Revista Bertheriano (Jan/Fev/Mar 2022) - Português

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Temos a alegria de entregar nas suas mãos a primeira edição do Bertheriano, posterior à constituição da Província América Latina dos Missionários da Sagrada Família, no dia 12 de novembro de 2021. E o fazemos convictos de que esta foi uma experiência de passagem, de transformação, de Páscoa.

Na verdade, a experiência e a percepção do dinamismo pascal, enquanto afirmação da vida humana contra todas as forças contrárias e falsas evidências, não é monopólio dos judeus, nem dos cristãos, e está presente em muitas experiências históricas e expressões culturais, inclusive na Música Popular Brasileira.

Sufocados pela ditadura militar, João Bosco e Aldir Blanc cantavam uma esperança frágil e quase desequilibrada de um futuro diferente: “Eu sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente! A esperança dança na corda bamba, de sombrinha, e em cada passo dessa linha pode se machucar”.

Chico Buarque cantava com ironia, provocando o sujeito “que inventou este estado, inventou de inventar toda escuridão”, dizendo: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você: onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? A água nova brotando e a gente se amando sem parar?”.

Num tom mais romântico, Ivan Lins expressa essa mesma experiência: “Começar de novo e contar comigo. Vai valer a pena ter amanhecido, ter me rebelado, ter me debatido, ter me machucado, ter sobrevivido, ter virado a mesa, ter me conhecido, ter virado o barco, ter me socorrido...”.

Na vida de Jesus de Nazaré e das muitas gerações de discípulos e discípulas que se seguiram, vemos a realização concreta do sonho da paz, da justiça e da superação aparentemente impossíveis, especialmente em tempos de novas intolerâncias e guerras violentas e nada frias. Por isso, proclamamos, sem medo de dizer coisas vazias: Feliz Páscoa!

02 Editorial

03 Missão no Mundo

06 Missão no Brasil

07 Central

15 Espiritualidade

18 Testemunhos

20 Colabore

Produção:

Expediente

Essa é uma publicação da: Província dos Missionários da Sagrada Família

América Latina

Governo Provincial MSF

América Latina

Pe. Itacir Brassiani

Superior Provincial

Pe. Fernando Ibáñez

Vice Provincial

Assistentes Provincial

Pe. Pedro Leonides

Pe. Raúl Vera

Pe. Domingos de Sá Filho

Equipe de Comunicação MSF

Ir. Héctor Pinto G.

Ir. Wanderson Noguera A.

Fr. Igor Pereira dos Santos

Fr. Wesley Araujo da Silva

Contato e Pedidos

Província dos Missionários da Sagrada Família

Edição

Mário Augusto Arcanjo

Revisão de texto Ana Luíza Sanches

Editoração

Editora Acadêmica do Brasil

Capa e diagramação Letícia Sales

Rua da Floresta, 1043 - Bairro Petrópolis

Cx. Postal 3056 - CEP: 99051-260

Passo Fundo - RS - Brasil

Fone: (54) 3313-2107

E-mail: secretaria@msagradafamilia.com.br

Site: www.misafala.org

Impressão e tiragem

Gráfica Berthier / 1.800 exemplares

2 Editorial Editorial
Sumário
Editorial
Por Pe. Itacir Brassiani, msf Passo Fundo/RS

O medo que divide e paralisa muitos moçambicanos

Desde que assumiu como Arcebispo da Arquidiocese de Nampula, a cada novo ano pastoral, Dom Inácio Saure escreve uma carta a todo o povo de Deus das comunidades. A partir da Palavra de Deus, ele busca animar a reflexão e a concretização do Reino de Deus neste pedaço de chão.

por causa das suspeitas entre os seus membros: o neto que desconfia dos avós, o filho que desconfia da mãe e do pai, os pais que desconfiam do filho, o sobrinho que desconfia do tio e vice-versa. Vive-se um clima de suspeita também em locais de trabalho, onde não é raro ouvir dizer que as invejas entre os colegas levaram ao recurso de ciências ocultas à procura de promoção na carreira ou de eliminação dos que prosperam”.

Para o ano Pastoral 2021-2022, ele escolheu: “Como é bom e agradável que os irmãos vivam unidos” (cf. Sl. 133,1). Logo no início, ele sublinha que “não há união que não rime com comunhão”. E ilumina esta rima com a Palavra de Deus: “Para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim e eu em Ti; para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste” (cf. Jo 17,21).

O Arcebispo indica com clareza e propriedade que um campo que impede a livre e feliz convivência em comunidade é o poder dado aos “feiticeiros” e aos “maus espíritos”. Esta é uma realidade que envolve ricos e pobres, letrados ou não, e que a nós, missionários, que chegamos de outra cultura, nos deixa muitas vezes perplexos e sem reação. Quando menos esperamos, anunciam a morte de uma liderança, pois a família alargada encomendou a um “feiticeiro” um “trabalho”, visto que estava prosperando; e, segundo a tradição, só enriquece alguém que matou um membro da própria família.

Segundo Dom Inácio, “a crença na existência de feiticeiros e de maus espíritos é uma realidade que atormenta muitos filhos de Deus. Em algumas famílias vive-se autênticos pesadelos

Muitos cristãos não hesitam em “procurar livrar-se dos malefícios dos feiticeiros e dos maus espíritos recorrendo, como todos os outros, a objetos ou procedimentos comuns do seu povo e do seu meio ambiente: ao EHARISI ou EHIRISI, objeto mágico que se acredita ter um poder para proteger os seus portadores de efeitos maléficos dos feiticeiros; ao ERUPANI (incenso), que se queima para que o seu penetrante perfume afugente os maus espíritos; ao W’AMWAMWALI, uma espécie de santuário tradicional, onde se encontra a pessoa supostamente detentora de poderes especiais para descobrir e neutralizar os feiticeiros e suas ações”.

Quem são os “feiticeiros” e “maus espíritos” nas nossas comunidades cristãs? “Os verdadeiros feiticeiros e maus espíritos são os charlatães que, dissimulados com os vestidos de Cristo, matam e comem os seus irmãos com calúnias, promovem discórdias e divisões, intoxicam os irmãos pouco preparados em matéria da fé com falsas doutrinas e, apresentando-se como perfeitos, são hipócritas e pais de toda a sorte de perversidades”.

3 Missão no mundo
Pe. Celso Both, msf Mecubúri/Moçambique

Caminho se faz caminhando

Como muito bem nossa constituição, no número 53, nos apresenta: “A Vida no Instituto começa com o noviciado, que deve levar os noviços a um conhecimento mais profundo de sua vocação divina e de nossa Congregação Missionária.” Tendo como inspiração esta frase dita pelo nosso fundador, trazemos-a para este momento formativo, onde a quase três meses estamos vivendo na casa de formação do noviciado Juan Berthier em Santiago-Chile.

Chegar a Santiago não foi fácil, a começar pelos desafios que já se apresentavam, uma vez que somos a primeira turma após a unificação das províncias (Chile, Brasil e Argentina). As dúvidas naquele momento pairavam, após a aprovação ao noviciado, os desafios que o momento pandêmico nos cercam, o que fez com que a nossa chegada se tornasse muito mais desafiadora. Tentamos embarcar na data prevista, mas, devido a falta de liberação das documentações exigidas pela vigilância sanitária em Chile, não foi possível. Destacamos o acolhimento dos nossos irmãos Salettinos, que muito bem nos acolheram no Santuário de Nossa Senhora de La Salette em São Paulo, onde ficamos durante quase duas semanas.

Traremos sempre em nossos corações a recepção de Padre Carlos, vigário do Santuário, por toda a ajuda neste momento difícil. Após este dias, chegou o momento do embarque, porém, fomos surpreendidos por problemas técnicos na aeronave e mais uma vez não conseguimos embarcar. Só conseguimos levantar voo no dia seguinte e, enfim, depois de tantos incidentes, chegamos ao Chile, onde as maravilhosas cordilheiras, da nossa janela do avião, nos anunciavam: sejam bem-vindos a Santiago, sua nova casa!

Estar em um novo país, uma nova cultura, é sempre um grande desafio, no qual nos primeiros dias vamos percebendo aos poucos o modo próprio de ser e as peculiaridades chilenas: um povo simples, direto, acolhedor, que ama sua terra, que partilha a fé e a vida, que se mostram dispostos a compartir com generosidade

e construir com quem chega. Fomos muito agraciados por ter naquela primeira semana o contato e a alegria do querido Pe. Hector, que muito bem nos recepcionou e mostrou-nos alguns aspectos do contexto da Igreja local, como também sua visão do campo vocacional e o quanto esta nova etapa formativa irá nos proporcionar um encontro de intimidade e aprofundamento com o nosso fundador, onde buscamos “estudar as nossas constituições e estar mais próximo do carisma MSF”.

Assim, no dia 17 de janeiro, com uma celebração às 18h, abrimos oficialmente o noviciado, com a missa que ocorreu na própria capela do seminário, presidida pelo vice provincial Pe. Fernando, concelebrada pelo nosso formador Pe. Pedro e Pe. Hector que, com suas palavras calorosas, nos encheu de alegria, um mix de sentimentos, e a esperança de fazermos uma linda caminhada; em seguida, compartilhamos um momento fraterno.

4 Missão no mundo

Iniciamos o processo formativo junto ao nosso Maestro, homem de uma peculiar docilidade, inteligência e humanidade, que a cada dia na nossa convivência nos apresenta o jeito de ser MSF. A sua história de vida já é por si só um grande ensinamento; o diálogo Mestre e discípulos constrói uma relação de companheirismo. No noviciado podemos reproduzir o caminhar de Jesus com seus discípulos, que na partilha da vida se permitiu ser conhecido e conhecer seus discípulos. Este é o motivo da alegria que está sendo nossa relação em nossa casa. É tão intenso este companheirismo que até os desafios culturais (modo próprio de ser de cada um, a língua e os costumes) vêm sendo superados a cada dia.

Que alegria é estar no Chile e conhecer a maneira de ser Igreja, que é muito própria dos chilenos. Como todo devoto católico, os chilenos têm um amor filiar a mãe de Deus, venerada aqui pelo título da Virgem do Carmo. É muito emocionante ver que, entre a população, se encontra na boa mãe acolhedora o alento para as dificuldades diárias. Encontramos, nos vários lugares do país, grandes monumentos que demonstram manifestação de fé do povo.

Nos últimos anos a Igreja no Chile sofreu com grandes problemas administrativos e, mesmo com grandes dificuldades pastorais, com a pandemia vem buscando superar estas dificuldades, dando um novo ardor pastoral. Como toda cidade grande, Santiago não fica atrás em matéria de crescimento populacional, secularização dos jovens e empatia para com a Igreja – isso se reflete bem na diminuição de vocações e na participação do povo. Presente aqui no Chile de maneira pequena, mas muito importante para as paróquias, está a Comunidade de Irmãos, na qual estamos em missão, sendo este sinal vivo do nosso carisma.

Nós, noviços, estamos inseridos neste novo momento que a nossa Congregação está vivendo, e nos propomos a viver estas mudanças para que, como religiosos da Sagrada Família, possamos cada vez mais estar perto daqueles que estão longe. O Caminho só começou, mas a cada passo vamos descobrindo algo novo. Iniciamos os estudos no Centro de Estudos CONFERRE, que está sendo um lindo momento de encontro e partilha com os demais irmãos de diversas casas religiosas. Partilhar da vida, as inquietações e a esperança traz-nos a certeza de estamos no caminho certo e, acima de tudo, colore e dá vida ao seguimento de Jesus. Por fim, convidamos que rezem por nós para que sejamos fiéis, dignos da missão a qual o Senhor nos chama. Assim como os cactos que florescem em meio a árida terra, que possamos também germinar, sendo perseverantes e autênticos num mundo de tantos desafios e indiferenças que nos cercam.

Partilhar da vida, as inquietações e a esperança traz-nos a certeza de estamos no caminho certo e, acima de tudo, colore e dá vida ao seguimento de Jesus.”

5 Missão no Mundo
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Os homens não morrem por aquilo de que duvidam

Ao longo da história da Igreja, encontramos modelos e exemplos de missionários que doaram suas vidas pela construção do Reino de Deus. Nesse sentido, a Congregação dos Missionários da Sagrada Família expressa sua fonte carismática na missão de “estar próximo daqueles que estão longe” (Constituição 2, Art. 2,39).

Pela doação de nossa vida à missão e ao amadurecimento de nossa vocação, compreendemos que devemos ser sinais proféticos às pessoas que nos rodeiam, superando as barreiras socioculturais do choque das diferentes realidades. Portanto, nossa entrega de vida e nosso chamado religioso ou ministerial consiste em sua essência e no fundamento na promoção e construção do Reino de Deus. Quando perdemos essa referencialidade do povo fiel, que tem nome e rosto, damos início ao processo de declínio vocacional e de desencantamento pela opção de vida que visamos e professamos.

Mas a visão renovada da missão e o exemplo deixado por missionários que nos antecederam, juntamente com a oração e o carinho do povo simples que reza por nós e nos sustenta com sua ‘teologia cotidiana da vida’, nos auxiliam na perseverança da consagração à Deus e na construção de seu Reino.

Neste sentido, buscando o “respiro para a alma”, embarquei nos primeiros dias de fevereiro de 2022 rumo a Carauari/AM, comunidade atendida por nós MSF, localizada na Prelazia de Tefé. Viajei pelo Rio Solimões e seu afluente Juruá, conhecendo um outro Brasil, que às vezes é esquecido por nós brasileiros e pelo poder público. Neste curto período de tempo, tenho buscado compreender as pessoas e suas culturas dessa microrregião do Juruá, o rio que chora, localizada no coração da Amazônia.

Podemos dizer que essa cidade (Carauari/AM) possui complexa realidade, marcada pelos resquícios dos conflitos florestais das décadas de 80 e 90. Sua composição cultural também foi fruto de seu processo de extração da borracha e das riquezas florestais. Encontramos elementos culturais dos indígenas locais, dos nordestinos deixados pelos descendentes de seringueiros e elementos característicos dos ribeirinhos. Todos esses componentes expressamse pela religiosidade popular e pela “cultura de dependência”. A cidade também sofre com a deficiência no urbanismo, em suas estruturas básicas de saneamento e pavimentação, ligada a política de favorecimento pelo poder político. Percebemos, ainda, que o isolamento pelas enormes distâncias territoriais, percorridas em sua grande maioria por vias fluviais, tornam a comunicação e o abastecimento da cidade tarefas difíceis com custos altíssimos.

Neste sentido, o missionário deve ser um homem com grande capacidade de diálogo e escuta, sabendo adaptar-se às culturas e aos ambientes, descobrindo seus valores e suas potencialidades, sem sentir-se superior aos demais. O missionário deve ter convicções profundas, valorizando a hospitalidade e a acolhida dos simples. Por isso, o consagrado deve sempre gostar da presença do povo, pois a convivência com o povo é a escola de missão. Que o Eterno Missionário do Pai, Jesus Cristo, nos auxilie nesta difícil, mas bela missão ruma a construção do Reino de Deus e da promoção da vida digna para todos.

6 Missão no Brasil

Que sentido tem a Páscoa?

Todas as vidas cabem na imagem cotidiana do pão que se parte e reparte. As vidas são coisas semeadas, crescidas, maturadas, ceifadas, trituradas, amassadas: são como pão. Não apenas degustamos e consumimos o mundo: dentro de nós vamos percebendo que o tempo também nos consome, nos gasta, nos devora. Somos uma massa que se quebra, uma espessura que diminui.

A questão é saber com que sentido e intensidade vivemos este tráfico inevitável. Todos nós gastamos, certo. Mas em que comércios? Todos sentimos que a vida se parte. Mas como tornar esse fato trágico numa afirmação fecunda e plena da própria vida?

Por isso espantam as palavras de Jesus. Ele pegou no pão e disse: "Tomem e comam, pois este pão é o meu corpo entregue por vós". A Eucaristia, por vezes repetida como mero culto ou rotineiro signo de pertença sociológica, é, na verdade, o lugar vital da decisão sobre o que fazer da vida. Todas as vidas são pão, mas nem todas são Eucaristia, isto é, oferta radical de si, entrega, doação e serviço. Todas as vidas chegam ao fim, mas nem todas vão até ao fim no parto dessa utopia (humana e divina) que trazem inscrita. É destas coisas que a Quinta-feira Santa fala.

2. Sábado Santo

O sábado santo não é apenas um dia imenso: é um dia que nos imensa. Aparentemente, representa uma espécie de intervalo entre as palavras finais de Jesus pronunciadas na Sextafeira Santa ("tudo está consumado") e a Insurreição da vida que, na manhã da Páscoa, Ele mesmo protagoniza. O sábado tem assim um silêncio que não se sabe bem se é ainda o da pedra colocada sobre o túmulo, ou se é já aquele misterioso silêncio que prepara "o grande levantamento" que a Ressurreição significa. Esse "intervalo", essa terra de ninguém, esse tempo amassado entre derrotas e esperança, entre provação e júbilo, é o da nossa vida. O silêncio do Sábado Santo é o nosso silêncio que Jesus abraça. O silêncio dos impasses, das travessias, dos sofrimentos, das íntimas transformações. Jesus abraça o silêncio desta sôfrega indefinição que somos entre já e ainda não.

3. Manhã de Domingo

É quase paradoxal o modo como os Evangelhos contam a Ressurreição. Desconcerta que não exista, nos discípulos, uma crença imediata, que não considerem as provas avançadas sem refutação ou não tomem os primeiros testemunhos por inabaláveis. A notícia da Ressurreição começa por ser vivida com suspeita, desconfiança, receio e distância. A frase de Tomé, "Se eu não o vir, não acredito", é, no fundo, a posição de todos. A notícia circulava em voz baixa, como uma insinuação que não era tomada muito a sério. Os dois discípulos de Emaús já a tinham ouvido, mas mesmo assim estavam dispostos a abandonar tudo. Contudo, o anúncio da Ressurreição vai crescendo. Mesmo não acreditando nas mulheres, Pedro e João correm ao sepulcro. E João vê o silêncio dos sinais e acredita. Os dois discípulos foragidos reconhecem Jesus numa hospedaria de estrada e regressam a Jerusalém. O próprio Ressuscitado vem ao encontro de Pedro e dos discípulos atravessando as portas que eles tinham fechado. E Jesus estende as mãos às dúvidas de Tomé. Pouco a pouco, é em torno daquilo que primeiro declararam impossível que eles se reúnem e vivem.

Recordo-me do conselho despretensioso que um Padre do Deserto dava a quem o interrogava insistentemente sobre os mistérios de Deus: "Entra apenas. Permanece até ao fim. E sai mudado".

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Entra apenas. Permanece até ao fim. E sai mudado.”

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Cardeal José Tolentino Mendonça Roma
Central
1. Quinta-feira Santa

Páscoa: reinventar, ressignificar a vida!

A Páscoa é uma festa comum a duas religiões: o judaísmo e o cristianismo. Antigamente, a Páscoa era a dança com a qual as tribos indicavam que começou a primavera. Assim, a natureza se revestia de uma vida nova. De acordo com os escritos, foi durante os festejos de uma dessas festas de Páscoa que, inspirados e conduzidos por Deus, escravos hebreus se libertaram do faraó do Egito. Cada ano, até hoje, as comunidades judaicas e cristãs celebram essa festa para atualizar sua vocação para a liberdade. Dão graças a Deus que fez aliança com o povo oprimido para que toda pessoa seja livre e com direito a viver sua dignidade humana. Os escritos cristãos testemunham que foi durante uma celebração anual da Páscoa judaica que Jesus de Nazaré foi assassinado, e foi em meio à celebração da Páscoa que os seus discípulos o descobriram vivo e vitorioso. Cada celebração pascal, tanto a vivida pelas comunidades judaicas, quanto como as Igrejas cristãs celebram, festeja a vitória da vida sobre a morte e a solidariedade sobre o desamor, e isso não apenas para as Igrejas, mas para todo o mundo.

A luminosidade da festa da Páscoa, no claro do novo fogo, por bondade de Deus, quer acender na humanidade um grande desejo: o de se viver a nossa fé com lucidez e coerência, mas na consciência de que Jesus Cristo ressuscitado é o princípio e o fim. Jesus ontem, hoje e sempre está, evidentemente, no tempo, na eternidade, na glória e com poder por todos os séculos, na Sua luz que ressuscita, resplandecente, e também dissipa as trevas do nosso coração e da nossa mente.

Por essa luz somos movidos a reinventar continuamente a nossa vida, a inspirar novos ares. Há uma outra forma de vida que subjaz debaixo daquela que levamos cada dia: uma vida mais calma, mais consciente, mais autêntica. Uma vida de pequenas coisas, de gestos carregados de ternura, de rotinas habitadas que são vividas como novidade, de silêncios que dançam com as palavras.

A Páscoa nos recorda uma bonita palavra: reinventar. Se formos à raiz da palavra inventar, descobrimos que ela vem da expressão latina inventio-onis, que significa "encontrar algo", que não havia sido descoberto. Inventores são aqueles que descobrem algo até então oculto.

E é bem verdade que, por detrás de todo o contexto caótico que vivemos, de guerras, da pandemia da COVID-19, foi e está sendo oferecida a todos nós uma mudança de rumo na humanidade. Até aqui, dois anos após o início da pandemia, fomos forçados a quebrar o ritmo estressante e apressado que levávamos; nosso planeta respira, nossas cidades estão se purificando de tanta contaminação

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acumulada; estamos encontrando formas novas de trabalho e de educação escolar; estamos ficando mais sóbrios, contentando-nos com o necessário; temos descoberto outra forma de inter-relação e de mais intensidade no amor.

Mas, afinal de contas, o que temos feito para recriar, ressignificar nossos dias?

A vida é constantemente chamada a ser Páscoa. Neste movimento, todos somos impelidos a dar uma nova resposta, a ser novas criaturas. Porque na vitória da Vida entregue, a vida ganha novo sentido, inspira, avança como um rio que rega terras secas, ávidas de água, como um fogo que, na noite mais escura, traz uma luz que permite vislumbrar a vida oculta.

A vida não se conta pelas respirações, mas pelos momentos de assombro, de alegria e encantamento. Ela tem a dimensão do milagre e carrega no seu interior o destino da reinvenção, de encontrar uma criatividade para o nosso cotidiano. A vida é dinâmica! Ela está sempre nos convidando a ressignificar, seja o modo que olhamos para nós mesmos, as nossas relações com os outros e com a casa comum.

Nossa existência, desde as entranhas da pessoa humana, sempre deseja ser despertada, inspirada, ressignificada, recriada e vivenciada em plenitude. A certeza de nossa fé em Cristo morto e ressuscitado nos ajuda a ir tirando do coração os medos, os impulsos egoístas de busca pela segurança e imortalidade, e ir encontrando uma esperança que não decepcione e enche nosso peito de coragem e paz profunda, que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita para a vida de tantos outros.

A mulher da casa da ponte da cidade de Goiás, Cora Coralina, nos diz poeticamente: “recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça!”.

A Páscoa é isto: reinventar, ressignificar a vida!

"Jesus ontem, hoje e sempre está, evidentemente, no tempo, na eternidade, na glória e com poder por todos os séculos, na Sua luz que ressuscita, resplandecente, e também dissipa as trevas do nosso coração e da nossa mente.”

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Fr. Igor Pereira, msf Rio Verde/GO

Como celebrar a Páscoa em tempos obscuros?

São tantas cruzes! Da intolerância, da cultura da violência, da discriminação, do descaso, da mentira... mentalidades distorcidas contaminando a sociedade e a Igreja. Semeiam cadáveres, desconhecem limites, não têm escrúpulos. Não conseguem ver no outro um ser humano. Desumanizar é eliminar restrições à crueldade.

“O medo endurece o coração e transforma-se em crueldade cega que se recusa a ver o sangue, a dor, o rosto do outro” (Papa Francisco).

Deus não é um mero expectador das nossas angústias. O cristianismo surgiu do mistério de um Deus encarnado, traído, torturado e crucificado. Ele desce aos infernos! Infernos humanos criados pelos demônios da economia, da política, dos senhores do dinheiro e dos podres poderes. Jesus também viveu em tempos de violência. Ele não se enquadrava na ordem estabelecida pelos poderosos. “Achamos este homem fazendo subversão entre nosso povo” (Lc 23,2). A morte de Jesus deveria servir de exemplo.

Deus conhece o sofrimento e sofre nos abandonados à própria sorte. O crucifixo que ornamenta camisetas e peitos, salões e prédios públicos, praças e igrejas, está longe da dureza original estampada no calvário, muito distante do seu verdadeiro significado. Na cruz está um homem pregado, um Deus abandonado e uma mensagem rejeitada. O escurecer daquela sexta-feira que chamamos de santa, no instante em que o túmulo se fecha, abriu um período de silêncio na criação. Silêncio que fez o universo mergulhar no mais profundo e insondável desconhecimento. A Palavra estava morta, o grão de trigo também. A razão humana é impedida de decifrar tamanho mistério. Se ninguém pode ver o Pai sem o Filho (Jo 1, 18), e se o Pai não pode se manifestar a ninguém sem o Filho (Mt 11,27), então, quando o Filho morresse, ninguém veria a Deus. E houve esse dia, em que o Filho esteve morto, e Deus se tornou inacessível. Desceu ao extremo da desumanização: o inferno.

Um Deus incapaz de sofrer é mais pobre do que qualquer ser humano. Quem é incapaz de sofrer também é incapaz de amar. É impossível amar sem

participar do sofrimento. Deus revela seu poder na impotência. Por trás de toda dor humana, está o sofrimento de Cristo. No momento de calvário, Deus mostra a Sua presença à criatura atormentada. O coração de Deus está voltado para os descartados. Deus é o Deus crucificado que foi traído, torturado, que desceu aos infernos e morreu humilhado. Não é um rosto desconhecido que o homem clama no auge do seu desespero. É um Deus que grita com ele. Seu rosto está estampado no rosto que agoniza em seu abandono. Sua cruz está presente em cada uma das cruzes suportadas diariamente pelos rejeitados e aflitos.

Todos os dramas e tragédias humanas giram em torno da cruz de Cristo. Nela está a pergunta pela justiça, não a de Deus, mas a da sociedade. A pergunta pela “moral e os bons costumes” dos

A pergunta pela “moral e os bons costumes” dos que se creem do bem, dos “humanos direitos” que se sentem melhores que os outros. A cruz é o símbolo maior do protesto de Deus contra estruturas sociais baseadas na violência. Diante das atrocidades cometidas na Síria, do extermínio de povos indígenas, da violência militar nas favelas, do desespero dos refugiados, da barbárie vivida nas prisões, do trabalho escravo, da fome de milhares, das mulheres violentadas, é hipocrisia e cinismo perguntar pelo silêncio de Deus. A cruz é o grito de Deus que acusa os responsáveis por reproduzir gólgotas, calvários e vias-sacras.

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Élio Gasda Belo Horizonte/MG

Celebrar e não compreender: o caso da páscoa cristã

A festa da Páscoa, a ressurreição de Cristo, é um marco de todo cristianismo, e até mesmo, como diz Paulo, a razão de nossa esperança. Essa semana, tão especial para o cristianismo, na qual se tem a Sexta-feira da Paixão, que se reflete sobre a morte e o sofrimento de Jesus na cruz, o Sábado de Aleluia, no qual se reflete sobre a espera e a expectativa de que a promessa feita por Jesus se cumprirá e, por último, a Páscoa que celebra a vitória da vida sobre a morte.

Entretanto, algo importante de se lembrar é que o fato de participar de alguma coisa não quer dizer que se entende o que ela realmente significa. Isso os próprios evangelistas deixam claro em diversos momentos. Discípulos e discípulas que caminhavam com Jesus durante todo seu ministério comumente não compreendiam o significado de seus gestos e palavras. Basta lembrar-nos do pedido de Tiago e João em Marcos 10,37: “Senhor, permita-nos que na sua glória nos assentemos um à sua direita e outro à sua esquerda”. Eles fazem esse pedido logo após Jesus falar com o jovem rico que ele deve abrir mão de sua riqueza, bem como após ouvirem uma série de ensinamentos que mostravam que, ao contrário do que era pregado em suas culturas, são aos sem mérito algum que pertencem o Reino, ou seja, às mulheres que eram consideradas inferiores, às crianças, que como sabemos eram os “pequenos escravos”, os últimos e menos importantes da comunidade, e aos pobres que não possuíam nada sobre o qual justificar a benção de Deus sobre eles.

Da mesma forma, após a Ressurreição, Lucas mostra que os apóstolos de Jesus não compreenderam os gestos e ditos feitos por Ele na ceia, seu anúncio de ressurreição repetido diversas vezes ao longo de seu ministério, nem ainda seus ensinamentos antes de ser assunto ao céu. Em Atos 1,6, os apóstolos perguntam: “é agora que o senhor vai devolver o Reino para o povo de Israel?”, mostrando que ainda estavam dentro da mentalidade judaica da época e que esperavam um Messias, filho de Davi, que instauraria o Reino de Israel.

Com apenas esses dois exemplos é possível perceber que participar da liturgia não nos faz

pessoas que compreendem o que está acontecendo nela. Em tempos atuais isso se mostra de maneira gritante. Afinal, são diversas as pessoas que fizeram suas orações na Sexta-feira da Paixão e, ao mesmo tempo, continuam a apoiar os discursos daqueles que têm os torturadores como ídolos. Da mesma forma, são inúmeras as pessoas que celebraram a Ressurreição neste domingo, mas apoiam políticas geradoras de morte à população mais pobre e vulnerável, ressaltando que a economia é mais importante que essas vidas, e que tanto faz morrer 5 mil ou 7 mil pessoas, pois o país não pode parar por causa disso.

Essas, com certeza, se encaixam no grupo do qual falamos mais acima. Elas participam da Sexta-feira da Paixão, realizam a ceia da Páscoa, estão presentes em seus canais televisivos ou lives das redes sociais, comentam posts com diversos “améns”, choram de emoção com os hinos que são cantados e com todo ritual que acontece ali, mas sua atitude para com os mais pobres, com os vulneráveis, com aqueles e aquelas a quem pertencem o Reino de Deus de acordo com o ensinamento de Jesus, não mudou em nada.

Muito pelo contrário, aplaudem os discursos geradores de morte e incentivam que os pobres sejam expostos ao perigo para que seus lucros e confortos permaneçam.

Celebram a Ressurreição de Cristo com os lábios, mas em suas atitudes condenam-no novamente à morte. Em outras palavras, não compreenderam o real significado de tudo isso que é celebrado pelo cristianismo nesse período do ano. São como aqueles e aquelas que ouviram o que Jesus falou, acharam legal e tocante, mas em nada se dispuseram a enxergar o mundo na perspectiva do Reino de Deus, permanecendo cegos e à beira do caminho, tal como o cego Bartimeu. A elas falta fazer o mesmo pedido de Bartimeu: “Senhor, eu quero ver de novo” para, assim, poderem ser curados e, tal como ele, seguir Jesus em seu caminho de entrega em favor dos outros.

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Horizonte/MG
Fabrício Veliq
Belo

Escutar com os ouvidos do coração

Estamos a perder a capacidade de ouvir a pessoa que temos à nossa frente, tanto na teia normal das relações cotidianas, como nos debates sobre os assuntos mais importantes da convivência civil. Ao mesmo tempo, a escuta está a experimentar um novo e importante desenvolvimento no campo comunicativo e informativo, através das várias ofertas de podcasts, chats e audio, confirmando que a escuta continua essencial para a comunicação humana.

Escutar com o ouvido do coração

A partir das páginas bíblicas, aprendemos que a escuta não significa apenas uma percepção acústica, mas está essencialmente ligada à relação dialogal entre Deus e a humanidade. A iniciativa é de Deus, que nos fala, e a ela correspondemos escutando-O. E mesmo este escutar fundamentalmente provém da Sua graça, como acontece com o recém-nascido que responde ao olhar e à voz da mãe e do pai.

Deus ama o ser humano, e por isso lhe dirige a Palavra, por isso “inclina o ouvido” para o escutar. Temos, por um lado, Deus que sempre Se revela, comunicando-Se livremente, e, por outro, o homem, a quem é pedido para sintonizar-se, colocar-se à escuta.

Por isso Jesus convida os seus discípulos a verificar a qualidade da sua escuta. “Vede, pois, como ouvis” (Lc 8,18). Só quem acolhe a Palavra com o coração bom e virtuoso e a guarda fielmente é que produz frutos de vida e salvação (cf. Lc 8,15). Só prestando atenção a quem ouvimos, àquilo que ouvimos e ao modo como ouvimos, é que podemos crescer na arte de comunicar, cujo cerne é a capacidade do coração que torna possível a proximidade.

Ouvidos, temo-los todos; mas, muitas vezes, mesmo quem possui um ouvido perfeito, não consegue escutar o outro. Existe uma surdez interior, pior do que a física. De fato, a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda. A verdadeira sede da escuta é o coração. São Francisco de Assis exortava os seus irmãos a «inclinar o ouvido do coração».

A escuta como condição da boa comunicação

O que torna boa e plenamente humana a comunicação é precisamente a escuta de quem está à nossa frente, a escuta do outro abeirandonos dele com abertura leal, confiante e honesta. A falta de escuta, que tantas vezes experimentamos na vida cotidiana, é real também, infelizmente, na vida pública.

Na realidade, em muitos diálogos, efetivamente não comunicamos; estamos simplesmente à espera que o outro acabe de falar para impor o nosso ponto de vista. Nestas situações, o diálogo não passa de duólogo, ou seja, um monólogo a duas vozes. Ao contrário, na verdadeira comunicação, o eu e o tu encontram-se ambos “em saída”, tendendo um para o outro.

Portanto, a escuta é o primeiro e indispensável ingrediente do diálogo e da boa comunicação. Não se comunica se primeiro não se escutou, nem se faz um bom jornalismo sem a capacidade de escutar. Para fornecer uma informação sólida, equilibrada e completa, é necessário ter escutado atentamente. Para narrar um acontecimento ou descrever uma realidade, é essencial ter sabido escutar, prontos mesmo a mudar de ideia, a modificar as próprias hipóteses iniciais.

Com efeito, só se sairmos do monólogo é que se pode chegar àquela concordância de vozes que é garantia duma verdadeira comunicação. Ouvir várias fontes garante credibilidade e seriedade à informação que transmitimos. Escutar várias vozes, ouvir-se entre irmãos e irmãs, permitenos exercitar a arte do discernimento, que é a capacidade de se orientar numa sinfonia de vozes.

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Papa Francisco (Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2022)

Oque a Páscoa nos ensina

A passagem da morte para a Ressurreição que Jesus experimenta em sua existência nos ensina muitas coisas. O esplendor com que as celebrações acontecem e a abundância dos símbolos e significados podem nos distanciar de aspectos importantes nesse cenário de condenação, tortura, morte e vida nova. Os cristãos e as cristãs devem ruminar tudo aquilo que vivenciaram ao longo dos últimos dias, trazendo para a vida sentidos que possam iluminar a vida vivida na esteira da libertação anunciada e oferecida por Jesus na Sua morte e Ressurreição. Por isso, gostaríamos de retomar três pontos que merecem ser lembrados depois dessas festividades e refletidos ao longo de nossas existências cristãs.

O primeiro ponto que retomamos é a responsabilidade sobre a morte de Jesus. Os evangelhos afirmam que as autoridades judaicas procuravam uma maneira de matá-lo (cf. Jo 7,30). E isso se dava em decorrência dos ensinamentos públicos de Jesus aos seus seguidores e às multidões (cf. Lc 4,29). A pregação e a postura de Jesus eram desconfortáveis para as lideranças religiosas porque não constituíam um conjunto de normas e doutrinas ou ritos, mas um exercício radical de amor ao próximo e a Deus. Essa vivência antecipada da Lei de Moisés libertava a própria Lei das amarras conservadoras da religião, o que colocava em questão o poder dos líderes religiosos e o modo como conduziam a vida de fé dos adeptos ao judaísmo. Não sem razões, Jesus é categórico ao afirmar a responsabilidade maior que os sumos sacerdotes judeus carregam por entregá-lo às autoridades romanas para ser crucificado. No tribunal de Pilatos, não isentando a culpa deste, ele afirma: “quem a ti me entregou tem maior pecado” (Jo 19,11). Diante do exposto, é preciso recordar sempre que as religiões, embora falem de divindades e proponham transcendências,

podem se tornar sistemas articulados de repressão, condenação, tortura e morte, sobretudo daquelas pessoas que escancaram suas arbitrariedades e desconformidades com a mensagem que a motivou nas origens. Também deveríamos nos perguntar hoje se nós, cristãos e cristãs, estaríamos no grupo dos que pedem a morte de Jesus ou das mulheres que O seguem até o fim.

E, por falar nas mulheres, que lição elas nos deixam pela postura que cultivaram durante esses acontecimentos. Os evangelistas são precisos ao indicar a fuga e o abandono, a traição e a negação dos discípulos quando o Mestre é preso pelos judeus. Eles também não se esquivam de nos contar que as mulheres que haviam seguido Jesus permaneceram com Ele, acompanhando distantes a tudo; ora secando o rosto ensanguentado com uma toalha, ora chorando a dor e a injustiça, ora intervindas em Sua defesa, ora firmes aos pés da cruz, ora preparando perfumes para a limpeza do corpo morto de Jesus. E para mostrar que tudo isso lhes dizia respeito, testemunham a pedra movida da entrada do túmulo, escutam a palavra mais forte que o grito das multidões cheias de ódio: “Não está aqui, ressuscitou!” e rompem com o silêncio da injustiça e da morte: “Ao voltarem do túmulo, anunciaram tudo isso aos Onze, bem como a todos os outros” (Lc 24,9). No tempo de Jesus, as mulheres eram consideradas menores e menos importantes que os homens. Deus as escolhe para serem testemunhas fiéis de tudo. Elas não arredam o pé e levam essa missão até o fim. Ainda hoje nós mulheres sofremos muitas exclusões e segregações, inclusive dentro das religiões. Deus nos ensina que não deveria ser assim. Nossa força, a força de todas nós mulheres juntas, anima nossa esperança e reaviva a certeza de que estamos do lado certo da história: precisamente, aquele que não exclui, não segrega e não mata.

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E por falar em morte e nos sinais que ela insiste em marcar nas realidades todas do mundo, podemos dizer que ela alcançou um tríplice significado em Jesus Cristo. E os padres antigos não se autocensuraram ao dizer que uma Pessoa da Trindade morreu na cruz. O fato é que a morte de Jesus é a morte da Sua existência que confirma a precariedade da nossa humanidade finita. Também essa morte é morte planejada (por inveja?), tramada nos corações corrompidos pelo ódio e pela maldade: trata-se de um assassinato. Símbolo da injustiça e da idolatria dos homens, interrupção de uma vida que jamais deveria acabar assim. Mas a morte de Jesus é também doação: “Ninguém a tira de mim, mas eu a dou livremente” (Jo 10,18). Só é capaz de dar a vida livremente quem é capaz de amar, de amar até o fim (cf. Jo 13,1). E o amor é mais forte que a morte. Ele é capaz de vencer as expectativas do nada e produzir frutos. Precisamente, o amor é a realidade capaz de incluir, de reunir e formar a vida comum. E a Páscoa de Jesus é evento de puro amor porque supera a morte e inclui todas as pessoas numa dinâmica de vida nunca antes ambicionada: plena e abundante.

Nosso mundo segue marcado pela dor, pelo ódio e pela violência. Mas a Páscoa de Jesus ensina que essas realidades precárias não têm força diante da alegria, da bondade e da paz. Por isso devemos acreditar que a mentira vai perder para a verdade, que a ganância vai perder para a solidariedade, que o ódio vai perder para o amor e a bondade, e que a violência vai perder para a paz. Crer que todas essas transformações são possíveis é o salto que precisamos dar mesmo quando o tempo é de trevas. Que nossos rostos abatidos e desanimados sejam transfigurados pelo testemunho cristão que atravessa os séculos: a vida é mais forte, outro mundo é possível, haverá ressurreição.

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Tânia da Silva Mayer Belo Horizonte/MG

Matrimônios religiosos: uma situação inquietante!

Ouço e tenho participado de comentários que revelam uma inquietante situação em relação à realidade matrimonial, mais especificamente em relação à pastoral pré-matrimonial. A maior preocupação é com os poucos casamentos que são realizados em nossas paróquias.

Quando lembro que, tanto na Paróquia da Sagrada Família de Santo Ângelo, como na Paróquia Santa Teresinha em Passo Fundo, assisti nove casamentos em um único dia, e, hoje, aqui na Igreja Santo Antônio do Bairro Pippi de Santo Ângelo, durante todo o ano de 2021, não assisti nenhum casamento (apenas duas legitimações). Não precisamos ter em mãos as estatísticas para constatar a dura realidade da brusca queda do número de casamentos religiosos.

Surpreendem-me os comentários, tanto nas rodas sociais como nas igrejas, e, ao mesmo tempo, confesso uma certa decepção com a falta de interesse em buscar as causas, como também a falta de proposições e de iniciativas para mudar essa dura realidade.

Há pouco tempo, numa reunião da coordenação diocesana da Pastoral Familiar, abordei a questão. Tive a impressão de ter sido muito oportuno, pois a provocação desencadeou uma conversa de duas horas sobre o assunto. Falava-se muito, até então, da pastoral pré-matrimonial, entendendo-se com isso a preparação de quem nos procura para se casar. E estes são tão poucos!

Tentando levantar as causas, diria que criouse, entre os jovens, a mentalidade segundo a qual celebrar o casamento na Igreja é “casar pelo papel”.

E isso é dito com muita euforia até por jovens que pertencem a grupos e movimentos de igreja.

Infelizmente, a maravilhosa catequese da iniciação à vida cristã, que não mais prepara para a celebração dos sacramentos, mas para a vida cristã, trata de forma aprofundada os sacramentos do batismo, da eucaristia e da confirmação. Mas os demais sacramentos ficam por conta de quem?

Como os jovens vão ter interesse em se casar numa realidade tão adversa, entendendo tão pouco do casamento em si?

Além disso, os pais têm tão pouca incidência sobre os filhos. Nas famílias vigora uma concepção segundo a qual o casamento tem que ter uma grande festa. E quando se faz o orçamento de todos os custos, com jantar, decoração, filmagens e fotografias, e mais a igreja, diz-se que não dá para se casar, que é muito caro! Adequada ou inadequadamente, atualmente fala-se muito no grande número de casamentos nulos, por falta de condições, principalmente, de maturidade para se assumir um compromisso de tamanha responsabilidade.

Com tudo isso, fica muito claro que devemos tratar da questão do matrimônio já na catequese da iniciação à vida cristã. Os cursos promovidos pelos movimentos não podem se omitir de falar e de refletir sobre o tema. Os poucos noivos que se casam pela Igreja procuram com muita antecedência marcar a data. É hora do padre marcar de imediato a entrevista que deve ser levada muito a sério e, se necessário, começar a preparação.

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Pe. Euclides Benedetti, msf Passo Fundo/RS

A "bela dama" que inspira no extremo sul da América

A devoção mais meridional à Nossa Senhora de La Salette ocorre na cidade de Hornopirén, região de Los Lagos, sul do Chile, com o objetivo de acompanhar uma cidade que foi marcada por um trágico acidente.

Os habitantes da Carretera Austral, uma estrada de difícil acesso e cheia de vicissitudes devido ao clima extremo, vivenciaram o triste evento de 19 de fevereiro de 1965, quando parte do gelo do vulcão Yates se desprendeu e caiu no lago Cabrera. Isso provocou uma onda de mais de 25 metros de altura que arrastou lama, pedras e árvores, e soterrou 28 trabalhadores da madeira de lariço e suas famílias que estavam acampados na área.

Anos depois, alguns 'amigos da Sagrada Família' (AMSF) comentaram com o Padre holandês Antonio van Kessel, msf, a ligação que a imagem de La Salette tinha com a dor da comunidade. Desta forma, foi providenciada a chegada de uma imagem em tamanho natural da Virgem de La Salette, instalada em 19 de fevereiro de 2018, na área onde está localizada a cruz que comemora a tragédia, ao lado de uma pequena igreja.

Todos os anos, o evento é comemorado com uma peregrinação ao local, e 2021 marca o 175º aniversário da aparição nos Alpes franceses. Famílias, jovens, agentes pastorais e devotos da Virgem de La Salette caminharam cerca de três horas entre cantos e orações. Pararam nos pequenos altares preparados pelos vizinhos até chegarem ao lago Cabrera e celebraram com alegria a Eucaristia.

Perto de fevereiro deste ano, por um novo aniversário da tragédia do Lago Cabrera, artesãos locais doaram um Cristo do Sagrado Coração esculpido em madeira por suas próprias mãos, como forma de continuar acompanhando a comunidade na memória de seus entes queridos e em incentivo à devoção mariana.

Deste modo, a mensagem da "bela senhora", como a chamavam os pastorinhos Maximino Giraud e Mélanie Calvat, mantém-se mais válida do que nunca, não só na memória de uma pequena comunidade que procura conforto na Mãe, mas também na contínua oração de seus devotos para conseguir a conversão de mais almas.

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Giselle Vargas Todos os anos, o evento é comemorado com uma peregrinação ao local. A mensagem da "bela senhora" mantém-se mais válida do que nunca. Cristo do Sagrado Coração esculpido

Ser vocacionado

Quando se pensa em vocação, a primeira ideia que vem em nossa mente é o seu significado, o chamado, mas muitas vezes esquecemos que somos vocacionados à comunhão comunitária pela Trindade e é pela Trindade que somos chamados a sermos vocacionados para a salvação do povo de Deus, assim como nos lembra o mandato de Cristo em Mc 16,15.

A nossa resposta concreta ao chamado de Deus se dá na resposta livre e diária, e para que a nossa resposta seja vivenciada e amada, sem nos anularmos ou nos autossabotar-mos, precisamos conhecer os tipos de vocações para vivenciá-las, sem perdermos que todo batizado tem por vocação a santidade.

Antes de tudo, temos que ter em mente que não existe uma vocação mais importante que a outra, elas se complementam – como dissemos acima – para a salvação e santificação do povo de Deus. Basicamente, as vocações podem ser divididas em três grupos:

Vocação matrimonial ou laical: esse tipo de vocação pode ser vivida por leigos batizados (e aqui devemos eliminar o conceito de que são pessoas que não sabem da doutrina ou que são apáticas à vivência da Igreja) que participam da comunidade cristã por meio da Igreja. Para este grupo, diversos propósitos de vida podem ser encontrados através do ministério familiar ou em ações missionárias. Além de tudo, é por essa vocação que nascem os novos cristãos.

Vocação sacerdotal: religiosos chamados a anunciar o Evangelho e a guiar a comunidade rumo ao caminho de Deus. Aqui estão os diáconos, presbíteros e bispos. Esta vocação não deixa de estar ligada diretamente à vocação matrimonial, pois é justamente no seio da família que ela nasce.

Vocação religiosa: pessoas que se consagram a Deus por meio dos votos religiosos de pobreza, obediência e castidade. Geralmente, seguem e servem a Cristo por meio de uma Congregação Religiosa – um exemplo são os Missionários da Sagrada Família.

Sempre mais e mais abundantes são os cristãos que consagram suas vidas ao serviço da Igreja sem estar seguindo a vida religiosa. Essa dádiva de Deus constitui uma das riquezas da vida da Igreja após o Concílio Vaticano II. Os batizados são como o fermento no meio da massa, eles são do mundo sem serem do mundo (cf. Jô 17,14-19). Lembra, assim, que todo batizado é chamado de uma maneira ou outra para prestar testemunho de Deus por toda a sua vida.

Seja qual for a vocação, ela deve nos levar ao caminho da santidade e, através dela, devemos ajudar as pessoas a serem santas.

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Koxukhuro (muito obrigado), Moçambique!

Há momentos na vida em que precisamos nos despedir das seguranças e desbravar outros horizontes. Em janeiro de 2022 retornei para o Brasil, após quatro anos de missão em Moçambique. Guardo uma memória agradecida desses quatro anos de muitos desafios, aprendizados e afirmações.

Nestes anos, atuei como formador dos aspirantes. Um desafio e tanto! Saí de Belo Horizonte como formando e cheguei em Moçambique como formador. Agradeço aos formandos Custódio, Elísio, Euclides, Isaque, Silvano e Tomás, que me ajudaram a crescer nessa missão de ser formador. Agradeço também ao Fr. Carvalho, pois juntos caminhamos nesta bela, desafiante e encantadora missão.

Senti na pele as consequências da malária. Ao todo, foram mais de 20! Nunca me assustei quando os sintomas apareciam. Nunca pensei em desistir por conta da doença. Sentir o sofrimento do povo no próprio corpo faz parte da missão! Graças ao bom Deus, nunca me faltou o remédio para o tratamento, o que já não posso dizer sobre o povo moçambicano, que muitas vezes busca o tratamento nos hospitais, e não o encontra! Moçambique ainda precisa caminhar muito para levar uma saúde pública de qualidade para todo seu povo.

Nas celebrações, nas formações com os jovens e com as lideranças das comunidades, encontrei o rosto de Jesus Cristo. A alegria em cada rosto por poder se reunir para falar da Palavra de Deus, levando-a aos demais irmãos e irmãs, nas comunidades mais longínquas, onde a equipe missionária não conseguia chegar. Formávamos os líderes, e estes, com apoio do material, levavam essa formação aos seus companheiros, em suas comunidades. Estes encontros de formação realizados em 2018-2019 seguramente atingiram, de alguma forma, em torno de dez mil jovens! Maravilha de Deus!

Uma pergunta que faço ao escrever estas linhas é a seguinte: como traduzir em palavras o que vivemos nos encontros e celebrações nas comunidades? Não

é coisa fácil dizer isso com palavras e em poucas linhas, pois é necessário vivenciar e deixar-se levar pela dança e pelo ritmo dos tambores, acolher no coração e na alma a manifestação de Deus através desse povo que ele ama.

Em 2021 tomei a decisão mais importante da minha vida: professar os votos religiosos perpetuamente. Deitei-me naquele chão, aquela terra que me acolheu, me fortaleceu, me amou, e que eu aprendi a amar.

Escrevo agora com lágrimas nos olhos, pois, antes de ir para Moçambique, estava prestes a jogar tudo para o alto e desistir. E a missão ressignificou a minha vocação. Serei eternamente grato por cada abraço, por cada puxão de orelha, por cada manifestação de Deus naquela terra, fortalecendo o chamado a ser Missionário da Sagrada Família.

Em janeiro passado, quando o avião decolou em Nampula, depois de vários adiamentos e tensões, eu chorei! Chorei agradecendo por tudo que vivi. Não eram lágrimas de adeus, mas de um até breve, Moçambique!

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Fr. Ricardo Klock msf

“Põe sangue novo nas veias da tua Igreja”

Ordenado presbítero recentemente (11/12/2021), na Matriz São Judas Tadeu da cidade de Palmitos/ SC, para o serviço da Igreja e aos irmãos, renovo constantemente meu SIM como religioso consagrado com a disposição de servir à Igreja e à Congregação dos Missionários da Sagrada Família, na qual me sinto feliz em poder fazer parte nas suas dimensões missionárias, levando o legado de nosso Fundador, o venerável Padre João Berthier, e tendo como inspiração o lar de Nazaré.

Compartilho com vocês, caros leitores, confrades religiosos, amigos e benfeitores dos Missionários da Sagrada Família, um pouco da experiência na qual estou vivendo, ou seja, desses primeiros meses de ministério, juntamente com as palavras da Homilia, proferidas na Primeira Missa. Sem ser pretensioso, a escolha do título deste pequeno texto/testemunho, justamente, nos convida a olharmos em nossas atuais realidades eclesiais, nas quais estamos inseridos, principalmente nesse processo de pós-pandemia.

Olhando para as realidades, pedir “sangue novo” para as veias da Igreja é reacender a chama vocacional de cada cristão batizado, discípulo missionário do Mestre. É convidar de porta em porta, é chamar para o convívio, é voltar a nos amar, querer-nos bem, pois “nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13,35).

É missão de todos nós anunciar e levar o Evangelho a todas as nações. É missão de cada batizado se colocar no caminho, contribuindo com a missão da Igreja no contexto social, paroquial e existencial, na qual estão inseridos.

É esse o meu desejo e propósito, enquanto jovem sonhador e ministro ordenado: estar próximo daqueles que estão longe, levando a paz e a alegria, fomentar o perdão e transmitir a todos a mensagem profética e libertadora da Boa Nova, herança do nosso Mestre Jesus.

E se para isso é preciso partir para terras mais distantes, além das fronteiras, deixar família e amigos, “eis-me aqui, Senhor, envia-me, para fazer a sua vontade”. Certa vez, Dom Helder Camara disse que ser padre exige da pessoa o colocar-se a serviço.

Isso significa jamais buscar aplausos, vaidades pessoais, honras e fama. De fato, para seguir os passos do Mestre, é preciso muita paciência, alteridade, fé, discernimento e coragem.

Peço o auxílio de Deus para continuar transmitindo a mensagem da Boa Nova; ânimo e coragem para ir onde for da vontade de Deus; de levar a paz e a alegria e de continuamente ser instrumento para a construção de uma sociedade mais fraterna e justa. Para isso, peço as suas generosas orações e amizade.

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Pe. Adilson Assmann msf União dos Palmares/AL
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