voz, não saía uma palavra sequer da sua boca. No leito de morte, minha avó continuava tentando fazer com que ele se arrependesse: − Pede perdão pra Deus, Joaquim! Pra ele perdoar seus pecados! Até hoje não sabemos se ele pediu perdão em seus últimos instantes. Como era de costume, colocaram uma vela na sua mão para que ele não morresse no escuro. Depois de alguns minutos após sua morte, puseram aquele bichão comprido esticado em cima da mesa da sala. Naquela época faziam o velório sem caixão mesmo; no outro dia, na hora de enterrar é que colocavam o defunto no caixão. Desde a hora em que falaram que meu avô tinha morrido eu já fiquei desatinada; não tive coragem nem de ir lá ver o 65


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções morto. À noite? Ah, eu mal consegui dormir; fiquei escondida debaixo das costelas da minha avó. E, mesmo depois do velório, nem olhava para aquela sala por saber que meu avô tinha sido velado ali. Eu não sabia o que era aquele medo, mas era a pior coisa do mundo. E esse medo demorava ir embora. Até eu me acostumar com a ausência da pessoa e esquecer do velório... Mas, para o meu azar, quando eu estava quase me esquecendo do enterro do meu avô, 1 ano depois meu pai, por causa de uma dor no “sangrador” do pescoço, faleceu. Quando chegaram lá em casa com o corpo enrolado em um cobertor, eu já me arrepiei toda. Fizeram todo o velório na sala e eu nem passei por lá; fiquei a noite inteira acordada na cozinha. Não bebia nem água. Quando chegou a hora do enterro, foram todos se despedir do corpo do meu pai em uma direção e eu disparei na correria na direção contrária, atravessando o córrego para não ver meu pai morto. Desde pequena tenho esse trauma com velório e gente morta; não sei que coisa ruim é essa que eu sinto, mas não gosto mesmo, nem de ver, nem de ficar sabendo; não gosto nem de passar perto de onde falam que teve um enterro. O medo é tanto, mas tanto, que depois da morte da minha mãe, que morava comigo, eu vendi a casa e só comprei outra quando o vendedor me garantiu que nunca tinha morrido ninguém lá dentro; e nunca, jamais aconteceu nenhum velório por ali. Até hoje, nunca fui a nenhum velório, mas meu medo maior será quando eu tiver que ficar ali, sem poder correr, no meio do meu próprio velório. MORRO de medo disso!

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Professores pardais

João Francisco

Lá no Bairro Marta Helena, em Ituiutaba, eu e meu primo José Divino, o Zezé, vivíamos nossa época de inventores. Tínhamos 9 anos e muita criatividade. No início construíamos tratorzinhos ou caminhõezinhos de madeira e muitos brinquedos pra lá de divertidos. Até que o tempo foi passando e queríamos construir algo maior. Queríamos construir um carro! Para construir esse carro, fomos no mato e apanhamos 4 lobeiras bem verdes, redondas e duras; apontamos duas madeiras grossas e enfiamos nas lobeiras: essas eram as rodas do nosso carro! Com um pedaço grande de papelão fizemos o assoalho e, com arame, um cabo de vassoura e muita gambiarra, fizemos o sistema de direção. Usamos até um volante velho que tínhamos encontrado no lixo e uns banquinhos de madeira. Estava pronto nosso carro! Agora só precisávamos de um motorista. Por mais bem feito que fosse o nosso automóvel, não queríamos nos arriscar;tínhamos que preservar os inventores; por isso pensamos em alguém especial para ocupar esse cargo: minha prima Maria Divina, irmã do Zezé. Como pagamento para a motorista, prometemos um gostoso pé de moleque. Ela era esfomeada demais, por isso não pensou duas vezes e assim que a convidamos, já montou no veículo. 67


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Amarramos duas tiras de pano velho no carro pra que pudéssemos segurá-lo e fomos para uma ladeira de terra. Mas não contávamos com um “grande detalhe”: Minha prima era uma balofa, uma “popuda”, uma verdadeira bola de tão gorda, por isso, assim que o carro desceu pela rua, as tiras se arrebentaram e o carro foi com tudo ladeira a baixo. Corremos atrás dela, mas não deu pra alcançar. As lobeiras e a madeira do carro não aguentaram o peso e a velocidade e foram ao chão junto com minha prima; só vimos as perninhas dela no ar. A menina ficou toda esfolada, comeu o pé de moleque chorando; mas prometeu não contar nada para mamãe, afinal, tínhamos que continuar nossas invenções. Desistimos de construir carros. Agora queríamos algo grande, à altura dos nossos conhecimentos. Agora queríamos um avião! Cortamos umas latas de querosene, dobramos e fizemos asas; com o corpo de um carrinho de feira, fizemos a cabine e, com uma grade de portão fizemos o teto. Estava pronto nosso avião! A pista de pouso? O topo de um pé de manga bem alto que tinha no bairro. Agora não tínhamos pilotos, então esse cargo cabia a nós mesmos. O Zezé de piloto e eu como co-piloto. Dessa vez foi a minha priminha gorda que nos empurrou. Acho que ela descontou pela história do carro. O avião desceu com tudo! Não deu tempo nem de pensar que estávamos voando; antes de podermos raciocinar isso, nós já estávamos esborrachados no chão. Eu todo esfolado e o Zezé com o braço quebrado. Por causa do barulho e gritaria, nossos pais vieram correndo para ajudar, viram aquela cena e não perdoaram. Mesmo eu machucado e o Zé de braço quebrado, apanhamos mais que soldado da aeronáutica na guerra. Depois dessa história, esses dois grandes inventores se aposentaram, daí pra frente foram aprontar com invenções já prontas e mais perigosas. Invenções que prometo contar nas próximas histórias...

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CRAS - Natal

Três dias de luz acesa

Laci Soares

Depois de 3 meses namorando, meu namorado falou para minha mãe de criação, já que nessa época, com 15 anos, eu não tinha mais meus pais biológicos: − “Quero ficá noivo da sua fia. Vô me casá com ela!” Minha mãe ficou surpresa, mas aceitou: − “Quando oceis vão se casá?” Ele respondeu e então marcaram a data. O casamento aconteceu como o planejado e, depois disso, fomos para casa dos meus pais para o jantar de noivado: feijão queimado, salame frito e mandioca. Depois do jantar, fomos a pé, eu e meu namorado, agora esposo, para nossa nova casa. Para chegar lá, andamos uns vinte quilômetros no escuro, de chinelos e sob a luz da lua cheia exagerada no céu, que clareava o caminho e me mostrava nitidamente o rosto daquele meu marido. Aí eu pensei: “Eu? Durmi com um homi esquisito desses? Eu vô é voltá lá pra minha casa!” Disparei na correria pela poeira da estrada e deixei aquele homem esquisito me olhando sem entender nada enquanto eu corria desesperada, ele ainda tentou gritar: − “Volta! Volta!” Aí eu respondi: 69


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções − “Volto nada! Deus me livre! Vai pra sua casa!” Chegando na minha casa, minha mãe assustada perguntou o que eu estava fazendo ali e para quê eu tinha voltado. − “Num quero durmi com aquele homi, não!” − eu respondi. − “Vai sim! – minha mãe respondeu com voz brava – Porque ele agora é o seu marido!” – “Então eu tenho que ir mesmo?” – “Tem sim! Ocê tem que acompanhar ele, ele é seu marido; e agora ocê tem que tomá conta da sua casa!” – “Vai, amanhã ocê volta” – ela me confortou. – “Volto pra morá né?” – “Não, Laci! Volta só pra almuçá!” Nesse instante meu marido apareceu e conseguiu me levar. Naquela noite dormi com ele de luz acesa. Briguei por três dias de medo daquele homem me encostar. No quarto dia, quando eu pensei que ele ia desistir, o maldito conseguiu de alguma forma e, nove meses depois nasceu minha primeira filha.

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CRAS - Natal

Danura de criança Lourdes Divina Quando eu tinha 8 anos, logo depois do almoço, eu e meu irmãozinho João olhamos em cima do jirau que ficava no quarto do meu pai - para quem não sabe, jirau é uma espécie de prateleira no alto da parede - e lá vimos um cacho de banana maçã, grandão, bonito e suculento. Aí meu irmão, com água na boca, teve uma ideia: − Vamos derrubar aquele cacho de banana, eu tô com fome! Meu irmão nem estava com fome nada, tinha acabado de almoçar, aí eu respondi para ele: − Mas se derrubarmos esse cacho de banana, a máquina de costura que também está lá em cima pode cair, e se isso acontecer, vamos apanhar muito. Meu irmão nem ligou e falou que se derrubássemos era fácil, só colocar de volta no lugar, ninguém iria descobrir. Mesmo insegura com aquela ideia, eu topei. Encontramos um galho grande de guatambu, que era muito pesado, por isso nós dois tivemos que segurá-lo juntos para cutucar o jirau até o cacho de banana cair. Como era de se esperar, cutucamos sem querer e foi a máquina de costura que despencou lá de cima. 71


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Mas nós queríamos era banana, por isso continuamos estocando o guatambu no jirau até o cacho de banana cair lá de cima. Meu irmão guloso e desesperado já largou o guatambu e pulou em cima das bananas. Na hora fiquei preocupada, mas quer saber? Já que elas estavam ali no chão, comi sem ter medo. Talvez pelo nosso tamanho, ou força, depois de muita tentativa, desistimos, não dávamos conta de colocar a máquina de costura novamente em cima do jirau para que ninguém percebesse; não conseguimos colocar de volta nem o cacho de banana, por isso, deixamos tudo ali mesmo, no chão do quarto. Quando minha mãe chegou e viu aquela bagunça, apenas nos olhou com cara de brava. Eu e meu irmão já conhecíamos aquela cara. Tentando escapar da surra, eu tentei explicar dizendo que estávamos com fome, por isso derrubamos o cacho de banana. Aí ela respondeu: − Tudo bem, mas se a minha máquina de costura tiver estragado, vocês vão apanhar muito hoje! Para nossa sorte, a máquina estava sem problemas e escapamos da surra, e o melhor: escapamos das pancadas da mamãe com a barriga cheia daquelas deliciosas bananas.

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CRAS - Natal

Passar anel

Magna Lucia

Depois de viver muitos anos na roça, com 15 anos de idade, meu pai me levou para morar na cidade, na casa de uma prima dele, a Divina, conhecida como Fiíca, na Avenida 33 entre as ruas 2 e Zero, em Ituiutaba. Ali, eu já adolescente passei a conviver com as minhas primas e fiz muitos amigos. Sempre saía com os parentes, passeava, ia às brincadeiras nas casas dos vizinhos, brincava de pique-pega, esconde-esconde, varinha, balança caixão. Tudo era muito divertido, bem diferente da minha infância sofrida na roça. Mas agora era um novo tempo, repleto de sorrisos e alegrias todos os dias. A brincadeira que mais me marcou foi a de “Passar anel”, era a preferida da turma. Na brincadeira, fazemos uma roda e passamos o anel nas mãos de todos, até parar; aí a primeira pessoa da roda tinha que acertar com quem estava o anel, e se errasse tinha de pagar uma prenda. Passava o anel novamente e o próximo da roda tinha que acertar. Assim seguia a brincadeira. Porém inesquecível mesmo foi o dia em que no meio da turma tinha um menino bem tímido, bem caladinho e de jeito todo discreto. Foi aqui que tudo começou. 73


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Esse menino tímido, não acertou com quem estava o anel e teve que pagar a prenda que era dar um beijo no rosto de alguém da roda. E para minha surpresa, sabe quem ele escolheu? Eu mesma! Imagina se gostei? Ah, e se gostei! Claro né, pois eu já estava de olho nele fazia tempo. A partir daquele dia, sempre que tinha a oportunidade de me reunir com a turminha, o garoto tímido estava lá. Em pouco tempo eu passei a gostar daquele menino tímido de cabelo cacheado e lábios grossos, rapidamente começamos a sair juntos com minhas 3 primas, íamos nas brincadeiras dançantes nas casas de amigos, cada semana era na casa de uma pessoa diferente. Até que um dia ele me convidou para sair, só eu e ele; fomos à Praça Getúlio Vargas, não me esqueço desse dia mágico; lá ganhei meu primeiro beijo na boca. Foi perfeito! À noite nem dormi direito de tanta alegria. Com o passar do tempo passamos a namorar escondido e esse namoro secreto durou 2 anos. Só em 12 de Junho de 1972, que falamos a verdade para papai, que muito rígido e bravo, não quis aceitar. Mesmo assim, enfrentamos a fera e continuamos o nosso namoro. Ambos muito apaixonados. E, aos trancos e barrancos, em 1979 nos casamos contra a vontade de papai e mamãe. Depois de um ano e três meses tivemos a nossa primeira filha, Ádria e um ano depois a segunda, que foi a Giseli. Estamos juntos até hoje, eu e o garoto tímido, o casal que brincava e ainda brinca; só que não passamos mais anel, pois o anel fixou para sempre e hoje, está nos nossos dedos.

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CRAS - Natal

Salvando o almoço

Maria Francisca da Silva

Aos meus 17 anos, morávamos na Fazenda da Grama, em Ituiutaba, cujo dono era o Sr. Antônio Badduy. Minha mãe fazia o almoço para levarmos para a roça e todos os dias saíamos juntos, eu, minha mãe e meus 4 irmãos. Um belo dia ao chegar a uma cerca, mamãe atravessou na frente com meus irmãos mais novos e eu fiquei para trás com a enorme bacia de comida na cabeça. Era pesada aquela bacia, tinha o almoço de todo mundo ali dentro, por isso eu estava devagar. Aí mamãe me olhou assustada enquanto eu estava entretida com as flores do pasto, e gritou: − Maria! Olha a vaca atrás de você! Correee! Eu disparei na correria com aquele peso na cabeça. Minha mãe e meus irmãos gritando do outro lado da cerca e eu correndo feito louca para fugir daquela vaca chifruda que já ia me alcançar. Foi o prazo de eu jogar a bacia nas mãos dos meus irmãos e passar para o outro lado da cerca que senti o vento dos chifres da vaca nas minhas costas, por alguns segundos que ela não me acerta. 75


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Quando cheguei do outro lado da cerca, estava com as costas toda babada pela vaca. Meus irmãos ficaram aliviados por eu ter escapado, senão eles iriam ficar sem almoço.

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CRAS - Natal

Leite de cabrita

Natalina dos Santos Oliveira

Perto de Auriflama, em São Paulo, ficava a fazenda que eu morava. Eu nem lembro mais o nome da fazenda, mas dessa história eu não esqueço. Meu irmãozinho José Alvilino, o Dedeca, tinha acabado de nascer e, como eu era a mais velha dos 6 irmãos, eu ajudava a cuidar dos mais novos. Todos os dias minha mãe ganhava uma garrafa de leite de cabrita para dar ao Dedeca, já que ela não podia amamentá-lo durante o dia, porque trabalhava ajudando meu pai na roça. Ela fervia o leite e deixava em uma garrafa em cima do fogão de lenha para que eu fizesse as mamadeiras do meu irmão durante o dia. Eu ficava olhando para aquele leite branquinho, gordo e gostoso em cima do fogão e não resistia. Tomava mesmo! Mas para mamãe não descobrir, eu fazia assim: tirava um copo grande de leite, tomava tudo com gosto e, no lugar eu colocava um copo d’água. O leite ficava meio ralo, mas olhando nem dava para perceber. Assim ela nunca desconfiaria e eu podia beber meu leite todo dia. O tempo foi passando e minha mãe intrigada, sempre reclamava: − Não entendo, esse menino mama direitinho, mas não engorda! 77


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções A comadre dela ainda dizia: − Acho que esse menino tá bebendo é água no lugar desse leite... Porém minha mãe respondia: − Tá não, cumadi, todo dia a Natalina dá o leite direitinho pra ele. − Hmmn, sei... – A cumadi respondia com ar de desconfiança. Minha mãe ficou com aquilo na cabeça. No outro dia ferveu o leite, deixou em cima do fogão e se despediu para ir para roça. Nesse momento eu aproveitei para tomar meu gostoso copo de leite. Fiz todo aquele ritual: bebi o leite e coloquei o copo d’água no lugar. O que eu não sabia é que minha mãe tinha ficado atrás da porta olhando tudo. Depois disso ela foi pra roça calmamente e, quando voltou me perguntou: − Natalina, você deu leite pro seu irmão? − Dei sim, mãe – falei Ela pegou um pouco do leite que tinha sobrado na garrafa em cima do fogão de lenha, olhou cuidadosamente. − Isso tá estranho... isso aqui tem é água! – ela disse − Tem não, mãe – eu insisti. Aí ela ficou brava mesmo: − Tem sim que eu fiquei atrás da porta e vi você trocando o leite por água! Depois dessa não deu outra. Ela pegou uma xícara grandona, encheu do leite que tinha sobrado e misturou com óleo de pimenta: − Você não gosta de leite? Então toma! Eu sabia que não podia recusar nem correr. Naquela tarde eu senti o fogo na garganta e o fogo nas costas. Apanhei feio com o chicote de duas pontas. Passei muitos anos sem beber leite por causa dessa história. E o meu irmão Dedeca... Ele é o mais magrinho dos 6 irmãos até hoje. Não sei se por culpa minha ou é genética mesmo. Só sei de uma coisa: que aquele leite de cabrita era gostoso, ah, se era!...

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CRAS - Natal

Pescaria que nada

Silvana Oliveira

Na “Fazenda Boa vista”, no município do Prata, morávamos eu, meu namorado , que agora já era meu marido, e meus sogros. Vivíamos em uma casa de pau a pique, sem energia elétrica. Como dá para perceber, ali não tinha muito o que fazer; eu cuidava das galinhas, tirava leite de manhã, dormia muito e cuidava da minha filha Rosana, que ainda era um bebê. Era um sossego só. À noite, sem TV, sem energia elétrica e cansados de ficar à toa, um dia meu marido me chamou para pescar; eu topei, claro. − Estamos saindo pra pescar! – disse meu marido para os meus sogros enquanto arrumava o material de pesca. − Pescar à noite? Vocês são doidos? – responderam. − É que nós queremos comer uns peixes agora à noite! − Hmmn... Boa pescaria pra vocês então! Chegando lá, armamos a vara, jogamos a linha na água; nem lembro se colocamos isca no anzol. Daí meu marido me abraçou, me deu uns beijos e a essa altura eu nem lembrava mais da pescaria. Tinha um cachorrinho que sempre nos acompanhava e ficava lá só olhando... Ah, se esse cachorrinho soubesse falar!... Com nós dois ali, aquele rio pegava fogo! Até a água começava borbulhar de tão quente. 79


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Quando voltamos para casa, meus sogros ficaram surpresos com os nossos sorrisos estampados na cara. E o pior, com as mãos vazias, sem nenhum peixe. − Ué? – disse minha sogra – Cadê os peixes? 3 horas de pescaria e nenhum peixe? Aí eu não resisti e falei: − É que estávamos pescando era outra coisas!...

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CRAS - Natal

A montanha de algodão

Zilani M. da Silva

Na fazenda do Seu Arcilino, no “Córrego da chácara”, morava toda minha família: 6 irmãos e meus pais. Ali, de tempos em tempos juntávamos todos e íamos apanhar algodão durante toda a tarde na fazenda vizinha. Com esse algodão minha mãe fazia calças, vestidos, camisas, lençóis e tudo quanto é roupa. Depois de termos apanhado todo aquele algodão, amontoávamos tudo em cima de uma cama de madeira; era um amontoado grande mesmo, para nós que éramos pequenininhos, 6 a 7 anos de idade mais ou menos, aquilo se parecia com uma montanha de algodão. Como era de costume, eu, a mais velha, comecei a cardar aquele algodão para que minha mãe pudesse depois fiar mais tarde quando chegasse da benzedeira. A minha irmã Francisca, ficava ali só me pajeando enquanto eu batia aquele algodão com tanta pressa para começar a cardar logo, antes da mamãe voltar que, em uma dessas batidas, um fiapo pequenino de algodão voou em cima da lamparina que a sacudiu e fez com que uma fagulha de brasa caísse em cima do monte de algodão. E, como sabem, algodão mais fogo é igual a fogueira. Foi exatamente isso que aconteceu ali no meio da sala. Aquele fogaréu na nossa frente foi assustador! Danamos a gritar, correr e berrar de desespero, mas em alguns segundos ficamos em silêncio... 81


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Paramos e olhamos tristes, com os olhos cheios d’água, aquele monte de algodão que se transformou em um monte de nada. O fogo não deixou nem marca, só levou o algodão e sumiu como se fosse mágica. Só pensávamos em uma coisa: vamos apanhar muito hoje. Para acalmar mamãe antes que ela chegasse e ficasse sabendo da notícia, eu e a Francisca arrumamos a casa, lavamos a louça, deixamos a casa brilhando. Mas quando ela chegou... Tudo isso não adiantou de nada, a surra comeu com força; A mãe pegou eu e a Francisca, que não tinha feito nada, mas também apanhou por estar ali, e sentou uma surra de chicote trançado. Dói só de me lembrar daquela noite quente que o fogo tomou conta de tudo, principalmente do nosso lombo.

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CRAS - Natal

Pinhola nunca mais

Zilmar G. dos Santos

Lá pelos meus 15 anos, arrumei um namorado, mas meu pai não aceitou porque dizia “Homi ninhum encosta nas custela de fia minha!”. Por isso, eu comecei a namorar escondido; namorei por uns 3 anos assim. Só que um dia, meu pai ficou sabendo. Ah, que surra que eu levei! Ele me deu um tapa no ouvido que me deixou surda por quase um mês. Apanhei de pinhola feito menino novo. Depois dessa surra falei para mim mesma: “Nunca mais apanho assim! Ou eu fujo com meu namorado ou morro! Na semana seguinte, às 8 horas da manhã, eu e meu namorado pegamos um ônibus e fugimos da fazenda Cabeceira do Cipó, onde morávamos, fomos para Ituiutaba. Chegando na cidade, não perdemos tempo, fomos direto para o cartório e agendamos nosso casamento para o mesmo dia à tarde. Somente 5 pessoas assistiram esse casamento. E meu pai? Ah, ele só ficou sabendo dias depois pela minha irmã Zilani. Como era de se esperar, ficou se mordendo de raiva. Já casados, nos mandamos lá pra Fazenda dos Patos, com um sorriso largo na cara e a certeza de que eu nunca mais iria voltar para apanhar de pinhola. Iria viver minha vida do meu jeito, sem medo de ser feliz. 83







CRAS - Ipiranga

História de cinema

Djanira Suriani

Na minha juventude, quando eu arrumava namorado e ele ia me visitar, eu dava só um pouco de atenção pra ele e, em alguns minutos arrumava uma desculpa, entrava pro meu quarto, me arrumava e fugia caladinha pela janela pra poder me encontrar com minhas amigas e ir ao cinema. O rapaz continuava lá na sala, conversando com minha mãe até desconfiar que eu estava demorando demais. Aí minha mãe ia até meu quarto à minha procura e, claro, não me encontrava. Meio sem graça, ela voltava pra sala e dizia para o rapaz que eu havia dormido. Há! Que beleza... Nessa época assistíamos filmes do Oscarito, Grande Otelo, Mazzaropi, Vicente Celestino. Sem contar os filmes do Zorro, O gordo e o magro, assim como alguns romances e faroestes. Todos mais emocionantes do que aqueles namorados chatos. Quando voltava pra casa, minha mãe ficava muito brava comigo por eu ter deixado ela naquela situação difícil. Então ela dizia assim: − Filha, se você não quer namorar ou receber visitas dos seus namorados, fale isso pra eles, mas não fuja desse jeito. Na época eu morava na Avenida 23 com as Ruas 32 e 34, em Ituiutaba. Ali, eu ainda fugi pela janela muitas vezes até 89


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções encontrar finalmente aquele rapaz que me emocionava mais que qualquer filme. O nome dele era Anselmo Suriani. Com ele me casei e tive 3 filhos maravilhosos que só me dão alegria. Esse casamento durou 53 anos de lindas histórias que guardo na lembrança e hoje são os melhores filmes da minha vida. Agradecimento especial a minha grande amiga, Edma Oliveira, que me ajudou a colocar essa e todas as minhas histórias no papel.

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CRAS - Ipiranga

A menina do buquê de flores

Elza Campos

Essa é uma história real dos meus bisavôs que me orgulho de poder contar. Mais ou menos em 1840, chegou ao Brasil vindo de Portugal, meu bisavô Joaquim Barbosa Campos formado em direito. Na época, o rapaz conversava com o pai da moça e fazia o pedido de casamento. Assim aconteceu com meu bisavô, que foi até a casa do meu tataravô, um importante fazendeiro da região de Brotas de Macaúba na Bahia, fazer esse importante pedido. Enquanto os dois conversavam/proseavam, vinham passando por ali perto do pomar onde estavam sentados, as filhas do meu tataravô. Conversa vai, conversa vem, ao ver suas filhas chegando, meu tataravô disse: − Tenho três moças prendadas pra casar. Espere um instante que elas vão passar por aqui na nossa frente, aí você me fala qual delas gostou mais e com qual vai querer se casar. Quando elas foram passando na frente dos dois, meu bisavô ficou atento, analisando cada uma das moças. A primeira era clarinha, de cabelos longos e vestido bem acinturado. 91


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções A segunda já era mais morena, cheinha e de longos cabelos caídos nos ombros. A terceira era uma mocinha, mais magrinha, com rosto arredondado, queixo fininho e nariz afilado. Acompanhando as 3, estava a irmãzinha menor. Loirinha, de cabelos bem cacheados e olhos vivos, que vinha colhendo flores pelo caminho e já tinha tantas nas mãos que se transformavam em um buquê. – E aí Joaquim, – disse meu tataravô – qual das três você mais gostou? – Gostei da que estava com o buquê de flores – ele respondeu. – Essa não tem idade pra se casar! – Respondeu bravo meu tataravô – ela tem só 12 anos. Mas meu bisavô Joaquim, não teve medo: – Se o senhor permitir, eu posso esperar. Meu tataravô então concedeu a ele que se casassem no tempo certo. E assim foi, Joaquim e Ifigênia, a menina do buquê de flores. Um casamento que rendeu muitos filhos, frutos desse grande amor, inclusive minha avó Altina, a mãe do meu pai Nivaldo, que se casou com minha mãe Dulce e também tiveram muitos filhos. Essa história hoje tem mais de 150 anos. Quando criança, fiquei encantada quando minha tia Doca me contou essa história cujo um buquê de flores, deu origem à essa família que tanto amo.

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CRAS - Ipiranga

Sonho de Papelão

Guaraciaba Medeiros

Nasci e cresci em uma fazenda, onde morava com meus pais e meus irmãos. Éramos muito pobres, porém felizes. Com sete anos de idade, eu, como toda criança sonhadora, almejava ter, mais que qualquer coisa, uma boneca de verdade, pois as minhas bonecas eram espigas de milho que eu e minhas irmãs transformávamos em brinquedos. Sempre pedia uma para meu pai, mas ele nunca tinha dinheiro para isso. Foi então que comecei a trabalhar de babá para ajudar nas despesas de casa. Porém, lá na casa onde eu trabalhava meu sonho de ter uma boneca só aumentava, pois as meninas de que eu cuidava tinham lindas bonecas. E nossa, eram lindas mesmo... Tinham roupinhas, longos cabelos, até tomavam banho de banheira... Eu chegava em casa e contava isso para o meu pai e ele sempre dizia: −Um dia vou te dar uma boneca! Mas infelizmente, esse dia nunca chegou. Todos os dias meu pai ia à venda da beira da estrada, lá perto da fazenda em que morávamos. Ele bebia muito, mas eu o amava muito também. Certo dia eu o acompanhei até lá e ele comentou com o Sr. José Brandão, dono da venda, que eu sonhava em ter uma boneca, mas ele não podia comprar. Então o dono da 93


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções venda, vendo aquele meu sonho de infância, em um ato de muita bondade, me presenteou com uma linda boneca. Meu Deus, como ela era linda! De trança nos cabelos, vestido de chita e sapatos. Nossa, cheguei na minha casa na maior felicidade do mundo. Mostrei pra minha mãe e meus irmãos e fui toda saltitante brincar com minha boneca. Dei o nome nela de Isabel. Foi então que, com toda aquela felicidade, assim como as menininhas da casa onde eu trabalhava, fui dar banho na minha linda boneca. Coitadinha! Coloquei-a na água, e quando tirei, ficou só com a cabeça, os bracinhos e as pernas. Pois o corpinho era todo feito de papelão e desmanchou na água, igual ao meu sonho...

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CRAS - Ipiranga

Telhado em chamas

Inoemis das graças

Éramos quatro irmãos, dois mais velhos e um mais novo. Na época eu estava com cinco anos de idade e morávamos na fazenda do Sr. Valdemar Caetano, no Barreiro, município de Capinópolis. Nessa época, a nossa casa era de pau a pique, coberta de capim seco. Minha família era muito pobre, meu pai trabalhava na lavoura com meus irmãos mais velhos que ainda eram bem pequeninos, enquanto a minha mãe lavava roupa para os peões da fazenda usando sabugo de milho como escovão, e assim ajudava no sustento da casa com muita alegria e fé em Deus. Um dia, quando minha mãe fazia o almoço no fogão à lenha e segurava meu irmão mais novo no braço, o fogo bem forte pulou para a banha quente dentro da panela e em seguida para o capim do telhado que já estava bem seco, e assim todo o telhado entrou em chamas. Foi assustador, eu e minha mãe desesperadas pedindo ajuda a Deus e chorando muito, sem saber o que fazer: se ficávamos ali e tentávamos apagar o fogo ou corríamos pra fora. Quando pensamos que iríamos morrer queimadas, para nossa sorte, os vizinhos apareceram com baldes d’água enquanto alguém corria para chamar os homens que estavam na lavoura. 95


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Juntos, todos tiraram água na cisterna e apagaram todo aquele fogo que destruiu a metade do nosso telhado. Depois de toda aquela confusão, restou apenas aquele vão em cima da casa, que a deixou como se fosse uma casa careca. Achei bonito e triste ao mesmo tempo a ideia de que eu iria dormir com o telhado forrado de estrelas, mas sem proteção. Para a minha sorte, no dia seguinte toda minha família e vizinhos se reuniram e trouxeram mais palha, capim seco e madeira e assim conseguiram reconstruir bem rápido o telhado da minha casa, onde pude dormir em paz durante muitos anos, graças a Deus.

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CRAS - Ipiranga

Aniversário inesquecível

Antonia M. dos Santos

Meus aniversários sempre foram sem graça, todos se esqueciam daquele dia em que diziam ser “a comemoração da data em que viemos ao mundo”. O único aniversário de que me recordava era o meu aniversário de 15 anos, em que mamãe e minhas amigas se lembraram e me fizeram um saboroso almoço; passamos todo o domingo em casa, conversando e rindo durante toda a tarde; nem teve festa porque éramos muito pobres, mas mesmo assim, foi um momento repleto da alegria que dinheiro algum poderia comprar. O restante dos meus anos foram todos assim, sem grandes momentos na data de aniversário e com raríssimos instantes que poderiam ser guardados na lembrança. No dia que eu completava meus 40 anos, parecia que ia ser mais um de tantos outros. Fiquei a tarde toda em casa e não ouvi um “Parabéns” sequer, até que, à noite, Ivete e Cidinha me chamaram pra ir comer pastel e tomar guaraná. Ficamos lá durante horas a fio em uma agradável conversa, mas que me deixava chateada por saber que aquele era o dia em que eu estava fazendo anos e ninguém, ninguém havia nem me dado parabéns. Minha mãe nem me deu um mínimo telefonema e meu pai e filhos que me viram o dia todo, sequer falaram a respeito. 97


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Quando chegamos em casa, tarde da noite, eu desci do carro cabisbaixa por ter sido esquecida por meus amigos e parentes. Abri o portão, passei pela varanda e quando abri a porta da sala, ouvi apenas um grito: Parabeeennss! Minhas filhas, meus pais, sobrinhos e amigos, todos ali, juntos cantando parabéns. Levei o maior susto do mundo, meu coração parecia que ia sair pela boca, e eu não parava de sorrir. Casa cheia de gente, churrasco, guaraná, cerveja e o meu bolo de aniversário, que foi o melhor de todos: uma enorme panela de galinhada com as velinhas em cima. O que parecia perfeito ficou ainda melhor quando meu amigo Abel, que fazia parte de uma banda, tocou no saxofone as músicas mais lindas que pude ouvir emocionada e abraçada com minha família. Foi um momento realmente memorável aquele ao som inesquecível de “Valsa de Primavera” do Taiguara, Borbulhas de amor, do Fagner, encerrando com todos que estavam ali na festa cantando a emocionante música “Família”, do Padre Zezinho. Naquele instante, eu olhei para todos que cantavam e sorriam, e me senti imensamente realizada e feliz por saber que era amada por todos. Naquela noite, a festa surpresa durou até às quatro da manhã e com certeza irá durar pra sempre na minha memória. Esse momento aconteceu há 15 anos, mas me lembro tão bem como se aquele sorriso de surpresa tivesse sido hoje.

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CRAS - Ipiranga

O segredo da rapadura

Lucília Borba

No ano de 1953, em uma pequena fazenda à beira do Córrego da Ronda, situada no município de Quirinópolis, em Goiás, eu acabara de completar 9 anos de idade e vivia entre brincadeiras com minhas primas que tinham mais ou menos a mesma idade que eu. Todo dia, Tia Preta acordava cedo, ao raiar do Sol, para preparar nosso café, pois tínhamos um longo dia de diversão pela frente. Um belo dia, minha tia me incumbiu de uma importante missão: ir até um sítio vizinho e comprar rapadura batida em cocho de madeira para a sobremesa do almoço. A rapadura do fazendeiro vizinho era conhecida como a melhor rapadura da região, muitos tentaram descobrir qual era o segredo daquele sabor, mas nunca conseguiram. Eu nem ligava, apenas comia aquela belezura, com água na boca. Lá fui eu pelas trilhas em meio às pastagens e desviando de uns bois nervosos que apareciam pelo caminho. Tudo isso para chegar ao sítio do fabricante de rapadura. Ao chegar lá, caminhei em direção ao engenho procurando o “Sr. Joaquim Véio”, o dono da fazenda. Chamei muitas vezes e ninguém respondeu. Então resolvi entrar. 99


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Lá dentro, me deparei com uma cena marcante que jamais saiu da minha memória: dois cachorros perdigueiros bem grandes e gordos dormindo amontoados dentro do cocho onde artesanalmente, eram feitas as rapaduras. Naquele momento descobri então o segredo. Aqueles cachorros eram o porquê de as rapaduras de lá serem tão gostosas.

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CRAS - Ipiranga

A pequena enfermeira

Roseli Consuelo

Nessa época eu tinha 3 anos. Entrei no quarto e vi mamãe deitada na cama. Ela levantava agoniada e sem lugar, então, foi até a cozinha e esquentou água no fogão de lenha. De volta pro quarto, ela tornou a se deitar. Foi aí que me pediu para fazer umas compressas no seu bumbum. Mamãe estava suando frio. O suor havia tomado conta de seu corpo enfermo e, mesmo com muita dor, ela conseguiu fazer as compressas de pano com toalhas felpudas. Assim devagarzinho ela se deitou e virou para o canto da parede para que ficasse mais fácil para que eu começasse a passar as compressas no bumbum dela. Há muitos e muitos anos, mamãe havia levado um chute de meu tio no bumbum, por isso o local ficou assim. De tempos em tempos ela voltava a sofrer deste doloroso cisto. Isso tudo aconteceu só porque mamãe foi miss. Miss Ituiutaba. Outro dia conto essa historia. Bom, como estava contando, comecei a passar as compressas. Foi quando ela, atentamente observou que, enquanto eu arrumava uma das compressas eu estava chorando de dor por ela, daí para sua surpresa, ela viu que eu peguei com todo cuidado uma compressa limpa, passei nas minhas lágrimas e coloquei com todo carinho no seu bumbum. 101


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Neste dia, assim que terminei, ela me abraçou, me beijou e, ao mesmo tempo me disse sorrindo: “você é minha pequena enfermeira”. Naquele momento eu sorri, beijei-a e dei um grande abraço de “upa” nela. Em poucos dias ela sarou e nunca mais ficou doente por causa daquele cisto. Então, desde aquele dia, ela sempre contava para toda a família o caso acontecido: Aquele meu pequeno e inocente gesto de amor e carinho. Sabe, me recordo sempre de minha mãe. Hoje ela é falecida. Lembro-me de muitas coisas de quando era criança, das nossas brincadeiras de casinha, de esconde-esconde, de ouvir suas historias... E assim, quando escrevo algo que me lembra dela, sintome forte, e vivo novamente aquele momento como se fosse agora. Sinto um frescor quando penso nela, fecho os olhos e o vento envolve meu corpo como se fossem os braços dela. Chego a sentir até seu cheiro, cheiro de mãe. Ah! Que saudade de você mamãe!

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CRAS - Ipiranga

Saudade

Venica Rosa Coimbra

Sempre morei na fazenda, foi uma vida muito sofrida, mas feliz pelo apoio e companheirismo que tínhamos uns com os outros e pelo respeito e amor com quem estava ao nosso lado. Em 2010 infelizmente meu esposo ficou doente e Deus o levou no início do ano de 2013. Quando isso aconteceu, fiquei sem chão; vim para a cidade e aqui estou cumprindo minha missão por mais que a saudade me visite todos os dias. Saudade dos 53 anos de casada que tive ao lado do meu marido José Campos Coimbra, anos repletos de lutas que, de mãos dadas vencemos cada desafio e, juntos criamos uma família linda a qual nos deu tanto orgulho, com 6 filhos, 15 netos, 4 bisnetos e ótimos genros e noras. Saudade das nossas viagens para inúmeras praias brasileiras. Ali, de mãos dadas na areia, vivíamos emoções que nunca esquecerei e até gargalhadas mágicas de quando eu, lerda e inexperiente, entrava na água do mar e de repente levava um caldo das ondas. Depois abraçados, ríamos muito de cada uma dessas lembranças. Saudade de poder compartilhar com meu grande companheiro todas as conquistas que Deus nos permitiu. 103


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Depois de perder essa grande parte da minha vida e me sentir desamparada, por força divina, minhas amigas me deram coragem e me convidaram para participar do Cras, essa foi uma grande benção de Deus em minha vida. Ali no Cras pude novamente me sentir amparada e construí uma nova grande família, cheia de amigos e profissionais que fazem eu me sentir cada dia melhor e completa. Esse texto é em memória do meu esposo José Campos Coimbra, que sei que onde ele estiver sente muito orgulho das nossas histórias inesquecíveis.

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CRAS - Ipiranga

O sabor da rapa

Joana Albino

Comecei a gostar de doce quando mudamos da fazenda para a cidade de Ituiutaba; Eu já tinha 10 anos quando fui pela primeira vez na escola; tudo era novo pra mim. Na cidade minha rotina era diferente: eu estudava na escola João Pinheiro de manhã e à tarde trabalhava de doméstica em casa de família. No trabalho, minha patroa fazia deliciosos doces todos os dias para vender em seu armazém que ficava ao lado da casa. Às vezes, quando ela saía, eu ficava lá no balcão e morrendo de vontade de comer aqueles doces da vitrine, mas nunca tive coragem de pedi-la ou dinheiro para comprá-los. Por isso, todos os dias, depois que ela preparava as panelas de doces, eu ia lavar os tachos e sem que ninguém visse, eu lambia toda a rapa dos tachos. Ah! Que delícia! Anos depois, quando me casei, ainda morrendo de vontade de comer, principalmente aquele doce de leite da minha patroa, minha sogra Ana Paula me ensinou a fazer saborosos doces caseiros. Aí eu não parei mais, fazia doce todo dia! Por isso, hoje, graças a Deus, posso preparar e comer meus deliciosos doces e o melhor de tudo: sem ser obrigada a rapar os tachos, e ainda posso dividir com meus filhos e netos. Mas quer saber? Até hoje, talvez por costume da infância, dou todos os doces para os meus netos e suas famílias e fico com a rapa que para mim, é a melhor parte do doce. 105







CRAS - Alvorada

Meu primeiro presente

Divina Luzia dos Santos

Eu tinha 7 anos de idade e morava com meus pais e mais quatro irmãos na Fazenda do Carmo, no município de Ituiutaba. Certo dia, minha mãe foi até a cidade e, quando chegou em casa, trouxe o primeiro presente que tenho lembrança nessa vida: uma linda boneca. Fiquei encantada com aquela surpresa, brinquei o dia todo ao lado da minha boneca. Depois de um dia de tanta brincadeira, nós duas estávamos cansadas, por isso fomos para o banho. Fui até a bica d’água que tinha lá em casa e, quando comecei a lavar com todo carinho a minha boneca, fiquei assustada, ela começou a desmanchar. Eu não entendia o porquê da minha boneca estar derretendo. Seu corpo indo embora na água da bica, junto com minha alegria. Saí brava correndo e gritando atrás da minha mãe: − Mãe! Mãe! Por que minha boneca derreteu quando eu fui dar banho nela? − O que? – ela respondeu – como assim deu banho nela? Menina! Não pode dar banho em boneca de papelão! − Mas a senhora não me disse que ela era de papelão! − Eu gritava enquanto saía correndo, chorando pela casa, e as lágrimas no meu rosto molhavam e derretiam minha felicidade, que também era de papelão. 111


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções

Traquinas do Chiqueiro

Eduardo Alves

Quando eu tinha por volta dos meus 5 anos de idade, eu ia em todas as minhas férias para a “Pousada da prata”, a fazenda do meu avô Osvaldo Lariucci. Lá eu brincava e corria para todo lado por aqueles terreiros. Naquela época eu era atentado demais, aprontava sem dó com os bichos de lá; adorava correr atrás das galinhas... O bravo era quando elas vinham todas correndo atrás de mim para se vingarem. Mas o melhor mesmo era passar o dia ao lado do meu avô Osvaldo, conhecido lá por aquelas bandas como “Osvaldo italiano”. Durante as minhas férias, todo dia andávamos a cavalo, pescávamos e ríamos muito; meu avô foi o melhor contador de piadas que já conheci; ao lado dele vivi talvez as melhores lembranças da minha vida. Um dia, acordei cedo e ouvi os porquinhos do chiqueiro chorando alto; quando cheguei lá, eles começaram a me olhar tristonhos, com os olhos cheios d’água. Aí eu não resisti, abri o chiqueiro e a “porcaiada” saiu correndo feliz pela fazenda inteira. Era porco querendo entrar dentro de casa, porco indo para estrada, porco correndo atrás de galinha. Foi uma confusão! No meio da correria de porcos para lá e para cá, minha avó veio correndo desesperada e gritando: − Duardo, Duardo! Por que ocê soltô os porco? Por que isso minino? Com toda minha inocência, eu olhei para ela e respondi: − Uai vó, porque eles tavam trancados, e queriam sair. Tavam tão tristinhos, aí eu ajudei eles. 112


CRAS - Alvorada

“Barriga cheia, pé na areia”

Dorvalino Evangelista

Uma vez quando eu era jovem, fui a uma festa. Uma grande festa na fazenda. Para pegar comida tínhamos que enfrentar uma grande fila e, sem muita opção e morrendo de fome, enfrentei aquela fila. Fiquei lá no meio da fila imensa que parecia andar em câmera lenta... Quando finalmente peguei meu prato e me servi, fui para um canto, me encostei à parede e comecei a comer; quando de repente, passa na minha frente uma morena linda e não resisti. Para chamar atenção dela, joguei uma conversa: − E aí morena! Vamos comer comigo? Ela, sem pensar duas vezes respondeu rápido: − Aceito sim! Abri um enorme sorriso, quando de repente a morena tirou o prato das minhas mãos, se sentou em uma mesinha ao meu lado e começou a comer. Ela comia tão rápido que eu fiquei ali apenas olhando, de mãos abanando, sem conseguir fazer nada, enquanto ela comia sozinha toda aquela pratada. Pra piorar, a essa altura a comida da festa já tinha acabado e já estavam lavando as panelas na cozinha. Quando ela acabou de comer, sem dizer uma palavra, apenas arredou a cadeira, se levantou e vazou, nem disse tchau. Me deixou ali sozinho, vítima daquela comilona, e o pior de tudo, com a barriga roncando. 113


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções “Barriga cheia, pé na areia” Depois daquele dia, nunca mais convidei mulher alguma para comer comigo.

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CRAS - Alvorada

Cachaça Salgada

Eurípedes Sebastião Dias

Estávamos mudando para o estado de Goiás. Meu pai, meus irmãos e mais duas famílias. Três mudanças em um caminhão só. Ali, no meio de uma daquelas famílias que mudavam conosco, eu arrumei uma namorada. O negócio é que e eu não sabia que a menina gostava tanto de tomar goró. Então, em uma parada, a chamei para namorarmos debaixo da traseira do caminhão. Do nosso lado um monte de móveis, sacolas com roupa, panelas, garrafas e, em uma dessas garrafas, um litro amarelinho, quase brilhando de tanta pinga. Quando eu fui tomar, só pelo cheiro eu já fiz careta e afastei a cara. Na hora, a minha namorada com pressa, tomou o litro da minha mão e já começou a virar a garrafa de cachaça goela a baixo enquanto eu assustado nem conseguia falar nada pra ela. Ela tomou em um gole metade da garrafa! Já estava bebinha quando me olhou, limpou os beiços e disse: − Ô cachaça boa! Mas tá salgada, meio margoza e azeda! Por vergonha ou malandragem eu nunca consegui falar para ela que, o que tinha dentro daquele litro era na verdade xixi. Ah! E até hoje ela não deve saber por que eu parei de beijá-la depois daquele dia. 115


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções

Dinheiro enterrado

Maria de Fátima Alves

Certo dia, quando eu era bem criança, eu estava andando pelo campo perto da minha casa quando olhei para o chão e algo me chamou atenção. Parecia um pacote enterrado, aí eu me aproximei daquele negócio no chão, abaixei a cabeça e comecei a desenterrar o que ainda estava preso de baixo da terra. Para minha surpresa, quando desenterrei e abri o embrulho, meus olhos brilharam: era um enorme pacote de dinheiro! Chegando em casa, entreguei correndo todo aquele dinheiro para o meu pai. Até hoje não sei o que meu pai fez com aquela grana toda. Mas, por coincidência ou não, naqueles mesmos dias, papai reformou sua mercearia

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CRAS - Alvorada

Pernas Bambas

Claudimar Ribeiro (Fíi)

Lá estava eu, do outro lado do córrego, na Fazenda Campo Alegre, em Ituiutaba, onde eu vivia. Estava ajudando a minha mãe nos serviços de casa quando ouvi um grito: − “Fíi! Fíi! Vamo ali me ajudá a arrumá um chiquero!” − era meu irmão. Meu nome é Claudimar, mas ele e todo mundo, sempre me chamou de Fíi. A vida toda foi assim. − “Intão vamo!” − disse eu. Na verdade não tinha nada de chiqueiro, fomos é ficar olhando pela janela uma moça jeitosa que morava ali perto. Ficamos primeiro só olhando de cima da árvore pela janela do quarto dela. Meu irmão tinha apenas 11 anos de idade, ainda era pura inocência; já eu era moço, tinha meus 17 anos e estava na flor da idade, então tinha é que aproveitar mesmo! Desci da árvore em que estávamos e tomei coragem. Fui lá bater um papo com aquela formosura. Chamei a moça e ela veio conversar comigo pela janela enquanto ouvia os signos no rádio. Conversa vai, conversa vem, e meu irmãozinho só de olho, lá em cima da árvore. No meio de tanta conversa, ela me chamou para entrar, pulei para dentro pela janela mesmo e foi aí que a minha mão boba entrou em ação. Então ela se enroscou no meu pescoço e 117


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções os beijos rolaram soltos no meio daquela tarde. Meu irmãozinho pela janela só ia se empolgando a cada vez que a coisa esquentava. Ah! Aquele quarto pegou fogo! Era mão pra lá, pé pra cá! Dá uma quentura só de lembrar. Depois disso tudo, cansado, mas com um sorriso no rosto, fui embora ao lado do meu irmãozinho que tinha descido da árvore e já queria me perguntar um monte de coisas. Quando estávamos chegando em casa, meu sobrinho me viu de longe e gritou: − “Quê isso Fíi! Suas perna tão bamba... é de frio ou de fome?” Aí eu disse: − “Elas tão tremendo é de alegria!”

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CRAS - Alvorada

O bode bêbado

Claudimar Ribeiro (Fíi)

Eu morava na fazenda do meu tio Jerominho Ribeiro; lá, como todo mundo sabe, tem uma das melhores cachaças de alambique do país e, como não poderia faltar, tinha um enorme depósito com a boa e velha cachaça. Ali tinha um bode para lá de tinhoso, que desde filhote os peões da fazenda ensinaram a beber da água que o passarinho não bebe. E o bicho pegou gosto pela coisa. Berrava e corria atrás de todo mundo para ganhar cachaça. E tinha uma coisa interessante, toda vez que ele chegava perto da gente, levantava a pata e berrava como que pedindo: “Cadê minha marvada?” Uma vez ele chegou berrando com a pata pra riba numa roda de truco da fazenda, aí deram um gole para ele e o bicho ficou contente que só. Passado uns minutos, ele voltou com “os zói” vermelhinhos e a pata levantada. Ele queria mais! Mas ninguém quis dar nada pra ele. Irritado com aquela situação, o bode saiu quebrando tudo, pisando em galinha, derrubando panela; coisa de bebum mesmo. Ô bode cachaceiro! Nessa época eu bebia pouca cachaça, só um gole... a cada meia hora. Eu era um verdadeiro pé de cana e, esse bode veio com a pata levantada para o meu lado, mas ele me pegou numa 119


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções hora que eu estava desprevenido. Estava lá no depósito, sentado no chão tomando umas, já todo mamado. O bode berrava sem parar e levantava aquela pata doida. Aí eu olhei pra cachaça... Olhei para o bode... Olhei para a cachaça... Olhei para o bode... Olhei a cachaça... e olhei para cachaça de novo; Pensei: “Que bode que nada... vou ficar com essa cachaça é toda pra mim!” − Sai daqui bode! Quem bebe aqui hoje sou eu! O bode saiu nervoso, quebrando as coisas na fazenda e eu, só olhando e rindo enquanto virava as canecas com a minha boa e velha companheira, a cachaça.

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CRAS - Alvorada

Lição de vida com sabor de rosca

Gracinha Santos

Nasci em uma família de 5 irmãos, eu era a caçula; alguns meses após meu nascimento meu pai faleceu, deixando minha mãe e todos os filhos sozinhos e sem muitas condições financeiras. Tinha dia que a fome era tanta que só ouvíamos os roncos dos estômagos pela casa... Para forrar os estômagos na falta de comida, aprendemos um truque: bebíamos água com açúcar antes de dormir. Mesmo paupérrima e sem brinquedos de verdade, apenas sabugos, os quais eu fazia de bonecas, eu já era uma menina bem espertinha e fazia o que podia para conseguir ficar de pé naqueles dias de fome. Em uma dessas, observei que minha amiguinha, a Chinchinha, às vezes ia até a bodega perto da minha casa para buscar comida e lanches para a mãe dela. Vendo isso, tive uma ideia! Mesmo eu sendo muito amiga da Chinchinha, a fome falava mais alto, por isso dei uma ordem para ela: − “Cê vai lá pega rosca pra nóis comê! Se ocê num fô, vô te batê doído!” Ela tremeu de medo e foi lá, pegou na conta da mãe dela rosca e pão carteiro pra todos nós: eu, Chinchinha e nosso amigo Carlos, todos da mesma idade e que moravam na mesma rua. 121


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Ah, que roscas gostosas! Sentamos na calçada e comemos tudo. Como eu era a mais gulosa, comia mais rápido só pra sobrar menos para os outros, chegava quase a entalar. Depois que a primeira vez deu certo, então eu fazia a Chinchinha ir buscar rosca pra nós, todo dia. E, pra garantir tudo aquilo, toda noite, depois de tomar água doce antes de dormir, eu rezava para que Deus nos desse forças, e que o pão, ou a rosca de cada dia nunca acabasse. E realmente essa oração deu certo durante um bom tempo, até que... No final do mês a mãe da Chinchinha foi acertar as contas na bodega e viu uma enorme diferença naquela conta. Eram pão e rosca em todos os dias da semana. O dono da bodega disse para ela que era a Chinchinha quem estava indo buscar. Muito brava, ela deu uma baita surra na Chinchinha, que acabou revelando quem era a cabeça daquela bagunça com sabor de rosca. Quando minha mãe ficou sabendo, levei uma das maiores surras da minha vida. Uma surra tão doída de vara verde que aprendi a nunca mais colocar as mãos no que não é meu. Hoje levo isso como lição de vida e ensino essa lição para todos os meus filhos. A valorizar o que é seu e nunca cobiçar o que é dos outros, principalmente pão e rosca.

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CRAS - Alvorada

Ciganinha

Iolanda Lariucce

Quando eu era moleca, eu adorava andar a cavalo e apartar as vacas. Gostava mesmo de animação e aventura, não conseguia ficar um segundo parada. Quando eu via um cavalo solto, logo jogava um baixeiro nas costas dele e, com qualquer corda que tivesse por lá eu fazia um cabresto e saía correndo montada no cavalo pela capoeira. Meus cabelos ondulados ao vento já eram conhecidos na região perto da Fazenda Pousada da Prata, onde eu morava; ali todos me chamavam de Ciganinha. Todo dia eu ia para as roças, levava comida para o meu pai e meus irmãos que capinavam e limpavam as plantações; tudo isso montada a cavalo. Um dia uma vaca da fazenda ficou prenha e pariu um lindo bezerro, mas por algum motivo ela não deixava que ele mamasse de jeito nenhum. Com aquela rejeição o bezerrinho iria morrer de fome. Aí meu pai só achou uma solução: − É... – disse meu pai – Vamos ter que dar leite na mamadeira para esse bezerro... Só que eu tive uma ideia ainda melhor! Para nossa sorte, tínhamos uma vaquinha mansinha que estava amamentando seu bezerro, o nome dela era Gaiola. Então 123


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções eu levei o bezerrinho rejeitado para perto da Gaiola e, enquanto o bezerrinho dela mamava, eu dava uma espiga de milho na boca da Gaiola, aí, quando ela já estava entretida com a espiga, eu deixei o milho dentro do jacá e fui lá trocar os bezerrinhos famintos. O bezerro rejeitado mamou com gosto naquele dia, foi lindo ver aquilo. A partir daí, todo dia eu fazia isso, até que um dia a Gaiola passou a cuidar dos dois filhotes. Era a coisa mais bonita de ver: a Gaiola pastando sempre acompanhada de seus dois bezerrinhos e eu acompanhada da felicidade de ver aqueles bezerros crescerem, e se tornarem duas novilhas fortes e vistosas, talvez as novilhas mais fortes e bonitas que aquela fazenda já viu.

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CRAS - Alvorada

Cerveja

Jamiro Domingues

Casa dos velhos Bezerra de Menezes Eu trabalhava na Brahma, descarregava o caminhão de bebidas em São Paulo todo dia. Chegando lá, passava nos bares do caminho e tirava algumas cervejas quentes das caixas e trocava por bem geladinhas, ou melhor, “estupidamente geladas” como dizem por aí. Bebia até não poder mais. Depois falava que as bebidas tinham sumido no caminho, ou estragado na viagem, às vezes nem falava nada. A verdade é que eu já estava de saco cheio daquele trabalho e queria me mandar. Por isso, todos os dias eu virava um pau d’água de tanto beber cerveja na viagem e no depósito. O dono da Brahma de Ituiutaba, o Doutor Andraus, adorava raiar com a gente mesmo quando trabalhávamos direitinho; principalmente eu, que sempre estava bêbado. Um dia ele me pegou bebendo uns goles lá no depósito; eu já estava mamado. Ele chegou gritando e eu nem dei mole, continuei olhando para o horizonte e esperando dar o horário para sair com o caminhão. Com cara de desespero e suor escorrendo da testa, ele me ameaçou: − Jamir, se você não trabalhar direito te mando embora! 125


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Aí eu não aguentei, ainda olhando para o horizonte, vendo os passarinhos voarem, falei: − Se quiser mandar, pode mandar! Mas passa o meu pra cá! Como eu estava planejando, fui demitido aquele dia. Quando saí da sala de RH com meu acerto, aproveitei para passar no depósito e pegar mais uma dúzia de garrafas de cerveja. Essas eu tinha que levar pra viagem.

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CRAS - Alvorada

Bandeirinha

Joana M. de Moraes

Todo recreio, brincávamos, eu e meus amigos na Escola João Ribeiro da Silva, na fazenda Campo Alegre. Aqueles recreios eram uma festança! Uns 20 meninos correndo pra lá e pra cá. Eu tinha 10 anos de idade naquela época e, pra dizer a verdade eu nem era aluna da escola. Até que tentei, mas não conseguia enxergar nada no quadro, então eu desisti. Mas os meninos iam sempre, às 9 horas da manhã me buscar pra brincar de bandeirinha. O jogo de bandeirinha era simples, tínhamos apenas que conseguir pegar a bandeirinha, um galho de árvore, do lado do adversário sem que ninguém encostasse na gente. Cada um tentava de um jeito diferente entrar e pegar aquela bandeira. Se encostassem em você, você tinha que começar tudo de novo. Mesmo não enxergando, eu corria como o vento naquele pátio da escola e, surpreendendo toda molecada, eu conseguia melhor que qualquer outro ali entrar na área do adversário e pegar aquela bandeirinha. Todo mundo ficava boquiaberto e, por isso me chamavam todo dia pra brincar. Sempre fui assim. Mesmo cega, eu sempre enxerguei mais do que muitos que tem a visão perfeita. 127


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Já ensinei sobrinhas a andar de bicicleta, jogar futebol, cozinhar e diversas outras coisas que muita gente por aí demora muito pra aprender. Acho que a força de vontade é a melhor visão que existe. Ela nos faz enxergar com o coração.

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CRAS - Alvorada

Caminhãozinhozinho de boi

João Gonçalves

Com dez meses de idade, tive paralisia infantil, por isso fui crescendo e me arrastando pelo chão, sujando minha bunda toda e acabando com minhas roupas. Só com sete anos comecei a andar. Nessa época eu ainda morava lá em Macaúba, na Bahia. Foi aí que, quando eu tinha 5 anos de idade, vendo eu me arrastar pelo chão daquele jeito, um amigo da minha família, o “Seu Dino”, que era um importante fazendeiro e marceneiro, me chamou e disse: − Se você conseguir andar sem cair, te dou um caminhãozinho de boi bem grande, do mais bonito que existe, só para você brincar! Naquele momento meus olhos brilharam. − Se você conseguir − o Seu Dino completou − não importa onde eu ou você estejamos, vou lá levar para você! Eu tinha que aprender a andar sem arrastar a bunda no chão! A partir daquele dia fui levantando e caindo; algumas vezes com ajuda da minha mãe ou meu pai, outras vezes dos meus irmãos que sempre me carregavam nas costas para todo canto quando tínhamos que sair. Mas eu tinha que parar com isso, tinha que aprender a andar sozinho e ganhar o meu caminhãozinho. 129


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Com esse pensamento continuei aqueles dois anos difíceis, nos quais a cada dia sonhava com mais um passo. Com o tempo, cair não doía mais, conseguir ficar de pé era a razão de todos os meus sorrisos. Assim comecei a caminhar, um pequeno passo por vez, até finalmente percorrer o caminho inteiro. Foi quando o Seu Dino, aquele da promessa, convidou a minha família para visitá-lo em Brasília. Ele pagou nossa passagem e, quando chegamos lá, na hora do almoço, fiquei ansioso para mostrar para ele meus passos firmes pelo chão. Só que, com seu jeito sério, ele falou para o meu pai: − Vou sair agora, e se eu demorar, não reclamem, que eu sei o que estou fazendo. Naquele dia, para minha tristeza, que queria mostrar para ele o que eu havia aprendido nos últimos dois anos, o Seu Dino não voltou para o almoço. Até que no fim da tarde, ele retornou para a fazenda, e mandou me chamarem. Eu fui andando feliz até ele, lá em um barracão onde o Seu Dino estava sentado em uma cadeira. Quando entrei, ele me chamou com as mãos, eu me aproximei e ele disse: − João, lembra daquele presente que te prometi há alguns anos se você conseguisse andar? Então, está aqui. – Ele colocou as mãos atrás da cadeira e tirou de lá aquele enorme caminhãozinho, realmente o mais bonito do mundo, todo trabalhado e envernizado, parecia um carro de boi de verdade! − Esse é seu presente – ele disse – tome aqui, é todo seu para você brincar. Nossa! Como fiquei feliz naquele momento! Olhando para aquele caminhãozinho lindo em minhas mãos, eu vi que tinha valido a pena ter caído tanto e depois levantado só para aprender a andar e ter forças para ir até lá, tão longe, buscar o meu caminhãozinho que, a partir de agora, iria andar junto comigo, por onde quer que eu fosse.

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CRAS - Alvorada

Pimenta de arder o lombo

João Vitor dos Santos

Lá em Ipiaçu, na Bahia, morava eu com toda minha família. Eu devia ter nessa época uns 5 anos de idade. Certo dia, fui com minha família até a casa de uns primos que moravam ali perto. Chegando lá, como toda criança, saí andando e explorando a casa toda; foi quando avistei na cozinha aquela belezura... Era um frango de molho, temperado no açafrão. Mas meus olhos realmente brilharam quando vi, ao lado daquele frango formoso, um vidro de pimenta malagueta curtida, a coisa mais linda que eu já tinha visto. Até hoje, quando vejo algo bem vermelho eu me lembro daquela pimenta. Eu tinha acabado de almoçar em casa antes de sair, mas não resisti, falei alto e empolgado: − Mãe! Eu quero cumê! E junto quero essa pimenta! − Mas meu fio, – minha mãe dizia – ocê já almuçô! − Mas eu quero! – eu respondi bravo e com cara de manha. − Então tá, mas vai tê que cumê tudo! E assim ela fez, encheu meu prato de comida e esparramou com gosto pimenta por cima; o prato ficou vermelhinho, nem dava para ver mais o feijão e a farinha. Até aquele dia, eu nunca tinha comido pimenta antes, só achei o vidro lindo, por isso queria tanto, não sabia nem o gosto 131


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções que tinha aquilo; mas ia ter que comer, não tinha escolha. Minha mãe já tinha uma cinta na mão para o caso de eu não devorar aquele prato. Nem lembro o gosto daquele almoço de tão ardido! O couro da minha boca se arrancou todo; comi com os olhos cheios d’água, sabendo que na hora de ir embora ia ser bem pior. Quando minha mãe me chamou para ir embora eu ainda tentei escapar e falei com a boca ardendo: − Vamo não, mãe! Vamo ficá mais um poquim! Ela me arrastou com uma mão enquanto segurava um cipó na outra. E não deu outra, quando viramos a primeira curva da estrada o cipó comeu no meu couro; meus gritos costuraram aquela noite! Essa deve ter sido uma das maiores surras que eu já tomei na vida; doeu bem mais do que comer aquela pratada de pimenta. Era para hoje em dia eu ter até vergonha e nunca mais comer pimenta, mas não resisti. Depois de muitos anos, já grande, voltei a comer essas ardidas porque soube que doem bem menos que uma surra. Mas pedir para comer na casa dos outros, e ainda mais de barriga cheia? Ah! Nunca mais!

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CRAS - Alvorada

Ajoelhado no milho

José Henrique Sobrinho

Lá em Lagoa Nova, na Paraíba, com meus 10 anos de idade eu era um garoto impossível. Aprontava, pintava e bordava em todo canto. Todo dia chegava reclamação para os meus pais na minha casa. Comigo não tinha tempo ruim! Eu tinha uma mania endiabrada: beliscava todo mundo, meninas, meninos e até professores. A professora, vendo aquilo não aguentou e foi chamar minha atenção. − Escuta aqui, − ela disse – ou você se emenda ou vai pra palmatória! Eu não aturei aquela bronca da professora e lhe meti os dentes! Foi uma mordida bem dada, com toda força. Essa professora, se ainda estiver viva, deve ter a marca dos meus dentes até hoje. Depois dessa dentada, não deu outra: fui para o milho. Tinha que ficar um tempão ajoelhado em cima dos grãos. E assim foi... Fiquei ali com os joelhos doendo até que não resisti, peguei aqueles grãos de milho que estavam em baixo dos meus joelhos, mais ou menos uns 6 butelos, e comi tudo, nem senti o gosto. Quando a professora chegou, depois de algum tempo, só pra ver minha cara de choro, ela olhou pro meu rosto e viu foi uma cara lavada. Me mandou levantar e, pra surpresa dela, meu 133


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções joelho estava branquinho, sem nenhuma marca de milho, ao contrário do que ela esperava. − Cadê o milho que devia estar no seu joelho? – perguntou a professora. − Eu comi – respondi. − Por que você comeu? − Porque meu joelho estava doendo – falei sem medo. Pra me punir, ela me colocou de castigo na dispensa da cantina. Ah! Essa foi a melhor notícia que eu poderia ouvir! Ela me trancou lá e depois de alguns minutos eu já estava atacando as prateleiras e comendo tudo: tapioca, bolo, carne seca, açúcar, rapadura, farinha. Quando a professora abriu a porta, sua cara de espanto foi incrível ao ver aquela bagunça sem tamanho: pedaços de carne mordida no chão, rastros de farinha e panelas pra tudo que é canto. O lugar parecia um chiqueiro. − Que bagunça é essa?! O que você aprontou? – Ela gritou brava. − Aprontei nada. – respondi − Eu estou com fome, por isso estou comendo. Naquele dia fui expulso da escola. Fui embora com um bilhete de aviso e reclamação no bolso, mas com um sorriso no rosto, e o mais importante: com a barriga cheia!

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CRAS - Alvorada

Brincadeira inocente

Jucimar Alves Guimarães (Ju)

Quando eu tinha de 8 a 9 anos, morava lá na Avenida 23, esquina com a Rua 4, em Ituiutaba. O meu irmão mais velho tinha 11 anos e minha irmã mais nova, apenas 7 aninhos. Certo dia, meu vizinho José, de 12 anos, nos chamou para brincar de casinha, aí meu irmão teve a ideia brilhante em que ele seria o meu compadre, casado com minha irmã, que seria sua esposa, enquanto eu e o vizinho seríamos outro casal. Depois de terminada toda a encenação dos casais conversando, era hora de dormir. Fomos os quatro para o quarto, ali nos deitamos: meu irmão e minha irmã em uma cama de solteiro e, eu e o José, em outra. Para o nosso sono de mentirinha ser mais real, fechamos a porta do quarto para que ninguém entrasse e atrapalhasse nossa brincadeira inocente; deixamos apenas a janela aberta para que entrasse um ar. Logo em seguida depois de já estarmos bem abraçadinhos e fingindo serem realmente casais dormindo, minha mãe e meu pai passaram pela janela e viram aquela cena. Possesso de raiva, meu pai entrou pelo quarto empurrando tudo e gritando. Sem pestanejar, expulsou o meu vizinho José e fechou todas as portas da casa para que não pudéssemos correr. Quem passava pela rua, só ouvia os gritos. 135


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Com uma corda grossa, ali mesmo no quarto deu em nós três a maior surra das nossas vidas. Depois daquele dia, nunca mais fiz nenhuma brincadeira inocente. Por isso, hoje em dia, eu prefiro as brincadeiras sérias.

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CRAS - Alvorada

Limpeza em minha vida

Maria Abadia da Silva

Tinha acabado de almoçar aquela carne de porco fresquinha, deliciosa! Só de lembrar me dá água na boca. Estava até roliça, com a barriga cheinha, mas como toda menina sapeca, eu não podia ficar quieta, por isso fui passear pela fazenda; correr e pular igual a uma coelha. Naquela época, com meus 9 anos, eu era realmente arteira, subia em tudo que é lugar; minha mãe dizia que se deixassem eu subia até em pé de mamão. Enquanto eu corria sob o sol quente da fazenda, eu avistei um pé de mamona grandão; a coisa mais bonita, verdinho, cheinho de cachos de mamona. Eu adorava brincar com mamonas, então não perdi tempo, e fui lá apanhá-las. Subi com toda a agilidade de menina travessa, parecia uma macaquinha. Quando cheguei lá em cima, bem na hora que apanhei o cacho, um susto, o galho quebrou e eu fui direto para o chão. O tombo foi tão feio que ao cair, tive uma convulsão das bravas; fiquei mais de meia hora rolando no chão; meus olhos ficaram branquinhos e meu pescoço virava pra trás. Quando conseguiram me levar para casa, passaram álcool no meu corpo e me deram banho. Por sorte sobrevivi. Naquele momento passou, mas nos próximos 25 anos eu passei a ter fortes convulsões com frequência, quase de mês em 137


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções mês. Se eu ficasse feliz eu caía, se eu ficasse triste também ia para o chão e tocava de roda. Esses foram anos difíceis da minha vida. Até que um dia, depois de minha irmã Lúcia tanto insistir, eu acordei e resolvi ir à igreja dela, a Assembléia de Deus do Bairro São José, para ver se algo realmente melhorava. Chegando lá, não deu outra: caí no chão e tive uma forte convulsão, daquelas de morder a língua e dar muito trabalho. Mas para minha sorte, todos os irmãos da igreja me ergueram e me ajudaram. Com muita fé, me deram roupas novas e tiraram a minha roupa para que eu nunca mais a usasse; eles iriam jogá-la fora, assim como toda essa minha doença. O pastor apenas perguntou: − Você tem fé, Abadia? − Tenho sim! – respondi. Aí ele colocou a mão na minha cabeça e em seguida todos os irmãos presentes fizeram a mesma coisa; mais de vinte pessoas orando com a mão na minha nuca. Naquele momento a fé fez uma limpeza na minha vida e, a partir de então, nunca mais tive nenhuma convulsão. Tudo isso graças ao poder misericordioso de Deus. Daquele momento em diante, passei a frequentar a igreja toda semana, sem falta, e com a certeza de que Deus está comigo a todo instante e nunca me abandonará.

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CRAS - Alvorada

Sorrisos pelo correio

Maria Silva Casa dos velhos Bezerra de Menezes

Estava lá sentada sozinha. Minha família foi embora e nunca mais se lembrou de mim. Assim como eu, muita gente aqui na Casa dos velhos Bezerra de Menezes, se sente abandonada por não ter mais marido, nem filho. Por não ter ninguém. Até que um dia recebi uma carta especial. Logo eu que nunca tinha recebido uma carta, fiquei emocionada. Eram as palavras mais lindas que já li. Chorei muito de emoção naquele dia. O remetente era o Jorge. Que Jorge? Até então eu não sabia, mas a partir daquele momento ele se tornou o membro mais importante da minha família, mesmo sem ser meu parente. Mandou carta para todo mundo aqui da “Casa dos velhos”, por isso hoje todos o amam muito. É difícil existir uma pessoa assim que gosta tanto da gente a ponto de escrever uma carta diferente, com nosso nome, para cada um dos idosos abandonados que moram aqui comigo. Com as cartas dele, ele abraça a gente com as palavras mais bonitas que já li; abraça a gente como quem abraça um irmão, um filho, um pai ou um avô. 139


Gavetas da Memória - Reviver... Histórias e Emoções Desde aquele dia guardo todos os abraços que o Jorge me mandou pelo correio e releio-as sempre para me lembrar de que houve alguém que nunca me esqueceu. Depois de um tempo vi ele na televisão. Todo mundo da “Casa dos velhos” assistiu junto. Descobrimos que o Jorge é um carteiro que no seu tempo livre escreve cartas para levar alegria e compaixão para as pessoas que muitas vezes foram esquecidas. Achei o Jorge bonito e, mais bonito ainda, o que ele disse sobre nós. Para agradecer, eu também escrevi uma carta para ele, no entanto o Jorge é muito ocupado, e ainda não me respondeu. Mas sei que vai me responder, sim. Afinal, ele é o membro mais importante da minha família, o único que nunca vai esquecer de mim e sempre vai me trazer um sorriso pelo correio.

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CRAS - Alvorada

Macaquinho arteiro

Maria Rita de Souza

Eu tinha mais ou menos seis anos de idade e morava em um sítio onde um vizinho criava um lindo macaco de estimação chamado Chiquinho. Certo dia eu estava com um bonito vestido de renda quando saí descalça, bem de mansinho, às escondidas para ninguém ver, com a intenção de ir lá no terreiro do vizinho brincar com aquele gracioso macaquinho. Quando cheguei perto dele, acenei com a mão e dei um oi: − Oi Chiquiiinho! Assim que ele me viu, veio correndo e deu um enorme pulo nos meus braços; pensei que era um abraço, mas para minha surpresa, ele começou a gritar e puxar meu vestido. Eu gritei desesperada, porém ninguém me ouviu. E o macaco continuava rasgando meu vestido. Só quando ele rasgou tudo e pulou em uma árvore foi que eu finalmente consegui sair correndo para casa, toda em fandango, só com os fiapos de pano no corpo. Em casa, entrei sorrateira para os meus pais não perceberem e fui direto para o quarto; tirei os frangalhos de pano os quais já tinham sido um vestido e deixei bem escondido para que ninguém nunca soubesse disso. Até hoje, quando vejo um macaco, já mantenho distância, afinal, dou valor nas minhas roupas. 141








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