ANTRO POSITIVO ED.07

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Drama de palco

U

ma sala bem pequena. Uma sala para dois corpos sem recheio. Esvaziados como bexigas que perderam o ar. Chiando e se debatendo. Apartamento. Chiando e se debatendo. As paredes são desbotadas, amarelo-pálido, cheias de bolhas, Mirna e Ele, do lado de dentro do apartamento. As paredes e o desejo de seus donos são flácidos. Se estreitam cheios de trincas até alcançarem a porta. Mirna e Ele, tem os cabelos cor de palha. São altos e magros. Longílineos. Eles, as roupas, os móveis, quase sem cor. Apenas a boca de Mirna é pintada de vermelho. A boca de Mirna que não para. A incansável boca de Mirna. O vermelho e o som de cidade: acelerar de carros, betoneira, serra elétrica, buzinas, miados, helicóptero. Tudo muito distante e baixo. Na rua e na casa freadas bruscas. Pneus e falas: “Acabou, Mirna”, foi isso que você disse. Eu quase me lembro e no mesmo instante esqueço. Esquecer é um esforço. A sala era de paredes claras desbotadas e sua voz corria em círculos. Sua voz girando atrás do rabo, repetidas vezes. Você, rei de uma única fala: “Acabou, Mirna, eu não te quero mais”. Sua fala trançada em minhas artérias, sugando meu oxigênio. Eu, cinquenta por cento de ar. Um quilo e meio de cérebro guardados em

uma caixa de ossos, com um único pensamento: “Acabou Mirna”. A massa se encolhe, mas não se desentrega. Repetindo mil vezes, mil e uma vezes e duas e três e falta o ar, o choro não escorre, e cinco, e as pernas tremem, mil e seis vezes. Vertigens. ”Acabou, Mirna.” Às vezes penso que foi o medo. O medo me fez crer que ouvi você falar. Sinto meu coração acelerado, as mãos tremerem, meu corpo todo. A boca seca. “Mirna, acabou. Eu não te quero mais”. Um quilo e meio de cérebro não pesaria muito se não me prendesse ao chão. Mirna está sentada em uma cadeira pequena e baixa na sala de jantar. A mesa tem só dois lugares. Nos pratos, macarrão e ovos mexidos esfriam enquanto ela fala. Seus olhos pouco piscam. O que foi que você disse? O que foi que você disse? O que foi que você disse? Tento me lembrar. Tento esquecer. Sua fala enroscada nos meus cílíos, na coxa esquerda, na porta. Por todos os cantos. No ar que passa pelos meus dentes: “Dessa vez estou indo embora Mirna. Essa é a última vez, entendeu? Entendeu Mirna? Acabou.” Sua fala esfarrapada subindo como parasita pelas paredes, atravessando portas e frestas, descendo pelas minhas pernas, invadindo meu sexo, se enraizando no úmido. Nessas infiltrações. Em todas as paredes.


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