Santo e Homem

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Lino Zani com Maril첫 Simoneschi

Santo e Homem O Papa Jo찾o Paulo II

S찾o Paulo, 2013


Título Original em italino: Era Santo, era Uomo, Il volto privato di Papa Wojtyla, por Lino Zani e Marilù Simoneschi. Copyright © 2011 by Arnoldo Mondadori Editore S.p.A, Milano. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos mediante acordo com Arnoldo Mondadori Editore,S.p.A., Milão, Itália, pela Editora Algol Ltda, São Paulo. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Tradução: Sérgio Casoy Capa e Edição das Fotografias: Misael Gabriel Produção Gráfica: Gilmar Vieira de Morais Direção Editorial: Heraldo Luiz Marin Algol Editora Ltda www.algol.com.br Primeira Edição, Junho de 2013. A Editora Algol agradece a Moreno Lucchetti pela intensa colaboração e muita dedicação a este Projeto. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil Zani, Lino Santo e Homem: O Papa João Paulo II / Lino Zani ; com Marilù Simoneschi ; [tradução Sérgio Casoy]. -- São Paulo : Algol Editora, 2013. Tìtulo Original: Era santo, era uomo : il volto privato di papa Wojtyla. ISBN 978-85-60187-41-6 1. João Paulo II, Papa, 1920-2005 2. Zani, Lino I. Simoneschi, Marilù. II. Título.


para Franco


Sumário

9

Prólogo

11

Nas Pegadas de um Segredo

29

Um Refúgio Adequado para o Papa

43

Dois Amigos sobre a Neve: o Papa e Pertini

57

O Silêncio da Oração

93

Sinais de Santidade

139

A Cruz de Granito em Contato com o Céu

163

Rezando no Polo Norte

183

Cronologia dos Eventos


Dois Amigos sobre a Neve: o Papa e Pertini Quando aqueles singulares hóspedes partiram, eu, mamãe e Franco nos sentamos para conversar com um misto de incredulidade e preocupação, causada pela inusitada e totalmente imprevista possibilidade de ter como hóspede João Paulo II, comendo, dormindo e rezando em nosso Refúgio perdido. Decidimos afrontar a situação com raciocínio frio, pensando antes de tudo em manter o comprometimento absoluto com o segredo que nos tinha sido terminantemente solicitado. Pensamos em manter o segredo somente entre nós, assumindo a responsabilidade de não informar nem papai nem o resto da família. Por outro lado, chegamos à conclusão que era forçoso avisar ao menos Miriam, a irmãzinha menor, que naquele período estava morando em Temù. Sua ajuda era indispensável porque o Refúgio, naquela época, não dispunha de rede telefônica; tínhamos somente uma estação radiotransmissora, através da qual podíamos nos comunicar com Bedole, onde ficava a estação do teleférico dirigido por papai, com o Quartel General dos Carabineiros de Pinzolo, Província de Trento, e com nossa casa em Temù. Portanto eu, mamãe, Franco e Miriam nos tornamos cúmplices em todo o trabalho febril de organização nos dias que se seguiram. Havíamos já combinado com Don Stanislao os dias em que o Papa se hospedaria conosco: 16, 17 e 18 de julho, portanto dentro de exatamente um mês. Nos anos seguintes, perguntei a mim mesmo tantas e tantas vezes porque Don Stanislao escolhera justo


o nosso Refúgio e a geleira do Adamello para as férias do Santo Padre. Antes de tudo, creio, pela unicidade e beleza daquele lugar, depois por saber que nós, os Zani, éramos bons cristãos e “montanheses” de poucas palavras, portanto aptos a guardar um segredo. Durante nosso primeiro encontro, Don Stanislao não me fez nenhuma pergunta sobre as batalhas da Primeira Guerra Mundial em Adamello, e menos ainda sobre Cresta Croce e sobre a pequena cruz de madeira erguida no cume da montanha em intenção de tantos soldados mortos. Sublinho este detalhe aparentemente irrelevante para explicar como naquele momento todos nós fossemos ainda imersos na total ignorância do verdadeiro significado daquilo que viria a acontecer. Algo de grande valor, transcendental, mas escondido na mais ingênua e aparente simplicidade de um período de férias. Seriam necessários muitos e muitos anos, até a proximidade deste glorioso dia da beatificação, para que eu chegasse a compreender, sentir e aceitar aquilo que hoje parece plausível pela lógica e incontestável pela fé. Naquele momento, o acaso, somente o acaso parecia ser o artífice da chegada daquele homem vestido de branco... Nem bem Don Stanislao e os outros partiram, decidimos não aceitar nenhuma reserva para os dias em que o Papa ficaria no Refúgio. Quanto às poucas presenças já confirmadas, nos foi dito para mantê-las. No dia seguinte, após uma noite agitada por mil dúvidas, desci a pé até a aldeia e, com grande reserva, contei à minha irmã tudo o que acontecera, exprimindo toda a minha perplexidade. E ela me disse:


— Vamos telefonar diretamente ao Vaticano e saberemos se tudo é verdade e se tudo acontecerá conforme previsto. Assim fizemos, e não apenas tudo foi confirmado, como fomos informados que logo receberíamos a visita de um certo comandante Camillo Cibin. Só mais tarde eu viria a saber que, no ambiente do Vaticano, Cibin era uma verdadeira instituição. Foi o Anjo da Guarda de João Paulo II por muitos anos, a pessoa que o acompanhava sempre e que, mais do que todos, velou por sua segurança. Há imagens que deram a volta ao mundo, retratando-o no dia do atentado na Praça de São Pedro, quando, depois dos tiros, ele pulou as barreiras para deter a fuga de Ali Agca. No ano seguinte, este mesmo Cibin usou a rapidez de seus reflexos para deter a mão armada de faca de outro louco que queria matar o Papa durante sua visita a Fátima. Chegou ao Refúgio de helicóptero, uns dez dias depois, no início de julho. Mamãe, pensando que fosse uma fiscalização da NAS*, correu para o seu quarto para buscar os documentos de autorização sanitária, mas aí lhe disseram explicitamente: — Senhora, se tudo estiver certo, o Papa virá aqui para encontrá-la! No auge da confusão, minha mãe mandou me chamar às pressas. Interrompi a aula de esqui que estava dando e desci até o Refúgio em poucos minutos. Apertando a mão de Cibin, eu o observei. Tinha diante de mim um belo senhor de modos secos e resolutos, muito seguro de si e enérgico. No futuro, eu apren-

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NAS é a sigla de Nucleo Antisofisticazioni e Sanità, órgão também conhecido como Comando Carabinieri per la Tutela della Salute. Subordinado ao comando dos carabineiros, fiscaliza a higiene e a saúde pública. (N.T.)


deria a conhecê-lo bem e entender que por trás daquela sua frieza, se escondia uma alma generosa. Eu aprenderia a captar suas preocupações em avaliar todos os aspectos do sistema de segurança e também a apreciar o sorriso um pouco dissimulado que lhe iluminava o resto quando permanecia entre nós, pessoas íntimas, próximas ao Santo Padre. Cibin, após uma vistoria externa, inspecionou cada canto do Refúgio, e quis ver o quarto que ofereceríamos ao Papa. Escolhemos um no fundo do corredor do primeiro andar. Era igual a todos os outros, portanto sem banheiro. Mas ele disse que estava ótimo, e nos aconselhou a colocar um genuflexório, um criado mudo ao lado do leito e uma cadeira simples. Havia um beliche de três andares. Nós o desmontamos, deixando apenas a parte de baixo. Mamãe, por iniciativa própria, colocou na parede nua um belo crucifixo de madeira. Do lado, como fora expressamente pedido, preparamos um quarto quase idêntico para Don Stanislao. Depois de ter inspecionado também a parte externa, o comandante nos perguntou que comida faríamos, e com ele combinamos também esse particular, escolhendo um cardápio simples, mas abundante e genuíno. Foi minha mãe, Carla, que o criou: salames da região, strozzapreti* feitos com pão e espinafre silvestre colhido por ela mesma, rosbife com batatas assadas, queijos dos Alpes, frutas silvestres, torta de frutas, tudo regado por vinho Tocai branco e grappa local. Foi mantido o mais absoluto segredo, quer de nossa parte quer dos poucos que, no limitado entourage do Papa sabiam da sua visita privadíssima ao Adamello. Três dias

*

Strozzapreti, prato típico de massa. Curiosamente, a tradução literal de strozzapreti é “enforca-padre”. Trata-se de pequenos gnocchi de farinha.


antes da partida, porém, exatamente a 13 de julho, aconteceu algo imprevisível que tornou ainda mais excepcional o acontecimento, despertando a curiosidade e divertindo o mundo inteiro. Para seus deslocamentos, utilizava os transportes da Força Aérea, portanto do Estado Italiano. Foi assim que chegou ao ministério o pedido de autorização para um Voo de Estado, de Roma até Verona e, depois, de helicóptero, até o Adamello. Alguém, parece que foi um Coronel da Aeronáutica que confidenciou a notícia a um amigo que trabalhava no staff do então Presidente da República, Sandro Pertini. Nesse ponto, Antonio Maccanico, Secretário Geral do Palácio Quirinale, tendo se inteirado da coisa, quis falar diretamente com o Presidente, de quem era colaborador íntimo e homem de confiança desde os tempos em que o próprio Pertini era Presidente da Câmara. Disse: — Quem sabe onde vai o Papa, com tanto segredo? Sucedeu-se uma cena divertidíssima, que me foi contada pelo próprio Don Stanislao alguns anos depois e que eu repito da mesma forma como me foi narrada. Os dois, como se sabe, eram grandes amigos, e como não estava prevista nenhuma visita ou evento oficial, o franco e amadíssimo Presidente não encontrou solução melhor do que apanhar o telefone: — Agora, vou perguntar ao meu amigo Karol aonde pretende ir! O Papa, como um garoto que se vê apanhado em uma traquinagem, deu uma bela risada e respondeu à queima-roupa: — Vou esquiar, fazer um passeio pela magnífica geleira do Adamello. Porque você não vem também? E Pertini:


— Tudo bem, Santo Padre, vamos! O resultado da conversa entre os dois chegou até nós lá em cima em poucas horas. De fato, naquela mesma tarde, chegaram juntos, num helicóptero, mais uma vez o bom Cibin, o Chefe de Polícia e o vice-diretor de Trento que, com evidente e grande empenho, começaram a inspecionar as redondezas para cima e para baixo. Após numerosas vistorias, convocaram-me dentro do Refúgio, para uma reunião, e me apresentaram as suas decisões. Inicialmente, comunicaríamos às autoridades locais que seriam feitos alguns trabalhos de beneficiamento do terreno, para eliminar as minas terrestres deixadas pela guerra. A zona seria, portanto, interditada e severamente vigiada. A partir do dia 15, a zona teve seu acesso impedido para todos. Chegou também uma instrução dos funcionários de Segurança do Estado Italiano para fossem retirados os hóspedes que estivessem no Refúgio. Mandamos uma família embora: mãe, pai e três crianças, e ainda dois homens que Don Stanislao tinha permitido que ficassem. Mentimos para eles, falando da busca de artefatos de guerra no terreno e portanto de um grande e iminente perigo. Vieram dois helicópteros que os levaram embora com a maior pressa. Minha mãe ficou ainda mais agitada quando soube que o Presidente Pertini era vegetariano. Correu para solucionar o caso, adicionando ao cardápio um risoto, salada russa, verduras gratinadas e saladas de vários tipos. Naquele mesmo dia, vigília do grande acontecimento, chegaram, subindo a pé, Don Stanislao, Cibin e o Monsenhor Taddeo, que ficaram para dormir, controlando, obviamente se tudo estava no devido lugar. Depois da janta, puxei Don Stanislao para o lado e comecei a enchê-lo de perguntas:


— Como devo fazer para saudá-lo? Devo ou não beijar o anel do pescador? Devo dirigir-me a ele chamando-o de Santidade ou de Santo Padre?. Ele sorria para mim e coçava a cabeça: — Vamos, Lino, faça aquilo que achar que deve, não invente problemas, acolha-o como acolheria a um amigo... É uma palavra! Experimentem pensar que, de um dia para o outro, vocês encontram o Papa sentado na sala das suas casas, comendo com vocês e dormindo sob seu teto... Aquela noite, dormi pouco ou nada, e como era de se esperar, já estava de pé às quatro da manhã. Era um dia maravilhoso. Às 8:45 começamos a sentir que se avizinhava o rumor das hélices de um pesado helicóptero militar, daqueles que podem transportar até doze pessoas. A aterrissagem, como prevista, aconteceu sobre uma planície de neve justamente no Passo della Lobbia, a duzentos metros do Refúgio. Éramos poucas pessoas a aguardar: eu, meu irmão Franco, papai, minha irmã Renata com o marido, as meninas que ajudavam mamãe a servir a mesa e o filho de uns amigos, um menino de nove anos, o pequeno Enrico, a quem tínhamos convidado para uma surpresa sem dar maiores explicações. Aberta a porta do helicóptero, saiu imediatamente o Santo Padre, com hábito branco, cândido, uma capa negra e um olhar que nunca esquecerei: uma ligeira ironia de fundo, uma curiosidade vivíssima e com a capacidade de nos acariciar com os olhos. Esta foi a sensação que experimentei, afagado ali por um amor colocado à disposição de todos, o qual, de improviso, somente ao olhar para ele, podia beneficiar quem quer que fosse, sem méritos específicos. Hoje, repensando, percebo que aquele foi o primeiro sinal de “santidade” do qual fui tes-


temunha, sentindo-me invadir por uma sensação sutil e penetrante, um misto de leveza e alegria. Eu tinha só 27 anos e uma vida bela e aventurosa, mas se fosse velho ou doente, ferido por alguma pena, apenas olhar para ele, tenho certeza, teria mitigado e abrandado a dor. Eu e meu irmão Franco nos aproximamos imediatamente. Fiz uma pequena reverência e beijei-lhe o anel. O Papa, com sua mão, me puxou imediatamente para cima e depois ouvi sua voz lenta, um pouco arrastada e inconfundível me perguntar: — Como você se chama? E depois: — Então hoje vamos esquiar juntos... Eis uma sua outra característica: a capacidade de compreender imediatamente quem estava diante dele e por que. Só de me olhar, tinha entendido que eu, e não outro qualquer, seria o seu professor de esqui, ou melhor, seu guia, visto que ele já esquiava muito bem. João Paulo II, malgrado tivesse sofrido a lesão do ferimento e os problemas que dele tinham derivado, parecia estar então em boa forma e eu me apressei imediatamente a ajudar Pertini a saltar da escadinha do helicóptero, e ao mesmo tempo em que o saudava, oferecer-lhe meu braço. Para o Presidente usei o termo “saltar” e não errei, porque a impressão que dava, não obstante fosse um octogenário, era aquela de um “grilinho” que saltitava e falava sem parar. Tínhamos de percorrer uma centena de metros até chegar ao gatto delle nevi guiado por meu pai, a bordo do qual iríamos para o Refúgio. Mas esses metros deviam ser percorridos sobre o gelo, e logo fiquei preocupado com a incolumidade dos quatro ou cinco homens do staff do Presidente. Quem os observasse de longe daria grandes risadas: estavam sobre


uma geleira, esmagavam as neves externas com sapatos de couro de cadarços, paletó e gravata. Evidentemente, a regra férrea do segredo impedira de dizer a eles qual era o insólito destino daquele curiosíssimo par. Resultado: deslizavam para frente e para trás, produzindo um efeito realmente cômico. O Presidente, entretanto, estava completamente à vontade: calças à zuava, ótimas botinas marrons com solado Vibram, uma malha com desenhos nórdicos e a onipresente bengala. A cena que se seguiu foi realmente hilariante. Depois de instalados no gatto delle nevi, tendo coberto um breve percurso, chegamos no caminho que conduzia diretamente ao ingresso do Refúgio, que precisaríamos percorrer a pé. Um caminho delineado pela morena, ou seja, feito de pedras pontudas, instáveis devido à natureza do terreno. Eu e meu irmão, cada um de um lado, suspendemos então o Presidente pelos colovelos, já que ele evidentemente estava com dificuldades para caminhar. E ele começou a se lamentar com a costumeira veemência: — Mas que caminho é este? Mas não podemos fazer o Santo Padre caminhar aqui, vocês tinham de ter me avisado, eu haveria pensado no que fazer, teria expedido aqui para cima uma Companhia de Alpinos e eles teriam aplainado o terreno... E agora, como se faz?. Olhei para João Paulo II, que nos precedia de poucos passos. Caminhava sozinho, tranquilo, apenas se apoiando no braço de Gigi, um adido de segurança que estava a seu lado. Eu o vi sacudir a cabeça e sorrir divertido como um menino, diante das habituais intemperanças de seu incoercível amigo. Eu e Franco chegamos ao Refúgio carregando o Presidente pelos braços sem que


seus pés tocassem a terra, enquanto ele continuava a protestar vivamente, preocupando-se com Sua Santidade... Na entrada do Refúgio, nos esperavam minha mãe e minhas irmãs. Tocou à minha mãe, que estava nas portas, dar as boas-vindas ao Papa. Ele entrou, sorriu para ela e a impediu de inclinar-se para beijar sua mão. Em vez disso, segurou suas duas mãos nas dele, segurandoas com firmeza enquanto respondia às poucas palavras de saudação com um dulcíssimo sorriso. Ainda hoje, mamãe diz que, ao contato de suas mãos, provou uma sensação nunca antes sentida e nunca mais experimentada durante sua vida. Uma espécie de calor benéfico que trazia bem-estar que ultrapassava as emoções diante da visão de uma pessoa tão importante. Devo dizer que o Papa, em seguida, também demostrou ter se afeiçoado a Carla, minha mãe. Nos anos seguintes, se mostraria sempre interessado por sua saúde e dedicaria a ela pensamentos especiais e orações. De resto, não podemos esquecer que ele perdeu sua amadíssima mãe, Emilia, quando tinha só nove anos. É normal que o afeto o ligasse a uma mulher saudável e ao mesmo tempo doce como minha mãe, que provavelmente lhe recordava sua própria mãe. Foi Mamãe, com suas mãos, que lhe preparou um belo cappuccino, espumante e quente para esquentá-lo assim que entrou. Ele aceitou com entusiasmo, mas teve de absorver também as reclamações de Pertini: — Mas que cappuccino, aqui somos gente de montanha, eu tomarei um belo copinho de grappa, nada de cappuccino... Eu sou um alpino, e os alpinos não bebem cappuccino... Risadas e bom humor. Logo em seguido, o Papa pediu para subir e trocar de roupa, realmente ansioso


para pôr os esquis nos pés. Desceu depois de poucos minutos, um esquiador sóbrio e perfeito: calças e casaco em cor cinza-azulada, luvas da mesma cor, uma touca branca com viseira, e um alegríssimo par de botinhas vermelhas, que adicionavam a seu look esportivo um toque verdadeiramente elegante. Pertini, sempre com o inseparável cachimbo na mão, estava excitadíssimo, e continuava a repetir, olhando as vidraças do salão: — Mas que lugar, mas que maravilha, mas que dia magnífico. Foi ele que, subitamente, começou a falar da Grande Guerra, evocando os cenários, o sacrifício dos Alpinos, a resistência não só contra os inimigos, mas ao frio e às condições ambientais proibitivas e à falta de alimentos e provisões. Eu me recordo que ele falou longamente de uma “guerra esquecida”, de pobres cristãos abandonados por quem os comandava. Pertini continuou a falar sobre o mesmo assunto quando voltamos para o gatto. Conforme os planos, iríamos esquiar na pequena geleira de Lares. Atrás, nos lugares descobertos, sentávamo-nos eu, meu irmão Franco, o Presidente e seu médico pessoal. Estavam também Antonio Maccanico, de paletó e gravata, o guarda do Papa e Angelo Gugel, camareiro do Santo Padre. Este último quis sentar-se ao lado de meu pai, que guiava. Depois, eu ficaria sabendo que durante aquela meia horinha, meu pai tinha aproveitado para “usufruir” daquele especialíssimo “pastor de almas”, pedindo para se confessar. Poucos minutos depois das nove, estávamos sobre a branca extensão de neve, cobertura ótima e compacta naquele dia verdadeiramente idílico pelas condições meteorológicas. Na geleira de Lares, pusemos os esquis. No começo, procurei ficar perto do Papa, mas depois per-


cebi que ele faria tudo perfeitamente sem minha ajuda, ao contrário, compreendi que ele preferia ficar só. Começamos então a apertar o ritmo, subindo com o gatto e tornando a descer diversas vezes. Eu precedi sempre o Papa por dois motivos: Don Stanislao, querendo obter fotos de lembrança, e visto que não havia nenhum fotógrafo presente, pediu-me para tirar algumas. A minha preocupação constante era atuar como abre-pista, por razões de segurança. De fato, eu tinha explicado ao Santo Padre que as armadilhas daquelas neves perenes e maravilhosas eram as inumeráveis fendas. Eu lhe pedi então para fazer as curvas naqueles trechos de pista da mesma forma que eu fazia. De resto, percebi que o Papa esquiava muito bem, com segurança, com os esquis paralelos, quase unidos, como um esquiador experiente. Era inclusive um pouco temerário, amava a inclinação, os trechos mais íngremes. Tinha uma postura curiosa e particular, esquiava um pouco projetado para a frente. Isso, provavelmente, era devido ao fato de que nos anos em que ele tinha aprendido a esquiar nos Montes Tatra, na Polônia, os esquis eram mais rígidos e exigiam esse tipo de posição, que depois ele reteve como padrão. Era fantasioso ao escolher os percursos, me perguntando se podia continuar por um em vez do outro assinalado. Lia-se em seu rosto uma ligeira, evanescente felicidade durante a velocidade de descida, quando seus olhos se transformavam em olhos de um menino, despreocupados e profundamente felizes. De quando em quando, exclamava: — Lino, mas que neve excepcional vocês têm aqui em cima!. O gatto delle nevi, com Pertini e os outros a bordo, nos acompanhava e depois tornava a descer para o vale,


esperando para nos levar de novo para cima, e uma vez o Presidente, com sua voz estentórea, gritou para o Papa: — Santidade, o senhor esquia como uma andorinha. Ao redor do meio dia – e estávamos exatamente sobre o Passo de Lares – o Papa se interrompeu repentinamente para recitar o Angelus. Um seu hábito caro, do qual depois eu aprenderia a participar, que marcou sua vida inteira, repetindo-o invariavelmente de manhã, ao meio-dia e ao pôr-do-sol. Pusemo-nos num canto, e ele começou com voz firme no silêncio: — O Anjo do Senhor anunciou a Maria... A oração foi breve como uma respiração, e depois voltamos a esquiar por mais alguns minutos. Logo em seguida, aconteceu algo que nunca mais esquecerei e que me fez intuir, embora de modo ainda confuso, como o universo começava verdadeiramente a fazer-me compreender a história do Outro. Um fio sutil tinha começado a desenrolar-se naquele longínquo maio de 1917, partindo do cenário fosco da guerra, envolvendo acontecimentos em anos e lugares diferentes do mundo: Fátima, o Adamello, Roma com a Praça de São Pedro. Só hoje, na vigília do 1º de Maio, ou seja, um dia de glória, aquele projeto me surge, em cada uma de suas partes... simplesmente claro.



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