ANTRO POSITIVO ED.02

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colaboradores

Ademir Assunção + Ado AlexAndre CAetAno + AnA C André VAillAnt + AnnA Af sil Augusto morAlez + BoB sous CAssio BrAsil + CAu ViAnnA + ClAuCio André + CynthiA dAnielle CABrAl + dAnilo sAn deBorA zAmArioli + domin edson zAmpronhA + est fAuse hAten + fernAndA d`um rudmer + fred ChAluB + h isABel teixeirA + JAnAinA João CAldAs + JuliAno CAsim rAngel + KiKo Bertholini + le leonArdo moreirA + leopo lourenço mutArelli + lu lulu pAVArin + mArCelo tAs Cruz + mArio Bortolotto + miChel Blois + nAtAlie hAnss dA silVA + rAChel ripAni + re reginAldo nAsCimento + renAt dWeK + VeroniCA fABrini + W WilliAm nAdylAm + WilliAm


olfo núñez CArlA fonseCA llen de mesquitA sA + BoB Wilson + ClArissA Kiste A BonACossA ntos de mirAndA ngos VArelA telA lApponi mBrA + fernAndA hugo possolo A pellegrini miro + KAtiAnA eAndro zAppAlA oldo pACheCo uizA noVAes s + mAriA teresA + mArio ViAnnA s +neurACi rosA einAldo morAes tA AdmirAl + tunA WAnessA rudmer m shAKespeAre

agradecimentos Allex Aguilera Amália Pereira Ana Alice Vercese Ana Lúcia de la Vega André Gardenberg Andressa de Gois Anette Naiman Bel Gomes Brenno de Castro Carla Regina Carolina Kasting Claudia Garcia Dalton Valério Danielle Simas Fernando Eiras Frame Boy François Tanguy Insituto Tomie Ohtake Iuri Frigoletto Karina Betencourt La Fonderie Leonardo Brant Lígia (Valsa n. 6) Lígia Tourinho Luciana Pareja Lucie Jansch MAM Marcelo Olinto Marcia Abos Marcia Chiochetti Possolo Marcy Junqueira María José G. Lobato Martim Pelisson Martine Minette Matthias Pees Museu Reina Sofía Pant Bó Patolino Pinacoteca do Estado de S. Paulo Pool de Comunicação Rafael Campos Rocha Sesc Belenzinho SESC SP SP Arte T4f Teatro Raul Cortez Théâtre du Radeau Verônica Cordeiro Vicente de Mello


editorial

É

com o orgulho de um trabalho bem feito que chegamos a edição número Dois, a terceira, pois somos paradoxais mesmo,

e queremos assim. Insistente em se manter volumosa, a revista alcançou, após seu primeiro semestre de vida, uma quantidade de leitores e países, que ultrapassa ao infinito nosso desejo inicial. Trazendo a Cia. dos Atores como

ruy filho

homenageada, a publicação se aproxima das estruturas do fazer teatral. Amplia as discussões pertinentes para outros olhares e ângulos, buscando dentro do teatro seu acontecimento. Desde aquele que atua escondido nas coxias, até aos problemas próprios de quem se vê excluído de subir ao palco como alguém comum, submetido ao preconceito, e cuja re-

patrícia cividanes

lação com o outro se dá confusa e submissa ao correto sem causa. Dos dilemas imediatistas que tornaram a economia criativa uma palavra de efeito, em belo ensaio de Ana Carla Fonseca Reis, até os vícios estereotipados das bilheterias. Por isso o convite a amigos e personalidades para a saborosa campanha que se inspira, indiretamente, na eterna Cacilda Becker. Alcançamos maiores voos, e trazemos Danilo Santos de Miranda com reflexões sobre arte, educação e gestão, em tantos aspectos e possibilidades, que mereceriam uma encadernação própria, tamanho a relevância de suas palavras. É preciso desconstruir e recriar as estruturas culturais do nosso Brasil. É preciso invadir as veias do fazer teatral e remodelar suas condições e sentidos. Estar e caminhar por dentro. Quebrar a rotina que tornou a cena algo banal. Desrespeitar as certezas. O teatro agradece aos incorretos a potência de suas genialidades.

15 de abril de 2012

SP / BR


por marcelo tas


expediente

editores

é uma publicação trimestral, com acesso virtual e livre, voltada às discussões sobre teatro e política cultural.

Para comentar, sugerir pautas, reclamar, colaborar, participar ou apenas enviar um devaneio:

antropositivo@gmail.com AQUI ANONIMATO NÃO TEM VEZ. QUEM TEM VOZ TEM TAMBéM NOME E é SEMPRE BEM-VINDO

realização

antroexposto.blogspot.com foto da capa: João CAldAs

nos encontre também no face+twitter

Antro positiVo

ww.antropositivo.blogspot.com

Ruy Filho Patrícia Cividanes


sumário

VISITANDO Cemitério de Automóveis

08

TODO OUVIDO Edson Zampronha

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POR AQUI Teatro da Garagem

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POR Aí La Fonderie

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OBS O Valor do Teatro por Hugo Possolo

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OBS MinC por Ruy Filho

30

VISITANDO Estela Lapponi

32

CONTAÇÃO por André Vaillant

40

TEATRO EM PAPEL

42

CIRCUNFERÊNCIAS

44

CRíTICA x2 Valsa no. 6

48

ESTREIA Musical

54

VISITANDO Quarto Physical Theater

58

POLíTICA DA CULTURA por Ana Carla Fonseca

68

FOTO PALCO Bob Sousa

72

CAPA Danilo Santos de Miranda

88

CONTAMINAÇÃO Bob Wilson

100

VERTICAL por Juliano Casimiro

104

VISITANDO Domingos Varela

110

OUTRO TEMPOS por Ruy Filho

118

HOMENAGEM Cia. dos Atores

124

CRíTICA x 2 Filha, mãe, avó e puta

158

FIGURINO IMPOSSíVEL Cassio Brasil

165

CALENDÁRIO SELF-PORTRAIT

175

: ) por Cynthia Bonacossa

180


te fo xto to : s: RU LU Y Iz FIL FI H LI O pe Og RO

08


visitando

Algumas latas de cerveja, um ou outro m贸vel velho, e a pot锚ncia de como usar as palavras

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3


“O artista ou tá louco demais, ou só de quatro” Fernanda D`Umbra


O

encontro começa suave. Como os ocorridos, durante as noites da Praça Roosevelt. normalmente, Mário Bortolotto está entre amigos e copos. agora, dentro do teatro, tudo deveria ser diferente. distribuídos pelo espaço, estão um colchão, sofá e poltronas... o cenário da companhia Cemitério de automóveis está pronto para a apresentação que ocorrerá depois. além de Mário, Wanessa Rudmer, Lourenço Mutarelli, Reinaldo Moraes, Fernanda d’Umbra, ademir assunção, Katiana Rangel e danielle Cabral. acomodamo-nos, ou melhor, nos espalhamos. E a visita, ainda que sem mesa, mas com os devidos e solidários copos e latas, ocorre sem cerimônias. o contrário do que os espetáculos da companhia poderiam sugerir. Estes, sempre apontando as feridas da classe média, são duros, escrachados, por vezes constrangedores. os 30 anos do Cemitério de automóveis consolida a necessidade de falarmos sobre nossas hipocrisias, através de uma gama ampla e significativa de peças, palestras, encontros e dezenas de atividades com grandes nomes do que podemos entender como estrutura crítica marginal ao que restou de uma contracultura pós idealismo. visitá-los, portanto, foi condenar-me ao desmascaramento. E, olhar-se tão próximo ao espelho, arrebenta as marcas disfarçadas pelo tempo. Se algo pode ser específico sobre a linguagem que desenvolvem, é Mário quem mostra o caminho. seu encontro com o teatro fora circunstancial, tanto quanto a falta de vontade de ficar. E é sincero, ao afirmar que nunca pensou em fazer teatro, o que não queria era trabalhar. Contudo, foi nele que viu a possibilidade de unir interesses como música, poesia, literatura, quadrinhos... antes que possa parecer uma frase de efeito, é ele mesmo quem amplia a questão. Conta que acabou no teatro para não crescer, que olhava seu pai e entendia que não queria aquela vida. Usar o teatro para fugir da vida burguesa, no entanto, não o tornou um idealista. não foi para mudar o mundo, conclui. o curioso é que, ao não querer aquilo, fez do

Fernanda D`Umbra sob o olhar fotográfico de Luiz Filipe Ogro. À esquerda, Mario Bortolotto aconchegado no colo de Lulu pavarin. 1

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universo negado seu principal material de trabalho. seus mais de 50 textos são tentativas de representar uma geração perdida entre a ausência de crédulos e críticas anárquicas. Por isso, ainda em Londrina, onde iniciou, afastou-se dos companheiros. não havia nele qualquer interesse pelos textos clássicos, moda na época. optou sair e escrever e trabalhar apenas com aquilo que estava afim. a atriz e diretora Fernanda d’Umbra rebate as tentativas comuns de intencionar a companhia. nunca fomos contra nada, diz, expondo ser, na verdade, o cotidiano o material de criação, e nada mais. E vê, nessa tentativa mercadológica de classificação do grupo, certa necessidade de gerar alguma identificação com a plateia, que tomou conta das produções recentes. Para ela, ninguém mais faz o que quer, as pessoas estão perdendo esse poder, num misto de ignorância e medo. d’Umbra reclama, ainda, a falta de artistas obsessivos, principalmente atores. E confirma que sim, a “maluquice” no Cemitério de automóveis tem a ver com a obsessão pelas coisas. Já o que encontra fora, são diretores que não frequentam espetáculos, não consomem os atores, somado a uma falta de rigor que, no caso da companhia, mantém-se pelo apreço e respeito às artes trazidas para comporem os trabalhos. “o teatro não é o lugar para se fazer o que der, mas fazer a qualquer custo”. Para o escritor Reinaldo Moraes, as pessoas, hoje, preferem ir ao dentista fazer tratamento de canal,

do que ir ao teatro, pois isso seria mais divertido. Perdeu-se a relação entre público e palco, de modo tão veemente que, entre as artes da representação, ter a pessoa ao vivo tornou-se novidade, afirma. Por outro lado, é saboroso estar entre tantos amigos, mesmo reconhecendo o esvaziamento das salas de teatro. Estarem juntos justifica a repetição e o próximo trabalho e o seguinte... Posição defendida também por Lorenço Mutarelli, o mais calado de todos, porém os olhos mais observadores ali, ao confirmar ser essa a maior qualidade de Mário, sua capacidade em agregar pessoas, em unir amigos em torno de um ritual divertido, para apresentar discursos indigestos. Mário simplifica: “meus amigos não merecem se foder”. aos desavisados, e esses são sempre os mais interessantes, a apresentação da companhia e Mário Bortolotto pode chocar pelo seu despojamento cênico, sua aparente despretensão. Mas não se engane. a simplicidade implica em alcançar um alto grau de compreensão do discurso, da linguagem e de como as referências artísticas podem se cruzar no palco. Há muito mais numa mesa de bar, nos copos cheios e vazios. Há muito a ser desvendado e reconhecido na permanência de uma cínica cena despropositada. nos últimos 30 anos, o público aprendeu a entender Mário. Falta, agora, recolher seus apontamentos e aprender mais sobre si mesmo. o dramaturgo, poeta, músico continuará. insiste ao outro. Já o público, parece preferir julgar, do que acender a luz de sua própria sala e descobrir-se real. Um brinde aos 30, e mais uma cerveja, pode ser?

Fotos: LUiz FiLiPE ogRo, FERnanda RUdMER E divULgação

Lorenço Mutarelli e a atriz Carolina Mânica.


Registro dos bastidores e cenas da Cia. Cemitérios de Automóveis e da visita da revista Antro positivo no Teatro estação Caneca. Na foto maior, abaixo, Mario Bortolotto e paulo Cesar pereio em “Medusas de Rayban”

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todo ouvido

Edson Residente no Centro de Arte Reina Sofía, o compositor brasileiro resignifica a música contemporânea foto: María José G. Lobato

“A

música de Edson ZaMpronha captura minha atenção, desde o início, pela riqueza e interesse de seus timbres, e porque sua música é uma espécie de massagem para os neurônios, sempre ocupados em descobrir as constantes surpresas que vão aparecendo e que tecem uma estrutura cada vez mais rica em nossa memória. no entanto, o que realmente me fascina, é que seu talento é fruto de anos de investigação em semiótica e no modo como o ser humano encontra referências e sentido, quando percebe sons que se sucedem no tempo.”

Para conhecer uma das composições de Zampronha, clique no botão abaixo ou entre em www.zampronha.com

Adolfo NúñeZ compositor, coordenador do laboratório de Informática e eletrônica Musical, Museu CeNtro de Arte reINA sofíA (Madri, espanha) e profesor da universidade Autônoma de Madri. www.adolfonunez.com


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1


por AquI onde TeATRO dA gARAgem SãO pAULO

A INTIMIDADE

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te fo xto to : s: RU BO Y B FIL SO H US O A

de UM “casa teatro casa”


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3


N

ão é simplesmente um projeto. Abrir um novo espaço para a cidade, ter seu próprio lugar para trabalhar com sua companhia de teatro. Vai além disso. Toma a proporção de um desejo maior, que envolve a vida e as escolhas. O casarão do Teatro da Garagem era, antes de ser teatro, a própria moradia de Anette Naiman. Com o tempo, a escolha em transformar a garagem em sala de espetáculo, dividindo seu amplo pé direito em dois pisos, foi tomando novos sentidos e, hoje, a casa toda se prepara para ser o teatro em si. O lugar aconchegante, ainda com a receptividade de casarão antigo, próximo as avenidas Pompéia e Cerro Corá, a poucos metros do bar Cacilda, vê com bons olhos a proximidade com outros artistas, que não apenas aos da própria trupe. Mas é preciso estar permeando os princípios de suas pesquisas, para que o espaço possa, enfim, tornar-se mais do que apenas um lugar de apresentações. E Anette trabalha com esse intuito. Com a perspectiva de abrir também para exposições e o que mais surgir de interessante e complementar aos seus estudos. O Teatro da Garagem tem tudo para ser um dia a residência de tantos outros teatros. Um espaço destinado ao íntimo, tão em falta e necessário em São Paulo.

teatro da garageM >> rua silveira rodrigues, 331 Lapa / Barra Funda

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tel.: (011) 9122-8696


A sala pequena para espetĂĄculos intimistas antecipa o funcionamento da casa, enquanto esta ĂŠ preparada para se tornar todo o teatro.


por aí

20

te xt o:

RU Y

FI LH O

onde La FOndeRIe FRança


um teatro no meio da franรงa

1

2


a

França, berço da encenação moderna, durante décadas estruturou a relação com a Cultura, de modo a desenvolver no indivíduo maior apreço pelas artes, tanto clássicas quanto modernas. O teatro contemporâneo francês, mais próximo aos estudos investigativos da linguagem cênica, sobretudo ao encontro desta com a semiótica e filosofia, apresentou ao mundo uma série de pensadores e artistas fundamentais. Outra ação importante foi a descentralização das produções e artistas da capital, e a possibilidade de ocupação em distritos próximos. Situada a 184 km de Paris, na cidade de Le Mans, La Fonderie abriga a companhia Théâtre du Radeau, fundada em 1977, cuja direção de François Tanguy, desde 1982, tem apresentado verdadeiras potências estéticas de experimentações cênicas. O espaço, um imenso galpão e salas específicas para música e ensaio, criado em 1992, numa antiga fundição e, mais recentemente, sucursal da Renault, abre as portas também para artistas residentes locais e estrangeiros, nas linguagens cências, musicais, da escrita e das artes visuais. La Fonderie se define como sendo um lugar próprio para a criação, o trabalho, encontro, misturas e experiências.

Possibilitar o encontro com a diversidade e a criação como fonte de investigação artística

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detalhes dos diversos espaços que compõe o complexo. À direita, sala de música.



S

ão Paulo é conhecido como uma metrópole em constante crescimento. E não haveria de ser diferente no aspecto cultural. As produções multiplicam ano após ano, e, se faltam espaços para abrigar tantas temporadas, a situação é exponencialmente mais complicada nos momentos preparatórios, ensaios, reuniões e estudos, visto que nem todos os processos chegam a se concretizar. A criação de espaços destinados a pré-temporada, portanto, é fundamental. O Espaço 10x21, próximo as avenidas Pompéia, Sumaré e Francisco Matarazzo, região em desenvolvimento, com ampla gama de serviços disponíveis. Surge como possibilidade para abrigar as companhias. Idealizado pela pianista e bailari-

na clássica Adriana Ventura, doutora em administração de empresas pela FGV, onde também leciona, o espaço conta com 3 salas – 10x21, 10x8 e 6x5 – equipadas com ar-condicionado e ventilador, espelho com cortina, som e piso de tábua corrida apropriado para dança. As duas maiores se diferenciam por possuírem barras e pianos. Abrigando, também, um agradável café e cozinha acoplados ao lounge, o espaço é capaz de esPaço 10a xrealização 21 servir perfeitamente de >> rua Cotoxó, 321 - Pompéia. (11) 2339-1021 www.10x21.com.br

À esqueda, foto maior, refeitório; menor, sala de apresentação. À direitra, maior, espaço de apresentação teatral; e menor, uso para concerto.


La fonderie

nas fotos maiores,

fonderie >> 2, rue de la as trĂŞs salas

ensaios tel. 02para 43 24 93 60e, a esquerda, detalhes Le mans, frança da parte social. http://www.lafonderie.fr/

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obs

o

por hugo possolo

26

do


P

asso quase todos os dias em frente a um cartaz onde se lê: “Teatro não é mercadoria!”. Parece tão óbvio dizer que teatro não é mercadoria, que fico imaginando o que realmente queriam dizer aqueles que adotaram esse “slogan”, acreditando que estão defendendo a arte. Explico. O fato é que, toda vez que topo com uma frase que subestima a minha inteligência, sinto um incômodo, uma antipatia, já que o resultado pretendido pela frase possibilita e me induz a pensar o seu oposto. Além de discutir o aspecto da frase em si, falta ao teatro refletir as suas formas de difusão e, principalmente, a maneira como se coloca diante da população que, em sua maioria, tem enorme dificuldade em enxergar o seu valor. Primeiro: quem inventou que teatro é caro?... A herança de um entendimento elitizado sobre uma arte ao alcance de poucos gerou um estereótipo que permanece no imaginário e que afasta o público. Na contramão disso, por muito tempo, os próprios fazedores, artistas e produtores, geraram também, sobre si mesmos, uma imagem de batalhadores pela sobrevivência da arte que, para se efetivarem como mártires de uma causa e, sem se dar conta, pressupõem de antemão que o teatro em si está com os dias contados. Ou seja, para mostrarem seu gesto heroico, venderam ao público, sem perceber, a ideia de que não vale a pena ir ao teatro, já que ele estaria moribundo. Basta lembrar que, nos anos 80, a campanha “Vá ao teatro!” tinha tom imperativo, pouco sedutor, que não dava motivos pelos quais se deveria ir ao teatro. Soava com uma ordem... Nada é menos teatral que uma ordem. Não à toa, o humor corrosivo do Casseta & Planeta vingou, naquela época, uma frase que vendeu milhares de camisetas: “Vá ao Teatro... Mas não me convide!” Estava lá uma frase muito mais teatral e sedutora! Segundo – lembra que falei primeiro, lá em cima?... Então, os valores morais e hábitos culturais levam a discussão a um nível insuportável de achismos que tornam a conversa sobre a importância do teatro um saco. Vira um papo de boteco, descompromissado e sem argumentos sólidos.

Também é difícil falar de valores econômicos em um país cujo salário mínimo é de R$ 622,00. Mas é preciso usar referências do dia-a-dia, antes de falar que teatro é caro. Em São Paulo, uma passagem de ônibus é R$ 3,00. Uma cerveja varia entre R$ 3,00 e R$ 7,00. Tem gente que toma três cervejas e desembolsa em torno de R$ 20, mas não daria R$ 1,00 para ir ao teatro. É culpa dela? É culpa do teatro? A primeira resposta que se ouve, quando se quer saber por que o público não vai ao teatro, é o preço. Opa!... Então, porque o futebol é considerado uma diversão popular? Um estádio de futebol lota com ingressos que vão de R$ 30,00 a R$ 150,00? O futebol não é mais a festa do povão? Será que é só a elite que frequenta os estádios? Um ingresso para cinema gira em torno de R$ 7,00, a meia, até R$ 40,00, os mais caros. Para ver o show do Chico Buarque paga-se, nos melhores lugares, até R$ 300,00. Estes valores devem dizer alguma coisa? Não se trata de saber o que é mais caro, se o cinema ou o show, teatro ou futebol, mas qual o valor que a cultura tem no pensamento de uma sociedade e, por consequência, do poder público. No fundo, o poder público se submete muito mais aos interesses econômicos de uma atividade do que ao seu significado para a população. Apenas para ter algum parâmetro, peguei o Guia da Folha (da semana de 16 a 22 de março de 2012), que não inclui tudo que está acontecendo na cidade, e levantei os preços dos ingressos de teatro. Não contei as peças voltadas ao público infantil, em geral com ingressos mais baratos, o que possibilita outra discussão, afinal seus custos de produção são iguais ao chamado teatro adulto. Nesta semana, quem quisesse ver teatro gratuitamente teria 7 opções. Entre opções muito baratas, cerca de 6 peças, que estão em cartaz nos teatros mantidos por instituições (Sesc, Sesi e CCBB) ou nos teatros da prefeitura, encontravam-se preços que vão de R$ 3,50 a R$ 6,00. As peças mais caras, entre R$ 70,00 e R$ 120,00, representavam 4% do que está em cartaz. A grande maioria, dentro de um universo de 89 peças no total, cerca de


Cabe aos artistas recuperar o valor da arte

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68 peças, tinha preços de R$ 30,00 a R$ 60,00. Isto sem contar o valor da meia-entrada que irá girar em torno de R$ 15,00 a R$ 30,00. Ou seja, a maioria das peças tem um valor médio muito mais barato que de shows musicais; equivalente ao que é mais barato no futebol, as arquibancadas; e somente um pouco mais caro que cinema. Muitas vezes, paga-se mais caro pelo estacionamento que pelo valor da peça. E o teatro brasileiro vai carregando a fama de ser uma diversão cara? Está óbvio que o teatro não sabe se colocar para o público como uma opção acessível de diversão. Em terceiro... Veja que há uma ordem em minha argumentação!... Pois é, em terceiro, tem o fato de que a produção teatral não é feita em escala industrial, como o cinema, mas tem que competir com esta opção de diversão, com custos de difusão que disputam o mesmo mercado. Por exemplo, o mesmo anúncio pago a um jornal para divulgar um filme que estará em várias salas, com possibilidade de vender um número maior de ingressos, tem o mesmíssimo valor de um anúncio de uma peça de teatro que está limitada a uma lotação que pode variar de 60 a 700 lugares. Por vezes, a soma da venda de ingressos de uma sala lotada pode não cobrir o valor pago pelo anúncio. É a crueldade do mercado, que o Estado se abstém de sequer lançar um olhar, quanto mais de atuar de alguma forma que seja. O poder público coloca, pelo acento ou submissão aos ditames do poder econômico, todas as atividades no mesmo plano. Um jornal, por ser uma atividade privada e de mercado, tem todo o direito de cobrar o preço que quiser por um anúncio, como o exemplo acima. São leis de mercado. No entanto, o poder público deveria voltar-se a atender o interesse público e não o de mercado. Mas não é o que acontece. Não valorizar o teatro, ou qualquer outra arte, é esconder que Cultura deve ser prioridade de Estado, para, no fundo, tentar manter tudo com está e não admitir nenhuma possibilidade de transformação social.

Para o mercado, a produção em escala industrial sempre irá oferecer preços mais acessíveis que a produção artesanal. É preciso que o Estado esteja presente para regular este jogo. O futebol, por exemplo, vive de recursos da publicidade, direta e indireta, da venda dos direitos de transmissão pela televisão, além dos estádios que comportam públicos entre de 5 a 40 mil pessoas. É diversão de massas. E o teatro? É uma expressão artesanal. Não tem uma relação de massificação. Ir ao teatro não é o consumo como, por vezes, podemos aceitar, mas é outra experiência humana de convivência socia, que não nasceu com os modelos da sociedade industrial. O teatro é espaço de convívio e diálogo. Massa não dialoga; público dialoga. E do diálogo nascem possibilidades de entendimento do mundo, da sociedade e, portanto, têm uma enorme força política. O embate do teatro para ter seu próprio valor reconhecido, no fundo, depende de uma atuação política. Como os modelos de atuação neste campo estão desgastados, viciados e envelhecidos, abre-se espaço para uma total alienação dos que atuam na cena teatral ou, então, geraram um discurso arcaico, chato e desinteressante. Por fim, como quarta colocação – e talvez a mais cruel – é preciso compreender que “mais caro” está diretamente ligado a buscar saber o que interessa mais ao público. É preciso saber se o teatro se faz interessante. Sem entrar na discussão estética, pois só vai interessar ao público aquilo que lhe fizer sentido social, histórico, antropológico etc. Basta analisarmos a maneira como o teatro se coloca publicamente. A publicidade de teatro é uma das mais primárias que se faz. São chamadas gritadas, em imagem nos jornais ou em locuções no rádio, quase desesperadas ao público, tão apelativas quanto um grande saldão de almas que serão salvas pela redenção do teatro ou como a última oportunida-


de de ver de perto algum semideus ou as bestas do apocalipse fazendo suas melhores besteiras. Tem peças cujos cartazes de divulgação trazem fotos assustadoras, um verdadeiro espanta-público. Que noção estética tem um artista ou produtor que não sabe ou não quer seduzir o seu público? Isso não é somente uma questão de mercado ligada à publicidade, mas de sensibilidade de artistas que, aliás, deveriam ter isso como premissa, e não como uma falsa obrigação de sobrevivência. Muita gente ainda confunde a sobrevivência do teatro, pela venda de ingressos, com a ideia de que seu resultado seja um produto. Um sanduíche pode ser um produto. Se for feito em escala, será um produto industrial. A comida caseira já não é um produto, pois é parte da alimentação diária de uma família. Uma mãe não faz comida para um filho no intuito de ganhar dinheiro com aquela comida. Artes cênicas não são produzidas em série. São uma espécie de comida caseira da alma de um povo. Poderia ser diária e ordinária. Enfim, comum. Para dar valor ao teatro não é preciso transformá-lo numa joia rara e, sim, seria melhor que fosse tão importante quanto um copo d´água. Compreender o seu próprio valor não é tão simples assim. Os fenômenos estéticos são resultados de um processo de expressão que transmitem emoções, sensações e ideias entre pessoas. Considerando que são processos que abrem diálogos – nem sempre racionais –, não se fixam no tempo, podendo a cada época estabelecer novas dimensões de compreensão, assimilação ou percepção. Se esses processos da manifestação estética deixam em aberto o potencial diálogo, não se fecham em um ciclo de tempo determinado e, portanto, não podem ser considerados como um produto. Fruto de uma época – e contextualizada no tempo –, a manifestação estética pode sofrer análises muito mais em função de seu processo que de seu

resultado, ainda e sempre em curso, uma vez que dialogará com outros contextos históricos. Ou seja, se é processual, não é um resultado e, portanto, não é um produto. Para dimensionar esta relevância do teatro, é fundamental beber a água da História. Muito mais significativo que conservar caixinhas de pérolas que não farão sentido para as gerações que virão. Com o advento da cultura de massas e da produção em série de certas manifestações estéticas é comum abreviar a compreensão da função social deste diálogo na expressão “produto cultural”. De fato, algo produzido em série, como um DVD, pode ser chamado de produto, mas não significa que seu conteúdo encerre um ciclo de tempo. A industrialização permitiu a difusão do conteúdo artístico em série, mas o diálogo estético ainda é processual e, por conseguinte, não se restringe em conteúdo e nem fecha por completo o diálogo que foi aberto. Continua processual e ainda interfere na realidade. A indústria pode tentar manipular ou direcionar o conteúdo da manifestação estética para influenciar em massa – uma vez que é feita em série –, mas as manifestações sempre trazem o componente do diálogo, o que pressupõe que os dois lados da interlocução pensam, sentem e refletem sobre o que está em jogo entre eles. Ou seja, pode se tentar manipular o discurso da manifestação estética, mas é impossível dominar o pensamento de seu interlocutor. A falta de visão crítica não significa uma dominação completa ou constante de emoções, reflexões e pensamentos do público. Os totalitarismos continuarão buscando a dominação do pensamento alheio em vão. Cabe ao teatro mostrar seu significado, ao invés de ficar se martirizando em propagandas que só o afastam de seu sentido maior. hugo possolo, palhaço, dramaturgo e diretor dos Parlapatões e Circo Roda.


obs

MinC por ruy filho

É

importante esclarecer. Esta reflexão não deve ser confundida como algum tipo de campanha. O vício de ser qualquer reflexão uma ação de ataque, enfraquece as tentativas de olharmos as coisas por dentre as linhas oficiais. E, como não estamos tão acostumados a ler os fatos, permanece a sensação de que tudo tem intuitos políticos. Bobagem. Dito isso, trago a reflexão em si. O pouco interesse de nossa presidente pela Cultura. E afirmo isso baseado na mera observação da diferença do tratamento dado aos Ministérios, quando comparados entre si. Sabemos que no MinC tudo se inicia na escolha de Ana de Hollanda, sob o desejo de Dilma ter como representante uma mulher. Por que? Simples, o fóco foi embasado pela afirmação válida do feminismo, mais do que pela soma resultante entre competências e críticas. Há, ainda, o desinteresse dos grandes partidos pela cadeira. Enquanto os outros Ministérios são disputados aos tapas, por possuírem orçamentos volumosos, a Cultura sobrevive por migalhas, com a característica de ser, independentemente de sua qualidade gestora, atacada incessantemente por personalidades e mídias, impondo o desagradável convívio, a quem a representa, com o eterno descontentamento público e institucional. Não é diferente com Ana de Hollanda. Seja pela utilização abusiva de uma passagem aérea paga com recursos públicos, seja na escolha do romance do seu irmão Chico para publicação no exterior. Ou mesmo assuntos mais sérios. E muitos outros, ainda, assun-

tos bem mais idiotas. Enfim, Ana sofre pela lente de aumento de uma classe artística extremamente interessada em lucrar com sua queda e de outra descontente por ideologias e razões plausíveis. Contudo, insisto que essa reflexão não é sobre Ana, mas Dilma. Se observarmos a rapidez e intransigência com que a presidente age, frente aos outros ministérios, veremos o quando a Cultura não lhe interessa. Peguemos o exemplo de Palocci, um dos nomes mais fortes do partido. Quanto tempo levou para que fosse fritado, ao ser exposta outra meia dúzia de suas artimanhas? E Orlando Silva? No caso do Ministério do Esporte, nem foi preciso se provar nada, grandes fatos concretos que exigissem a rapidez da eliminação e substituição de Orlando por Aldo Rebelo, atual Ministro, mais afeito ao cinismo do que ao trabalho, mais politiqueiro do que responsável, como deixou claro, recentemente, ao afirmar que para tudo teremos um jeitinho, quando indagado sobre os atrasos e desperdícios na organização da Copa do Mundo. E, para quem não esteve presente no encontro com Aldo, realizado pela FAAP, em São Paulo, resumo: não se enganem com as fraudes. Aldo é desses políticos que servem às maquinas escusas das indústrias partidárias. Está ali, como estaria no Congresso ou qualquer outro lugar que lhe trouxesse influência política, e nada lhe interessa, a não ser os holofotes e poder. Mas, e a Cultura com isso? Volto ao assunto, então. Quantas foram as capas de jornais sobre possíveis irregularidades com a Ministra? Quantas as matérias


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só leva bronca quem existe em telejornais? Manifestos, cartas, abaixo-assinados? Manifestações públicas de desagrado? Alguém pode me explicar por que, novamente, parte dos editais da Funarte não se efetivaram no prazo determinado? No inicio da atual gestão, o argumento dava-se pela ausência dos recursos destinados, evaporados no final da gestão Juca Ferreira. E hoje? Será que Juca continua abrindo os cofres públicos? Ninguém se lembrou de trocar as fechaduras? A Ministra Ana de Hollanda não comenta, não fala, não se defende, tampouco parece preocupada com críticas e elogios. Nem sobre o Ecad e a manipulação dos documentos, numa tentativa esdrúxula para lhe criar um caso desfavorável, nem sobre o atraso dos recursos dos pontos de culturas, sediados em municípios não petistas. Quem pôde ir ao encontro regional em Ribeirão Preto, ouviu a representante do MinC pedir suas desculpas pelos meses de atraso. Só que não mudou muito, de lá pra cá. Enquanto isso, Ana prefere a segurança do silêncio. Ou a fuga de respostas inexistentes. Não dá para saber. Certo mesmo é o mal estar pela boca fechada, pelas explicações não dadas, pela gerência de uma pasta que, junto a Educação, deveria ser a mais importante na reconstrução do país, mas que, na verdade, permanece com orçamento acima apenas ao da Pesca. Sim, a Cultura, no Brasil, só e mais importante que os peixes e moluscos. Insisto, esse texto não é sobre Ana! A questão perdida nas entrelinhas é que, fatos ou não, verdades ou manipulações, a gestão de Ana de Hollanda nunca

levou o MinC tantas vezes aos noticiários, e sempre por questionamentos e acusações. Fosse a Dilma interessada em Cultura, e já conhecendo a maneira de tratar seus subordinados, quando cometem erros ou se enroscam em trapaças, é de se perguntar por que Ana ainda não foi chamada a dar notícias. A resposta imediata de Dilma a Orlando Silva servia para que o Ministério dos Esportes não sofresse em demasia, em época de Copa e Olimpíada, antes mesmo de serem os fatos confirmados. A Cultura, por sua vez, continua sem necessitar se explicar, sem proporção no governo e nos interesses da presidente. Ao contrário. Um abraço público, um carinho em frente as jornalistas, feito pela chefe na Ministra, serve, apenas, para dizer aos inconformados: “e daí?”. Já tivemos um presidente afirmando que ler era tão chato quanto correr numa esteira, agora temos sua sucessora, que segue a linha de ser a cultura sempre uma questão irrelevante. Verbas que não chegam aos destinos, editais que são atrasados e invalidados sem explicações, uma Ministra que acha que não precisa dar satisfações ao povo, e um presidente que acha isso tudo tedioso. Se continuarmos assim, descobriremos que, para Dilma, a função do Ministério da Cultura deverá se limitar a algo como preparar o show de Michel Teló para abertura dos jogos no Maracanã. Ainda bem que podemos contar com a disponibilidade e competência de nossos grandes artistas internacionais. O MinC ainda pode aprender muito com eles. Vai ver, é só pra isso mesmo.


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Lapponi em site specific coordenado por Geraldine Pilgrim na Tabacalera em Madrid (2010). À esquerda, detalhe da performance “Operato”, de Verônica Cordeiro, na Galeria Virgílio, em São Paulo.


Lapponi na performance “Operato”. À direita, com João Otávio, em “Cadeira - falando sem Tabu!”, performancepalestra+multimídia.

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omo tratar as diferenças? E o que venha a ser de fato o diferente? vivemos um surto complicado e perigoso de correções exageradas, e as relações modernas, igualmente, confrontam-se a essa condição. Como tratar o outro, quando este possui características diversas, sejam elas quais forem? Como não se ver tão preconceituoso quanto aqueles que fazem questão de determinar as diferenças, ao propagar a igualdade absoluta? na arte e nos palcos, o que deveria ser uma discussão conceitual, também se submete aos mesmos limites do tratamento supostamente correto que as diferenças, ou, para ser mais justo, as características exigem. Por isso visitamos a dançarina e atriz Estela Lapponi. Estudiosa do assunto e engajada na contramão dos discursos vigentes, teve seu corpo modificado, após sofrer, ainda muito jovem, um avC. de lá

pra cá, o que poderia ser o fim de um projeto de vida e sonho, ganhou valores ampliados e sustentou a estrutura de um pensamento inquieto, provocativo e divergente do politicamente correto dominante, tendo sua própria condição como expiação da realidade. Poucas vezes encontramos alguém esclarecido o suficiente para se contrapor a unanimidade. Essa visita serve, sobretudo, ao descobrimento de nossos próprios preconceitos e limitações à nossa dificuldade em aceitar as diferenças como diferenças. Espalha-se pelo senso comum da arte o preceito de que o artista deficiente deva ser tratado com certos cuidados. Pelo fato de possuir dificuldades ou limitações especificas, esquece-se, muito estrategicamente, que todos possuímos limitações, em tantos graus distintos, que chega a ser um absurdo pensar por esse ângulo. Es-

tela começa pelo inicio, pelo tabu empregado ao termo “deficiente”, o quanto a própria palavra traz ao cognitivo sua relação de inferioridade com o outro. Ser deficiente só pode ser algo menor, menos completo, frente ao que se entende por normal. Contudo, o que vem a ser de fato a normalidade? Quem a define? Quem a representa? É menos deficiente aquele que sobrevive, psicologicamente, através de medicamentos? É menos deficiente o desprovido de senso ético? não seria esse, por sua incapacidade em contextualizar o outro como algo real, também fora do correto? E será menos deficiente aquele que desconhece suas possibilidades, entregue ao domínio de sistemas de toda ordem sócio-econômica-política-cultural? Discutir a deficiência deve passar pela condição do que venha a ser essa normalidade deter-


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minada em parâmetros culturais e políticos. Sim, toda definição de normal passará, inevitavelmente, por esses dois aspectos. no sentido cultural, a normalidade se funde a tantas ramificações, quanto as possibilidades da própria cultura, e, portanto, impossível de definir o que de fato venha a ser. no âmbito político, normal é todo aquele inserido nos mecanismos sociais, criados para determinar à ordem seu

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A diferença vale mais para o mercado do que a aceitação do outro

perfeito estado de existir, em prol de sua manutenção. Estela e tantos outros artistas por aí não são diferentes, nem cultural, nem politicamente de qualquer outro. Possuem suas condições de existirem, tanto quanto eu e você, diferentes que somos, como pessoas e não como necessidades. Esse é o aspecto fundamental. negar a deficiência do outro, como possibilidade de normalidade, é destituir-lhe a condição de, antes, ser igualmente humano. E pessoas


Site Specific coordenado por Geraldine Pilgrim na Tabacalera em Madrid (2010).

podem falar ou serem mudas, por exemplo. Pois é do humano essa característica do som articulado. ninguém deixa de ser humano por não poder falar. o capitalismo possui o dom de trazer ganho ao que for, e se determinou um mercado eficiente para a inclusão dos artistas deficientes, no instante em que a terminologia da dança inclusiva foi criada por Enrique amoedo. Compreendendo ser necessário separar e contextualizar os artistas com qualquer deficiência física evidente, deter-

mina-se a esses um valor diferencial, um acordo de aceitação de seus presumidos limites, anterior mesmo a potência e relevância de seus discursos artísticos. Como se, por serem deficientes, devessem ser, imediatamente, aceitos como artistas. desde que colocados em seus devidos lugares é claro. do contrário, estaremos agindo de forma ultrajante, por julgar alguém desprovido da mesma sorte que os perfeitos. Esse mercado de editais, prêmios e patrocínios assistencialistas, de contraposição entre deficientes e os demais, salienta o valor negativo da inclusão, que normativa e disfarça a diferença como

realidade de normalidade plural. Como bem coloca a entrevistada, somos sempre diferentes, somos combinações genéticas completamente diferentes umas das outras. Estela projeta suas pesquisas a partir da percepção do que venha a ser esse outro corpo, baseando seus argumentos no Eu Corpo, e não mais na simplificação comum do Meu Corpo. Suas reflexões teóricas e estéticas a levaram a entender que a relação do diferente se determina na observação do seu contexto, e que a inclusão, por fim, é mais a consolidação de uma exclusão disfarçada. Para dar caminho às suas pesquisas, denominou esse outro corpo por Corpo


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intruso, onde toda diferença é uma espécie de intervenção a normalidade determinada pela cultura e política. desde o negro em um reduto de brancos, até a existência de um aleijado frente a uma escadaria. Há sabor no confrontar a estética dominante e as estruturas vigentes pelo corpo. Há sabedoria em se colocar como ponto de fricção com a ordem. E ela demonstra os dois aspectos na maneira como se apropria, não apenas do seu corpo, mas da ignorância determinada pelo tratamento diferenciado a todo custo, como princípio politicamente correto de aceitação do outro. ampliando, ainda, seus argumentos pelo conceito de corpomídia, desenvolvido por Helena Katz e Christine Greiner, a partir da ideia de que toda presença acusa uma interferência. Seja ela qual for. não limitada ao diferente e ao deficiente. Como situar o teatro nisso tudo, então? Estela problematiza afirmando estar a deficiência no personagem, nunca no ator. Que a deficiência, no teatro, não é permitida. A cena, quase sempre, é construída a partir de modelos da sociedade. se esta observa o outro como diferente e implica sua existência a contextos específicos, o teatro, por conseguinte, faz o mesmo com a presença do ator. É sempre a primeira escolha um ator “normal” para construir um coxo Ricardo iii, enquanto se busca dar-lhe a caricatura de uma deficiência, do que trazer a deficiência como instrumento normal de uma estética especifica, por exemplo. ou, ampliando os preconceitos sobre as diferenças, vestir-se de tra-

vesti, ao invés de te-lo como intérprete de seu próprio papel. Há mais no corpo deficiente e em qualquer diferença, que suas óbvias condições. Deficientes possuem capacidades motoras e estruturas de movimentos, por exemplo, incomuns (para nos atermos ao estereótipo do vocabulário), com ofertas de construções simbólicas próprias, incapazes de serem trazidas pelos ditos normais. nesse sentido, ambos são limitados por seus corpos e ilimitados como estruturas narrativas. E entender a pertinência de um e outro traduz a perspectiva de ser, absolutamente, desnecessária a inclusão de alguém. Afinal, não se convida para atuar em um musical quem não sabe cantar, e isso não torna os desafinados menores ou piores, apenas tecnicamente despreparados para o papel. o aspecto inclusivo, portanto, torna o artista limitado a círculos de um mercado programado para lucrar com essas diferenças. Mas, quem perde mesmo é a arte, em capacidade de ampliação de signos, em estruturas de linguagens, em valores de observação sobre a realidade, para além do politicamente correto e do próprio preconceito. Há de se preparar os teatros e salas de espetáculos para todos os corpos. Há que nos prepararmos para reconhecermos o outro como apenas mais um. o resto é talento, curiosidade e estudo. E isso, grande parte dos artistas nomeados por normais não possuem nem como sopro. Afinal, alguém se arrisca a apostar, quem, nos espetáculos de Win vanderkeybus, é o dançarino cego?

fotos: vitoR viEiRa, PatRiCia CEntuRion, tHais tavERna E PatRíCia CividanEs

Toda inclusão excessiva intensifica a exclusão velada


O solo de dança/ teatro multimídia “in-Ciomodo-ser-eusó-tanta-gente”.


contação

Em cena por André vAillAnt ilustração nAtAlie HAnss


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aiu do teatro apressada, esbarrando nas pessoas nas calçadas, até o ponto de táxi no quarteirão seguinte. Ainda estava naquele instante inicial, em que tudo parece confuso e o chão ameaça se dissipar. Tudo na mente explode em todas as direções. Apertando o telefone móvel nas mãos, andava intranquila – o ar da manhã rarefeito e seco naquela estação –, ainda em roupas de ginástica: perderia um dia de ensaio ou, talvez, toda a peça, mas nada daquilo lhe ocorria – apenas precisava cruzar a cidade em tempo recorde. O milagre diário de se viver em uma metrópole: navegá-la. Eventualmente, alguém poderia ter tanto a perder, ainda que a voz macia houvesse garantido que já se estava fora de perigo, que a distância arrastada do tráfego se tornava ainda mais massacrante. A clínica chamava-se Santo André, do outro lado do complicado mapa urbano, emaranhado de paixões, em meio a nós de concreto; era um hospital psiquiátrico, daqueles de longas alas brancas, para pacientes de toda espécie. Em que ala ficariam as atrizes? Ela perdera o papelote onde tomara notas apressadas, oculta no balcão atrás do palco – o que diria aos demais? Era preciso relembrar, uma a uma, as palavras macias da Voz, aquela interlocutora impassível que anunciava lentamente, feito a maré antes da borrasca: “encontrada no banheiro, coberta de sangue; tentativa de suicídio; está consciente, manda lembranças; só tem à senhora; ala dos depressivos”. — Para onde, madame? — perguntou o taxista. — Ala dos depressivos. Ele levantou a sobrancelha esquerda. Foi preciso tempo e paciência; pegaram a avenida. Aos poucos, ela organizava e expunha pequenas idéias em frases mais ou menos conexas, enunciando lentamente o endereço da clínica como se lembrava. Nem quando a casa estivera mais lotada, no espetáculo mais popular da companhia, ela tivera uma afasia. Mas, por que montar, agora, um personagem, se tudo seria desarmado quando... Ela foi introduzida pela enfermeira alta e magra, de nariz adunco e voz macia, no quarto es-

treito e muito simples, porém, impecavelmente organizado por alguma outra mente positiva por trás de todas as coisas ali. Deparou-se – contra a luz que entrava pela imensa janela de basculantes pequenos e estreitos – com um corpo pálido, no leito de lençóis alvíssimos. Tudo era palidez a ser preenchida. — Ana... — ela esboçava o chamado rouco com a voz morrendo-lhe na garganta. Quis lhe tomar as mãos entre as suas, mas teve medo dos agora fragilíssimos pulsos costurados. Imaginou por um segundo, sem querer, as mãos separando-se dos braços, por entre uma costura escura e fina, simplesmente rasgando-se e dividindo-se pelas mutilações metálicas auto-infligidas. Tocou-a, então, na face, segurou seu rosto entre as suas mãos e se aproximou. Beijaram-se, e Ana estava fria. Não fria como os mortos, um frio de cera irreversível, mas fria, como quem esvaiu-se ralo abaixo, pelo ralo de um banheiro sujo. Não havia por onde começar um diálogo. Nada fora repentino, mas tudo fora sempre surpreendente. “Por que vivemos assim?”, ela se pegava perguntando. “Nossos corpos – e ela pensava em todas as vezes que se despira, antes de encarnar um personagem ou diante de outra mulher – tão frágeis ante toda dismorfia, toda misoginia”. E o banheiro cheio de sangue, não por acaso, lhe ocorria. Mudou de assunto, comentou a peça, como fariam sem ela, faltava tão pouco para a estreia, mas eles – os médicos – não deviam retê-la ali, por muito tempo. Ana, pela primeira vez, esboçou um sorriso, antes de corrigir: não menos que um mês, segundo a enfermeira. — E o que fazer agora, Ana? — não da peça, delas. — Você se recorda de “Fiancés en herbe”? — Feydeau. Como não? — Então: — e já não era a mesma — Ah! Que c’est ennuyeux ! Ça ne veut pas entrer! Fizeram teatro onde ele era mais preciso, onde a vida não pôde ser suficiente para duas existências sedentas e unidas sobre o vértice da normalidade. Precisaram inventar outras vidas e outro riso, e o fizeram.


teatro em papel

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o francês Jeanpierre sarrazac organiza em forma de verbetes a construção do drama na atualidade. Mais do que um guia de consulta, léXico do draMa Moderno e conteMporâneo serve como instrumento de inquietações necessárias aos artístas e estudiosos.

pensar a cultura, hoje, significa também refletir sobre como a criatividade nas cidades é capaz de gerar ampliações. o livro cidades criativas, da teoria À prática, de ana carla Fonseca reis, primeira publicação brasileira sobre o assunto, oferece um amplo panorâma teórico e exemplos concretos de como a cidade deve envolver novos paradigmas culturais.


imagens, textos e ideias publicações com peças de teatro e reflexõs sobre cultura e o contemporâneo

À luz da sociologia, a gênese da sociedade do espetáculo redimensiona e aprofunda o surgimento de toda uma esfera de profissionais técnicos e criativos no universo teatral do século XiX, até apontar as estruturas determinantes da espetacularização que dominará a mídia nos séculos recentes. imperdível leitura a todos os interessados em arte e sociedade.


circunferências

sp

O Instituto Tomie Othake traz a mostra Desinformação Funcional, desenhos em português, do uruguaio Marco Maggi. Nas palavras do artista “Esta mostra é um escândalo lento, uma detenção que pretende estimular a nossa frágil simpatia pelo insignificante”. Entre o desenho e a escultura, o trabalho busca inquietar as certezas de nossas avaliações. Até 13/05. www.institutotomieohtake.org.br

ÓTIMAS OPORTUNIDADES PARA DESISTIR DO CONFORTO

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Wolfgang Tillmans, um dos maiores artistas alemães da atualidade e primeiro fotógrafo a ganhar o Turner Prize (2000), realiza no MAM-SP sua primeira individual na América do Sul. A exposição, que vem da Serpentine Gallery, de Londres, ganha montagem e recorte exclusivos para a Grande Sala do museu pelas mãos do próprio artista. Até 27/05. www.mam.org.br

FOTOS: DIvULGAçãO

um espaços reservado para tudo aquilo que vai além do teatro, e ajuda a construí-lo


Lygia Pape, Espaço Imantado apresenta a primeira exposição restrospectiva da artista que, ao lado de Hélio Oiticica e Lygia Clark, consolidou o movimento neoconcreto nas artes visuais, definindo as nuances que nos trariam até o contemporâeo. Uma oportunidade únida e inédita de reconhecer muito de nossas origens estéticas. Em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Até 13/05. www.pinacoteca.org.br

Entre 10 e 13 de maio a SPArte ocupará a Bienal de São Paulo, em sua 8a. edição. Ao todo, 105 galerias, sendo 23 internacionais, apresentam produções recentes dos artistas representados. A feira conta também com o projeto Laboratório Curatorial, sob cordenação de Adriano Pedrosa, pelo qual jovens curadores poderão desenvolver projetos, a partir dos acervos das galerias, e concorrer a quatro viagens para a Documenta 13, em Kassel, Alemanha. Estruturar o pensamento pelo viés das artes visuais pode ser um excelente aprendizado a todos os apaixonados pelas artes cênicas. www. sp-art.com

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por alĂŞ caetano


por veronica fabrini


crítica. x2 por ClauCio andré e renata admiral

valsa n

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renata admiral: bora. o que analisaremos primeiro, a obra do nelson em si ou o paralelo das duas peças... ClauCio andré: acho que o paralelo. não sei como foi no seu caso, eu passei a enxergar a peça de outra maneira, a partir do que vi, e não o contrário. ra: esta é uma peça que eu tenho adoração, desde menina, acho que com a idade da Sonia, e ver ela (Sonia) da maneira como a vi nos espetáculos, principalmente no primeiro, me deu uma emoção grandiosa. Ca: Eu não tenho essa adoração. não tinha. aliás, tinha certo receio com monólogos. ler a peça é um baita exercício de imaginação. Como, quando li, não estava muito atento, adotei o preconceito como opinião, e fui ver os espetáculos já “não gostando”. Mas o curioso é que, depois, passei a gostar! não pelo que vi, mas pelo que não vi, ou pelo que vi em potencial. Você curtia a peça, por quê? ra: Gosto do desenrolar. na primeira leitura, eu não sabia quem era Sonia, e, ao final, descobrir junto com a personagem que “ambas” eram Sonia, é trágico, é perturbador, gosto desse tipo de leitura, que te faz pensar, que surpreende com detalhes “mínimos”, e ver tudo o que eu imaginava presente na nossa primeira Valsa, através da lívia Ziotti, já me conquistou de cara, e me frustou com a segunda montagem com ligia Paula Machado. Ca: Por que de cara? o que você viu? ra: vi a Sonia da minha infância, pueril, tentando virar mulher, mas ainda com delicadeza adolescente, as dúvidas e anseios reais de uma jovem, a vontade da maturidade, a paixão por homens mais velhos, mas, ao mesmo tempo, uma inocência fugaz, vi a transição... vi minha personagem favorita bem na minha frente, o que posso fazer?? kkkk Ca: Hehe, transpondo as duas montagens vistas, eu consigo ver isso também. Foi quando eu pensei: o nelson é bom mesmo. Porque talvez tenha sido por meio de monólogo

companhia

Círculo dos Canatrões direção

Marco Antônio Braz elenco

Lívia Ziotti assistida no

Teatro de Arena


Duas mongens do mesmo texto. Uma no Teatro de Arena, outra na Casa das Rosas. E assistidas no mesmo dia.


que ele tenha conseguido expressar melhor esse universo feminino de transição. ra: fora que eu gostei muito de ver o criador e sua criatura, juntos, nelson e sua personagem Ca: ah, isso eu queria falar. Muitas pessoas acharam interessante ter um personagem em cena dando as rubricas, fazendo parte da construção e descontrução de Sônia.

lívia Ziotti e rodrigo Fregnan em cena, sob direção de marco antônio Braz.

FotoS: BoB SouSa

ra: via muito isso no cenário também, típico de um escritor, poeta, papéis que rodeavam ambos, rascunhos, textos deixados para trás, gosto do minimalista, de pensar o que o mínimo é na grandiosidade da obra, e prestar atenção em cada detalhe do trabalho do ator.

Ca: Mas a única questão dessa escolha é que, a partir de um certo momento, deixa de ser jogo e acaba virando previsível — especialmente se você leu o texto e sabe o que virá. ra: não sei se o previsível entra nesta análise.. quem nunca leu Shakespeare... não é sempre uma emoção ver o otelo, o iago, a ofélia, Hamlet? por que seria diferente com Sonia. Cada montagem pode surpreender de outras formas, o texto já está lá, eternizado, mas a concepção e o trabalho do ator são elementos mutáveis...a surpresa vem daí e de vc se deixar levar pela magia daquele momento, esquecer do óbvio e embarcar numa nova Sonia


Ca: Você tá certa. Mas a questão do jogo entre atores, ou entre “rubrica/autor” e atriz, teve uma hora que perdeu a força, não surpreendia.

ra: gostei de como a lívia Ziotti percebeu a importância das nuances, das quebras. bacana o lance de um leigo assistir... rs

ra: gosto da idéia, resolveu bem...bem melhor que ter objetos sendo jogados da sala ao lado para uma atriz.

Ca: ah tá!

Ca: (até porque eu li o texto faz tempo e não lembrava como acontecia... foi mais no sentido de não mais surpreender). ra: entendo, mas mesmo assim acho uma solução simples e concisa. Ca: Porque na montagem do Círculo dos Canastrões eu sinto que, se num primeiro momento, a escolha de trazer ao palco as rubricas tornou a Sonia mais potente, num segundo, acabou sufocando. porque o nelson-personagem não se desenvolve, é sempre o mesmo. ra: acho um elemento mínimo e confiável, veja a minha opinião sobre outros elementos simples: o bumbo rítmico, que para mim simboliza a pulsação, que pode ser interpretada como pulsação do espetáculo, da Sonia, do diretor, daquele início de criação, o nascer do personagem... com um mês de vida já ouvimos o bater do coração do bebê... senti nelson fazendo nascer sua personagem até o final, com a percepção de sua morte e a finalização de mais uma obra... e o acender das luzes que termina por vez sem nenhuma pulsação rítmica do bumbo. acho que por isso não me incomoda a presença do ator/personagem/nelson. Ca: Pra ser sincero, não tinha me atentado nessa questão do pulso. Se pudesse ver de novo tentaria reparar. ra: segundo elemento: o espelho, que é disforme. Sonia morreu, ela não consegue se ver por inteira no espelho, porque se visse saberia ser Sonia...mas a falta de seu semblante...me pegou também, era algo como um borrão, fazendo parte da falta de lembranças, de memórias. quero muito ver de novo!! Ca: Mas rê, será que você não interpretou tudo isso por conhecer muito bem a obra? Queria muito saber de um público meio-leigo se todas essas questões rolam. ra: acho que não, foi mais algo sensorial. nunca li nenhuma análise sobre a obra. Ca: Beleza. Mas e da interpretação. Curtiu por inteiro? ra: acho bacana.

ra: tenho certeza de que a direção do Braz deve ter sido importante, mas gosto dos olhares, da menina que quer ser mulher, de como ela concebeu a Sonia. e vc? Ca: nessa Sônia (a do arena) eu vejo já mais mulher que menina. Mas foi apenas impressões. no geral, achei que ela levou bem. não consigo distinguir onde é a mão do diretor e onde é a proposta da atriz. ra: eu vejo a transição, vai ver que é por ser mulher... mesmo a mulher dela, que sai com um cara mais velho e casado, tem aquela coisa da menina de 15 que se porta como uma mulher, que sai com esses tipos, e por falta de maturidade, se acha madura. Ca: Essa Valsa é um desafio e tanto, acho muito difícil para se interpretar. algumas vezes eu percebia a dificuldade de tornar a(s) quebra(s) própria(s) do espetáculo. ra: é o pré-adolescente que se acha homem, que acha que sabe mais do que os pais. Ca: algumas vezes ela conseguiu, outras não, mas não lembro agora quais momentos. ra: mudanças no tom da voz, mas sempre me parecia que interpretava os demais (mãe, pai, médico) como uma brincadeira de menina, imitação e não interpretação... isso me encantou, bem ao contrário da Valsa da Casa das rosas...ali me parecia “agora vou interpretar”, e não me cativou. Ca: Pelo jeito, mais uma vez, eu vou fazer papel do cri-cri! hehehe. Só tem uma coisa que eu diria para a atriz. E não é sobre conseguir ou não alcançar aquela transição sobre a qual falei. ra: para a livia? Ca: Sim, mas não sei se ela vai ler; fica a dica. Vi outro espetáculo com ela e percebi que tem um truque. Ela tem um tipo de olhar que emana muitos sentidos, misterioso. aquele que, basta você abaixar o semblante um só grau, e pronto, já há milhares de possibilidades.

Ca: hahaha, defina bacana. ra: que bom que ela descobriu este olhar..rs. mas


Ca: não que seja igual. Mas ela abusa desse truque. Como a interpretação do Valsa e do Beijo no asfalto tem uma camada realista mais evidente (na interpretação), dá impressão de que diretor(es) e atriz botam muita fé na expressividade do olhar. Conheço uma menina que tem uma cara de triste muito expressiva. toda vez que ela interpreta realisticamente um personagem triste, ela ganha o público. Ok, mas... desafie-se! Acho que ela tem que descobrir o significado do olhar também no corpo. Algumas vezes fica só no olhar. não estamos no cinema, rs. ra: mas para mim seria péssimo se vc dissesse “olha, já vi várias peças com ela e é sempre a mesma coisa, a interpretação é a mesma” porque daí é a atriz em cena e não a personagem... okay!!! vamos a próxima Valsa estabelecendo seu contraponto? Ca: na lívia, o truque é a sobrancelha levemente arqueada, o rosto abaixado. isso aparece nas duas peças. Fez a figura? Podemos partir pro próximo então. ra: ai que medo!! rsrs. começa você dessa vez rs

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Ca: Então. o Valsa da Casa das rosas acerta numa coisa. Encena utilizando cenografia que remete a uma festa de 15 anos. achei que tem tudo a ver. está cheia de significado de rito de passagem, a transição etc. se aproveita da Casa das rosas, e cria uma plástica de hall de entrada. as luzes da fachada, os ornamentos florais, o vestido da personagem, e até mesmo as valsas tocadas num midi cafona de teclado de churrascaria, com direito a narrador e tudo. Até mesmo o flyer, o programa e os anúncios no Guia off tem esse tom meio brega que são das festas. até

aí Ó-QuEi! o foda é que a partir disso a montagem se afoba, e tudo fica apressado demais, jogado demais. ra: então, eu concordo com esta proposta da festa, do telão com as pessoas que ajudaram na “realização”, mas para mim remete também a um funeral com aquelas coroas de flores, o local pequeno e que mal conseguíamos ver o que ocorria, porque a disposição dos lugares não ajudava (o que me deixa muito mal humorada afinal, é para ver, ou não?) concluindo, aquilo tudo me empapuça, fica muito. Ca: é verdade. Muita cara de pau cobrar r$30 a inteira de um espetáculo que privilegia os bem dotados de altura. ra: são muitos elementos, muitos artifícios para se ajudar a atriz: recursos tecnológicos, aquela pirotecnia toda, as vozes distorcidas... Ca: Sim, sim. ra: para mim ficou tudo muito gritado, muito teatrão, e teatrão, para mim, só convence nos musicais pq ali eu não estou a metros de distância da interpretação, muitas vezes apagada diante de tantos cenários, músicas e cantos...mas eu vou sabendo o que é... na Casa das rosas eu queria ver a Sonia...e infelizmente não vi. Ca: os recursos não são usados como signo cênico, e sim como autorreferência do próprio signo. a bolha é só bolha. A flor é só flor. Aquele som dizendo “Sonia”, de ene maneiras, distorcidas, gritadas, sempre a mesma gravação... é de um mau gosto tremendo. ra: lá eu vi a atriz em segundo plano...

FotoS: diVulGação

vc está dizendo é que ela tem uma interpretação igual, sempre a mesma, ou apenas um olhar que diz muito?


direção

Dan Rosseto elenco

Lígia Paula Machado e Dan Rosseto assistida no

Casa das Rosas

Ca: Você acha que a pirotecnia abafou a atriz? ra: muitos elementos que eram apenas elementos...daí eu vi uma bota, “desce a bota”, aí ele sentou “e um sofá é jogado pela contra regragem”... daí ela passou batom..., “e a contra regragem entrega o batom”. Ca: haha, sim. ra: não é que a pirotecnia abafou a atriz, acho que foram muitos recursos que não me disseram nada, não precisei pensar, foi tudo mastigado, não consegui me entregar, sendo que o teatro é do ator... principalmente. Ca: uma atriz soterrada por grosserias de encenação. Qual a saída? debater-se. E o que mais vi, infelizmente, foi a atriz tentando se sobressair no meio de tanto entulho bonito. Ganha tons de desespero, fica numa nota só. aliás, note que durante o espetáculo eu comentei com você que eu estava contando quantas vezes dava para ouvir a respiração ofegante da menina. Centena e algumas dezenas. Era angustiante! Mas dava pra ver que não era proposital, era sem querer. ra: concordo, não vou julgar a interpretação dela que ficou inexistente perante tudo, mas eu não vi nuances, vi textos mal aproveitados, ocos, uma atriz muito mais mulher do que menina, não vi a ingenuidade dos 15, vi certezas..e não temos certezas aos 15. falsas sim... Ca: isso das certezas é muito interessante! Eu vi sim a atriz (não a personagem) de 15 anos. Mas a questão da certeza, eu compartilho com você. Porque é uma era de incertezas. Mas a atriz tenta passar absoluta certeza

daquilo que está fazendo. Então, nesse jogo de certeza e incerteza, fica a impressão de que a garota queria mostrar serviço. “Ei, mundo, eu dou conta de nelson, eu decorei a Valsa inteira!”. não tinha pensado nisso, mas faz todo o sentido o que você disse. ra: sim, tenho medo de ter visto mais a vaidade do que a personagem, mas não gostaria de ampliar esta questão, por não conhecer outros trabalhos dela. tivemos dois tipos de Valsas, uma minimalista, outra na base do teatrão, uma com muitos signos e outra que possuíam objetos em demasia, uma atriz com nuances e que sabe usar bem os truques que aprendeu, do outro lado, uma atriz se debatendo para tentar se sobressair perante tantas flores e véus... Ca: Vale falar do “bullying” que a gente sofreu na saída da Casa das rosas? ra: rsrrs claro. Ca: tenho a impressão (posso estar enganado) que o espetáculo da Casa das rosas estava protegido.rs. ra: pq? rs Ca: a senhora que nos viu fazendo comentários fez questão de urrar Bravo! bem do nosso lado. E nem era pra tanto: o público estava cansado de se contorcer pra ver a atriz. ra: é, não gostaram da nossa presença, mas felizmente é um país livre e temos o direito de gostar ou não... finalizamos aqui ou mais alguma consideração? Ca: não sei se gostaram ou não. Fato é que parecia que havia um cerco contra críticas. Bem, acho que é só isso.


estreia

1 Rosa a

vez de Noite de Gata Borralheira

texto: Janaina Pellegrini fotos: Fred Chalub


Neuraci Rosa da Silva, em frente ao cartaz do espetáculo “A família Addams”, antes de entrar para assistir pela primeira vez um musical.

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E descobriu, como num conto de fadas, que o teatro é o lugar onde podemos ser iguais

C

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onvidada pela Revista Antro Positivo a assistir, pela primeira vez, a um espetáculo musical, a baiana Neuraci Rosa da Silva, 41 anos, ficou em estado de graça. Sua estreia foi na montagem brasileira do espetáculo A Família Addams, em cartaz no Teatro Abril, em São Paulo. Rosa, como é carinhosamente chamada pelos amigos, parecia não acreditar na oportunidade de ver de perto e conhecer os protagonistas dessa mega produção brasileira orçada em 25 milhões de reais, com Daniel Boaventura e Marisa Orth, dando vida aos céle-

bres personagens Gomes e Morticia, eternizados nos quadrinhos do cartunista Charles Addams. Nascida em Seabra, a 456 quilômetros da capital, Salvador, mãe de quatro filhos, de 22 a 16 anos, e avó de dois netos, ela chegou à capital paulista há 26 anos em busca de uma vida melhor. Hoje, concilia a dura rotina de faxineira em um escritório de pesquisa clínicas com as aulas do curso de auxiliar de enfermagem. Ela admite que a maior diversão da família sempre foi ver TV. “Vir ao teatro era algo inatingível, irreal para mim. Estou me sentindo

uma pessoa chique e importante hoje”,afirmou. Quando Rosa entrou no teatro, ela olhava para todos os cantos como se estivesse à procura de qualquer detalhe mais bonito do que os já vistos anteriormente. Gostou da elegância das pessoas no imponente espaço cultural. “Quem diria, eu assistindo um musical?”, admirou-se, sentada a 300 metros do palco. Após um dia intenso de faxina, o cansaço de Rosa era visível. Mas, assim que as cortinas se abriram, os olhos dela brilharam de emoção, e ela deu boas gargalhadas


em uma divertida comédia que permeia temas como amor, fidelidade e diferença. Ela estava descobrindo um novo mundo, um universo até então inimaginável. Mas, há seis anos, permite-se descobrir o novo. Após uma desilusão amorosa que pôs fim a um casamento de 18, Rosa resolveu mudar sua vida radicalmente. Logo no início, viu-se diante de um impasse quando avaliou o que faria. “O que uma baiana que só tinha estudado até quarta série queria ou poderia oferecer para seus filhos?”, questionou. Corajosa, não esmoreceu e bata-

lhou pela vida. Completou o ensino fundamental em uma escola de suplência, arrumou um emprego de faxineira e se matriculou em um curso de enfermagem. “Coloquei na minha cabeça que seria alguém na vida e vou ser”, afirmou. E que ninguém duvide. Rosa enfrenta duas conduções por dia para ir de sua casa no Jardim Itajaí, bairro no extremo da Zona Sul da capital paulista, para trabalhar e estudar no bairro de Moema. E por morar tão longe, só pôde assistir ao primeiro ato do musical. Se ficasse até o final perderia o último ônibus para casa. Foi como

se vivesse um dia de Cinderela, quando a gata borralheira deixa o grande baile antes dele acabar. Apesar de ter saído frustrada por não poder falar com seus ídolos da televisão (a assessoria de imprensa do teatro não conseguiu viabilizar o encontro naquele dia), ela sentenciou: “Como a Cinderela fui feliz naquele pequeno momento.” E durante a apresentação, os limites da exclusão social e cultural da qual a faxineira faz parte se esvaíram. Ela se uniu aos demais espectadores. Riu, se emocionou, aplaudiu e se divertiu como todos.


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quarto

visitando

l a c i s y ph

theater

A PERSPECTIVA DA EXPERIMENTAÇÃO CONSCIENTE


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Leandro e Ann em “Beauty of Fear”


É

preciso sairmos do centro de segurança para conseguirmos olhar o óbvio. a condição de construção da cena teatral brasileira, em certa medida, está viciada em seus engajamentos, argumentos e conclusões. Portanto, encontrar o olhar desvinculado dessas emoções, torna-se fundamental para que possamos atribuir estruturas mais críticas ao cotidiano de nossas escolhas. Para ajudar a formalizar esse olhar distante, visitamos os brasileiros Leandro Zappala e anna af sillén de Mesquita, da companhia Quarto Physical theater, sediada em Estocolmo, suécia. trabalhando em um dos países europeus que mais fornecem financiamentos para a produção da arte contemporânea, Leandro descreve as condições de trabalho de sua companhia. novamente selecionada para uma residência, durante um período mais longo que os ofertados no Brasil, cerca de dois anos, o desenvolvimento da próxima pesquisa ocorrerá mediante a ocupação de um espaço subsidiado pelas três instâncias públicas e setores privados, gerando um ambiente de trabalho autossustentável e de encontro entre artistas diversos, com o intuito de promover diálogos artísticos e compartilhamentos de pensamentos. o mais profundo, entretanto, não está na existência da própria residência, mas na percepção pública de que a arte investigativa é insustentável, quando projetada sua sobrevivência às necessidades do mercado cultural comum. se colocada como produto no meio atual, tal como o conhecemos por aqui, veremos o quanto é inviável, instável, e como o tratamento tradicional impossibilita a própria pesquisa. a solução é fazer as pessoas entenderem que a escolha por projetos investigativos e estruturas mais experimentais, é um modo de vida, um jeito de ver o mundo, de exercer a capacidade de ler a sociedade, tendo a criação como consequência dessa observação. alcançar o reconhecimento dessa importância é, contudo, um ato de resistência. não propriamente ao mercado, mas em favor a uma ética que abarca outras possibilidades


O casal no espetáculo “Beauty of Despair”.

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de nos atermos em sociedade. Por isso Leandro afirma não ser possível qualquer negociação com sua arte. É preciso se contrapor a cada instante, com a certeza de serem as escolhas definitivas. E contrariar é, antes de mais nada, a possibilidade de fazer escolhas. Enquanto a estrutura se consolida frente a criação, cada vez maior, de instituições e políticas culturais, o artista, como meio de sobrevivência, admite-se recolhedor das sobras oferecidas. no entanto, nenhuma das duas estruturas existem sem o artista. o problema não está no existir dentro delas, mas na maneira como o artista as permite. É preciso gerar a compreensão de um

mecanismo que aceite o caos, no qual a arte exista por si mesma, sem a troca, sem as contrapartidas tão idealizada por tantos políticos e gestores culturais. Leandro é enfático ao afirmar que a contrapartida compromete a estrutura, pois entende que esta não tem que se explicar. Essa necessidade imposta, equivocadamente, pela adequação a formatos específicos, muitas vezes dá-se por intuitos opostos ao próprio objetivo do projeto. sem largar essas novas formas de controle sobre a criação e o pensamento, o trabalho fatalmente estará morto, conclui. Modificar essa postura, já consolidada em diversos níveis da cadeia produtiva, não é fácil,


admite. É preciso entender a finalidade da arte e os motivos de sua criação. Como resposta a primeira, Leandro afirma que, o mais importante, é todos perceberem que a arte é absolutamente inútil. não deve servir a nada além do próprio desejo e inquietação do artista. Mas essa não é uma perspectiva fácil de ser compreendida. Quanto aos motivos, para além das escolhas práticas, como tema, abordagem, estética etc, a complexidade necessita ampliar o argumento para a própria necessidade de criar. sua compreensão permeia a criação como manifestação de liberdade, por entender não restar mais nada de legítima na manifestação do indivíduo. Criar, então, torna-se

a máxima potência de libertação do indivíduo, ainda que este permaneça submetido e inerente aos mecanismos de padronização e controle. O argumento esbarra na dificuldade do próprio artista se posicionar de modo crítico sobre o mercado, as estruturas de trabalho e como a arte é oferecida e recebida pelo público. Há uma tendência a achar que as coisas são normais, de que devem ser como são mesmo, permanecer, e que qualquer instabilidade pode acarretar em alguma perda de escolha. o equivoco está no entendimento real de onde a escolha verdadeiramente está. Uma vez consolidada uma estrutura, nada pode ser escolhido, além do permitido pela


Desde quando se definir como vítima é positivo? Cenas do espetáculo “Beauty of Despair”.


estrutura em si. E isso está longe de ser um processo libertário. ao contrário. É pouco, insiste, para quem quer chegar a algo maior. indagados sobre o Brasil, visto suas recentes apresentações no Rio de Janeiro, Leandro e anna traduzem a experiência com ressalvas e críticas. dizem-se incomodados com o fazer reduzido e limitado à própria comunidade artística, e não enxergam, na maneira como a cultura se organiza por aqui, instrumentais para empurrar as fronteiras dos trabalhos, de modo a atingirem também a sociedade. outro aspecto é quanto a pouca busca por referências estéticas e conceituais, que implicam no não reconhecimento de linguagens e diálogos com as produções contemporâneas, gerando uma apreciação sobre o trabalho menos crítica e mais limitada a sua estranheza. Essa falta de repertório, essa limitação da amplitude

discursiva prejudica, em parte, fundamentar as mudanças que suas pesquisas buscam atingir. Para que as referências pudessem dialogar, seria necessário que os próprios artistas brasileiros fossem, antes, interessados em ampliar seus vocabulários. o Quarto Physical theater encontra paralelos, através de uma assinatura muito precisa, com alguns criadores da dança contemporânea belga, francesa e alemã, estruturando discursos próximos ao universo das novas performances. Há o valor de quem observa ao redor, suas proposições. assim como há, igualmente, a característica de um discurso insistente sobre certo sentido de pertencimento, numa Europa que confronta, de maneira mais explosiva, as condições próprias de um capitalismo em degeneração. se por um lado, o artista brasileiro está acomodado aos modelos do mercado, e por


outro, possui um vocabulário simbólico e estético limitado, muito disso pode ser reconhecido na própria postura dos nossos artistas, em sua necessidade de se vitimizar e na aceitação de sua vitimização cultural, além da cruel estrutura de financiamento construída na competição por espaços e verbas, que fazem com que um destrua o outro, em busca de sobras irrelevantes e circunstanciais. Para Leandro e anna, os espaços devem ser, sim, ocupados pelos artistas,

independentemente de governos, e que, somente interessados em serem relevantes, uns aos outros, poderão, enfim, liberar o artístico, para gerar outros formatos de ação e permanência. Como escrevi no inicio, não e fácil enxergar as próprias obviedades. Mas é fundamental ao desenvolvimento de novas perspectivas, quando estas são esclarecidas por alguém. olhar-se de fora deveria ser o exercício maior a todos aqueles que se denominam artistas.


Cena do espetáculo “Beauty of Fear”.


política da cultura por ana carla fonseca

D

e algo profundamente impopular (bastava alguém dizer que era economista, para os amigos, na mesa do bar, pedirem o cardápio...), a economia foi galgada aos píncaros da simpatia. Economia do afeto, economia do bem, economia sustentável, economia púrpura, economia do amor, economia da abundância... Para quem sofreu as angústias de defender que a economia era uma ciência humana, em pleno período de hiperinflação brasileira, essa nova onda causa um sentimento dúbio de êxtase e receio de banalização. Devagar com o andor. De todos esses e outros novos termos, o que me cativa, e aquele ao qual venho me dedicando há muitos anos, é o de economia criativa. Que, ao ser tão simpático, está em um momento delicado, no meio fio entre ser suspeito para os economistas ortodoxos e tido como a panaceia dos males da humanidade, para os ingênuos de plantão. Nem um, nem outro.

Comecemos pelo começo, e vejamos em que mundo estamos. Desde fins da década de 1980, vimos acompanhando uma série de mudanças, que afetam cada um de nós, em nossa vida cotidiana. No âmago disso tudo, está o binômio globalização e mídias digitais. Qualquer leitor com mais de 20 anos estará muito atento às infindáveis tentativas de reinventarmos uma lei de direitos de propriedade intelectual. Afinal, a tecnologia, grande ativo da economia, nunca foi tão facilmente transferível. Basta inventar um produto ou serviço aqui e, eis que dali a poucas semanas, um país do outro lado do mundo lança um concorrente. Se o leitor tiver mais de 30 anos, provavelmente se lembrará da agonia de viajar ao exterior, sem poder usar seu cartão de crédito; ou da dificuldade de ter acesso a um investimento na bolsa de Nova York. Hoje, o capital (entenda-se, o dinheiro), assim como a tecnologia, são muito facilmente tranferíveis.


da impopularidade à panaceia O que sobra de diferencial? Bingo. Surge aí a essência da economia criativa - o reconhecimento de que, em uma sociedade na qual as fábricas se deslocam com grande rapidez para onde a produção é mais barata e em uma economia na qual dinheiro e tecnologia são facilmente transferíveis, o grande diferencial de competitividade é a criatividade humana. De algo que era quase apêndice (lúdico, bonitinho, agradável), a criatividade passa a ser o ativo mais diferencial de uma economia. Foi exatamente isso que os australianos entenderam, em 1994, quando seu então Primeiro-Ministro, Paul Keating, veio a público com um discurso intitulado «Nação Criativa». Foi isso também que os britânicos perceberam em 1997, ao fazerem da criatividade a plataforma de candidatura do aspirante a Primeiro-Ministro, Tony Blair - e, uma vez eleito, sua estratégia de Estado. Em uma economia cada vez mais globalizada, de ativos móveis e concorrente por preços, a criatividade passou a

representar a grande possibilidade de diferenciação de produtos e serviços. Surgiu daí o termo «indústrias criativas» - aqueles setores da economia (afinal, em economia, «indústria» é o nome que se dá a um setor qualquer) com maior carga de criatividade - das artes ao design, das indústrias culturais ao software, passando pela moda e pela propaganda. Setores, enfim, que têm na criatividade sua mola propulsora, advinda de cultura ou de tecnologia. Mas o primeiro grande pulo desse conceito, que em breve será um quase debutante de 15 anos, deu-se com a passagem de «indústrias criativas» para «economia criativa». O que se percebeu foi que as indústrias criativas não somente têm um impacto econômico, social (especialmente por empregarem muitos micro e pequenos empreendedores) e culturais, mas também são capazes de turbinar criativamente setores tradicionais da economia. 9

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política da cultura

Querem um exemplo? Pois bem, peguemos o da moda. A moda brasileira, ao ser arrojada, inovadora e ousada, como lhe é reconhecido ser, abre a possibilidade para que os produtores têxteis desenvolvam tecidos diferentes, igualmente inovadores. É o melhor dos mundos, já que continuar concorrendo em preço pela camiseta branca, na qual a China nos dá uma lavada, é uma perda de tempo e de dinheiro. Graças à moda, nosso parque têxtil tem a possibilidade de «descomoditizar» seus produtos - criar novos tecidos com valor agregado, não facilmente copiáveis e, portanto, cuja competitividade não está no preço. Do mesmo modo, o parque têxtil brasileiro abre aos produtores de algodão a possibilidade de desenvolver um algodão diferenciado - como é o algodão naturalmente colorido, desenvolvido pela Embrapa e produzido na Paraíba. As perspectivas da economia criativa para o Brasil são ótimas - afinal, o brasileiro não é criativo? Porém, da boa ideia à inovação há uma grande distância. Ser competitivo, nos dias de hoje, requer acesso ao que é desenvolvido no mundo inteiro. Investir em ciência e tecnologia é fundamental; e o Brasil, infelizmente, não se destaca nesse quesito. Ter acesso à informação não basta; é preciso ter a cabeça preparada para elaborar essa informação, transformando-a em conhecimento. Para isso, é fundamental investir em educação - não apenas na educação de qualidade, na qual o Brasil é lanterninha em todos os testes,

como também em uma educação que valorize a criatividade, o pensamento lateral, a crítica, a transversalidade, as novas ideias. O Brasil, como de hábito, tem ativos em profusão - no caso, a criatividade de seus habitantes, forjada ao longo de séculos de necessidades. Para transformar todo esse maravilhoso potencial criativo em inovação, diferenciação e desenvolvimento, precisamos de políticas públicas que invistam no que é prioridade; que parem de aquinhoar as pastas públicas entre os acólitos do partido, na maioria das vezes sem qualificação técnica; e que tenham um mínimo de vontade para desenvolver políticas de Estado, não de governo. Até então, a culpa pela não-conversão da criatividade brasileira em inovação será sempre e, tão somente, do famigerado «mercado». Mas o que é o mercado, se não a somatória de nossas preferências individuais - inclusive daquelas que têm validado e corroborado o que há de pior no colonialismo político brasileiro?

ana carla fonseca é economista, Doutora em urbanismo, sócia-Diretora da ww.garimpodesolucoes.com.br


por lulu pavarin


foto.palco

sousa

A sensibilidade de um fotógrafo viciado pela construção teatral


Isabel Teixeira,em cena de “Rainha [(s)], duas atrizes em busca de um coração”.


“f

otografo teatro há quase uma década. Sou independente. Dependo somente da magia do teatro. Recentemente passei a integrar o projeto de pesquisa “Portal da História do Teatro Mundial e Brasileiro”, coordenado por Alexandre Mate, no Instituto de Artes da UNESP. Todo meu acervo fotográfico será mantido e preservado pela Universidade. Uma grande conquista pra um cara que sonhava ter uma imagem publicada num jornal. EVOÉ.” BOB SOuSA

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Cenas de “O silêncio depois da chuva”(2011), com Thiago Amaral, Gisella Milás e Fabrício Licursi e direção de Leonardo Moreira.


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Cena de “Jaguar Cibernético Floresta de Carbono - parte 4”, com Ondina Clais e direção de Francisco Carlos (2011).


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Cenas de “Luis Antonio Gabriela”, com Veronica Gentilin, Lucas Beda e Marcos Felipe e direção de Nelson Baskerville.


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Greta Antoine em cenas de “Os sete gatinhos”, com direção de Nelson Baskerville. À direita, Lavínia Pannunzio, em “A bilha quebrada”, com direção de Marcio Aurélio.


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1: “Pret a Porter”, do CPT, dirigido por Antunes Filho. 2: “Gargólios”, de Gerald Thomas. 3 e 7: “São Paulo Surrealista”, direção de Marcelo Fonseca. 4 e 5: “17xNelson”, direção de Nelson Baskerville. 6: “As Pagus”, com direção de Christiane Tricerri.

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“B

ob Sousa é um poeta da lente. Sua arte se baseia em corpos de artistas de todas as tendências, sem preconceito ou comparação. Assim como aparece, celebrando em moldura o momento, some pra outro canto, onde escuta uma dança nova de um teatro encantando. É do teatro que ele tira seus versos, dos rostos maquiados e dos movimentos que desaparecem como a fumaça ao fim do espetáculo. “O teatro me deu tudo”, diz o fotógrafo de 39

anos, que, nesse momento, deve estar na porta de algum teatro ou espaço dessa cidade, criando um acervo que retrata nosso tempo concedido na terra no teatro. Seu amor pelo teatro fez com que suas imagens sobrevoassem São Paulo, tornando um prazer e um privilégio ter um registro por seus olhos. O respeito conquistado entre as pessoas de teatro é um reflexo de seu talento e dignidade artística.” MARcElO MARcUS FONSEcA Ator e diretor teatral

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À esquerda, Rodrigo Bolzan em cena de “Ópera dos Vivos”, direção de Sergio de Carvalho. Nesta página, Lee Taylor, em cena de “Policarpo Quaresma”, com direção de Antunes Filho.

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Capa


texto: RUY FILHO fotos: JOãO CaLdas

A POTÊNCIA DE UMA REVOLUÇÃO POSSÍVEL


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danilo santos de Miranda, em sua sala, na unidade administrativa do sesc Belenzinho.

lgumas agendas são tão concorridas, que respeito a dificuldade de se incluir um pedido. Principalmente se for para uma visita. Imagine, então, se possuir a intenção de ser longa, o suficiente para que possa tornar o encontro profundo, com questões complexas como focos principais. E, quantos podem ser os interessados, se a conversa for sobre cultura? Ao fazermos o convite a Danilo Santos de Miranda, parece que essas dificuldades não existiam. O interesse em tratar o assunto fez com que suas paixões pelas ideias fossem suficientes para encontrar uma brecha. Portanto, lá fui eu, ao seu escritório no SESC Belenzinho, ouvir, mais de perto, os pensamentos que tornaram sua gestão reconhecida no mundo todo. Quem acompanha seu trabalho e pode ter a oportunidade de estar presente em suas falas, durante eventos, congressos e seminários, sabe o quanto é interessado por teatro. E começamos por aí, nosso encontro, pelo entendimento de seus interesses. Como todo bom intelectual, a resposta não se destina a concluir, mas a refletir as diferenças entre literatura, cinema e artes cênicas. Para ele, a literatura é o meio perfeito às propostas mais minuciosas, às questões possíveis ao texto, onde é dada ao autor a oportunidade de mergulhar em um antro mais profundo. O cinema, por sua vez, identifica redimensionado a projetos mais histriônicos, submetido que está, a tantos outros interesses. Já o teatro, por ser intermediado pelo ator, possibilita maior capacidade de mobilização do sujeito, através de construções discursivas mais fortes; e, por não ser industrializável tão facilmente, permanece com certas independências, concentrando sua capacidade na manifestação do talento que o compõe. Pode parecer romântica a percepção sobre a não industrialização do teatro, no momento em que assistimos os patrocínios e públicos migrarem para os musicais,

exatamente pelas características industriais que tornam executáveis níveis profissionais impossíveis a quaisquer outras estruturas. No entanto, a programação do SESC SP confirma nem sempre ser o produto industrializado o mais interessante, ainda que competente. Danilo argumenta ter como principal interesse o artista, sobretudo suas transformações, durante as construções artísticas, e, menos, o produto. Enxergando as pesquisas como qualidades de observações, confrontos e estabelecimentos de verdades. Verdades, não por se tratarem do domínio do conhecimento e das certezas, mas das percepções de serem as escolhas norteadoras dos percursos artísticos, manifestações necessárias ao tempo em que se projetam. E, nesse sentido, ainda que não dito, podemos recolher de Danilo uma interesse definição de artista: aquele que, por sua ação criativa, resignifica-se criticamente, em relação ao seu tempo e aos próprios desejos, como necessidade intrínseca ao seu existir. É preciso, ainda, alertar-se sobre a diferença entre “industrialização” e “indústria cultural”. Neste, o termo se refere ao universo de realizações criativas, cujas estruturas determinam ampliações econômicas e sociais, dos fazeres aos desdobramentos e articulações de serviços, consumos e ideias. Já a industrialização, como trazida aqui, serve ao uso adjetivador para sublinhar certos instrumentos determinantes à submissão da arte aos interesses do mercado. Suas questões sobre a industrialização, portanto, são coerentes, e revelam haver dois processos claros, definidos por suas intenções. Enquanto alguns buscam produtificar e inserir seus trabalhos no mercado, pela observação estritamente financeira, outros se obstinam pela consolidação dos discursos, também através de suas inserções no mercado, porém voltados ao reconhecimento de suas relevâncias conceituais e dialéticas. E não há nada de errado em pertencer a um ou outro, ou mesmo no transitar entre os dois pólos. Em uma sociedade que se compreenda demo-


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QUAL A DIfICULDADE EM SE COMPREENDER QUE A MEDIOCRIDADE DESTROI A IMPORTâNCIA DA CULTURA?

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detalhes fotográficos, sob o olhar de João Caldas, durante a realização da visita


crática, optar é direito indiscutível. Todavia, como explicar isso às paixões? Retomo, Danilo é, acima de tudo, apaixonado pelas ideias e seus provedores. À medida em que avançamos a conversa, Danilo aponta algo fundamental na constituição de nossas manifestações culturais: “o apelo pela mediocridade é muito grande”. Refere-se ao acostumar com o fácil nas realizações e discursos, como certa consequência da rapidez trazida também pelas comunicações. Esse outro jeito de lidar com o conhecimento, com a reflexão e mesmo com o sentir, trouxe ao indivíduo maior apreço pela superficialidade. No Brasil, tudo é necessariamente rápido e efêmero, diz, e as formas das produções culturais são igualmente discutidas na ambiência de seus resultados positivos, seus supostos sucessos. A manifestação dessa superficialidade determina a falta do desejo pelo profundo. Ou seja, gradativamente, passamos do aceitar o superficial ao não querer outra coisa. O mesmo desejo, ao ser trazido ao espectador, fez com que gerações de novos artistas utilizassem o teatro apenas como discursos instantâneos, ao invés de investigações legítimas. Assim, conclui, é preciso forçar o outro lado com mais rigor, compreendendo os limites e interesses de cada proposição. Afinal, como exemplifica, uma aula de Alfredo Bosi terá sempre menos audiência que uma novela. No outro caminho, reconhece a televisão como incentivadora de certa brutalização da vida, do desenvolvimento (ou, ao menos, sua aceitação) da superficialidade. Como a escolha recente das programações pelo MMA – esporte, onde lutadores de diferentes estilos marciais são confrontados, no interior de um ringue, cujas regras permitem verdadeiros massacres entre os oponentes. O exemplo dá a dimensão, na

nossa cultura, do quanto o mau gosto e a vulgaridade do ser humano atingiu todos os níveis da superficialidade. Nesse caso, tendo a violência sobre o outro como manifestação aceitável. De certo modo, Danilo sente esse mesmo estado de indiferença sobre o outro entre os artistas. Admite ser preciso novamente ter o teatro como meio para levar ao público a alteridade, e que, igualmente necessário, é recuperar o cuidado essencial com o outro. Cuidado esse, formado também pelas condições, visões, trabalhos, equipamentos e o arcabouço das produções. Na última década, o artista perdeu o controle de todos esses itens, ao tempo em que se viu obrigado a aceitar as condições oferecidas, quase sempre indignas ou improdutivas. Para Danilo, criar espaços não é suficiente, a qualidade, os serviços oferecidos e a relevância e amplitude da programação são muito mais. E admite haver, sim, um problema concreto, quando a instituição se torna o único instrumento reconhecido para oferecer aos artistas estruturas e possibilidades. Digo-lhe que sou de um tempo, quando o SESC era referência de novas ideias, cujo frequentar garantia descobertas e aquisições de inquietações; do Pompeia e sua proposta de um espaço de passagem e convívio casuais. A falência dos investimentos públicos e suas más gestões e o desinteresse dos patrocinadores privados pela arte investigativa tornaram a instituição a projeção de soluções práticas, da produção ao reconhecimento. E, como consequência, foi preciso mudar, adaptar-se a estruturas mais formais e, por conseguinte, mais profissionais e funcionais, aos artistas e frequentadores. A crescente demanda de espetáculos tornou as unidades do SESC um paraíso ilusório, visto ser impossível agregar a todos, inviável sustentar sozinho a demanda produtiva. E o que se iniciou como porta de acesso ao artista, tornou-se uma fila de espera, onde as decepções ocorrem, frente ao alto grau de expectativa trazidos pelos próprios


“O QUE fALTA MESMO (NO bRASIL) é UMA REVOLUÇÃO CULTURAL”

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artistas. Danilo é enfático quanto a isso: “o financiamento é a única alternativa”, se referindo às iniciativas públicas e privadas. “Teatro é um bem público”. E insiste ser preciso que a sociedade apoie a arte; é preciso educá-la, estimular as pessoas ao consumo cultural efetivo, tanto da arte quanto da reflexão, articulando a arte com o outro, aproximando o outro, oferecendo possibilidades para que ela possa existir ao outro. No fundo, Danilo está totalmente correto, quando vocifera que “o que falta mesmo (no Brasil) é uma revolução cultural”. Falta pensamento, afirma, o que é uma exacerbação da falta de educação, remetendo a ausência de reflexões a duas correntes de argumentos: a crise de lideranças e a crise de intelectuais. No primeiro caso, a ausência de lideres conduz a normalidade a um processo esquizofrênico, onde todas as possibilidades são aparentemente iguais e suas validades dissolvem-se em um labirinto indecifrável de mesmices. Sem os líderes, mesmo o antagonismo saudável perde sua expressão, visto só ser possível contrapor-se a um objeto definido. Talvez isso explique as produções atuais (salvos pontuais criadores a cada geração), e a pouca clareza de caminhos e provocações. A abertura política tornou o combate oblíquo, sem oponentes diretos. A soma, então, dá-se, hoje, pelo paradoxo de uma geração anterior que aprendera a se opor a lideranças explícitas, e das atuais, cujas capacidades e potências são nulas, por nunca terem reconhecido novas lideranças. De alguma maneira, o teatro brasileiro, ainda que múltiplo e vasto, justifica nesse paradoxo sua inércia falsamente protegida pela ideia de ser o mercado seu mau maior. Para os pensadores da chamada Nova Economia não faltam críticas à maneira como o brasileiro se acomoda frente



ao mercado. Muitos exemplificam que, em outras culturas, o desenvolvimento de um instrumental técnico, ação ou pensamento, e o reconhecimento de suas competências, levam os outros a se interessarem pelo desenvolvimento de novas possibilidades, enquanto que nós, quase sempre, inflamos de imediato o mercado com centenas de reproduções. Quando analisada a produção teatral brasileira, o mesmo pensamento ocorre na reprodução imediatista, daquele entendido como melhor modelo para ser aceito pelo mercado. Deforma-se possíveis lideranças ao desenho empobrecido de cópias circunstanciais,

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te fo xt co tos o: R la : p U bo a Y ra tR FIL çã IC H o: Ia O FU CI La vId nO an de es ta L

é POSSÍVEL ACREDITAR NA éTICA SE OS ARTISTAS SÃO LEVIANOS COM SEUS DESEjOS?

enfraquecendo tanto um, quanto o outro. Também a ausência intelectual, de reflexões mais comprometidas com posições claras, dialogam com esse vício, em busca de respostas imediatistas, ao tornarem a produção sem interface de diálogo e amplitude, condicionando o artista ao isolamento e solilóquios autorreferentes. Sem esses dois estímulos – liderança e intelectualização – o teatro estará fadado à monotonia dos resultados ordinários, sem grandes consequências, sem responsabilidades de escolhas. É preciso reverter, então, o divórcio entre a cultura e a educação. Aproximar os dois elos, compreendendo que a educação regular faz parte da cultura; não é a cultura que faz parte da educação. Pensar o ensino como consequência da estrutura cultural é, de fato, preparar o indivíduo para compreender a Arte como algo mais relevante, do que meramente um produto ocasional. Essa é a revolução possível e necessária. Essa ação, entretanto, só é possível se a centralidade do movimento ocorrer na sociedade. Voltarmos aos princípios gregos da Paidéia, onde a sociedade era a própria escola, conclui. A maneira como confundimos Cultura e Educação faz com que o amálgama dessa deformação se justifique pelo seu utilitarismo banal. “A arte não tem que prestar serviço a nada, ela é, em si mesma, educação”. E, enquanto isso não ocorre, o


terceiro setor, a administração pública e toda ação sociocultural precisam estabelecer um caráter ético pelo qual a transversalidade passe a ser o fio condutor das relações e conhecimentos. Falar em Ética é sempre um desafio perdido. Todos temos, em certa medida, uma noção do que venha a ser, e como deve se dar. Mas, antes de chegar a qualquer tentativa de consenso, lembro-me das inquietações iniciais de Peter Singer: de que a ética não constitui um sistema ideal, uma nobre teoria não funcional na prática; e da perspectiva que temos sobre o que venha a ser ético estar relacionada à defesa de como vivemos. Para o filósofo, a ética deve assumir um ponto de vista universal, determinar um preceito pelo qual os sentidos de “eu” e “você” sejam ultrapassados. A transversalidade proposta por Danilo, trata o saber como meio de constituição do próprio viver. Hoje, as escolas fornecem conhecimentos específicos, engessados e utilitaristas. Pensar a estrutura a partir de sua transversalidade ética exige reler a arte educação, onde a arte é tratada como disciplina, pelo conceito da educação pela arte, pela qual a educação se torna disciplina da cultura. Por fim, fica a última pergunta com promessa de resposta futura: “E sobre sua ida para o Ministério da Cultura?” – É importante salientar que o encontro ocorreu antes dos dois abaixo-assinados promovidos por

Fernanda Montenegro e Marilena Chauí, para substituição da atual gestão, sendo o promovido pela atriz diretamente direcionado a ter Danilo Santos de Miranda como ocupante da pasta ministerial. A resposta demora porque, visivelmente, a pergunta o constrange, e, ao vir, soa como disponibilidade: “Se eu for convidado, então te convido para uma nova entrevista”. Não tem como terminar o relato desse encontro, que deveria ter durado meia-hora, mas fez-se, generosamente, muito maior, sem me colocar agradecido e encantado. E Danilo, cá entre nós, na dúvida e com certa esperança, vou deixar o celular ligado para marcarmos a próxima, então. Fique à vontade para ligar. Durmo sempre muito tarde...

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3


32

te fo xt co tos o: R la : p U bo a Y ra tR FIL çã IC H o: Ia O FU CI La vId nO an de es ta L

O gRANDE hOMEM é AQUELE QUE SE INSISTE COMUM. O hOMEM IDEAL é TODO AQUELE QUE COMPREENDE A POTÊNCIA DE SUA gRANDEzA


2

3


CONTAMINAçãO

por kiko bertholini

bob wilson As aventuras de um ator/repórter e

fotos de ruy Filho e lucie Jansch

S

1 00

ou ator, não jornalista. Por isso, quando meus grande amigos ruy e Patrícia, editores desta revista, convidaram-me pra ir com eles à coletiva de imprensa de bob Wilson, diretor, iluminador, ator, artista plástico e mestre do teatro, confesso que fiquei meio inseguro. não pela coletiva em si, porque eu tava louco pra conhece-lo de perto e ouvir tudo o que tinha pra falar, mas porque minha missão era escrever um texto depois sobre a experiência. então, desculpe desde já, leitores. Juro que vou tentar ser o mais “jornalístico” possível.


O diretor Bob Wilson, num olhar preciso, durante a coletiva de imprensa no Sesc Belenzinho. À esquerda, cena de “A última gravação de Krapp”.


Depois de eu começar minha aventura, já pagando um mico de cara (a funcionária do SESC me perguntou “Qual é o seu veículo?” e eu respondi a placa do meu carro), chegamos ao SESC Belenzinho, bem antes da hora. Deu tempo de tomar um cafezinho, rever uma grande amiga, papear...papear...papear, e, quando percebemos, ele já estava uma hora e meia atrasado. Os funcionários e o próprio Danilo (coordenador geral do SESC) foram muito gentis e nos explicaram várias vezes que tiveram um problema na locomoção, mas que tudo já iria ser resolvido. Ainda assim, Mr. Wilson chegou quase duas horas depois do previsto. Enquanto a gente esperava, minha amiga comentou: “Será que ele ficou esse tempo todo preso no trânsito de São Paulo? Se ficou, vai chegar aqui bufando!”. Mas, ao contrário, Bob Wilson parecia feliz. Com a elegância de um lorde inglês, movimentos enxutos e precisos, e uma eloquência admirável, apesar de confessar estar com jet leg, começou contando, calmamente, um “causo” de uma viagem, em que ele tinha ido pra um festival de teatro, sido confundido com um executivo e levado do aeroporto numa limusine, até resolver o imbróglio, horas depois. Arrancou vários risos da plateia, conquistando todo mundo com seu jeito “simpaticão”. Isso tudo pra, em seguida, concluir que havia acontecido a mesma coisa com ele hoje, e que era um milagre ter chegado ali, pois, aparentemente, o motorista se confundiu, e o levava de volta ao aeroporto. Mas daí os jornalistas começaram a fazer as perguntas, e conforme eu assistia aquele cara responder com toda calma do mundo, esperando o tempo necessário do tradutor, eu ia cada vez mais achando ele uma figura genial. Aos 71 anos, esbanja modernidade no discurso, nas referências, no jeito de trabalhar. E, melhor do que isso, não fica puxando todo o crédito pra si, achando que chegou no auge do seu trabalho. É um curioso, e faz questão de deixar claro que é um apaixonado pelas artes em geral (poesia, música, artes plásticas), e que, conforme os anos foram passando, foi ficando cada vez mais desapegado da ideia de “resultado”, ficando cada vez mais ligado nos seus sentidos, em como deixar a intuição falar mais alto. Ao invés de chegar na sala de ensaio com uma proposta pronta,

pré-concebida, ele prefere sentir como que o conjunto de atores, aquele espaço, as cores, aquela música vão combinando e fazendo sentido pra ele. Chegar nesse nível de desapego, nessa altura da vida, é impressionante. Mas, mesmo assim, o resultado é sempre impecável. Além disso, esse texano - que não tem nada de americano, a não ser a cara de gringo -, não tem pudores em criticar o sistema de cultura de seu país. Fala que o governo de lá não pode investir um tostão em nenhum tipo de trabalho de outro lugar, e depois, elogia o Brasil, dizendo que nós temos acesso a uma cultura muito mais “globalizada”, e que isso é um grande privilégio, nos dias de hoje. Fala de Beckett, fofoca sobre Brecht e seus filhos gananciosos, conta detalhes das produções que se apresentarão no Brasil e do novo projeto, inédito, a ser desenvolvido a partir do próximo ano, com artistas brasileiros, durante sua permanência em São Paulo, e levanta duas vezes para fazer esquemas gráficos numa prancheta de papel, de como pensa as estruturas narrativas dos seus espetáculos. Tudo muito estruturado, quase matemático. A folha toda rabiscada, com nichos que se juntam por setas e que sempre acabam formando um movimento cíclico, deixando claro que esse resgate do início sempre interessa pra ele. Enfim, dá uma aula. Ele responde, ao todo, acho, que umas sete ou oito perguntas dos jornalistas, sempre desdobrando os temas em grandes respostas. E, com a mesma precisão e elegância com que chegou, a uma certa altura diz “it’s enough” (já chega) pega suas coisas, despede-se gentilmente, e sai de cena, deixando todos ali encantados com aquela figura que, não a troco de nada, é considerado um dos gigantes do teatro atual. Como em toda boa entrevista, fica um gostinho de “quero mais”, e eu tinha umas duas perguntas que eu queria fazer, sobre a opção dele trabalhar como ator no espetáculo novo e se acompanha seus trabalhos depois das estreias, mas confesso que, mesmo sem conseguir, saí de lá muito satisfeito. Satisfeito, feliz e louco pra continuar acompanhando quais serão as próximas peripécias dele no mundo das artes.


Bob e Samuel: encontro no palco de dois ícones do teatro contemporâneo

Wilson em cena de “A última gravação de Krapp”. À esquerda, gráficos demonstrativos de seu processo de criação, improvisado durante coletiva.


vertical

entre por juliano casimiro

início

THEaTron

Ainda assim uma ação: Dizer.

mesmo? AindA existe “de onde se vê”?

(quem diz, diz algo

ator (origens: instrumento de)

para alguém... e escolhe um caminho para dizer -

PlAteiA

esPectAdor

uma relação

texto se não somos puristas e não tentamos recuperar insistentemente esta estrutura mínima, nasce a BiDirEcionaliDaDE: DE EspEcTaDor

quem Age

para (co)composiTor

1 04

DE TExTo para iDEia


Ao tentar manipular a ideia no seu corpo, o suJeito será ele mesmo manipulado pela ideia. É Assim que o sujeito oFerece À ideiA. (deseje beber água e espere o copo vir até você!).

na ausência o impulso o objeto de interesse movimenta a matéria-sujeito; desloca a dimensão

biológica do corpo

e o ressignifica sócio e culturalmente.

se disponibiliza

se Permite AFetAr. A ideiA invAde A cArne e age sobre algo

o espaço investido de ação também é agente de corregulação do corpo que investe.

um corPo É Agido Por um obJeto. (enquanto investe sobre ele)

Do lugar de onde se vê:

não se vê corpo ou oBjETo o espectador terá sempre acesso a um entre

um espectador que olHa um espectador que olha, olHa o outro que olha o

EnTrE, que produz o novo ENTRE que pode ser olhado, que... olha-se uma estrutura biológica/material que se disponibiliza em uma investida sociocultural.

o pÉ

pressiona o

experimento a cena com meu corpo. Faço com meu corpo com que apareçam as materialidades da cena. Ao pressionar o chão com meus pés, evidencio sua existência

que

solo

(do chão) na mesma medida em que ele me permite dizer “tenho pé”. Ao espectador não será necessário o existe cHÃo e existe PÉ, mas o existe algo entre eles que o fará estar com este cHÃo e com este PÉ.


o corpo entregue à cena é (deveria ser) um corpo que possui tensões necessárias ao seu estado de corpo vivo; escolhas estéticas o pressionam em direção a outras tensões surgidas do estado interativo eu/outro/mundo (da cena) =

EnTrE

maTÉria É poTência EsTÉTica o corpo-interação, como aquele que se permite ser interpelado pelas iniciativas estéticas e a evidencia ao fazê-lo, pressupõe a garantia de sua individualidade e autenticidade como corpo-em-criação, já que a relação entre estrutura biológica (corpo) pressão contexto estrutura material (cena) é limitada e possibilitada em si mesma como digital do processo criativo de um determinado corpo frente a específicas materialidades.

criação É uma forma DE inTEração Eu/munDo A AçÃo, Ao PressuPor o mundo, um obJeto, o evocA, constrói um leque PArA A signiFicAçÃo e desestAbilizA ArrAnJos AFetivo-cognitivos

Na medida em que um ator investe acionalmente na relação eU-Mundo, euCena, ele se disponibiliza a regulações do “si mesmo” (self). Um percurso de

pErcursos inTErDEpEnDEnTEs

trabalho, portanto, estabelece um “mapa” de “ajustes” do Self. intencionar o corpo (e de alguma forma o Self) em

criação pelo trato com

uma relação estética é se

materialidades.

auto-encaminhar para uma

o espectador,

gama de transformações subjetivo-acionais.

do lugar que olha, experiencia o outro

olHAr com intervençÃo

olHar como inTErvEnção. em experimentação de si ao intervir na coisa.

constituição subjetiva no trato com o mundo onde as coisas existem materialmente e são compartilhadas. Surge de querer olhar as

intervenções subjetivo-acionais

possibilidades de interação entre Corpos e Materialidades em um bailar do tempo, do peso, do espaço e da fluência. Se quisermos,

1 06

Significação afetivo-cognitiva

vamos dançar com Laban.


o EnTrE é uma certa qualidade de TEmpo-pEso-Espaço-fluência que um corpo e um objeto são capazes de produzir no espaço do entre 2. corrA com A menor velocidAde que seu corPo É cAPAz, sem trocar de verbo, FruA A belezA estÉticA que HÁ no corPo que corre “lento”.

DiÁrio DE BorDo DE 13/11/2010

um corpo dialoga com a ideia - material original, se fricciona com ele e nos propõe uma primeira

coloração em cena. As primeiras tensões para além daquelas necessárias ao corpo vivo. os elementos da cena se friccionam em um movimento vertiginoso que coloca cada um dos elementos, inclusive os corpos, disponíveis à vertigem. A vertigem possibilita que os objetos de cena, quaisquer que sejam, com suas materialidades, movimentem os corpos; esses corpos passam a ser a ação mobilizada em última instância pelas ações, ou seja, substantivação. Por ser cíclico, esse último reorganiza a fricção com os originais... se o que acontece em cena acontece na plateia, e isso dito assim, sem contexto e sem maiores explicações pode soar estranho, esse pode ser o caminho para o teatro que eu acredito/gosto plenamente de fazer.

corpo-Em-inTEração Corpo-eM-vertigeM

qUAL o

LiMiAr

eNtre UM Corpo No CotiDiANo e UM Corpo eM CeNA?

o corPo tende ao outro da relação que pretende estabelecer com o mundo.

enquanto o esqueleto se erige, as carnes e músculos se desprendem dos ossos e as terminações nervosas conectamse com o espaço. As costelas flutuantes se abrem para a ação do diafragma. A respiração ativa o corpo e a voz flui.

um corPo em AçÃo. um corPo frente à FAlênciA da ideia original

o corpo-em-interação é uma estrutura alusiva - imagEns aBErTas conEcTaDas a ouTras TanTas imagEns As limitações do corpo ao lidar com as fricções propostas por iniciativas estéticas e o acesso do espectador ao ato criativo como um olhar para o entre faz com que a ideia original tenda à falência. a rElação corpo - maTÉria sErÁ sEmprE ouTra DaQuEla prEvisTa no projETo original.

o corpo, portanto, se abre para a criação do entre quando, na impotência de dizer o projeto original, persiste na ação: dizer


lembrAnçA

se o corpo não resulta como o projeto original, ele resulta como esquecimento uma fricção com aquilo que pode ser esquecido

esquecimento

o sujeito-criador está lançado na travessia de si e tem seu corpo como uma ruína, que, por ser ruína, tem as forças do projeto original, mas sempre estará decompondo-o (e a si) e gerando o novo: um novo olHAr.

A ação não é exclusivamente o que ela escreve no espaço, mas também aquilo que ela impôs como não-ação entre um corpo e determinadas materialidades. todo percurso acional contempla poTEncialmEnTE o que ficou apenas como possibilidade

A percepção depende sempre Do QuE poDEria EsTar ausEnTE e do que está destinado ao esquecimento.

O que não se desenvolve no tempo exerce forças, ainda que de tração, sobre o concretizado, e, sendo assim, não se pode falar em trajetória única do passado até o presente.

como É como se... como PoderiA ser como eu gostAriA que

o ator presenta o corpo de si em constante ressignificação afetivo-cognitiva no simples ato de estar para a observação

A estética não exibe a deterioração da ideia no corpo (do corpo), mas constrói o entre com o espectador exatamente na falência

A Auto-regulAçÃo só É Possível nA ocorrênciA do Fenômeno relAcionAl

pErcursos DE fricçõEs não rEalizaDas reminiscência

investimento sociocultural

ideiA ProPulsorA corpo presentado

1 08

expectativas

EnTrE

objeto investimento adicional

fricções

EspEcTaDor


o entre diz o sujeito-criador e sua instância de representação política, em um estreito diálogo com o passado e direcionado ao futuro, assim como também diz o objeto nas 4 dimensões de caracterização propostas por ernst boesch em sua teoria da Ação simbólica: a realidade material, a relação com outros objetos, suas qualidades enquanto signo e o objeto enquanto parte da relação eu-outro.

escolHAs estÉticAs sÃo investimentos enFÁticos nA construçÃo do EnTrE o obrA de Arte coloca o criador em confronto consigo mesmo A ação de confronto do si mesmo em um espaço de compartilhamento é (co)construtora de significados sócio-históricos que garantem aos objetos da interação o reconhecimento fenomenológico por parte de um grupo específico.

o esPectAdor oPerA com e se reconhece no espelhamento do caráter de travessia do corpo criador.

objeto como experiência compartilhada da falência do fenômeno A PresentAçÃo de si nA criAçÃo exige, no hic et nunc, A PlurAlidAde de indivíduos interdePendentes.

criação É alTEriDaDE e possui uma parte social presumida o sentido se constrói na consciência de que existe uma relação entre as experiências experiência criativa é um complexo de interrelações mediadas pelo corpo. As materialidades se friccionam e resultam estéticamente. A intersubJetividAde nÃo derivA dA subJetividAde, mAs sim o contrÁrio entretanto, aqui também persiste a bidirecionalidade.

o ator que cria estabelece um campo de autoregulação para

a insistência em se disponibilizar a tensões que a relação

si mesmo e estrutura acordos sobre os quais outras subjetivi-

de construção estética gera sobre a dimensão sociocul-

dades serão friccionadas. quem olha o entre, de onde o olha,

tural do corpo extravasa os limites da significação e as-

também será interpelado e mobilizará sua estrutura de repre-

sume papel crucial na reorganização da estrutura de in-

sentação sócio-política voluntariamente construída (selF).

teração e, portanto, da dimensão biológica do interator.

o corpo EsfacEla a iDEia E ExigE a insisTência


dod visitando

Domingos Varela

1 10

te fo xto to : s: RU ca Y U FIL vI H an O na

O teatro existente no invisĂ­vel da cena


d么


11 2

Domingos varela reflete sobre seus 30 anos nas coxias brasileiras.


Q

ue o teatro não se faz sozinho, sabemos, desde sempre. no entanto, quem são os outros que não estão sobre o palco? dentre muitas funções, uma possui a responsabilidade de preparar o palco, torna-lo perfeito ao espetáculo, reger a orquestra de contrarregras para que nenhum elemento falte ou algo não esteja devidamente pronto no lugar e momento certos. o diretor de palco, figura pouco discutida no Brasil, é qualificado por sua destreza em resolver os problemas e gerenciamento de equipe. outra função igualmente desconhecida do público, por aqui, é a de cenotécnico. nada menos do que aquele sujeito responsável por tornar reais adereços, cenários, efeitos e o que mais for necessário. Criar cada detalhe de uma cenografia, por exemplo, demanda capacidade do cenógrafo e conhecimento estético e histórico. todavia, é o cenotécnico quem fará a criação existir. É ele quem dá as formas finais ao idealizado e torna possíveis sonhos absurdos. domingos varella é dessa figura de teatro que já não se encontra mais. Reúne a capacidade de liderar um palco, enquanto é, reconhecidamente, um dos mais precisos e respeitados cenotécnicos do país. Basta dizer que seus

trabalhos incluem parcerias constantes com Bete Coelho e Muriel Matalon, além de uma década coordenando a técnica de palco da Cia. de Ópera seca, de Gerald thomas, entre outros. Frente a tanta singularidade, a revista antro Positivo se viu estimulada à visita. sentamos no café do teatro Raul Cortez, no Fecomércio, onde domingos prepararia, ainda naquela tarde, o cenário de dom Juan, dirigido por William Pereira. Luzes apagadas, servimo-nos da tênue luz lateral que nos alcançava pela janela. E ficamos nisso, a cafete-

É preciso se adequar às pessoas. A essa nova qualidade de pessoa ria não estava aberta. a gentileza de domingos fez com que, mesmo nesse cenário pouco favorável a uma conversa, continuássemos. E logo desabafa sobre a qualidade dos cenotécnicos mais jovens, di-

zendo que se preocupam mais com o show, com os reconhecimentos, do que com as técnicas e habilidades. as notícias não são boas, portanto. se ele, que já pisou em centenas de palcos brasileiros e tantos outros internacionais, afirma que os jovens não estão de fato preparados, é de se pensar o que teremos em alguns poucos anos. domingos, ou dodô, para os mais próximos, iniciou sua carreira após assistir a um encontro organizado no teatro João Caetano, entre Fernanda Montenegro e Hamir Haddad. Entrou no teatro pelas mãos da cenografia, e nunca mais saiu. Chegou a viver as proibições no final da ditadura, e comenta que teve a oportunidade de aprender muito da prática pelas condições veladas com que era obrigado a trabalhar. Logo estava nas coxias de artistas como tonia Carreiro, onde, diferentemente de como a cenotecnia é administrada hoje, os cenários eram construídos no próprio palco, de maneira artesanal, nas medidas exatas do espaço, beirando perfeições absolutas de estruturas e acabamentos. não mais assim, frente a quantidade de espetáculos que dividem o palco durante a semana, o cenário passou a ser feito do lado de fora, nos quintais de galpões distantes, para depois serem adaptados


e retrabalhados nos minutos finais que antecedem a estreia. Com os custos desses espaços, das mãos de obras, dos deslocamentos dos cenários, o tempo de construção e acabamento foi diminuído. Para domingos, a qualidade da pesquisa técnica também não é a mesma. “naquele tempo, as pessoas pesquisavam mesmo”. tudo ficou urgente, insiste, o tempo da experiência se perdeu. Ele aponta, ainda, o uso excessivo da tecnolo-

gia durante todo o processo, argumenta chegar a atrapalhar o desenvolvimento criativo, deixando o trabalho mais árido, pois a máquina tira o tesão da experimentação, é preciso acertar e não mais descobrir. de toda forma, entre ganhos e perdas, o que se perdeu mesmo foi o ritual de criação teatral. domingos levanta outra questão fundamental, a necessidade das produções, sobretudo as grandes, de agregar, durante o processo e

a temporada, diversas panelas, artistas e técnicos nem sempre adequados à linguagem requerida, mas que, por conta de um mercado de pequenos poderes e influências indiretas, acabam se juntando ao trabalho, tornando-o confuso estética e conceitualmente. assume que essas parcerias lhe são fundamentais, pois, quando corretas, ajudam-no a perceber seus erros ou limites. no entanto, as novas gerações nem sempre se aproximam

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Escada de acesso à plateia no Teatro Raul Cortez, em São Paulo.


Retroceder. Voltar a sujar as mãos. Essa é a questão do teatro

das áreas técnicas por interesse, mas como meio de entrar, de alguma maneira, em um processo. não é raro, como confirma, técnicos que buscam estar nas coxias como forma de um dia se tornarem atores. Esse não saber o que se quer faz com que muitos se coloquem de maneira dissimulada, com a arrogância de quem não está ali

para aprender ou desenvolver nada, mas para marcar território e conquistar espaços futuros. Falta gente que faça o que se disponha a fazer, lamenta. Falta parceria, interesse pela função, pelos cuidados pequenos que muitos se veem desobrigados a realizar, seja uma pequena limpeza, seja um rápido reparo. o pouco comprometimen-

to, pode ser a explicação para os constantes atrasos, para a dificuldade em lidar com comandos, por exemplo. E, nesse ponto, a questão não se limita apenas aos técnicos, mas, também, muitas vezes aos próprios atores. Por fim, Domingos retoma aquilo que lhe faz permanecer atrás do palco, sua paixão 15

1


pelo teatro, pela eficiência, pela magia do ritual, a certeza de tudo estar devidamente como deve estar para que o artista possa se surpreender e o público receba o melhor. “Faço o que o teatro precisa, minha função é dar conforto. Faço o necessário para bastar apenas o espetáculo. Uma magia que se perde na falta de vocação dos jovens, instrumentais e vo-

cabulários que se guardam em poucos profissionais, pela falta de interesse dos novos. Mas o mais preocupante é percebe que o teatro perde a chance de ser teatro, torna-se máquina, defeito disfarçado. o único suspiro nisso tudo é saber que domingo ainda permanecerá escondido nas nossas coxias por muitos outros anos. E se serve de ajuda, um conselho:

aproveitem! não é todo dia que se pode chegar perto da história e da competência, ao mesmo tempo. domingos é dessas unanimidades óbvias. E, para quem já teve a oportunidade de dividir os bastidores com ele, ainda que exigente, ainda que eternamente guerreiro, certamente uma das pessoas mais lindas e apaixonadas das coxias brasileiras.


PoR Tuna dwek


outros tempos por ruy filho

Flores murcham, livros continuam

Uma avenida coberta por rosas como manifestação, a montagem de Hamlet por um dos maiores diretores de teatro, a livraria francesa de livros em inglês, onde os maiores escritores se encontraram. Fatos tornados ficção. O dia seguinte, após o inesperado.


N

aquela quarta-feira, como se soubesse, o rio Sena decidiu andar mais lento, observando a movimentação estranha de personagens que atravessavam a Pont Neuf, após a missa realizada na Notre Dame, acinzentada que estava pela opacidade das nuvens agressivas que, também como as águas, decidiram estacionar por ali. Faltam menos de duas semanas para o Natal. Os sinos tocavam como nos séculos passados. Mas não havia festa. O cheiro das flores, espalhadas pelas avenidas cobertas de neves raras, vinha desde a Champs-Élysées. Tantas, que só poderia ser o acontecimento o pior. O governo, assustado com as reações, logo foi para a televisão e disse se tratar de uma manifestação dos criadores de rosas. Ora, onde já se viu uma avenida ser coberta por flores como protesto a alguma coisa? Não. Paris chorava. E a morte não tinha mais como ser desmentida. Entre carros, bicicletas, charretes, carruagens, motos, cavalos e toda sorte de transporte, aqueles homens, recebidos em silêncio por um único gato, invadem a casa e seus dois andares apertados, dentre pequenos edifícios do Quartier Latin. Entram e saem. Levando mochilas, malas, bolsas, caixas. Ou equilibrando com as próprias mãos, pilhas desleixadas de livros velhos. Muitos. Dezenas cada. Centenas ou mais, ao fim. O gato, coitado, atordoado com tamanho movimento, permanece invisível. Fecha os olhos e se recorda dos raros cafunés que recebera nos últimos anos. O velho, seu dono, no gasto de seus 98 anos, quase não conseguia mais se abaixar e acarinhar o bichano. Fiel, no entanto, as leituras de poemas, quando deitados se preparavam para o dia seguinte. E, agora, o felino de pelos gastos, tão velho quanto, se despedia das palavras de suas insônias, assaltadas pelos seus próprios criadores. Passaram pela porta, Hemingway, Joyce e Beckett, Arthur Miller, Durrel, Burroghs, Corso, Gisnberg. E seu preferido, Jack Kerouac. Ele sabia que era um gato estranho. Contudo, insistia em sua liberdade. Adorava as aventuras, ainda que respeitasse os poetas e dramaturgos. Só que Jack o lembrava a América, o transportava para casa. E, naquela idade, o gato só sonhava com uma aventura a mais e o bom sanduiche de peixe e pasta de amendoim. Os arroubos desesperados dos escritores não deram conta de levar sequer um décimo dos livros reunidos durante a vida por George Whitman. A Shakespeare & Co., a livraria mais importante da cidade, sobreviveria sem alguns exemplares. Sim, desde que houvesse outro para cuidar das goteiras e receber os mochileiros. Só que não havia testamen-

to. Não haveria mais ninguém. O gato, enfim, abre os olhos para constatar sua solidão. O 14 de dezembro terminava assim. Na vasilha, a ração, com um pouco de juízo, poderia durar dois ou três dias, e só. No dia seguinte, um homem, estranhamente afetado, como de outra época, invade aos berros a livraria, esquecendo-se dos modos, das trancas, dos livros raros que atropelava sem qualquer pudor. Outro, baixo e sem nada entender, o acompanhava com dezenas de papéis. O invasor não era francês, isso era fácil de responder. O baixinho, sim. Eles resmungam, trocam informações. Assinam documentos. E apenas o estrangeiro permanece. O gato o observa. Talvez não fosse esperto se revelar agora. O homem anda, mexe com pompa em alguns livros, resmunga mais um pouco. Odeio essa cidade, esses franceses porcos, por que isso foi acontecer comigo? O gato gostaria de lhe dizer, pode ir, suma, fuja, corra, volte para o inferno de onde saiu, só me deixe dormir mais um pouco. Não acredito, e ainda tinha um cachorro? Tinha?, pensou o gato, só me faltava essa. Essa mania idiota por cachorros! E percebeu sua chance. Num pulo magistral, que não executava a décadas, o gato se joga para cair no colo do outro. Que nada. Pouco saiu do chão, e acabou como um livro que despenca da prateleira, aos seus pés. Surpeendentemente, foi recolhido. E acarinhado. Como você se chama, gatinho? Nascia ali sua mais nova e deliciosa amizade. Foi um natal incrível. E um réveillon também. O gato descobriu que o estranho era apaixonado pelas palavras. Passava o dia lendo em voz alta e escrevendo poemas. Reorganizou as estantes, mudando a estrutura dos assuntos. Trouxe para frente os livros do século XVI, e deixou ao fundo, sobretudo, Beckett. Não o colocou junto aos títulos de teatro, mas separado, com uma plaqueta improvisada de orientação, na qual se lia: livros propositadamente indecifráveis. Joyce recebeu a sua também, algo como compêndio da construção do homem confuso. Hemingway, poesias da alma em devaneio de solidão. Quanto ao seu amado Keruac, foi jogado ao canto, junto com a maioria dos escritores do século XX, identificado por blá blá blá. De resto, ainda que os frequentadores nunca mais conseguissem encontrar seus autores, tudo ia bem. O gato estava feliz e gordo. O homem se acostumara a comprar diariamente croissants, sem nunca deixar de tomar o seu chá da tarde. Preto, sem açúcar, com um leve toque de limão nos dias mais quentes. Chovia muito naquele verão. Paris era invadida por tantos turistas que não se podia andar nas ruas.


1 20

A livraria, depois da notícia da morte de George, lotava. O homem impediu os viajantes de dormirem lá. Isso era uma pena. O gato sentia saudade do movimento noturno e de espiar os namorados entre os corredores. Mas, como argumentar, ao dia em que brasileiros hospedados roubaram alguns de seus livros? Cheia, durante o dia; e sombria como um conto de Poe, durante a noite. Até que, as três e meia, um jovem batesse à porta com tanta força, que o homem decidiu deixa-lo entrar. Obrigado, senhor. Fica à vontade, mas peço-lhe que não toque em nada. O fato do jovem aceitar o chá e não café, fez com que ganhasse alguns pontos. O que faz aqui, tão tarde? Perdoe, senhor, disse encabulado o rapaz, o senhor está aqui, desde quando? Não lhe respondeu. E, por que, deveria, pensou o gato, que abusado, esse visitante! Não me entenda

errado, senhor, tenho as chaves, só que não serviram, por acaso trocou as fechaduras? O homem se levantou ofendido. Saia, essa livraria é minha por herança, não o quero aqui. Ainda calmo, o rapaz lhe disse que havia algum engano, pois também era ele herdeiro do estabelecimento. Impossível, esbravejou o homem. Tanto quanto o senhor existir, até aonde me informaram, sou o único! Houve uma tentativa de empurrão do homem ao seu concorrente. Nada mudou. O invasor não sairia. Posso lhe perguntar qual o seu nome, senhor? Que diferença isso faz? Nenhuma, talvez, por isso não vejo problema, o senhor pode me dizê-lo? O homem percebe que agora os papéis se inverteram, ele é o suspeito de alguém desconhecido. Retruca com você não me disse o teu. W. N. Hamlet, senhor. As palavras surtiram tanto efeito que o homem, sem qualquer


Entrada da livraria, em Paris. Abaixo, o ator William Nadylam, no papel de hamlet, na versão dirigida por Peter Brook.

motivo concreto que o gato pudesse entender, passou a rir, de modo tão descontrolado, que ambos gargalharam juntos. Não seja ridículo, você não pode ser Hamlet. Não vejo o que me impede, senhor. Simples, respondeu o homem, segurando novamente a xícara de chá, você é negro, e Hamlet é dinamarquês. E como pode saber? A risada se mantinha apenas nos lábios do homem. Quem, melhor do que eu saberia, olhe onde você está? O jovem caminha de um lado a outro, por pequenos passos. É linda a livraria. Eu sei, retrucou. Mas, senhor, ainda não me disse quem é, e ainda quero o que é meu. Permaneceram horas em silêncio. Foi o homem quem retomou o assunto. Digamos que você seja Hamlet (que loucura, um negro), a Shakespeare & Co. deve ser tua por isso?, escute, rapaz, respeito tua ou-


sadia, mas você, negro como é, jamais seria um príncipe, principalmente de um clássico, e principalmente desse clássico, me perdoe se pareço rude, negros não são príncipes, nem no mundo real, nem no teatro. E assim ficaram. O gato não piscava, adorava assistir as nuances das respirações transbordando em silêncios as buscas por respostas. O que surgira naquele canto da livraria era a mais fascinante das poesias noturnas. Senhor, estou cansado, vou me deitar e amanhã resolveremos como posso ajuda-lo a sair; como lhe disse, sou Hamlet, goste ou não, e negro, como a noite lá fora, sim, o senhor, por sua vez, fique tranquilo, arranjarei acomodações dignas em outro lugar como gratidão por ter cuidado daqui. Foi tão sem aviso que o homem jogou sua xícara contra a parede, que o coitado do gato quase enfartou. Eu sou o único herdeiro, distante, é verdade, mas o único. Então, por favor, diga-me quem é? O homem se aprumou, olhou fundo nos olhos do oponente e disse, em velho e bom tom inglês, William Shakespeare, em pessoa, parente distante, a quem George homenageou ao mudar o nome da livraria. As noites seguintes foram bem longas.

O verão se deu duas vezes, e chegava mais um inverno. As coisas se resolveram. William e Hamlet passaram a dividir a livraria e a se aceitarem. Cada um responsável por certos afazeres. William escrevia, recebia os jovens escritores, dava palestras aos visitantes, organizava encontros, e já demonstrava certa paixão por uma loira inglesa chamada Jéssica. Sra. Rowling, para os não íntimos. Hamlet, cuidava da limpeza dos banheiros, das poeiras dos livros, das vidraças, ia ao banco e supermercado, e tinha pouco contato com o público. Viviam bem, assim. William recriando a nobreza dos tempos áureos da livraria, Hamlet perambulando pelos cantos, meio que reclamando de tudo, meio perdido entre tantas palavras e pensamentos. Enquanto o gato, bom, esse vivia longe, agora. Fugiu em segredo com a loira escritora inglesa, já extremamente famosa. Foi filmar a história de um bruxinho. Passou seus últimos dias, ao lado de uma jovem atriz bruxinha, como seu animal de estimação, tendo como última amiga, uma esquisita e pentelha coruja branca.


Por ruy filho


homenagem

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Marcelo Olinto e Bel Garcia em cena de “Ensaio. Hamlet�.


at cia.d or os es

RE DO SIG FIN NIF GIMICA ENÇÃO TO

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Gustavo Gasparini

Bel Garcia

André Barros

Eleonora Fabião

Enrique Diaz


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foto: Vicente de Mello

Alexandre Akerman

Marcelo Valle

Anna Cotrim

Marcelo Olinto

Susana Ribeiro


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V

Anna Cotrim e Enrique Diaz, em cena de “Tristão e Isolda”, 1993, em foto de Thiago Moraes.

amos supor que tudo se iniciasse mesmo em 1987. Quer dizer que estávamos em plena falência do Plano Cruzado, que derrapávamos entre a dívida externa descontrolada e a inflação, que Sarney, então presidente, enquanto errava sucessivamente na economia, acertava ao promover o início da Assembleia Constituinte. Tempos confusos, entre niilismo absoluto e esperanças de liberdades e conquistas. Era de se esperar que os jovens agissem. Mas pelo teatro? Que grupo de irresponsáveis faria da arte sua ação de contribuição ao país? E, como disse, temos que acreditar que as coisas se iniciem assim, meio que de repente. Engano. Nunca é. O teatro se dá aos poucos, vai se construindo, colando movimento a movimento. E um grupo nasce. Alguém permanece. Outro recria. Outro resignifica. E o grupo se forma como identidade. E as coisas surgem como podem surgir. Portanto, aqueles jovens irresponsáveis, trancados nas salas de ensaio, enquanto o Brasil procurava ajuda, vinham de outra época, se é pra dizermos a verdade. Foram crianças, quando a liberdade era lenda. Foram crianças, num instante em que o Brasil sequer sabia quem poderia ser. Mas, quando jovens, sabiam. Sabiam talvez de algo que ninguém mais vira. Talvez escondido entre pressentimentos, de maneira sutil e casual. Talvez nem soubesse mesmo de nada, e por isso, foram criar o desconhecido. Foram aos palcos revelar a ausência. Aqueles jovens deixaram muito rapidamente a ingenuidade, tornaram-se artistas cedo demais. Enfrentaram a potência dos acertos cedo demais. E, ao contrário do comum, da previsibilidade comum, permaneceram. Até hoje. Até o amanhã, certamente. A Cia. dos Atores registrou o imaginário de sua geração e, impressionantemente, consolida a potência de suas observações se revelando tão necessária às novas gerações, que muitos são os jovens embebidos por sua linguagem, técnica, estrutura de narrar e sotaque. Porque Enrique Diaz tem um sotaque próprio na fala, no jeito de conter as frases, de se duvidar, de ser positivamente inconcluso. O Brasil mudou muito nesses anos todos. Tudo bem, nem tanto, se pensarmos que Sarney vagueia pelos corredor do Planalto como uma sombra indestrutível. As liberdades conquistadas se confundiram com uma espécie de policiamento do outro, e as pessoas perderam a mão no tratamento das diferenças. Pouca coisa se confirmou na maneira de agir dos políticos. E muito foram os ganhos de fato para as pessoas comuns. Mas a Cia. dos Atores e seu impressionante Enrique continuam. Caminham. Inquietos. Decisivos. Humildemente oferecidos ao público e artistas como possibilidade de termos no teatro um encontro mais generoso com os valores humanos. Somos errados sim. Somos confusos mais do que devíamos. E os espetáculos da companhia refletem nossas carências, nossos fracassos, nossas idiossincrasias. E muito do nosso humor ridículo. E muita da nossa ingenuidade. E muito da nossa maneira de construir a história e nossa sobrevivência. Falem o que quiserem, mas a Cia. dos Atores é, sem dúvida, a experiência teatral crítica mais divertida que temos. Saber dizer e fazer o dizer são suas grandes criações. Um teatro mágico que se nega falso, que se descontrói como criação, para tornar a mentira a verdadeira máscara do discurso. Um teatro de atores, de grandes intérpretes, e não de personagens. E não de seguranças. A Cia. dos Atores é assim, única, fundamental. A cara mais inventivamente formidável do nosso tempo.

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Susana Ribeiro e Enrique Diaz, em cena de “Tristão e Isolda”, 1993.


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“- EXISTIU! - CAIXA! - ...TSk! - ...(pEqUEno lApSo) E Um TIjolo SE qUEbrA! Esta foi a primeira experiência ao assistir “A bAo A qU”. Desde então todos os anos podemos ver um espetaculo novo da Cia. Dos Atores, uma cia que trouxe ( poderia aqui usar muitos adjetivos: competência,

arrojo, criatividade, modernidade..) sobretudo lEVESA E HUmor, e que marcou de forma acentuada o nosso jeito de encarar um novo trabalho. multitalentosos esses artistas diretores, produtores, figurinistas, cenógrafos, que com uma displicência muito elaborada ocuparam o panorama teatral de forma definitiva.” LEOpOLDO pACHECO

ator

À esquerda, Bel Garcia, em “A Bao a Qu - um lance de dados” (1991). Abaixo, cena de “A Morta”(1992), com Susana Ribeiro e André Barros. 33

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Marcelo Olinto em cena de “Bait Man”, com direção de Gerald Thomas (2008). Foto de Dalton Valério.


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Cena de “Branca como a neve”, de 1997, com direção de Marcelo Valle e Marcelo Serrado.


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“roTEIro DE Amor ou Um VErÃo Em CompAnHIA DoS ATorES

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Então, o filme começa no final do século passado. Talvez no ano de 1994. Eu era uma bailarina (ou uma aspirante a qualquer coisa do gênero) do grupo da coreógrafa Suzana Yamauchi e participava de um dos eventos do projeto multidisciplinar Arte/Cidade, realizado no antigo matadouro da Vila mariana. Ensaiávamos nossa coreografia deslumbrante e maluca ao som de Arnaldo Antunes, numa sala ocupada pela artista plástica Carmela Gross. A sala ao lado, linda, toda vermelha, chamou minha atenção. Descobri aos poucos que era uma obra do marco Giannotti. E, entre um ensaio e outro, consegui assistir um trecho da performance que alguns atores apresentavam ali. Fiquei encantada com aquilo. O espaço, os livros, muitas velas e, no curto ensaio que pude assistir, atrás de uma pilastra, dois atores jovens, fortes, que me despertaram uma súbita vontade de mudar de sala. Talvez dando um salto derradeiro na minha carreira de bailarina e pousando leve no teatro e na palavra da sala ao lado. Anos mais tarde vim a saber que aquele trabalho era da Cia. dos Atores: Cidades Invisíveis. E os atores, bel Garcia e César Augusto. Corta. Ainda século passado. não me lembro muito bem, mas acredito


que toda a minha turma da Escola de Arte Dramática tenha faltado na aula, naquela noite que entramos em conjunto num teatro para assistir melodrama. posso não me lembrar mais da peça com detalhes. Mas guardo a sensação que tive na mesma gaveta de preciosidades, onde guardo a delícia de ler Grande Sertão: Veredas sem saber o final de antemão, ou a epifania de descobrir o Jogo da Amarelinha na estante da minha mãe e entrar pra sempre no jogo singularmente plural de Cortázar. Corta. Na última turnê da peça Gaivota, tema para um conto curto, realizada em novembro de 2011, eu comentei com Enrique Diaz, o diretor, que um dos meus desejos, antes de morrer, seria fazer pelo menos uma vez o Ensaio.Hamlet, peça fundamental do meu maquinário de inspirações. Em dezembro do mesmo ano, já em casa, Kike me liga e me convida para uma pequena turnê que seria realizada em São paulo, no SESC belenzinho, em fevereiro de 2012. Ele certamente não estava adiantando em nada o fim da minha trajetória nessa vida, mas durante as seis apresentações que fizemos, todos os dias eu agradecia em silêncio e entrava em cena como se fosse a última vez. Querendo aproveitar cada segundo, cada palavra, cada vírgula, cada troca de olhar, cada respiração da peça. Durante a semana de ensaios de Ensaio.Hamlet, no rio de janeiro,

eu secretamente desejava que aquilo não acabasse mais. Eu ficaria ali, ensaiando com eles, daquele jeito meio caótico mas essencialmente vivo e (principalmente) divertido por muito mais tempo. num desses ensaios, dei uma fugidinha para a cozinha da sede da Cia. dos Atores para pegar uma água na geladeira. Vi ali um imã onde se pode ler: eu (coração) a Cia. dos Atores. Imediatamente descolei o imã e pedi de presente para Bel Garcia, que generosa como ela é, não me negaria de forma alguma o regalo. É o único imã pregado na minha geladeira, bem na altura dos meus olhos. para que todos os dias eu me lembre de como é bom fazer teatro, de como é bom celebrar o começo dos nossos cabelos brancos, a consciência da morte, o tempo que passa e a vida com seus presentes. Eu amo estar em companhia dos Atores.” ISABEL TEIxEIRA atriz

À esquerda, Marcelo Olinto em cena de “Cobaias de Satã”(1997). Nesta página, cena de “João e o pé de feijão”, com George Bezerra e Bel Garcia (1996), com direção de Marcelo Valle. 2

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Cenas de Ensaio. Hamlet (2004). À esquerda, Marcelo Olinto e Fernando Eiras, e, à direita, Bel Garcia.


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Cenas da montagem atual de “Ensaio. Hamlet”, com Cesar Augusto (acima, à esquerda), Emílio de Mello e Bel Garcia. (2012), em fotos de Bob Sousa. 2

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“Entrei no teatro do Sesc pinheiros e a as cadeiras da platéia estavam cobertas por tecidos brancos. Fomos encaminhados pelas escadas, direto ao palco. Ali uma arena branca, alguns atores, cadeiras e uma arquibancada nos esperavam. Confesso que a cena de teatro em Sp me ocupa todo o tempo livre e mesmo assim nunca assisto a tudo o que gostaria por aqui. Também por isso, pouco conheço da cena de outras capitais e apenas havia ouvido falar na Cia doa Atores. Conhecia alguns atores da companhia, e tinha muita curiosidade de poder ter um olhar mais atento para o trabalho do Enrique Diaz


como diretor. não acredito em bom ou mau teatro, mas sim no teatro que me emociona ou não. Assisti a montagem de A Gaivota e fiquei profundamente emocionado. pra falar pouco, o que mais forte me tocava era o fato do espetáculo usar uma forma de apresentação que permitia que o meu olhar fizesse escolhas. Em cenas etinerantes e sobrepostas eu podia escolher o que olhar e em que ordem. Como se meu olhar ali no improviso, complementasse o trabalho do diretor. me interesso por teatro com estética e beleza. Também pelo teatro que oferece sensações ao espectador.

Isso claro somado a grandes atores e interpretações e uma direção com personalidade. E ali eu encontrei tudo isso. Era uma mostra de repertório da Cia dos Atores que o Sesc pinheiros nos presenteava. Depois desse dia várias vezes eu voltei para rever aquele mesmo espetáculo e ainda assisti às lindas montagens de Ensaio.Hamlet e Melodrama. Desde então sigo Enrique e sua Cia dos Atores por onde eles passam e tenho recebido deles grandes e saborosos presentes.” FAuSE HATEN estilista

Cenas de “Rua Cordelier” (1991), com Susana Ribeiro (à esq.) e André Barros e Marcelo Olinto, em foto de Claudia Garcia. 2

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Felipe Rocha, Drica Moraes e Marcelo Olinto em cena de “Notícias Cariocas” de 2004, com direção de Enrique Diaz e Ivan Sugahara, em foo de Claudia Ribeiro. À direita, Anna Cotrim e Drica Moraes em “Só eles o sabem”(1993).


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À esquerda, Bel Garcia e Gustavo Gasparani (foto de Chico Lima) e, nesta página, Marcelo Olinto e Cesar Augusto, em cenas de “Melodrama”, em 1995.

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Gustavo Gasparani em“Meu destino é pecar”, com direção de Gilberto Gawronski (2002)

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Marcelo Valle e Letícia Monte em cena de “A babá”, de 1994, com direção de Cesar Augusto.

Bel Garcia e Cesar Augusto, em cena de “Cidades Invisíveis”(1993).


“Cidades Invisíveis”, com Bel Garcia e Cesar Augusto (1993)

Acima, à direita, Thierry Tremouroux em cena de “Apropriação”, com direção de Bel Garcia, em foto de Dalton Valério.

Álamo Facó no monólogo “Talvez”, com direção de Cesar Augusto, em foto de Dalton Valério.

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Susana Ribeiro, Ernane Moraes e Beth Goulart em cena de “Tristão e Isolda”, 1996, com direção de Enrique Diaz e Cesar Augusto.


“Perguntei: Ao César Augusto se podia estrear uma peça no seu festival. Ao Enrique Diaz se podia ser seu colaborador. Depois estudei e perguntei: Ao César se podia estrear outra peça no seu festival. Ao Enrique se podia ser seu estagiário. Depois trabalhei e perguntei: Ao Cesinha se queria ser meu diretor. Ao kike se podia ser seu ator. Agora pergunto aos meus Amigos Cesinha e Kike: Vamos sair? Falar? Dançar? Trabalhar? A bao A qu? Aos dois digo o tempo todo: Te Amo. À Cia dos Atores toda minha Admiração.” MICHEL BLOIS

ator

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foto: claudia garcia

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Cenas de “O Rei da Vela�(2000), com Malu Galli, Marcelo Valle e Drica Moraes.


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Cesar Augusto e Marcelo Olinto em cena de “O enfermeiro”, de 1997, com direção de Cesar Augusto.


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crítica. x2 por Luiza Novaes e maria teresa cruz

filha, mãe, avó e

texto

Gabriela Leite Direção

Guilherme Leme Elenco

Alexia Dechamps e Louri Santos

maria teresa cruz: Na peça, ela aborda um aspecto da prostituição inserido em um contexto de ditadura. Acha que as questões morais da prostituição nessa época eram mais agudas que hoje? LUIZA NOVAES: Acho interessante ver por esse prisma, uma nova forma de abordar um dos temas mais pesquisados no Brasil contemporâneo, se tratamos de arte, de guerrilha... Pessoalmente, nunca tinha pensado como um tema a ser analisado, e, nessa época, creio que acrescentou e muito, a vida cotidiana em um prostíbulo num período ditatorial... também, os valores e a moral e a política perpassam os lugares. Estamos numa febre de escritas femininas sobre essa profissão, que me diz? mtc: A Ditadura cerceou muitas liberdades. Incluindo a sexual. Eu vejo que é difícil cindir “as liberdades”. Quem

tem esse espírito, esse desejo, esse pensamento, essa visão de mundo acaba transbordando o espírito para todos os aspectos da vida... Gabriela foi mais que uma prostituta, virou ativista política. Mas, honestamente, me incomoda o fato de Gabriela se apresentar como heroína da causa, como bem sucedida. Lembrei da garota de programa que teve seus quinze minutos de fama, a Bruna Surfistinha. Tem alguns aspectos semelhantes na história das duas, e isso me incomodou, algo que me faz pensar na prostituição como redenção. Questionável essa glamourização. LN: Admito que nunca acreditei que o tema fosse parte dos meus assuntos, afinal, era a corrente foucaultiana que ficava com esses espinhos. Mas fui buscando na minha caixinha do conhecimento a Madalena, a Sarah, que era esposa de Abrãão, a

qual ele apresentava como irmã em diversas cidades, a mulher que chorou aos pés de Jesus, bem como a mulher samaritana que também não era tão pura assim. Mas o que me chamou mais atenção, e gostaria de destacar, foi a fala sobre os intelectuais serem moralistas e preconceituosos... mtc: Essa frase, quase despercebida, sobre a perspectiva de superioridade da intelectualidade, imposta por ela mesma, é algo muito importante de ser pontuado. Mas fico me perguntando, Luisa, se havia alguma diferença no “tratamento” das prostitutas pelos moralistas de hoje e dos anos de chumbo. O que você acha? LN: Libertinos e devassos, desde que assumidos, são sempre bem vindos em diversas épocas, lembrando que as prostitutas gregas eram as únicas mulheres que po-

p


puta uma entrevista


diam discutir política... Gosto da ideia de ela ter cursado filosofia, ciências sociais, dá uma bagagem incomparável, por conta de ser uma ferramenta para ativar seu discurso. Creio, não como representante! Apesar que, em todas as esferas, sempre parece que precisamos de alguns, não? Bom ou ruim, não? E a encenação como ficou? - pausa - Se escrevem livros, fazem filmes, pelo menos estamos vendo pessoas discutindo o tema. Como elas são tratadas no dia a dia, acho outro problema... E tem outro ponto, aprendi muito com a aula de diferença entre o gigolô e a cafetina...

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mtc: Os intelectuais moralistas e preconceituosos! Certamente, a bagagem que as ciências humanas puras nos dão é fundamental para uma compreensão do todo, das idiossincrasias. Contudo, me passa a impressão, muitas vezes, que esses intelectuais (ou alguns deles, ou muitos deles, não sei...) se colocam acima do bem e do mal. E isso é realmente perigoso. Porque, a certa feita, quando você se coloca acima do bem e do mal, você perde a capacidade de afetação (aqui no sentido radical da palavra - de afetar - afeto). Fico pensando o que Gabriela vivenciou nos anos de prostituição, pessoas

com manias, problemas (psicológicos, físicos), pessoas loucas, pessoas que viviam de aparência, deve valer mais como conhecimento real do que alguém que fica teorizando sobre isso. O que acha, você que também se dedica ao estudo aprofundado de temas, disso? LN: Tê, penso o seguinte, achei interessante a posição dela de ver a prostituta como a amiga do homem, não a que compete com a mulher, aquela que vai realizar as fantasias que ficam escondidas. Lógico que, como mulher, preferia que essa realidade fosse alterada, que os homens conseguissem enxergar que, uma pessoa com quem você se relaciona, pode e deve ter diferentes prismas, no sentido mesmo de ser multi. Não sei se me faço entender, pode ser “celibatária” ou “fiel”, mas na relação consegue assumir outros papéis... Queria fazer um tratado afirmativo, creio que ando influenciável, no sentido de que um bom argumento tem tido suficiente força para me convencer até mesmo de absurdos... E o arrependimento dela? Isso realmente me bateu forte... mtc: Lu, é justamente isso que faz a prostituição continuar existindo. Claro que tem a rentabilidade, o quesito mercadológico,

muitos ganham com a prática do sexo mediante pagamento. Mas há um aspecto sociológico muito arraigado na sociedade. Um moralismo inato. Uma culpa católica cristalizada na cabeça de todos nós, antes mesmo de nascermos. Se livrar dela é o grande desafio, na minha opinião... Não sei se concorda. Como você disse, algumas linhas acima, se assumir diante de todos com um elemento ou posicionamento transgressor é difícil. Sempre há a preocupação com o julgamento do outro. Por isso, liberar as fantasias, que todos temos em maior ou menor grau, pode “não pegar bem”, nessa sociedade nada laica. Por isso, “a sociedade da moral e bons costumes” (e nesse sentido vejo muito esse conceito no período da ditadura ensinavam isso na escola) só podia se liberar no escuro, ou seja, na zona, com as putas, sem medo do jugo, da opressão... É uma perspectiva triste, porque aí admitimos que nunca conheceremos, de fato, o outro. E acho que nem nós mesmos... Agora, a frase do arrepender-se de ter colocado filhos no mundo é forte mesmo. Ainda mais para uma mulher muito forte... Lembrei do Brás Cubas. E lembrei do que você disse, das suas dúvidas... Você se identificou talvez com ela? O espelho

se virou para você e isso te escandaliza? LN: Acho que me reconheço no discurso, as escolhas que fazemos são nossas decisões, mas nem sempre tão racionais. Como ela dizia, por um lado a boemia não combinava com o terninho e o escritório. Existe sempre um ônus e um bônus. Acho que, cenicamente, o fato de ser uma entrevista facilita muito a aproximação de compreensão de personagem, e que, nem sempre, é tão limpa. Se lembra que na saída conversávamos sobre as críticas ao jornalista... mtc: Ah, sem dúvida. No aspecto cênico e de construção dos personagens, a figura do jornalista aparece pedante em determinados momentos. Não sei se é proposital. Se for, acaba sendo uma crítica à profissão (que é a minha!) que, bem como os intelectuais que eu citei no início da conversa, muitas vezes se colocam acima do bem e do mal. O tal do quarto poder (embora não acredite tanto assim, nessa definição). Em muitos momentos, o jornalista fala o que Gabriela ia dizer na resposta e isso estraga a surpresa e perde o ritmo. Alexia como Gabriela estava lá, mas, em alguns momentos, senti falta de uma mudança de ritmo de fala para marcar alguma pas-


sagem mais dolorida. Por mais que fizesse tempo que algumas coisas tinham passado, são marcas da história de vida dela muito doloridas... Não achou ela fria em alguns momentos? Ou teria sido uma escolha? LN: Sabe, fique concatenando sobre talvez ser uma escolha, uma vez que a própria Madame Bovary não tinha muita consciência do que estava fazendo, nem ao menos Capitu. Quem sabe como se trata de uma peça realista, apesar de imputar um certo poder nessa figura feminina, ela também pode estar meio alienada da sua importância e de alguns momentos que podia ter feito uma ou outra ação. Como disse, o que me chocou mesmo, foi a história da pergunta do arrependimento... dizer que se arrependia de ter tido as filhas com uma não calculada frieza... Creio que me interessei tanto pelo texto e pela argumentação que fui desculpando os aspectos mais técnicos mesmos, como a luz ir escurecendo quando ela ia falar de algo mais pessoal, criando um clima, etc... E afirmo que ainda ficava com a música Gabriela, por gostar bem mais das personagens femininas do nordeste, que são tão bem desenhadas, ao invés do clássico deixe-me ir...

alexia em cena com Louris.

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1


fOTOS: André GArdEnBErG

mtc: Um ponto de discordância: Cartola e Candeia, imagino eu, dão um sentido para essa “não consciência” de algumas atitudes. “Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar”. Talvez, essa história da negação do papel de mãe resida nisso: rir pra não chorar. Em alguns momentos, sentia uma certa dose de sarcasmo. Gabriela (e suas implicações musicais) tem muito a ver com liberdade, mas acho que tem uma coisa descompromissada, mais leve. Não acho a Gabriela leve, por exemplo. Acho a personagem livre, mas carregada de pesos da vida. O que pensa? LN: Peso da vida, todos temos... e somos Atlas de nossas próprias escolhas e decisões e sonhos também... temos de aguentar nos ombros... Acho a Gabriela do Jorge Amado e do Caymmi mais livre em sua real li-

bertinagem: era dela assim, sem aquele peso todo, que tem uma Capitu ou Bovary... ou quem sabe Gabriela, nossa protagonista...que acaba abandonando sua carreira, que defende com unhas e dentes, para ser ativista e fundar ONGs e marcas... e, finalmente, termina acreditando que sua vida deveria estar em um restaurante? O legal do humano é que nós não somos tão homogêneos, somos tantas coisas, e principalmente mutantes, se conseguirmos ao menos sermos coerentes e um pouco menos preconceituosos com nós mesmos e nossas mudanças pela vida, acho que teremos cumprido um importante papel! Que se acha? mtc: Na verdade, a busca do ser humano é egoísta e infinita. Porque, talvez, a pessoa que um dia encontrou a felicidade plena morreu de rir e não pode voltar

para contar... ou de desgosto, porque o sentido para as coisas acabou com o fim da busca. Porque o que nos mantém vivos é a dúvida, é o experimentar, é o vivenciar. E, muitas vezes, percebemos que a realização plena pode estar em ser célebre. E aí, quando o somos, percebemos que pode ser que esteja justamente no contrário... Pode estar no simples, quase banal... Não tem certo e errado, tem escolhas, como você disse. Agora, sob o aspecto da homogeneidade, é engraçado que, no final da peça, depois de discutir tanta transgressão, tanto ativismo, ela fecha com os 10 mandamentos da prostituta – Não beijarás na boca, Não te apaixonarás pelo seu cliente, Cobrarás! – sensacional! (risos) Ou seja, até para sermos livres, estamos mesmos sujeitos a algumas regras de conduta...


por Leo moreira


pOR RACheL RIpAnI


convidado CASSIO BRASIL Premiado figurinista, passeando por diversas linguagens estéticas e conceituais, Cássio Brasil foi convidado a pensar um figurino impossível de ser realizado.

A peRSOnAgem nãO mAIS eStá peRmAneCe O InStAnte COngeLAdO feItO LemBRAnçA feItO memóRIA... A ROupA que SOBRA SufICIente 2

3


de onde? não se sabe. a luz invade a roupa. feito o espaço. não existe fonte. mas ela desenha as dobras e as entranhas como se fosse uma luz qualquer.


pela permanência de uma imagem. havia uma mulher alí. há, ainda, a pulsação de um corpo evaporado.

fios que sustentam a fluidez do tecido. fios suspensos, irreconhecíveis. linhas sustentadas


veStIR A COStuRA e n達O A

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ROupA


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e, assim, fazer do tecido algo mais pleno de sua linguagem.

determinar ao corpo o desenho daquilo que n達o deveria servir a desenhar.

vestir a estrutura e n達o sua face. tornar o vestir algo mais complexo.


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de um conflito saudĂĄvel e misteriosamente singular.

sombras e desenhos estruturados na permanĂŞncia

dois ou trĂŞs ou quatro ou quantos pontos de luzes.


quAntOS pOntOS de LuzeS

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quem é quem?

e quando não é possível ver diferente do que lá escondido está?

qual roupa é a roupa daquela que faz-se roupagem de alguém?

qual pele veste a pele que veste o corpo que veste o personagem?


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pOR kikO bERThOlini


*

AUTORRETRATO: o ato de transformar em imagem sua própria identidade.

se lf -p o rt ra it *

pe um r c au son ale a an torr liza ndá ive etr d rio r a o e a sp sar tos co c e ia d m pa ada cia nte e is s im ra pr s mê u s, e e ab sad sso r us o e , ad o

ca le nd ár io


30s

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julho

mario Viana


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:)

por cynthia bonacossa


por pat cividanes



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