Almanaque Brasil – Ilustres animais

Page 1


O H C I B O É Texto: Bruno Hoffmann

Arte: Rodrigo Terra Vargas

Rinoceronte vereador, cachorro compositor, rato jornalista, pombo subversivo. A fauna brasileira é rica em animais que se tornaram celebridades nacionais.

a

22

bicharada está ao nosso lado desde o início da aventura humana. Quando começou a dominar as armas, o homem passou a domesticar os bichos. Desde então, a união nunca mais se desfez. Tornou-se fundamental para a evolução da espécie. “A conexão animal percorre a história e se conecta a outros grandes saltos evolutivos, incluindo a criação de ferramenta, a linguagem e a domesticação”, explica a paleontóloga Pat Shipman, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Aos poucos, a relação deixou de ser apenas de dependência para tornar-se também amorosa. Um exemplo? Em Israel, foi encontrado um fóssil de uma criança abraçada a um cachorro. Os ossos estavam naquela posição havia pelo menos 10 mil anos. Outro que tinha veneração pelos bichos era Francisco de Assis, que, no século 13, ensinava:

“Todas as coisas da criação são filhos do Pai e irmãs do homem. Deus quer que ajudemos aos animais. Toda criatura em desgraça tem o mesmo direito a ser protegida”. O filósofo grego Demócrito, que viveu em 460 antes de Cristo, defendia: “O animal é tão ou mais sabido do que o homem. Conhece a medida da sua necessidade, enquanto o homem a ignora”. Já o comediante norte-americano Bill Maher resumiu como poucos o prazer de ter um cão: “A razão de eu amar tanto o meu cachorro é porque quando chego em casa ele é o único no mundo que me trata como se eu fosse os Beatles”. Às vezes, porém, os animais deixam a posição de meros coadjuvantes para desempenhar o papel de protagonistas. Muitos foram alçados ao estrelato no mundo todo. E, claro, no Brasil. São as histórias desses brasileiros peludos (ou de penas) que desfilam a seguir.

Peteleco buscava pães e compunha sambas Adoniran Barbosa não escondia de ninguém que um de seus melhores amigos era Peteleco. Não se tratava de nenhum companheiro de rodas de samba, mas do cachorrinho xodó do compositor. Peteleco era tão sabido que buscava pães na padaria e costumava entrar no mar de Santos junto com o dono, deitado sobre seu peito.

www.almanaquebrasil.com.br

A devoção pelo bichinho era tanta que Adoniran resolveu torná-lo também compositor. Seja para criar ao lado de artistas de outras associações de direitos autorais, seja para não colocar seu nome ao lado de desafetos, há pelo menos seis sambas de Adoniran assinados por Peteleco.


Na ditadura, até pombo-correio era subversivo

O papa João Paulo 2º visitou pela primeira vez o Brasil em 1980. Ao pisar em Brasília, o funcionário público Damião Galdino da Silva quis porque quis presentear o sumo pontífice com um regalo inusitado: um jumento chamado Jericar. Como era de se esperar, as autoridades do Vaticano não permitiram que o burro fosse entregue. Em protesto, Damião acorrentou-se a uma torre de tevê

e fez greve de fome. O animal tornou-se famoso e participou de algumas manifestações da época. Subiu até a rampa do Palácio do Planalto durante as Diretas-Já. Quando Jericar morreu, em 1985, Damião cremou o animal e enviou as cinzas ao Vaticano. “Consegui, finalmente, dar o presente que sempre sonhei ao papa”, disse o funcionário público, aliviado.

Rinoceronte e macaco brilharam nas urnas O primeiro caso notório de voto de protesto no Brasil não teve nenhum ser humano como protagonista. Nas eleições de 1959 em São Paulo, o nome mais votado para vereador foi o de Cacareco. Tratava-se de um rinoceronte que havia sido emprestado pelo zoológico do Rio para o de São Paulo e que caíra na simpatia dos paulistanos. O bicho levou 100 mil votos. O caso ganhou até as páginas da revista Time, que destacou a frase de um eleitor: “É melhor eleger um rinoceronte do que um asno”.

Situação semelhante aconteceu nas eleições municipais do Rio em 1988. A revista Casseta Popular fez campanha pelo voto nulo, lançando a candidatura do Macaco Tião, um chimpanzé mal-humorado do zoo do Rio que chegou a cuspir no prefeito Marcelo Allencar. A campanha pegou e Tião recebeu 400 mil votos, o que lhe deixaria em terceiro lugar caso sua candidatura fosse válida. Quando morreu, em 1996, a cidade decretou luto oficial por oito dias.

23

João Gilberto tocou tanto que passarinho aprendeu a canção Em meados da década de 1950, Jorge Amado e Zélia Gattai receberam de presente um passarinho sofrê, amarelo e preto, de um amigo argentino. O pássaro tinha o hábito de pousar sobre a mão de Amado quando ele se punha a escrever. Certa vez, João Gilberto decidiu mostrar uma música nova ao casal. Tocou durante horas a mesma canção. De repente, percebeu uma melodia muito parecida com a sua vinda de algum lugar da casa. Era o sofrê, que havia aprendido a música insistentemente tocada pelo artista baiano.

Março 2012

ilustração sobre imagem de Acervo Zelia Gattai/Fundacao Casa de Jorge Amado

Um jumento para o papa

Durante a ditadura militar (19641985), qualquer cidadão corria o risco de ser considerado subversivo. Nem os pombos escapavam. Em Cabo Frio, um pombo-correio foi apreendido pelo delegado, que enviou uma mensagem às autoridades superiores: “Solicito instruções para pombo-correio encontrado e preso em Cabo Frio. Suspeitamos que seja um mensageiro da subversão”. A resposta da Secretaria da Segurança Pública chegou meia hora depois: “Pombo-correio deve permanecer em Cabo Frio, sob custódia do delegado local, até segunda ordem. Aguardar investigações do Departamento de Polícia Política e Social”. Um jornalista não aguentou e, apesar dos riscos, ironizou o fato. “O bichinho perdeu o rumo devido ao mau tempo, quando participava de uma revoada, e é absolutamente inocente, não registrando quaisquer antecedentes políticos.”


A TRAÇO Bidu O cachorrinho azul é o primeiro personagem publicado por Mauricio de Sousa, em 1959. O cartunista inspirou-se num schnauzer que tinha na infância chamado Cuíca. Bidu é símbolo da Mauricio de Sousa Produções.

24

Bode Orelana Em certa ocasião, o compositor Elomar disse a Henfil que tivera um bode de estimação que costumava comer livros. “Então era um bode intelectual!”, exclamou o cartunista. No dia seguinte, estavam prontos os primeiros esboços do Bode Orelana, cujo nome faz referência a Francisco de Orellana, o navegador espanhol que desbravou o rio Amazonas.

Zé Carioca Movido pela política da Boa Vizinhança, adotada pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, Walt Disney criou Zé Carioca para flertar com o Brasil. O papagaio malandro e indolente surgiu pela primeira vez no filme Alô, Amigos, de 1942, que reunia histórias ambientadas na América do Sul.

Níquel Náusea Paródia de Mickey Mouse, o rato vive nos esgotos ao lado da baratinha Fliti, viciada em inseticidas. O cartunista Fernando Gonsales, formado em biologia e veterinária, defende suas criações, consideradas por muitos asquerosas: “Os bichos escrotos são o máximo, vivem no mundo dos humanos sem pedir licença. Já viu um movimento pela preservação das baratas?”.

Baleia foi a estrela brasileira em Cannes Quando decidiu filmar Vidas Secas, baseado na obra de Graciliano Ramos, o cineasta Nelson Pereira dos Santos precisou se virar para achar uma cadela para fazer o papel de Baleia, o cão de estimação dos protagonistas da trama. Só foi encontrar a atriz ideal embaixo de uma barraca de feira em Palmeira dos Índios, onde o longa-metragem foi rodado. Depois de uma apresentação do filme no festival de Cannes, uma condessa italiana acusou o cineasta de matar a cadela de verdade na cena da morte de Baleia. De pouco adiantou dizer que a cadela estava viva, que a vira-lata era apenas uma ótima atriz. A polêmica foi tanta que uma companhia aérea francesa ofereceu uma passagem para que a cadela viajasse do Rio de Janeiro – onde vivia na casa do diretor de fotografia do filme, Luís Carlos Barreto – para Cannes. Como resultado, o animal tornou-se sensação na cidade francesa. “Baleia foi a grande vedete do festival”, lembra Barreto.

Ivan Lessa, Sig e Otar eram o mesmo ratinho Uma das figuras mais folclóricas dos tempos áureos de Ipanema era Hugo Bidet, artista plástico e, acima de tudo, um dos maiores beberrões do bairro carioca. Ele vivia com um ratinho branco no bolso, que o acompanhava nos bares e comia pão embebido em genebra. Era carinhosamente chamado de Ivan Lessa. Em meados da década de 1960, Jaguar e o verdadeiro Ivan Lessa criaram a tirinha Chopnics. O herói da história era um tal de

Capitão Ipanema, inspirado em Hugo Bidet. Seu companheiro inseparável era o ratinho Otar. Otar – “rato” ao contrário – foi o embrião para essa turma criar pouco tempo depois Sig, o rato-símbolo do Pasquim. O fim de Ivan Lessa, o roedor, não foi dos mais nobres. “Era um rato muito simpático. Quando íamos para a casa do Hugo, ficava andando na beira da janela, para lá e para cá. Um dia, de porre, caiu. Morreu que nem o Chet Baker”, contou Jaguar.


Para dar sorte, Biriba fazia xixi nos jogadores Num jogo entre Botafogo e Madureira, válido pelo Campeonato Carioca de 1948, um cachorro preto e branco invadiu o gramado. Como o Botafogo venceu a partida, o presidente do clube, Carlito Rocha, exclamou: “Esse cachorro vai nos dar sorte! Ele tem as cores do Botafogo!”. O supersticioso cartola adotou Biriba como mascote. O cachorrinho comparecia

a todos os jogos – chegaram a cortar um jogador da delegação para dar lugar a ele, que também tinha a função de fazer xixi na perna dos jogadores para inspirar os craques botafoguenses. Coincidência ou não, o time não perdeu mais naquela temporada e tornou-se campeão carioca após 13 anos. Até hoje Biriba é símbolo do clube da estrela solitária.

Zé carregou cruz pelo burro Nicolau O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, conta a história de Zé do Burro, humilde roceiro do interior da Bahia. O personagem não carrega o apelido à toa. Seu melhor amigo é o burro Nicolau. Só que o animal é atingido por um raio e fica entre a vida e a morte. Desesperado, Zé promete a uma mãe de santo que carregará uma pesada cruz de madeira até a igreja de Santa Bárbara, em Salvador, caso o bicho se recupere. A cura do burro dá início a uma das mais conhecidas tramas do teatro nacional, transformada em filme por Anselmo Duarte em 1962, e em série da TV Globo, em 1988.

Lobo também recebia cartas Em 1962, estreou na TV Tupi a série Vigilante Rodoviário, um dos maiores sucessos da emissora. O inspetor Carlos, vivido por Carlos Miranda, era a estrela do seriado. Mas outro personagem chamava a atenção dos telespectadores: Lobo, um pastor-alemão que, assim como seu companheiro de trama, vivia recebendo cartas de fãs. Para interpretar Lobo, foram usados cinco cães da Polícia Militar de São Paulo. O primeiro deles, morto em 1971, ainda está na memória de Miranda. “A verdade é que nenhum cachorro foi tão esperto quanto ele. Lobo é insubstituível.”

SAIBA MAIS

Assista a vídeos sobre os animais citados neste Especial no site do Almanaque. Novembro Março 2012

25


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.