Revista Livro

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Mariana Garcia


DEDICATÓRIA Carta ao leitor Nas suas mãos está a Livro, uma revista que fala de... livros! Bom, se acha que vai encontrar aqui os resumos das obras que vão cair no vestibular ou na prova de Literatura da escola, feche a revista e corra para a internet mais próxima! Livro é para aqueles que querem ler sempre mais e sobre tudo. Se você curte literatura, vem com a gente. O universo dos livros é tão infinito quanto os tipos de leitores. Cada prateleira guarda centenas de histórias diferentes; cada livro, um punhado de personagens; cada página, uma possibilidade. É coisa demais, né? Se você se sentir confuso, saque sua Livro da mochila para se orientar. Apresentamos aqui diversas histórias para você escolher quais valem à pena para a sua viagem. Aliás, nesta primeira edição você vai descobrir como fazer uma volta ao mundo – mesmo que seja à bordo de um livro. Se o seu negócio é poesia, não deixe de conferir também a Viagem de Cecília Meireles, sua obra mais reconhecida pela crítica. Na editoria Listas, Fernanda Takai e Bruno Garcia recomendam seus livros favoritos e nós da Livro fazemos o mesmo no Prefácio. Um dos indicados é Crepúsculo, sobre os vampiros mais pop do momento. Mas, muito antes de Edward Cullen, o Conde Drácula já saía por aí mordendo uns pescocinhos. Aposto que já ouviu falar dele... A história de Drácula consegue ser mais bizarra que a do messias Antônio Conselheiro, contada em Os Sertões. Este existiu, no final do século XVIII, e reuniu milhares de sertanejos com suas promessas de salvação espiritual. A matéria de capa destaca o colombiano Gabriel García Marquez, que gosta de misturar o acontecido com o imaginário. Cem Anos de Solidão tem tanta coisa de sua infância que é difícil separar o que é ou não é verdade na história. Conhecido como Gabo, ele é escritor, roteirista e jornalista, assim como Marçal Aquino, autor de A Turma da Rua Quinze, da Coleção Vaga-Lume. A conversa sobre sua trajetória pela escrita você confere no Posfácio. Enquanto Gabo e Marçal saem do real para a ficção, Uderzo e Goscinny criaram um universo maravilhoso para ironizar os tempos modernos. As aventuras de Asterix já foram adaptadas onze vezes para o cinema. Não ganham, é claro, da peça Romeu e Julieta, com 33 adaptações literais e 17 releituras para a telona. Além de ser uma história bem conhecida, ela já está em domínio público. Não sabe o que é isso? O Tá na rede explica. Tudo isso está nas suas mãos. Leia a Livro, e, se gostar, leia o livro. Nosso objetivo é te informar sobre leitura para que você faça suas escolhas sozinho. Então, respire fundo, vire a página e leia à vontade.

AGRADECIMENTOS Expediente

Colaboradores

Fale com a Livro!

Textos: Lívia Aguiar e Marina Borges

revistalivro@gmail.com

Edição: Sílvia Amélia e Lívia Aguiar

Mariana Garcia mari.nascimento.garcia@ gmail.com (Fotografias das páginas 2, 4, 6, 8, 54 e 61)

Design, Ilustrações e Projeto gráfico: Ângela Bacon

Délio Faleiro Melo deliofmelo@gmail.com (Infográfico página 41)

revistalivro.wordpress.com

Projeto Editorial: Marina Borges, Lívia Aguiar e Sílvia Amélia.

Rafael Sete ilustracaosete@yahoo.com.br (Ilustrações das páginas 20 a 25)

Rua Manoel Venâncio Martins, 246, Belo Horizonte, MG. CEP 31155-700

Orientação editorial, gráfica e espiritual: Sílvia Amélia e Bruno Martins Revisão: Igor Lage Vicente Cardoso Jr

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EPĂ?GRAFE Imagens inspiradas

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Não vá embora “ JULIETA • Você já tem que ir? O dia ainda demora. Não foi a cotovia, foi o rouxinol Que perfurou seu ouvido temeroso. Ele costuma cantar na romãzeira: Foi ele quem cantou, foi sim, amor. ROMEU • É a cotovia que anuncia o dia, Não é o Rouxinol. Estrias invejosas Bordejam as nuvens do nascente. Foram-se as tochas da noite, o dia alegre Já espanta a neblina do alto da colina. Posso ir e viver – ou ficar e morrer. JULIETA • Aquela luz ainda não é o aviso. Acho que é o sol que manda um meteoro Para clarear seus passos para Mântua. Fique um pouquinho mais: partir não é preciso. ROMEU • Que eu seja preso em seus braços, Eu imploro - e juro que é um prazer morrer assim. De fator, eu nunca vi aurora cor de cinza, E acho que o dia se vestiu de lua. Cotovia nenhuma deu a nota Para que o sol cantasse em nosso quarto: Julieta é quem decide se eu fico ou parto. Eu só quero ficar, morte benvinda! Amor, podemos conversar, é noite ainda. JULIETA • Não, não é! O dia raia! Saia daqui, agora, meu amor! Embora cantasse, a cotovia é tão desafinada Que confundiu o compasso em doces barras, Pra nunca separar nós dois: o sapo - dizem – já teve os olhos dela; por que não a voz? É erro, engano, bruxaria: Finge que é noite, mas, de fato, é dia. A nossa despedida é um “despedia”!...

Mariana Garcia

ROMEU • Mais nus e claros vão ficar os nossos males!” Romeu e Julieta • William Shakespeare Tradução de Décio Pignatari

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Mundo, vasto mundo "Passepartout, as mãos nos bolsos, dirigiu-se para o porto Victoria, contemplando os palanquins, os carrinhos de vela, ainda em uso no Celeste Império, e toda a multidão de chineses, japoneses e de europeus que se comprimiam nas rua. Com pequenas diferenças, era ainda Bombaim, Calcutá ou Cingapura, que o digno moço encontrava no seu trajeto. Há assim como que uma fieira de cidades inglesas ao redor do mundo. Passepartout chegou ao porto Victoria. Ali, na embocadura do rio de Cantão, havia um formigueiro de navios de todas as nações, ingleses, franceses, americanos, holandeses, navios de guerra e de comércio, embarcações japonesas ou chinesas, juncos, sempas, tankas, e mesmo barcos de flores que pareciam canteiros sobre as águas. Passeando, Passepartout notou um certo número de nativos vestidos de amarelo, todos com idade muito avançada. Tendo entrado num barbeiro chinês para se barbear “à la chinesa” soube pelo Figaro do lugar, que falava um inglês muito bom, que todos aqueles velhos tinham pelo menos oitenta anos, e que nessa idade tinham o privilégio de usar a cor amarela, que é a cor imperial. Passepartout achou aquilo muito esquisito, sem bem saber por quê.”

Mariana Garcia

A volta ao mundo em 80 dias • Júlio Verne

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Tristeza não tem fim “És precária e veloz, Felicidade. Custas a vir e, quando vens, não te demoras. Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo, e, para te medir, se inventaram as horas. Felicidade, és coisa estranha e dolorosa: Fizeste para sempre a vida ficar triste: Porque um dia se vê que as horas todas passam, e um tempo despovoado e profundo, persiste.”

Mariana Garcia

Epigrama no 2 • Cecília Meireles

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SUMÁRIO Não fique perdido

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Prefácio

Saindo do forno

Menina, Mulher, Livreiro e Vampiros são as dicas desta edição

14 NA TELONA Capítulo 1

Romeus e Julietas

Capítulo 2

CLÁSSICO

Os namorados que se encontram escondido brilham no cinema inspirados no teatro inglês lá do século XVI

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Sertões de Euclides

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Ceciliando

A bordo todos aqueles que quiserem viajar pela musicalidade da poesia de Cecília Meireles

Os antes e durantes da Guerra de Canudos numa obra difícil e fascinante

Capítulo 3

ESCRITA EM VERSOS

Capítulo 4

TÁ NA REDE

dominiopublico.org Uma montanha de livros que está só esperando o seu clique

Capítulo 5

capa

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Cem anos de solidão Calma, você não precisa passar tanto tempo sozinho. Aqui, um guia para ler essa obra-prima

40 viaje

Capítulo 6

Em poucos minutos, dê A volta ao mundo em 80 dias

Capítulo 8

perfil

42 lendo imagens Capítulo 7

Asterix e Obelix

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Conde Drácula

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Escondido na Transilvânia ou na biblioteca mais perto de você, ele vive à procura de sangue

Quem são aqueles que correm em nossa direção? Por Júpiter! Os gau-gaugauleses estão chegando!


posfácio Como fazer

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O que você precisa saber para montar uma peça de teatro

listas

Eu recomendo Fernanda Takai e Bruno Garcia deixam suas dicas de leitura

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referências Frases para ler, pensar e guardar

O que a morte tem a dizer e o que andam dizendo sobre ela

Entrevista

epílogo

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Ler é prazer e trabalho. Marçal Aquino conta como virou jornalista, escritor e roteirista de cinema

60 orelha

Sua vez de escrever

Escreva a sua versão a partir da proposta maluca que a gente inventou

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PREFÁCIO Saindo do forno

O Livreiro de Cabul rstad Åsne Seieor d, 2006 (editora Rec as) • 316 págin

A menina que roubava livros Markus Zusak

(Intrínseca, 2007 •

500 páginas)

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Este livro-reportagem (grande reportagem jornalística publicada no formato de livro) te leva para dentro do Afeganistão depois do fim do regime dos talibãs, que dominou o país de 1996 a 2001. A norueguesa Åsne Seierstad revela um país arrasado pela guerra, assustado pelas disputas políticas e marcado pelas proibições religiosas – que mesmo com o fim do regime totalitarista ainda persistem, se não nas leis, nos costumes do povo. Depois de três meses na casa do livreiro Sultan Khan em Cabul, Åsne publica esta obra que narra o dia-a-dia de mulheres, crianças e homens recém-libertos de um regime que controlava a vida em seus mínimos aspectos e proibia a música, a internet e até a meteorologia! Mas nem tudo são horrores e tristeza. Seierstad revela que por trás dos bigodes severos dos homens e das enormes burcas que cobrem as mulheres – hoje não mais usadas por obrigação – há o amor, a amizade, a cumplicidade, a fé e a vontade de reconstruir seu país.

Durante a Segunda Guerra Mundial só um guerreou mais que os exércitos dos Aliados e do Eixo juntos: a Morte. E mesmo com todo o esforço de levar as almas para o outro mundo, ela ainda teve tempo de notar uma pequena garotinha: Liesel Meminger, a roubadora de livros. As brincadeiras, aflições e dificuldades que Liesel passa durante o governo de Hitler, salpicadas pelas reflexões e comentários da Narradora Implacável, compõem o livro "A menina que roubava livros", do australiano Markus Zusak. Liesel tinha 11 anos em 1939, quando perdeu os pais para o governo e o irmão para a Morte. Ela vai morar com um casal de alemães enérgicos, mas bondosos, que não eram perseguidos pelos nazistas. Bom, pelo menos não no início da história...


A mulher que escreve u a Bíblia Moacyr Sc

liar (Companhia da s Letras, 2007 • 178 pá ginas)

Crepúsculo er Stephenie Mey 08 •

(Intrínseca, 20 355 páginas)

A partir da hipótese de que a Bíblia foi escrita por uma mulher culta e irônica que vivia na corte do Rei Salomão, saiu da cabeça de Moacyr Scliar uma mulher feia, feia de assustar, que se torna uma das centenas de esposas do Rei. “A feiura é fundamental, ao menos para o entendimento dessa história”, esta é a primeira frase do relato “histórico” de Scliar. Foi a feia que a prendeu a ler e escrever em uma época em que o analfabetismo era a regra – no século X antes de Cristo –, como uma espécie de compensação por sua aparência repugnante. Lá no harém do Rei Salomão, entre setecentas esposas e trezentas concubinas à espera de uma noite com o grande homem, a feia também espera o seu dia de ser amada. Como demora este bendito dia! Enquanto as outras se preparam com óleos, cremes, danças e dietas especiais, a feia recebe a tarefa de escrever a história de seu povo, o texto que hoje chamamos de Antigo Testamento.

Sim, este é aquele livro sobre vampiros que todo mundo está comentando! Isabella Swan é uma jovem desajeitada que abandona a ensolarada cidade de Phoenix para viver na região mais chuvosa e nublada dos Estados Unidos. Lá ela tem que reaprender a conviver com seu pai e domar uma paixão avassaladora pelo garoto mais indiferente – e bonito – da escola: Edward Cullen. Acontece que ele é um vampiro. Para sorte de Isabela, Edward e sua família são parte de um clã de vampiros bonzinhos que preferem não beber o sangue de pessoas. Mas dá para colocar um lobo vigiando as ovelhas? Uma hora ele pode ficar com fome e... Crepúsculo é daqueles livros que você simplesmente não consegue parar de ler. Para nossa sorte, este é o primeiro de uma série de quatro: suas continuações são Lua Nova, Eclipse e Amanhecer e a autora promete escrever mais um, ainda sem nome e previsão de lançamento.

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NA TELONA Capítulo 1

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Vantoen Pereira Jr

a mo r

impossível

Romeu e Julieta não foi o único caso de paixão proibida já escrito. Mas, sem dúvida, é o mais lembrado, reescrito e adaptado. Essa história atravessou mais de quatro séculos e chegou até você como se tivesse sido escrita ontem Os protagonistas são adolescentes típicos! Desafiam os pais, gostam de testar os limites e estão dispostos a fazer tudo pelo primeiro e grande amor de suas vidas. A peça de Shakespeare – uma das obras mais adaptadas para o cinema e televisão – parece com a vida de todo mundo. Qual menino nunca foi a uma festa atrás de uma garota? Romeu não era diferente. Ele foi disfarçado à festa dos Capuleto procurando por uma menina. Mas lá se apaixonou por Julieta e esqueceu da outra. E que menina nunca fez “joguinhos de sedução” com um menino? Pois Julieta fez exatamente assim com Romeu. Tanto fez, que ganhou não apenas um, mas dois beijos no primeiro encontro. É bom lembrar que a época era bem diferente: quando a peça foi escrita, em 1597, ainda não era comum “ficar” com alguém. É exatamente esta passagem que mais agrada ao cinéfilo e doutorando em Comunicação Social Renné França. Para ele, “aquela é a melhor cantada da história”. Ele reconta o trecho assim: “basicamente, após se dizer um pecador e colocar Julieta como sagrada, Romeu pede para que os lábios imitem o que as palmas das mãos fazem ao rezar (ou seja, que se toquem). Ele então a beija. Ela reclama que, se ele é um pecador, os pecados passaram para os lábios dela. Romeu então diz que vai pegar os pecados de volta. E beija Julieta novamente”. Para Renné França, o mais interessante é que Julieta não é só uma donzela esperando ser conquistada. Ela joga com Romeu, faz charme e dá todas as deixas para que ele possa beijá-la. Exatamente como continua sendo o jogo de conquista hoje em dia. Cena do filme “Era uma vez”, do diretor Breno Silveira

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A peça de William Shakespeare trouxe novos ares para o amor impossível na literatura do século XVI. Ela conta a história da briga de duas famílias rivais de Verona, na Itália, de como Romeu e Julieta se conheceram e de seu amor impossível, que termina tragicamente.

Vantoen Pereira Jr

se envolver com o tráfico. Foi ali que conheceu Nina. Apaixonados, os dois vivem alegrias, emoções e angústias de um amor grande, mas que parece impossível. Os preconceitos chegam de todos os lados. Mesmo assim, os dois resolvem desafiar a distância que separa o morro e o asfalto. A história de Dé e Nina está no filme brasileiro Era Alguns séculos depois uma vez... Apesar de seus protagonistas Em uma região do Rio de Janeiro, perto não se chamarem “Romeu” e “Julieta”, o filme é inspirado na obra do inglês de uma favela, o maior problema é a diferença de classe econômica. Nina é fi- Shakespeare. lha única de uma família rica que mora Breno Silveira, diretor de “Era uma na Avenida Vieira Souto, em frente à vez...”, não quis falar só do romance praia de Ipanema. Dé também mora na de Dé e Nina, que lembra muito o de região, mas na parte menos glamourosa. “Romeu e Julieta”. Ele também buscou Sua casa fica na favela do Cantagalo e mostrar outras relações de amor dentro ele é filho de uma empregada doméstica. do filme (entre irmãos, entre pais e filhos). Mas o principal era mesmo Dé vende cachorro-quente em um mostrar o amor de um garoto por uma quiosque da praia, já que não quer jovem de realidade bem diferente. Por causa dessas diferenças, o filme, assim como o clássico original, é permeado pela violência da realidade que cerca os protagonistas. Era uma vez... se passa no Rio de Janeiro mas, segundo o diretor, é uma história que “poderia acontecer em São Paulo, em Paris...” Afinal, famílias inimigas, diferenças sociais e econômicas e problemas para ficar com quem se gosta acontecem em todo lugar.

Na Itália, nos Estados Unidos... A peça de Shakespeare é uma das histórias mais adaptadas do cinema e da televisão. Para se ter uma idéia do sucesso, apenas o site The Internet Movie Database (Base de Dados sobre Filmes na Internet), uma das principais referências de dados mundiais sobre filmes para televisão e cinema, traz 52 títulos! Para “Romeu e Julieta”, aparecem 33 filmes que são adaptações literais da peça, além de 17 livremente inspirados na história e mais dois títulos – destacados por serem os filmes mais procurados com base no livro de Shakespeare. Estas duas obras mais procuradas são as adaptações cinematográficas mais famosas: os filmes dos diretores Franco Zefirelli, filmado em 1968, e de

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WILLIAM SHAKESPEARE

William Shakespeare nasceu em 1564 na cidade de Stratford-upon-Avon, na Inglaterra. É um dos mais conhecidos e influentes poetas e dramaturgos ingleses. Ele escreveu 154 sonetos e numerosas peças. Ainda que, em sua época, seus escritos tenham causado muita controvérsia, influenciaram a cultura ocidental nos campos da literatura, cultura, artes, teatro e cinema. Por séculos e séculos tem havido muita especulação sobre vários aspectos da vida do escritor. O filme Shakespeare Apaixonado fala um pouco sobre elas. Thaïs Flores explica que existe uma fase da vida de Shakespeare sobre a qual se tem muito pouca informação e documentos, que é chamada “lost years” (anos perdidos). Os roteiristas do filme aproveitaram esse fato histórico para inventar histórias sobre a fase. A professora explica que “o que é real é que o escritor e dramaturgo William Shakespeare existiu e, de fato, era casado, morava em Stratford-uponAvon e tornou-se ator. Entretanto, nada se sabe a respeito do homem Shakespeare. Circulam lendas de não ter sido autor de tantas obras, por exemplo”. Poucas das peças foram impressas enquanto o dramaturgo estava vivo e a maior parte apareceu depois de sua morte, algumas plagiadas e geralmente com mudanças no texto feitas pela editora. Grande parte de seus trabalhos dramáticos foram impressos pela primeira vez na coleção Fist Folio, de 1623: são trinta e seis peças soltas, livros de peças, transcrições e memórias de autores. Um fato interessante é que Shakespeare nasceu no dia 23 de abril de 1564 e morreu também num 23 de abril, no ano de 1616. Coincidentemente, o mesmo dia da morte de outro grande escritor, o espanhol Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote. Por isso, no dia 23 de abril é celebrado o Dia Mundial da Literatura.

Novelas e filmes da Disney também adaptaram Shakespeare Outras peças de Shakespeare também foram adaptadas para cinema e televisão. O Rei Leão, da Disney, é uma adaptação da história de Hamlet, o mesmo que fala a famosa frase “ser ou não ser, eis a questão”. O pequeno leão Simba também tem dificuldade em decidir, no caso, se vai vingar a morte do pai e se tornar rei das selvas ou se continua longe de casa. Já a novela O Cravo e a Rosa, exibida pela TV Globo, entre 2000 e 2001, foi inspirada na peça A megera domada. A comédia conta a história de duas irmãs: Catarina é a megera do título e também a mais velha; Bianca é a mais nova, doce, meiga e já tem três pretendentes. Mas o pai das duas diz que Bianca só poderá se casar depois de sua irmã. É preciso, então, um marido ideal para a megera...

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Folha de rosto de uma edição antiga do clássico, em inglês

Baz Luhrmann, que dirigiu “Romeu + Julieta” em 1996. A adaptação primeira foi realizada na Itália e na Inglaterra, mais de trezentos anos depois de escrita a obra. A segunda, nos Estados Unidos, quase quatro séculos depois. Por ser da década de 60, o filme de Zefirelli dialogava muito com a cultura hippie. O diretor escolheu atores jovens para os papéis principais, o que foi uma novidade na época, quando apenas atores adultos interpretavam os adolescentes. A professora do curso de Letras da UFMG, Thaïs Flores, especialista em Literatura Comparada, explica que a adaptação Zefirelli evidenciou ainda mais a juventude das personagens. “A dança no baile dos Capuleto dá lugar à canção jovem What is youth (O que é a juventude). Essa supremacia da juventude sobre a maturidade é representada ainda pela atenuação da culpa de Ro-

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meu, pela omissão das cenas da compra do veneno e do assassinato de Páris e pela ênfase na atitude desafiadora de Julieta ao se recusar a casar-se com o pretendente escolhido pelos pais.” O filme de Baz Luhrmann também se passa na época em que foi produzido, o final do século XX. Ele inovou ao escolher um subúrbio de Verona para dar lugar à história, mas as falas dos atores não foram mudadas e conservam o texto original da peça de Shakespeare. Estas escolhas de Luhrmann dão ao filme contrastes entre o velho – a língua em forma muito antiga – e o novo, presente nos cenários, nas armas, nas roupas e no contexto escolhido para a história. Este filme é muito lembrado ainda por ser um dos primeiros trabalhos do ator Leonardo di Caprio. O ator foi responsável por boa parte de seu sucesso ao redor do mundo.


Através dos tempos Os textos de Shakespeare já estão em domínio público. A adaptação de suas peças para o cinema é facilitada também porque, em sua origem, elas não eram divididas em atos ou cenas, o que torna as adaptações cinematográficas parecidas com as encenações originais. Produzir filmes e programas de televisão próximos da realidade de quem vai assisti-lo também ajuda muito no sucesso das adaptações. Em Era uma vez..., a história se passa em uma cidade brasileira que conhecemos pessoalmente ou pela televisão. Segundo a pesquisadora Thaïs Flores, “a adaptação, seja no contexto da favela ou em outro qualquer, é uma tradução cultural e absorve os valores e os modos de viver, de agir e de pensar dos habitantes desse lugar”. Assim, não existe nada de especial numa adaptação para o contexto da favela que seja diferente, por exemplo, de uma adaptação ao contexto das torcidas de futebol, como foi o filme O casamento de Romeu e Julieta, de 2005, do diretor Bruno Barreto, onde as famílias eram fanáticas por clubes rivais. Nem tudo é simples. O teatro inglês tinha um carinho especial pelas palavras, já que não havia cenários nem mudanças de cena e todo o contexto da história tinha que ser transmitido pelo texto. Para Thaïs Flores, “o grande desafio encontrado pelos cineastas é transmitir ideias, não por meio das palavras, mas por meio das imagens, do que é específico do cinema. Por isso, os filmes que querem ser muito ‘fiéis’ ao texto de Shakespeare acabam por se tornar enfadonhos, por representar duplamente uma mesma ideia”.

O mais famoso amor impossível Se engana quem pensa que Romeu e Julieta foram os primeiros apaixonados sofredores da literatura mundial. Outros casais da literatura e da mitologia tiveram tantos ou mais problemas que eles para ficarem juntos. Alguns

exemplos são Píramo e Tisbe e Orfeu e Eurídice, da mitologia grega, e Tristão e Isolda, da mitologia celta. Desde a Antigüidade e até hoje várias histórias sobre o amor impossível foram escritas e vividas, mas nenhuma é tão lembrada quando a dos jovens amantes criados por Shakespeare. A primeira razão para é juventude dos dois. Romeu é jovem, Julieta tem 14 anos. Thaïs Flores explica o sucesso da obra: “em primeiro lugar, temos um casal de jovens apaixonados e impetuosos. Esse furor da juventude, essa paixão, encontra identificação na maioria dos jovens. Depois, o próprio fato de mostrar jovens contra o poder constituído e contra o destino, triunfando com a morte, já é em si um fator de identificação”. O professor de literatura Frank Lanot e outros três estudiosos do tema apontam outras razões no livro Dicionário de Cultura Literária. Para eles, apesar de tantos outros casais terem histórias parecidas, Romeu e Julieta representam com mais força e clareza o mito do amor absoluto, que não pode ser mudado e que dura para sempre, já que eles não passaram pelo desafio do tempo. Thaïs Flores também gosta da juventude do texto. Sua adaptação favorita é a de Baz Luhrmann, “que traz a história para a atualidade, embora conservando as palavras de Shakespeare. Os jovens também gostam dessa adaptação, por trazê-los para a cena, ao usar objetos e refletir atitudes de sua vivência”. Mas ela diz que uma outra adaptação tem lugar reservado em suas preferências: a peça de teatro Romeu & Julieta, adaptada pelo grupo Galpão traz a história para um contexto bem mineiro, com muita música e serenatas, além de trechos inspirados na obra do escritor Guimarães Rosa. Tão bonita e diferente que fez sucesso até na terra da rainha, onde as peças de Shakespeare são constantemente encenadas. Thaïs completa: “de um modo geral, gosto das adaptações que mudam a cultura e o contexto e conservam a essência: o amor impossível”.

TRISTÃO E ISOLDA A história de Tristão e Isolda é baseada na mitologia Celta. Ele é um herói exterminador de monstros. Por salvar uma região de um gigante e de um dragão, ele consegue a mão da filha do rei da Irlanda em casamento para o seu rei, Marcos. Tristão foi encarregado de levar Isolda, a mulher loura que seria a nova esposa do rei, de barco, para as terras da Cornualha. Por engano, ele bebe uma poção do amor que torna ele e Isolda inseparáveis por três anos. A ligação era tão forte que, para não morrerem, eles não poderiam ficar separados por mais de 3 dias. Eles conseguem que a acompanhante de Isolda tome o lugar da moça junto ao rei Marcos e então fogem para uma floresta, onde vivem como selvagens até que o rei os encontra e se casa com Isolda. Separados, Tristão vai para a Bretanha, onde se casa com outra Isolda, a das mãos brancas. Entretanto, algum tempo depois, ferido mortalmente, ele chama pela Isolda que realmente ama, a esposa do rei. Uma embarcação de velas brancas indicaria que sua amada estava chegando, mas Isolda das mãos brancas, enciumada, ao ver o barco, faz o marido acreditar que sua amada não veio ao seu encontro. Tristão não consegue suportar a dor e os ferimentos e morre. Isolda chega e, ao ver seu amado morto, morre sobre o corpo dele. O rei Marcos, ao saber da história, manda que sejam enterrados em uma mesma capela, cada um de um lado da construção. Das duas sepulturas crescem sarças, plantas que crescem e vão uma ao encontro da outra, se juntando. Por isso, o rei manda que os corpos dos dois sejam juntos no mesmo túmulo, permitindo que a morte os una para sempre.

Texto: Marina Borges

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CLÁSSICO Capítulo 2

Tudo começou com uma guerra. Conversas para lá, observações para cá, pesquisas e mais pesquisas depois, surge Os Sertões, obra que inspirou diversos pesquisadores brasileiros. Euclides da Cunha se revela um cineasta do texto, fotógrafo com palavras, poeta-cientista, detetive da terra. Ele fala difícil, mas fala bonito sobre o sertão brasileiro do período da Guerra de Canudos Com certeza esta é a obra mais difícil que recomendamos nesta edição de Livro. Escrita em 1902 pelo engenheiro, sociólogo, historiador, marido traído, jornalista e (ufa!) escritor Euclides da Cunha, Os Sertões é tudo isso e mais: é também parte do top 10 da literatura brasileira. Traduzido para 14 línguas, inclusive o dinamarquês e o chinês, a obra é um retrato de uma região brasileira que até hoje é marcada pela seca. Os Sertões é um livro histórico, pois conta a história da Guerra de Canudos, que aconteceu entre 1896 e 1897, no interior da Bahia. Também é etnográfico, já que descreve cuidadosamente os habitantes do sertão brasileiro, sua forma de lidar com a terra, a religião que praticam e as suas atividades diárias. É geográfico, pois descreve cuidadosamente a vegetação sertaneja, assim como aspectos geológicos da região, seu clima e diferenças do regime de chuvas ao longo do ano. Podemos até chamá-lo de livro científico, de prosa científica. Mas ele também é jornalístico, também é poético...

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Radiografia do sertão A Terra, O Homem e A Luta são as três partes em que é dividido Os Sertões. Na primeira, Euclides faz um panorama da geografia, geologia, vegetação e clima do sertão brasileiro. Na segunda, sua atenção é para as pessoas, os personagens existentes no sertão: o jagunço, o sertanejo e, em especial, Antônio Conselheiro antes de virar um messias. A terceira parte, a mais famosa e mais lida, é a que fala propriamente sobre a Guerra de Canudos. O professor de literatura brasileira da UFMG Marcos Rogério Cordeiro ressalta que Os Sertões inspirou muitos pensadores da década de 1930 no Brasil. “Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e outros cientistas que vêm renovar as ciências sociais no Brasil, todos eles devem ao Euclides da Cunha. O aspecto ensaístico de Os Sertões influenciou muito esses pesquisadores. Essa maneira de pensar o Brasil como uma vitalidade orgânica e ao mesmo tempo desigual, que cada um deles desenvolveu, já está lá em Os Sertões”, explica. Euclides da Cunha havia escrito dois artigos para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1896, comparando o levante de Canudos com a rebelião monarquista e católica na região de Vendéia, na França, que se estendeu de 1793 a 1795. Defensor republicano (veja destaque na página ao lado), Euclides ressalta nos artigos a ideia de que o arraial de Canudos ameaçava a jovem república brasileira e deveria ser militarmente reprimido. Um mês depois, O Estado de S. Paulo o envia ao sertão para cobrir a Guerra, que

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já estava quase no fim. O próprio Euclides explica no prefácio as suas intenções com Os Sertões: “Escrito nos raros momentos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda sua atualidade [...] demos-lhe, por isto, outra feição, tornando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu”. Durante sua estadia no front de batalha, o escritor, que tinha tuberculose desde que nasceu, passou grande parte do tempo doente e de cama. Mesmo assim, Euclides recolheu informações essenciais para a sua grande obra.

O medo a respeito da repercussão do livro é tanto em Euclides que alguns dias antes de seu lançamento ele decide fazer uma viagem à cavalo. Quando volta, uma semana depois, estava famoso e a editora já queria imprimir uma nova edição da obra. Como brincou Sílvio Romero, crítico literário e amigo de Euclides da Cunha, ele “dormiu obscuro e acordou célebre”. No ano seguinte à publicação de Os Sertões, em 1903, Euclides foi nomeado membro da Academia Brasileira de Letras.

Bacharel em Letras e apaixonado por Os Sertões, Henry Bacon destaca a capacidade de pesquisa sobre o começo da guerra e de observação de Euclides da Cunha. “A gente vê que nos seus dias no sertão, em Canudos, ele observou muito e dá uma descrição da vizinhança e tudo mais. Ele também deve ter procurado depois os membros de outras expedições, houve quatro expedições militares para Canudos e ele procurou e escutou o que eles tinham a dizer. É de estarrecer como ele conta a história completa daquelas expedições, embora ele não estivesse lá; ainda estava em São Paulo. Ele era capaz de travar relações com pessoas e escutar, receber deles as informações.”

Mudanças ideológicas

De volta a São Paulo, o jornalista preparou Os Sertões durante cinco anos. A obra denuncia a violência de uma guerra que matou 5 mil soldados republicanos e aproximadamente 25 mil habitantes da região de Canudos em apenas dois anos. Quando ainda estava na zona de batalha, o escritor enviou relatórios de Guerra que, como o resto da imprensa brasileira, ocultavam as barbaridades cometidas pelo exército brasileiro. Porém, no livro ele não poupa a descrição dos requintes de crueldade dos soldados no trato dos prisioneiros de guerra. “Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiquerador; impeli-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém se surpreendesse, porque ao mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até a primeira covanca profunda, o que era um requinte de formalismo; e, ali chegados, esfaqueá-la. [...] E degolavam-nos, ou coziamnos a pontaços. Pronto”.

No livro, a opinião de Euclides não é mais a mesma dos artigos feitos antes da viagem. Ele percebe que a cultura do sertão é totalmente diferente da cultura “litorânea”, descobre um Brasil dentro do Brasil. Esta é a sua importância, na opinião do professor Cordeiro – o fato de que Euclides pensou o Brasil de dentro. “A república [proclamada em 1889] despertou o interesse em pensar o país como ele é. Refletindo sobre isso que Euclides da Cunha chega à conclusão de que o país é fragmentado, partido. A ideia dos dois brasis, um mais civilizado que o outro, durou todo o século XX. Ele tem a necessidade de superar essas dicotomias. Nós temos que convir que o Brasil não mudou tanto assim, continua muito desigual. Então o assunto do livro ainda não envelheceu”, reflete. A pesquisadora Letícia Maillard ressalta que Os Sertões é muito mais rico que uma história sobre a campanha de Canudos ou sobre Antônio Conselheiro. “Ele vai mostrar toda a oposição entre o sertão e o litoral, entre a natureza e a cultura, entre as tropas regulares dos exércitos que combatiam os seguidores de Antônio Conselheiro, enfim, uma série de motivos fazem com que o livro seja fascinante para os leitores cultos”. A professora de literatura aposentada pela UFMG é enfática quando diz que a leitura da obra inteira é muito difícil para quem está começando no mundo da literatura. “Claro que toda regra tem exceção, mas adolescente não curte esse livro.” Ela ressalva que a leitura de pequenos trechos pode ser prazerosa em qualquer idade, já que o texto tem uma força poética muito grande.

Na época de Euclides, o Brasil estava em fase de transição entre a monarquia e a república. Em 15 de novembro de 1889 os militares expulsaram Dom Pedro II e inauguraram uma nova forma de governo baseada no voto e que tinha como chefe de Estado o presidente, eleito de 4 em 4 anos. O movimento liderado por Antônio Conselheiro era a favor da monarquia e por isso sua repressão foi extremamente violenta

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Texto poético O inglês Henry Bacon teve seu primeiro contato com Os Sertões em sua tradução para o inglês. Depois, quando já tinha um conhecimento maior sobre a língua portuguesa, procurou a obra no original e se encantou com a poesia das palavras. “Reconheci imediatamente como o português é tão mais rico do que a versão no inglês. Aquele trecho bem no começo em que ele fala das serras e das escarpas e toda aquela grandeza da serra atlântica... A música daquelas palavras é aquática, faz a gente pensar no mar. De maneira que ele é capaz de ter um sentido aparente e outro sentido latente, escondido no meio”. A preocupação em descrever com detalhes as paisagens, as estratégias de guerra, o físico e as índoles dos personagens do livro permite que seja possível visualizar as cenas narradas. Apesar de ter ficado apenas 10 dias em companhia das tropas que investiam contra o povoado de Canudos, a sensação é de que caminhamos junto aos soldados e aos sertanejos, admirando as paisagens e sentindo sede, fome e cansaço com eles.

Jornalismo de viagem Euclides da Cunha tinha como grande ambição viajar pelo Brasil. Pouco após a Proclamação da República, por ser um conhecido defensor dos ideais republicanos, o então presidente Marechal Floriano Peixoto ofereceu a Euclides qualquer posição que quisesse ocupar. Este, que poderia ter escolhido virar governador de um estado brasileiro, pediu para estudar para engenheiro de estradas de ferro. Henry Bacon comenta com pesar sobre a falta de desejos políticos do escritor, mas acrescenta que, “se ele tivesse conseguido isso, nós não teríamos Os Sertões!”. Depois de escrever Os Sertões, ainda com a ideia de conhecer os brasis do Brasil, Euclides viaja para a Amazônia: uma longa viagem pelo Rio Purus, em 1905, no norte do país, em uma missão que visava delinear as fronteiras entre Peru e Brasil depois que o Acre foi anexado ao território brasileiro. Foram 6.400 quilômetros, alguns deles percorridos a pé, que resultaram em anotações que denunciavam a exploração dos seringueiros na floresta amazônica. Euclides volta para casa em 1906 com a saúde mais frágil: havia contraído malária. Ainda assim, retorna com planos

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de escrever uma obra sobre essa região nos moldes de Os Sertões. Desta viagem, são escritos dois livros: Peru versus Bolívia e À margem da História, este último mais poético e publicado depois de sua morte. “Ele tem um comportamento que também é muito comum em relação aos jornalistas, sobretudo aos jornalistas de viagem”, ressalta a estudiosa Letícia Maillard. Até hoje há jornalistas que saem para fazer matérias e depois o material que eles têm é tanto que acabam escrevendo um livro. Os Sertões é considerado um livro-reportagem, ainda que naquela época não existisse essa classificação. “Ele não foge ao padrão do bom jornalista que, quando está empenhado em uma matéria, em investigá-la à fundo, tem tanto material que não cabe em uma matéria simples de jornal”, comenta a professora.

Euclides em casa Um escritor tão importante para a literatura brasileira e de saúde tão frágil morreu cedo. Mas não de doença e sim de tiro, nas mãos do amante da mulher. Euclides da Cunha era casado com Ana, com quem teve dois filhos. Ana era amante de Dilermando de Assis, com quem teve outros dois filhos, ainda casada com Euclides. Inclusive, o primeiro deles morreu por inanição porque Euclides proibiu a esposa de alimentá-lo. Em 1909, Euclides da Cunha, com 43 anos, entra armado na casa do amante da mulher, disposto a matá-lo. Mas Dilermando reage ao ataque e mata o imortal da Academia de Letras. Este episódio é conhecido como “Tragédia da Piedade”, pois aconteceu no bairro da Piedade, no Rio de Janeiro. O segundo filho de Euclides decide, então, vingar a morte do pai, mas acaba também morto. Pouco depois, Ana se casa com Dilermando e passa a se chamar Ana de Assis. Henry Bacon, estudioso da biografia de Euclides, assume que o escritor não foi uma pessoa fácil. “Euclides vivia pelos conhecimentos gerais, pelo bem da humanidade, mas a gente percebe que ele não cuidou bem de sua família. Financeiramente ele providenciou comida, habitação... Mas eu acho que ele deu muito pouca atenção para eles”. Ainda assim, Bacon defende o escritor. “Desde pequeno ele foi tuberculoso, recebeu a doença da mãe que morreu de tuberculose. Isso afeta a personalidade da pessoa, né? Então devemos ter simpatia por ele”. Simpático ou não, escreveu um dos livros mais complexos da nossa literatura.


Nasceu em Quixeramobim, no Ceará, Antônio Vicente Mendes Maciel: o Antônio Conselheiro. Antes de virar um líder popular, foi advogado, professor e comerciante. Depois que a mulher o largou para ficar com um sargento, ele começou sua peregrinação pelo sertão brasileiro. Viveu como nômade por 25 anos, pregando passagens do evangelho e predizendo o fim do mundo para a virada para o século XX. Também consta que nessa época já havia parado de cortar os cabelos e a barba e usava um camisolão azul de brim, chapéu de aba larga, sandálias e o cajado de peregrino. Em 1893 se estabeleceu no arraial de Canudos junto aos seus seguidores – eles não pararam de chegar até quando as tropas militares cercaram o povoado. Canudos era uma comunidade onde todos tinham acesso à terra e ao trabalho, sem os maus-tratos dos capatazes das fazendas recém-saídas da escravidão. Era um lugar santo. Por essa razão, os grandes fazendeiros e a igreja sentem que seu poder estava ameaçado e acionam o governo federal para resolver o problema. Como Conselheiro pregava que a República era a materialização do reino do Anti-Cristo na Terra, o jovem governo brasileiro decide acabar com a comunidade com extrema violência. Porém encontram resistência. Foram enviadas quatro expedições a Canudos, três delas foram escorraçadas da região pela tática de guerrilha adotada pelos sertanejos. A quarta e última conseguiu, depois de seis meses,

tomar o povoado. No dia 5 de outubro de 1897, cai o arraial. “Ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”. É de Antônio Conselheiro a famosa frase “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, citada na música Sobradinho, da dupla de rock rural Sá e Guarabyra. Em Canudos, vários cadernos foram encontrados com suas profecias e esta foi coletada por Euclides da Cunha: “Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão”.

Texto: Lívia Aguiar Ilustração: Rafael Sete

Sobre o Sertão: Grande sertão: Veredas • Guimarães Rosa (1956) Vidas Secas • Graciliano Ramos (1938)

Livros de viagem: Mar sem Fim • Amyr Klink (Companhia das Letras, 2000) Mongólia • Bernardo Carvalho (Companhia das Letras, 2003) As vozes de Marrakech • de Elias Canetti (Cosac Naify, 2007)

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ESCRITA

EM VERSOS Capítulo 3

Motivo Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noutes e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço - não sei, não sei. Não sei se fico ou se passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa rimada. E um dia sei que estarei mudo: - mais nada.

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Toda vida tem um propósito. A de Cecília era dedicada a educar e escrever. Pelas mãos do poeta Olavo Bilac, a menina foi diplomada em 1910 com “distinção e louvor” ao terminar o curso primário. Bilac também emprestava seu nome ao prêmio que Cecília recebeu, em 1939, pelo seu quarto livro de poesias, Viagem. No intervalo de quase 30 anos que separou as duas aparições significativas do poeta em sua vida, Cecília Meireles se formou no curso normal superior, deu aulas, escreveu livros didáticos e textos sobre a educação no país. Cecília não conheceu o pai, morto três meses antes do seu nascimento. Não chegou, também, a conhecer os três irmãos mais velhos. Com a mãe, conviveu pouco tempo, menos de três anos. Depois de casada, a poeta ainda sofreu com o suicídio do primeiro marido e com a morte da avó que a criou.

O prêmio na Academia Brasileira de Letras não foi unanimidade. O nome de Cecília foi indicado por Cassiano Ricardo, que era relator da comissão de poesia. Era a primeira vez que uma mulher recebia a premiação. Foi o suficiente para causar polêmica. O modernista Mário de Andrade, por exemplo, reclamava que Cecília teria se curvado à “perniciosa e pouco fecunda ABL”. Cecília nunca teve uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, pois na sua época as mulheres ainda não eram admitidas. Sua dedicação à educação também se traduziu na criação da primeira biblioteca infantil brasileira, no Rio de Janeiro. Com alguns amigos, Cecília realizou um sonho de criança. Até que, em 1937, a autoridade da época invadiu o local e apreendeu As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain. Algum tempo depois, a biblioteca foi fechada pelo governo.


Inspire-se no nome da obra mais reconhecida de Cecília Meireles e faça uma “Viagem” de sons, sensações e imagens criadas por palavras. Um aviso: o passeio fica melhor com uma companhia e se for feito em voz alta

Cecília dizia que a intimidade com a morte ensinou-a sobre as relações entre o efêmero e o eterno e afirmava que nunca teve problemas com ganhar ou perder. Essa noção era o fundamento da sua personalidade. Dizia: “minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde, foi nessa área que os

Orfandade A menina de preto ficou morando atrás do tempo, sentada no banco, debaixo da árvore, recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados. Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido, e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse, murmurou: “A MAMÃE MORREU”. Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também. O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras, escutando na terra aquele dia que não dorme com as três palavras que ficaram por ali.

Ler poesias é fácil. A principal dica é seguir a pontuação. Parece óbvio, mas muitas vezes paramos no final do verso, como se existisse ali um ponto final. Só que muitas vezes, o verso termina até mesmo sem vírgula! Por isso, siga em frente e só pare no primeiro sinal de pontuação. Uma dica: em voz alta é mais fácil ler e entender o sentido do texto.

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livros se abriram e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano”. Na apresentação de uma das edições mais recentes de Viagem, a professora e escritora Marisa Lajolo fala que os livros de Cecília “mergulham o leitor em clima de espanto maravilhado e inquirição serena face aos mistérios da existência humana”. Para ela, o leitor que se deixar “ceciliar” fica em boa companhia. A musicalidade da obra é delicada e o leitor de ouvido sensível “mergulha num tecido harmônico de sons”, muitas vezes anunciado por títulos.

Chamam atenção a sensibilidade e a docilidade dos poemas. A poesia de Cecília leva o leitor a enxergar em imagens o que ela, a poeta, diz com palavras. Viagem não é apenas livro de cabeceira. Em 2006, a Universidade Federal de Minas Gerais indicou o livro para o vestibular da instituição. Os motivos? Além de ser a primeira grande obra reconhecida da autora, Viagem é exemplo de muitas características da poesia ceciliana. O lirismo das poesias serve de antídoto à brutalidade dos tempos atuais. E que antídoto!

Em Viagem, o leitor é apresentado a canções, cantigas e cantiguinhas, serenatas, despedidas e até mesmo a grilos. O maior destaque vai para os epigramas, que aparecem 13 vezes.

Marisa Lajolo garante que, para os leitores, os poemas de Cecília “respondem questões fundamentais, como as que se voltam para as perdas, buscas, encontros e identidades”. Transitoriedade de encontros que a poeta aprendeu com a própria vida. Emprestando as palavras de Cecília, nos despedimos dessa matéria para nos dedicarmos à leitura completa do livro Viagem.

Epigrama é o nome dado a uma pequena composição em versos sobre qualquer assunto. Ele pode, também, ser breve e satírico, expressando de forma bastante incisiva um pensamento ou um conceito malicioso.

Carlos Drummond de Andrade dizia que Cecília Meireles era “mulher bela e poeta. Mas principalmente deusa”. Além de Drummond, Cecília era amiga de outros escritores como José Lins do Rêgo e Murilo Mendes. Ela também não se considerava poetisa, e sim poeta, no masculino mesmo.

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Murmúrio Traze-me um pouco das sombras serenas que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra apenas – vê que nem te peço alegria. Traze-me um pouco da alvura dos luares que a noite sustenta no seu coração! A alvura, apenas, dos ares: – vê que nem te peço ilusão. Traze-me um pouco da tua lembrança, aroma perdido, saudade da flor! – Vê que nem te digo – esperança! – Vê que nem sequer sonho – amor! Cecília escreveu outros livros de poesias antes de Viagem, mas ela não gostava muito deles e não os citou na Antologia Poética (lançada em 1963). Foram escritos durante a adolescência da autora. Seus livros mais conhecidos são Ou isto ou aquilo (infantil) e Romanceiro da Inconfidência, poema rimado que conta a história da Inconfidência Mineira.

Texto: Marina Borges Ilustração: Ângela Bacon


Epigrama nº 8 Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda. Sabendo bem que era nuvem, depus minha vida em ti. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil, fiquei sem poder chorar, quando caí.

Despedidas Vais ficando longe de mim como o sono, nas alvoradas; mas há estrelas sobressaltadas resplandecendo além do fim.

Quadras Na canção que vai ficando já não vai ficando nada: é menos do que o perfume de uma rosa desfolhada.

• Os ramos batem nas águas: têm de ferir, para andar. As águas vão consentindo esse é o destino do mar.

• Passarinho ambicioso faz nas nuvens o seu ninho. Quando as nuvens forem chuva, pobre de ti, passarinho.

• O vento do mês de agosto leva as folhas pelo chão; só não toca no teu rosto que está no meu coração.

Os ramos passam de leve na face da noite azul. É assim que os ninhos aprendem que a vida tem norte e sul.

• A cantiga que eu cantava, por ser cantada, morreu. Nunca hei de dizer o nome daquilo que há de ser meu.

• Ao lado da minha casa morre o sol e nasce o vento. O vento me traz teu nome, leva o sol meu pensamento.

Bebo essas luzes com tristeza, porque sinto bem que elas são o último vinho e o último pão de uma definitiva mesa. E olho para a fuga do mar, e para a ascensão das montanhas, e vejo como te acompanhas – para me desacompanhar. As luzes do amanhecimento acharão toda a terra igual. – Tudo foi sobrenatural, sem peso de contentamento, sem noções do mal nem do bem – jogo de pura geometria, que eu pensei que se jogaria, mas não se joga com ninguém.

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TÁ NA REDE Capítulo 4

é só abrir

e baixar

O site DominioPublico.gov.br é o maior portal de textos grátis em língua portuguesa. E não é pirataria Imagine só poder entrar em uma biblioteca e levar para casa todos os livros que quiser e nunca mais precisar devolver. Este é o site Domínio Público (www.dominiopublico.gov. br), uma biblioteca digital da Secetaria de Educação à Distância do Ministério da Educação. Lá é possível baixar, de graça e sem cadastro, as mais diversas obras da literatura nacional e internacional. Existe a desvantagem de ler na telinha do computador, ou gastar rios de dinheiro com impressão, mas na falta de uma biblioteca física, ele quebra o galho. DomínioPúblico.gov possui atualmente 122 mil textos, sons, imagens e vídeos. Destes, 108.000 são arquivos de texto, 80.400 deles em língua portuguesa. Entre as 50 obras mais acessadas estão 13 peças de teatro do inglês William Shakespeare, 9 livros de Machado de Assis e 12 arquivos de coletâneas de poemas de Fernando Pessoa. É possível encontrar principalmente textos escritos há mais

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de um século, já que é preciso que as obras caiam em domínio público para poderem ser distribuídas gratuitamente. A internet permite a reprodução e a multiplicação das mais diversas formas de arte – mas nós sabemos que nem sempre essa é uma prática correta perante a lei. Existem vários sites que digitalizam obras artísticas sem a permissão dos autores ou sem terem entrado em domínio público e colocam na internet para download. Entram nessa conta as músicas em mp3, filmes, jogos, fotos, ilustrações e até livros! Essa prática – embora muito difícil de ser controlada – está na mira da justiça internacional. Alguns artistas vêm nadando contra a corrente das gravadoras e editoras e lançam suas obras na internet de graça. Na dúvida entre andar ou não na linha, é mais seguro baixar arquivos dos sites e portais oficiais, como o DomínioPúblico. gov, que respeitam as normas de direitos autorais. De longe, a obra mais procurada do DomínioPúblico.gov é a Divina


Como cair em domínio público? O que é domínio público? A propriedade intelectual garante que seu autor tenha direitos sobre o que criou – e isso significa uma parte do valor da venda dos seus livros e o poder de decisão sobre o seu uso. É o escritor que decide se sua obra pode ser adaptada para o cinema, por exemplo, e como será essa adaptação. O criador de uma obra artística ou científica pode vender seus direitos para outra pessoa ou empresa. O domínio público é o conjunto de bens culturais, de tecnologia ou de informação – livros, artigos, músicas, pinturas, invenções e outros – que não pertence exclusivamente a ninguém. A propriedade intelectual desses bens é herança cultural da humanidade e são de uso livre de todos.

Comédia, com 820 mil acessos desde sua disponibilização (em segundo lugar estão os Poemas de Fernando Pessoa, com 290 mil acessos). A obra é um longo épico escrito em forma poética entre os anos 1304 e 1321 pelo italiano Dante Alighieri. Ela é dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. A obra se chama Comédia não por ser engraçada, mas porque termina bem (no Paraíso). Era esse o sentido original da palavra Comédia, em contraste com a Tragédia, que dava um final trágico para os personagens. A tradução abaixo dos primeiros versos da Divina Comédia também já está em domínio público: foi feita por José Pedro Xavier Pinheiro no século XIX.

Cada país tem a sua lei que regula a duração dos direitos autorais. No Brasil, se o autor deixa herdeiros, os direitos passam para eles e duram 60 anos contados a partir de 1° de janeiro do ano seguinte à sua morte. Se o autor não tiver filhos ou outro sucessor legal, quando ele morre a sua obra cai automaticamente em domínio público. As obras de autores desconhecidos, claro, também são de domínio público. Se o autor for desapegado o suficiente, ainda em vida ele pode doar sua criação para o domínio público através de uma licensa digital chamada Creative Commons (www. creativecommons.org – site em inglês). Essa licensa permite ao autor decidir se ele disponibiliza sua obra apenas para reprodução e publicação sem fins lucrativos ou se autoriza até a sua alteração e uso comercial.

Da nossa vida, em meio da jornada, Achei-me numa selva tenebrosa, Tendo perdido a verdadeira estrada, Dizer qual era é cousa tão penosa, Desta brava espessura a asperidade, Que a memória a relembra inda cuidosa Na morte há pouco mais de acerbidade; Mas para o bem narrar lá deparado De outras cousas que vi, direi verdade.

Texto: Lívia Aguiar Ilustração: Ângela Bacon

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CAPA Capítulo 5

T u d o pode aco ntece r Andam em tapete voador, montam laboratórios de alquimia, lutam guerras civis, viram marinheiros, têm casos incestuosos, sobrevivem a um massacre do qual ninguém se lembra, sobrevivem ao fuzilamento, são marcados de morte, enriquecem, empobrecem, enlouquecem, crescem, odeiam, amam, enfrentam todos os tipos de solidão. Esta é a família Buendía. Cem anos de solidão é a sua história

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Tudo começa com a fundação da cidade de Macondo por José Arcádio Buendía, sua mulher Úrsula Iguarán e seus companheiros de expedição. Eles “atravessaram a serra procurando o mar, e ao fim de vinte e seis meses desistiram da empresa e fundaram Macondo, para não empreender o caminho de volta”. Sua localização era tão remota que os ciganos, os primeiros forasteiros, só a encontraram devido ao barulho ensurdecedor que emanava da região – fruto das gaiolas de passarinhos cantores que José Arcádio Buendía instalou em todas as casas da cidade. O primeiro filho, José Arcadio como o pai, nasce ainda durante a expedição de fundação de Macondo. Já Aureliano foi o primeiro ser humano a nascer no povoado. Os dois inauguram uma tradição de filhos com o mesmo nome e, ao longo da narrativa, vai ficando difícil separar os Aurelianos e José Arcádios da história. Para distinguí-los bem, recomendamos que vá tomando notas acerca dos personagens – veja o infográfico que fizemos, nas páginas 38 e 39. A narrativa de Cem anos trata igualmente os acontecimentos possíveis e impossíveis, de forma que episódios fantásticos, como a ascenção aos céus de Remedios, a bela, confundem-se com releituras de acontecimentos reais, como o do massacre dos manifestantes da companhia bananeira (leia esses trechos nas páginas 35 e 36).

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O colombiano García Marquéz, 81 anos, relatou, em seu livro de memórias Viver para Contar, como construiu, em Cem anos de Solidão, o impressionante relato da matança: “Falei com sobreviventes e testemunhas e revirei coleções de jornais e documentos oficiais. Os conformistas chegavam a dizer que não houve morto algum. Os do extremo contrário afirmavam sem tremer a voz que foram mais de cem. Minha verdade ficou extraviada para sempre em algum ponto improvável dos dois extremos”. O episódio ocorreu em Aracataca em 1928 e foi narrado inúmeras vezes por seu avô quando era pequeno.

Da vida para o romance Gabriel García Marquéz - Gabo, para os íntimos - nasceu em um pequeno povoado da Colômbia chamado (surpresa!) Aracataca, em 1928 (ainda que seu pai defendesse que foi em 1927). Foi criado pelos avós Tranquilina Iguarán Cotes e Coronel Nicolás em uma casa de “incontáveis tias e rumores de fantasmas”. Ali passa sua infãncia até os 8 anos de idade, quando morre seu avô, um dos fundadores desta cidade na costa colombiana. Qualquer semelhança com Cem anos de solidão não é mera coincidência. O jovem escritor vai estudar, então, em Barranquilla, onde seu sono era embalado pelos contos árabes das Mil e uma Noites. Já homem crescido, em 1946, vai à capital Bogotá estudar Direito, mas não conclui o curso. Dois anos depois se estabelece em Cartagena como jornalista. Encantado pelo livro A Metamorfose de Franz Kafka, mergulha na leitura de clássicos para “colocar tudo em dia”. Escreveu e publicou seu primeiro conto, A terceira resignação, ainda em 1947 no jornal El Espectador. Já na década de 50, volta com sua mãe à casa de Aracataca. A cidade parecia morta, congelada no tempo. As lembranças de quando era pequeno somadas às impressões de sua visita inspiram a criação de Macondo (palavra que significa “banana” em bantu, língua de origem africana) e seu primeiro romance, que se passa na cidade: Folhas Mortas. Em 1952 o livro é recusado pela editora e só é publicado em 1955. Neste ano, García Marquéz publica também O Relato de Um Náufrago, história verídica do naufrágio de um homem chamado Luis Alejandro Velasco. Ainda na década de 50, seu interesse por cinema o leva à Roma, onde estuda no Centro Experimental de Cinema. Em 1986, funda a Escola Internacional de Cinema e Televisão em Cuba – para apoiar a carreira de jovens da América Latina, Caribe, Ásia e África – , onde dá aulas de roteiro até hoje.


Gestação de uma obra-prima Em 1965, Gabo já havia publicado dez contos, cinco romances e uma obra jornalística (O Relato de um Náufrago). Já conhecia a Europa, os Estados Unidos e boa parte da região do Caribe. Morava na Cidade do México com a mulher Mercedes e dois filhos. Desde os 18 anos era atormentado pela idéia de escrever um romance que se passasse apenas dentro de uma casa e onde tudo pudesse acontecer. Foi em uma viagem de carro a Acapulco, no México, que o escritor teve uma epifania (veja o destaque abaixo). Ele para o carro e diz a Mercedes: “Encontrei o tom! Vou narrar a história com a mesma carade-pau que minha avó contava suas histórias fantásticas, partindo daquela tarde em que o menino é levado pelo pai para conhecer o gelo!”. Desiste de ir a Acapulco. O escritor passa um ano e meio trancado em um quarto, sem trabalhar em mais Epifania nada além do livro. A história sai de casa, mas não É uma súbita sensação de realização ou compreensão da cidade: Macondo, o lugarejo onde acontece de da essência ou do signifitudo. Quase sem dinheiro, cado de algo. O termo é usado nos sentidos filosófi- o envio dos originais à co e literal para indicar que editora argentina custou alguém finalmente achou a os últimos 50 pesos que o casal possuía, um secador última peça do quebra-cade cabelos, um aquecedor beças e agora consegue ver e uma batedeira – penhosua imagem completa. rados por outros 50 pesos.

A moça voadora “Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida. - Você está se sentindo mal? – perguntou a ela. Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade. - Pelo contrário – disse – nunca me senti tão bem. Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar”. Trecho editado do romance Cem Anos de Solidão

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Rajadas ao vento

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"– Senhoras e senhores – disse o capitão com uma voz baixa, lenta, um pouco cansada –, têm cinco minutos para se retirar. A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de clarim que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu. – Já passaram os cinco minutos – disse o capitão no mesmo tom. – Mais um minuto e atiramos. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos de artifício. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento. Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva. Várias vozes gritaram ao mesmo tempo: – Atirem-se no chão! Atirem-se no chão! Já os das primeiras linhas o tinham feito, varridos pelas rajadas da metralha. Os sobreviventes, em vez de se atirarem no chão, tentaram voltar à praça e o pânico deu uma rabanada de dragão, e os mandou numa onda compacta contra a outra onda compacta que se movimentava em sentido contrário, Trecho editado despedida pela outra rabanada de dragão da do romance rua oposta, onde também as metralhadoras Cem Anos de disparavam sem trégua." Solidão


A mulher, que não havia lido o livro, diz então ao marido: “Agora só falta o livro ser ruim”. Felizmente, Cem Anos de Solidão recebeu críticas positivas dos companheiros escritores Julio Cortázar e Carlos Fuentes e foi um estrondoso sucesso. “Vendeu como cachorro quente”, nas palavras de seu autor. A primeira edição, de 5 mil exemplares, esgotou em 15 dias. A segunda foi de mais de 10 mil exemplares e acabou com o estoque de papel da editora Sudamericana. Cem anos de Solidão já vendeu mais de 30 milhões de exemplares em 35 idiomas.

Realidade impossível García Marquéz é um dos escritores que participaram do realismo mágico e Cem anos de solidão é o livro mais famoso deste movimento que tem o interesse de mostrar o irreal ou estranho como algo comum. Ele fez parte da primeira explosão de publicações literárias nas décadas de 50 e 60 nos países de língua espanhola na América. Esse “boom” foi causado pela junção de três fatores principais: a abertura de muitas casas editoriais, a existência de interessantes jovens escritores latinoamericanos e a vinda de intelectuais exilados da Espanha pós-guerra civil. Isabel Jasinski, professora de literatura latinoamericana da Universidade Federal do Paraná, lembra que “esse movimento não foi deliberado, não teve manifesto, não foi decorrente da união dos autores em torno de uma proposta estética, mas aconteceu naturalmente sem que eles soubessem uns dos outros”, magicamente. Além do realismo mágico, o Neobarroco e o

Novo Romance Histórico Latinoamericano são os outros dois eixos estéticos que surgiram durante o “boom”. Além de García Marquéz, os principais escritores do período foram Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Julio Cortázar e Juan Rulfo. Realismo maravilhoso, real maravilhoso, realismo fantástico... não importa como é chamada a receita que mistura o real e o impossível em uma mesma tigela. Em Pedro Páramo (1955), do mexicano Juan Rulfo – considerada por García Marquéz e Jorge Luís Borges a obra culminante do realismo mágico – o personagem principal Juan Preciado, depois da morte de sua mãe, vai até a cidade de Comala à procura de seu pai. Acontece que lá (quase) todos estão mortos, ainda que Juan os veja e converse com eles em momentos da narrativa. Durante a história, não temos certeza de quem é um fantasma ou uma pessoa real, mas isso nem importa. No romance, o tema central é o regime de dominação que a família Páramo exerce sobre a cidade e as fascinantes relações entre seus habitantes. Até Juan passa desta para a melhor – e paramos de contar a história por aqui. Experimentações na linguagem e na relação do livro com seu leitor foram marcantes no realismo mágico, como na obra do argentino Julio Cortázar. Seu livro mais famoso é O jogo da Amarelinha (1963), romance cujos capítulos podem ser lidos de três maneiras distintas: do jeito tradicional, do primeiro ao 56º capítulo; seguindo a ordem de capítulos sugerida por Cortázar começando pelo 72º ou ler em qualquer ordem que o leitor deseje (fórmula sugerida também na obra 62/Modelo para armar, escrita em 1968).

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Lembra-te sempre de que eram mais de três mil e que os jogaram ao mar. Em seguida caiu de bruços sobre os pergaminhos e morreu com os olhos abertos. Nesse mesmo instante, na cama de Fernanda, o seu irmão gêmeo chegou ao fim do prolongado e terrível martírio dos caranguejos de ferro que lhe carcomiam a garganta. Uma semana antes voltara para casa, sem voz, sem fôlego, e quase só pele e ossos, com os seus baús errantes e o seu acordeão de perdulário, para cumprir a promessa de morrer junto à esposa. Petra Cotes ajudou-o a juntar as suas roupas e despediu-o sem derramar uma lágrima, mas se esqueceu de lhe dar os sapatos de verniz que ele queria trazer no ataúde. De modo que quando soube que

GERAÇÃO

1a

Nicanor Ulloa

Rebeca Montiel

José Arcadio O marinheiro viril

2a

Rebeca A órfã comedora de terra

3a

Santa Sofia de la Piedad

4a

Remedios, a Bela A mulher mais bonita do mundo

Arcadio O professor ditador

5a

José Arcádio Buendía O patriarca sonhador

Pilar Ternera

Aureliano José O apaixonado incestuoso

José Arcadio Segundo O gêmeo sobrevivente

Petra Cotes

Gaston

Filha adotiva

6a

Casamentos e filhos

Relacionamentos fora do casamento e filhos

7a

Do jornal para o livro Frequentemente o jornalismo ajudou Gabriel García Marquéz como fonte de renda, mas também como inspiração – muitas vezes o escritor partiu suas histórias de algum caso que teve que cobrir para a imprensa ou de notícias que tiveram grande repercussão. Um exemplo é a obra Crônica de uma morte anunciada (1981). Baseada em fatos reais, nela Gabo realiza o sonho jornalístico de mostrar todos os lados de uma história: narra a morte de Santiago Nasar sob o ponto de vista do assassino, da sua mãe, da empregada, da noiva e até do próprio morto. As diversas opiniões que os personagens têm sobre o assunto não se amarram e misturam imaginação, embriaguez, fofocas e fatos – sem a tentativa de decidir um final que una todas as histórias. É do leitor o

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papel de imaginar qual é a narrativa verdadeira, se é que há uma totalmente sem invenção. No ano seguinte à publicação de Crônica de uma morte anunciada, Gabriel García Marquéz recebe o Nobel de Literatura. Ele foi o terceiro latinoamericano a ganhar o prêmio, depois do guatemalteco Miguel Ángel Asturias e do chileno Pablo Neruda. Já em 1972 Gabo reúne seu trabalho jornalístico na obra Quando era feliz e indocumentado. Mais tarde, em 1994, ele, seu irmão Jaime e o advogado Jaime Abello criam a Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano (em português, Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano), que tem o objetivo de estimular novas formas de fazer jornalismo e oferece cursos e bolsas de aprofundamento para jovens jornalistas. Em 1999


Árvore genealógica da família Buendía Úrsula Iguarán A matriarca empreendedora

Coronel Aureliano Buendía O guerrilheiro ourives

Remédios Moscote

17 Aurelianos Os marcados para morrer

Amaranta A velha virgem

Fernando del Carpio

Aureliano Segundo O gêmeo novo rico

Renata Argote

Fernanda del Carpio

Amaranta Úrsula A verdadeiramente amada

José Arcadio O que ia ser Papa

Renata Remedios A disciplinada silenciosa

Maurício Babilônia

Aureliano Babilônia O que sabe de tudo

Aureliano O com rabo de porco

García Marquéz foi diagnosticado com câncer linfático e se curou com quimioterapia. Hoje mantém check-ups constantes para evitar um novo susto. Apesar da interrução da doença, o escritor continua produzindo. Em 2002, publicou sua auto-biografia Viver para contar. Seu último romance publicado, Memórias de Minhas Putas Tristes, foi lançado em 2004. Em resposta aos boatos de que pararia de escrever, afirma: "Não só não é verdade, como a única verdade é que não faço outra coisa na vida a não ser escrever". García Marquéz tem a rotina de escrever todos os dias das dez da manhã às duas da tarde. Como ele mesmo disse quando ganhou o prêmio Nobel: "frente à opressão, ao saque e ao abandono, a nossa resposta é a vida".

Leia mais: Jogo da Amarelinha • Julio Cortázar Civilização Brasileira, 1963 O Amor nos tempos de Cólera • Gabriel García Marquéz Record, 1985 Travessuras da Menina Má • Mário Vargas Llosa Alfaguara Brasil, 2006 Texto: Lívia Aguiar Ilustração: Ângela Bacon

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VIAJE Capítulo 6

O ∙m u n d o e m ∙m a i s o u ∙m e n o s

80 ∙di as Viajar de elefante, fazer parte de um grupo de acrobatas japoneses, atravessar um campo nevado de trenó e ainda ter tempo para resgatar uma donzela em perigo: a aventura imaginada por Júlio Verne parece impossível, mas não duvide. Tudo pode acontecer quando saímos para ver o mundo

oitenta dias ou menos, ou seja mil novecentas e vinte horas ou cento e quinze mil e duzentos minutos. Aceitam?” O livro foi adaptado cinco vezes para o cinema, originou séries de televisão, peças de teatro e animações e ainda inspira viajantes de todo o mundo. Naquele tempo, 2 de outubro de 1872, nada de aviões ou trens-bala facilitavam a viagem. O mundo ainda estava sendo desbravado. Muitos tentaram repetir a façanha do inglês fleumático e seu animado escudeiro, o mordomo francês Passepartout, mas a pressa pode não ser a melhor forma de viajar. Phileas Fogg sai pouco da cabine e quase não olha pela janela dos trens que toma. Está preocupado com os horários, as conexões de trem, a atualização da tabela de ganhos e perdas de horas. Já Passepartout vira palhaço no

Texto: Lívia Aguiar • Infográfico: Délio Faleiro Melo Senhor Fogg toma café da manhã às 9h23, sai de casa às 11h30, sua água para fazer a barba deve estar à 86º Fahrenheit (30ºC). Frequenta apenas um lugar: o Reform Club, frequentado por cavalheiros prestigiados de Londres, cidade onde mora. No clube, ele lê três jornais até as 18h10, quando seus colegas de whist (veja o box) chegam e jogam até pouco antes da meia noite, hora de dormir. Toda essa rotina é seguida com a calma de quem não tem que se preocupar com dinheiro, trabalho ou família. Provavelmente nem rugas de preocupação Phileas possuía. Este é o personagem principal de A Volta ao Mundo em 80 Dias, escrito pelo francês Júlio Verne, em 1873.

Whist Jogo de cartas similar ao Copas que foi muito popular na Europa nos séculos XVIII e XIX. Em cada rodada, os quatro participantes jogam, cada um, uma carta com o mesmo naipe do primeiro. Há no jogo um naipe coringa, que é sempre maior que as outras cartas.

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O que fez esse cara chato realizar uma fascinante viagem ao redor do globo, passando por quatro continentes, três oceanos e dois mares? Não foi o sentimento de aventura, é claro. A razão é apenas uma aposta. Phileas Fogg apostou com seus colegas de jogo o equivalente a 65 mil reais! “— Um bom inglês não brinca jamais, quando se trata de uma coisa tão séria quanto uma aposta, respondeu Phileas Fogg. Eu aposto vinte mil libras contra quem quiser que farei a volta ao mundo em

(trenó nos eua, elefantes na índia)

londres a suez - 7 dias suez a bombaim - 12 dias bombaim a Calcutá - 4 dias Calcutá a hong Kong - 13 dias hong Kong a yokohama - 6 dias yokohama a são Francisco - 22 dias são Francisco a nova iorque - 7 dias nova iorque a londres - 9 dias

total = 80 dias


Viagem aérea Apesar de ser uma imagem recorrente, em nenhum momento os personagens do livro viajam de balão. Eles apenas consideram essa possibilidade. Esse meio de transporte foi imortalizado pela adaptação cinematográfica mais famosa, dirigida por Michael Anderson em 1956

Japão, se disfarça de morto ressuscitado na Índia, é sequestrado por índios nos Estados Unidos... Mas o próprio Júlio Verne nunca saiu da França! Era a sua imaginação que o permitia viajar por todos os lugares (inclusive os nunca visitados pelo homem). É certo que por mais que nos contem nos livros, na televisão ou na internet, sobre comidas, cheiros e hábitos que existem do outro lado do mundo, viajando é que sabemos como são de verdade. A jornalista de viagens Rachel Verano ressalta que “a parte mais fascinante de viajar é se sentir um ‘alienígena’. Conhecer pessoas e culturas diferentes”. Ler é importante inclusive para formar em nós a curiosidade em conhecer o mundo.

Volta ao mundo em 365 dias “Já fui convidada para casamentos na Índia, conhecemos monges no Camboja, ficamos amigos dos nepaleses que nos acompanharam pelo país... são experiências que eu jamais vou esquecer”. A jornalista de viagens Rachel Verano está, até outubro de 2009, realizando uma viagem de um ano ao redor do mundo na companhia de seu marido, fotógrafo de viagens, Marco Pomárico. Este era um projeto de vida desde que começou a trabalhar na revista Viagem e Turismo da editora Abril, em 2002, e se tornou realidade graças ao "Round the World Ticket". A RTW – ou, em português, "Passagem de Volta ao Mundo" –, é vendida por três alianças de companhias aéreas que fornecem diferentes possibilidades de trechos de avião para a empreitada. Em todas elas, a passagem deve ser emitida no país de partida (que também é o ponto de chegada), a viagem deve durar no mínimo 10 dias e no máximo um ano, com até 16 trechos aéreos. É preciso planejar todos os vôos no ato da compra, mas as datas podem ser modificadas ao longo da viagem. A RWT custa a partir de 3 mil reais.

Rachel pelo deserto de Thar, na Índia

Leia mais: Os livros mais famosos de Júlio Verne (todos em domínio público) são os de ficção científica, como: • Viagem ao Centro da Terra (1864) • Da Terra à Lua (1865) • Vinte Mil Léguas Submarinas (1870)

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lendo imagens Capítulo 7

irredutíveis gauleses “Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor. E a vida não é nada fácil para as guarnições de legionários romanos nos campos fortificados de Babaorum, Aquarium, Laudanum e Petibonum...” Os romanos e toda sua organização de guerra que dominou a Europa não assustam Asterix e Obelix. Seu único medo é que o céu caia sobre suas cabeças A Terra é plana como uma panqueca, a América não está no mapa, a África e a Ásia são terras pouco conhecidas com línguas incompreensíveis, a Europa está dominada pelo Império Romano e o céu não está muito firme lá em cima e pode cair a qualquer momento. É assim que Asterix e Obelix veem o mundo. Um é baixinho, inteligente, cabeçudo e teimoso. O outro é grande, um pouco lento de raciocínio, gordo (só não fale isso para ele!), bom de coração e muito sensível. São uma boa dupla, que não tem medo de nada além do céu instável. Piratas raivosos, legiões de soldados romanos, godos, vikings, belgas, egípcios, feiticeiros malignos... são todos uma boa diversão para os gauleses criados pelos quadrinhistas franceses Albert Uderzo e René Goscinny, em 1959. A série de Asterix já foi traduzida em 107 línguas e dialetos e vendeu mais de 300 milhões de exemplares. É possível ler Asterix até em latim! Dentro das páginas os gauleses também viajam. Durante sua série de aventuras – que está hoje no número 33 – eles descobrem a América, nadam nas águas do Nilo no Egito, viajam à África como soldados romanos e até enfrentam extra-terrestres. A série

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Capas de aventuras de Asterix e Obelix lançadas no Brasil

faz um humor sutil, que A série de Asterix já zomba da maneira de foi traduzida em 107 ser francesa e também dos povos visitados pelínguas e dialetos e los personagens. Cada vendeu mais de 300 nacionalidade tem seus nomes com a mesma milhões de exemplares. terminação, geralmente É possível ler Asterix com algum trocadilho: os gauleses terminam até em latim! em “ix” (o cantor desafinado da aldeia se chama Chatotorix, o esperto cachorro de estimação do Obelix tem o nome de Ideiafix). Já os romanos, à exceção de César, têm os nomes terminados em “us” (Acendealus, Apagalus, General Motus); os egípcios, “is” (Pedibis, Quadradetenis, Numeróbis) e os vikings em “sen” (Kerosen, Franksen). Os deuses de cada um dos povos também aparecem: os romanos sempre gritam “por Jupiter!”, já os egípcios exclamam “por Osiris!” e os gauleses xingam “por Tutatis!” ou “por Belenos!”

“Estes romanos são uns neuróticos” Quando algum perigo ameaça a aldeia, o druida Panoramix corre para a floresta e colhe os ingredientes secretos da sua famosa poção mágica. Ela dá força sobre-humana para quem bebe, mas dura apenas algumas horas. A aldeia toda se enfileira para tomar o seu golinho, mas Obelix fica de fora. Ele não pode tomar a poção de jeito nenhum porque caiu dentro dela quando era bebê e está permanentemente sob seus efeitos – mas isso não impede que ele tente enganar o druida. Guloso que é, morre de vontade de experimentar o gosto da bebida mágica. Diante dos soldados romanos, ao invés de ter medo, os gauleses se animam: “Oba! Romanos!” “Deixem para mim! Deixem alguns para mim!" é o que gritam quando saem em

debandada atrás dos amedrontados legionários. Obelix, é claro, é o que mais se aproveita da fraqueza dos soldados e nunca está satisfeito com a quantidade deles que nocauteia. Não são só os romanos que sentem a fúria da poção mágica. Em algumas histórias, um grupo de piratas destrói o próprio navio quando vêem Asterix e Obelix em outro barco, de tanto medo dos seus pulsos poderosos! Mas a aldeia não tem só inimigos: viajam ao Egito para ajudar a rainha Cleópatra, apóiam os bretões (que viviam onde hoje é a Inglaterra) na resistência à dominação romana, acompanham um líder corso até sua aldeia-natal e até ajudam o seu arqui-inimigo Júlio César quando é necessário.

“Que o céu não caia sobre suas cabeças” Goscinny desenhava, mas seu forte era mesmo a roteirização. Já Uderzo era um ilustrador por excelência. Os dois se conheceram em 1951 e decidiram trabalhar juntos no ano seguinte, na delegação de Paris da empresa belga World Press. Juntos, criam as tirinhas Oumpah-pah, Jehan Pistolet e Luc Junior. Mas é em 1959, quando Goscinny se torna editor e Uderzo diretor artístico da revista Pilote que publicam, pela primeira vez, Asterix. E não param mais. Goscinny e Uderzo escreviam uma média de três aventuras por ano até a morte de Goscinny em 1977 de ataque fulminante do coração. Felizmente, Uderzo continua a publicar as aventuras de Asterix, porém com uma frequência menor: uma história a cada três anos. Orlando Aguiar, fã da série desde 1970, observa que a qualidade gráfica da revista está melhor, mas que as histórias criadas apenas por Uderzo são mais fracas e o humor é estereotipado. Ele, como roteirista, é um bom desenhista. Ainda sim, “os personagens são encantadores”, elogia. Texto: Lívia Aguiar

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PERFIL Capítulo 8

Conde Drácula “Quando perguntei-lhe se conhecia o Conde Drácula e se poderia me dizer algo sobre o castelo, ele e a mulher fizeram o sinal-dacruz; afirmando que nada sabiam a respeito”.

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Esta não foi a única opinião desanimadora que Jonathan Harker ouviu em sua chegada aos Montes Cárpatos. O corretor imobiliário é um dos narradores do livro de Bram Stoker. Com base nos relatos de Jonathan e de outros personagens do livro, preparamos um perfil do vampiro mais famoso da literatura mundial


Foto: Helen Chandler e Bela Lugosi no filme “Drácula”- 1931, diretor Tod Browning.

Aparência física:

NOME: Conde Drácula IDADE: Sem registros exatos. As más-línguas dizem que ele nasceu no início dos tempos. VIVE EM: Um grande castelo nos Montes Cárpatos, na Transilvânia. SE NÃO MORASSE LÁ, ONDE VIVERIA? Em Londres, na Inglaterra. GOSTA DE: Comer bem e conhecer gente nova, mulheres principalmente. NÃO GOSTA DE: Alho, estacas e balas de revólver. SE CONSIDERA IRRESISTÍVEL QUANDO: Encontra a “mulher perfeita” e usa seu charme e poder de sedução. QUALIDADES: Inteligência, presença marcante e força física. DEFEITOS: A palidez e, na opinião de alguns, o mau-hálito. HOBBY: Testar suas habilidades, principalmente a de transformação física e a de mudar o tempo (adora causar neblina). TEM MEDO DE: Deitar hoje e não se levantar de novo amanhã. EVITA: Olhar-se em espelhos, sair sob o sol, crucifixos. COMIDA PREFERIDA: Pescoço, desde que seja suculento e de boa qualidade. DESAFIOS: Atravessar cursos de água corrente, mudar-se para Londres e receber mais convites para conhecer as casas das pessoas.

Descrição extraída do diário de Harker. “Seu rosto tinha um acentuado perfil aquilino, com um nariz magro e pronunciado e narinas curvadas de uma forma peculiar; sua testa era larga e arredondada, e o cabelo escasseava nas têmporas, mas era farto no resto da cabeça. Suas sobrancelhas eram muito densas e quase se encontravam acima do nariz, com pêlos cerrados que pareciam se enrolar, de tão profusos. A boca, até onde eu conseguia vê-la sob o bigode farto, era rígida e de aparência cruel, com dentes brancos e peculiarmente afiados. Os dentes superiores projetavam-se sobre os inferiores e apareciam entre os lábios, que eram notavelmente corados e revelavam uma surpreendente vitalidade num homem daquela idade. Quanto ao resto, suas orelhas eram pálidas, com extremidades bastante pontudas. O queixo era largo e forte, e as maçãs do rosto, firmes ainda que magras. O efeito geral era da mais extraordinária palidez”.

Na opinião dos vizinhos Esposa do dono do hotel, quando Harker ia pegar a carruagem em direção ao castelo: “É véspera do dia de São Jorge. O senhor não sabe que hoje, quando o relógio bater à meia-noite, todas as coisas malignas do mundo terão poder absoluto? O senhor sabe para onde está indo e o que vai encontrar lá? [...] A mulher pôs-se de joelhos e implorou-me que não fosse ou que pelo menos esperasse um dia ou dois antes de partir. [...] Ela se pôs de pé, então, e enxugou os olhos; tirando um crucifixo do pescoço, entregou-o a mim. [...] colocou o rosário em torno do meu pescoço e disse: - Por sua mãe”. Cocheiro da carruagem e pessoas próximas ao hotel: “Quando sentei na carruagem, o cocheiro ainda não tomara seu assento; vi-o conversando com a dona do hotel. [...] depois olharam para

mim, com uma expressão de pena. Eu ouvia algumas palavras repetidas com demasiada freqüência, palavras esquisitas, pois havia várias naciona-lidades reunidas ali. Sem fazer alarde, tirei meu dicionário poliglota da valise e verifiquei seu significado. Devo dizer que não me alegrou muito, por entre elas estavam ordog – satã, pokol – inferno, stregoika – bruxa, vrolok e vlkoslak – palavras com o mesmo significado, uma sendo o termo eslovaco e outra o sérvio para uma espécie de lobisomem ou vampiro (nota: preciso perguntar ao Conde sobre essas superstições)”.

Bram Stoker Abraham (Bram) Stoker nasceu em Dublin, capital da Irlanda (o mesmo país da banda de rock U2), no dia 8 de novembro de 1847, numa família de sete filhos (ele era o terceiro). Criança constantemente doente, se tornou um atleta premiado na universidade, onde estudou Matemática. Seu primeiro trabalho foi como funcionário público. Algum tempo depois, começou a escrever críticas teatrais para o Dublin Evening Mail. Foi uma delas que o aproximou do ator Henry Irving, que o chamaria no futuro para gerenciar seu Liceu do Teatro, uma escola para atores em Londres. Stoker trabalhou ali por 30 anos e desenvolveu uma amizade tão grande com Irving que, quando o ator morreu, ele publicou três livros em sua homenagem. Bram Stoker se casou em 1878 com a atriz Florence Balcombe e teve um filho, Irving Noel Thornley. Em Londres, o autor conheceu outros escritores notáveis de sua época, como Sir. Arthur Conan Doyle (autor de Sherlock Holmes) e Oscar Wilde. Foi também na cidade que ele morreu, em 20 de abril de 1912. Apesar de “Drácula” ser sua obra mais conhecida, Bram Stoker publicou muitos outros livros em vida, principalmente novelas e contos.

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VLAD DRACULA E CONDESSA VERMELHA A LENDA DOS VAMPIROS

Não se sabe quando eles surgiram, mas evidências apontam que o Leste Europeu foi sua primeira “casa”. Vampiros aparecem no folclore de vários países da região, como a Romênia. Existem diversos outros nomes para eles, como strigoi, nosferatu, vampir e varcolaci. Cada um indica características específicas. O strigoi, por exemplo, indica uma criança não batizada que morreu e se tornou um vampiro. A fama deles se espalhou pelo resto da Europa no final do século XVII e início do XVIII, quando jornais começaram a noticiar as “pragas” de vampiros que atingiam os países do leste. Foram essas notícias e alguma pesquisa posterior que impulsionaram Bram Stoker a criar o personagem Drácula. Segundo estudiosos, o autor conheceu várias histórias sobre vampiros e juntou as características mais aterrorizantes no Conde Drácula. Emily Gerard, autora de Superstições da Transilvânia, livro publicado em 1885 e que Stoker teria consultado, conta que toda pessoa que for morta por um nosferatu se torna um deles, e vai ser condenada a sugar sangue de inocentes por toda a eternidade ou até que seu espírito seja exorcizado.

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A vida do príncipe Vlad IV Tepes também pode ter inspirado Bram Stoker a escrever a história do Conde Drácula. Tepes viveu entre 1431 e 1476 na Valáquia, atual Romênia. Filho do príncipe Vlad Drakul (que significa diabo), era chamado de “Drácula” ou filho do diabo. Ele foi príncipe da Valáquia por duas vezes e lutou contra os otomanos. Era conhecido pela forma cruel como costumava matar seus inimigos: empalados (atravessando um longo pedaço de madeira pelo corpo deles). Ele teria sido responsável por mais de quarenta mil mortes! Apesar de bastante cruel contra seus opositores, Vlad mudou para melhor a administração do território, desenvolveu o comércio e fortaleceu o exército de sua região enquanto esteve no trono. O professor de literatura Frank Lanot e outros autores do livro Dicionário de Cultura Literária afirmam que Stoker se baseou na história de Vlad para criar seu vampiro. Já para a Enciclopédia da Universidade de Columbia, dos Estados Unidos, o personagem do Conde Drácula não foi baseado no príncipe Tepes, mas foi o responsável por popularizar o nome “Drácula”. Outra possível inspiração é Elizabeth Bathory, conhecida como “Condessa Vermelha”. Nascida em 1560, ela era uma nobre que viveu onde hoje é a Eslováquia. Reza a lenda que a condessa matava as criadas de seus castelos e as próprias filhas de forma sádica. Depois, tirava todo o sangue das vítimas e tomava banhos com ele, dizendo que era um líquido rejuvenescedor.


DRÁCULA POR MURNAU COMO ACABAR COM UM VAMPIRO

Não é nada fácil se ver livre de um deles! Para mantê-los longe de você, algumas flores brancas de alho ou um crucifixo podem funcionar. Colocar um molho de rosas selvagens no seu caixão ajuda a prendê-lo lá dentro. E, já que eles não conseguem atravessar cursos de água corrente, correr para a margem oposta de um rio pode ser uma boa saída. Mas para acabar de vez com a maldição, só com uma dessas opções: • Fincar uma estaca no coração do vampiro • Cortar fora sua cabeça e encher a boca dele com alho • Dar um tiro no caixão em que dorme, atingindo o vampiro com uma bala consagrada com água benta.

O vampiro mais conhecido do mundo já foi assunto para diretores de cinema de várias nacionalidades. O primeiro que recontou sua história foi o alemão Friedrich Wilhelm Murnau, que em 1922 fez o filme Nosferatu, o vampiro (no original, Nosferatu, uma sinfonia de horror). Apesar do título diferente, a história é a mesma do livro Drácula, de Bram Stoker. Na época, Murnau não tinha dinheiro para (ou não tinha a intenção de) pagar os direitos autorais (ver É só abrir e baixar, pág. 30 e 31). A solução que ele encontrou foi trocar o nome do personagem principal e de outros, além de mudar alguns detalhes do que é contado no livro para filmar sua versão. Mas todo mundo entendeu logo que a trama era mesmo a do Conde. A viúva de Stoker, inclusive, entendeu tão bem que quis destruir todas as cópias do filme, já que não recebeu nenhum centavo pela utilização da história criada por seu marido.

NO SÉCULO XXI: jogadores de RPG e “emos” se envolvem com os vampiros

Filmes, livros e jogos continuam falando da história do Conde Drácula e de outros vampiros hoje em dia. O conde virou personagem de jogos de RPG (Role Playing Game, jogo em que cada jogador assume um papel e, em conjunto com outros, desenvolve uma aventura). Em um deles, alguns jogadores são vampiros e em outros são caçadores dessas criaturas. A história se passa em Londres, depois da morte do conde. Mas a cidade está povoada por seres como ele, que querem desenvolver seus poderes e fazer mais vítimas. Cabe aos caçadores impedir que isso aconteça. Nos cinemas, um filme que tem previsão de lançamento para dezembro de 2008 promete avivar ainda mais a história dos vampiros. É Crepúsculo (ver Prefácio, pág. 12),

baseado no livro da escritora americana Stephenie Meyer. A história é de um amor proibido, que seria comum se a protagonista não se apaixonasse por um vampiro. Ela tem que aprender a lidar com um menino diferente dos outros e ele, apesar de só gostar do sangue de animais, tem que conter os impulsos de matá-la por causa do cheiro delicioso de seu sangue. O livro esteve na lista dos mais vendidos do jornal americano The New York Times por 56 semanas e também fez sucesso no Brasil. No fim de semana de sua estréia nos Estados Unidos, Crepúsculo vendeu mais ingressos de cinema que Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal e 007 Quantum of Solace. A adaptação dos outros três livros da série é aguardada com ansiedade pelos fãs.

Leia mais: A noiva de Corinto • Johann W. Goethe Poema em domínio público, 1797 Entrevista com Vampiro • Anne Rice (tradução de Clarice Lispector) Rocco, 1976 Prazeres Malditos • Laurell K. Hamilton Rocco, 2008

Texto: Marina Borges

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POSFÁCIO

Que texto escolher?

Faça você mesmo

3

o

O grupo deve selecionar o texto que pode comunicar melhor com o público as ideias definidas no primeiro passo. Estude bem o texto selecionado para saber quais sentimentos a peça pode causar no espectador e quais valores ele apresenta.

Quais são os objetivos? O teatro é uma ferramenta muito poderosa de transmissão de ideias. Saber o que o grupo quer apresentar para o público ajudará a escolher o texto certo, que contenha os conflitos que querem trabalhar – primeiro durante a montagem da obra e depois com o público.

1o

Como preparar o roteiro?

2o

Qual é o público?

Para quem é esta peça de teatro? Para os colegas da escola? Para crianças? Para seus vizinhos? Saber qual será o público da montagem teatral é fundamental para definir o texto.

Um roteiro contém as falas, descrições de ações e de cenários. Se vocês escolherem um texto dramatúrgico (específico para o teatro), ele já contém as falas e algumas indicações cênicas (rubricas) que facilitam a montagem. Se escolherem um texto sem essas indicações, é preciso separar rubricas e falas de personagens. Deve-se definir também quantos atores a peça precisa. Um ator pode representar mais de um personagem, assim como um mesmo personagem pode ser interpretado por mais de um ator.

4o

O texto dramatúrgico “O Predador Entra na Sala”, de Marcelo Rubens Paiva, contém indicações precisas para os atores e diretores: “DIRCEU (EXPULSANDO O EDITOR) Obrigado pela carona. EDITOR Piercing? Minha filha tem uns desses. CACAU Eu tenho um no nariz, um no umbigo. Ia colocar um no... DIRCEU Depois eu te ligo... (EXPULSA O EDITOR)”

Leia mais: • Introdução às grandes teorias do teatro - Jean Jacques Roubine (Jorge Zahar, 2003) • Dicionário do teatro - Patrice Pavis (Perspectiva, 2005) • Dicionário do teatro brasileiro, temas, formas e conceitos - coordenação de J. Guinsburg (Perspectiva,2006)

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5o

Onde?

O texto geralmente já define onde se passam as cenas, mas é preciso saber como representar esse lugar. É possível montar uma praia cenográfica completa com areia e piscina de plástico ou fazer como na época de Shakespeare e simplesmente dizer "aqui é a praia". Sugerir onde se passa a cena é uma escolha barata e que pode ficar tão ou mais interessante quanto a presença física dos elementos que identifiquem esse local.


6o

Quando?

Existem duas formas básicas de teatro: o Dramático e o Épico. Seja em que época for, este ‘Quando’ no Teatro Dramático é sempre “aqui e agora”. O grupo não está contando uma história, está vivendo uma história. Os atores irão trabalhar da forma mais realista possível. Essa forma mais naturalista é pouco vista no teatro e mais comum na televisão e no cinema. Já no Teatro Épico, a peça pode ter um narrador, o cenário ser apenas sugerido, os aparatos técnicos ficarem à mostra, os atores podem até apresentar uma visão crítica em relação aos personagens que interpretam... É uma forma menos realista de encenação.

Quem?

8o

Como se preparar? Ensaiar, ensaiar, ensaiar. A figura do diretor, como representante do espectador, é importante para coordenar a movimentação dos atores, os aspectos técnicos e administrativos da peça. O diretor pode ser um professor ou mesmo um dos colegas.

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Esqueça todos os passos

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As escolhas dos atores depende do que o grupo quer: em um Teatro Dramático, os personagens são interpretados pelos atores que mais se parecem com eles; já no Teatro Épico, isto não é regra. O grupo pode decidir que os homens farão os papéis femininos e vice-versa, por exemplo.

Onde apresentar?

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Existem os locais tradicionais, com uma separação definida entre público e espaço cênico, mas qualquer lugar pode virar palco de um teatro. As mesas da cantina da escola se transformam em montanhas, as cadeiras em cavalos, a cozinha em vulcão fumegante... A imaginação é o limite.

O teatro tem procedimentos técnicos, mas o legal é arriscar. É querer contar uma história, transmitir uma emoção, difundir uma ideia, e encontrar um jeito de fazer isso. Cenário, iluminação, figurino, local de apresentação... nada disso determina a qualidade da peça. O fundamental é se divertir com a iniciativa.

Já pensou em subir no palco e viver a vida dos outros? Ser uma princesa em um reino distante, um escritor fracassado prestes a escrever sua obra-prima, um aprendiz de samurai... Existem várias formas de fazer teatro. Uma delas é escolher um texto já pronto e adaptar. Junte seus amigos e comecem a pirar nessa ideia!

Como transformar um

texto peça de teatro? em uma Texto: Lívia Aguiar Ilustração: Ângela Bacon

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LISTAS Fabiana Figueiredo

Eu recomendo

A lista de

FernandaTakai Do pop ao cult Cantora e compositora, Fernanda é vocalista da banda mineira Pato Fu. Ela também toca guitarra, violão e lançou um CD solo em tributo à cantora Nara Leão. Quando tinha 9 anos, essa moça que nasceu no Pará e cresceu na Bahia, se estabeleceu em Belo Horizonte. Sempre foi uma boa aluna nas escolas que estudou, dessas de ganhar medalhas. Começou no mundo da leitura com a Turma da Mônica, depois Monteiro Lobato e daí para Cecília Meirelles e mundo afora

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Porcarias Marie Darrieussecq 1997, editora Companhia das Letras, 116 páginas Muita gente já ouviu falar de grandes livros sobre metamorfose, mas acho que este é uma boa amostra. Um livro que dei de presente pra muita gente. Todos leram quase que de uma só vez. No mundo do politicamente correto, é bom ter uma válvula de escape assim.

Sylvia Não Sabe Dançar Cristiane Lisbôa

Desespero Stephen King 2005, editora Objetiva, 388 páginas Há quem diga que é literatura trash, mas eu vejo mais como terror pop. Como eu leio de tudo, sempre tem espaço para um bom livro nesse gênero. Para quem procura um autor que realmente lhe faz ver o que está sendo narrado, Stephen King tem esse dom.

2008, Mercuryo, 152 páginas Uma autora jovem que parece escrever sem filtros. É bom descobrir talento novo e produtivo assim. O bacana dos livros que ela lançou é que são daquele tamanho que a gente carrega para todo lugar e isso faz com que a leitura esteja ao nosso alcance sempre.

A Descoberta do Mundo Clarice Lispector 1984, Rocco, 480 páginas Acredito que a Clarice seja mesmo desses autores obrigatórios entre tantos outros. Ela domina gêneros diversos, desde infantil, conto, crônica, novela, romance. Esta compilação de textos publicados em jornais é uma leitura recorrente minha. Sempre me dá a noção do bom/mau-humor dela, do ambiente em que vivia, suas minhocas na cabeça, seu talento genuíno em colocar em palavras sensações humanas.

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LISTAS

A Comédia dos Anjos

Eu recomendo

Adriana Falcão 2004, Planeta do Brasil, 138 páginas

Quando fiz o [filme] Dom, que é adaptação do Dom Casmurro, foi com prazer que li esse romance que talvez seja um dos mais interessantes da história da literatura. Ele tem um grau de controvérsia que provoca até hoje: Machado de “Será que a Capitú traiu? Será que 1889, obra em não traiu? Será que isso interessa?”. domínio público Eu acho interessante que um livro que tem 100 anos ainda suscite dúvidas. Ela é o grande personagem dessa história: a dúvida. É preciso fazer uma introdução afetiva de Machado de Assis para que o leitor entre na história já com uma proximidade com o trabalho dele. Por que livros impostos não têm um sabor muito agradável, né?

Dom casmurro Assis

Este romance conta a história de uma senhora que morre, mas resolve voltar para resolver algumas questões pendentes. Todos ficam muito impressionados, porque é uma ressurreição que está acontecendo na vida das pessoas e ela age com a maior naturalidade do mundo. Isso tudo gera situações muito engraçadas.

Ficções e O Aleph Jorge Luís Borges

Ficções • 2007, Companhia das Letras, 176 páginas O Aleph • 2008, Companhia das Letras, 160 páginas O Jorge Luís Borges é um autor que descobri quando adolescente e que me fez ficar mais encantado com a literatura. Eu sou impressionado com a capacidade dele de criar imagens e de aguçar o pensamento. Borges inclusive é considerado por muitos como um filósofo, não só como romancista, pela profundidade das suas questões. Eu indico as obras completas do Borges, mas em especial Ficções e O Aleph, que são livros de contos, então, apesar de sua densidade, são várias histórias curtas.

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Divulgação

A lista de

brunogarcia Humor e filosofia Nascido em Recife - Pernambuco, Bruno é ator desde os 11 anos de idade. Começou a fazer sucesso na televisão com a novela Coração de Estudante, em 2002, e também pela Globo participou de diversas mini-séries e filmes adaptados de grandes clássicos da literatura brasileira: Os Maias, de Eça de Queirós, Dom Casmurro, de Machado de Assis, Dona Flor e seus Dois Maridos, de Jorge Amado e O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Nunca foi o primeiro aluno da turma, mas a primeira recuperação só veio no ensino médio, quando a carreira começou a fazer concorrência com a escola. Física e Matemática faziam o boletim ficar vermelho, mas Geografia e História salvavam a média do bimestre. A leitura, no entanto, era e continua a ser um prazer – e faz parte do seu trabalho!

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referĂŞncias

Frases para ler, pensar e guardar

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Foto: Mariana Garcia

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EPÍLOGO

Conversa na biblioteca

“Quero contar

essas histórias aí”

Entrevista com Marçal Aquino

Sempre trabalhando com as palavras, Marçal Aquino é um apaixonado pela leitura e pela escrita. Autor de vários livros infanto-juvenis e adultos, é jornalista e roteirista de filmes como O Cheiro do Ralo, estrelado por Selton Mello e dirigido por Heitor Dhalia, e O Invasor, do diretor Beto Brant. Escreveu muitos livros policiais e contos. Ele conta para a Livro detalhes sobre sua paixão pelas palavras e pelas boas histórias Revista Livro · O que veio primeiro na sua vida: os livros, o jornalismo ou os roteiros? Marçal Aquino · Eu queria ser escritor quando tinha uns 14 anos. Antes eu lia gibi e desenhava histórias em quadrinhos. Ali na adolescência, 13 pra 14 anos, eu comecei a fazer a transição para o livro. Saquei que o desenho poderia ser substituído pelo livro com mais prazer. Isso mexeu com minha imaginação. Foi uma transição de linguagem mesmo, a primeira que eu tive na vida. Evidentemente, não poderia pensar em ser escritor por profissão. Ainda tinha que escolher uma profissão, então fui para o jornalismo. Eu fazia jornalismo, gostava, e fazia literatura, que era meu grande barato. O cinema chegou mais tarde. Eu sempre gostei como espectador, mas nunca pensei

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em trabalhar com cinema. Se a literatura já é uma coisa complicada, imagina o cinema! Mas aí aconteceu uma coisa que eu não esperava. Um diretor de São Paulo, o Beto Brant, leu um livro meu e resolveu adaptar o conto Onze jantares, que está no livro As Fomes de Setembro. RL · Como foi essa adaptação? MA · Beto achava que dava um curta-metragem bacana e eu falei, “claro, pode ir”. A gente estabeleceu um diálogo sobre cinema, literatura, e ficou amigo. Quando ele foi partir para o primeiro longa dele, em 1994, me pediu um texto. Eu tinha um conto que era para ter sido um romance, mas acabei publicando como conto, que se chama Matadores. É uma coisa que se passa na fronteira do Brasil com o Paraguai,


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O que é um roteiro? O roteiro de cinema é uma descrição detalhada do que deve ser filmado para produzir as imagens que vão contar a história do filme. Ele descreve lugares, ações e diálogos entre os personagens. No filme “Cidade de Deus”, a cena em que Buscapé chega à praia era assim no roteiro: Ext. Praia - Dia 60 (Cena externa, praia) Vários uniformes escolares dobrados ou simplesmente jogados sobre a areia da praia. Câmera sobe, revelando BuscaPé e Barbantinho tirando os uniformes. Eles usam sungas no lugar das cuecas. Busca-Pé pega na mochila uma camerazinha tipo Xereta CARACTERES em superposição: ANOS 70 BUSCA-PÉ (VOZ EM OFF) Eu cresci paradão na idéia de um dia ter uma câmera fotográfica. E como todo pobre, eu tive que começar de baixo: eu consegui comprar a câmera mais vagabunda do mundo. MULHERES de biquini passam diante deles: bronzeadas, lindas, gostosas. Busca-Pé e Barbantinho olham “babando”. Busca-Pé começa a enquadrar. PONTO DE VISTA DA CÂMERA DE BUSCA-PÉ Mulheres na praia. BARBANTINHO (em off) É por isso que eu quero ser salvavidas. Já pensou? Um dia inteiro na praia, vendo passar essas... essas...

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herança de reportagem que fiz lá. O Beto pegou esse texto e contratou dois roteiristas que fizeram três versões. Mas o Beto falava “falta alguma coisa nesse roteiro”. Numa mesa de bar falei pro Beto: “Sabe o que falta no seu roteiro?”. E contei a parte que eu não tinha escrito. Aí ele me chamou pra mexer no roteiro com ele. Nós trabalhamos e reescrevemos integralmente. Não me considero roteirista, prefiro pensar que eu sou um escritor que escreve roteiros. RL · Para você o que muda ao adaptar um livro seu para roteiro? MA · Não penso nos meus livros como cinema, penso nos meus livros como livro. Depois que acaba, quem pensa é o Beto ou outro diretor. O meu trabalho como roteirista fica muito facilitado pois eu pergunto “que filme você quer fazer?” e o diretor me diz “ah quero o personagem tal, que ele faça isso”. Então eu passo isso para a linguagem de roteiro. Um filme não é um livro. É como pegar uma fruta e pegar um peixe. Você come as duas coisas, mas não tem nada a ver uma com a outra. O livro pode ser bom e o filme dele pode ser ruim. O livro pode ser ruim e o filme pode ser bom. RL · Como você começou a escrever? MA · Eu comecei, parece até pecado falar isso, com poemas. Por alguma razão misteriosa, acho que isso é muito comum. Quando você começa a escrever, você faz poesia porque acha mais fácil, não me pergunte o porquê. Com o tempo eu percebi: não dá pra fazer poesia, meu negócio é a prosa. Depois eu comecei a contar umas histórias, lá pelos 16 anos. Eu lembro

que eu tinha um colega no colegial que escrevia também, então a gente trocava experiências. Comecei a publicar num jornal da cidade [Marçal é natural de Amparo, no estado de São Paulo], tinha um certo gosto por contar essas histórias, e é por aí que começa a coisa de escrever e querer ser escritor. RL · E o que te levou a decidir: quero ser escritor? MA · A paixão pela literatura. Eu lia contos. Li Minsk, do Graciliano, conto de um periquito que uma menina ganha, a Luciana. É uma provocação do Graciliano. Ele é comunista e para criticar a ditadura do Vargas, ele cita Minsk, que é uma cidade da União Soviética. Esse periquito tem uma história muito bacana, porque a menina tinha mania de andar de costas e de olhos fechados. Ela acaba pisando no periquito, ela mata o periquito. É uma história trágica, na verdade. E eu gostei tanto daquilo que pensei “pô, eu quero contar essas histórias aí”. RL · Quais foram suas primeiras histórias? Começei a exercitar nas redações da escola. Nas minhas, era tudo mentira, óbvio. Pensa na coisa mais idiota que um professor pode pedir: “minhas férias”. E a professora lia aquilo, e me falava “isso não é possível, isso não aconteceu”. Mas eu respondia, “não estou dizendo que é verdade, tô dizendo que são as férias que eu gostaria de ter”. Então começa por aí, essa coisa de você sentir absoluta


liberdade, de que nada pode impedir você de contar aquilo que quer. Eu tinha 16 anos e escrevi uma história de gângster em Chicago. Eu nunca pus o pé em Chicago até hoje. Descrevia a cidade provavelmente com base naquilo que eu via no cinema. Eu me vejo muito mais como contador de histórias do que propriamente como um escritor preocupado com linguagem. RL · Além desse conto, o Minsk, quais outros textos te marcaram? MA · Moby Dick. Eu li quando estava no que seria hoje a oitava série. Estava apaixonado pelo livro. Todo mundo queria jogar futebol, e eu falava “não”. Queria voltar para casa e continuar lendo. Moby Dick é um livro grande e eu estava tão apaixonado que queria saber o que acontecia... Então, Monteiro Lobato, os livros de aventura, Jack London... Tive acesso a essa literatura maravilhosa, os romances de capa e espada [era o nome dado aos livros que contavam histórias de cavaleiros que lutavam com espadas]. Acho que hoje ninguém lê essas coisas. E é uma pena, porque são livros de aventura, foram coisas que realmente fizeram a minha cabeça. RL · Como escolhia o que ia ler? Como eu não tinha orientação, eu ia à biblioteca e pegava livros. Por curiosidade. Às vezes pegava pelo título, às vezes lia um livro do cara, gostava e ia ler outros. Era assim que funcionava para mim. Eu só tive orientação já no colegial. Uma professora maravilhosa sacou que eu gostava de poesia e me orientou. Ela dizia “tá, você fala de Drummond, mas você já leu Murilo Mendes? Jorge de Lima? João Cabral de Melo Neto?” Não, não tinha lido. Eu me lembro dessa professora fazer um desafio para mim. Ela pegou dois versos do Cruz e Souza e disse: “escreva uma prosa sobre esses dois versos”. Eu abri o conto com os

versos e contei uma história. Ela olhou e me disse: “você é um escritor”. Ouvir isso aos 17 anos de uma pessoa que você admira tem um peso muito legal. RL · A sua casa tinha muitos livros? MA · Minha casa não tinha livro, não era uma coisa comum, eu venho de uma família que morava em fazenda e não tinha essa tradição de livro em casa. Brinco que não tinha nem lista telefônica. Era uma curiosidade mesmo. Chegava o Natal, e o que eu queria ganhar? Queria livros! Então ficou fácil. As pessoas me compravam livros. E quando as pessoas te vêem com o livro, vêem você lendo, escrevendo, sentem que você está direcionado para aquilo... RL · Quando o gênero policial entrou na sua vida? MA · Depois que eu fui trabalhar como repórter policial no Jornal da Tarde, conheci certos lugares que mexeram com minha imaginação. Bares sórdidos, um certo submundo de São Paulo, das boates; eu estava lá à cata de informação. Isso veio pra minha ficção com força. Eu não sei fazer literatura sentado, trancado em casa. Eu vou pra rua. Posso ver um tipo, uma frase, uma situação que me dispara a vontade de fazer ficção. RL · Teve alguma outra história, além dessa dos matadores do Paraguai, que saiu da rua pro livro? MA · Eu não pego a coisa diretamente. A única coisa que o real me dá em estado puro é o diálogo. É um pouco aquilo que o Nelson Rodrigues dizia, que o escritor brasileiro toma muito pouco cafezinho. Ir pro bar, tomar café e ouvir o cara falando... E aí você vai ouvindo histórias. Exemplo: eu vi uma mulher na rua, bem vestida, que se agachou na rua para conversar com um mendigo. Eu olho aquilo, e escrevo sobre uma mulher que se envolve com um mendigo. Recolhe ele para dentro de casa e vive uma história de amor. Eu uso o real, mas só pra disparar a imaginação.

RL · Como você chegou a escrever para jovens? MA · No final dos anos 80, o Fernando Paixão, que era da Editora Ática, me fez um desafio: escrever uma história juvenil. Eu não tinha idéia do que era a Coleção Vaga-Lume. Aliás, eu não tinha idéia do que era literatura juvenil. Pra mim, literatura é literatura. Monteiro Lobato não é literatura juvenil, é literatura. Mas a Vaga-Lume é uma série vitoriosa porque é estudada: “vamos fazer um livro voltado pra essa idade, com linguagem, experiência e situações que interessem esse leitor”. Ou seja, define quem é o leitor antes de ter o livro. Eu não sabia nada disso. Sentei com o editor na Ática, achei bárbaro que eu estivesse sendo convidado a escrever. Normalmente temos dificuldade para publicar, e o cara me dizia “você é capaz de escrever um livro?”. Havia outro detalhe: um prazo muito curto para escrever. O escritor que tinha combinado de entregar entrou num processo de bloqueio criativo e não conseguiu terminar. Falei “claro que eu faço”. Em 40 dias eu escrevi A Turma da Rua 15. RL · Por que você escolheu escrever para jovens também no gênero policial? MA · Porque a série tem mais esse lado da aventura. No gênero policial, se você for fisgado, vai até o fim. Eu sempre considerei a aproximação com literatura pelo prazer de ler. Esse modelo de professor dar o livro e exigir na prova é uma forma de criar gente que odeia literatura. Leio grandes autores e tal, mas leio desconhecidos. Por quê? Leio porque minha relação com a literatura, tanto como leitor quanto como escritor, passa em primeiro lugar pelo prazer. Texto: Marina Borges • Foto: Renato Parada Ilustração: Ângela Bacon

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orelha

Sua vez de escrever

Um desafio Escreva um texto (pode ser conto, poesia, crônica...) que comece com “A primeira coisa que guardei na memória foi...” e termine com “...conseguiram identificá-lo”.* Esta editoria convida os leitores de Livro que se sentirem inspirados a escrever um texto de uma página (se for digitado no computador, até 2.500 caracteres) de acordo com uma proposta apresentada a cada edição. Os melhores textos serão publicados na editoria Anexos. Como este é o primeiro número da revista, essa seção ainda não existe. Envie sua história para o e-mail revistalivro@gmail.com ou para o seguinte endereço: Revista Livro Rua Manoel Venâncio Martins, 246, Palmares Belo Horizonte, Minas Gerais CEP 31155-700 Esperamos a sua contribuição! * A primeira frase é o início do texto Nuvens, que abre a obra Infância, romance de memórias do escritor brasileiro Graciliano Ramos; o segundo trecho são as últimas palavras de Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

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Mariana Garcia

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