José Mujica: Sou do Sul, venho do Sul. Esquina do Atlântico com o Rio da Prata

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ISBN

978-84-17440-56-5


O discurso de José Mujica reproduz-se com a sua autorização. Publicado por AKIARA books Plaça del Nord, 4, pral. 1.ª 08024 Barcelona (Espanha) www.akiarabooks.com/pt info@akiarabooks.com © 2019 © 2019 © 2019 © 2019 © 2019

Dolors Camats, pelas «Chaves do discurso» Raúl Nieto Guridi, pelas ilustrações Catarina Sacramento, pela tradução do discurso Maria João Teixeira Moreno, pela tradução das «Chaves do discurso» AKIARA books, SLU, por esta edição

Primeira edição: novembro de 2019 Coleção: Akiparla, 4 Desenho e coordenação da coleção: Inês Castel-Branco

Este livro foi impresso com papel certificado FSC, proveniente de fontes que respeitam a sociedade e o meio ambiente, e pode ser considerado um «livro amigo das florestas».

Impresso com duas tintas, o miolo sobre papel reciclado Shiro Echo Blanc de 120 g/m 2 e a capa sobre cartolina Kraftliner de 250 g/m 2. Usaram-se as fontes Celeste Pro Book, Helvetica Narrow e Franklin Gothic Std. Impresso em Espanha @Agpograf_Impressors Depósito legal: B 24.798-2019 ISBN: 978-84-17440 -56-5 Reservados todos os direitos


SOU DO SUL, VENHO DO SUL. ESQUINA DO ATLÂNTICO COM O RIO DA PRATA Comentário de Dolors Camats // Ilustrações de Guridi



ÍNDICE DISCURSO

Proferido por José Mujica perante a Assembleia das Nações Unidas em Nova Iorque

CHAVES DO DISCURSO

Um presidente que diz o que pensa «Sou do Sul, venho do Sul» «O presidente mais pobre do mundo» O quem, o quê e o como Consumir torna-nos menos livres Contra o governo da economia, o governo global Contra a ambição e o desperdício: austeridade e ecologia O que pensas tu?

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Amigos: Sou do Sul, venho do Sul. Esquina do Atlântico com o rio da Prata, o meu país é uma planície suave, temperada, pecuária. A sua história, de portos, couro, tasajo, lãs e carne, teve décadas púrpuras de lanças e cavalos até que por fim, no arranque do século xx, passou a estar na vanguarda a nível social, no Estado e no ensino. Diria mesmo: a social-democracia foi inventada no Uruguai. Durante quase cinquenta anos, o mundo viu-nos como uma espécie de Suíça. Na verdade, na economia, fomos filhos bastardos do Império Britânico. E, quando este sucumbiu, vivemos o amargo mel do fim dos termos de troca funestos e ficámos estagnados com saudades do passado. Quase cinquenta anos a recordar a vitória no Maracanã, a nossa façanha desportiva. Hoje ressurgimos


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neste mundo globalizado, aprendendo talvez com a nossa dor. A minha história pessoal: a de um rapaz — porque, um dia, fui um rapaz — que, como tantos outros, quis mudar a sua época e o seu mundo com um sonho, o de uma sociedade libertária e sem classes. Os meus erros são, em parte, filhos do meu tempo; é óbvio que os assumo, mas há momentos em que penso com nostalgia: «Quem me dera ter a força de quando éramos capazes de abraçar tanta utopia!». No entanto, não olho para trás porque o hoje real nasceu das cinzas férteis do ontem. Pelo contrário, não vivo para cobrar contas ou reverberar memórias. Angustia-me — e de que maneira — o futuro que não verei e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma Humanidade melhor, mas talvez hoje a primeira tarefa seja salvar a vida. Mas sou do Sul e venho do Sul a esta assembleia. Carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres nas cidades, nos desertos, nas selvas, nas pampas e nos vales da América Latina, pátria comum que se está a formar. Carrego as culturas originais aniquiladas, os restos do colonialismo nas Malvinas, os bloqueios inúteis a este jacaré sob o sol do Caribe que se chama Cuba. Carrego as consequências da vigilância eletrónica, que não faz outra coisa senão



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semear desconfiança, desconfiança essa que nos envenena inutilmente. Carrego uma gigantesca dívida social e a necessidade de defender a Amazónia, os mares, os nossos grandes rios da América. Carrego o dever de lutar por uma pátria para todos e para que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz. E carrego o dever de lutar pela tolerância. A tolerância é necessária para com os que são diferentes e para com quem discordamos. Não é preciso tolerância para com quem estamos de acordo. A tolerância é o fundamento para podermos conviver em paz e entendendo que no mundo somos diferentes.


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O combate à economia suja, ao narcotráfico, ao roubo e à fraude, à corrupção, pragas contemporâneas geradas por esse antivalor, esse que defende que somos mais felizes se enriquecermos, seja como for. Sacrificámos os velhos deuses imateriais e passámos a ocupar o templo com o deus Mercado. Ele organiza-nos a economia, a política, os hábitos, a vida e até nos financia, em prestações e cartões, a aparência de felicidade. Pareceria que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos fazê-lo, somos dominados pela frustração, a pobreza e até mesmo a autoexclusão. É certo que se hoje aspirássemos, enquanto Humanidade, a consumir em média como um cidadão dos Estados Unidos, seriam necessários três planetas para podermos viver. Ou seja: a nossa civilização montou um desafio mentiroso, e se continuarmos assim, não será possível a todos satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Na verdade, a nossa época está a massificar-se como uma cultura constantemente dirigida pela acumulação e pelo mercado.


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Prometemos uma vida de esbanjamento e desperdício, que no fundo constitui um passo atrás face à natureza e ao futuro da Humanidade. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais. Pior ainda: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, a única coisa que é transcendente: o amor, a amizade, a aventura, a solidariedade, a família. Civilização contra o tempo livre, que não dá dinheiro, que não se compra e que nos permite contemplar e esquadrinhar o cenário da natureza. Arrasamos as selvas, as selvas verdadeiras, e implantamos selvas anónimas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com passadeiras de correr, a insónia com comprimidos, a solidão com equipamento eletrónico... Somos felizes afastados do que, desde sempre, nos constitui como humanos? É preciso fazer-se essa pergunta. Aturdidos, fugimos da nossa biologia que defende a vida por si mesma como causa superior e suplantamo-la pelo consumismo funcional, funcional à acumulação. A política, a eterna mãe do acontecer humano, ficou aprisionada à economia e ao mercado. De salto em salto, a política não pode senão apagar incêndios e, como tal, delegou o poder e entretém-se, aturdida,


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a lutar por governar. Louca marcha da história humana, comprando e vendendo tudo, que inova para tentar negociar o que é inegociável. Há marketing para tudo: para os cemitérios, o serviço fúnebre, as maternidades, marketing para pais, para mães, para avós e tios, passando pelas secretárias, os automóveis e as férias... tudo, tudo é negócio. Contudo, as campanhas de marketing dirigem-se deliberadamente às crianças e à sua psicologia para


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978-84-17440-56-5


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