"Antes dela dormir" um livro de Filipe Faria

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DEDICADO A SOFIA NUNES



Paisagem sonora, intercultural, no feminino, sobre paisagem visual Inês Tonelo Ita Cabi Licínia Gaspar Ramandeep Kaur Carla Alexandra Inês Évora Marisa Ramos Ana Paula Parente Vera Serra Idanha-a-Nova


Projecto de Mediadores Municipais e Interculturais Um projecto Câmara Municipal de Idanha-a-Nova Em parceria com CMCD - Centro Municipal de Cultura e Desenvolvimento Coordenação Marta Castanheira Financiamento Programa Operacional Temático de Inclusão Social e Emprego (PO ISE) Mediadores Guabi David, Marisa Ramos, Samuel Romão, Vera Serra

UNIÃO EUROPEIA Fundo Social Europeu

Paisagem Sonora e Fotografia de Filipe Faria Edição Arte das Musas Em parceria com O Homem ONG Colecção Museu dos Sons Perdidos Design e Paginação Filipe Faria 1ª Edição Idanha-a-Nova 2022 Impressão Printer ISBN 978-989-95983-7-9 Depósito Legal 500207/22 Tiragem 1000 exemplares © Arte das Musas 2022


OUVIR

PAISAGEM SONORA www.artedasmusas.com/antesdeladormir



Porque eu gostava de cantar para as meninas... E à minha filha, antes dela dormir, eu gostava de cantar, assim... Ita Cabi (n. 1997) Bissau, Guiné Bissau em Idanha-a-Nova desde 2019



Dizem que Guglielmo Marconi (1874-1937), físico e inventor italiano, padrinho da tecnologia rádio, acreditava que o som não morre. Sonhava ouvir os sons perdidos, tocar nessas frequências eternas. Podíamos ouvir tudo. Ouvir a primeira inspiração dos nossos filhos e dos nossos pais. Ouvir o primeiro grito da Humanidade, cada sermão, conselho sábio ou riso de todas as gerações. Ouvir o som grave da primeira erupção ou o canto agudo daquela ave que escapou para longe. Todos nós podíamos ouvir tudo. Ouvir tudo, para sempre. Depois de produzido, o som não morria mas perdia poder, enfraquecia. Estas ondas sonoras, fracas, sem destino preciso, permaneciam eternamente a flutuar. Qualquer som podia, em teoria, ser recuperado. Ouvido pela primeira ou pela enésima vez. Qualquer som de qualquer lugar ou tempo passado. O primeiro e o último. Um som perdido podia ser ouvido, novamente, com o equipamento certo. Um equipamento poderoso. Um que conseguisse ouvir e escolher. Um por inventar. Todos os sons são sons perdidos… ondas que flutuam, independentes de outras vontades, até que alguém as consiga sentir ou sem destinatário. Persistentes. Frágeis. Mudas. Flutuações brutais ou discretas. Gritos ou sussurros. Ruídos. Vozes. Com todas as histórias do mundo. Ainda não foi possível inventar aquele equipamento poderoso com que poderíamos ouvir todos os sons perdidos, mas inventámos a forma de os guardar. Hoje, conseguimos ouvir o dia de ontem, desta ou de outra geografia. Mais ou menos secreto. Enchemos o planeta de sons perdidos. Sons que, dependendo da nossa vontade, podem voltar a ser produzidos. A construção de um Museu dos Sons Perdidos parte daqui... da tentativa de perpetuar as ondas das memórias pessoais e colectivas de uma comunidade... e o seu potencial criativo. Fundador. Reconfortante. Assustador. A paisagem sonora de todos e de cada um, construída pelas biofonias, geofonias e antropofonias de um território… o mundo silencioso a partir do qual nasceu. E a imagem, um veículo. FILIPE FARIA



Lá fora, a vida, na sua autofagia incessante, em estado perpétuo de absoluta relatividade. Exércitos de beleza flutuam, como se fossem pétalas de solidão, entidades apotropaicas, que nos resgatam da sua própria desumanização. Não há ausência. Na imensidão se encontra o detalhe, no detalhe se encontra a vastidão, onde o óbvio se escapa como uma aia à procura da escuridão, por entre um imenso território de dádivas, ao som de um silêncio psicadélico, numa paisagem dissidente onde a matéria se torna memória e o fim recomeça. Lá fora, este mundo selfie, globalizado até às costuras, está inundado de píxeis, sobrelotado de imagens em desenquadramento e temporalidade contrafeita. A beleza da fotografia, a sua voz, a sua frequência, não é arte final, mas o espaço de pensamento que a precede e a sucede. Há uma distância, um vagar analógico, narrativa. É maravilhoso observar a gente que se vê na ausência, assim como na sua voz se cruzam tantos mundos, tantos territórios, em todos os seus timbres. Lá fora, a vida no seu ventre, no seu esplendor incessante, em estado de perpétua inocência, quase neófito. No som, na sua multiculturalidade, há uma unidade, uma identidade feita de muitas. Este projecto magnífico, a criação de um Museu dos Sons Perdidos, tem como ponto de partida o ponto de chegada. Parte da individualidade para a construção de uma paisagem sonora, partindo desta para a sua transposição visual, territorial. Requer delicadeza, profundidade, sensibilidade fina, de flor de pele. Mais ainda quando a voz, feita de tantas vozes, se expressa e se demonstra pelos filtros próprios da mulher, capturando todos os meridianos da palavra no som, nas suas amplitudes, nas suas polifonias. E uma determinada melancolia que às vezes parece vinda da matéria dos sonhos e noutras se torna tão real quanto a sua realidade. Lá fora, as confluências de terra e de céu. Tudo é vida, numa explosão quieta, retalhos aprisionados brevemente num tempo e num espaço sem quietude possível. Na paisagem, desfilam gerações, vidas inteiras, mundos distintos numa unidade de memória colectiva. É como se estas memórias se decantassem no próprio território, presentes na ausência como um som infinito e irrepetível na museologia da alma. Lá fora, os elementos. A flor, a água, a pedra, os ramos, a raiz, os rastos, a pegada que a Humanidade deixa ao passar. É a presença que a deixa assim e a ausência que a torna infinitamente bela. Talvez não seja essa a natureza das coisas, mas é essa a natureza do ser. Lá fora, os esquissos perdidos da paisagem humana, adaptando-se ao seu lugar, adaptando-o. As pessoas transformadas em paisagem, a paisagem transformada nas pessoas, forjando lentamente a sua própria oralidade, a sua identidade. Captá-la não é fácil, mas é absolutamente maravilhosa a sua revelação. Lá fora, todos os dias a vida nos ensina que o amanhã é a ilusão mais antiga da Humanidade. Não há amanhã. Apenas dia, em todas as suas sonoridades. Paisagem. É isso que somos. Tantas vezes perdidos na tempestade. A procurar, a procurar, a procurar. Até encontrar o nosso definitivo berço. LUÍS PEDRO CABRAL



Do movimento da vida, morte e Renascimento. Reservar-nos-á o que semearmos e do que os nossos corações forem capazes. Ana Sofia Nunes [Dez, 2018] Lembrar. Lembrar é um acto poderoso, fundamental. Acordamos com ele todos os dias. E todos os dias com ele nos deixamos dormir. Nem os sonhos lhe escapam, tantas e tantas vezes. Sem que disso tenhamos consciência por vezes, a lembrança guia as nossas acções, influencia os nossos gestos, desenha as paisagens por onde nos movemos na incessante busca de sentido que é a vida. Estas linhas não deveriam ser escritas por mim. Não era suposto. Forças além da nossa vontade, porém, assim o determinaram. Coube à lembrança, o dever de guardar a memória, feliz, daquela com quem tivemos o privilégio de partilhar o esboço desta etapa, metamorfose fruto da vertigem criadora do seu pensamento. Ana Sofia Nunes. Impasse foi o ponto de partida. É a verdade e não há volta a dar. Quando a Sofia tomou para si o desafio de dar continuidade ao Projecto dos Mediadores Municipais e Interculturais em finais de 2020, o cenário era esse. Não por muito tempo. Com a energia e espírito de missão que todos lhe conhecíamos, a situação evoluiu rapidamente para uma reprogramação que veio a traduzir-se no conjunto de acções e conteúdos a que é dado corpo neste momento em que todo o processo chega ao seu término. À nossa responsabilidade ficou um legado, no qual todos se empenharam para estar à altura de dar a continuidade sonhada pela Sofia. Uma continuidade que não se pode esgotar no mero cumprimento deste ou aquele parâmetro, mas que se exige plástica e dinâmica, capaz de se adaptar às necessidades de resposta implicadas em cada situação, em cada cenário. Esta foi a matéria de cada discussão, de cada análise, de todas as abordagens feitas no contexto deste, como de todos os outros trabalhos em que nos vimos envolvidos com a Sofia. A não conformidade pura e simples com uma determinação que, num relance, verificamos estar aquém do que a realidade, na verdade, exige. Por isso, tão grande era o desafio de trabalhar em equipa com a Sofia, e, também por isso, tão exigente é a herança dessa noite de Maio de 2021. Depois dela dormir. PAULO LONGO







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Trabalhei muito no campo. A minha vida foi sempre a trabalhar no campo. Fui criada, fui patroa, tive todos os empregos. Eu até digo… esta coisa de andar assim metida nos toques e nos cantos e nestas coisas, assim… tenho, assim, mais vida. Inês Tonelo (n. 1937) Rosmaninhal, Idanha-a-Nova Portugal Sou uma pessoa que não gosta de ficar triste, eu gosto sempre de estar animada. Eu sou a primeira dama daquela escola… falei com o director: “Eu quero estudar mas só que eu não quero estudar aqui, na Guiné, eu quero sair fora para estudar, assim, para ganhar mais experiência”. Eu consegui. Ita Cabi (n. 1997) Bissau, Guiné Bissau em Idanha-a-Nova desde 2019 Desde que me lembro sempre gostei de dançar e cantar, só que, com a profissão dos meus pais, nem sempre foi fácil acompanhar o Rancho da aldeia… mas sempre tentei. Os meus pais têm, desde os meus três anos de idade, uma padaria. Começavam a fazer pão e a trabalhar muito cedo, à meia-noite, e deitavam-se por volta das sete da tarde. Para ir aos ensaios do Rancho que, nessa altura, eram duas vezes por semana, os meus pais tinham que pedir aos meus vizinhos, pessoas já de uma certa idade, para me levarem. Eu ia muito contente aos ensaios. Levavam-me, traziam-me e ia com a minha avó. A minha avó não vivia ao pé de nós mas, por vezes, ia dormir com ela, por vezes traziam-me a casa. Depois tínhamos as nossas actuações onde íamos cantar. Há memórias que me deixam de músicas que jamais vou esquecer na minha vida. Por vezes, no meu trabalho, dou por mim a cantar essas músicas que recordo com uma emoção e um sentimento muito feliz. Licínia Gaspar (n. 1983) Penha Garcia, Idanha-a-Nova Portugal [Vim] directamente para Portugal, Idanha. Na Índia estudava, agora não trabalho e fico em casa. O meu marido trabalha. Na Índia é muito diferente. A cultura é muito diferente. A cultura, a forma de vestir e a comida são muito diferentes. O trabalho, a língua [risos]... falo indiano, não falo português. Na Índia, a vida era melhor mas o trabalho não. Havia muitos problemas de dinheiro e de trabalho. A minha mãe, o meu pai e a minha família estão todos na Índia. Ramandeep Kaur (n. 1992) Punjab, Índia em Idanha-a-Nova desde 2015

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Andava na feira com os meus pais, a vender. Vendia e ajudava. Aos vinte anos casei-me e vim morar para Idanha-a-Nova. Comecei a fazer feiras. Tive uma filha, uma menina, um ano depois. Já tenho três filhos… uma menina com dez anos, uma com oito e um com seis. Nove anos depois de estar casada, decidimos abrir um café (as feiras estavam fracas). O meu marido decidiu abrir o café e eu apoiei. Decidi ajudá-lo. Agora estamos os dois a trabalhar lá no café. Temos uma empregada, também. Carla Alexandra (n. 1989) Idanha-a-Nova Portugal Eu chamo-me Inês e nasci em Cabo Verde. Na época dos portugueses, os meus pais foram para África, foram para São Tomé e Príncipe. Cresci lá, em São Tomé, até à idade adulta e agora resolvi vir cá para Portugal, para aventurar, e cá estou. Na época dos portugueses que levavam os cabo-verdianos para São Tomé de barco (anos [19]54, por aí), levaram os meus pais. Lá, cresci. O meu pai trabalhava na roça. Então era galinheira, a minha mãe. Tomava conta das galinhas, limpava a casa e essas coisas domésticas. Na sanzala, uma casa separada da casa dos patrões, [vivia] eu e os meus pais. Minha mãe ia trabalhar de doméstica, o meu pai é que tomava conta do pessoal. Diziam, na altura, na roça, capataz. Era responsável dos trabalhadores que levava para o campo. Na época colonial diziam assim. Eu também lembro que, quando depois de eu crescer, com uma certa idade - já estava mocinha, mais ou menos, diziam assim -, como o meu pai era responsável, arranjou-me um emprego. Carregava a lata com água para dar aos trabalhadores. Quando gritavam “Água!”, não era como se fosse o balde ali, era uma lata feita de chapa de zinco com uma caneca… andava eu aí, miudinha… A pessoa quando estava com sede gritava e eu ali com a minha canequinha… isso eu lembro-me. Depois deixei, casei e fui trabalhar. Mudei de roça para outra roça. Depois começaram a chamar empresas, começaram a modificar as coisas. Tive lá seis filhos. Gostámos de Idanha e cá estamos. Estivemos em São Tomé. Havia as pessoas que vinham para Portugal e iam para São Tomé. Então apareceu um compadre nosso que veio para Portugal de férias. Então apareceu um patrão que estava a precisar de um casal. Então, ali, quando chegou a São Tomé, ele disse “Ó, comadre, vocês querem ir lá aventurar em Portugal?”. Nós dissemos “Aventurar? Não, não!”. Não queríamos. Então, chega um certo dia - ele estava sempre a teimar “Estão a precisar de alguém e já disse que vão vocês. Vamos lá aventurar!”. Então lá aceitámos. O patrão pagou-nos o bilhete… eu, o meu marido e dois filhos (ficou lá o resto). Então viemos e trabalhámos dois anos e quatro meses só a pagar ao patrão. Acabámos de pagar e depois fomos aventurar para outro lado, viemos para Idanha. Inês Évora (n. 1961) Quimpo (S. Tomé), São Tomé e Príncipe em Idanha-a-Nova desde 2002 5






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“Se tu não estás comigo, nada faz sentido. Se tu não estás comigo, não sou feliz. Se tu não estás comigo, eu não quero viver” [canta]. Isto são coisas espirituais, não são coisas… É amor, sim, é por amor, mas por Deus. E comove-me. Quando eu nasci os meus pais viviam numa aldeia, a Bemposta, onde eu e os meus irmãos mais velhos crescemos. Eu ainda lá andei na Escola. Éramos pessoas de etnia cigana mas muito bem aceites por aquela comunidade, por aquela aldeia. Nós estamos no coração deles e eles estão no nosso. Onde os meus pais conseguiram construir uma casa com a ajuda dos compadres, que eram os padrinhos das filhas. Uns porque arranjaram um terreno, outros porque ajudavam no material da casa, outros porque eram construtores. Um bocadinho de todo o lado, construíram uma casa. Os meus pais eram nómadas, digamos, andavam de aldeia em aldeia para poderem ganhar a vida, que é mesmo assim, e nós ficávamos em casa com uma tia minha. Depois de uns anos, as minhas irmãs foram casando e foram saindo dali daquela aldeia. Como as minhas irmãs mais velhas já tinham casado e saído daquela aldeia, tinham vindo para aqui para a zona de Idanha, [os meus pais] pensaram em vender a casa e vir ter com as filhas. Se as filhas não iam ter com eles, eles tinham que ir ter com as filhas… então assim fizeram. Venderam a casa e vieram para a Zebreira que era onde estavam as filhas. Eu, na altura, ainda andava na primeira classe, na Bemposta. Os meus pais passaram a minha matrícula para a Zebreira e ali vivi com os meus pais muitos anos. Os meus irmãos, praticamente, estão todos ali. Só uma irmã minha é que está em Lisboa. E eu estou aqui na Idanha, bem perto, também. Marisa Ramos (n. 1980) Idanha-a-Nova Portugal Cantava-me essas cantigas, tal e qual. Aprendi essas cantigas com o Joaquim. Sobretudo “As pombinhas da Catrina” e o “Atirei o pau ao gato”. Foi com ele que aprendi. Nasci a 31 de Janeiro de 1966 na magnífica cidade de Lourenço Marques, Moçambique, actualmente Maputo. Aprendi a nadar com o meu pai, em alto mar. Eu ia à caça com o meu pai. O meu pai dizia que tinha três rapazes mas eu é que devia ter sido o rapaz e não a rapariga, porque era eu que acompanhava o meu pai. Antes de ir para a Escola, diariamente, fazia uma coisa muito engraçada com o meu pai… ia à praia, dávamos um mergulho, jogávamos um bocadinho de futebol e depois ele passava-me pelo chuveiro de água doce, calçava-me os ténis brancos e o bibe amarelo. A palhota tinha, assim, uma árvore grande e o meu pai fez-nos uma casinha lá na árvore. Para mim é uma cidade que é um feitiço. É o sol que brilha, é o mar, é a savana. Ir àqueles safaris - que por acaso fui duas vezes, sem a minha mãe saber, às escondidas… São essas recordações que eu tenho de África que não vou esquecer. Nunca. E o Joaquim ficará sempre no meu coração porque foi ele que me criou. Apesar de eu viver muito aquelas vivências todas com o meu pai e com a minha mãe, o


Joaquim era o Joaquim, era aquela pessoa que estava sempre ali quando eu precisava de alguma coisa. Quando foi a revolução lá, ele é que me foi buscar sob tiros, à Escola, dentro do carro do meu pai, e me trouxe para casa e ele é que me protegeu. Trancou-nos em casa, a mim e ao meu irmão, até os meus pais chegarem. E o Joaquim vai ser sempre o Joaquim, para mim. Vai estar sempre no meu coração. Ana Paula Parente (n. 1966) Lourenço Marques (Maputo), Moçambique em Idanha-a-Nova desde 1984 Sou Vera Serra, tenho trinta e nove anos, nasci em Penamacor onde fui registada. Quando eu nasci, os meus pais viviam lá, estavam lá a trabalhar, mas rapidamente vim para a terra do meu pai, Idanha-a-Nova, e fui criada aqui na Senhora da Graça, com os meus tios. Aos doze anos foi quando terminei a quarta classe. Nessa altura ainda não era obrigatório as crianças andarem na Escola até aos dezoito anos. A professora, com muita pena, até falou, por várias vezes, com os meus pais para me mandar para cima, para a Escola C+S [Preparatória e Secundária] mas eles diziam que eu não precisava de aprender mais porque já sabia ler e escrever… não precisava mais. Os meus pais tiraram-me da Escola para começar a tomar conta do meu irmão com dois anos. Pronto, tirei a carta. No ano a seguir lá vai a Vera, outra vez, para o tabaco e, assim, andei seis anos, até conhecer o meu marido. O meu marido também andava lá no tabaco. Decidimos fugir. Veio-me buscar a Castelo Branco e eu fui até Castelo Branco ter com ele. Daqui fomos para Lisboa onde estivemos dois ou três dias. Mas eu disse-lhe “Olha, temos que ficar aqui muito bem escondidos, porque os meus pais, quando nos apanharem... eu não sei o que vai acontecer [risos]”, e decidimos, então, ir para a Índia. Ao fim de três dias fomos para a Índia. Ele com muito medo, também, porque sabia que, ao ir para lá, se as coisas não corressem bem, já não voltava. Só que eu já levava tudo tratado, documentos, essa trapalhada toda… levava isso tudo. Então, a solução era nós casarmos para depois ele poder vir. Vera Serra (n. 1982) Penamacor Portugal











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“Não há vida mais bonita, do que a do lavrador, vai à tarde e solta a junta vai a falar ao amor.” [canta] “Esta noite fui-me às pêras, Também mim fui às maçãs, Fica-te aí com Deus, Ó Rosa, Saúde, até amanhã” [canta] Está a ver, as cantigas d’antes eram assim, pequeninas... era assim que a gente cantava. “Ó Rosa és minha, tu serás ou não. Tu és a alegria do meu coração. Quando eu quis tu não quiseste, tomara os meus para ser, Agora que tu já queres, Já não te posso valer. Quando eu quis tu não quiseste, julgavas que eras mais do que eu E agora que tu já queres, Agora não quero eu.” [canta] Inês Tonelo (n. 1937) Rosmaninhal, Idanha-a-Nova Portugal







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Acho que lá é mais alegre, as pessoas são mais divertidas… pronto, mais à vontade. Estão sempre na brincadeira. É assim, mais ou menos. É uma diversão diferente daqui, totalmente diferente. Inês Évora (n. 1961) Quimpo (S. Tomé), São Tomé e Príncipe em Idanha-a-Nova desde 2002 Eles lá tinham aqueles rituais, à noite, do cantar… Vestirem, ali, as capulanas, todas a rigor, e a tocarem os tambores e aquelas flautas magníficas que eles esculpem. Têm esculturas lindíssimas. A madeira é chamada de pau preto. Ana Paula Parente (n. 1966) Lourenço Marques (Maputo), Moçambique em Idanha-a-Nova desde 1984 Ó “Manuel da rola” tens as calças rotas, Tens os olhos pretos, tens perna marota. Já que estou à espera de outros melhores, Ficas sem casar, anda cá meu rico amor. Davas-me um beijo, não aceitei, D’arrependida como fiquei Que um beijo só ainda faz mais fome. Um beijo só, um beijo d’home[m]. Ó "Manuel da rola”, agora é que eu estou bem, só te quero a ti, não quero a mais ninguém. Já que estou à espera de outros melhores, Ficas sem casar, anda cá meu rico amor.” [canta] Corruptela de letra original: Arlindo de Carvalho

Inês Tonelo (n. 1937) Rosmaninhal, Idanha-a-Nova Portugal







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Esta música é quando as pessoas saem de um país para outro território e vêm procurar uma sabedoria, conhecimentos de formação, assim. Dantes, quando as pessoas saíam, as pessoas ficavam com mágoa e tristeza, porque vai fazer mangas de tempos que não vão ver aquelas pessoas, e, então, ficam, assim, com aquela dor e tristeza. A pessoa ficava assim “Se calhar, se eu vou voltar, as pessoas vão-me receber com aquele abraço, assim”. Há outras pessoas que não gostam, quando as pessoas foram embora… Então, há outras pessoas que gostam quando as pessoas regressam ao seu país, a sua terra natal. Eles costumam abraçar, assim, porque eles ficaram com saudade. Porque eu gostava de cantar para as meninas… E à minha filha, antes dela dormir, eu gostava de cantar, assim… Ita Cabi (n. 1997) Bissau, Guiné Bissau em Idanha-a-Nova desde 2019


MM— MOUNTAIN MISSION






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