O livro de artista como forma e função

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O livro de artista como forma e função Johanna Drucker Não há dúvida de que o livro de artista se tornou uma forma de arte no século 20. De certo modo poderíamos dizer que o livro de artista é a forma de arte quintessencial do século 20. Livros de artista aparecem em cada movimento importante da arte e da literatura e têm fornecido um modo único de realizar obras dentro dos muitos grupos de vanguarda, experimentais e independentes cuja contribuição definiu os contornos da atividade artística no século 20. Ao mesmo tempo, livros de artista se tornaram um campo separado, com uma história que é apenas parcialmente ligada a grandes correntes da arte. Este desenvolvimento é particularmente marcado após 1945, quando o livro de artista ganha seus praticantes, teóricos, críticos, inovadores e visionários. Entre os muitos indivíduos a mencionar aqui existem literalmente dúzias de artistas cujas conquistas pertencem quase inteiramente ao campo dos livros de artista e cuja obra poderia sustentar o tipo de discussão aprofundada, como acontece com as obras de pintores, compositores, poetas ou outros artistas importantes que trabalham com formas de arte mais familiares. O que é único nos livros de artista, contudo, é que com poucas exceções, eles realmente não existiam em sua forma atual antes do século 20. Mas é difícil descobrir precisamente o que constitui sua forma atual e também por que motivo se tornou tão difundido e se desenvolveu nos últimos cem anos. Uma única definição do termo “livro de artista” continua a ser muito esquiva, apesar do uso generalizado e da proliferação de obras que se apresentam com este nome. O aumento de sua popularidade pode provavelmente ser atribuído à flexibilidade e variação da forma livro, mais do que qualquer fator estético ou material. Ao invés de tentar fazer uma caracterização rígida ou definitiva dos livros de artista, eu irei descrever uma zona de atividade que eu penso como “livros de artista”. É uma zona que se encontra no espaço de intersecção de uma série de diferentes disciplinas, áreas, e ideias — mais do que em seus limites. E ao invés de tentar fazer uma narrativa que explique o desenvolvimento do livro de artista no século 20, espero poder mostrar porque esta é a forma de arte por excelência do século 20. É muito fácil dizer que um livro de artista é um livro criado como uma obra de arte original, ao invés de uma reprodução de uma obra pré-existente. E também, que é um livro que integra os meios formais de sua realização e produção com sua temática ou estética. Mas esta definição apenas levanta mais perguntas do que respostas: o que é uma obra de arte “original”? Tem que ser uma obra única? Pode ser uma edição? Um múltiplo? Quem é o autor? O artista que teve a ideia? Ou apenas se ele fizer todo o trabalho envolvido na produção — impressão, pintura, encadernação, fotografia, ou o que mais esteja envolvido? Ou cada um destes praticantes deve ser levado em conta, especialmente quando existem transformações complicadas envolvidas, do desenho à impressão, ou da fotografia às chapas entintadas, ou quando a encadernação tem uma forma estrutural que tenha sido desenhada ou codificada por outra pessoa que não seja o artista? Que tipos de meios de produção podem ser incluídos nesta definição — uma impressora Gestetner é um meio válido de produzir arte do mesmo modo que uma pedra litográfica, uma impressão com sais de prata, ou um linóleo? E a impressão digital e máquinas xerox? Uma obra que é feita apenas de folhas de ajuste encadernadas ou outro tipo de papel é um livro? 1 Ou feita com papel em branco? Ou imagens apropriadas? Muitas pessoas 1

Folhas de ajuste (set-up sheets) são as folhas que um impressor utiliza para “ajustar” a prensa: para coordenar a

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concordam com uma definição do senso comum do que é ou não um livro. Mas com a obra de artistas esta definição óbvia logo perde sua clareza. Um livro está restrito ao formato códice? Inclui rolos? Tabuletas? Jogo de cartas? Um bloco de madeira com um lado pintado com um título, como uma lombada convencional? Um espaço penetrável com painéis gigantes pendurados juntos? Um conceito metafísico, desencarnado, mas invocado em performance ou ritual? Apesar de essas perguntas tratarem apenas de poucos aspectos da definição de um livro de artista, elas mostram a dificuldade imediata ao tentar fazer uma única, simples afirmação sobre o que constitui um livro de artista. Se todos os vários elementos ou atividades que contribuem para os livros de artista como um campo são descritos, o que surge é um espaço feito pela sua interseção, espaço que é uma zona de atividade, mais do que uma categoria onde colocar obras que avaliamos se elas se adequam ou não a certo critério rígido. Existem, de fato, muitas atividades: impressão de luxo, edição independente, a tradição das artes do livro, arte conceitual, pintura e outras artes tradicionais, atividade artística politicamente motivada e produção ativista, performance do tipo tradicional e experimental, poesia concreta, música experimental, artes computacionais e eletrônicas, e por último mas não menos importante, a tradição do livro ilustrado ou livre d'artiste. Uma vez que este último termo causa muita confusão, ele serve como ponto de partida útil para começar a esboçar esta zona de interseção um pouco além dos limites de qualquer um destes campos de atividade individuais. O livre d'artiste é um empreendimento editorial iniciado por figuras como o galerista parisiense Ambroise Vollard, cujas primeiras produções apareceram em meados da década de 1890, e Daniel-Henry Kahnweiler, que iniciou sua editora um pouco mais do que uma década depois 2. Esta tendência pegou entre outros editores, que viram uma oportunidade de mercado nas edições de luxo que levavam o nome de uma estrela estabelecida ou em ascensão no mundo das artes visuais ou da poesia (Vollard era associado com Georges Rouault, e Kahnweiler com Apollinaire, Picasso e outros cubistas). As edições de luxo antecedem a existência do livre d'artiste, é claro, e livros com todos os elementos do gênero — grande formato, produção elaborada valorizando o colorido à mão, a impressão virtuosa, encadernação de luxo, uso de materiais raros, textos ou imagens que alimentaram um mercado sofisticado ou de elite — há muito tempo faziam parte da indústria editorial 3. O livre d'artiste tira vantagem do mercado expandido das artes visuais que cresceu no século 19, junto com entintagem, pressão, posição, registro ou outro elemento do processo de impressão. Muitos impressores reusam essas folhas várias vezes, criando efeitos elaborados de sobreimpressão de padrões aleatórios que podem ser tratados como “found art” ou poesia, depois de refilado, encadernado e transformado em livro. Dieter Roth usa essa abordagem em um número de obras, e é uma ideia que eu tenho visto ocorrer a muitas pessoas que veem as folhas de ajuste ao redor da prensa. 2

Existem outros exemplos mais antigos também, mas estas figuras marcam o início da atividade no século 20 e uma nova identidade muito clara dentro do mundo da arte, mais do que próxima ou tangencial à arte

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Veja William Strachan, The Artist and the Book in France, como uma introdução a esta história, ou o livro de Douglas McMurtrie, The book: The Story of Print and Bookmaking. Mas o folio elaborado e os volumes elephant folio com cromolitogravuras ou pranchas coloridas à mão eram um conceito do século 19. Uma publicação que é suficientemente bem conhecida para servir de exemplo é Birds of America a partir de desenhos de John James Audubon — e o formato grande e elaborado desta edição pode ser encontrado em muitos outros volumes de história natural, catálogos de monumentos arquitetônicos, estatuária clássica, até a história da escrita mereceu publicações em larga escala com alto valor de produção. Existem muitos outros, e de fato, edições e encadernações de luxo eram a norma antes da pequena edição econômica iniciada pela casa editorial holandesa Elzevir no século 17. O livro de John Updike, Print Types ainda é a referência padrão em história da tipografia.

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outros mercados de luxo expandidos graças ao crescimento industrial, à acumulação de capital, e uma classe média alta educada com um apetite para bens de consumo finos. O mercado para estes livros se desenvolveu como uma extensão do mercado para pintura, desenho e escultura. Kahnweiler estava consciente de que ele estava criando um mercado paralelo de livros que poderiam ser vendidos graças à popularidade e fama dos artistas cuja obra ele distribuía. Mas se estes livros eram atraentes para os editores como uma nova mercadoria, para os artistas eles sempre ofereceram a possibilidade de produzir obras que eles não iriam ou não poderiam produzir sozinhos. Isto pode incluir trabalhar com gravura, por exemplo, ou seguindo um tema que não encontra um lugar facilmente em outras obras. Os artistas cujas obras apareceram nos primeiros livres d'artistes estão entre os melhores da arte do século 20, formando uma lista de nomes conhecidos de palestras e grandes exposições: Pierre Bonnard, Henri Matisse, Joan Miro, Max Ernst, e Pablo Picasso 4. Estes livros são obras bem acabadas em sua maioria, mas não chegam a ser livros de artista. De fato, eles ficam bem no limiar, ou mesmo um pouco antes do espaço conceitual em que os livros de artista operam. Em primeiro lugar, é raro encontrar um livre d'artiste que interrogue a forma material ou conceitual do livro como parte de sua intenção, interesse temático, ou forma de produção. Este é talvez um dos critérios mais importantes para distinguir as duas formas, uma vez que o livro de artista quase sempre é pelo menos autoconsciente da estrutura e significado do livro como forma, mesmo quando eles não são inteiramente a respeito da forma ou suas convenções, enquanto a distinção padrão entre imagem e texto, geralmente em páginas opostas, é mantida na maioria dos livres d'artistes. Por contraste com as vigorosas inovações abundantes em livros de artista, mesmo um livre d'artiste recente, do final do século 20, tende a parecer embalsamado pela excessiva valorização da produção, sobrecarregado pelo peso do formato e dos materiais tradicionais 5. As jaquetas de papel destes livros mal podem conter as espessas páginas, e o texto, escrito em grandes caracteres, é cercado por uma ampla margem branca, enquanto imagens e texto se encontram frente a frente, como novos vizinhos que se encontram, imaginando, deveras, como eles foram colocados juntos por toda a eternidade no interior silencioso e mudo de um pesado tomo 6. A maioria das obras produzidas por marchands como Kahnweiler foram produzidas como a visão de um editor. O artista e o escritor sempre eram contratados independentemente (em muitos casos foram usados textos ou autores clássicos como base para uma nova e moderna interpretação visual — Ovídio, Shakespeare, Dante e Esopo, para nomear alguns dos temas favoritos do gênero livre d'artiste). Artista e escritor quase nunca se encontravam, ou se encontravam pela arranjada conexão do projeto, como em alguns casamentos de conveniência, mecânicos e sem amor. Mas estes hábitos editoriais variam consideravelmente de indivíduo a indivíduo, muitas vezes com resultados positivos. O contraste entre a visão editorial do Collectif Génération e a oferecida por Andrew Hoyem da Arion Press, dois produtores contemporâneos 4

A exposição mal nomeada, Um século de livros de artistas, com curadoria de Riva Castleman, no Museu de Arte Moderna de New York no inverno de 1994-95, é uma seleção representativa dos livres d'artiste do século 20. Existem poucas anomalias em sua exposição, obras que são livros de artista de fato, que provavelmente encontraram seu caminho descendo o elevador da coleção de milhares de livros de artista da biblioteca do MoMA. 5

Este ponto é importante porque o livre d'artiste foi uma inovação radical no final do século 19 mas teve sua morte cerebral dada pela codificação taxidermizada de suas convenções.

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O tipo de encadernação muda de era a era e de lugar a lugar: encadernações americanas tendem a ser excessivamente pesadas, como se aumentasse a importância das obras em grande escala, enquanto encadernadores ingleses fazem uso de uma prancha mais leve.

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de livres d'artistes — ambos bem- sucedidos em seus próprios termos — provam esta questão de modo espetacular. Gervais Jassaud, o editor do Colletif Génération, apenas produz obras de escritores e artistas vivos. Estas devem ser inéditas, sempre em edições feitas à mão ou manuscritas para as quais Jassaud fornece os parâmetros (forma, tamanho, formato geral do livro). O grau de colaboração e interação é deixado para os artistas envolvidos. Além disso, Jassaud tem se esforçado para que essas colaborações e todo seu programa sejam internacionais em um grau sem precedentes — não apenas publicando artistas de uma grande variedade de lugares, mas facilitando um processo de intercâmbio internacional. Hoyem, por outro lado, tem utilizado tanto os textos de escritores vivos quanto os clássicos, e sua obra em muitos aspectos é uma evidente continuação da tradição dos livres d'artiste. Apesar da reputação de artistas e escritores vender de fato esses livros, uma obra literária rara ou inédita também pode ser um estímulo para a compra. A visão dos editores tende a ser dirigida ao mercado — é uma visão cuja estética tem o objetivo de garantir o valor do produto, não necessariamente para realizar uma obra original. Assim, a natureza discreta dos elementos: texto, imagem, produção (incluindo todos os aspectos da impressão, encadernação, composição, design, e assim por diante, em graus variados) são operações independentes, guiadas pelo editor, que dirige sua compatibilidade com o necessário gosto consumado. Este terceiro ponto é o que conta: o formato destas obras é talvez seu aspecto mais característico, com uma alternância padrão entre obra de arte visual e literária, geralmente em uma página dupla 7. Esta repetição mecânica da distinção convencional entre imagem e texto remete essas obras à categoria de livro ilustrado, mais do que livro de artista. Esta fórmula não é de modo algum inevitável. É interessante notar, por exemplo, que alguns dos mais antigos exemplos de livres d'artistes eram mais ousados em misturar as fronteiras entre imagem e texto do que os mais recentes, que parecem cair na versão mais mundana desta relação. A edição de Parallelement (1900) de Ambroise Vollard, com imagens de Pierre Bonnard, mostra as imagens litografadas de Bonnard entrelaçadas com o texto impresso, unindo os elementos visuais e verbais na página. Esta abordagem é uma continuação das inovações que de fato começaram com os impressores e gravadores românticos quase um século antes, mais notavelmente com Thomas Bewick, que estava decidido a combinar imagem e texto em suas obras 8. Enquanto muitos livres d'artistes sejam interessantes à sua maneira, trata-se de produções mais do que criações, produtos, mais do que visões, exemplos de uma forma, não interrogações de seu potencial conceitual, formal ou metafísico. Qualquer tentativa de descrever um campo de atividades heterogêneo por meio de um critério particular desmorona em face a livros ou artistas específicos — e isto é verdade com essa distinção entre livros de artistas e livres d'artistes. A obra de Iliazd, um artista da vanguarda russa que se tornou um editor de edições de luxo depois de 1945, está mais próxima da forma conceitual de um livro de artista em sua originalidade de visão e investigação da forma livro, do que dos livros de luxo com que se assemelha em termos de materiais e meios de produção 9. Do mesmo modo, existe um número de livros baratos cujo formato reproduz a 7

O termo abertura se refere ao espaço de um livro do tipo códice aberto, uma página dupla é geralmente uma abertura deste tipo que preserva a continuidade da folha através da calha, de modo que uma imagem ou texto pode ser impresso nesta folha sem a necessidade de lidar com a calha como uma quebra disjuntiva. 8

Henri Zerner e Charles Rosen, Realism and Romanticism (Norton, 1984), especialmente o capítulo III, "The Romantic Vignette and Thomas Bewick”.

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Iliazd nasceu Ilia Zdanevich em Tiflis, Georgia, em 1894. Existe, é claro, outros editores que produzem obras que

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justaposição de palavra e imagem como elementos descontínuos em um padrão característico do livre d'artiste. Problemas parecidos surgem ao tentar definir quase toda categoria de atividade que toca a zona dos livros de artista e sempre existe uma considerável área cinza na sua interseção. A impressão de luxo, por exemplo, não pode ser considerada como livre d'artiste nem pode ser absorvida no campo dos livros de artista — apesar de existirem muitos volumes impressos com refinamento em ambas as categorias. O ponto é que o termo impressão de luxo — geralmente associada à tipografia, composição manual, e edições limitadas, também é usado para descrever obras cuidadosamente produzidas em qualquer meio de impressão — descreve métodos de produção mais do que indica algum gênero específico de atividade criativa ou editorial. Existe uma categoria de impressão de luxo que se refere à produção de obras em edições limitadas para bibliófilos interessados em versões bem feitas de textos clássicos impressos em papel de algodão, encadernações de couro duradouras, e assim por diante — estes são livros produzidos com cuidadosa atenção a todos os aspectos da arte da impressão, mas geralmente não são inovadores quanto à forma, nem estão interessados em explorar o livro como um conceito artístico 10. Apesar de livros de artista tender a ser associados com processos de offset ou eletrostáticos (comumente conhecidos pelo seu nome comercial: xerox ou fotocópia), eles também tem sido produzidos mediante métodos de tipografia, encadernação manual, e imagens em relevo (xilogravura, linóleo, ou gravura em metal). O acesso a uma grande variedade de tecnologias de impressão teve a sua importância na proliferação dos livros de artista, especialmente no primeiro mundo, onde a pronta disponibilidade dos meios de produção aumenta a cada década 11. Mas nem os métodos nem a qualidade da produção podem ser usados em si mesmos como critério para determinar a identidade de um livro como um livro de artista. Artistas usam o que eles conhecem e o que eles têm acesso. Existem alguns maravilhosos usos imaginativos da tipografia, desde o livro Tango with Cows do futurista russo Vassily Kamensky (Moscow, 1914), a peças produzidas por um obscuro par de tipógrafos californianos, ativos na Bay Area de San Francisco nos anos 1970: Holbrook Teter e Michael Meyers, cujas produções independentes não foram superadas em sua visão criativa, agudeza crítica e originalidade, enquanto participam das convenções de produção associadas tradicionalmente à impressão de luxo. A prensa tipográfica, como a impressão offset ou as técnicas tradicionais de câmera escura, requer um investimento significativo de tempo e energia e depende de acesso regular para poder adquirir a destreza necessária — diferente do xerox, por exemplo — mas não

não são meramente livres d'artistes, assim como Hansjorg Mayer, Frances Butler (Poltroon Press), ou Simon Cutts e Erica Van Horn (Coracle Press). 10

É justo dizer que a tipografia é escolhida por vários motivos — algumas pessoas gostam da elegância de seu produto, alguns acham que é fácil o bastante para aprender e não muito intimidador mecanicamente, alguns apenas têm acesso e isto funciona — em outras palavras, eu não estou estigmatizando o meio com nenhum caráter particular aqui — mas ele é estigmatizado por causa da associação com a tradição das edições de luxo. 11

Estou pensando em livros como aqueles geralmente produzidos para o Limited Editions Club. Eles são diferentes dos livres d'artiste, apesar de serem ilustrados, geralmente não são pródigos no tamanho, ou centrados na obra de um artista, mas são reedições de grandes livros ou Clássicos Modernos, conforme o caso. Eles são direcionados a leitores ou pessoas que gostam que as estantes de sua biblioteca proclamem sua erudição mais do que a colecionadores de arte. Os livros não são caros — eles custam mais do que a média do livro comercial porque são edições bem produzidas, mas estão longe de participar do mercado de artes visuais.

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requerem grande quantidade de capital para abrir uma oficina ou comprar equipamentos 12. Os livros de artista são muitas vezes (mas nem sempre) produzidos com um orçamento apertado pelos próprios artistas; contudo, a prensa tipográfica é agora proibitivamente cara na maioria das situações (porque dá muito trabalho e resulta custosa se precisa contratar fora) — a menos que o artista seja o dono do equipamento e saiba manejá-lo 13. A fisicalidade tátil e dimensional da tipografia tende a ser associada com a impressão de luxo, e a impressão de luxo com a tradição conservadora, mas um livro de artista pode certamente ser bem impresso sem perder sua identidade, assim como uma má impressão é muitas vezes aceitável e bem sucedida no contexto de livros de artista 14. Além de sua relação com a tradição de publicação de livros de luxo, o campo dos livros de artista tem relação com outras formas de atividade de impressão. Uma delas, mais literária e política em suas origens, é a da edição independente. Defino como edição independente qualquer esforço editorial realizado a fim de criar uma edição que não consegue encontrar apoio imediato nas gráficas estabelecidas ou entre as editoras comerciais. Em grande parte associada ao âmbito literário e ao ativismo político, a edição independente aloca o poder de produção a qualquer um que possua uma prensa ou os meios para pagar pela impressão. O termo "independente" sugere uma independência de motivos ou de restrições comerciais. No 12

A relação entre tecnologia e indústria de base no primeiro mundo, incluindo relações específicas entre capital, trabalho, mercados, e meios de produção quase nunca é considerada como um aspecto da proliferação dos livros de artista, apesar do papel óbvio que esses elementos têm no contexto que tornou esse desenvolvimento possível. Apenas no nível de transformações da tecnologia essas conexões são manifestas em todos os aspectos da produção de um livro — por exemplo, considere as possibilidades que a fotocomposição, a tipografia digital e a editoração eletrônica tornaram disponíveis para a manipulação do texto na página, sem mencionar os modos em que a indústria da publicidade ampliou as possibilidades do design. Existe uma tendência, nesta área assim como em outros campos das artes, de escrever a história dos livros de artista — ou, até mesmo, de atividades relacionadas como a história dos livres d'artistes — como se o contexto especifico do primeiro mundo fosse irrelevante. Esta é uma área em que a obra de alguém como Felipe Ehrenberg daria um estudo particularmente rico uma vez que sua atividade artística perpassa o primeiro e o terceiro mundo nos campos cultural, social e econômico e ele tem se envolvido com o ensino das artes do livro e impressão em uma grande variedade de circunstâncias e comunidades. 13

Ann Chamberlain me passou uma informação interessante quando eu estava trabalhando com ela em um ensaio para acompanhar uma exposição com a sua curadoria na Galeria de la Raza em San Francisco no outono de 1992. Ela comentou que na cidade do México, pode-se contratar as habilidades de tipógrafos impressores a baixo custo, pois eles trabalham nas arcadas de uma particular praça pública e imprimem sob demanda, no local, de modo que muitos artistas do livro utilizam este serviço, mas do que imprimir seus próprios textos ou obter os meios para fazêlo. Existe uma anedota que demonstra as diferenças na economia da tecnologia de impressão e disponibilidade em diferentes culturas. Existem também muitos artistas fazendo livros que conseguem acesso ao equipamento por trabalhar em oficinas durante o dia e imprimem o próprio trabalho nas horas de folga. 14

Clifton Meador sempre comenta como é legal a “má” impressão — ou como pode ser legal na situação correta. Tal “má” impressão revela-se aos olhos entendidos, mostrando efeitos da manipulação dos processos de impressão com respeito a pressão, água, entintagem e assim por diante. Fine Print journal, que foi estabelecida em San Francisco por Sandra Kirschenbaum em 1975, e funcionou por quinze anos, foi uma arena relativamente contemporânea para a discussão do trabalho das edições de luxo, assim como a efêmera Bookways, publicada por W. Thomas Taylor, enquanto as colunas de Print Collector's Newsletter sempre resenham livres d'artistes, dada sua audiência de colecionadores de estampas. Nancy Princenthal chamou a atenção para livros de artista em sua coluna no PCN por muitos anos, uma notável exceção. De novo, estes são apenas os exemplos mais comuns, e existem outras publicações dirigidas a esse gênero no mercado internacional — como as Nouvelles de l'Estampe, da Bibliothèque Nationale em Paris, para não mencionar os muitos catálogos de antiquários e vendedores dirigidos a bibliófilos para quem os livros de artista ainda são uma região desconhecida, não mapeada.

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século 20, grande parte da literatura experimental que floresceu como parte do modernismo, a vanguarda e outras tradições estéticas inovadoras, não encontraram um lugar receptivo em editoras estabelecidas. Muitos autores que haviam publicado suas obras de maneira independente foram depois contratados por grandes editoras. Os esforços dos escritores ingleses Virginia e Leonard Woolf, na Hogarth Press (fundada em 1917), ou John Heartfielde e seu irmão, Weiland Herzfelde na fundação da Malik Verlag (também em 1917), ou a Black Sun Press de Caresse e Harry Crosby (iniciada em Paris, 1925) são alguns dos muitos exemplos clássicos e históricos de edição independente 15. Porque essas empresas são fundadas com o ideal de publicar obras inovadoras, criativas ou experimentais em lugar de ganhar dinheiro, e são geralmente uma equipe de redatores/editores que muitas vezes também imprimem as obras. Esses editores independentes servem para tornar disponível ao público obras que poderiam não ser publicadas se o único critério editorial fosse o lucro. A grande maioria da literatura criativa, em poesia e prosa, é publicada por meios independentes, graças ao trabalho e esforço de editores que quase quebram monetariamente ou que subsidiam seu trabalho editorial através de outras fontes de renda 16. As subvenções de organizações públicas ou privadas às vezes proporcionam ajuda adicional, mas dificilmente é o bastante para substituir a iniciativa e determinação que levam esses projetos adiante de maneira continuada. A publicação de livros de artista — seja pelos próprios artistas ou por editores dedicados a livros de artista, dos quais existe um bom número — está muitas vezes nesta categoria financeira. Isso não quer dizer que artistas nunca ganham dinheiro com seus livros — é apenas uma observação de que o mesmo ímpeto que anima a edição independente — o desejo de fazer se ouvir uma voz, ou que uma visão esteja disponível — alimenta os livros de artista. A ideia de editor independente está intimamente associada ao artista ativista. Artistas ativistas em geral dão pouca atenção para o retorno financeiro ou investimento em sua carreira (apesar de que tanto editores quanto artistas alcançam um nome e uma reputação que podem levar a êxitos futuros como um resultado desses esforços). Muita obra ativista é tópica, política ou socialmente motivada em sua temática, e distribuída mediante edições de baixo custo e de modo mais barato e amplo quanto possível. Artistas com motivação social ou política em sua obra têm recorrido com frequência ao múltiplo econômico como um meio de atingir uma audiência maior para a obra. Livros, por sua capacidade de circular livremente, são independentes de qualquer restrição institucional (podemos encontrá-los na casa de amigos, em quartos de hotel, vagões de trem, carteiras escolares). São objetos de baixa manutenção e relativamente longa duração, circulam livremente e têm a capacidade de transmitir uma grande quantidade de informação, e servem como um veículo para comunicar muito além dos limites de uma vida ou dos contatos individuais. A noção de livro como um meio de comunicação disponível é parte do que inspira o mito do livro como múltiplo democrático, apesar dos muitos paradoxos da produção envolvidos nesta ideia 17. Dos futuristas russos aos 15

Novamente, existe uma ligação, mais do que uma relação causal, entre as mudanças na indústria gráfica e a atividade artística, em um aspecto importante. Foi a produção maciça de tipos, possível graças a avanços na moldagem e na fundição, que permitiram a difusão da impressão e o estabelecimento de pequenas oficinas particulares que poderiam adquirir tipos em tamanhos padronizados de fundidores comerciais. 16

Burning Deck Press, de Rosmariee Keith Waldrop em Providence é um longevo exemplo desse tipo de compromisso contínuo. 17

Eu escrevi sobre esse paradoxo no ensaio para o catálogo da exposição de Brad Freeman, Offset: Artists Books and Prints (1993), e também no ensaio "Artists books and the Cultural Status of the book," em The Journal of Communication, edição especial editada por Sandra Braman, Winter 1994,Vol. 44, No. 1, mas eu voltarei ao assunto depois, na seção que explora ideias sobre produção.

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artistas Fluxus passando pela oficina do Woman's Building em Los Angeles, ao Lower East Side Print Shop em Nova York, a ideia de fazer do livro um instrumento do pensamento ativista independente, tem sido um dos elementos persistentes da mística do livro de artista. Que os livros de artista podem facilitar uma mudança de consciência é óbvio, como acontece com qualquer outra forma simbólica, seja poesia, artes visuais ou música; se essa obra vai trazer ou não como resultado uma mudança de estruturas a nível político, asso, como políticas, abre a porta a uma série de debates sobre o papel e a função da arte no século 20 que não pode ser analisados adequadamente aqui. Seria difícil encontrar um movimento artístico no século 20 que não tenha produzido algum livro de artista, ainda que em alguns casos esta definição devesse estender-se para incluir diários, publicações efêmeras e outras publicações independentes 18. Por exemplo, Guillaume Apollinaire e Pierre Albert-Birot produziram livros no contexto da arte cubista, enquanto o futurismo russo e italiano tiveram muitos praticantes comprometidos com os livros como uma parte importante ou significativa de sua obra, de Velimir Khlebnikov e Natalia Goncharova a Franceso Depero e Filippo Marinetti 19. Poderia traçar um caminho (e irei, em uma seção posterior) que incluiria o expressionismo, o surrealismo na Europa ocidental e oriental, Dada na Europa e nos Estados Unidos, assim como os movimentos pós-guerra como Letrismo, Fluxus, Pop Art, conceitualismo, minimalismo, o Women's Art Movement e o Pósmodernismo, até o atual interesse do mundo artístico predominante pelo multiculturalismo e a política identitária 20. É claro que os livros desempenharam um papel também em outros movimentos, entre eles as atividades de músicos experimentais, como John Cage e Henri Chopin para nomear apenas dois notáveis em um vasto campo, artistas da performance como Carolee Schneeman, Robert Morris, Vito Acconci, artistas envolvidos com trabalhos sistêmicos, como Mario Merz, Ed Ruscha, ou Sol LeWitt e por aí vai. Esta lista resultaria exaustivamente longa se fosse completa e apesar deste fato, livros de artista como um gênero ainda não foram

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Existem, é claro, as exceções em toda afirmação categórica. Eu posso pensar em poucos livros de artista associados ao Expressionismo Abstrato em sua primeira onda, por exemplo, mas estas exceções são bem poucas. 19

Pierre Albert-Birot é outra figura esquecida, editor de um jornal chamado SIC, ou Sons Idees Couleurs (Sons Ideias Cores), assim como de numerosos livros de sua autoria, que inclui poemas visuais, experimentos tipográficos e roteiros teatrais. Worldbackwards (British Museum, 1978), de Susan Compton e seu Russian Avant-Garde books: 1917 to 1934 (MIT University Press, 1992) são bons pontos de partida para a pesquisa sobre os russos. As obras italianas estão bem documentadas no livro Futurisme de Giovanni Lista (L'Age D'Homme, 1973) entre outras fontes, mas The Futurist Moment, de Marjorie Perloff (University of Chicago Press, 1986) e o catálogo de uma exposição monumental em Marseille em 1993, Poesure et Peintrie, e os antigos volumes de Herbert Spencer sobre tipografia experimental de vanguarda, Pioneers of Modern Typography (Lund Humphries, 1969) e The Liberated Page (Bedford, 1987) também são incalculáveis fontes para este material; veja também meu livro The Visible Word: Experimental Typography and Modern Art Practice, apesar de não abordar livros tanto quanto obras tipográficas. 20

Os motivos não são fáceis de apontar. Os livros ocupam menos espaço físico do que as pinturas ou esculturas, não impressionam imediatamente, e também, geralmente, são mais complicados do que outras formas de arte. Tudo isso pode contribuir para que tenham recebido o status de “arte menor”. A equação de arte em grande escala e sua importância é certamente uma característica da arte pós-1945, de modo que a escala íntima, pessoal, de um livro é reduzida em comparação. Existe, de novo, o aspecto do mercado — livros costumam ser vendidos por um preço diferente, geralmente mais baixo do que a categoria das pinturas ou esculturas, o que perpetua sua percepção como algo menos valioso em uma espécie de círculo vicioso. Quando percebemos que um único livro pode conter uma suíte inteira de gravuras, de páginas pintadas ou fotografias é interessante notar que eles sempre são vendidos por muito menos do que uma única peça de parede em um meio similar.

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estudados, codificados ou criticamente incorporados na história da arte do século 20 21. Essas obras aparecem aqui, mas serão tratadas como livros e como exemplos de compromisso artístico com o livro como forma, mais do que atributos ou derivações dos movimentos em que os artistas são associados. A sensibilidade de Sol LeWitt, Marcel Duchamp ou Hanne Darboven é indissociável das questões estéticas que formam o contexto predominante em suas obras, mas seu compromisso com o livro como forma tem sido mais do que incidental. Entre os artistas da corrente hegemônica, essas pessoas consideram o livro como uma forma de interrogar, não apenas um veículo de reprodução. É o próprio fato deste compromisso como característica principal da arte do século 20 um argumento a favor da identidade dos livros de artista como um fenômeno singular de uma era. Em um grau sem precedentes, os livros serviram para expressar aspectos da arte predominante que não podiam encontrar expressão na forma de obras para a parede, performances, ou escultura. Dick Higgins chegou a sugerir que o livro como uma forma de intermídia (para usar seu termo) combina todos estes modos de arte de uma maneira radicalmente nova 22. Em alguns casos, os artistas fizeram uso do potencial documental da forma livro, enquanto outros investigaram um aspecto complicado que é a capacidade que o livro tem de ser uma forma de expressão altamente maleável e versátil. Nem todo livro feito por um artista é um livro de artista, apesar do velho adágio duchampiano de que arte é o que um artista diz que é arte. Também é verdade que no final do século 20, assim como era nas primeiras décadas, e os livros são muitas vezes produzidos baseados na capacidade do artista para gerar vendas, e livros são uma atividade complementar barata para muitas galerias. Um mero compêndio de imagens, um álbum de gravuras, uma coleção incidental de imagens originais ou apropriadas, nem sempre é um livro de artista, apesar dos termos em que pode ser feita esta distinção sejam muitas vezes vagos. O critério final para a definição reside no observador informado, que tem que determinar a medida em que um livro-obra faz uso integral das características específicas desta forma. O desejo de ocupar-me com o caráter esquivo do que constitui um livro é parte do impulso que anima meu projeto atual: buscar termos críticos para examinar a natureza do livro, analisar sua identidade como um conjunto de funções estéticas, operações culturais, concepções formais e espaços metafísicos. Assim como os livros tem servido para estender as possibilidades das artes visuais, da performance e da música, eles também tem oferecido uma possibilidade conceitual única ao poeta 23. Os poetas concretos tem trabalhado com livros como um espaço conceitual, espaço que, por sua forma e finitude, sua especificidade estrutural e limitações visuais, oferecem um meio extraordinário para realizar obras particulares. Enquanto muitos poetas concretos trabalharam com elementos escultóricos, com sons ou ao nível de uma única página plana ou 21

Apesar de toda esta atividade, a literatura especializada ainda é pequena. Existem muitos artigos, catálogos de exposição, publicações efêmeras, mas o número de livros dedicados aos livros de artista pode ser contado nos dedos das mãos. Entre esses, uma contribuição importante de Renée Reise Hubert é Surrealism and the Book. Mas para o período pós-1945, não existe uma pesquisa ou obra importante devotada exclusivamente aos livros de artista, exceto o livro de Joan Lyons (ed.) Artist's Books: A critical Sourcebook (Visual Studies Workshop e Peregine Press, 1984). 22

Dick Higgins, "Intermedia" em foew&ombwhnw, (Something Else Press, NY, 1969)

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O compromisso literário com a forma livro está fora de meu escopo. Eu teria que incluir cada poeta que alguma vez colocou uma linha de tipos em diagonal ou usou o espacejamento calculado da máquina de escrever, para ser justa. Os trabalhos de Jerome McGann e Michael Davidson, assim como Marjorie Perloff e Jerome Rothenberg, Emmett Williams, Mary Ellen Solt e Dick Higgins são bons pontos de partida para os interessados nesta área.

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cartaz, existe um número substancial de poetas que têm usado o livro como forma para suas obras. De novo, nem todo poeta concreto é um artista do livro, e nem toda obra concreta é um livro de artista, mas existem obras que demonstram os modos em que os poetas concretos foram capazes de ampliar os parâmetros do que faz um livro como um campo verbal de uma maneira que também amplia as possibilidades do modo como um livro de artista pode funcionar como um texto poético. Os ofícios relacionados às artes do livro também se desenvolveram no final do século 20. Oficinas e cursos de encadernação, fabricação de papel, estruturas do livro e assim por diante são as atividades básicas dos centros devotados às artes do livro 24. Apesar de a estrutura ser um componente fundamental de um livro que tem êxito, o aspecto manual da produção do livro não é suficiente em si mesmo para constitui a substância de um livro de artista. A atenção aos materiais, a suas interações e ao conteúdo encadernado em um livro são uma característica integral de um livro, mas como ocorrem com outros aspectos da produção, livros de artista tendem a retorcer e estirar todas as regras e convenções do decoro artesanal. Podemos traçar a influência de praticantes individuais entre certas comunidades de artistas envolvidos com livros — por exemplo, a popularização de certas estruturas incluídas nos textos de Keith Smith sobre produção de livros. A contribuição de Smith e outros que tem se dedicado intensamente ao ensino, como Hedi Kyle ou Walter Hamady, em suas diversas zonas de influência no passado e no presente, é uma característica visível dos livros de artista em sua encarnação atual. Mas também existem obras produzidas bem longe desta tradição que têm êxito sem sua influência, como existem muitas obras produzidas como uma expressão de habilidade manual que não alcançam a categoria de livros de artista. Um livro de artista tem que ser algo mais do que uma sólida produção manual porque senão fica na mesma categoria do livre d'artiste ou das edições de luxo. Um livro de artista não deveria seguir uma fórmula — poderia ser genérico, do tipo familiar ou de uma categoria estabelecida de livros de artista e dar sua contribuição sem inovar do ponto de vista formal, e poderia ser radicalmente inovadora e descuidada e mal feita e não alcançar a perfeição ou mesmo uma boa realização em muitos aspectos — mas definitivamente um livro de artista tem que ter alguma convicção, uma alma, alguma razão de ser e ser um livro a fim de ter êxito. Eu acho particularmente difícil manter separadas a tradição manual do livre d' artiste e a tradição expressiva do livro de artista — não há necessidade disso — mas elas não devem ser confundidas uma com a outra, assim como nenhuma das outras áreas de atividade acima mencionadas devem ser tomadas como idênticas aos livros de artista. Dada a discussão prévia, não surpreende que a história do livro de artista esteja mapeada em uma grande variedade de modos por diferentes especialistas e críticos. Existe uma tendência a estabelecer um ponto de origem que parece ser arbitrário e definitivo, mesmo entre os escritores cujo senso geral do que constitui um livro de artista fazem uma clara distinção entre esta forma e aquela, digamos, do livre d'artiste. De modo geral, o livro Twentysix Gasoline Stations, de Ed Ruscha se tornou um clichê em trabalhos críticos tentando estabelecer uma história dos livros de artista. Existem alguns motivos para isto — pois a obra de Ruscha abre novos caminhos para representar e definir um livro de artista. Mas parece contra produtivo tentar estabelecer um único ponto de demarcação para esta história complexa. Parece mais útil e mais interessante reconhecer que na época em que a obra de 24

O Minnesota Center for the Book Arts, o New York Center for the Book Arts, Pacific Center for the Book Arts e Pyramid Atlantic.

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Ruscha foi produzida (a data da primeira edição é 1962) já existiam consideráveis precedentes históricos, com exemplos desde o futurismo russo e o surrealismo até a vanguarda americana, tanto da tradição artística quanto literária. Afirmar que o livro de artista surge a partir da obra de Ruscha, e atribuir a ele a ideia, o conceito e a forma, supõe dar um fundamento errôneo para esta história por duas razões. Primeiro, o livro de artista deve ser entendido como uma forma altamente mutável, que não pode ser precisamente definida por suas características formais (tais como impressão de baixo custo e pequeno formato das obras de Ruscha). A forma livro sempre está sob investigação por parte dos artistas, e esta investigação inclui chegar a muitas e várias tradições descritas acima, assim como a novos meios de expressão material e forma criativa. Mais importante ainda, esta abordagem histórica está desesperadamente cercada por uma antiga noção, a noção de existem pais fundadores que produzem tradições inteiras através de sua influência. Eu prefiro pensar no livro de artista como um campo que emerge com muitos pontos espontâneos de origem e originalidade. Este é um campo em que existem redes marginais, informais ou mesmo redes pessoais que permitem que cresça e venha para a superfície em um novo ambiente, em um novo momento, através de um encontro casual com uma obra ou com um artista. Um campo em que sempre há inventores e numerosas minigenealogias e grupos, mas um campo que nega a noção linear de história com um único ponto de origem. Está claro que essa história se tornou mais complicada desde meados do século. Enquanto o livro de artista deve ser tirado de seu contexto artístico ou literário no início do século, ele se torna depois uma forma tão desenvolvida e prolifica que apenas a visão mais geral ou a mais exaustiva e detalhada descrição da atividade será suficiente para descrever seu desenvolvimento. Eu escolhi o primeiro modelo. Brevemente, eis o modo como eu vejo a história no pós-guerra: no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 existe um número de artistas que começaram a explorar o mundo dos livros com seriedade. Entre eles estão os artistas CoBrA na Dinamarca, Bélgica e Holanda assim como os letristas franceses, liderados por Isidore Isou e Maurice Lemaitre, cujo trabalho experimental mais importante foi produzido de 1948 até os anos 1950. Os poetas concretos no Brasil, particularmente Augusto e Haroldo de Campos, e na Alemanha e na França, também começaram a trabalhar ativamente com livros nos anos 1950. No final dos anos 1950, artistas que trabalhavam com música experimental, performance, e outras formas não-tradicionais, adotaram as artes do livro dentro do contexto do Fluxus pouco depois de seus primeiros eventos no início dos anos 1960. Houve outras formações artísticas individuais ou localizadas no mesmo período — a obra do compositor francês Henri Chopin, por exemplo, ou Bern Porter, o praticante americano de poesia encontrada. Dieter Rot, provavelmente o artista europeu do livro mais significativamente imaginativo do pós-guerra, iniciou sua obra com livros nos anos 1950. Estes são pontos disseminados de atividade, alguns dos quais surgiram sem conexão uns com os outros, enquanto outros derivaram como parte da ampla e frouxamente relacionada vanguarda do pós- guerra. Nos anos 1960, o livro como uma forma artística tornou-se comum nos Estados Unidos e Europa. Eles se adaptavam bem à receptividade da cena alternativa dos anos 1960, foram produzidos independentemente por artistas ou por galerias como uma extensão de uma exposição, dando origem também ao gênero híbrido do catálogo como livro de artista. A proliferação de obras que usam o pequeno formato e métodos de produção econômicos indicam tanto a transformação da tecnologia de impressão como a transformação da receptividade conceitual que promoveu essa expansão. A impressão em offset em particular e 11


depois a reprodução eletrostática foram complementados por formas cada vez mais acessíveis de composição fotográfica e editoração eletrônica. A acessibilidade da Multi-lith, uma pequena prensa de offset, com preço acessível, como elemento padrão em uma oficina, assim como a rápida transformação da indústria de impressão, que passou da prensa tipográfica ultrarrápida ao offset (muitos jornais e revistas, como o New York Times e a revista Time, por exemplo, continuaram a usar impressão em relevo até os anos 1970, apenas substituindo por equipamento offset quando a composição eletrônica se tornou viável), foram todos desenvolvimentos que garantiram os meios para que os artistas produzissem múltiplos a baixo custo 25. Obviamente o desenvolvimento dos livros de artista não foi determinado pelos avanços tecnológicos, mas estas mudanças permitiram um acesso mais fácil à produção, especialmente para projetos fotográficos, do que havia sido no início do século. Nos anos 1970 grandes centros para a produção de livros de artista foram criados, com destaque para Visual Studies Workshop (em Rochester, New York), Nexus Press (em Atlanta, Georgia), New York Center for the Book Arts, Pacific Center for the Book Arts (na Bay Area de San Francisco), Printed Matter (na cidade de New York), e a Graphic Arts Press no Woman's Building (em Los Angeles). Outros centros institucionais se estabeleceram também dentro de escolas de arte e programas universitários em artes, em coleções de museus e bibliotecas e em coleções particulares. Nos anos 1970, então, o livro de artista amadureceu. No final da década de 1970, contudo, outra área de atividade relacionada ao livro começou a ganhar um perfil muito destacado: objetos com aspecto de livro ou escultura-livro. Sua proliferação foi ostensiva nos Estados Unidos, tanto em New York como na Califórnia, assim como na Europa. Este desenvolvimento teve menos precedentes na história das artes do século 20 do que os livros de artista. Podemos apontar muitas obras de Duchamp (como sempre) — como seu livro alterado, Do Touch, com um seio em sua capa, ou mesmo sua grande Green Box como um livro conceitual, e as caixas de Joseph Cornell tem uma relação formal e conceitual com o “livro” escultórico. Nos anos 1950, Diter Rot ferveu papel picado e encheu intestinos de animal para fazer "salsichas literárias." Livros em grande escala que são tanto instalação e performance quanto objetos fizeram parte das investigações Fluxus e outros nos anos 1960. Mas o recente aumento dessas produções marca uma intensificação do intercâmbio entre artistas que fazem livros e o mundo da corrente principal das artes visuais. No período pós-guerra, as artes vão se afastando gradualmente das formas e categorias tradicionais, de modo que as possibilidades sintéticas observadas no domínio dos livros de artista, e essa hibridização do livro como objeto, parecem completamente coerentes com suas tendências. Nos anos 1980, seguindo esta onda de obras escultóricas, começamos a ver instalações que são ambiciosas em escala e complexidade física, e vão do tamanho de um armário ao tamanho de uma sala, com vídeo, computadores, e a qualquer momento um aparato de realidade virtual. Muitas dessas obras são feitas por artistas que haviam trabalhado antes com livros de artista, ou que usam livros como um aspecto integral dessas instalações. Aqui estou pensando na edição congelada da obra de Sigmund Freud feita por Buzz Spector, esculturas cinéticas acionadas por computador de Janet Zweig, em How to Make an Antique, de Karen 25

O termo “econômico” é enganador — apesar dos custos de impressão nos anos 1960 e 70 serem consideravelmente mais baixos do que são nos anos 1990; eu tratei deste assunto com mais detalhe em Offset (1993), mas a questão básica é que os livros que vendem a um preço acessível tendem a exigir considerável quantia adiantada e custos irrecuperáveis, dados os problemas de distribuição, vendas e a falta de audiência no mundo dos livros de artista.

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Wirth e Robert Lawrence e a Bible Belt, de Marshall Reese e Nora Ligorano, entre outros. Muitas dessas obras colocam questões importantes para a identidade de um livro e sua função cultural, social, poética, ou estética, mas não poderia acolhê-los aqui sem estirar os parâmetros de minha discussão de forma embaraçosa. Algumas dessas obras são convincentes e originais, algumas são piadas produzidas à custa de livros como artefatos culturais, algumas são fascinantes, fetichistas, ou peças conceituais — mas para os fins deste estudo, estou mantendo-as um pouco além da zona dos livros de artista. Aqui vou me concentrar em compreender o que é um livro quando ele funciona como um livro, quando ele proporciona uma experiência de leitura ou observação continuada em um espaço finito de texto ou imagem. Estender-me além disso diluiria o enfoque deste livro. Além do mais, estou convencida que muitas dessas obras pertencem mais ao mundo da escultura ou da arte de instalação do que ao mundo dos livros. Elas podem funcionar como ícones da qualidade de livro ou identidade livro, mas não podem proporcionar uma experiência associada aos livros em si. Meu interesse é explorar a experiência do livro de artista em si e articular sua existência potencial como um espaço artístico. Mídias eletrônicas, contudo, colocam outro problema igualmente complexo. A natureza do livro como uma forma eletrônica — seja em hipertexto, CD-Rom, ou como um infinito e continuamente mutante arquivo de memória e espaço coletivos — já está funcionando como uma extensão da forma livro de artista. As questões levantadas por este meio parecem imperativas demais para se deixar de lado, de modo que encontrarão seu lugar, ainda que seja limitado, nesta discussão. Para terminar, algumas observações finais. A maioria das tentativas de definir um livro de artista que eu encontrei não chegam nem perto de seu objetivo — ou são demasiado vagas ("um livro feito por um artista" 26) ou muito específicas ("não pode ser uma edição limitada" 27). Livros de artista tomam qualquer forma possível, participam de qualquer possível convenção da produção de livros, qualquer possível "ismo" da arte e literatura predominantes, de qualquer possível modo de produção, qualquer formato, qualquer grau de fugacidade ou durabilidade arquivista. Não existem critérios específicos para definir o que é um livro de artista, mas existem muitos critérios para definir o que ele não é, com o que ele compartilha, ou do que ele se distingue. Ao projetar esta definição inicial minha intenção foi demonstrar a incrível riqueza dos livros de artista como uma forma que inspira um grande espectro de atividades artísticas, e não duplica nenhuma delas. Livros de artista são um gênero singular, em última instância, um gênero que trata tanto de si mesmo, suas próprias formas e tradições, como de qualquer outra forma ou atividade artística. Mas é um gênero tão pouco atado a limitações de meio ou forma quanto às rubricas mais familiares de “pintura” e “escultura” que também cobrem uma grande variedade de atividades. É uma área que precisa de descrição, investigação e atenção crítica 26

Lawrence Weiner, em um painel no Museu de Arte Moderna, "Artist's Books at the End of a Dream" em maio de 1994, usando o comentário duchampiano "se um artista fez então é arte". Nese caso, contudo, devo dizer que se não é um livro, não é um livro, não importa o que seja. Apesar disso, eu ainda prefiro a frase de Weiner à desesperada confusão de Riva Castleman, por exemplo, que parece incapaz de distinguir livros de artista de livres d'artistes ou livros ilustrados. 27

Isto vem de "Qu'est-ce qu'un livre d'artiste?", de Anne Moeglin-Delcroix, da publicação das Atas do Colóquio da Bienal do livro de artista de 1991, em Uzerche, que tenho muito a recomendar, mas sua tentativa de definir um livro de artista é muito limitada e literal. Eu conheço muitos grandes livros de artista em edições limitadas, e que não são livres d'artistes apesar disso, para sentir que tal critério possa ser usado. Parece objetivo, prático e desejável, mas acaba sendo uma marca de distinção arbitrária.

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antes que emerja sua especificidade. E este é o objetivo deste projeto: investigar livros que sejam livros de artista, a fim de poder permitir que este espaço concreto de atividade, que se situa em algum lugar na fronteira, limite e interseção de todas as atividades acima mencionadas, adquira sua própria definição particular. (traduzido por Amir Brito Cadôr, abril de 2011)

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