ANTRO POSITIVO ED.03

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lguns personagens no teatro são capazes de nos conduzir às mais inesperadas emoções. Mas alguns personagens do teatro são tão imprevisíveis que é impossível tentar nomear. Quando voltei a morar em São Paulo, após passar a adolescência no interior, vinha para iniciar os estudos universitários. A novidade também se referia à escolha em desistir da medicina e me entregar ao teatro. Foi na FAAP que tudo se deu quase de uma vez só. Encontrava nas salas de aula um pouco do novo mundo, e no teatro da faculdade um grupo de malucos, cujos espetáculos me atormentavam, enquanto me levavam a rir da minha própria estupidez em ser gente. Assiste a Ubu, do Teatro do Ornitorrinco, com direção de Cacá Rosset, uma dúzia de vezes. Nenhuma foi menos surpreendente que a anterior. Havia no despojamento do espetáculo um nível de elaboração crítica e estética fascinante. Desde então, o Ornitorrinco deixou de ser um animal esquisito para se apresentar ao imaginário como referência de teatro igualmente estranho. Havia paixão na ironia. Desejo pela cena. E o teatro ali apresentado se oferecia doido e especialmente necessário. Ubu saiu candidato a prefeito de São Paulo, alguém me conta. Desconfio. Verifico. E, sim, lá estava ele entre políticos da pior qualida-

de, em caminhadas, abraços e fotos nos jornais. Que espécie de maluco levaria tão a sério seu personagem ao ponto de torná-lo plausível? Ninguém, claro. A relação era o inverso a isso. Ubu havia se permitido atuar, deixando Cacá o contaminar com as estratégias da cena, representando ao mundo sua existência, sem que de fato existisse alguém. O Teatro do Ornitorrinco e Cacá Rosset permanecem a cada nova eleição, a cada novo espetáculo que usa da ironia ácida na construção da crítica necessária para a sobrevivência de todos nós. Não se sobrevive sem sonho, sem política, sem delírio e sem arte. E o Ornitorrinco dominou a capacidade de envolver no mesmo instante a manifestação disso tudo em forma de beleza e provocação. Fica sempre a vontade e necessidade de rever, de voltar, reencontrar, se lambuzar de sem-vergonhice, enquanto o tapa se aproxima das nossas bochechas em forma de farsa e cinismo. Quem sabe... Apenas a necessidade de ouvir Galízia se perde ao tempo. Do resto, um ator comentarista de futebol, interessado em Shakespeare e cronista nas redes sociais, híbrido como um mamífero que bota ovo, tem bico de pato e pelos, convenhamos, tem em sua natureza a capacidade de ser sempre surpreendente. E nada mais precioso ao instante que se descobrir inquietamente surpreendido por alguém. Ruy FiLhO


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