Kallaikia Revista de Estudos Galegos nº2 online. Junho de 2017

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A diagramaçom da capa da revista está inspirada na da primeira jeira da revista GRIAL, editada pola primeira vez no ano 1963 pola Editorial Galaxia.

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“Proclamamos o firme rechaço de toda a atitude de desdém, que menoscaba a mais alta criaçom do povo galego, quer seja a partir da hispanolatria instalada, quer da irresponsável opçom polo português internacional como atalho substitutivo da imprescindível tarefa de recuperaçom do idioma dos galegos.

A obra de Seoane é umha simbiose entre o afám por evocar a arte tradicional da Galiza, manifestada através dos petróglifos e da enorme presença do románico, bem como na arte das vanguardas históricas, admiradas polo pintor galego já desde a sua etapa como estudante de Direito em Santiago de Compostela. Luís Seoane foi autodidata na sua aprendizagem plástica. A sua curiosidade e admiraçom pola Galiza dos seus antepassados e pola arte em geral fôrom os motores do seu conhecimento. Os suportes utilizados para expressar a sua criatividade, além da prática da pintura, vam da gravura e todos os seus aspetos (xilografia, litografia, etc.), até o desenho, o muralismo, o design gráfico (cartazes, capas de livros) e inclusive o labor editorial.

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Contra ambas as tentaçons simétricas, proclamamos o empenho reabilitador que nos anima. A AEG sente-se herdeira e testamenteira do programa inconcluso das Irmandades da Fala, fundadas há exatamente um século por fidelidade à história e vontade reabilitadora contra as pulsons desagregadoras alimentadas polas atitudes de assimilismo e cosmopolitismo.” Joám Lopes Facal

www.fundacionluisseoane.gal

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apresentaçom Discurso de Joám L. Facal (Assembleia Fundacional da Associaçom de Estudos Galegos) artigos Anticolonialismo e Irmandades da Fala, com a Guerra do Rife ao Longe · Sobre a viabilidade das pensons. Sociedade ou mercantilizaçom · Critérios para o regime de oficialidade lingüística da República da Catalunha e de Arám · Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho · Cinco cousas que sabemos serem verdadeiras. Um compêndio de factos irrefutáveis para esta nossa época tam destituída de certezas conto Cançom de embalar recomendaçons A história das línguas: Uma introdução · Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva · Murguía: Revista Galega de Historia, número 33 galeria Luís Seoane


Revista Kallaikia nº 2 Edita: Associaçom de Estudos Galegos (AEG) Galiza, junho de 2017 aestudosgalegos@gmail.com www.aeg.gal É permitida a reproduçom de qualquer parte desta revista, sempre referindo expressamente a fonte. Diagramaçom: SETEDOUS agência para a comunicaçom Impressom: SACAUNTOS Imagem da capa e ilustraçons interiores: Cortesia da Fundación Luis Seoane Depósito Legal: C-1854-2016 ISSN 2530-4593

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ÍNDICE Índice COlaboradoras Apresentaçom Discurso de Joám L. Facal (Assembleia Fundacional da Associaçom de Estudos Galegos) [p.10] Artigos Anticolonialismo e Irmandades da Fala, com a Guerra do Rife ao Longe [p.19] Sobre a viabilidade das pensons. Sociedade ou mercantilizaçom [p.52] Critérios para o regime de oficialidade lingüística da República da Catalunha e de Arám [p.75] Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho [p. 88] Cinco cousas que sabemos serem verdadeiras. Um compêndio de factos irrefutáveis para esta nossa época tam destituída de certezas [p.113] Conto Cançom de embalar [p.127] Recomendaçons A história das línguas: Uma introdução [p.134] Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva [p. 137] Murguía: Revista Galega de Historia, número 33 [p.141] GALERIA Luis Seoane [p. 5,51,87, 126,133]

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ComitÉ de redaçom

Maurício Castro Lopes - Carlos Garrido Rodrigues Beatriz Bieites Peres - Paulo Painceiras Rico Raquel Paz Lopes

Conselho de redaçom

Jorge Rodrigues Gomes - José A. Souto Cabo - José M. Dias Cadaveira - Paulo Valério Árias - Joám López Facal - Dores Valcárcel Guitiám - Joám Luís Ferreiro Caramês - Helena B. Sabel - José A. Corral Iglésias Afonso Mendes Souto.

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COLABORADORAS Henrique Dacosta (Ferrol, 1964)

Professor e escritor. Prémios Carvalho Calero: Mar para todo o sempre (1991), Sobre comboios, janelas e outras pequenas histórias (1993), Unha mada de doce relatos (2006). Finalista, com Ruiva mulher de esperança, no <<I Certame de Relato Curto, A.C.Cidade Vella>>: Muralla de Crescórnio (1989). Em colectâneas de relatos: Diálogo de xordos, em Longa lingua. Os contos da Mesa (2002); Ouro maldito, em Seis ferroláns (2003); Cabo do mundo, em Premios Pedrón de Ouro. Certame de Narración Breve M.R.Figueiredo; e Soñaba, em En defensa do Poleiro. A voz dos escritores galegos en Celanova (2010). Escreveu os romances Os desherdados (2006), O prezo da tentación (2008), Entrada ao xardín do saber (2014); e o manual Ferroláns na Historia da Literatura Galega (2007). Articulista em revistas e periódicos (Agália, ANT, Ferrolanálisis, Columba, Ólisbos, Poesía Galicia, etc.). Colabora no Diario de Ferrol.

Diego Bernal Rico (Lugo, 1982)

Licenciado em Filologia Galega pola Universidade da Corunha iniciou a sua carreira dando aulas de galego na EOI Jesus Maestro de Madrid, foi leitor da Junta da Galiza na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor de espanhol no ISEG da Universidade de Lisboa e professor de português nas EOI de Plasencia e de Montijo, na Estremadura. Atualmente mora no Brasil onde trabalha como professor na Universidade Federal de Viçosa. É um dos membros fundadores do jornal digital Diário Liberdade onde tem publicado numerosos artigos sobre a língua galego-portuguesa e a cultura na lusofonia.

Eva Cortinhas Ferreira (Lourençá, Marinha, 1988)

Realizou estudos de Biologia na USC, onde participou ativamente do movimento estudantil e juvenil, militando no coletivo estudantil Agir e na entidade juvenil Briga. Residente em Compostela, atualmente é ativista dos movimentos sociais e do desporto de base da capital. 4

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Daniel Escribano

Doutor em Sociologia, traductor e membro do coletivo Espai Fàbrica (espaifabrica.cat). É autor de diversos artigos em revistas especializadas e do livro El conflicte lingüístic a les illes Balears durant la Segona República (1931-1936) (Palma: Lleonard Muntaner Editor, 2017).

Virgínia Fontes (Rio de Janeiro, 1954)

Historiadora, com graduaçom e mestrado realizados na Universidade Federal Fluminense. Cursou o doutorado de Filosofia na Universidade de Paris-X (Nanterre), sob a orientaçom de Georges Labica, integrando durante muitos anos o seu grupo de pesquisa. Trabalhou no Departamento de História da UFF, no qual permanece, mesmo depois de ter se aposentado, como professora e orientadora no Programa de Pós-Graduaçom em História. Coordenou o Programa de Pós-Graduaçom da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz (2015-17), onde integrou o Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia. Elaborou, coordenou e participou de diversos cursos em instituiçons públicas juntamente com movimentos sociais, dentre os quais se destacam Realidade Brasileira (UFF), Teorias Sociais (UFRJ), Trabalho, Educaçom e Movimentos Sociais (EPSJV/Fiocruz) e o curso de mestrado Trabalho, Saúde, Ambiente e Movimentos Sociais (Ministério da Saúde,ENSP-EPSJV/Fiocruz). Integra o Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Marx e o Marxismo, da Universidade Federal Fluminense, e fai parte do corpo docente da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). É autora dos livros O Brasil e o capitalimperialismo: teoria e História (Rio de Janeiro, Ed. EPSJV e Ed. UFRJ, 2010), Reflexões Im-pertinentes (Rio de Janeiro, Bom Texto, 2005) e de inúmeros ensaios, publicados em revistas e sítios brasileiros e do exterior.

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Carlos Garrido Rodrigues (Ourense, 1967)

É doutor em Biologia pola Universidade de Santiago de Compostela e licenciado em Traduçom e Interpretaçom pola Universidade de Vigo. Estudioso da língua especializada, lexicógrafo e tradutor científico, Carlos Garrido é professor titular da Universidade de Vigo, onde leciona Traduçom de Textos Científicos e Técnicos Inglês/Alemám–Galego, é membro da Comissom Lingüística da Associaçom de Estudos Galegos (anteriormente [2000–2015], da Comissom Lingüística da AGAL) e publicou, entre outras obras, Dicionário Terminológico Quadrilíngue de Zoologia dos Invertebrados (1997), Manual de Galego Científico: Orientaçons Lingüísticas (2000, 22010), Aspectos Teóricos e Práticos da Traduçom Científico-Técnica (2001), Léxico Galego: Degradaçom e Regeneraçom (2010) e A Traduçom do Ensino e Divulgaçom da Ciência (2016).

Harriet Hall

Médica de família reformada que escreve sobre medicina, medicina alternativa, ciência, pseudociência e pensamento crítico. Cofundadora e coeditora do blogue Science-Based Medicine [Medicina Cientificamente Fundamentada], membro do Committee for Skeptical Inquiry [Comité para a Pesquisa Cética] e membro da junta diretiva da Society for Science-Based Medicine [Sociedade para umha Medicina Cientificamente Fundamentada].

Joám Lopes Facal (Cee, 1940)

Cursou os estudos de engenharia na Escola Técnica Superior de Engenheiros Industriais de Madrid e os de economia nas Faculdades de Santiago e Madrid, Somosaguas. Doutorou-se em ciências económicas com umha investigaçom sobre a casa de banca compostelana de Olimpio Pérez. Possui o titulo de português pola EOI de Compostela. Desempenhou a sua actividade profissional em diversas empresas de Madrid e de Galiza. Foi também professor associado da USC. A sua militáncia política foi intensa mas breve, limitada a Esquerda Galega desde o nascimento do partido até a sua extinçom. Foi deputado por este partido na III legislatura do Parlamento de Galiza. É presidente da Associaçom de Estudos Galegos (AEG). 6

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Paul Offit

Professor de Pediatria na Divisom de Doenças Infeciosas dos estado-unidenses National Institutes of Health e diretor do Vaccine Education Center [Centro para a Formaçom sobre Vacinas] do Hospital Infantil de Filadélfia (eua).

Dionísio Pereira (Corunha, 1953)

Licenciado em Ciências Económicas pola Universidade de Santiago de Compostela (USC). Investigador especializado na história dos movimentos sociais na Galiza contemporánea; trabalhou, também, no campo da história e da cultura marítima do País. Entre 2006 e 2013 participou no projeto de pesquisa universitária “Nomes e Voces”, encabeçado pola USC. Os seus livros mais recentes som: Loita de clases e represión franquista no mar (1864-1939), Xerais, 2011; José Pasín Romero: Memoria do proletariado militante de Compostela, Fundación 10 de Marzo, 2012; Emigrantes, exilados e perseguidos. A comunidade portuguesa na Galiza (1890-1940), Através Editora, 2013 e Galegos nas Guerras do Rif. Paisaxe bélica e imaxinario anticolonial (1860-1927), IGALHIS/Revista Murguía, 2016.

Xabier Pérez Davila (Bueu, 1957)

Mestre e Licenciado em Económicas, trabalha no IES Chapela de Redondela como professor de formaçom profissional. Obtivo um diploma em Estudos Avançados com um trabalho sobre os fatores que influenciam a viabilidade dos sistemas de proteçom social. Sindicalista, até setembro de 2016 foi delegado de CIG-ensino e presidente da Junta de Pessoal Docente da província de Ponte Vedra. Participou no movimento anti-NATO de Vigo, no Coletivo Pacifista do Baixo Minho e na Coordenadora Nacional de Organizaçons pacifistas. Autor, entre outros trabalhos, dos livros A batalla polas pensións (1980-2013). De cómo a clase capitalista quere privatizar os bens comúns e do como as clases traballadoras se opoñen, Estaleiro Editora, 2013; e Alén da Casta. Un ensaio sobre o poder e as clases sociais no século XXI, Edicións Laiovento, 2016. junho 2017 / KALLAIKIA

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Ray Pierrehumbert

Rege a Cátedra Halley de Física da Universidade de Oxford (Inglaterra).

Michael Shermer

Editor da revista Skeptic, colunista da Scientific American e membro da junta de governo da Chapman University (eua). O seu último livro é The Moral Arc.

Seth Shostak

Astrónomo-chefe do seti Institute (organizaçom estado-unidense sem fins lucrativos que estuda a natureza da vida extraterrestre) e co-apresentador de um programa semanal de rádio intitulado Big Picture Science [Ciência do Grande Quadro].

Prudencio Viveiro Mogo (Valadouro, 1974)

Licenciado em Geografía e História pola USC. Entre as suas publicaçons, destacam os livros Política, eleccións e fidalgos. O réxime do Estatuto Real na provincia de Lugo, 1834-1836 (Ediciós do Castro, 2004) e O Estatuto Galego durante a II República (Ediciós do Castro, 2007). Secretário de redaçom de Murguía, Revista Galega de Historia. Trabalha no Conselho da Cultura Galega.

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GALERIA

Luís Seoane Tinta da China sobre cartolina. 1944

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APRESENTAÇOM

Lealdade ao galego

Saudaçom do presidente da AEG, à comunidade aeguélica, na sua Assembleia Fundacional Joám Lopes Facal

Caros e caras companheiras que me honrades com a presidência da nossa Associaçom, assumo com bom ánimo, sentido da responsabilidade e um ponto de orgulho o desempenho do encargo que me confiastes, talvez em consideraçom aos anos que um pretende ir somando com dignidade. Na qualidade de presidente que me conferistes, devo umha breve alocuçom de boas-vindas à comunidade que hoje inauguramos, junto com algumhas reflexons de encerramento acerca do caminho que empreendemos e da atitude com que devemos abordá-lo. É obrigado começarmos enunciando as intençons e compromissos éticos que devem inspirar a nossa atividade cívica e cultural e delimitarmos o lugar que ocupamos no mapa reintegracionista em que nos inserimos. Rematarei com umha breve reflexom sobre a cultura que partilhamos como final deste prólogo ao percurso que hoje principiamos, que eu auguro dilatado e fecundo. 10

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Joám Lopes Facal Lealdade ao galego

I — É bom que a nossa nascente comunidade se reconheça num código ético que eu ousaria resumir em quatro princípios inspiradores: Lealdade ao idioma herdado e vivo. Empenho decidido na sua plena dignificaçom e reabilitaçom. Orientaçom galeguista, ou nacionalista, ou galaicista, se preferirdes um termo mais abrangente, como sinal de pertença à comunidade nacional historicamente diferenciada que nos define. E, finalmente, um compromisso firme de sereno ativismo em defesa da nossa agenda reabilitadora. Lealdade como rechaço ao difuso desdém imperante pola nossa cultura específica, agenda reabilitadora – quer dizer, restauradora, regeneradora e atualizadora do idioma nacional – em qualquer campo da atividade. Galeguidade como compromisso coletivo com a nossa identidade nacional, e finalmente, empenho firme de incidir na nossa sociedade mediante o exercício perseverante da persuasom e do trabalho bem feito. A nossa aspiraçom é desembaraçar o idioma secular das doenças que o afligem, fruto da desídia acumulada e do abandono cúmplice. Proclamamos o firme rechaço de toda a atitude de desdém, que menoscaba a mais alta criaçom do povo galego, quer seja a partir da hispanolatria instalada, quer da irresponsável opçom polo português internacional como atalho substitutivo da imprescindível tarefa de recuperaçom do idioma dos galegos. Contra ambas as tentaçons simétricas, proclamamos o empenho reabilitador que nos anima. A AEG sente-se herdeira e testamenteira do programa inconcluso das Irmandades da Fala, fundadas há exatamente um século por fidelidade à história e vontade reabilitadora contra as pulsons desagregadoras alimentadas polas atitudes de assimilismo e cosmopolitismo. A nossa sociedade conhece e pratica o castelhano desde há seculos, mas é chegado o momento de estabelecer limites ao seu domínio esmagador sobre o nosso idioma; as instituiçons públicas estám obrigadas a promover políticas de discriminaçom positiva em prol da língua ameaçada. O português é o bem mais prezado na nossa tarefa reabilitadora, como promessa de plenitude e de pertença ao concerto das línguas internacionais. Nunca como prótese que nos exima do esforço da recuperaçom do galego vivo. Contra as opçons simétricas de abandono e substituiçom, proclamamos a dimensom junho 2017 / KALLAIKIA

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Lealdade ao galego Joám Lopes Facal

nacional do idioma galego e vindicamos a sua tradiçom secular. O galego é o idioma dos galegos, irmao maior do português por direito de precedência. O português é o galego internacional. II — A AEG reconhece-se parceira de pleno direito do movimento reintegracionista nas suas sucessivas materializaçons orgánicas: AGAL (1981), AGLP (2008), AEG (2016). Une-nos a todas a vindicaçom do idioma próprio e o empenho no seu desenvolvimento no ámbito do galego-português internacional. O padrom internacional português é o espelho em que nos reconhecemos no mundo, a língua-teito que nos orienta. A diferença específica do nosso empenho estriba na irredutível ancoragem no galego vivo, gravemente ameaçado de desapariçom hoje por desentendimento social acelerado e pola esmagadora relegaçom a que o submetem os meios de comunicaçom e as instituiçons. Manifestamos o nosso esperançoso reconhecimento pola crescente identificaçom da mocidade neofalante com o discurso reintegracionista e pola expansom do uso do galego cuidado, depurado de castelhanismos lexicais e sintáticos, mesmo quando renuncia ao uso da ortografia etimológica do galego-português que propugnamos. Descontaminar o idioma das aderências seculares que o desfiguram é o primeiro passo para a sua plena reabilitaçom como variante nacional legítima no ámbito do português internacional ao qual pertencemos por direito de linhagem e precedência. A nossa identidade singular no movimento reintegracionista legitima-nos como parceiros de pleno direito em todas as frentes abertas polo ativismo reintegracionista, como a rede de ensino primário Semente, a promoçom da Lei Paz Andrade e o impulso ao relacionamento com a cultura portuguesa em qualquer das suas variantes e manifestaçons, através de qualquer meio: imprensa e publicaçons digitais ou em papel, música, representaçom. Pretendemos ser um vigoroso renovo da árvore reintegracionista, já graudinha. Os sócios da AEG som de procedência heterogénea, muitos inauguram com ela a adscriçom ao movimento reintegracionista, outros procedem, e mesmo colaboram, com outras organizaçons, como a AGAL, entidade precursora na tarefa de regeneraçom do idioma. A ela devemos o Estudo Crítico (1983, 1989), formulaçom seminal do modelo em vigor do galego 12

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Joám Lopes Facal Lealdade ao galego

reintegrado. Contodo, a organizaçom que hoje nasce inclui já contributos imprescindíveis para a tarefa de desenvolvimento de um galego autêntico de raiz, atualizado com critérios de competência e solvência científica. Aí temos a obra inovadora do companheiro Carlos Garrido na área lexicográfica, em permanente diálogo com as línguas cultas europeias: Léxico Galego: Degradaçom e Regeneraçom (2011), O Modelo Lexical Galego. Fundamentos da Codificaçom Lexical do Galego-Português da Galiza (2012), A Traduçom do Ensino e Divulgaçom da Ciência (2016), autêntica avançada no necessário labor de decrua do idioma herdado para a plena padronizaçom que o habilite para qualquer uso, quer seja como veículo da cultura popular de qualidade, quer da alta cultura científica e literária. Aí está também o Manual Galego de Língua e Estilo (2007) da co-autoria dos companheiros Maurício Castro e Beatriz Bieites junto a Eduardo Maragoto, o melhor texto disponível para a prática de um galego atual e genuíno. Quero lembrar-vos que a AEG é a única entidade reintegracionista que continua indagando sem desmaio nas necessidades do galego vivo em vista da sua plena habilitaçom para a vida ordinária e o desempenho científico. Lembrade os recentes vocabulários de desportos que elabora a nossa Comissom Lingüística. As entidades reintegracionistas irmás abandonárom este labor essencial de tam longa tradiçom nas nossas letras, talvez por estimá-la desnecessária, como se o galego fosse umha variante arcaica, ultrapassada e sem futuro do português internacional. A AEG continuará empenhada no estudo do galego vivo e dos problemas que suscita a sua plena capacitaçom, como demandam as siglas que nos identificam e nos comprometem com o uso ilimitado do idioma nacional. Foi este idioma depurado o que eu quigem adotar – valha esta pequena vaidade – para redigir a tese académica do meu doutoramento em ciências económicas. O galego, perante os tribunais académicos, também. A promoçom do nosso padrom nacional genuíno do galego-português, a par do português internacional consagrado, é o compromisso que assumimos Afirmamos o direito irrecusável do galego a participar em igualdade de condiçons na comunidade lusófona: esse incerto espaço em construçom, infelizmente propenso junho 2017 / KALLAIKIA

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Lealdade ao galego Joám Lopes Facal

a gerar enganosas miragens conciliatórias como ilusório remédio à sua inevitável diversidade, como tem avisado o eminente filósofo português Eduardo Lourenço. A comunidade aeguélica, caras amigas e companheiros, manifesta a firme vontade de avançar na plena aceitaçom social do idioma próprio da Galiza mediante a prática da persuasom e da denúncia de qualquer atitude que fomente posiçons de subalternidade e dependência cultural, quer provenha do espanhol omnipotente, quer da magnificência do português internacional. Nom podemos por menos de discrepar abertamente desse insidioso sintagma em vigor que pretende abaixar o galego ao status de «português da Galiza» com manifesto desrespeito da sua história secular. O galego herdado e resistente é o património irrenunciável que nos constitui como naçom. O português irmao, o veículo comum de presença da cultura galego-portuguesa no mundo. A nada renunciamos como parceiros do património cultural comum. III — Sem arrogáncia nem dogmatismo, queremos empreender o caminho traçado. Tanto para impugnar a desídia cúmplice das instituiçons designadas para custodiar o idioma, como para denunciar a tentaçom de desistência da tarefa de custódia e renovaçom que a todos nos compete. Tentaremos operar em regime de competência cooperativa, sem arrogáncia, mas também sem míngua da franqueza devida em defesa dos nossos postulados. Renunciamos a ornatos excessivos e exóticos, por isso teimamos em escrever empenho, sem n coroado de til ao estilo espanhol, por isso grafamos o nosso rotundo nom sem til desconcertante. Gostamos do rigor e da simplicidade na escrita, na senda marcada polos precursores do processo reabilitador do nosso idioma, como Guerra da Cal e Carvalho. A nossa Comissom Lingüística fixará o correto uso desse útil sinal diacrítico quando usado adequadamente e nom como exótico ornato. Seja a nossa umha escrita limpa e congruente com a etimologia e a fonética do galego, precisa e acolhedora, próxima, mas diferenciada do português por fidelidade à fala. Somos um projeto incipiente, modesto ainda, mas, animoso e resoluto. Precisamos aumentar os nossos efetivos e distribuirmos da melhor maneira o labor orgánico e de açom social. Esperamos 14

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Joám Lopes Facal Lealdade ao galego

contar com a ajuda de todos na medida das possibilidades particulares. Unem-nos convicçons comuns, deve unir-nos também a equilibrada repartiçom de tarefas, evitando o risco da sobrecarga e desfalecimento dos mais generosos. O desafio que assumimos requer compassar o ritmo sem preguiça nem impaciência para fazer frente ao desafio permanente das magníficas línguas que nos circundam, que também som nossas: o castelhano que nos inunda e o português que é a nossa segunda morada. A deterioraçom do idioma tem causas sociológicas e políticas que é preciso combater com práticas decididas no ámbito do ensino, no fomento da leitura, na conexom com Portugal, na captaçom de neofalantes. O fortalecimento da consciência nacional coletiva demanda um empenho decidido e cumplicidade social porque é a partir daí de onde é possível mobilizar as instituiçons e promover as mudanças. A persistência e profundidade do processo de deterioraçom da língua demanda de nós espírito de toleráncia e firme capacidade de diálogo. Rejeitamos o espírito de seita, incompatível com a serena convicçom que guia o nosso comportamento. O nosso estilo deve afincar na cordial tenacidade do convicto e nunca na doutrinária intransigência do ungido pola verdade revelada ou do consagrado por voto de estrita observáncia. O nosso é um estilo laico, aberto à pluralidade da consciência social. Companheiras e amigos, saúde! Provimos de boa linhagem e acometemos um longo percurso, ligeiros de equipagem. Nom aspiramos ao reconhecimento social imediato mas tampouco cederemos no empenho de promover o idioma nacional estigmatizado por séculos de abandono e desdém. Desde a tranqüila serenidade dos anos que vam passando quero partilhar convosco esta tarefa de ativismo social empenhado na defesa do idioma que nos foi transmitido de geraçom em geraçom até hoje mesmo e manifestar-vos o meu cordial reconhecimento polo privilégio que me concededes de iniciar este caminho em tam boa companhia. Saúdos fraternais, caminhantes!

Compostela 12/11/2016, no Centro Social do Pichel junho 2017 / KALLAIKIA

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ARTIGO

Anticolonialismo e Irmandades da Fala, com a Guerra do Rife ao Longe Dionísio Pereira

A modo de limiar Num recente ensaio1, estudávamos as crónicas jornalísticas de três soldados-escritores galegos presentes na derradeira guerra do Rife (1921-1927), em concreto Valentín Paz Andrade, Xosé Ramón Fernández Oxea “Ben-Cho-Shey” e Manuel Mesejo Campos, para: “…saber se foron capaces de construír, sequera en certa medida, un imaxinario anticolonial con duplo percorrido: o recoñecemento da propia identidade no contexto da presenza militar española en África e a toma en consideración do adversario rifeño como afouto protagonista dunha loita de liberación nacional, toda la inzada de silenciadas desventuras e padecementos”. 2

1 Pereira, D., Galegos nas Guerras do Rif. Paisaxe bélica e imaxinario anticolonial. 1860-1927, IGALHIS, Santiago, 2016. 2 Pereira: 2016, 10.

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Dionísio Pereira Anticolonialismo e Irmandades

Naquele trabalho, concluíamos que: “…se ben os cronistas galegos elaboraron un discurso de seu tomando distancias co supremacismo hispano, aquel ficou a medio camiño na construción dun imaxinario anticolonial, que posibilitase o encontro galaico-rifeño cimentado na magoada experiencia humana compartida e no mutuo (re)coñecemento das propias culturas en perigo de asimilación”.3

Ben Cho Shey radiotelegrafista no Rife

Acreditávamos entom que na sua “ desoladora experiência castrense”, Paz Andrade, “Ben-Cho-Sey” e Mesejo Campos, reforçaram o seu “próprio ideário de irmandade galeguista”, rachando “a invisibilidade do coletivo galaico” no corpo expedicionário colonial hispano, contribuindo deste jeito para o incipiente “processo de nacionalizaçom galega” em curso após a conformaçom das Irmandades da Fala. Mas, ao tempo, também afirmávamos que os três cronistas galegos, arrastados pola binária e letal dicotomia de toda guerra, nom consguírom safar “ dos mecanismos de construçom do “Outro”, do inimigo comum contraposto como encarnaçom do mal”, argalhados polo “aparelho ideológico e mediático da metrópole, apoiado na tradiçom histórica hispana refractária ao mundo mussulmano”, ficando eivada a sua perceçom anticolonial: 3 Pereira: 2016, 94. junho 2017 / KALLAIKIA

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Anticolonialismo e Irmandades Dionísio Pereira

“…Neste ambiente, o recoñecemento do “Outro” como suxeito dunha ferreña loita de liberación nacional, non se deu en ningún dos tres cronistas galegos, limitándose na maioría das veces a reproducir os estereotipos negativos transmitidos pola propaganda colonial, ou os belixerantes xuízos de valor derivados da crúa e inevitable confrontación”. 4

Tendo em conta, além do mais, que os três jornalistas ocasionais estivérom vinculados em distinto grau ao galeguismo político, escassamente estruturado arredor das Irmandades, intuíamos também que a sua postura vacilante diante da contenda colonial era indissociável nom só dum humano sentido da sobrevivência naquele inferno, como também dum facto relevante doutro cariz muito distinto: a ausência em boa medida dum substrato ideológico consistente em que se apoiar, pois a corrente política a que pertenciam tivo antes (salvo exceçons) umha visom antibelicista que anticolonialista relativamente à intervençom militar espanhola no Rife. Assi sendo, pode ser pertinente insistir neste campo e pesquisar de modo mais demorado a perceçom tanto das distintas formulaçons do galeguismo (provincialismo, regionalismo…) como do incipiente nacionalismo galego das Irmandades, no que toca ao facto colonial. Comecemos, pois, com um “estado da questom” no resto dos nacionalismos periféricos do Estado espanhol. A questom marroquina e os nacionalismos basco e catalám até a Ditadura de Primo de Rivera É sabido que os nacionalismos conformam-se também “a través de la imitación de otras naciones, que funcionan como modelos de emulación” (Núñez Seixas: 2012, 547). No caso galego, os referentes político-culturais fôrom a Irlanda, Portugal e Catalunha (Viveiro Mogo: 2001, 1024); para cataláns e bascos, a influência irlandesa foi igualmente notória, ainda que uns e outros tenham procurado também padrons de conduta noutros países europeus (Flandres, Polónia, Chéquia…) após a desfeita do Império Austro-Húngaro na Grande Guerra e as ilusons forjadas em torno das propostas do presidente dos EUA, Woodrow Wilson.

4 Pereira: 2016, 92.

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O nacionalismo basco tivo umha certa tradiçom de se interessar no que acontecia além do continente europeu e, de facto, já desde os tempos de Sabino Arana prestou atençom aos conflitos de Cuba, Filipinas ou do próprio Norte de África (caso da chamada “Guerra de África” de 1859-60, qualificada como “guerra injusta”), se ben com um criterio instrumental que os considerava nom em si mesmos, mas enquanto contradiçons próprias do imperialismo espanhol que, ao debilitarem-no, podiam favorecer a causa do nacionalismo euscalduno (Madariaga: 1998, 69-71/De Pablo: 2012, 267-270). E, se bem estes e aqueles considerárom desajeitado e selvagem o militarista colonialismo espanhol (contraposto por Enric Prat de la Riba ou Sabino Arana ao imperialismo “benévolo” e “democrático” doutras naçons europeias e americanas “civilizadas”, como no caso da Gram-Bretanha) na sua intervençom além-mar e no Magrebe, até finalizada a Iª Guerra Mundial nengumha corrente nacionalista periférica se interessou significativamente pola luita que se desenvolvia no Rife para nom ser assimilado polos invasores europeus. Naquela altura, a consideraçom dos rebeldes rifenhos nas fileiras nacionalistas ainda coincidia, em boa medida, com a metropolitana de inequívoco recendo eurocêntrico: eram tribos bárbaras, violentas e incapazes de construir umha sociedade medianamente civilizada, com as quais ninguém se relacionava e das quais quase nada se sabia (Madariaga: 1998, 70/Núñez Seixas: 1995, 252/Ucelay: 1980, 31-32). Um desleixo que, todo seja dito, cumpre contextualizar tendo em conta teorias tam manejadas no mundo ocidental como a hegeliana dos “povos sem história” ou a da desigualdade das raças de Gobineau, incorporadas ao pensamento orientalista hegemónico no Ocidente durante o período de entre séculos, no qual primava umha “tipologia binaria de las razas, culturas y sociedades avanzadas y atrasadas (o sometidas)” (Said: 2008, 278). Assim, na mesma linha que outros muitos eruditos europeus, na sua obra Chapters on the Principies of International Law (1894), o reputado jurista e historiador inglês John Westlake concluía sem contemplaçons “que las regiones de la tierra designadas como «incivilizadas» …deberían ser anexionadas y ocupadas por las potencias avanzadas” (Said: 2008, 278).

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O fim da Grande Guerra, a Revoluçom russa e a imparável revolta irlandesa, trouxérom nom só grandes esperanças para as pequenas naçons europeias submetidas ao militarismo dos impérios (também ao espanhol), como também modificárom a relaçom de forças num mundo colonial cada vez mais convulso na Índia, no Oriente Próximo e no Norte de África. A conclusom da chamada “penetraçom pacífica” dos espanhóis no Magrebe (1912), deu passagem ainda a um confronto armado aberto, cujas conseqüências nom só afetárom a populaçom, como mesmo pugérom em causa a monarquia e o sistema da Restauraçom (Ucelay: 1980, 34-36). Neste ámbito, vam-se produzir importantes remodelaçons tanto no catalanismo, como no nacionalismo basco, surgindo propostas mais radicais, de caráter independentista, para ultrapassar o conservadorismo social e a tendência ao pacto com o Estado, quer da Lliga, quer da Comunión Nacionalista Basca. Entom, nos começos da década de 20, o discurso relativamente à Guerra do Rife vai mudar nesses ambientes, sobretodo no caso de Euskádi, onde os redatores do jornal Aberri recuperarám o arredismo do PNV primigénio. Encabeçados por Eli Gallástegi “Gudari” e polo irmao de Sabino Arana, Luis, levarám a cabo durante o primeiro semestre de 1923 umha vigorosa campanha de imprensa contra a Guerra de Marrocos, estabelecendo no quadro da luita anti-imperialista um paralelismo entre a questom nacional e a questom colonial, entre a independência de Euscádi e a defesa sem concessons por parte de Abd el Krim da soberania da sua pátria, “ injustamente atacada por el imperialismo español” (Madariaga: 2005, 198). Além do mais, frente à têpida Comunión que unicamente criticava com pouca ênfase as operaçons bélicas sem tomar partido polos “mujahidins” rifenhos, Aberri dedicou muitas páginas nom só ao combate (“Guerra à Guerra”) antibelicista e ao rejeitamento dos bascos ao serviço militar espanhol, mas também à denúncia da linguagem imperial que desumanizava o adversário, apresentando-o de jeito maniqueu como a “quinta-essência do mal” (Fanon: 2002, 44). Ainda mais interessante: os de Aberri tentárom informar tanto da República Democrática do Rife (“la tierra libre y heroica del Riff ”) como do que acontecia no mundo mussulmano, para assi entender melhor as revoltas anticoloniais (Madariaga: 2005, 20

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199). E como detalhe final de suma importáncia, nada habitual na imprensa do Estado espanhol, Aberri incorporou no seu quadro de colaboradores um jornalista marroquino de ideário nacionalista, Al-Adul Rabi Arab, que publicou umha série de artigos sob o título “En torno al resurgir del Islam” (Madariaga: 1998, 71-73, 77). Cumpre acrescentar que a rapaziada de Aberri pagou a sua incansável teima anticolonial com numerosos entraves por parte das autoridades, entre os quais nom faltárom multas, processos e, mesmo, penas de cadeia (Lorenzo: 1992, 119) . Na Catalunha, onde algumhas figuras vinculadas à Unió Catalanista, tal que Domènec Martí i Juliá e Josep Narcís Roca i Farreras, alentárom desde o fim do século XIX umha minoritária atitude anticolonial de caráter universal (dentro ou fora do Estado espanhol e dos países europeus) e anti-imperialista, a consciência do que acontecia no Rife semelha ser um chisco diferente à dos independentistas de Aberri. Tam só no referido clima de recomposiçom em chave arredista e de esquerda do catalanismo, um proceso favorecido polo progressiva aproximaçom da Lliga do militarismo espanhol, por conta da degradaçom da situaçom social em Barcelona (estamos no tempo do confronto armado entre a CNT e o “pistoleirismo” animado polo Patronato e por distintas instáncias governativas), foi possível ultrapassar a indefiniçom imperante na pequena burguesia nacionalista sobre se era legítimo que um povo “bárbaro” (o rifenho) descartasse o determinismo orientalista (no sentido que Edward Said utiliza o termo) e defendesse o seu país e a sua idiossincrasia, da “civilizada” e segmentada sociedade colonial imposta com a desmedida força das armas polos imperialismos europeu e ianque (Fanon: 2002, 41). 5 Após a derrota do Kaiser prussiano correndo 1918, o convencimento de que o militarismo espanhol (apoio sobranceiro da monarquia de Alfonso XIII) era capaz de igualar as piores atrocidades do 5 Enric Prats de la Riba ou Antoni Rovira i Virgili acreditavam na autonomia ou independência dos povos sem Estado da Europa, mas negárom esses mesmos direitos a outros povos de África e Ásia alcunhados de “bárbaros”, “inferiores” ou “salvagens” (Iglesias Amorín: 2014, 204). De facto, chama a atençom que o segundo, vinculado a começos dos anos 20 ao grupo Acció Catalana, nom se refira a nengum país africano ou americano no seu livro “Historia dels movements nacionalistas” (publicado em catalám em 1912 e com umha versom em castelhano do ano 1920). junho 2017 / KALLAIKIA

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belicismo teutom, levou de seu que, postos a escolher, os catalanistas prefeririam os túçaros africanos antes que a barbárie imperial. Daí que nos ambientes próximos do deputado nacionalista independente Francesc Maciá, surgissem algumhas iniciativas dirigidas a se relacionarem con Al Raysuli 6, num momento (fins de 1919) em que este líder jebali luitava contra os espanhóis. Porém, o acento sempre se punha nom no Marrocos anticolonial, mas no ataque ao militarismo espanhol cuja primeira vítima era a moderna e avançada Catalunha, enquanto Al Raysuli servia principalmente de contraste frente à intervençom bélica hispana (Ucelay: 1980, 34, 36). A partir de 1922, irám consolidar-se duas alternativas dentro do nacionalismo catalám arredista: Acció Catalana, resultado da cisom das mocidades da Lliga e Estat Catalá, nucleado em torno de Maciá e partidário da luita armada. Para ambas as correntes, Marrocos era um problema dos espanhóis, nom dos cataláns, que só o contemplavam na medida que pagavam um duro tributo de sangue e dinheiro numha contenda que, só por estas razons, rejeitavam de vez; veja-se o Editorial do jornal La Publicitat, porta-voz da referida Acció Catalana: “Des de la nostra posició nacionalista, el problema fonamental del Marroc consisteix en la intervenció forçada dels catalans en aquesta aventura espanyola. A nosaltres no ens toca examniar si van ésser un encert o un desencert els Tractats diplomatics que donaren a Espanya l’os terrible del Marroc septentrional, ni jutjar la politica i la tècnica que presideixen les operacions en aquella zona. Tot això són aspectes espanyols del problema, aspectes que no ens afecten nacionalment. Es podria donar el cas que l’empresa del Marroc fos, per Espanya, fructífera, ben orientada i ben portada. 1, tanmateix, hauriem de protestar, com a catalans, de la sang nostra i de l´or nostre que s’esmerça en una guerra dels altres. Si no fos pels soldats catalans i pels diners de Catalunya que el Marroc engoleix, nosaltres hauriem de mirar la tragèdia espanyola tal com miren les guerras de fora, i encara amb menys d’interès, perquè diferentment der que succeeix en algunes d’ questes, en la lluita del Marroc no hi intervé cap factor idealista, ni ha de tenir aquella guerra ombrívola cap repercussió sobre la marxa del món… Aquesta guerra no és nostra. No l’ha provocada Catalunya, no la volen els catalans. Pèro els lligams polítics que uneixen la nostra pàtria a un 6 O caudilho de Jebala, Ahmed al Raysuli, era um “cherif ” (ou seja, homem principal, suposto descendente da família de Maomé) e senhor feudal à moda antiga, que mantivo relaçons complexas com os espanhóis: quer atacando-os, quer pactuando ao preço de muitos milhares de pesetas, entregues pola Administraçom hispana.

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Dionísio Pereira Anticolonialismo e Irmandades Estat foll ens obliguen a participar en tots els sofriments, en tots els sacrificis i fins en totes les vergonyes de l’aventura africana. Heu’s ací la veritable posició nacionalista davant la guerra….”. 7

Nom se reconhecia nem se apoiava, pois, nengumha luita de libertaçom nacional, nem a figura independentista de Abd el Krim. Diferentemente da focagem dos bascos de Aberri, para a Acció Catalana nom existiam pontos de contato entre a própria questom nacional, na qual emergiam correntes de opiniom que consideravam a Catalunha “colónia de Espanha” face a outras que enxergavam país como naçom dependente dentro do Estado espanhol 8, e o confronto anticolonial marroquino, talvez porque o Rife irredento e rude nom fosse em absoluto um referente para catalanistas senheiros como Rovira i Virgili que, como a escritora feminista Aurora Bertrana (vinculada a ERC durante a IIª República), na sua maioria se limitárom a considerar “sensual i fanàtic” o país norte-africano (García Ramón: 2007/Madariaga: 1998, 77). Contodo, La Publicitat prestou certa atençom ao que acontecia no Magrebe, informou do percurso diplomático da República Democrática do Rife em Londres9 e também se fijo eco da aprovaçom por parte da Deputaçom de Girona de umha resoluçom bem contundente que, a instáncias dos grupos nacionalistas, solicitava ao Governo espanhol: “…que prèvia denúncia i rescissió dels tractats internacionais que assenyalen a L´Estat una tasca permanent a l´Africa…s´abandonin sense limitacións ni distincions les anomenades posicions espanyoles al Nord d´Africa…”. 10

Afinal, se esta posiçom de abandono antibelicista sem mais semelha ser a predominante na sociedade catalá, a identificaçom com os rifenhos e a insubmissom contra a lógica da confrontaçom colonial a partir da própria identidade, também encontrou um eco minoritário nas camadas trabalhadoras e determinados ativistas, tal como a experiência pessoal na Guerra do Rife do escritor ca7 “Els Moros i els Espanyols”, La Publicitat, Barcelona, 22/08/1923.

8 Lenine fijo umha distinçom entre naçons dependentes (europeias) e colónias (extraeuropeias), segundo possuíssem ou nom capital próprio (Castro: 2016, 30). 9 “La República Democrática del Rif ”, La Publicitat, 26/08/1923. 10 “La Contribució de Mort”, La Publicitat, 7/08/1923.

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talanista Josep Maria Prous i Vila 11 e a trajetória do Dr. Martí i Juliá, assi como certos episódios em que alguns recrutas cataláns tentárom nom combater o certificam. Estamos a pensar tanto no caso recolhido polo historiador Pere Ucelay Da Cal daqueles que, andando 1922, rejeitárom disparar contra os rebeldes indígenas apelando a umha origem labrega comum, como na rebeliom desenvolvida no porto de Málaga em agosto de 1923.

A questom colonial no galeguismo anterior às Irmandades da Fala Como é bem sabido, encontramos umha primigénia alegaçom contraria ao jorne dependente, periférico e subalterno de Galiza dentro do Estado espanhol, na proclama da constituiçom da “Junta Superior Provisional de Gobierno de Galicia” durante a Revoluçom de 1846, com Antolín Faraldo à cabeça; eis: “Galicia, arrastrando hasta aquí una existencia oprobiosa, convertida en una verdadera colonia de la corte, va a levantarse de su humillación y abatimiento…”. Mas esta primeira e fugidia olhada crítica com o colonialismo interior nom perdura no que fica do “provincialismo” (umha corrente que concordava, sem mais, com um melhor encaixe do antigo Reino da Galiza nunha Espanha regenerada e democrática) a seguir à derrota de Faraldo e Solís e após a enxurrada patrioteira que acompanhou a invasom de Marrocos por parte do exército hispano. Nesta primeira contenda africana, que concluiu com a entrada das tropas espanholas na cidade de Tetuám (1860), deparamo-nos com umha nutrida presença galaica no corpo expedicionário de 36.000 efetivos sob o comando do general O´Donnell. Naquela altura, umha publicaçom pioneira em galego intitulada O Vello d´o Pico Sacro, narrou por entregas os episódios do conflito com um ressaibo espanholista e xenófobo, apesar das simpatias “provincialistas” dos seus impulsionadores 12. Assim, no terceiro número, correspondente a 7 de abril desse ano, aparecia este texto: 11 Ver Prous i Vila, J. M., Quatre gotes de sang (Dietari d´un catalá al Maroc), Barcelona, Llibreria Catalonia, 1936.

12 A publicaçom foi alentada na Corunha polos irmaos Fernando María e Antonio de la Iglesia, entre 3 de março e 28 de abril de 1860; ambos serám precursores do Ressurgimento literário galego (Beramendi e Taboada: 2010, 225).

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“Voemos a Áfreca Ibeira Nacion Q’o Mouro bandido Manchóunol-a honor. ¡Á Afreca! ¡á Afreca! Guerreiro Español! ¡Con sangre se lava A mancha d’honor!”. 13 Entom, a atitude do “provincialismo” serôdio diante da intervençom colonial no Norte de África, xustificada tanto polo “engrandecimiento” de umha naçom orfa de Império após a independência das repúblicas de além-mar, como nos delírios historicistas do célebre testamento de Isabel “La Católica” (“que no cesen de la conquista de África…”), foi de adesom entusiasta, “presentando a Galicia como la hija mas fiel de la nación española”(Beramendi e Taboada: 2010, 225), assumindo por completo o intenso processo de nacionalizaçom castiça desenvolvido com motivo da contenda. Porém, em pleno “climax” hispano o feble fio da visiom anticolonial da Galiza tivo umha faísca de continuidade com a Rosalía de Castro de “Cantares Gallegos” (1863), pois ao pôr em dúvida o espanholismo do país, a escritora acreditou na Galiza como colónia interior num Estado-naçom que lhe era alheio (Bermúdez: 2011, 337). Sem nengum efeito político, ainda que com um certo eco na intelectualidade 14, esta incipiente e ainda gaguejante consciência anticolonial rosaliniana quase nom tivo continuidade numha corrente regionalista que se reclamou afervoadamente partidária da “indisolúvel ” unidade espanhola (Beramendi: 2008, 29) na qual, e isso vai ficar às claras no período da última Guerra de Cuba (1895-1898), se incluía também os restos do antigo império hispano. Velaí, por exemplo, as patrióticas (da “Pátria Grande”, entenda-se) obras de teatro escritas polo autonomista Alfredo Brañas em plena contenda: “Amor y Patria”, estreada na Corunha em 1896 e na qual ataca a figura do prófugo militar e “La Voz 13 Iglesias Amorín: 2014, 49.

14 Eis a denúncia do “germen de separatismo” que apreciou a espanholíssima Emilia Pardo Bazán na obra de Rosalia, após a morte desta (Beramendi: 2008, 26). junho 2017 / KALLAIKIA

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de la Sangre y la Voz de la Patria”, representada um ano depois (Freire: 2000, 187, 190-191/Salgues: 2010, 310, 318).

Território de Beni Urriaghel, principal kábila do Rife

Mas, esfarelado organicamente, o regionalismo na Galiza com a quebra da “Asociación Regionalista Gallega”, nas suas fileiras nom se vai prestar muita atençom ao conflito. Polo contrário, sectores da emigraçom galaica radicados na ilha caribenha nom tivérom outra opçom a nom ser se manifestarem e figérom-no maioritariamente em prol de prolongar a dominaçom espanhola. Uns poucos (Curros Enríquez, diretor do jornal La Tierra Gallega, entre eles) defendêrom inicialmente umha saída autonomista, que reclamárom também para a Galiza, crítica com o anexionista enfoque colonial dominante, mas nom com o colonialismo propriamente dito e, ainda, sem deixarem de combater assanhadamente a insurgência independentista, em ocasions mediante posturas belicistas. Outros nem sequer acreditárom nisso, como no caso do jornal El Eco de Galicia dirigido por Waldo Álvarez Ínsua, onde regionalistas integrais como Manuel Lugrís Freire publicavam poemas de um arrepiante racismo colonial, nos quais o alinhamento com a causa espanhola era total; ei-la: 26

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Dionísio Pereira Anticolonialismo e Irmandades “Xente con cara de demo/fillos de mala ralea/que negro teñen o coiro/ pero a yalma inda máis negra,/invocando a libertade/ e pedindo independenza/ matan homes indefensos,/ as mulleres machetean/ aldraxan as nenas virxes/ y-os santos fogares queiman […]/ ¡Gallegos! Á eses mambises/ sin dinidá nin concencia/ hai que arrincarlle do peito/ ese corazón de pedra,/ hai que facerlles sentir/ o empuxe da casta celta”. 15

Conforme o tempo se passava e a derrota da monarquia bourbónica era segura após a intervençom dos EUA, a corunhesa “Liga Gallega”, na qual participava Manuel Murguía junto aos retornados Lugrís e Álvarez Ínsua, chegou a interiorizar a vaga espanholista e decidiu interromper as suas reclamaçons autonomistas, para sustentar a “patria común”16. Na mesma linha, distintas personalidades do regionalismo, tais como Eduardo Pondal, nom tivérom vergonha nengumha para gabar em tempo real personagens de tam sinistra catadura como o especialista em campos de concentraçom Valeriano Weyler, alcunhado “El Carnicero de Cuba” 17. Ao cabo, os regionalistas, que nom punham em questom a naçom espanhola como único sujeito de soberania, somárom-se quase sem fendas (se acaso, é significativo o silêncio de Murguia) a sua defesa, a assumir nom só a retórica militarista e imperial, como também a visom hegemónica própria do colonialismo europeu. Que diferença com a atitude dos anarquistas corunheses do Grupo “Ni Dios ni Amo”, naquela altura defensores do cessar do confronto bélico, primeiro, e do apoio aos patriotas cubanos na sua legítima luita, despois! (Fernández e Pereira: 2016). Em definitivo, a renúncia dos regionalistas a qualquer discurso autónomo do país galego e o obscurecimento do seu caráter periférico dentro do Estado espanhol derivárom numha inequívoca cumplicidade com as prácticas coloniais do moribundo imperialismo hispano. 15 El Eco de Galicia, La Habana, 16/11/1895.

16 Empregamos para este breve relato sobre a postura do regionalismo frente à Guerra de Cuba Beramendi e Taboada: 2010, 230-231; Beramendi: 2008, 31-34; Aneiros e López: 2001, 10 e Bermúdez: 2011, 335-338.

17 Ver “A Valeriano Weyler”, s.a. A Coruña, Imprenta y Librería de E. Carré. O poema está datado na Corunha a 12 de outubro de 1897. Cabe agregar que o texto está publicado na gráfica doutro regionalista: Eugénio Carré. junho 2017 / KALLAIKIA

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A identificaçom entre umha Galiza singular e a trajetória da pátria comum representada pola naçom espanhola indivisível chegou mesmo às portas das Irmandades da Fala (1916). Um dos seus primeiros valedores, Lois Porteiro Garea, deixou-no bem às claras no seu conhecido discurso inaugural da Irmandade compostelana, no qual, partindo da compatibilidade entre a “pátria grande, única” e a “pátria chica”, esta última assumia todo o roteiro imperial (e as frustraçons) da primeira, obviando o peso da dependência e alagando qualquer possível discurso anticolonial interior ou exterior: “Amamos a patria grande, única; baixo as súas bandeiras, todol-os españoles xuntos conquistamos mundos e grorias, surcámol-os mares imensos;…; levámol-a alma europea as terras d´América e os archipélagos d´Ouceania…fumos xuntos á derrota, e ainda despois d´ela, cando a bandeira que cobixara as vitorias, arriada tristemente volveu o vello solar, a emigración galega siguíu mandando sangue hispana a continuar baixo outras bandeiras a obra de conquistar para civilización latina as terras feraces e desertas dos mundos novos por España descubertos…”. 18

Mas, segundo Porteiro, a necessária simbiose em beneficio próprio da Galiza no projeto coletivo da “pátria grande”, levaria de seu nom só participar das suas glórias passadas, como também das que estariam para vir, muito na linha da dicotomia que Westlake traçara entre as naçons (ocidentais) avançadas e as incivilizadas, cujo único futuro era serem anexadas polas potências coloniais europeias e americanas: “Todol-os probremas d’orde exterior envolven en sí centos de probremas interiores…cando un pobo está chamado pol-a marcha da cultura do mundo a ocupar unha posición ventaxosa, é cando percisa maor patriotismo….maor empeño en cumprir o papel para que o destina á Hestoria. Si un punto do praneta adiquire importancia xeográfica efeuto da marcha da civilización, ou se da conta e cumpre como debe, ou é conquistado por unha potencia forte e conscente d´esa finalidá (subliñado no texto orixinal), os intereses xenerales da cultura (qu´están por riba dos privativos de cada nación) non poden escurecerse coa desculpa de que o punto onde estaban chamados a xunta, perteneza a un pobo salvaxe e sexa o seu cazadoiro, ou estea en mans d´unha raza deixada, louvana, indiferente a marcha do mundo…”. 19 18 “Discurso do Dr. Porteiro ô fundarse a Hirmandá en Santiago (28Mayo-1916)”, Santiago, Tipografía Galaica. O emprego do termo “pátria chica” para se referir à Galiza, valeu a Porteiro umha labaçada dialética por parte de Antón Vilar Ponte, quem acreditava que pôr adjetivos à pátria galega era empequenecê-la (Insua: 2016, 90). 19 Ibidem.

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Resumindo: para Porteiro, e supomos que para umha parte significativa da variada base social das Irmandades da Fala primigénias, a Galiza atingiria a sua verdadeira “posiçom no mundo” participando solidariamente do “renascimento” da naçom espanhola. E para muitos patriotas hispanos, esse ressurgimento havia que procurá-lo em África, no Rife marroquino objeto de Protetorado (1912), mediante umha intervençom colonial (por bem ou por mal) que salvaguardasse os interesses e o destino da naçom em concorrência com outras metrópoles europeias. As Irmandades, a Guerra do Rife e o colonialismo interior Como é sabido, o tempo da Grande Guerra foi decisivo para a conformaçom do nacionalismo contemporáneo na Galiza que, recolhendo a prévia tese finissecular de Murguia, reclamou a consideraçom da Galiza como naçom sujeito de dereitos coletivos e de soberania compartida dentro do Estado espanhol. Após a criaçom das Irmandades da Fala e a celebraçom da Iª Assembleia Nacionalista de Lugo (1918), o começo da década de 20 contemplou a divisom deste incipiente movimento em duas tendências: a Irmandade Nacionalista Galega (ING), encabeçada por Vicente Risco e os irmaos Vilar Ponte, defensores dun abstencionismo eleitoral refratário à legalidade hispana, e o grupo corunhês da Irmandade da Fala, representado polo vereador Lois Peña Novo, que, em nome do pragmatismo político, era firme partidário da participaçom galeguista nas eleiçons municipais e dos pactos com os partidos políticos espanhóis. Neste momento, no Estado espanhol a questom colonial passava de jeito ineludível pola intervençom militar espanhola no Rife. Contrariamente ao que acontecia em Euskádi e Catalunha, tanto as mirradas organizaçons nacionalistas galegas como as publicaçons que lhes servírom de alto-falantes oficiais (A Nosa Terra, Nós e Rexurdimento) em território galaico, optárom maiormente por um prudente silêncio a respeito dessa questom (Beramendi: 2013, 229242); porventura, a diversidade ideológica e o caráter fragmentário das Irmandades podam explicar esta indefiniçom ou quando menos este desinteresse em manter distáncia da aventura colonial. Em concreto, fora dum artigo de Antón Vilar Ponte a que mais adiante nos referiremos, a contenda praticamente nom se menciojunho 2017 / KALLAIKIA

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na no boletim betanceiro Rexurdimento que, na sua segunda etapa compreendida entre janeiro e julho de 1923, exerceu como portavoz oficioso da ING. No que se refere ao jornal quinzenal A Nosa Terra, só conhecemos dous artigos de fundo nos quais o porta-voz da Irmandade da Fala herculina dá conta da sua incomodidade e extrema moderaçom ao tratar o tema: “Non quixeramos falar do desagradabre asunto de Marrocos. Nada dixemos cando se tratóu d´esixir responsabilidades e nada debéramos dicir tampouco dos desacertos sofridos repetidamente pol-os xefes superiores do Exército de Africa que ocasionaron tantas vítimas. Ogallá poidéramos considerar todo eso como algo estrano, alleo por compreto a nós; mais lévannos os nosos fillos, os nosos irmáns, día a día, en fatos numerosos que as balas enemigas e mais as doenzas van disminuindo,…. Coidabamos que a guerra europea, esa loita cruenta e horribre de soño tráxico, serviría de leición para os nosos gobernantes e para os nosos militares, e agardábamos que adoptando todos aqueles medios e sistemas que fosen utilizabres no Rif impoñerían a superioridade de civilización e de organización do Estado español, logrando dominar d´unha maneira decisiva e pronta toda a zona sometida á influencia hespañola. Mais a realidade veu á nos demostrar que o sistema e os elementos de combate do noso exército en Africa é tan deficiente e tan rutinario como o foi de cote en toda-las loitas hispanas; en todas esas loitas cheas de groriosas derrotas que enchen as páxinas da historia”. 20

Eis umha posiçom sobre o confronto bélico caraterizada num primeiro instante polo autismo quanto ao intervencionismo colonial e, depois, quando aquela resulta num fracasso que vai afetar boa parte da populaçom galega, pola frustraçom diante da carência de meios e a falta de eficácia nas açons dos “nosos militares”: eis umha sensível diferença com os nacionalistas cataláns, que rejeitárom apoiar quer ativa, quer passivamente, umha “guerra dels altres”, mesmo no caso de umha evoluçom dos acontecimentos favorável ao aparato militar espanhol. No fim das contas, a sucessom de derrotas e a constataçom da incompetência do exército hispano determinárom que os irmandinhos reclamassem (de um modo um tanto oportunista, talvez) o abandono de Marrocos diante do descontentamento popular cada vez mais notório. O longo, mas significativo, parágrafo anterior, que projeta a crítica do porta-voz da Irmandade da Fala corunhesa 20 “O pesadelo de Marrocos: hai que rectificar os procedementos”, A Nosa Terra, Corunha, 1/09/1923.

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nom em relaçom ao expansionismo colonial em si mesmo e nas suas conseqüências, mas em funçom do calamitoso andamento das atividades bélicas, reflete, se calhar, um protonacionalismo pequeno e partícipe do debalar hispano, de cote identificado com a “superioridade de civilización” da metrópole, representada para o jornalista polos “nosos gobernantes” e “os nosos militares”, responsáveis por levar a cabo o “proteitorado, como era a nosa obriga”. 21 Fora dos citados artigos, assinados ambos por Xavier Fraga, enxergam-se poucos exemplos ciscados aqui e acolá, no jornal herculino, de algumha referência à Guerra de África, como quando se recolhe a marcha dos irmandinhos Ramón Vilar Ponte e Jaime Quintanilla da direçom do jornal ferrolano El Correo Gallego, entre outras cousas pola linha do jornal, moderadamente refratária à contenda: “Desque saíron do “Correo Gallego” os nosos irmaos Ramón Villar Ponte e Xaime Quintanilla, por defenderen as cousas da Terra, censurar os pulos bélicos e pedir que se esixan responsabilidades no vergoñoso asunto de Marrocos, aquel xornal escomezou a publicar durante varios días artigos da “Correspondencia Militar”, de Madrí, órgao das Xuntas de Defensa…..Por decontado [sic] Quintanilla e Ramón Villar Ponte, pódese decir que foron vítimas por teren ideias nacionalistas i-europeias, e non ser carneiros de chin-chin bizarro, de xentes que presionan dend´a sombra…”. 22

Quanto à ING como tal entidade, conhecemos a genérica declaraçom anti-imperialista do seu Manifesto (Insua: 2016, 427) e o conseqüente apoio das delegaçons de Santiago, Ourense, Corunha, Viveiro e Mugia à campanha iniciada polo jornal Galicia contra o 21 O segundo artigo levava o título de “Arredor de Marrocos. Débese rematar dunha vez”, A Nosa Terra, 13/09/1923. Como no anterior, acreditava-se numha hipotética carência de meios e de organizaçom no corpo expedicionário hispano (um exército convencional financiado polo orçamento público, nom se esqueça), face a uns cabilas, polos vistos, armados até os dentes. Para o autor, a exigência de acabar com a guerra justificava-se, quer nesse mais que chocante desequilíbrio militar favorável aos indígenas (!!!), quer nas exigências populares. 22 “Un Xornal que quere a escravitude da Terra”, A Nosa Terra, 15/12/1921. Os artigos de El Correo Gallego onde se rejeitava a contenda africana, de maneira pouco explícita e sen assinatura, mas escritos na coluna “Una Cuartilla” da autoria de Antón Vilar Ponte, eram “Contumacia anormal”, datado em 22/11/1921 e “Solo para raros”, correspondente a 23/11/1921; ver também “Monte Arruit”, assinado por Quintanilla com data 4/11/1921. junho 2017 / KALLAIKIA

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recrudescimento vingativo e sem limite das atividades bélicas que, na altura de fevereiro do ano 1923, pretendiam os militares africanistas e os seus adeptos na Península mais fanatizados com os “sonhos imperialistas”. 23

Penedo Nekkor ou de Alhucemas, resto do colonialismo espanhol no Rife

Por último, também nos coletivos nacionalistas de além-mar houvo algumha reaçom contrária à guerra. Assi, o jornal Terra Gallega, porta-voz da arredista “Xuntanza Nazonalista Galega d´Habana”, focava a questom com um obscuro sarcasmo antiespanhol e anticolonial na pena do seu redator-chefe, o músico Sinesio Fraga: “O Goberno Central da heróica e groriosa España, fai oito séculos que lle dá ao seu pobo libertad pra morrer donde queira e como queira: a última fartada de libertad lla dío no Monte Arruit; alí sucumbiron, víctimas d´unha enchente de civilización e libertad, tres mil e pico de cibdadans…”. 24 23 Ver Galicia, Vigo, 10/02/1923 e 13/02/1923. À referida iniciativa tamén aderírom a título pessoal os irmaos Ramón e Antón Vilar Ponte.

24 Terra Gallega, Havana, Novembro 1921. Nom foi o único meio de comunicaçom vinculado à emigraçom galega em Cuba a criticar a deriva militarista em África, pois também o periódico havaneiro Heraldo de Galicia, no qual colaborou o próprio Fraga, assi como alguns escritores pertencentes

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Em conseqüência, devido ao escasso interesse “orgánico” dos galeguistas quanto à guerra colonial no Rife, para conhecer melhor a posiçom deles nom temos outra que considerar as atitudes dalguns cargos públicos nacionalistas (eis Peña Novo que, após Annual, ficou só na Cámara municipal da Corunha votando contra umha resoluçom de apoio ao exército), e pesquisar na correspondência ou nas colaboraçons jornalísticas de um feixe destacado de propagandistas (Manoel Antonio, Antón Vilar Ponte, Vicente Risco, Manuel Lustres Rivas, Roberto Blanco Torres, Manuel García Barros, Castelao, Plácido Castro, Ramón Cabanillas…), naqueles meios que, a começos da década de 20, eram proclives a espalhar o ideário das Irmandades, sem por isso exercerem como porta-vozes oficiais das distintas sensibilidades: os jornais Galicia e La Zarpa, assi como o periódico decenal estradense, El Emigrado. Mas antes, interessa-nos constatar a ausência explícita do ponto de vista anticolonial tanto dos textos fundacionais das Irmandades (da Assembleia Nacionalista de Lugo 25, em concreto), como da principal obra de Vicente Risco, Teoria do Nacionalismo galego (1920), e deverá ser Ramón Vilar Ponte quem, no seu ensaio Doutrina Nazonalista (1921), estabeleça certos aspetos doutrinais (anticolonialismo, internacionalismo, pacifismo, anti-imperialismo) que servirám para complementar aquela, sem esquecer a recuperaçom do diagnóstico de “colónia interior”, aplicado à Galiza subordinada dentro do Estado espanhol centralista e dominador. Ei-lo: “O nacionalismo é oposto à chamada política colonial? Si. Por máis que para xustificar a tal política se invocan esixencias de civilización, desexos nobilísimos de levar o adianto e o progreso aos pobos atrasados e outras trécolas semellantes, tales argumentos non son máis que iso... trécolas. De non selo, ¿como se comprende que un Estado que acomete unha empresa civilizadora lle non dea remate cando os fíns perseguidos e que serviron de bandeira á empresa se achan cumpridos? Como podería explicarse, por outra parte, o caso de existiren nacionalidades que sigan ostentando a condición de colonias sendo que superan, ou polo menos igualan, ao Estado cuxa fachenda e cuxo orgullo gardan às Irmandades da Fala, como José Lesta Meis, foi muito beligerante com a guerra colonial do Rife.

25 Porém, as medidas económicas recolhidas neste comício enxergavam a necessidade de um concerto económico, preciso para mudar a relaçom dependente (fruto do colonialismo interior) da Galiza dentro de Espanha. junho 2017 / KALLAIKIA

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Anticolonialismo e Irmandades Dionísio Pereira proporción co número de colonias que a súa soberbia pode mostrar aos demais Estados para que neles xurda a envexa e a admiración? A política colonial, en contra do que digan os pseudo-amantes da civilización, foi, é e será decote política de opresión, de asoballamento, de tortura e de aniquilación de pobos.”. 26

Na realidade, a face anti-imperialista e crítica com a metrópole de Ramón Vilar Ponte, muito notória já na sua etapa no El Correo Gallego ferrolán (Insua: 2016, 355), apresenta-se-nos como fruto dos contínuos intercámbios com o seu irmao Antón, após a estada deste em Cuba e da posterior colaboraçom de ambos numha publicaçom de inequívoco talante anticolonial como foi a havaneira Terra Gallega, já no debalo da Grande Guerra. Naquele momento, a poucos meses da Assembleia de Lugo, Antón ia reivindicar a referida definiçom de colonialismo interior que amolava o País Galego: “Porque hasta hoy Galicia fué, lo sigue siendo aún, una simple colonia del centralismo: en lo económico y en lo político, en lo social y en lo jurídico, hasta en el terreno del arte y de la ciencia.”. 27 Assim, entre 1918 e 1924, exatamente até o limiar da Ditadura de Primo de Rivera, Antón Vilar Ponte levou a cabo, através de numerosos artigos publicados em distintos meios de comunicaçom galegos (La Zarpa, Rexurdimento, Galicia, El Emigrado, El Correo Gallego, A Nosa Terra…) umha campanha denunciando o tratamento recebido por parte do Estado espanhol, pior “ca unha colonia de negros” 28. Se bem a principal motivaçom da iniciativa era turrar 26 Vilar Ponte: 1921, 11. A respeito da contenda africana, Ramón mantivo umha posiçom claramente antimilitarista. Um ano depois (fevereiro de 1923) de ser editada Doutrina Nazonalista, um Editorial do jornal betanceiro Rexurdimento (da provável feitura de Antón Vilar Ponte) reclamava a compatibilidade do nacionalismo galego com a solidariedade internacionalista e as correntes esquerdistas europeias. Mais tarde (1927), o discurso de ingresso do menor dos Vilar Ponte no Seminario de Estudos Galegos, intitulado “O sentimento nazonalista e internacionalismo” e inspirado no referido texto publicado em Rexurdimento, insistia na relaçom entre o nacionalismo e as doutrinas progressistas, concluindo que a emancipaçom dos trabalhadores nom podia ignorar as caraterísticas nacionais da sociedade na que se produz.

27 “La verdad pura. Colonizadores y descolonizadores”, El Noroeste, Corunha, c.a. fevereiro 1918, citado por Insua: 2016, 212.

28 “A escravitude da Nosa Terra: Galiza peor tratada ca unha colonia de negros”, La Zarpa, Ourense, 20/11/1921. Este artigo foi reproduzido em dias posteriores por El Correo Gallego e A Nosa Terra.

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contra a política arancelária protecionista favorável aos interesses dos grandes proprietários cerealeiros espanhóis e contrária à concorrência da produçom pecuária da Galiza, Antom também nom esqueceu os aspetos morais e culturais deste colonialismo interior, centrados na marginalizaçom lingüística 29. Em paralelo, durante o tempo em que dirigiu o jornal A Nosa Terra (1918-1921) e também nas suas abundantes colaboraçons no El Correo Gallego, o maior dos Vilar Ponte fijo gala de um rijo anti-imperialismo no plano internacional (Insua: 2016, 290, 356). Se repararmos no caso dos irmandinhos corunheses e, como veremos brevemente, também no de senheiros simpatizantes da ING, no nacionalismo galego nom foi demasiado habitual aplicar este discurso à Guerra do Rife; um nacionalismo que já enxergamos muito feble e serôdio em relaçom aos seus correligionários bascos e cataláns. De facto, naquele momento, o exemplo do poeta Manoel Antonio, que conhecia bem a obra dos Vilar Ponte e manifestou um inequívoco alinhamento com a defesa que os insubmissos indígenas faziam da sua terra e da identidade própria, assi como um radical rejeitamento da intervençom colonial espanhola no Norte de África, parece representar umha quase que solitária exceçom. Lembremos o que escrevia a Rafael Dieste, mobilizado em Dar Driouch, no outono de 1921: “¿Si algún día recobraches a tua frialdade filosófica, pensaches n-a responsabilidade, diante da tua concencia, d´haber axudado a roubar a sua persoalidade (s´é salvaxe, a mín qué?) y-a sua liberdade (sempre respetabel) a un pobo?. ¿Non fuches quen a ademirar a vertude d´un pobo que feramente defende o seu “Eu”, nin quen a comparar isa virtude co castramento colectivo d´a Hespaña?.... …é inútel que eu pretenda levar a miña imaxinación a outro terreo: un pantasma persegue-me. É aquil que me fai pensar n-o día de mañán en que ti teñas a carón de ti unha voz que berrará eternamente: ti foches un verdugo d´a xustiza!. 29 “Os Nazonalistas, según socialistas e comunistas”, Rexurdimento, Betanços, fevereiro 1923. O caráter pioneiro de Antón Vilar Ponte quanto à reivindicaçom do colonialismo interior aplicado à Galiza, situa o viveirense como um precursor certo das teorias do ocitano Robert Lafont, que tanta importáncia tivérom para o nacionalismo galego a partir dos anos 60 do século XX. junho 2017 / KALLAIKIA

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Anticolonialismo e Irmandades Dionísio Pereira Ir contra a xustiza cando nos convén, está ben. Mais ir contra a xustiza cando nos obrigan en proveito alleo, é una cobardía. ¿Queres rexenerarte?. Faite soldado de Abd-el-Krim ou fuxe”.30

Depois, o cruzamento de argumentos esmoreceu após o reconhecimento por parte de Dieste dos seus remorsos de consciência por ter contribuído para aquele massacre: “D-o mais fondamental d-a tua carta ¿qué máis qués que che diga dimpois d-o dito n´esta e n´as devanceiras?. Resumirei, simpremente: Tes razón. Sinto un intenso y-extrano rubor de concencia pol-a miña situación. Si poidera seguir un dos teus consellos, seguiriô”.

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Já agora, durante todo o período em que Dieste combateu em África (1921-1924), Manoel Antonio continuou a manter umha postura afervoadamente anticolonial, identificada sem complexo nengum com os rifenhos, que tinha os seus alicerces no ideário nacionalista e libertário que sustentava32. Naquele tempo, o escritor rianjeiro também mostrou umha preocupaçom constante por esta temática que, por vezes, trespassou o ámbito privado e tornou pública através dalgumha publicaçom do País. Assi, mesmo antes de se interromperem as suas comunicaçons misturadas na primavera de 1922, comentava a Dieste: “…Non sei como será a vosa situación porque fai tempo que non leo diarios. E non-os leo por que só falan de duas cousas somellantemente noxentas e ás que teño moito engullo: a Política Riffeña en Hespaña e a Política Hespañola n-o Riff. Supoño que non serás capas de tomar ista miña “austención periodística” como un desprezo para vós. 30 Carta de Manoel Antonio a Rafael Dieste, sem data, outubro 1921 (Axeitos: 2015, 123-124). 31 Carta de Rafael Dieste a Manoel Antonio, escrita em Segangan a 18/10/1921 (Dieste: 1995, 51-52).

32 O xeito que teño d´ollar a autuación hespañola n-o Riff, está en todo orixinado n-o meu nazonalismo”; ver carta dirigida a Rafael Dieste, datada a finais de outubro de 1921 (Axeitos: 2015, 127). Como é sabido, Dieste nom partilhava estas simpatias nacionalistas e defendia a colaboraçom da Galiza “n-as empresas españolas”, contemplando-a no seio de umha irmandade nacional hispano-galaica; ver carta de Rafael Dieste a Manoel Antonio, datada a 15/05/1921 (Axeitos: 2015, 372).

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Dionísio Pereira Anticolonialismo e Irmandades O mesmo acontece cun artigo en nazonalista que pubriquei fai pouco n-un semanario de Vigo. Comparaba n-el ou mellor dito, poñía ós soldados hespañois por debaixo d´os de Abd-el-Krim. Non facía esceición ningunha pero eu sei que as hai.”. 33

Além do mais, Manoel Antonio nom deixou de pôr em evidência as contradiçóns que a questom colonial evidenciava no interior das próprias Irmandades. Deixou-no bem clarinho com a sua enérgica arroutada contra a novelinha de Jesus Fernández González, Como son os do Grorioso. Antón Piruleiro, editada em 1925 por LAR (dirigida por Leandro Carré e Anxel Casal, como é sabido), e onde após umha trama vulgar o protagonista acaba no Rife a fazer parte do Terço alcunhado de “O Grorioso”, num alarde de patético militarismo patriótico. A crítica, ia, precisamente, contra a confusom entre patriotismo imperialista (hispano) e o patriotismo galego, defensivo e confrontado com aquele: “Entramentres, duas ouservacións: Si o señor Fernández quer cultivar a sensiblería pour L´ Espagne et le Maroc, ou quer dar-lle bombo a alguén, teña o coidado de non colocar o enxebrismo a xeito de folla de parra, que pol-o d´agora, por mais que parezca mentira, aínda hai algún galego que non está disposto a consentil-o. E os señores editores de LAR mediten si a pubricación de certas cousas está moi d´acordo c´o verdadeiro, c´o único patriotismo; a menos que algúns sinn feiners de opereta confundan o azul c´o vermello e o branco c´o amarelo…”. 34

Nalgum momento achegou-se ao seu radical enfoque crítico com a intervençom hispana no Rife Antón Vilar Ponte, que mantivo um errático anticolonialismo, mas que na data simbólica de 25 de julho de 1922, festa do Apóstolo, disque “Matamoros”, tomava partido polo caudilho rifenho, desmitificava a vandálica imagem 33 Carta de Manoel Antonio dirigida a Rafael Dieste, abril 1922 (Axeitos: 2015, 140). Porventura, a revista a que se refere Manoel Antonio seria o semanário viguês La Garra, que começara a sua dificultosa andaina anticaciquista a 6 de abril daquele ano. O redator chefe da publicaçom era o republicano e galeguista Xavier Soto Valenzuela, com quem Manoel Antonio assinara em maio de 1921 a folha intitulada Terra Ceibe. Fora dos seus escritos publicados, na obra inédita de Manoel Antonio ficárom alguns exemplos desta teima anti-imperialista, constante durante os anos 20; é o caso do texto, datado com precauçons em 1926, “Leución D´Historia” (Axeitos: 2012, 211). 34 Este texto de Manoel Antonio intitulado “Patriotismo” está impresso numha publicaçom desconhecida, supostamente em torno do mês de maio daquele ano, data de publicaçom do referido romance (Axeitos: 2012, 213-214). junho 2017 / KALLAIKIA

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dos seus compatriotas transmitida polos invasores hispanos e vinculava a resoluçom da questom nacional no Estado espanhol à resoluçom do problema (colonial) marroquino: “…Hoxe Abd-el-Krim ten pro seu pobo un ideal: un ideal nazonalista; o da República independente e federativa. E olla a Europa, para que Europa o axude….Abd-el-Krim civilizado, arela a civilización da súa terra….Baixo un Estado rexido por Abd-el-Krim, as nazonalidades ibéricas aprexadas, ímonos decatando que xurdirían e chegarían máis axiña a unha compreta europeización que baixo a pouta do monstruo antediluviano do Estado centralista que sufrimos…Por iso, seique, o señor Santyago hoxe non monta d´acabalo para esnaquizar mouros. Non ten vocación de Alto Comisario…Galiza…pídeche que non recades a espada nin montes d´acabalo para pechar contra dos mouros. Annual non é Clavixo. Nin Covadonga o Gurugú. E pol-o Gurugú e Annual pode vir a liberdade dos pobos ibéricos….”. 35

Nom parece injusto o qualificativo de “errático” aplicado à postura do viveirense, porque dous meses depois aquele aceso compromisso anticolonial, coerente até entom com o debalar do seu ideário, desaparecera para dar passagem a umha postura que lembrava a neutralidade catalá a respeito do que acontecia no Magrebe: “Marrocos non ´os interesa nin espiritoal nin económicamente; preocúpanos porque nos leva mozos a morreren aló coma porcos e nos leva o froito do noso suor…” 36. Aos poucos, Antom descia mais um degrau, do “autismo” a um cómodo abstencionismo regeneracionista, nom muito distinto do que mantinha Francesc Cambó nesse período, que permitiria poupar futuros problemas com Francia, ao tempo que se assegurava o progresso de Espanha mediante empresas coloniais menos problemáticas, sem descartar noutro contexto mais favorável umha futura e benéfica “penetraçom pacífica” no Norte de África; daquela, referindo-se aos negativos efeitos da Guerra de Marrocos, afirmava o irmandinho: “…¿.Empobrecere a metrópole sin proveito para ninguén?¿Mantere incivil a Hespaña sin que con iso sexa posible civilizar Marrocos?¿Tere esquecidos Fernando Poo e Guinea, terras máis ricas que as marroquíes onde non hai outros nemigos que as doenzas existentes pol-a incuria do centralismo?...”. 37

35 “Na nosa festa patriótica”, La Zarpa, 28/07/1922. 36 “ Fasquías”, Rexurdimento, 1/10/1922.

37 “Maximalia. O eterno porque si”, La Zarpa, 1/11/1922.

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Após o golpe de estado de Primo de Rivera e coincidindo de maneira significativa com o esmorecemento da sua beligerante campanha contra o tratamento da Galiza como colónia interior, Antón Vilar Ponte insistiria nalgumha ocasiom nesta via de “neocolonialismo” eficaz e seletivo, sustentado num “aguerrido y eficiente ejército de voluntarios bien retribuídos”, próprio de países desenvolvidos como Francia, Alemania ou EUA. 38 Já no debalo do tempo das Irmandades (1930), Plácido Castro, retornado de Gram-Bretanha e muito influído na altura por Antón Vilar Ponte, enfermava também de umha atitude contraditória quanto ao facto colonial. De um lado, nalgumha colaboraçom em A Nosa Terra considerou o injusto regime arancelário como a melhor prova da subordinaçom de Galiza a Espanha 39. Doutro, a sua admiraçom polo sistema político do Reino Unido, derivou numha atitude compreensiva em relaçom à sua expansom colonial nalguns países como a China 40. Umha olhada eurocêntrica, afinal, que obviava episódios vergonhosos como as Guerras do Ópio ou os coetáneos massacres do Tibete (1904) e Shaji-Guangzhou (1925), protagonizados polo paternal Império británico, mas nom impedia o diagnóstico do colonialismo interior referido à Galiza. Outro jornalista próximo da ING, Manuel Lustres Rivas, expressou nas suas entregas a El Emigrado durante o ano 1923 umha posiçom próxima do abstencionismo regeneracionista face à contenda, se bem com um tom identitário: “Si Galicia quedase exenta de la sangría, entonces los gallegos comentaríamos, en torneos de humorismo, las andanzas belicosas de España en la tierra del Magreb”41. Diante da incapacidade colonial espanhola, cujos custos económicos e sociais derivados impediam modernizar o país, a aventura rifenha deveria ser totalmente alheia aos galegos, que, aliás, por idiosincra38 “Una insinuación permanente”, Galicia, 27/06/1924; tamén, “Cristalizaciones”, El Emigrado, Estrada, 16/09/1923. 39 “Colonia”, A Nosa Terra, 1/12/1930.

40 Veja-se Ríos, X. http://www.fundacionplacidocastro.com/reflexions-arredor/xulio-rios/o-ideario-politico-de-placido-castro. Consultado 17/01/2017.

41 “Los gallegos somos ponderados” e “Marruecos significa…”, El Emigrado, 31/08/1923 e 31/07/1923, respetivamente. Lustres já manifestara idênticas argumentaçons em diversos artigos publicados in La Zarpa após o Desastre de Annual; ver, “Nada se nos ha perdido en África”, 4/11/1921 e “Otra generación a pelear en pro de los negocios africanistas”, 8/09/1922. junho 2017 / KALLAIKIA

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sia eram refratários ao casticismo belicista espanhol. A conclusom de Lustres e doutros nacionalistas na órbita da ING, tal como o estradense Manuel García Barros, que exercia como redator-chefe de El Emigrado, nom era outra que, se os militares africanistas e os patriotas espanhóis queriam ir a umha guerra impopular, pois que fossem eles e deixassem em paz a Galiza, que era neutral. 42 Por sua vez, Vicente Risco, na única opiniom que lhe conhecemos sobre a Guerra de Marrocos, incide no mesmo convencimento de que os desastres da contenda eram “Cousas de Hespaña” sem responsabilidade nengumha dos galegos, que só atingiriam o direito a negar a sua participaçom numha guerra prejudicial aos interesses do país com a sua “autonomia” da naçom espanhola 43. Passando agora a Roberto Blanco Torres, as suas colaboraçons enviadas a La Zarpa incidírom mais no ataque ao patriotismo quarteleiro, confrontando-o a um ético e modernizador regeneracionismo hispano: “Mientras España civiliza Marruecos, ¿quiénes van a civilizar a España?” 44. Em simultáneo, das páginas do Galicia, Blanco fijo umha vibrante alegaçom em prol das liberdades cívicas, contrapostas à agressividade antidemocrática do militarismo africanista personificado na figura do fundador do Tercio, o galego Millán Astray: “En esta guerra africana no pueden darse los héroes, como no pueden darse en ninguna guerra de conquista. El sentido de lo heroico nace de la idea de lo justo y está ligado profundamente, íntimamente, a la idea del Derecho. No hay un solo hombre en la Historia que haya adquirido esta personalidad menoscabando el derecho de gentes o atropellando los dictados de la razón humana”. 45

Segundo nos fai ver o seu biógrafo Miguel Anxo Seixas, Castelao também recolheu na sua obra gráfica o fundo desleixo de amplas camadas da populaçom galega no tocante à intervençom em Marrocos, isso si, sem maior representaçom rifenha, nem tampouco profundezas anticoloniais. Em conseqüência, conhecemos no mínimo dez desenhos correspondentes aos anos 1920 e 1923 rela42 Sobre as opinions de García Barros, pode-se consultar “Reflexiones”, El Emigrado, 7/09/1923. 43 “Cousas de Hespaña”, La Zarpa, 16/05/1923.

44 Sobre Roberto Blanco Torres, ver “¿Qué patriotismo es ese?” e “Está cazando” in La Zarpa, 7/10/1921 e 7/12/1921, respectivamente.

45 “Acotaciones. La heroica ficción”, Galicia, 2/8/1922. Ver também, Beramendi: 2013, 239.

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cionados com a temática em causa, publicados no Galicia, El Emigrado, A Nosa Terra, Nós, Vida Gallega ou La Zarpa. Ainda, o nítido antimilitarismo de Castelao, sempre presente nos seus numerosos desenhos críticos com o andaço das quintas (Portela: 2015, 101, 103), agromou com força neste último jornal ourensano, coincidindo com unha das etapas (1922) de maior efusom bélica no Rife; eis, por exemplo, a explicaçom que deu sobre aquele expressionista rótulo da sua autoria que, durante algumhas semanas, encabeçou os témeros“Zarpazos” de Basilio Álvarez: “Escollín catro personaxes pra compor isa cabeceira. O personaxe da dreita represent´a política hespañola e pol-os poutazos sáenlle ratos; á veira da política está a xustiza (perdeu a balanza e sómentes lle queda unha espada) e pola esgazadura do bandullo pódese fitar ó demo escribindo en papel sellado; á veira da xustiza está un Estado c´un casco na cabeza, amostrando con fachenda un bandullo cheo de caliveras; á isquerda pódese ollar un home moi gordo apreixando unha bolsa chea de pesos e pol-os poutazos sáenlle tripas…”. 46

Ainda que, se acaso, a expressom mais conseguida do jorne pacifista de Castelao iríamos encontrá-lo nas páginas do jornal viguês Galicia. Nelas, ao contrapor o repousado Senhor Sant Yago do Pórtico da Glória da Catedral compostelana (“O Noso”), com o agressivo “Matamoros” de Clavijo (“O d´eles”) 47, o rianjeiro representou com potente simbolismo o que já mostraram outros jornalistas do país, tal como Manuel Lustres Rivas: o rosto belicoso do espanholismo aplicado “ad nauseam” na sua intervençom em África, quase nom tinha ambiente na Galiza devido à identidade do povo galego, pouco dado à guerreira fachenda. Mas a referida simbologia jacobeia em chave antibelicista patrimonializada por Vilar Ponte ou Castelao encontrou também expressom poética noutro irmandinho, Gonzalo López Abente, com motivo do 25 de julho de 1923:

46 “De Castelao. O que hai n´unha cabeza”, La Zarpa, 11/03/1922. 47 “Os Dous Espritos”, Castelao, Galicia, 1/03/1923.

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“Non imos matar mouros, meus irmans, por favor; (aínda que o consello n-estes tempos carece de valor) non imos, non, tras un cabalo branco e unha espada fulxente coma o sol, un e outra guiados pol-o brazo forzudo d´un siñor que amorado dos íberos guerreiros as ledicias do ceu abandonou. Deixemos que as mesetas, irtas e trigueiras, ergan roxas bandeiras, a toque de trompetas, que para nós abonda un sinxelo altar u-unha furna fonda da veira do mar, ou na soberana paz d´unha montana…”. 48 Mesmo “o poeta da raza”, Ramón Cabanillas, abundou no heterodoxo imaginário jacobeu, antes justiceiro que belicoso, com um aquele anticolonial: “Din que en Clavixo, noso, teu aceiro dounos probas do seu poder punxente, mais a terra do Rif é doutra xente e tes de ser, por santo, xusticeiro”.49 Muito na sua época, nom foi a única ocasiom em que Cabanillas tratou o tema da Guerra de África sem ocultar o seu nojo; eis o poema “O mentideiro”, incluído no livro “No desterro” (1926): “Unhas verbas doentes voan como morcegos: -Honor, Africa, Patria. Loita. Trunfo. Diñeiro-. ¡O Honor! ¡A Patria! 48 “O Día de Galiza”, Rexurdimento, 25/07/1923. 49 Rei: 2009, 288.

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(A sangre xenerosa da mocedade, a regos) ¡Millóns! ¡Millóns! (A anemia, a fame dos obreiros, os farrapos dos probes, o suor dos labregos). ¡Africa! (A cova tráxica, sin fondo, do honor e do diñeiro)….”. 50 Insistindo nesta direçom, o jornal Galicia impulsado em Vigo por Valentín Paz Andrade contando, entre outros, com Roberto Blanco Torres e Manuel Lustres Rivas, quer como senheiros colaboradores, quer como redatores-chefe, foi um dos meios de comunicaçom galegos que maior atençom prestou aos acontecimentos do Norte de África: nada menos que 737 itens sobre Marrocos durante o seu período vital, entre 1922 e 1926. Como apontam Rosa Aneiros e Xosé Manuel López: “…practicamente todas as opinións formuladas no xornal camiñan na mesma dirección: a repulsa absoluta da Guerra de Marrocos por mor das consecuencias que a nivel social, económico e político están a ter en España…”. Os autores salientam, aliás, que um dos objetivos sobranceiros do periódico foi a “conformación de unha conciencia crítica na opinión pública” sobre a dita contenda (Aneiros e López: 2003, 6, 11, 15), ao que caberia acrescentar que isto se levou a cabo sem mostrar maior empatia com a populaçom levantada em armas contra a invasom metropolitana. De facto, a contundência de um Editorial em que se rejeitava a guerra de extermínio com a qual os africanistas ameaçavam o Rife após o vergonhoso episódio do resgate dos militares e civis espanhóis prisioneiros em Ajdir (fins de janeiro de 1923), deu lugar à referida campanha cívica contra um hipotético desembarco em Al Hoceima e, como conseqüência, a denúncia do jornal. Mais umha vez, o mote foi ”Que vayan solos” dirigido aos militaristas; porém, os independentistas rifenhos eram tratados outra vez polo jornal como “ kábilas semisalvajes” e “ bárbaros” que “…no saben tratar a los prisioneros como las leyes de guerra mandan”. 51 50 Rei, 2009; 238-239.

51 Ver “Mientras se espera el rescate de los cautivos”, “La algarada africanista. Que vayan solos” e “Denunciado Galicia”, in Galicia, 26/01/1923 e 8/02/1923, respetivamente. junho 2017 / KALLAIKIA

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O antibelicismo do jornal nom minguou nem sequer com a proclamaçom da Ditadura de Primo, pois a começos de 1924 outro Editorial lembrava ao ditador, que antes do golpe se manifestara partidário de abandonar Marrocos, a responsabilidade de cumprir as suas proclamas procurando umha “ fórmula de definitiva liquidación” do conflito. 52

Irmandades da Fala: umha visom pós-colonial? Em definitivo, se obviarmos a conseqüente e quase solitária militáncia anticolonial de Manoel Antonio na Galiza, e, talvez, também a dos “portenhos” Ramón Suárez Picallo e Ramiro Illa Couto 53, a neutralidade e o abstencionismo antibelicista sustentado principalmente nos desastres da guerra, nom ocultavam que, em qualquer caso, nunca se dava a palavra aos rifenhos e mal contavam no discurso dos nacionalistas das Irmandades: pouca ou nengumha empatia com a sua luita desigual e com a sua idiossincrasia; nengum relato sobre as condiçons materiais em que se desenvolviam ou os padecimentos que aturavam; sem informaçom nengumha da República que pretendiam construir, os seus objetivos e motivaçons. Mesmo, como se despreende dos escritos do jornal A Nosa Terra, no sector mais pragmático das Irmandades havia quem considerasse que o Protetorado e a “penetraçom pacífica” no Rife estariam justificados polas supostas expectativas civilizadoras que traria o Estado espanhol, ao qual alguns galeguistas se subordinavam consciente ou inconscientemente. A comparaçom dum país africano considerado cultural e socialmente inferior com a omnipresente 52 “La pesadilla africana. Vuelve a gravitar sobre España”, Galicia, 5/03/1924.

53 O sadense, incorporado ao nacionalismo a partir de 1924 e influenciado tanto polo pensamento de Ramón Vilar Ponte como polo anti-imperialismo soviético devedor das teorias leninistas (chauvinismo imperialista versus nacionalismo defensivo), declarou nalgumhas ocasions as suas simpatias por Abd el Krim e outras luitas de libertaçom nacional extra-europeias, tal que a egípcia, a indiana ou a drusa, além da irlandesa; ver “Disquisiciones acerca del nacionalismo gallego. Glosando a Vicente Risco e R. Villar Ponte”, El Despertar Gallego, Buenos Aires, 19/07/1925 e “Nacionalismo, Internacionalismo y otros “ismos ”, El Despertar Gallego, 3/01/1926. Quanto a Illa Couto, a sua participaçom na Guerra do Rife deu passagem a um ideário anti-imperialista e internacionalista, progressivamente afím ao arredismo; ver Pastoriza, 2016 e “Insistindo. Badocos e Reaicionarios”, A Fouce, Buenos Aires, 15/01/1931.

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Irlanda ou com a emergente Polónia, para as quais si se reclamava a soberania nacional, impom-se. Porque, para os nacionalistas galegos que ainda compartiam um alento eurocêntrico, nem o montaraz Rife mussulmano era a druídica Eirin ou a católica Polska, nem o impenetrável Abd el Krim, o mártir Terence MacSwiney ou o fidalgo Potocky, estimado por Otero Pedrayo, abofé! Sabido é que, no primeiro semestre de 1923, distintas correntes nacionalistas da Galiza, Euskádi e Catalunha trabalhárom para conformar umha Aliança que figera visível de um modo conjunto a sua denúncia da opressom nacional que padeciam no Estado espanhol e os seus anseios de libertaçom (Estévez e Goñi: 1984). O tema já foi estudado suficientemente por Xosé Estévez, daí que nom insistamos nele mais que num assunto pontual: a incorporaçom da questom marroquina nas comunicaçons estabelecidas entre os distintos interlocutores durante o verao daquele ano.

Manifestaçom agrária em Mondonhedo contra Abd El Krim e os rifenhos. Fevereiro,1922

Se bem no primeiro apelo, feito a 8 de julho nas páginas de La Publicitat a instáncias da Acció Catalana, nom havia nengumha mençom ao Rife, antes de finalizar o mês, “Gudari”, no Aberri, expunha nom só a possibilidade de engrossar a avença se os norteafricanos concordassem, como também a necessidade de considerar a situaçom colonial e dependente dos diversos países em relaçom a Espanha (Estévez e Goñi: 1984, 441-442). Afinal, La Publicitat, que já publicara diversos artigos sobre a Aliança sem facer mençom nengumha à proposta de Aberri, dava-se por apercebida num Edijunho 2017 / KALLAIKIA

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torial da possível autoria de Rovira i Virgili, mas sem se pronunciar a favor ou em contra de aceitar a proposiçom de converter a “Tripla Aliança” em Quádrupla: “Fa pocs dies que el diari base “Aberri” publicava un article erant formulant la seva protesta contra la guerra del Marroc, dient que, una de les primeras feines de la projectada Triple Aliança dels nacionalismes peninsulars havia d’ésser l’oposar-se per tots els procediments pràctics, a la continuació de la sagnia…”. 54

Como se sabe, a “Tripla Aliança” foi assinada em Barcelona a 11 de setembro daquele ano, após a gradual adesom das distintas organizaçons bascas (com reticências no caso da Comunión), catalás (sem o concurso da Lliga, obviamente) e galegas (ING e Irmandade da Fala da Corunha), sem que nos dias de hoje conheçamos umha posiçom pública dos irmandinhos a respeito da incorporaçom dos rifenhos ao acordo 55. Mas nom parece aventurado pensar que os galegos participárom da falta de entusiasmo mostrada por Acció Catalana, pois o texto do pacto nom fijo referência nenguha à Guerra do Rife (Estévez e Goñi: 1984, 445-446/ Madariaga: 1998, 74). Por outra parte, tampouco temos constáncia do hipotético interesse dos insurgentes rifenhos em participar na avença, nem semelha que esta pretendesse, a partir do anti-imperialismo, propor umha organizaçom territorial nom conjuntural que ultrapassasse a estrutura do Estado espanhol unitário. A turbulenta jornada da Diada de 11 de setembro de 1923, em que as contínuas cargas da polícia, os feridos e os detidos, se somárom a discursos nos quais, de maneira explícita, alguns oradores bascos e cataláns declarárom nom se sentirem espanhóis, foi apresentado como justificaçom para o golpe de Estado que o capitám-general da Catalunha, Miguel Primo de Rivera, promoveu dous dias despois. Algumha imprensa hispana do momento e, com posterioridade, diversos historiadores e políticos vinculados à direita africanista (García Figueras, Cimadevilla, García Venero, Aunós…), acreditárom que os vivas em prol da República rifenha e Abd el Krim, a exibiçom de bandeiras do Rife e os gritos contra 54 “La Contribució de Mort”, La Publicitat, 7/08/1923.

55 Nas resenhas que A Nosa Terra publicou ao dia seguinte da assinatura do acordo, nom há nengumha referência a este assunto; ver os artigos, “Conseller Casanova” e “Cousas”, A Nosa Terra, 12/09/1923

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a “rojigualda”, representárom o pingo que transbordou o copo dos militares diante de aquilo que, considerárom, era umha manifesta “traiçom separatista”. Chama, nom obstante, a atençom que nem a maior parte da imprensa catalá (La Vanguardia, La Veu, La Publicitat…), galega (A Nosa Terra, El Progreso, La Voz de Galicia,…) ou basca (Euzkadi, La Voz de Guipúzcoa, El Pueblo Vasco…), nem personagens que estivérom presentes no evento caso de Jaume Miratvilles, nem historiadores como Félix Cucurull, dessem nengumha releváncia às alegadas mostras de solidariedade com os africanos, prova de que, ou bem só existírom na mente dos que precisavam a espoleta para umha intervençom militar, ou nom tivérom, nem com muito, a importáncia que se lhes quijo dar (Ucelay: 1984, 30). Mais adiante e já a partir do exílio francês, alguns personagens (Telesforo Uribe, Francesc Maciá…) tentárom articular, sem resultados práticos e sem participaçom galega direta, umha “Liga de Naçons Oprimidas”, na qual se contaria, ainda, com o Egito, Filipinas e a República do Rife. Mas isso já é outra história. Seria possível concluir, pois, que as correntes nacionalistas periféricas (a Lliga e os regionalistas galegos nom entrariam nesta consideraçom) partilhárom com algumhas esquerdas operárias espanholas a crítica frontal a respeito da intervençom no Magrebe, embora com certos silêncios e vacilaçons no caso galego. Também aquelas defendêrom o abstencionismo antibelicista, se bem que bascos, cataláns e galegos sustentassem a sua posiçom neutral no desleixo relativamente ao Estado centralista e à idiossincrasia espanholista contra as que confrontavam, antes que no regeneracionismo casticista mais próprio dos ámbitos esquerdistas e liberais hispanos. No fim de contas, partilhárom também com estes a ausência de umha autêntica perspetiva anticolonial que as identificasse em pé de igualdade com o povo rifenho, se excetuarmos o grupo Aberri, alguns sectores minoritários do nacionalismo catalám e umhas poucas individualidades galegas. Retornando ao começo do relato, eis o problemático contexto em que se situárom os três cronistas galegos; ainda assi, por vezes, “Ben-Cho-Shey” procurou umha arriscada narrativa anticolonial, afogada, nom obstante, pola “ dinámica militarista na que estivo inmerso moi ao seu pesar”. 56 56 Pereira: 2016, 82. junho 2017 / KALLAIKIA

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Se entendermos o pós-colonial “como un momento inicial, que aunque colonial, inaugura el modo de hablar de las estrategias políticas y discursivas de sociedades colonizadas y como un momento de deseo consciente de separarse e independizarse.” (Bermúdez: 2011, 335), podemos enxergar que, durante o período das Irmandades (19161931) e com a Guerra do Rife como pano de fundo, que desvelava o eurocentrismo de nom poucos ativistas que se definiam de esquerda e/ou nacionalistas, na Galiza (também na comunidade galaica de alén-mar) começárom a ser sentadas as bases para um futuro debate social em tal sentido. Porque, se bem é certo que nesse tempo os que alentárom umha visom anticolonial persistente e universal fôrom poucos e desenvolvêrom-na, nom sem contradiçons e vacilaçons, de umha perspetiva pessoal, sem quase cobertura ideológica própria que os sustentasse, si achamos que contribuírom de maneira relevante à conformaçom e socializaçom destes traços de identidade na posterior etapa republicana.

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LuĂ­s Seoane Tinta da China sobre cartolina. 1943

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SOBRE A VIABILIDADE DAS PENSONS. SOCIEDADE OU MERCANTILIZAÇOM Xabier Pérez Davila

INTRODUÇOM O esgotamento do Fundo de Reserva (FR) da Segurança Social (SS) está a ser utilizado para relançar o debate sobre a viabilidade do sistema público de pensons. A polémica em andamento suscita duas questons diferentes: as pessoas pensionistas perguntam-se se perderám poder de compra; as pessoas em idade de trabalhar, especialmente as mais novas, duvidam se algum dia perceberám umha pensom. Neste artigo começarei por explicar como funciona o atual sistema de pensons públicas; em segundo lugar tratarei as causas do défice que se produz a partir do ano 2011; depois exporei as últimas reformas do sistema (Zapatero e Rajói) e as previsons da Comissom Europeia (CE) sobre o gasto em pensons públicas; na epígrafe cinco enquadrarei o conflito das pensons num contexto mais amplo, o da ofensiva do capital para se apropriar de espaços de valorizaçom; a seguir citarei brevemente os principais fatores que influem na viabilidade dos sistemas de proteçom social e que costuman esquecer as pessoas economistas defensoras dos fundos de capitalizaçom. Para concluir enumerarei algumas medidas de política económica que permitiriam garantir fundos suficientes para o sistema de pensons públicas a curto e médio prazo. 52

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE REPARTIÇOM Existem dous grandes modelos de pensons , o de capitalizaçom e o de repartiçom. Nos sistemas de capitalizaçom as pessoas partícipes achegam periodicamente quantidades a um fundo que se investe em ativos financeiros, por exemplo bonos do tesouro ou açons. No momento da reforma, a quantia da pensom dependerá de três variáveis: a quantidade acumulada, a habilidade (ou incompetência) da entidade encarregada da gestom do fundo e a fase do ciclo económico. Nos sistemas de repartiçom as pessoas ativas financiam com as quotas que se deduzem das suas nóminas as pensons das pessoas reformadas. Nom há neste caso poupança, as quotizaçons nom se atesouram, senom que cada mês vam diretamente das pessoas ativas às já reformadas. O sistema de repartiçom baseia-se num pacto entre geraçons. As pensionistas construírom com o seu trabalho a sociedade e a economia atuais, as infraestruturas de transporte, energia e comunicaçons fôrom financiadas com os seus impostos; a capacidade científica e técnica das geraçons ativas é o resultado dum sistema educativo também financiado no passado polas pessoas hoje pensionistas. Tenhem portanto, umha vez que acabam a sua vida laboral, direito a receber umha parte do produto social já que contribuírom a criar as condiçons materiais que o fam possível. O pacto projeta-se no tempo, as geraçons hoje ativas financiam a formaçom das mais novas e as pensons das pessoas reformadas. No futuro esperam que o pacto se mantenha e que no momento da sua retirada da vida produtiva as jovens e os jovens que hoje estudam paguem as suas pensons . Este pacto funda-se na inteligência da economia como um subsistema dum sistema mas amplo, a sociedade humana, baseada necessariamente em relaçons de cooperaçom e solidariedade recíprocas. Nas sociedades camponesas tradicionais este mesmo pacto entre geraçons articulava-se dentro do espaço da unidade produtiva familiar. As sociedades industriais e pós-industriais de segunda metade do século XX e do século XXI estruturam-se em níveis de complexidade qualitativamente superiores aos das sociedades pré-industriais e a esse nível de complexidade correspondem novas formas institucionais de organizaçom da solidariedade e da vida comum. O sistema público de pensons enfrenta com radicalidade a errónea conceçom expressa por Margaret Thatcher numha entrevista concedida em 1987 à revista Woman´s Own: ““There‘s no such thing as society” junho 2017 / KALLAIKIA

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

(nom existe a sociedade, só os indivíduos). Sim, existe a sociedade e o nível de complexidade das sociedades e economias atuais fai obrigatória a cooperaçom de indivíduos, organizaçons e instituiçons para articular a vida social e económica. Além de como um pacto entre geraçons podemos descrever as pensons de reforma como salário diferido. As trabalhadoras renunciam cada mês a umha parte do seu salário, a quotizaçom social que achegam a um fundo comum, para o perceberem quando deixam de trabalhar. Portanto quotizaçons sociais e impostos som achegas deduzidas dos salários das trabalhadoras a umha caixa comum com que financiam um seguro coletivo que se encarrega de financiar as pensons, com as quotizaçons sociais, e a educaçom e a sanidade com os impostos, salário diferido coletivamente organizado, pedaços de socialismo inseridos na máquina capital. O sistema público de pensons dá umha muito elevada rendibilidade social. Som mais de 700 mil pessoas na Galiza e mais de 8 milhons e meio no Reino de Espanha (RE) que recebem o seu único ou principal ingresso da SS. Nunca na história da nossa espécie a taxa de pobreza entre as pessoas idosas fora tam baixa como na atualidade. Mesmo na crise financeira que explodiu em 2007 as pensons públicas atuárom como estabilizador automático impedindo umha maior queda da procura e contribuindo para evitar umha espiral descendente, ainda mais acelerada da que aconteceu, de reduçom da procura, diminuiçom da produçom e assim, ad infinitum. Quando se diz que as pensons estám a sustentar muitos lares estáse a exprimir na linguagem dos seres humanos vivos o conceito mais frio e abstrato de estabilizador automático. Durante muitos anos, de 2000 a 2010, o sistema público de pensons apresentou um balanço contável também positivo. As quotizaçons sociais financiavam todas as prestaçons contributivas, pensons de reforma, viuvez e orfandade, incapacidades temporárias (baixas), incapacidades permanentes, prestaçons por maternidade e paternidade e sobrava dinheiro. O sistema era superavitário, as trabalhadoras e trabalhadores financiavam integralmente a vida e segurança comum. É preciso sublinhar que em 2007, 2008, 2009 e 2010, bem avançada a crise, a mais importante do capitalismo desde 1929, o sistema continuou a se autofinanciar. Com parte dos superávits conseguidos durante umha década constituiu-se o FR da SS que chegou a acumular quase 70.000 milhons de euros. 54

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

CAUSAS DO DÉFICE DO SISTEMA Em 2011 o sistema de SS apresenta, pola primeira vez depois dumha década, um défice que irá em aumento nos seguintes exercícios até atingir em 2016 uns 18.000 milhons de euros. O Governo do Partido Popular (PP) decidiu recorrer ao FR até quase o esvaziar no fim de 2016. O défice e o esgotamento do FR som utilizados para umha enésima campanha de medo sobre a viabilidade e o futuro das pensons públicas. Quais som as causas deste défice? I. a perda de postos de trabalho como consequência da crise com a conseguinte diminuiçom do número de pessoas que cotizam, II. o aumento do trabalho a tempo parcial e das horas trabalhadas, mas que nom cotizam, III. a baixa dos salários e IV. o aumento da desigualdade salarial, V. a proliferaçom de modalidades de contrataçom com bonificaçons ou deduçons nas cotizaçons à Segurança social, VI. o descenso da taxa de cobertura da prestaçom por desemprego e, como síntese e enquadramento de todos estes fatores parciais, VII. umha política económica injusta e ineficaz. A taxa de desemprego na economia espanhola é endemicamente alta. Desde 1978, em 26 dos 38 anos decorridos superou 15 por cento, sendo a taxa média de 15,17%. Porém, a crise disparou o desemprego até quotas desconhecidas, 27,2% em 20121, depois da perda de 3 milhons de postos de trabalho. O número de pessoas que cotizam passou de 19,4 milhons em 2007 a pouco mais de 16 milhons em 2013. A EPA do 3º trimestre 2016 informa da existência de ainda 4 milhons e 300 mil pessoas desempregadas. O critério para determinar se umha pessoa está ou nom desempregada é extraordinariamente laxo, chega com que trabalhe umha hora na última semana para desaparecer das listagens do desemprego. Entre as pessoas que trabalham, 2 milhons e 650 mil fam-no a tempo parcial (a imensa maioria em contra da sua vontade). 72 por cento das pessoas que trabalham a tempo parcial som mulheres, umha outra evidência da discriminaçom das mulheres no mercado de trabalho. Torrens e de Molina calculam que, se se incluírem as pessoas desanimadas e o emprego a tempo parcial involuntário, a taxa de desemprego ascenderia a 29 por cento da populaçom ativa. 1 TORRENS, Lluís e GONZÁLEZ DE MOLINA SOLER, Eduardo, “La garantía del tiempo libre: desempleo, robotización y reducción de la jornada laboral (parte 1)”, pdf. junho 2017 / KALLAIKIA

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

Se toda a potencial mao de obra que revelam estes cálculos encontrasse trabalho, o sistema regressaria imediatamente ao superávit. Aliás, desde a reforma laboral de 2012 generalizou-se a prática de formalizar contratos a tempo parcial que ocultam trabalhos a tempo completo e o nom pagamento das horas extraordinárias. O INE calcula que em 2014 nom se pagárom, e portanto nom quotizárom à SS, 52 por cento das horas extraordinárias. A reforma laboral de fevereiro de 2012 tinha como principal objetivo a reduçom dos salários para aumentar a competitividade exterior da economia espanhola. Diferentes estudos estimam que os salários baixárom entre 10 e 25%. Desde 2008 e 2015 a remuneraçom total das assalariadas caiu em mais de 49 mil milhons de euros, quase 5 pontos percentuais do PIB2. As quotizaçons sociais calculam-se como umha percentagem dos salários, polo que se se recuperasse a massa salarial anterior à crise o sistema receberia umha injeçom de quase 14 mil milhons de euros, resultado de aplicar o tipo de quotizaçom por contingências comuns (28,3%) a esses quase 50 mil milhons de euros de salários que se perdêrom. Umha das conseqüências da política económica impulsionada polo Partido Popular e a CE é o aumento da desigualdade salarial. O limite salarial que contribui para a SS era no ano 2016 de 3.642€. A partir dessa quantidade os salários altos nom pagam contribuiçom à SS. Segundo um estudo de CCOO eliminar o limite salarial nas quotizaçons poderia achegar 7.000 milhons anuais3. O Governo do PP, para fomentar o emprego, alargou as modalidades de contratos com bonificaçons e subvençons nas quotizaçons à SS que, segundo cálculos oficiais, reduzirám os ingressos em 3.736 milhons de euros anuais4. Por último o descenso da taxa de cobertura da prestaçom por desemprego reduz os rendimentos por quotizaçons da SS já que 2 INE, Contabilidad Nacional de España, actualización de la serie contable, 14 de setembro de 2016. 3 h t t p : //e c o n o m i a . e l p a i s . c o m /e c o n o m i a / 2 0 16 / 11 / 2 2 /a c t u a l idad/1479846654_354560.html. 4 h t t p : //e c o n o m i a . e l p a i s . c o m /e c o n o m i a / 2 0 1 5/ 0 8 / 0 5/a c t u a l idad/1438799141_609734.html.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

enquanto a trabalhadora está a cobrar o desemprego, o Instituto Nacional de Seguridad Social (INSS) encarrega-se da parte empresarial da quotizaçom social. A taxa bruta da cobertura por desemprego baixou desde um máximo superior a 73 por cento em 2009 até menos de 48 por cento em 20165. Além disto a reforma laboral de 2012 reduziu a quantidade percebida desde o sétimo mês da prestaçom de 60 a 50 por cento da base reguladora reduzindo durante os 18 meses restantes o montante da cotizaçom. Todas estas causas parciais fam parte da política económica austericida promovida pola Troika (CE, BCE, FMI) injusta e ineficaz. Política económica injusta porque está a aumentar a precariedade laboral e vital, a pobreza e a exclusom social, com consequências especialmente graves entre a gente jovem. Quase 4 de cada 10 jovens galegas entre 16 e 29 anos vivem abaixo do limiar da pobreza e um terço das jovens entre 30 e 34 anos vive ainda com as suas famílias6. Precariedade que coloca em risco a reproduçom da vida e a viabilidade da sociedade e a naçom por causa da emigraçom e a dramaticamente baixa taxa de natalidade. Entre 1990 e 2014 saírom do país 484 mil pessoas: 11 mil por ano na década de 90, 24 mil em média entre 2001 e 2009 e 30 mil anuais a partir de 2010 até 20147. Das 1479 unidades territoriais europeias consideradas por Eurostat, as quatro províncias galegas situam-se entre os postos 11 e 38 numha classificaçom de menor a maior taxa de natalidade, sem chegar nengumha das quatro a 1,2 nascimentos por mulher quando a taxa que permite reproduzir a populaçom é de 2,18.

5 MINISTERIO DE EMPREGO E SEGURIDADE SOCIAL, Boletín Mensual de Estadística, novembro 2016. 6 http://www.farodevigo.es/galicia/2016/11/24/tres-menores-30-anos-vive/1575838.html 7 SERMOS GALIZA, edición electrónica, 1 de setembro de 2015, dados do IGE.

8 http://ec.europa.eu/eurostat/data/database, consultada o 4 de janeiro de 2017. junho 2017 / KALLAIKIA

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

Tabela I. Taxa de natalidade. Província

Posiçom que ocupa entre 1479 territórios administrativos europeus

Taxa de natalidade

11

1

Ourense

Lugo

22

1,05

Ponte Vedra

38

1,12

Corunha

24

1,07

Fonte: http://ec.europa.eu/eurostat/data/database

A situaçom nom é muito melhor no RE: a taxa de natalidade é de 1,32 nascimentos por mulher, a quarta mais baixa de toda a Europa só atrás de Portugal, Grécia e Chipre, significativamente todas sociedades submetidas às políticas austericidas da Troika. Política económica ineficaz porque a política de precarizaçom do trabalho e de austeridade nom conseguiu os objetivos que se propunha: reduzir o défice e a dívida pública, e produziu umha contraçom da atividade económica dumha duraçom sem precedentes desde o Plano de Estabilizaçom de 1959. O PIB do ano 2015 era ainda inferior em mais de 40 mil milhons de euros ao de 2008. Previsivelmente em 2017 superará-o pola primeira vez, polo que serám necessários 9 anos para recuperar o nível de atividade económica anterior à crise. A depressom da produçom nom permitiu controlar a dívida pública que passou de menos de 36 por cento do PIB em 2007 a superar 100 por cento do PIB no primeiro trimestre de 20169. Tabela II. Evoluçom da dívida pública (milhons € e %) Ano

A - Dívida pública

B - PIB

A / B (%)

2007

383.798

1.080.807

35,51%

1.096.150

1.083.991

101,12%

2016 ( 1T)

Fonte: Banco de Espanha, http://www.bde.es/webbde/es/estadis/infoest/a1101.pdf

9 BANCO DE ESPAÑA, http://www.bde.es/webbde/es/estadis/infoest/a1101.pdf.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

AS REFORMAS DE ZAPATERO E Rajói Em janeiro de 2011 o Governo de Rodríguez Zapatero, coagido pola CE, aprovou umha reforma do sistema de pensons que provocou a convocaçom dumha Greve Geral pola CIG e os sindicatos bascos a que também aderírom CUT e STEG na Galiza. As principais modificaçons introduzidas por esta reforma fôrom: 1) atraso da idade de reforma dos 65 aos 67 anos, 2) aumento do período para o cálculo da pensom inicial de 15 a 25 anos, 3) incremento dos anos necessários para cobrar 100% da BR de 35 a 37 e 4) introduçom do fator de sustentabilidade: cada 5 anos, desde 2017, ajustarám-se os parámetros do sistema segundo a esperança de vida aos 67 anos. A reforma, que nom concretizava o funcionamento do fator de sustentabilidade, dispujo um período transitório que acabará em 2027. Em dezembro de 2013 o Governo de Mariano Rajói aprovou umha segunda reforma que implicava: 1) desligar o incremento das pensons da evoluçom do Índice de preços de consumo (IPC), 2) concretizar o fator de sustentabilidade criado na reforma de 2011, que, a partir de 2019, reduzirá a pensom inicial tanto como aumentar a esperança de vida aos 67 anos, 3) introduzir um Índice de revalorizaçom das pensons: a revalorizaçom anual dependerá dumha fórmula que incorpora quatro variáveis: taxa de variaçom dos rendimentos - taxa de variaçons do número de pensons contributivas - taxa de variaçom da pensom média percentagem de eliminaçom do défice. A revalorizaçom mínima anual fixa-se em 0,25%. O resultado da reforma de Rodríguez Zapatero está a ser, e será ainda mais segundo avançar o período transitório, a reduçom das pensons iniciais: calcularám-se sobre 25 anos, 10 mais que na atualidade, e deve ter-se em conta que nas carreiras laborais comuns os salários mais altos se recebem nos últimos anos; reduz-se o peso na pensom de cada ano cotizado; aumenta o número de anos necessário para cobrar os 100 por cento da base reguladora. Porém, a proposta de Rajói é bem mais agressiva: a pensom inicial reduzirá-se tanto como o figer a esperança de vida no ano da reforma e, muito importante, as pessoas pensionistas padecerám umha erosom continuada do poder de compra da sua pensom. A diminuiçom de poder de compra da pensom inicial merece um comentário específico. Antes de dezembro de 2013 as pensons, por lei, subiam cada ano tanto como o faziam os preços, ou polo menos junho 2017 / KALLAIKIA

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

tanto como o fazia o IPC. Este mecanismo garantia que as pessoas pensionistas conservassem durante toda a sua vida o poder de compra da pensom recebida no momento de se reformarem. Desligar o incremento da pensom do IPC e fixá-lo em funçom dos critérios que se relacionam no parágrafo anterior fará que as pensons se incrementem ano após ano menos que os preços. As pensionistas serám um pouco mais pobres cada ano. As pessoas que se reformárom em 2014 perderám em média 15% por cento de poder de compra e 26,5 por cento no fim da sua vida; as que se reformarem em 2030 começarám cobrando umha pensom 5 por cento mais baixa, a perda de poder de compra média será de 15,2 por cento e quase 20 por cento quando cobrarem a sua última mensalidade10. Na tabela III calcula-se como evoluiriam umhas pensons de 1.000 e 2.000 euros sendo os anos de reforma 2014 e 2030. Tabela III. Perda do poder de compra das pensons Ano reforma

2014

2014

2030

2030

1.000 €

2.000 €

950 €

1.900 €

Pensom média

843 €

1.686 €

806 €

1.611 €

Pensom final

735 €

1.470 €

760 €

1.520 €

Primeira pensom

Elaboraçom própria a partir de Zubiri, Ignacio, Op.Cit.

O IPC subiu em 2016 1,6 por cento e as pensons aumentárom o mínimo estabelecido por lei (0,25 por cento): o poder de compra das pensionistas reduziu-se em 1,35 pontos percentuais. A previsom de FUNCAS para o ano 2017 é dumha inflaçom de 2 por cento, a suba aprovada nos Orçamentos Gerais do Estado é outra vez de 0,25 por cento. Em dous anos o poder de compra reduziráse em mais de 3 pontos, as pensionistas começarám a perceber o efeito das reformas de Zapatero e Rajói.

IV AS PREVISONS DA COMISSOM EUROPEIA As reformas que comentamos no epígrafe anterior alinham com as propostas dos poderes da UE. A Comissom Europeia (CE) 10 ZUBIRI, Ignacio, “Las pensiones en España: Situación y alternativas de reforma en Gasto Público en España: Presente y futuro”, Papeles de Economía Española nº 147, Madrid, 2016.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

publica periodicamente relatórios sobre o que chama problemas do envelhecimento. No de 2012 cita 50 vezes a palavra sustainability e só 7 vezes a palavra adequacy. Sustainability, sustentabilidade, diz respeito à necessidade de reduzir o peso das pensons públicas sobre o PIB. Adequacy, neste contexto suficiência, refere-se à capacidade de as pensons garantirem umha vida digna para as pessoas reformadas. A CE preocupa-se 7 vezes mais com a reduçom do gasto público do que com a dignidade dos seres humanos: nas quase 500 páginas do texto nom aparece umha só vez a palavra poverty, pobreza11. O relatório do ano 201512 ilumina os intuitos da CE para o futuro das pensons públicas (v. tabela IV). Tabela IV. Gasto em pensons. Previsom CE Ano

2013

2060

Populaçom maior de 65 anos (% sobre a populaçom total)

17,9

30

Gasto em pensons , % do PIB.

11,8

11

Elaboraçom própria a partir de European Commission 2015, Op. Cit.

Segundo as previsons da CE as pessoas de mais de 65 anos, candidatas à perceçom dumha pensom de reforma, passarám de representar menos de 18 por cento a 30 por cento da populaçom total, mas o gasto em pensons nom só nom aumentará proporcionalmente, senom que será mais baixo, como percentagem do PIB, que na atualidade. Esta reduçom do gasto aumentará muito a pobreza entre as pessoas idosas. É preciso perguntar-se se este empobrecimento é inevitável ou resultado dumha escolha política entre várias possibilidades alternativas. Para responder a esta questom partirei das previsons da própria CE13: umha leve diminuiçom da populaçom junto com um crescimento médio do PIB de 1,4 por cento anual.

11EUROPEAN COMMISSION, The 2012 Ageing Report, pdf.

12 EUROPEAN COMMISSION, The 2015 Ageing Report, pdf.

13 EUROPEAN COMMISSION, The 2015 Ageing Report, pdf., pp. 322324. junho 2017 / KALLAIKIA

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

Tabela V. Evoluçom do PIB e do PIB por pessoa Ano

2013

2060

1.029.279

1.978.413

Populaçom total (milhons )

46,6

46,1

Populaçom > 65 anos (milhons )

8,34

13,83

22.088

42.916

PIB (milhons euros)

PIB por pessoa (euros)

Elaboraçom própria a partir de EUROPEAN COMMISSION 2015, Op.Cit. Dado do PIB 2013, INE.

A CE prevê que em 2060 o produto por pessoa em termos reais será quase o dobro que o atual: produzirám-se para cada cidadá duas vezes mais de bens e serviços que hoje, no entanto propom que se reduza a percentagem do PIB destinada ao pagamento das pensons enquanto o número de pessoas maiores de 65 anos aumentará em 5 milhons e meio. Como coloquei no título dum artigo publicado em 2013 A Comisión Europea quere que @s xubilad@s sexan pobres14. Existem outras possibilidades? Existem, si, as que escolheria umha sociedade civilizada: garantir umha vida digna para as pessoas no tempo da sua reforma. Como fazê-lo? Destinando umha maior percentagem do PIB ao pagamento das pensons. Esta percentagem financiaria-se quer subindo as quotizaçons sociais como figer a produtividade do trabalho, quer mediante impostos. Suporia esta soluçom umha carga insuportável para a sociedade? Nom. Depois de aumentar substancialmente a parte do produto social dedicada às pensons, a sociedade das nom pensionistas continuaria a desfrutar dum nível de vida muito superior ao atual. Na tabela VI calculo o que pode acontecer se dedicarmos ao pagamento das pensons 18 por cento do PIB. O PIB por pessoa para o que chamo a sociedade das nom pensionistas, umha vez deduzido o gasto em pensons, mais que duplicaria o atual.

14 PÉREZ DAVILA, Xabier, “A Comisión Europea quere que @s xubilad@s sexan pobres”, Sermos Galiza, edición electrónica, 24 de outubro de 2013.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

Tabela VI. PIB por pessoa das nom pensionistas destinando 18% do PIB às pensons 2013

2060

1.029.279

1.978.413

A

PIB (milhons de euros)

B

Populaçom total (milhons )

46,6

46,1

C

Populaçom > 65 anos (milhons )

8,34

13,83

D

Populaçom < 65 anos (milhons )

38,3

32,3

E

Percentagem do PIB dedicado ao pagamento das pensons

11,8

18,0

F

Parte do PIB dedicada ao pagamento das pensons (milhons de euros)

121.455

356.114

G

Diferença A - F

907.824

1.622.299

H

PIB por pessoa < 65 anos (G/D) em euros

23.728

50.273

Elaboraçom própria a partir de EUROPEAN COMMISSION 2015, Op. Cit.

Mesmo poderia pensar-se em aumentar o gasto em pensons tanto como se incrementar a percentagem de pessoas pensionistas sobre a populaçom total que, segundo a CE, aumentará de 17,9 a 30 por cento, 67 por cento mais. Que aconteceria se aumentássemos o gasto em pensons como percentagem do PIB também 67 por cento? Podemos ver o resultado desta hipótese na tabela VII.

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

Tabela VII. PIB por pessoa das nom pensionistas destinando 19,78% do PIB a pensons . Ano

2013

2060

1.029.279

1.978.413

46,6

46,1

8,34

13,83

Populaçom < 65 anos (milhons )

38,3

32,3

Perrcentagem do PIB dedicado ao pagamento das pensons

11,8

19,78

Parte do PIB dedicada ao pagamento das pensons (milhons de euros)

121.455

391.330

Diferença A - F

907.824

1.587.083

PIB por pessoa < 65 anos (G/D) em euros

23.728

49.181

PIB (milhons de euros) Populaçom total (milhons ) Populaçom > 65 anos (milhons )

Elaboraçom própria a partir de EUROPEAN COMMISSION 2015, Op. Cit.

O gasto em pensons ascenderia a quase 20 pontos percentuais do PIB (19,78%) e o PIB por pessoa disponível para as menores de 65 anos continuaria a ser mais do dobro do atual garantindo umha vida próspera para a totalidade da populaçom sem que o gasto em pensons de reforma supugesse umha carga insuportável. Quero agora fazer duas precisons. Primeira, as prediçons da CE para mais de 40 anos nom tenhem valor científico nengum. É impossível prever como evoluirám a demografia, como atuarám fatores como a taxa de natalidade, a imigraçom e a emigraçom. Por outro lado se as previsons de crescimento do PIB se enganarem para os próximos um ou dous anos, que credibilidade tenhem as feitas para várias décadas? Pois tanto a sociedade como a economia som sistemas complexos, onde intervenhem agentes com interesses enfrentados, com capacidade de decisom, que aprendem dos acontecimentos passados e em consequência som sistemas estocásticos de evoluçom nom verdadeira. Segunda precisom, a CE predi um crescimento 64

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

médio do PIB de 1,4 por cento anual. Assume deste modo a possibilidade dum crescimento ilimitado da produçom e o consumo. Porém, a produçom e o consumo som processos físicos de extraçom, processamento e consumo de recursos naturais limitados e que tenhem como conseqüência a emissom de volumes crescentes de substáncias poluentes que o meio natural já nom pode absorver. A manifestaçom mais dramática desta limitaçom é a mudança climática e o aumento da temperatura do planeta Terra. O objetivo do crescimento indefinido do PIB deve ser pois substituído polo do desenho dum sistema económico capaz de satisfazer as necessidades de todos os seres humanos reduzindo o impacto da atividade de produçom e consumo sobre o meio natural. Entom, se nom acredito na fiabilidade das previsons da CE, porque parto na minha análise dos seus dados? Para demonstrar o carácter ideológico das suas propostas. A CE ama a desigualdade e a pobreza entre as pessoas idosas. A CE quer que umha sociedade futura mais rica produza idosas pobres. Tendo em conta que a CE defende a moderaçom salarial perpétua devemos perguntar-nos quem considera que deve apropriar-se da riqueza crescente? A CE propom-nos umha sociedade cada vez mais desigual em que a riqueza se concentra em menos maos. As prediçons periódicas e interesseiras sobre a inviabilidade dos sistemas públicos de pensons, saúde e educaçom fam parte dumha guerra prolongada para privatizar aqueles elementos da vida social que as luitas seculares das classes trabalhadoras conseguiram deixar à margem do capital e do mercado.

A BATALHA POLAS PENSONS (1981-2016) Quadro I. A batalha polas pensons (1981-2016): umha cronologia 1981: privatizaçom do sistema de pensons no Chile

1994: publicaçom de Averting the Old Age Crise, BM

Metade dos 90: relatórios prognosticando a falência da SS em 2000, La Caixa, Fedea, BBV

2006: Rodrigo Rato promove as pensons de capitalizaçom desde o FMI 2009: intervençom do governador do BE no Parlamento Espanhol 2010: relatório de INVERCO

2011: reforma promovida polo governo de Rodríguez Zapatero junho 2017 / KALLAIKIA

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

2012: relatório da CE, Ageeing 2012

2013: reforma promovida polo governo de Mariano Rajói 2015: relatório da CE, Ageeing 2015

Os alertas sobre a inviabilidade dos sistemas de pensons públicas e a necessidade de fomentar os planos privados de capitalizaçom fam parte dumha guerra prolongada pola privatizaçom do comum e social. Podemos balizar esta ofensiva privatizadora de quase quatro décadas: em 1981 o governo de Augusto Pinochet decidiu a privatizaçom do sistemas de pensons públicas para estabelecer o único sistema totalmente privado do mundo; nom totalmente privado, já que os polícias e os militares continuárom a tributar no anterior sistema de repartiçom. O novo sistema fracassou estrepitosamente e em 2008 o Governo presidido por Michelle Bachelet reinstaurou umha pensom pública solidária que protegerá 60% da populaçom de menores rendimentos. Em 1994 o Banco Mundial (BM) publicou o relatório Averting the Old Age Crise, Policies to Protect the Old and Promote Growth15 (Evitando a crise do envelhecimento, políticas para proteger a velhice e promover o crescimento), que se considera o início do debate sobre a viabilidade dos sistemas de pensons. O BM propunha reduzir o sistema de pensons públicas, “deveria ser modesto para permitir o desenvolvimento dos outros alicerces”, para deixar espaço ao desenvolvimento das pensons de capitalizaçom, com o objetivo de aumentar a acumulaçom do capital e o crescimento dos mercados financeiros: “A capitalizaçom total aumentaria a acumulaçom de capital e o desenvolvimento dos mercados financeiros”. As propostas do BM inspirarám os sucessivos ataques aos sistemas de pensons públicos nas décadas posteriores e até hoje mesmo. Em meados dos anos 90 redigírom-se relatórios de FEDEA, o Serviço de Estudos do BBV e La Caixa prognosticando a falência do sistema de pensons públicas no ano 2000. Os três relatórios enganárom-se clamorosamente. Como vimos na epígrafe I o sistema gerou superávits durante umha década. Em 2006 Rodrigo Rato desde a sua privilegiada posiçom de diretor-gerente do FMI recomendou, num relatório da instituiçom, a privatizaçom parcial da súde e as pensons no Reino de Espanha, 15 WORLD BANK, Averting the Old Age Crise, Policies to Protect the Old and Promote Growth, Oxford University Press, Oxford,1994.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

“umha expansom mais ambiciosa das pensons privadas”16. Em abril de 2009 foi o governador do Banco de Espanha, Miguel Ángel Fernández Ordóñez, quem, num comparecimento no Congresso dos Deputados, propujo atrasar a idade legal de reforma, alargar o número de anos que se utilizam para calcular a base reguladora da pensom, reduzir a taxa de substituiçom das pensons a respeito do salário, vincular a pensom à esperança de vida e sugeriu completar a pensom pública com sistemas de capitalizaçom recolhendo assim umha das recomendaçons centrais do BM em 1994. No ano seguinte saiu à palestra o patronato dos fundos de pensons, INVERCO, a quem agradecemos a clareza dos seus argumentos17: 1) as pensons públicas tenhem de reduzir-se para deixar espaço aos fundos privados, a extensom destes formatos de previsom depende fundamentalmente do espaço que as pensons públicas deixarem... ali onde as pensons públicas substituem percentagens elevadas do salário prévio à reforma, as pensons privadas som mais reduzidas... O contrário acontece em países em que as pensons públicas tenhem um carácter de prestaçons universais reduzidas e as pensons privadas tomam o protagonismo na reposiçom de rendas salariais após a reforma, 2) as entidades financeiras vendem fundos de pensons porque os seus ingressos noutras áreas de negócio diminuem, E é que num contexto de margens interbancárias cada vez mais reduzidas, as entidades de crédito procurárom novas vias para obterem ingressos, e umha das mais importantes som as comissons procedentes de planos de pensons, 3) as pensons privadas transferem todo o risco às trabalhadoras e trabalhadores, Os capitais acumulados pertencem às trabalhadoras partícipes nos diferentes planos de pensons e todo o risco do esquema fica plenamente assumido dentro do mesmo polos partícipes, 16 IMF Country Report No. 06/211, junho de 2006.

17 FUNDACIÓN INVERCO, El impacto de la crisis económica y financiera en la inversión colectiva y en el ahorro-previsión, Imprenta Modelo, Madrid, 2010. junho 2017 / KALLAIKIA

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e 4) os gastos de gestom das pensons privadas som quase 4 vezes mais altos do que os das pensons públicas (13,13% dos ingressos face a 3,35% do sistema público)18. As reformas aprovadas polos governos de Rodríguez Zapatero em 2011 e Rajói Brei em 2013 (v. epígrafe III) e as propostas da CE em 2012 e 2015 (v. epígrafe IV) som outras boias no roteiro da reduçom das pensons públicas e promoçom dos fundos de capitalizaçom geridos polas instituiçons financeiras privadas. Umha guerra prolongada para abrir ao capital um novo espaço de valorizaçom.

VI FATORES QUE INFLUEM NA VIABILIDADE DOS SISTEMAS DE PENSONS Os alarmes sobre as dificuldades do sistema público de pensons acompanham-se sempre de recomendaçons de criaçom e ampliaçom de fundos privados de capitalizaçom. Porque a verdadeira escolha é: pensons públicas de repartiçom ou pensons privadas de capitalizaçom? Seguro coletivo que garante um alto nível de cobertura e igualdade ou sistemas privados que permitem alargar os mercados de capitais e os benefícios privados? Robin Blackburn descreveu com detalhe o Estado de bem-estar dividido que produzem os sistemas anglo-saxons em que a saúde e a educaçom privadas e os fundos de pensons de capitalizaçom jogam um papel muito importante19. A revoluçom neoliberal desprega desde os anos 8020. Um dos seus objetivos principais é privatizar a provisom de serviços e prestaçons sociais públicas, o Estado de bem-estar ou Welfare para o mundo anglo-saxom. Entre os primeiros, principalmente a ssaúde e a educaçom. Entre as segundas, a prestaçom por desemprego e as pensons para a velhice. A privatizaçom fai parte do projeto de reduçom do Estado, que na utopia neoliberal deveria ficar limitado à gestom da lei e a ordem, abandonando a intervençom na economia e a provisom de serviços públicos. A privatizaçom abre espaços para a valorizaçom do capital que no período fordista lhe estivera vedado; os sistemas de sanidade e educaçom públicos impedem que o capital privado invista nesses sectores e priva-o dos 18 FUNDACIÓN INVERCO 2010, Op. Cit., p. 236.

19 BLACKBURN, Robin, Age Shock. How Finance is Failing Us, Verso, Londres, 2006.

20 PÉREZ DAVILA, Xabier, Alén da Casta. Un ensaio sobre o poder e as clases sociais no século XXI, Edicións Laiovento, 2016. V. capítulo 8.1.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

benefícios que poderia obter. O sistema de pensons é um objetivo central da ofensiva privatizadora. A razom é a sua importáncia por ser o maior gasto do sistema de proteçom social. As quotizaçons sociais em 2015 superárom os 100 mil milhons de euros, 9,35 por cento do PIB. Este dinheiro flui desde as trabalhadoras ativas às pessoas pensionistas sem que o sector financeiro poda tocá-lo. As instituiçons dirigentes do capitalismo neoliberal proponhem substituir os sistemas públicos de repartiçom por sistemas privados de capitalizaçom. A batalha polas pensons fai parte dum conflito bem mais amplo, a guerra de classes pola privatizaçom dos bens comuns, comparável à acumulaçom originária de capital nos séculos XV-XVII21. Para as pessoas defensoras da privatizaçom e da promoçom dos fundos de capitalizaçom as principais ameaças para os sistemas públicos de pensons provenhem do envelhecimento da populaçom e da reduçom futura do rácio entre pessoas que tributam e pessoas pensionistas. Porém, o incremento da produtividade do trabalho pode anular a influência desse fator. A história económica mostra enormes avanços na produtividade que permitírom aumentar o nível de consumo e, ao mesmo tempo, reduzir a jornada de trabalho. Os ganhos de produtividade fizeram com que um número mais reduzido de pessoas ocupadas produzisse mais bens e serviços. O trabalho disponível polos ganhos de produtividade deslocou-se a sectores de nova criaçom, possibilitou o aumento do consumo ou serviu para reduzir o tempo de trabalho. A evoluçom da populaçom ocupada na agricultura ilustra como um número mais reduzido de trabalhadoras pode produzir o necessário para todas as consumidoras22. Tábela VIII. Percentagem de emprego na agricultura sobre o emprego total Ano

Holanda

Reino Unido

Estados Unidos

1820

43

37

70

1998

3

2

3

Fonte: MADISSON, Angus, Op. Cit., p. 95.

21 MARX, Carlos, El Capital, Fondo de Cultura Económica, Vol. 1, México, 1978, p. 617. 22 MADDISON, Angus, La economía mundial. Una perspectiva milenaria, Ediciones Mundi-Prensa, Madrid, 2002. junho 2017 / KALLAIKIA

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A descida da populaçom ocupada na produçom de alimentos desde o começo da expansom capitalista até finais do século XX é enorme. Nos Estados Unidos, em 1820, 70 em cada 100 trabalhadoras trabalhavam na agricultura, na pesca e na silvicultura. Supondo umha taxa de atividade de 50 por cento da populaçom total, cada produtor de alimentos devia atender as necessidades de menos de 3 pessoas ( (100 / 70) x (100 / 50)). Esta distribuiçom da populaçom ativa correspondia a umha economia de pequenas produtoras agrícolas independentes que se autoabasteciam de alimentos. Cada trabalhadora agrícola devia produzir em 1998 os alimentos de mais de 66 pessoas ( (100 / 3) x (100 / 50)). Na realidade de muitas mais, porquanto os Estados Unidos som umha potência exportadora de alimentos que nom só produz alimentos suficientes para o consumo interior, senom que alimenta milhons de pessoas e animais no exterior com as suas exportaçons de cereais. Se aplicássemos a lógica que nos proponhem os prognosticadores do colapso das pensons, Holanda, Reino Unido e Estados Unidos viveriam na fame negra. Sabemos que nunca na história da humanidade a quantidade de alimentos disponíveis por pessoa foi tam grande (deixo de lado a questom da produtividade da agricultura em termos energéticos. A agricultura industrial transforma petróleo em alimentos e a sua rendibilidade medida assim é negativa. Nos países industrializados cada caloria de alimentos necessita para produzir-se e transportarse mais de 7 calorías23). Pois a relaçom relevante é produto/populaçom e nom produtoras/consumidoras ou ativos/dependentes. Nesta ideia coincidem, ainda que com matizes, organismos e autoras com posiçons muito diferentes sobre o futuro das pensons . Todo o mundo, velhas e novas, dependem do produto atual da economia para satisfazer as necessidades de consumo atuais, de modo a que todo o mundo lhe vai melhor quando a economia cresce - e tem problemas quando isso nom acontece24. Outro argumento a favor da viabilidade do sistema de Segurança Social é o incremento da produtividade com aumento dos salários e das quotizaçons sociais, possibilitando que um número menor de pessoas que tributam mantenha o mesmo número ou até um maior número de beneficiários25. 23 HEINBERG, Richard e BOMFORD, Michael, “La transición

alimentaria e agrícola”, revista Mentras Tanto, nº 117.

24 WORLD BANK 1994, Op. Cit., p. 3.

25 NAVARRO, Viçenc (director), La situación social en España, Editorial Biblioteca Nueva, S.L. Madrid, 2005, p. 39.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

Qualquer economista sabe que a capacidade de financiar qualquer sistema, privado ou público, nom depende do número de pessoas empregadas, senom da sua produçom de riqueza... a produçom agrícola atual proporciona um exemplo incontestável... quantas pessoas faziam falta para fornecer alimentos à populaçom há cinqüenta anos e quantas som suficientes agora?26 ...os problemas de sustentabilidade das finanças públicas melhorma se evolui favoravelmente o emprego e a produtividade da economia (neste último caso, só se as pensons se atualizarem, como é o caso, com a inflaçom)27. Quem defende a privatizaçom e a promoçom dos fundos de capitalizaçom esquecem, além do potencial do aumento da produtividade, outros três fatores decisivos para garantir a viabilidade nom só dos sistemas de pensons, senom da economia e a sociedade: umha redistribuiçom da renda mais igualitária, a adaptaçom da produçom aos limites físicos do território e o planeta e a limitaçom dos processos de privatizaçom e financeirizaçom da economia28.

VII QUE FAZER PARA GARANTIR AS PENSONS ATUAIS E FUTURAS? O sistema de pensons públicas necessita em curto prazo um incremento de ingressos que só pode proceder de impostos procedentes dos Orçamentos Gerais do Estado. No período 2002-2013 os ingressos públicos como percentagem do PIB no RE fôrom 7,3 pontos inferiores à média da UE-1529. Igualar o nível de rendimentosdo RE à média da UE-15 achegaria mais de 79 mil milhons de euros ao Tesouro Público que chegariam para compensar o défice do sistema de SS previsto para o ano 2016, uns 18 mil milhons 26 ETXEZARRETA, Miren, La Política Social en la UE. Consideración Especial de la Política de Pensiones, Revista de Economía Crítica, nº 6, janeiro de 2008, p. 41. 27 BANCO DE ESPAÑA, Dirección General del Servicio de Estudios, La Reforma del Sistema de Pensiones en España, 2009, p. 7.

28 PÉREZ DAVILA, Xabier, A Batalla polas pensións (1981-2013). De como a clase capitalista quere privatizar os bens comúns e de como as clases traballadoras se opoñen, Santiago de Compostela, Estaleiroeditora 2013. V. capítulos XVI-XIX. 29 Zubiri 2016, Op. Cit., p. 180.

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila

de euros, e para financiar outras políticas públicas em que existe um importante atraso a respeito dos Estados do nosso meio. Este aumento de ingressos fiscais deveria provir dumha reforma progressiva da arrecadaçom fiscal para que contribua mais quem mais tem e mais ingressa. A médio prazo é imprescindível mudar a política económica austericida injusta e ineficaz (v. epígrafe II) para promover a criaçom de emprego, aumentar os salários e especialmente os mais baixos, reduzir a desigualdade de ingressos e a desigualdade salarial e a precariedade do trabalho. O professor Zubiri propom passar dum modelo atuarial, em que os ingressos do sistema determinam os gastos, a um modelo social em que o gasto desejado determina os ingressos que se devem obter. Entre outras reformas deveriam considerar-se o aumento das quotizaçons sociais, transferir parte das quotizaçons por desemprego a pensons, subir os tipos de quotizaçom e eliminar os limites à base de quotizaçom, financiar parte das pensons com impostos e a criaçom dum Contributo para a Solidariedade sobre os patrimónios pessoais e as vendas das grandes empresas ou a emissom de dívida pública. Para enfrentar os problemas de desemprego maciço, empobrecimento, desigualdade, jornadas intermináveis que nom permitem viver, trabalho alienador e destruiçom do meio natural em que vivemos, é preciso erguer o olhar e sairmos do estreito canal de pensamento em que nos querem encerrar os economistas do sistema para refletirmos sobre a urgência e possibilidade da socializaçom de bens que deveriam ser já comuns como as finanças, a energia e os infinitos volumes de informaçom que coletivamente criamos na rede. Também sobre a necessidade de distribuir o trabalho ou criar umha renda básica universal que garanta o acesso de todas aos bens e serviços essenciais.

VIII CONCLUSONS O esgotamento do FR da SS está a ser utilizado para promover um debate sobre a viabilidade do sistema de pensons públicas. Este debate fai parte dumha campanha prolongada para reduzir as pensons públicas e abrir espaço para os fundos privados de capitalizaçom.

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Xabier Pérez Davila Sobre a viabilidade

Os prognósticos da CE demonstram que nom existem, aceitando as suas previsons, problemas para garantir as pensons públicas num horizonte de quase 50 anos. As pessoas especialistas costuman argumentar que o envelhecimento da populaçom, ao reduzir o rácio de pessoas em idade de trabalhar/pessoas idosas, fará inviável o atual sistema de repartiçom. O aumento da produtividade do trabalho, como resultado da aplicaçom do conhecimento científico e técnico à organizaçom da produçom, permitirá que menos pessoas produzam suficientes bens e serviços para a totalidade da populaçom. Nom existe um problema económico de capacidade produtiva, senom um problema de redistribuiçom da riqueza. Os verdadeiros problemas para o sistema de pensons públicas e para a viabilidade da sociedade como um todo provenhem da crescente desigualdade na distribuiçom da renda, do domínio da sociedade e da economia polo capital e as finanças e dum sistema económico incompatível a curto e médio prazo com os limites ecológicos do território e do planeta. Centrando no equilíbrio económico do sistema é necessário a curto prazo dotá-lo de ingressos procedentes dos impostos e a médio prazo dum aumento dos salários e o emprego. O domínio do capital na sua procura incessante de espaços de valorizaçom é tendencialmente incompatível com a provisom pública de bens e serviços. O debate domínio do capital/gestom socialista do comum deve voltar ao centro da cena política.

BIBLIOGRAFIA BANCO DE ESPAÑA, Dirección General del Servicio de Estudios, La Reforma del Sistema de Pensiones en España, 2009. BLACKBURN, Robin, Age Shock. How Finance is Failing Us, Verso, Londres, 2006. ETXEZARRETA, Miren, “La Política Social en la UE. Consideración Especial de la Política de Pensiones”, en Revista de Economía Crítica, nº 6, janeiro de 2008.

EUROPEAN COMMISSION, The 2012 Ageing Report. EUROPEAN COMMISSION, The 2015 Ageing Report. FUNDACIÓN INVERCO, El impacto de la crisis económica y financiera en la inversión coletiva y en el ahorro-previsión, Imprenta Modelo, Madrid, 2010.

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Sobre a viabilidade Xabier Pérez Davila HEINBERG, Richard e BOMFORD, Michael, “La transición alimentaria y agrícola”, en revista Mentras Tanto, nº 117. IMF Country Report No. 06/211, junho de 2006. MADDISON, Angus, La economía mundial. Una perspetiva milenaria, Ediciones Mundi-Prensa, Madrid, 2002. MARX, Carlos, El Capital, Fondo de Cultura Económica, Vol. 1, México, 1978. NAVARRO, Viçenc (diretor), La situación social en España, Editorial Biblioteca Nueva, S.L. Madrid, 2005. PÉREZ DAVILA, Xabier, A Batalla polas pensións (1981-2013). De como a clase capitalista quere privatizar os bens comums e de como as clases traballadoras se opoñen, Estaleiroeditora 2013. PÉREZ DAVILA, Xabier, Alén da Casta. Un ensaio sobre o poder e as clases sociais no século XXI, Edicións Laiovento, 2016. TORRENS, Lluís e GONZÁLEZ DE MOLINA SOLER, Eduardo, “La garantía del tiempo libre: desempleo, robotización y reducción de la jornada laboral (parte 1)”, pdf. WORLD BANK, Averting the Old Age Crise, Policies to Protect the Old and Promote Growth, Oxford University Press, Oxford,1994. ZUBIRI, Ignacio, “Las pensiones en España: Situación y alternativas de reforma“ en Gasto Público en España: Presente y futuro, Papeles de Economía Española nº 147, Madrid, 2016.

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Critérios para o regime de oficialidade lingüística da República da Catalunha e de Arám Daniel Escribano

Um dos múltiplos aspetos que devem ser definidos no delineamento institucional da República independente da Catalunha e de Arám é o regime jurídico de oficialidade lingüística. Como em tantos outros ámbitos, também neste predomina a indefiniçom no programa político das diversas correntes independentistas e, no respeitante a propostas constitucionais articuladas a partir da sociedade civil, o tratamento que se dá ao regime jurídico das línguas revela-se insatisfatório e escassamente coerente com a já considerável doutrina jurídico-lingüística catalá. Nestas linhas pretendemos a) deitar umha olhadela histórica às propostas jurídico-lingüísticas do constitucionalismo catalám contemporáneo, b) expor os fundamentos doutrinais do regime jurídico-lingüístico atualmente vigente na Catalunha e em Arám, e c) propor os princípios básicos que poderiam enformar o quadro jurídico-lingüístico da futura república, conforme dous critérios: estabelecer o máximo reconhecimento jurídico-político das línguas catalá e occitana e respeitar os direitos lingüísticos individuais atualmente reconhecidos. - 75 -

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Critérios para o regime Daniel Escribano

1. O regime lingüístico no constitucionalismo catalám contemporáneo O reconhecimento jurídico-político da língua catalá constitui umha reivindicaçom presente no catalanismo desde a sua mesma emergência como movimento político. Foi o próprio movimento catalanista que, durante o decénio de 1880, introduziu na linguagem política espanhola o conceito de língua oficial como expressom do programa sociolingüístico de plena restauraçom funcional da língua catalá e de impugnaçom da diglossia naquela altura existente (Escribano, 2014). Para efeitos práticos, a reivindicada oficialidade da língua catalá significava o seu uso em todos os ámbitos sociais e, em particular, nos de caráter administrativo e inscrevia-se no quadro teórico daquilo que atualmente é conhecido como princípio de territorialidade (Van Parijs, 2011: 134–137), no qual confluírom tanto o catalanismo conservador como o de sinal republicano. Na realidade, a introduçom do conceito de oficialidade no ordenamento jurídico espanhol, neste caso aplicado ao castelhano, é posterior a estas reivindicaçons e de caráter reativo, porquanto ela responde ao objetivo político de se consolidar juridicamente a obrigatoriedade do castelhano nas administraçons e instituiçons de direito público que se fora estabelecendo gradualmente desde os decretos de Nova Planta das audiências reais bourbónicas e, especialmente, com a construçom do estado liberal (Escribano, 2015; Anguera, 1997: 237–242). O primeiro documento jurídico-político que previa o caráter «oficial» da língua catalá fôrom as Bases para a Constituiçom regional catalá, aprovadas pola primeira assembleia da Unió Catalanista, realizada em Manresa (Bages) entre o 25 e o 27 de março de 1892. Assim, a base terceira estabelecia que «[l]a llengua catalana será la única que ab carácter oficial podrá usar-se á Catalunya y en las relacions d’aquesta regió ab lo Poder central». Igualmente, a Constituiçom provisória da República catalá, aprovada pola Assembleia Constituinte do separatismo catalám em Havana, realizada entre o 30 de setembro e o 2 de outubro de 1928, declarava que «[l]’única llengua oficial, a Catalunya, és la catalana» (art. 2), ao mesmo tempo que estabelecia a condiçom de «saber llegir i escriure en català» para a «possessió dels drets polítics, ésser elector i elegible, desplegar funcions i obtenir càrrecs públics» (art. 26) e para a obtençom da nacionalidade catalá (art. 8). 76

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Daniel Escribano Critérios para o regime

Durante os seus três dias de existência, o governo da República catalá constituído a 14 de abril de 1931 também elaborou um rascunho sem data sobre o regime lingüístico do projetado estado catalám da Confederaçom ibérica. Devemos o achado ao historiador Francesc Bonamusa, quem, todavia, nom proporciona o texto original, antes o resume do modo seguinte: En el text s’establia que la llengua catalana era l’oficial a tots els territoris de la República catalana i que l’espanyola seria cooficial amb la catalana en totes les relacions amb el poder federal i en totes les esferes administratives i de govern que depenguessin d’aquest. Respecte a l’ensenyament, s’exposava que la llengua espanyola s’ensenyaria a les escoles de la manera que es determinés més endavant, tot i que el Govern de la República catalana atendria els nuclis d’infants que per raó de llengua no poguessin seguir l’ensenyament general. En un afegit transitori, s’indicava que la llengua espanyola s’admetria en els serveis administratius i de justícia en totes les ocasions i circumstàncies en què l’espanyol fos necessari per no entorpir els tràmits o procediments mentre es produïa el règim de traspàs de l’espanyol al català. (Bonamusa, 2006)

Deve salientar-se a compatibilidade prevista no rascunho entre a oficialidade do catalám e o reconhecimento da plena validade do uso do castelhano nas relaçons com as administraçons e a justiça, o que sugere que o conceito de oficialidade nom se esgotava no mero reconhecimento de direitos lingüísticos individuais, como também se projetava sobre os usos lingüísticos de alcance geral das instituiçons públicas, implicando umha certa conexom entre língua oficial e língua da coletividade ou, se se preferir, «língua nacional». Também deve observar-se a localizaçom numha disposiçom transitória dos direitos lingüísticos reconhecidos respeitantes ao uso do castelhano, porquanto parece deduzir-se que se tratava de umha medida excecional, destinada a desaparecer quando a plena competência em língua catalá se estendesse ao conjunto da populaçom do Principado. Estes critérios, com algumha rebaixa a respeito do tratamento da língua catalá, enformárom o regime de oficialidade lingüística previsto no Projeto do Estatuto da Catalunha, aprovado pola Deputaçom provisória da Generalitat a 14 de julho de 1931 e avalizado em referendo masculino a 2 de agosto. Com efeito, no seu artigo quinto, o estatuinte previa que «la llengua catalana serà l’oficial a Catalunya», se bem que «en les relacions amb el junho 2017 / KALLAIKIA

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Govern de la República serà [Ø] oficial la llengua castellana» (o símbolo de conjunto vazio é aqui acrescentado), sem mencionar qualquer co-oficialidade nas relaçons entre os governos catalám e espanhol. Contodo, talvez nom fosse irrelevante a supressom do artigo determinado na referência à oficialidade do castelhano neste ámbito, que si aparecia na declaraçom da oficialidade do catalám no ámbito territorial da Catalunha. De modo que a omissom do artigo determinado na referência à oficialidade do castelhano nas relaçons entre ambos os governos porventura poderá interpretar-se no sentido de umha oficialidade nom exclusiva e, por isso, como umha via para nom barrar a passagem a um regime de dupla oficialidade neste ámbito mediante a posterior legislaçom de desenvolvimento. Neste sentido, também é significativo o facto de o próprio artigo quinto especificar que «els ciutadans de llengua materna catalana tindran el dret d’usar-la en llurs relacions amb els organismes oficials de la República a Catalunya». Polo que di respeito aos direitos lingüísticos dos cataláns hispano-falantes, o artigo reconhecia o seu direito a «servir-se’n [do castelhano] personalment davant els tribunals de justícia i davant els òrgans de l’administració» (o itálico é aqui acrescentado), cuja concretizaçom remetia para o Estatuto interior da Catalunha. No entanto, precisamente como reaçom perante este regime jurídico-lingüístico (González Ollé, 1978), as Cortes constituintes espanholas declarárom a oficialidade do castelhano na própria lei fundamental da República (art. 4) e impugérom, no artigo segundo do Estatuto da Catalunha finalmente aprovado, a 9 de setembro de 1932, um regime de dupla oficialidade com caráter geral, com ámbitos de desoficialidade da língua catalá (relaçons com as administraçons de fora da Catalunha, sem exceçom para as comunicaçons com aquelas sediadas nos demais territórios de fala catalá; documentos públicos com efeitos fora da Catalunha, e em processos judiciários, se algumha das partes solicitava o uso do castelhano), e com umha rebaixa de facto do próprio conceito de oficialidade que impedia o uso exclusivo do catalám por parte das administraçons públicas. Precisamente com o objetivo de reconhecer algum tipo de «estatuto de proeminência» à língua catalá, o legislador catalám introduziu o conceito de língua própria («La llengua pròpia de Catalunya és la catalana») no referido Estatuto interior da Catalunha (art. 3), aprovado polo Parlamento da Catalunha a 25 de maio de 78

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1933 (Pla Boix, 2005: 207), se bem que, nem o Estatuto interior nem a legislaçom posterior deduzissem preceitos concretos fundamentados nesse conceito.

2. O quadro jurídico-lingüístico atual na Catalunha e em Arám Após a reinstauraçom da monarquia e a reforma política ulterior, o constituinte espanhol tem mantido a oficialidade obrigatória do castelhano no conjunto dos territórios do Reino (art. 3 da Constituiçom de 1978). Perante tal circunstáncia, a estratégia jurídica do legislador da Catalunha e de Arám para conferir proeminência às línguas catalá e occitana tem consistido em a) a recuperaçom do conceito de língua própria, mas agora dotando-o de amplo conteúdo jurídico, e b) na minimizaçom das implicaçons jurídicas do conceito de oficialidade, que, diferentemente do que acontecia na dogmática jurídico-lingüística do catalanismo republicano, agora se esgota na categoria de fundamento jurídico de direitos lingüísticos individuais nas relaçons da cidadania com os poderes públicos e o setor privado. Assim, o caráter de língua corporativa das administraçons públicas associado à identidade lingüística da comunidade que antes víamos como caraterística específica da oficialidade, irredutível ao simples reconhecimento de direitos lingüísticos, aqui é transposto ao conceito de propriedade lingüística. O preceito onde mais claramente se percebe o caráter de fundamento normativo deste conceito é na alínea segunda do artigo segundo da Lei do Parlamento da Catalunha 1/1998, de 7 de janeiro, de política lingüística, em virtude da qual «[e]l catalán, como lengua propia, es: a) La lengua de todas las instituciones de Cataluña, y en especial de la Administración de la Generalidad, de la Administración local, de las corporaciones públicas, de las empresas y los servicios públicos, de los medios de comunicación institucionales, de la enseñanza y de la toponimia. b) La lengua preferentemente utilizada por la Administración del Estado en Cataluña en la forma que ella misma determine, por las demás instituciones y, en general, por las empresas y entidades que ofrecen servicios al público.» Com algo menos de clareza, o mesmo preceito é recolhido em relaçom ao occitano em Arám na alínea primeira do artigo oitavo da Lei do Parlamento da Catalunha 1/2015, de 5 de fevereiro, de regime especial de Arám. Embora no enunciado nom se mencione junho 2017 / KALLAIKIA

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explicitamente a propriedade como fundamento normativo, as próprias Cortes espanholas ordenam o uso do catalám à «Generalitat, la Administración local y las demás corporaciones públicas de Cataluña, las instituciones y las empresas que dependen de las mismas y los concesionarios de sus servicios [...] en sus actuaciones internas y en la relación entre ellos», o mesmo que «en las comunicaciones y las notificaciones dirigidas a personas físicas o jurídicas residentes en Cataluña, sin perjuicio del derecho de los ciudadanos a recibirlas en castellano si lo piden», e a aplicaçom dos mesmos critérios em Arám a respeito do occitano (art. 50 da Lei orgánica 6/2006, de 19 de julho, de reforma do Estatuto de Autonomia da Catalunha). Igualmente, ainda com a referida ausência fundamentativa, o capítulo quinto da referida Lei 1/1998 do Parlamento da Catalunha contém umha interessante técnica normativa que prescreve o uso mínimo obrigatório do catalám («al menos, en catalán») em diversos ámbitos do setor privado. (Lamentavelmente, nem esta nem nengumha lei posterior tem estendido estes últimos preceitos em relaçom à língua occitana em Arám). Em síntese, o conceito de propriedade é o fundamento jurídico das disposiçons normativas que estabelecem o uso exclusivo, preferente ou mínimo obrigatório das línguas catalá e occitana, nos seus domínios históricos respetivos, por parte das corporaçons públicas e das entidades privadas na sua projeçom pública. Tal como aponta o jurista Joan Ramon Solé (Solé i Durany, 1996), o conceito de propriedade lingüística funciona, no direito lingüístico catalám, como um fator tendente à aplicaçom do princípio de territorialidade da política lingüística na Catalunha e em Arám. O vínculo doutrinal entre o conceito de propriedade e o princípio de territorialidade enuncia-se do modo mais claro na exposiçom de motivos da Lei do Parlamento das Ilhas Baleares e Pitiusas 3/1986, de 29 de abril, de normalizaçom lingüística: «La oficialidad de la lengua catalana, propia de las islas Baleares, se basa en un estatuto de territorialidad, con el propósito de mantener la primacía de cada lengua en su territorio histórico. La oficialidad del castellano, establecida por la Constitución en todo el Estado, se basa en un Estatuto personal, a fin de amparar los derechos lingüísticos de los ciudadanos, aunque su lengua no sea la propia del territorio».

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Nom obstante, a própria oficialidade do castelhano é, na realidade, de base heterónoma, tanto nas ilhas Baleares, e na Catalunha e em Arám, como no conjunto do Estado, e a projeçom também sobre estes territórios da ingente legislaçom lingüística emanada do poder central espanhol impede que poda falar-se de um regime de caráter territorial stricto sensu.

3. Critérios para o regime de oficialidade lingüística na República da Catalunha e de Arám O quadro jurídico-lingüístico existente atualmente na comunidade autónoma da Catalunha é um ponto de partida adequado para o delineamento do regime de oficialidade lingüística da República da Catalunha e de Arám. Nom obstante, a constituiçom de umha república independente levaria ao desaparecimento das causas que tenhem determinado os elementos heterónomos existentes no quadro atual, polo que seria conveniente a introduçom de algumhas mudanças materiais na normativa lingüística atualmente aplicável, assim como a redefiniçom do próprio conceito de oficialidade lingüística. A seguir, expomos os critérios básicos que deveriam estabelecer-se na própria lei fundamental da República.

3.1. Declaraçom constitucional e conceito de oficialidade Alguns setores da catalanística tenhem proposto a omissom no texto constitucional do regime de oficialidade lingüística (aa. vv., 2013). No entanto, talvez os proponentes da dita opçom nom estejam conscientes de que, enquanto o legislador catalano-aranês nom regular a questom, a legislaçom lingüística atualmente vigente, tanto autonómica como espanhola, constituirá o direito supletório aplicável, polo que a resoluçom do problema político que parece querer contornar-se é meramente aparente. De resto, a relegaçom do regime de oficialidade lingüística à legislaçom ordinária revela-se problemática, porquanto tal implica deixá-lo ao acaso das maiorias parlamentares conjunturais.

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Por todo isto, é aconselhável estabelecer na norma suprema do ordenamento jurídico o regime lingüístico e, na linha das propostas do constitucionalismo catalám contemporáneo que resenhámos sumariamente, optar por um modelo de caráter territorial em virtude do qual a língua occitana seja a língua oficial de Arám, e a catalá, a do resto do território (a Catalunha restrita), e ambas sejam idiomas oficiais nas instituiçons com jurisdiçom sobre o conjunto da República. Caso o modelo de organizaçom territorial da República fosse de caráter federal ou confederal, a Constituiçom da Catalunha e de Arám deveria limitar-se a consignar como línguas oficiais das instituiçons comuns as declaradas como tais nas constituiçons dos estados e que, nas relaçons das instituiçons federais ou confederais com as instituiçons dos estados e com a cidadania, aquelas observarám os usos lingüísticos previstos pola legislaçom dos estados. Polo que tange às constituiçons dos estados, estabeleceria-se o catalám como língua oficial na Constituiçom da Catalunha, e o occitano, na Constituiçom de Arám. Seria também nas constituiçons dos estados onde figurariam as disposiçons adicionais, transitórias, derrogatórias e finais de tema lingüístico a que nos referimos mais abaixo. No caso de Arám ficar integrado num estado de maior extensom, a constituiçom deste regularia a oficialidade lingüística de modo análogo ao proposto para a Constituiçom da Catalunha e de Arám (no caso de se optar por um modelo unitário), que poderia ser o seguinte: declararia-se na própria Constituiçom da Catalunha e de Arám o caráter de línguas oficiais do catalám e do occitano nos seus domínios respetivos, conforme o princípio de territorialidade, junto com a dupla oficialidade catalám-occitano nas instituiçons com jurisdiçom sobre o conjunto da República. Igualmente, deveria acrescentar-se umha alínea no título competencial que dispugesse como de aplicaçom obrigatória o regime lingüístico estabelecido polo Conselh Generau d’Aran, ou a instituiçom aranesa correspondente, em toda a normativa que tiver efeito em Arám, qualquer que for a Administraçom reguladora competente, e nas relaçons oficiais com as instituiçons e cidadania de Arám, quaisquer que forem a matéria de que se tratar e a Administraçom titular da competência. 82

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O contexto de soberania inerente ao processo constituinte deveria conduzir à derrogaçom de todos os preceitos lingüísticos que tenham como fundamento factos externos à vontade da cidadania da Catalunha e de Arám1, ainda quando estes tenham sido recolhidos —polo próprio princípio de hierarquia normativa— na normativa das próprias instituiçons catalano-aranesas. Por isso, deveriam ser especificamente incluídos na alínea de disposiçons derrogatórias a alínea segunda do artigo sexto da Lei Orgánica espanhola 6/2006, de 19 de julho; o artigo terceiro da Lei do Parlamento da Catalunha 1/1998, e todas as de conteúdo análogo. Igualmente, nas disposiçons finais deveria estabelecer-se umha reinterpretaçom da legislaçom supletória aplicável, em virtude da qual todos os preceitos relativos ao uso obrigatório de línguas oficiais se entenderám cumpridos com o uso do catalám e do occitano nas respetivas regions lingüísticas. Neste contexto, seria preferível recuperar o conceito de oficialidade do constitucionalismo catalám contemporáneo, conforme o qual esta nom se esgota no reconhecimento de direitos lingüísticos individuais, antes constitui o fundamento jurídico dos usos 1 E a aprovaçom em referendo por parte da cidadania da Catalunha e de Arám da Constituiçom espanhola de 1978 e das leis orgánicas de autonomia nom altera esta realidade heterónoma. Em primeiro lugar, porque se trata de leis emanadas das Cortes espanholas; em segundo lugar, porque representam a máxima concessom possível destas e tenhem como fundamento político fáctico a correlaçom de forças num contexto de transiçom desde um regime ditatorial que liquidara a autonomia catalá anterior pola força das armas e onde umha proposta como a enunciada aqui era completamente inviável politicamente, polo que nem sequer foi apresentada. Antes, polo contrário, como vimos, a estratégia da maioria de forças políticas catalás consistiu em recuperar o conceito de língua própria como via para introduzir um certo elemento de territorialidade no quadro jurídico-lingüístico. Em terceiro lugar, como vimos, quando a cidadania (masculina) catalá tivo oportunidade de se exprimir diretamente sobre um texto elaborado polas suas próprias instituiçons ficou claro quais eram as preferências tanto daquela como destas: o Projeto de Estatuto da Catalunha aprovado pola Deputaçom provisória da Generalitat a 14 de julho de 1931, que nom previa a oficialidade do castelhano com caráter geral, foi avalizado pola totalidade dos concelhos do Principado e por 99,45 % do eleitorado masculino que participou no referendo de 2 de agosto (74,72 % do censo). Neste caso, o conflito entre as instituiçons e a cidadania catalás, por um lado, e as instituiçons espanholas, por outro, tornou-se nitidamente visível com a imposiçom da dupla oficialidade polas Cortes da República, sem legitimaçom plebiscitária ulterior algumha. junho 2017 / KALLAIKIA

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lingüísticos das administraçons públicas e das entidades privadas na sua dimensom pública. Por isso, seria desnecessário o conceito sucedáneo de língua própria, cujas implicaçons se trasladariam ao de oficialidade. Também se revelaria supérflua a consignaçom de deveres cidadaos a respeito de conhecimentos lingüísticos —introduzido polo legislador espanhol de modo exclusivo e explicitamente excludente a respeito do castelhano no artigo quarto da Constituiçom de 1931—, porquanto, na dogmática proposta, a inexistência de direito a alegar a ignoráncia do idioma oficial como motivo juridicamente válido para se rejeitarem comunicaçons oficiais emitidas nele (sem prejuízo dos contextos reconhecidos polo direito lingüístico internacional)2 derivaria da oficialidade (Puig Salellas, 1983; Milian i Massana, 2007).

3.2. Direitos lingüísticos dos falantes de outros idiomas A viabilidade política de um regime de oficialidade lingüística de caráter territorial requer do reconhecimento, ao menos transitório, de direitos lingüísticos individuais para a cidadania de língua habitual castelhana e, na medida do possível, também para os falantes de outros idiomas. Já vimos que isso nom acarretaria novidade algumha a respeito das propostas jurídico-lingüísticas do catalanismo republicano e como, no aditamento transitório do rascunho do governo da República catalá e no artigo quinto do Projeto do Estatuto da Catalunha, o reconhecimento do direito ao uso do castelhano e, eventualmente, a receber correspondência neste idioma nom implicaria a sua oficialidade. A respeito da sua consignaçom constitucional, seria suficiente que a lei fundamental da República da Catalunha e de Arám anunciasse, preferentemente numha disposiçom transitória, o mandato de regular mediante legislaçom ordinária os direitos lingüísticos dos falantes de idiomas nom oficiais e declarasse de aplicaçom supletória os direitos reconhecidos nos artigos 33 da Lei Orgánica espanhola 6/2006 e quarto da Lei do Parlamento da Catalunha 1/1998, reformados na disposiçom final correspondente acrescentando-se e o espanhol após as referências às «línguas oficiais». De modo que o constituinte nom prejulgaria se os ditos direitos teriam caráter permanente ou 2 Que é a interpretaçom da doutrina do conceito de dever de conhecimento (Puig Salellas, 1986).

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perderiam vigência quando o processo de aquisiçom de competência no idioma oficial da regiom lingüística correspondente se tivesse estendido ao conjunto da cidadania.

4. Espanhol, língua oficial? A garantia de direitos lingüísticos individuais nos termos expostos adequa-se, e mesmo supera, as exigências derivadas da Convençom europeia para a salvaguarda dos direitos humanos e as liberdades fundamentais (art. 5.2, 6.3.a e e), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (14.3.a e f ) e a Convençom de direitos da criança (art. 40.2.VI). No estádio atual do direito internacional, os direitos lingüísticos reconhecidos polos tratados nom som competentes para determinarem o regime de oficialidade lingüística dos estados. De resto, a própria condiçom de línguas de máxima historicidade do catalám e do occitano nos seus domínios respetivos pode considerar-se condiçom suficiente para justificar a sua oficialidade única territorializada, sempre que o estabelecimento do dito quadro jurídico-lingüístico seja conseqüência de um processo de decisom coletiva de caráter democrático e a sua aplicaçom respeite os direitos individuais no ámbito privado. E já apontámos que a oficialidade atual do castelhano na Catalunha e em Arám nom cumpre essa condiçom. De resto, o facto de o espanhol se ter tornado na língua maioritária da populaçom da Catalunha e de Arám como argumento para o seu reconhecimento como língua oficial da República constitui umha falácia naturalista que implica legitimar as conseqüências de um processo de menorizaçom lingüística. E se o argumento para deduzir a mesma conclusom é a diversidade lingüística, encontramo-nos perante umha incongruência maior, porquanto os processos de substituiçom lingüística se caraterizam exatamente pola bilingüizaçom dos falantes da língua recessiva e pola conversom do idioma substituidor em língua maioritária no próprio domínio territorial da língua recessiva (Dressler, 1988: 1556). De modo que é precisamente do ponto de vista ecolingüístico que mais se deduz a rejeiçom do reconhecimento como língua oficial de idiomas expansivos mais além do seu domínio histórico. Por último, se se pretender legitimar a situaçom sociolingüística atual da Catalunha e de Arám argüindo os movimentos migratórios da segunda metade do século xx, terá de lembrar-se que a Carta europeia para as línguas regionais e minoritárias exclui exjunho 2017 / KALLAIKIA

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plicitamente os idiomas da populaçom imigrante da consideraçom como tais (art. 1.a.ii). De maneira que, se o caráter de língua de imigraçom nem sequer é condiçom suficiente para ser reconhecida como regional ou minoritária, ainda o é menos para servir de fundamento para o máximo reconhecimento jurídico-político que representa a oficialidade.

Bibliografia aa.vv. 2013. «País amb llengua oficial o país amb llengua?». Els Marges, 101: 7 (editorial). Anguera, Pere. 1997. El català al segle xix. De llengua del poble a llengua nacional. Empúries. Barcelona. Bonamusa, Francesc. 2006. «Presidència (1931–1939)». Em Franscesc Bonamusa (org): Generalitat de Catalunya. Obra de govern 1931–1939 [I]: 25. Generalitat de Catalunya, Secretaria de Presidència. Barcelona. Dressler, Wolfgang. 1988. «Spracherhaltung – Sprachverfall – Sprachtod». Em Ulrich Ammon, Norbert Dittmar, Klaus J. Mattheier e Peter Trudgill (org.): Sociolinguistics. An international Handbook of the Science of Language and Society. Soziolinguistik. Ein internationales Handbuch zur Wissenschaft von Sprache und Gesellschaft. De Gruyter. Nova Iorque/Berlim. Escribano, Daniel. 2014. «La introducció del concepte de llengua oficial en el llenguatge polític espanyol (1881–1928)». Treballs de Sociolingüística Catalana, 24: 341–367. Escribano, Daniel. 2015. «La introducció del concepte de llengua oficial a l’ordenament jurídic espanyol (1902–1931)». Treballs de Sociolingüística Catalana, 25: 213–229. González Ollé, Fernando. 1978. «El establecimiento del castellano como lengua oficial». Boletín de la Real Academia Española, lviii/ccxiv: 262–263. Milian i Massana, Antoni. 2007. «El règim jurídic de la llengua catalana amb

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LuĂ­s Seoane Tinta da China sobre cartolina. 1943

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Capitalismo em tempos de uberizaçom: do emprego ao trabalho Virgínia Fontes1

Somente na sociedade capitalista os seres sociais – em sua esmagadora maioria – são convertidos genericamente em trabalhadores, isto é, em seres cuja utilidade social fundamental é valorizar o valor e cuja necessidade singular insuperável é vender sua força de trabalho. Sob quaisquer condições e atravessando todas as situações: sexo, gênero, cor, religião, educação, região ou nacionalidade. Esta relação social constitui a base do capitalismo – seres sociais que não dispõem de meios para subsistir – e é sempre reproduzida ampliadamente. Ela se origina na expropriação massiva de terras camponesas a partir do século XV e nos “cercamentos parlamentares”, realizados no século XVIII na Inglaterra, que extinguiam a propriedade camponesa através de decretos2. Prossegue seu curso na atualidade expropriando camponeses, em todo o mundo, e reatualizando expropriações parlamentares. Gera, permanentemente, de um lado, a concentração da propriedade, pelo roubo de terras e de bens coletivos e, de outro, massas de trabalhadores que precisam vender força de trabalho3. 1 Historiadora. Docente na Pós-Graduação de História-UFF, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da EPSJV-Fiocruz e docente da Escola Nacional Florestan Fernandes-MST. 2 Wood, Ellen. A origem do capitalismo. Rio, Jorge Zahar, 2001, p. 91.

3 Harvey analisa o processo atual como um “novo imperialismo”, gerando uma nova etapa capitalista de ‘acumulação por espoliação’. O novo imperialismo. São

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A necessidade vital, de subsistência (que é sempre socialmente realizada, e não apenas singular), torna-se um imperativo maior, avassalador, apresentado como se fosse um “valor” máximo e urgente. Necessidade apresentada – dramaticamente - como seu contrário, como se fosse liberdade. Somente nesta mesma sociedade foi possível criticar a fundo a Economia Política que a legitima e, com Marx, compreender que em todas as sociedades até aqui, somente o trabalho produziu todas as riquezas, embora tenha assumido formas as mais diversas (cum grano salis). A atividade genérica do trabalho – o que permite ao ser social transformar a natureza com a qual compartilha a existência e, por esse mesmo processo, transformar-se profundamente - torna-se sob o capitalismo apenas “produção de riqueza” abstrata e forma de sujeição da grande maioria da população. O sociometabolismo – essa troca entre seres sociais na sua relação de transformação da natureza – profundamente diverso segundo os períodos históricos, depende das maneiras pelas quais cada sociedade se organizava na produção de sua vida material e cultural. Sob o capitalismo, envolve uma verdadeira ruptura, um “racha irreparável” dentro da sociedade capitalista no metabolismo entre a humanidade e a Terra – “um metabolismo prescrito pelas leis naturais da própria vida” – exigindo sua “restauração sistemática como uma lei reguladora da produção social”. Na industrialização da agricultura, sugeriu ele, a verdadeira natureza da “produção capitalista” foi revelada como sendo a de que “só se desenvolve minando simultaneamente as fontes originais de toda a riqueza – o solo e o trabalhador”.4 Quanto mais se expande o capitalismo, mais o trabalho assume uma dupla imagem, uma dupla e contraditória aparência, disseminada, enfatizada pela propaganda e pela atuação empresarial e estatal. A primeira é que trabalho se reduziria a emprego e a segunda seria seu caráter de superabilidade. Paulo, Ed. Loyola, 2004, p. 45. Por outro viés, considero que as expropriações são constitutivas de todas as fases do capitalismo, e se aguçaram recentemente, além de incidirem sobre novos fenômenos (águas, germinação das sementes, biologia humana, etc.). Fontes, V. O Brasil e o capital-imperialismo. 3a ed., Rio, EdUFRJ/EPSJV-Fiocruz, 2013. Disponível em: http://www.epsjv. fiocruz.br/sites/default/files/brasil_capital_imperialismo.pdf 4 Foster, John Bellamy. A ecologia da economia política de Marx. In: http:// racismoambiental.net.br/2013/05/a-ecologia-da-economia-politica-demarx-por-john-bellamy-foster-leitura-essencial/#more-103760 junho 2017 / KALLAIKIA

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Seu traço constitutivo mais forte, a capacidade criativa, se torna secundário para os que exercem a própria atividade (alienação5), e o trabalho para a grande maioria reduz-se à necessidade imperativa de homens e mulheres de garantir sua subsistência no mercado. Da atividade trabalho saltamos para a relação “emprego”, forma generalizada pelo capitalismo, na qual homens e mulheres estão totalmente disponíveis, durante a maior parte do tempo, aos seus empregadores, para realizar as tarefas (“trabalho”) que lhes forem designadas6. A base social dessa necessidade escapa ao ser singular, e o trabalho somente lhe aparece como uma vida ritmada pelo “contrato de trabalho” que assegura condições sociais de existência, através do salário. O trabalho (a atividade) é louvada e reafirmada na educação escolar, na educação profissional, nas empresas e na propaganda, onde se procura extrair uma vocação, um impulso interno a cada ser singular que o justifique e conforte na tarefa que deverá cumprir. Também é louvado como emprego, enquanto trampolim para o sucesso e valorizado positivamente expressão da própria subjetividade. Tal valoração positiva é socialmente confirmada somente se o trabalho se converte em “emprego”, em forma de venda da força de trabalho assegurada por um contrato. Desde o século XIX, enormes lutas sociais impuseram regras e limites legais ao patronato, de tal forma que contratos de trabalho associaram-se a uma grande variedade de direitos (férias, salário anual adicional, aposentadorias, licença saúde, etc.), para além de conquistas na educação e na saúde públicas, por exemplo. Evidentemente, o desemprego é a ameaça maior para essa população, privada das condições de existência. Ele continua sendo a expressão mais clara do despotismo do capital, maneira de disciplinar enormes massas de seres sociais e deriva de dois processos principais: a permanência de expropriações, produzindo mais seres necessitados de vender força de trabalho em concorrência com os “empregados” e a introdução de maquinaria e tecnologia, que dispensa força de trabalho.

5 Marx, Karl. Les manuscrits de 1844. Paris, GF Flammarion, 1996.

6 Ver o elucidativo artigo de Thompson, E. P. “Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial”. Costumbres em Común. Barcelona, Grijalbo, 1995.

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A coexistência de grandes massas de trabalhadores em espaços comuns, subordinados à mesma empresa (ao mesmo “patrão”) traz enorme tensão para o capital. Essa massa se reconhecia concretamente nos seus hábitos de vida, seus locais de moradia, na subordinação comum de um cotidiano compartilhado ao longo de anos de vida. Criava-se uma aparência de correspondência entre trabalho (a atividade criativa), emprego (a forma concreta da sujeição do tralhador ao capital) e vida. Isso era mais visível e intenso nos empregos fabris. Essa contradição intrínseca da vida capitalista (socialização dos processos produtivos oposta à concentração da propriedade dos resultados da atividade coletiva) tornava também evidente a sujeição coletiva e contribuiu para a criação de sindicatos e de partidos de extração operária. As estruturas de controle para bloquear reivindicações e rebeldias estavam ancoradas, em primeiro lugar, diretamente no próprio patronato (capatazes, controle dos poros de tempo nas funções exercidas, etc.), embora este contasse com o apoio policial (estatal) para as situações que extrapolavam os muros das empresas. E elas eram frequentes. Começamos a ver onde se lastreia a aparência de superabilidade – ou a noção de que o trabalho não seria algo de intrinsecamente significativo para o ser social e, em especial, para o capital. Essa noção tem múltiplas matrizes, que tendem a aparecer superpostas e imbricadas. Não poderemos apresentar todos as aspectos, mas vale mencionar alguns deles. Uma tendência fortíssima é o deslocamento contínuo, imposto e estimulado pelo patronato, dos custos de contenção das contradições – e lutas - dos trabalhadores para o âmbito do Estado. Frente a ameaça (real ou suposta) de revoluções dos trabalhadores – o Estado assumiu nos países centrais cescente parcela da reprodução dessa força de trabalho, através de políticas públicas de saúde, educação, moradia, saneamento, etc.7 Com a ampliação de expropriações diretas (da terra) em escala internacional, cresce a massa de trabalhadores no âmbito internacional, com efeitos mais claros a partir dos anos 1980. Na década seguinte, ainda se acrescentarão as populações expropriadas de direitos dos países anteriormente integrantes do chamado bloco socialista. Intensifica-se a concorrência entre os trabalhadores e ela será estimulada e aproveitada pelo empresariado, com expansão extrema 7 Ver Brunhoff, S. de. Estado e Capital: uma análise da política econômica. São Paulo, Forense-Universitária, 1985. junho 2017 / KALLAIKIA

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das relações capitalistas no mundo. Evidentemente, o aumento da massa de trabalhadores envolveu tanto uma redução do valor da força de trabalho, quanto do seu poder de barganha, que se exerce quase que unicamente no âmbito nacional. Os Estados capitalistas realizaram um duplo movimento: reduziram sua intervenção na reprodução da força de trabalho empregada, ampliando a contenção da massa crescente de trabalhadores desempregados, preparando-os para a subordinação direta ao capital. Isso envolve assumir de maneira mais incisiva processos educativos elaborados pelo patronato, como o empreendedorismo e, sobretudo, apoiar resolutamente o empresariado no disciplinamento de uma força de trabalho para a qual o desemprego tornouse condição normal (e não apenas mais ameaça disciplinadora). O crescimento da violência estatal é portanto um aspecto dos mais importantes, e merece estudos detalhados. O predomínio dos Estados Unidos na formatação dessas novas práticas não é desprezível. Mas não deve fazer esquecer o papel das classes dominantes dos demais países que aderiram vivamente a elas, seja por também partilharem interesses internacionais, seja pelos efeitos que consideram benéficos desse disciplinamento. Vale a pena explorar alguns elementos da relação entre trabalho e emprego. Em primeiro lugar, a profunda contradição entre o que é apresentado socialmente como “liberdade” do ser social, a sua vocação8, em contraste com sua sujeição cotidiana aos empregadores. Essa contradição é vivida no cotidiano dos empregados, tensos pelo temor do desemprego, pelo bloqueio que o emprego impõe aos inúmeros outros afazeres e possibilidades da existência (o acompanhamento dos filhos, o esporte, a cultura, o lazer, as viagens, etc.). A existência real estaria fora do emprego, mas este ocupa quase todo o tempo, introduzindo uma profunda e dolorosa fissura entre o tempo de trabalho e a vida, tema explorado por Thompson, o que anima expectativa reiterada de um mundo sem trabalho, ou sem empregos. Em segundo lugar, o resultado do processo de trabalho não faz sentido para o empregado, que integra uma espécie de grande 8 Um dos sustentáculos centrais do espírito do capitalismo, segundo Max Weber. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. SP, Pioneira, 1983.

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maquinismo coletivo, subordinado a um patronato que, em muitos casos na atualidade, sequer é visível ou incorporado em pessoas concretas (tal como os “acionistas”) e cujo objetivo geral do processo de conjunto lhe escapa. O trabalhador pode até saber que sua fábrica produz aviões ou medicamentos, mas a sua parcela de atividade está totalmente subordinada à uma estrutura abstrata, diluída numa massa de atividades conexas, em muitos casos dividida em diversos continentes. Ele não se reconhece no produto do seu trabalho, que lhe afigura como o produto “da empresa”. A desqualificação do trabalho/emprego e dos trabalhadores está ligada à sua forma social, mas os atinge singularmente. Permanentemente são postos em prática procedimentos empresariais e/ou políticos para bloquear a emergência das tensões geradas por essas contradições. Citemos alguns, como a superposição de sucessivas formações profissionais, em diferentes níveis, procurando adequar os seres sociais às necessidades específicas – e exigências – do capital, preparando -os para uma disponibilidade a mais flexível possível, frente à inflexibilidade crescente das exigências do capital: a empregabilidade. Outra política – empresarial e pública – reside na falsificação da democracia, através do estímulo (monetário ou por temor ao desemprego) à participação e ao engajamento do trabalhador, que deve vestir a camisa da empresa. Em terceiro lugar, mas extremamente relevante, figura a relação entre o trabalhador e a tecnologia. Todos sabem que a tecnologia é fruto de trabalho humano, coletivo, cristalizado em máquinas de inúmeros tipos (mecânicas, eletrônicas, digitais) e processos. Se resulta da atividade de trabalhadores, seu direcionamento provém do capital em prol de maior lucratividade. No entanto, a tecnologia costuma ser apresentada como algo “externo” à humanidade e indiferente à sua sorte. Como se, a partir da própria coisa tecnológica, se engendrassem revoluções na vida social. Ela se torna uma ameaça, brandida regularmente, como maneira específica de eliminar trabalho (isto é, emprego) na vida social, substituindo os seres concretos em funções que, doravante, serão eliminadas pelo uso de tal ou qual método ou tecnologia. A tecnologia é simultaneamente ameaça difusa de desemprego e promessa do fim do trabalho. A realização por máquinas de inúmeras tarefas é apresentada como garantia de um futuro no qual ninguém mais precisaria trabalhar (transformar a natureza), pois tudo seria produzido por tecnologias junho 2017 / KALLAIKIA

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(muito ou pouco “inteligentes”), liberando os seres sociais do trabalho, a começar pelas tarefas rudes ou repetitivas. O desemprego que a introdução capitalista de máquinas promove para intensificar a extração de valor é metamorfoseado em liberação do trabalho. A necessidade de trabalhar porém subsiste na sociedade capitalista, pois sem vender força de trabalho os seres sociais expropriados não subsistem no mercado. Entre ameaça e promessa, desaparecem as possibilidades concretas trazidas por processos de trabalho a cada dia mais socializados, como redução das jornadas sem redução salarial, por exemplo. Finalmente, outro elemento, de poderosa influência, é a própria expressão da riqueza na sociedade capitalista. Sabemos que a riqueza acumulada pelo capital é “trabalho morto”. Essa riqueza deriva da possibilidade dos proprietários de capital de extrair maisvalor de massas crescentes de trabalhadores que precisam vender sua força de trabalho. Mas ela não aparece dessa maneira: a verdade não está explícita nos supermercados ou nos bancos, menos ainda na publicidade. A riqueza aparece na forma do dinheiro, da própria coisa dinheiro, daquilo que permitiria o acesso ilimitado às todas as coisas. A riqueza – e o modelo de vida sugerido – é o ócio, mas lucrativo. Essa imagem clássica do capitalista se reforçou nas últimas décadas, na medida em que “os investidores” seriam os que fariam “render” seu dinheiro de maneira quase mágica e, em contrapartida, viveriam uma vida isenta de trabalho. Sem pretensão exaustiva, observamos como a categoria trabalho está permeada de sentidos contraditórios, positivos e negativos. Há uma tendência forte a identificar trabalho (atividade humana, sociometabólica, de transformação da natureza) com a forma “emprego”, uma das formas de subordinação do trabalho ao capital, que agora se desloca para uma subordinação ainda mais direta, como veremos. As contradições exacerbadas nas sociedades capitalistas induzem de um lado à imposição do trabalho, simultaneamente vivida enquanto atividade criativa, enquanto garantia de subsistência/direitos e enquanto sujeição e, de outro lado, promovem uma profunda rejeição do trabalho, na qual se confundem a recusa da sujeição com a dificuldade do acesso ao emprego com direitos.

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Direito ao trabalho? Nunca houve, em nenhuma sociedade capitalista, direito ao trabalho e, se havia alguma ilusão, ela foi derrotada em 1848. Há, sim, obrigação de vender força de trabalho e essa obrigação sequer precisa ser legal, pois se assenta na “natureza das coisas” para essa sociedade expropriatória. Manuais de economia chamam de “pleno-emprego” em sociedades capitalistas situações em que as taxas de desemprego estão abaixo de 5% da população! No assim chamado pleno emprego dos anos “dourados” (1945-1975) para os países centrais, os dados estavam truncados, pois não entravam na conta nem os trabalhadores sem direitos (imigrantes), que viviam nesses países, nem os camponeses de outros países que estavam sendo expropriados pelo avanço imperialista dos capitais dessas metrópoles, nem as precárias condições de trabalho que as empresas imperialistas impunham no chamado “3º Mundo”. Assistimos nas últimas décadas uma transformação extensa (mas desgraçadamente no interior das condições caracteristicamente capitalistas) das relações de emprego. Intensificam-se expropriações secundárias de diversos tipos. Vamos nos ocupar apenas da expropriação secundária dos contratos de trabalho, que atinge trabalhadores urbanos em muitos casos já secularmente expropriados dos meios de produção (terra e seus instrumentos de trabalho). Por diversas razões – internacionalização da circulação de capitais contraposto ao relativo encapsulamento dos trabalhadores em âmbitos nacionais; ampliação das expropriações primárias nas periferias, levando a uma disponibilidade crescente de trabalhadores em mercados de trabalho distantes, o que leva ao aprofundamento de tecnologias voltadas para a interconexão e o transporte – formas secundárias de subordinação de trabalhadores já existentes passaram a se disseminar e a assumir papel de destaque: os estágios (período complementar à formação educativa, em diversos níveis) e as empresas de alocação de mão de obra (terceirização genérica). Ambos forneceram um molde para a subordinação dos trabalhadores ao capital para além do emprego. A expansão do capitalismo em escala internacional é simultaneamente a produção de mais trabalhadores (expropriações), capazes de produzir mais-valor, e de desemprego. Em outras palavras, pode haver mais trabalho e menos emprego. As formas mais junho 2017 / KALLAIKIA

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conhecidas são tecnologias que dispensam trabalhadores, processos nacionais ou internacionais de deslocalização de empresas, ou ainda ataques diretos contra direitos conquistados, quando e onde porventura tenha ocorrido melhorias das condições salariais e organização de trabalhadores para assegurar limites legais à jornada e às condições de trabalho. Se a “natureza das coisas” promovida pela expansão do capital não é suficiente para ‘domar’ os trabalhadores em níveis adequados para a extração de mais-valor, as velhas formas de curto-circuitar direitos ligados ao emprego, através do uso direto da força de trabalho sem mediação de direitos são reativadas pelas próprias empresas e, em geral, posteriormente rejuvenescidas e “legalizadas” pelo Estado, apresentadas como as novas “necessidades” do crescimento. Na atualidade, explorando intensamente as contradições experimentadas pelos trabalhadores nas suas relações de emprego, está em curso um processo de subordinação direta – sem a mediação de emprego ou contrato – dos trabalhadores às mais variadas formas de capital. Multiplicaram-se as modalidades jurídicas para enquadrar tais situações, seccionando desigualmente direitos das relações concretas (efetivas) de trabalho. Assim, ao lado da permanência de empregos com contratos regulares (e direitos), multiplicam-se formas paralelas, com contratos parciais (tempo determinado, jornada parcial ou alongada), terceirizações em vários níveis (subcontratações), subordinação sem contrato (bolsistas, estagiários, etc.), pessoa jurídica (quando o trabalhador cria uma empresa cujo objetivo é vender sua força de trabalho. Ele deixa de ser pessoa física, cujo contrato previa direitos, para tornar-se uma “empresa”, para a qual não estão previstos direitos trabalhistas9. São os novos “empreendedores”. O Estado e suas agências – e a lei, os regulamentos, as prescrições – são o ponto no qual se procura apagar as determinações de classe, impondo como ‘necessárias’, ‘naturais’ ou ‘incontornáveis’ as 9 Francisco de Oliveira cunhou uma curiosa expressão, o “trabalho semformas”: “(...) entre o desemprego aberto e o trabalho sem-formas transita 60% da força de trabalho brasileira” (...) “É o mesmo mecanismo do trabalho abstrato molecular-digital que extrai valor ao operar sobre formas desorganizadas do trabalho.” Oliveira, Francisco de. Política numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento. In: Oliveira, F. e Rizek, Cibele S. (Orgs.). A era da indeterminação. SP, Boitempo Editorial, 2007, p. 34-5.

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exigências do capital frente ao restante da população. Mas o Estado não existe fora e acima das contradições de classe concretamente existentes. Ele atua ex ante apoiando e ampliando as condições de expansão para o capital, aplainando os obstáculos legais. Atua também ex post, seja na legalização das práticas empresariais que ignoram as leis de maneira massiva, quanto frente às reivindicações concretas dos trabalhadores, seja admitindo alguns freios às formas mais drásticas, introduzindo formas de amenização política das condições precárias de trabalho ou do desemprego. Qual é o ex ante que nos interessa nesse momento? A dupla configuração do capital-imperialismo contemporâneo: a da classe trabalhadora crescente e difusa nacional e internacionalmente e a da centralização e concentração dos recursos sociais de produção. Essa dupla configuração não resulta de uma opção política, como se o Estado pairasse acima das condições sociais. Ela resulta das formas concretas de expansão/contração da dinâmica capital-imperialista ao longo das últimas décadas. Mencionamos acima algumas contradições cotidianas sobre trabalho e emprego. Não é pois de estranhar que parcela dos trabalhadores sem acesso a contratos com direitos passe a rejeitar o formato emprego, ora denunciando-o como privilégio (subscrevendo o coro empresarial), ora aderindo a outros formatos que aparecem como liberação do contato direto com empregadores. Pode ser inquietante, mas tampouco é de estranhar que assumam o ponto de vista do capital, pretendendo-se empreendedores de si próprios... A escala da concentração/centralização de capitais atingiu níveis inimagináveis há poucas décadas atrás 10. A propriedade capitalista crucial contemporânea não é apenas a dos meios diretos de produção, mas a dos recursos sociais de produção. A propriedade fundamental é da capacidade de colocar em funcionamento meios de produção e de agenciar força de trabalho – sob formas as mais díspares – para que seja possível a produção de valor (e, sobretudo, de mais-valor) em escalas e âmbitos variados (local, regional, nacional, internacional). Há um salto gigantesco e uma mudança 10 Dentre inúmeras referências, ver Piketty, Le capital au XXIème siècle. Paris, Seuil, 2013 e recente relatório elaborado pela OXFAM em 2017, denunciando que 8 homens possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre do planeta, disponível em https://www.oxfam.org.br/sites/default/ files/economia_para_99-relatorio_completo.pdf junho 2017 / KALLAIKIA

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de escala difíceis de serem apreendidas como uma totalidade, contendo aspectos e sentido comuns, tamanhas as diferenças locais, o ritmos e as formas sutis ou brutais que as implementaram. Mas também não resulta de um capitalismo sem política ou sem Estado. Essa concentração é diretamente apoiada por sujeitos concretos, implementado concertadamente práticas de sujeição dos trabalhadores e elaborando políticas explícitas de adequação legal e de formação dessa classe trabalhadora.

Concentração de recursos sociais e xpropriações: a sujeição direta do trabalhador Melhor talvez do que uma longa explicação teórica seja detalharmos um exemplo sobre algo muito corriqueiro: o Uber. Seu enorme impacto já gerou um adjetivo, a “uberização das relações de trabalho” e um verbo, uberizar. Vamos nos ocupar sobretudo dessa empresa específica, mas ela não é nem original nem a única. A forma como opera atravessa diversos setores (alojamento e transporte, financiamento, produção, etc.), estimulada por processos explícitos de “incubação”, através de start-ups11, gerando várias modalidades da assim mal-chamada “economia colaborativa”12. Há um senso comum que trata delas como expressão de ‘tecnologia’, produtoras de bens ‘imateriais’, mera maquininha plataforma ‘reunindo consumidores e ofertantes de serviços’, como se fossem ‘lojas’ ou ‘esquinas’ virtuais. Fortemente influenciado por think tanks empresariais e pela propaganda disseminada na mídia proprietária, o senso comum tende a esquecer o aspecto de produção de valor (e, sobretudo de mais-valor) que representam. 11 “Muitas pessoas dizem que qualquer pequena empresa em seu período inicial pode ser considerada uma startup. Outros defendem que uma startup é uma empresa com custos de manutenção muito baixos, mas que consegue crescer rapidamente e gerar lucros cada vez maiores. Mas há uma definição mais atual, que parece satisfazer a diversos especialistas e investidores: uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza.” Definição de Yuri Gitahy publicada em revista brasileira destinada a público empresarial. In: http://exame.abril.com.br/pme/o-que-e-uma-startup/, em 03/02/2016, acesso 20/902/2017. Itálicos meus, VF. 12 Ver, por exemplo, http://compass.consumocolaborativo.com/ conferencias/, onde se pode encontrar diversas apresentações sobre empresas de “novo tipo”, “colaborativas”.

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Um dos pontos de partida pode ser localizado em atividades originadas em projetos antimercantis, estimulando iniciativas socialmente compartilhadas sem fins econômicos. A incubadoras foram a maneira pela qual o grande capital fomenta startups para expropriar tais possibilidades criadas para evitar o mercado. Um exemplo é a plataforma Linux, não proprietária, que atualmente integra celulares Android e grandes empresas de informática, outro é a web, convertida em base de controle sobre a população em escala planetária. Suas imensas possibilidades jamais se converteram em enfrentamento da dinâmica social concreta do capitalismo, que gera e reproduz mercados através de expropriação, concentração de recursos sociais e extração de mais-valor. Decerto, parte desses novos processos e técnicas nascem como inquietações frente às intensas contradições aguçadas pelo capitalismo e apontam para novas e poderosas possibilidades, mas precisam ser exploradas de maneira crítica. Não à maneira de muitos, fascinados, como se essas experiências fossem imediatamente o que dizem ser (“colaborativas”, “livres”). Ao contrário, é preciso identificar as relações reais que acolhem seu nascimento, suas formas específicas de adaptação às formas concentradas do capital, sua generalização e, por fim, as possibilidades e tensões novas que introduzem na relação entre capital e trabalho. Essas iniciativas não acabam com o trabalho, mas aceleram a transformação da relação empregatícia (com direitos) em trabalho isolado e diretamente subordinado ao capital, sem mediação contratual e desprovido de direitos. Antes como depois, o interesse central do capital prossegue sendo a extração e a captura do mais-valor. Em boa parte, tais plataformas tecnológicas resultam de atividades de trabalho (não empregatícias) realizadas gratuitamente ou quase para o grande e altamente concentrado capital: a pesquisa, prospecção e desenvolvimento de “nichos de mercado”. O termo é enganoso: nicho de mercado quer dizer descobrir uma forma de extrair mais-valor, através da utilização do trabalho humano. A ponta tecnológica do chamado empreendedorismo (realizado por trabalhadores de diversas formações, mas sem emprego) dedica-se a pesquisar possibilidades de expropriação secundária, em diversas partes do mundo, que possam converter-se em maneiras de assegurar a subsistência de tais equipes através da implantação de formas de extração de valor em grande escala. Tais prospecções, uma vez mais ou menos testadas, são oferecidas a grandes empresas, a junho 2017 / KALLAIKIA

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proprietários, a bancos ou sistemas financeiros não bancários, com expectativas de lucros formidáveis na expansão e consolidação de seus processos. Farão associações diretas com capitais altamente concentrados (empresas, bancos, fundos de investimento, etc.), pois dependem de enormes recursos sociais de produção para assegurarem a conexão entre a massa de capitais buscando valorização e a massa de trabalhadores disponíveis. O termo ‘incubadoras de empresas’ não dá conta, tão evidente é seu papel de incubação de expropriações e de valorização do valor. A maior parte dessas iniciativas morre no nascedouro. As associações entre as empresas incubadas (startups) que vingarem e o grande capital são apresentadas como financiamentos, mas o termo oculta os processos sociais subjacentes, de expropriação e de subordinação do trabalho, além dos cuidadosos acertos sobre os diversos tipos de propriedade envolvidos no processo. No caso da Uber, por exemplo, desde 2010 a empresa capta financiamentos milionários, chegando na atualidade a acordos com a Arábia Saudita (que injetou 3,5 bilhões de dólares na empresa) e com a China, que resultou em fusão com a chinesa Didi, em negócio estimado em 35 bilhões de dólares13. Alguns acreditam – ingenua ou perversamente – que qualquer garoto numa garagem poderia fazer isso, desde que fosse inteligente e esperto o suficiente para idealizar o esquema. É certo, há milhares de garotos em garagens tentando chegar a algo assim, gratuitamente. Isso significa milhares de garotos trabalhando arduamente, sem remuneração, para ‘vender’ seu projeto de assegurar sua própria subsistência e, se possível, enriquecer. Seguem algumas características da empresa Uber, relembrando que ela aqui figura apenas como um exemplo. Uber não é proprietária direta das ferramentas e meios de produção (o automóvel, o celular), mas controla ferreamente a propriedade da capacidade de agenciar, de tornar viável a junção entre meios de produção, força de trabalho e mercado consumidor, sem intermediação de um “emprego”. A empresa detém, ema cordo com 13 https://pt.insider.pro/technologies/2016-08-28/conheca-historia-dauber/ 28 de Agosto de 2016

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outras grandes empresas, a propriedade mais concentrada, que é a dos recursos sociais de produção. Trata-se de uma coligação íntima (pornográfica) entre as formas mais concentradas da propriedade, que viabilizam o controle econômico do processo na parte que lhes interessa, o controle da extração, a captura do mais-valor e sua circulação de volta à propriedade. A defesa da propriedade intelectual da criação de um processo (a conexão) se une estreitamente a investidores que, detentores de quantias de dinheiro monumentais, precisam transformá-las em capital, isto é, investi-las em processos de extração de valor. Tais investidores podem ser provenientes de setores variados: fundos de investimento de risco como Benchmark ou First Round Capital, grandes conglomerados financeiros, como Goldman Sachs ou empresas como Amazon ou Google, sem falar em acordos com operadoras de cartão de crédito, com montadoras ou empresas de aluguéis de automóveis. Somente a escala atingida pela propriedade dos recursos sociais de produção permite acoplar uma plataforma de busca a uma tecnologia móvel de cartão de crédito e a um localizador, que asseguram a estreita dependência do trabalhador, pois do cartão depende sua própria remuneração e o localizador denuncia todos os seus percursos, uma vez acionado o celular (conexão principal). E é através do cartão que serão extraídos diretamente entre 20 e 25% de toda a remuneração do trabalhador. A taxa de extração de valor é férrea, assim como o regime de trabalho. Os interesses comuns a tais grandes proprietários não se limitam aos lucros diretos do empreendimento, mas se estendem às maneiras de contornar a legislação e os impostos, implantando sofisticadas redes jurídicas internacionais e utilizando-se de paraísos fiscais14. Ademais, é fundamental contar com a livre circulação internacional do lucro, além do estabelecimento de uma defesa política comum com o empresariado dos diferentes países quanto à subordinação de trabalhadores sem direitos e, se possível, com uma intensa difusão através de educação (escolar, pública e/ou privada e não escolar) e da mídia proprietária das vantagens do empreendedorismo, aliado ao fim inelutável do “trabalho”. Isso sem falar de intrincadas imposições legais estabelecidas através de tratados 14 http://www.latribune.fr/entreprises-finance/services/transportlogistique/ou-va-l-argent-d-uber-516391.html, 23/10/2015; junho 2017 / KALLAIKIA

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internacionais, que limitam o raio de ação das lutas dos trabalhadores em cada país. Quanto aos impostos do trabalho e da própria atividade, estes serão pagos diretamente pelo trabalhador (taxas de circulação, permissões, etc.). Longe de reduzir a importância da propriedade capitalista, ao contrário, estamos diante de sua potencialização. Trata-se de expandi-la ainda mais, no mesmo compasso em que à grande massa deve restar apenas a propriedade direta de coisas somente conversíveis em capital na forma de maquinaria gratuitamente oferecida ao capital, através da intermediação de um polo conector, que ativa a extração de valor. Os proprietários dessas coisas (no caso, automóveis), são facilmente expropriáveis. O próprio desgaste dos automóveis – sem falar da saúde dos motoristas – fica inteiramente a cargo dos trabalhadores. Imaginando livrar-se desse custo, os motoristas passaram a alugar automóveis. Devem portanto pagar o aluguel a outro proprietário da ferramenta automóvel, entregando parcela do mais-valor que produzem e continuando a encaminhar ao Uber a parcela pré-fixada como valorização do valor resultante de seu trabalho. A empresa distancia-se da vida concreta e faz questão de ignorar as condições de vida dos trabalhadores, assegurando-se um custo próximo de zero para maquinaria, matéria-prima (combustíveis, reparos, renovação da frota) e da própria força de trabalho. Há uma centralização absoluta e internacional do comando sobre os trabalhadores e redução dos custos do processo de valorização do valor. Aparentemente, há apenas um aplicativo de computador a conectar motoristas e usuários. Isso é falso, pois entre eles, há um credenciamento (para os motoristas e usuários), um cartão de crédito e um rastreador do movimento do motorista, todos totalmente arbitrários e autocráticos. Somente envolvem direitos para os proprietários do capital, escassas garantias para os usuários e nenhum direito para o trabalhador, salvo o de receber parcela do que produziu. Redução de custos não quer dizer sua inexistência: a centralização a esse nível exige intensa coordenação internacional da administração e gestão, além da partilha do lucro entre os demais proprietários dos recursos sociais de produção. No site da Uber encontra-se eventualmente chamadas para o enxuto sistema interno de controle internacional15. A contraparte dessa centraliza15 https://www.uber.com/a/join?use_psh=true&exp=a-int-psh, 22/090/2016

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ção é uma enorme descentralização do processo de trabalho. Para além do credenciamento e do localizador, não há controle direto próximo aos trabalhadores: apenas a pura necessidade deve movê-los ao trabalho. Não há jornada de trabalho combinada ou obrigatória, nem limites para ela, tampouco dias de repouso remunerado. Estes se sabem trabalhadores mas não se consideram como tal, mas como prestadores de um serviço casual, mesmo se movidos pela mais dramática necessidade. De fato, eles não têm um emprego, mas uma conexão direta de entrega do mais-valor aos proprietários capazes de lhes impor um processo de produção de valor pré-estabelecido. Não são os poros do tempo livre que tais proprietários procuram obturar, como nos processos fabris, que realizam estrito controle do tempo de trabalho. Aqui, trata-se de lidar com novas escalas, ampliando o volume de valor, através de fornecedores massivos de mais-valor. Qualquer tempo disponibilizado pelo trabalhador singular é tempo de lucro. Importante lembrar que há várias definições de serviços. A mais corriqueira em manuais de economia é meramente descritiva e separa produção (fabril), comércio (os pontos) e serviços. Se as consideramos através das relações sociais que as envolvem, clarificamos sua distinção. É produção, na sociedade capitalista, tudo aquilo que está direcionado para a valorização do valor. Assim, é indiferente para um grande proprietário a atividade concreta realizada por “seus” trabalhadores, lingerie, sapatos, músicas ou programas de televisão ou de computador. Os serviços, nessa concepção, são aqueles processos de trabalho em que os trabalhadores detêm integral e diretamente o controle do processo de produção e vendem o resultado final de sua atividade. No momento em que o trabalhador, dispondo ainda ou não de alguma propriedade direta, somente pode realizar sua atividade sob o comando do capital, saímos de uma relação social de prestação de serviços para o trabalho valorizador do valor, tipicamente capitalista. O contrato – ou a exploração direta – é seu formato jurídico e não traduz as relações reais. As formas democráticas de gestão das cidades e de transporte coletivo são curto-circuitadas de maneira quase imediata, pelo ingresso de massas de automóveis buscando passageiros sem formação adequada, sem seguros, apresentando-se como uma “carona compartilhada”. junho 2017 / KALLAIKIA

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Outro aspecto digno de nota é o bloqueio jurídico e político ex ante a qualquer ingerência dos trabalhadores sobre o processo, pela própria inexistência de contrato de trabalho. O processo se apresenta como a reunião de voluntários que prestam um serviço, casualmente remunerado. Há inúmeras lutas e importantes vitórias contra esse tipo de prática e, em especial, contra a empresa Uber. Juristas em vários países denunciam o vínculo empregatício entre os motoristas e Uber, pois é a empresa quem define o modo da produção do serviço, o preço, o padrão de atendimento, a forma de pagamento e a modalidade de seu recebimento. É ainda ela quem recebe o pagamento e paga o motorista, além de centralizar o acionamento do trabalhador para sua atividade. Uber conta ainda com um sistema disciplinar que aplica penalidades aos trabalhadores que infringirem suas normas de serviço. Nada há de compartilhamento, “pois o motorista, ao ligar o aplicativo, não tem senão a opção de seguir estritamente as rígidas normas estabelecidas de forma heterônoma pelo algoritmo do aplicativo criado e gerenciado pela empresa”16. Em diferentes países e circunstâncias, há vitórias jurídicas contra a Uber – a começar pela Califórnia e Massachussets, que em 2013 enfrentaram a empresa, obrigada a pagar 100 milhões de dólares aos seus motoristas nessas cidade; além de contestações legais na Tailândia, em Milão e no Rio de Janeiro. Em 2016, a justiça britânica decidiu que não se trata de relação de autonomia entre Uber e seus motoristas, definindo-os como funcionários da empresa17. Ainda cabe recurso. Em janeiro de 2017, a Federal Trade Commission (USA) aceitou encerrar processo por pagamento menor aos motoristas do que o anunciado pela empresa, através de acordo pelo qual a empresa desembolsou 20 milhões de dólares18. Em fevereiro de 2017, a justiça do trabalho de Belo Horizonte (ca16 Vale ver o extenso e bem fundamentado argumento desenvolvido pelo professor e desembargador José Eduardo de Resende Chaves Júnior. In: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI237918,41046-Motorista+ do+Uber+podera+ser+considerado+empregado+no+Brasil , 20/04/2016. 17 http://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/19/ economia/1482164970_634000.html

18 https://www.ftc.gov/news-events/press-releases/2017/01/uber-agreespay-20-million-settle-ftc-charges-it-recruited

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pital do Estado de Minas Gerais, no Brasil), reconheceu haver vínculo empregatício entre a Uber e um de seus motoristas19. Não faltam protestos e manifestações. O volume de lutas contra Uber é significativo, especialmente dos motoristas de táxi, que já realizaram diversas greves em inúmeras grandes cidades onde se implantou a empresa. Recentemente, crescem as greve dos próprios motoristas da Uber, por melhorias salariais e redução dos custos de operação, como a que ocorreu nos Estados Unidos20, em novembro de 2016 e na França, em dezembro de 201621. Não obstante tais lutas, denúncias e algumas conquistas, e até mesmo declaração de apoio aos motoristas Uber do primeiro ministro francês Manuel Valls22, a estratégia de trabalho sem emprego e de extração direta de valor encarnada na Uber parece imbatível. A empresa continua a se expandir atingindo cifras espantosas de viagens e de negócios, tendo se associado à Didi chinesa, em acordo estimado em 35 bilhões. Para curto-circuitar as reivindicações dos motoristas – fonte fundamental do valor gerado pela empresa – uma chantagem peculiar: o desenvolvimento de tecnologia para transporte de passageiros sem motoristas. Novamente as ameaças do fim do trabalho incidem sobre os trabalhadores sem emprego, mas em atuação23.

19 In: http://exame.abril.com.br/carreira/justica-reconhece-vinculoempregaticio-entre-motorista-e-uber/ - por Camila Pati, 14/02/2017 20 https://www.tecmundo.com.br/uber/112162-motoristas-uber-entramgreve-eua-em-luta-remuneracao-melhor.htm

21 http://www.tf1.fr/tf1/auto-moto/news/pourquoi-vtc-se-mettent-grevejeudi-15-decembre-9575605.html 15/12/2016

22 http://www.leparisien.fr/elections/presidentielle/candidats-etprogrammes/valls-affiche-son-soutien-a-la-greve-des-vtc-et-appelle-ubera-les-ecouter-16-12-2016-6464754.php

23 https://pt.insider.pro/technologies/2016-08-28/conheca-historia-dauber/. A extração de valor por transporte sem motorista envolve deslocar o ponto de mira: Uber se associa com empresas automobilísticas gigantes que pretendem, assim, renovar suas frotas. O consórcio proprietários dos recursos sociais de produção passaria a compartilhar lucros derivados da exploração de operários na indústria automobilística. junho 2017 / KALLAIKIA

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Matéria do blog francês Huffington Post – associado ao grupo Le Monde – se inquieta sobre o que seria um “escravismo moderno”, mas assinala as vantagens para o Estado e para o mercado de trabalho da Uber. Uber apresenta importantes vantagens, tanto para o Estado quanto para o mercado de trabalho. (…) Uber traz soluções onde o Estado fracassou. É um criador de trabalho dinâmico que facilita o exercício de uma atividade e a inserção profissional. (…) A queda de braço [entre Uber e os motoristas] parece longe de terminar, mas várias soluções poderiam analisadas. O estatuto dos motoristas, de fato, deve ser redefinido, devendo beneficiar de um regime social de trabalhadores independentes mais protetor, se não for o caso de uma requalificação em contratos com duração indeterminada. Enfim, parece igualmente interessante imaginar a emancipação dos motoristas, pela criação de uma plataforma open-source controlada e explorada por eles próprios. 24 Observe-se que as sugestões tendem a conservar a relação de trabalho direto, sem contrato, mesmo se admite a necessidade de melhorias. O blog ecoa estudo realizado pela Consultoria The Boston Consulting Group-BCG, cujo comunicado, disponível on-line, revela-se um libelo de defesa da Uber, que já traria, em quatro anos, “benefícios para o crescimento, o emprego e a mobilidade”. O ramo de atividade VTC (veículos de transporte com chauffeur profissional), no qual a Uber é central, já representa 800 milhões de euros em 2016, ou 19% do setor de transporte particular de pessoas (taxis e VTC, avaliados em 4,2 bilhões). Ele contribui com 0,04% do PIB francês em 2016 e com 2% de seu crescimento. Na Ile de France [conurbação em torno de Paris] ele atinge 0,1% do PIB e 6% de seu crescimento. Esse ramo envolve um ecosistema de atores, em primeiro lugar os vendedores e locadores de veículos, as seguradoras, consultorias e contabilistas, e centros de formação e de exames autorizados. Estima-se que 25% do preço de uma corrida vai para os atores desse ecosistema direto, entre 150 e 250 milhões de euros em 2016. (…) [Tem] impacto positivo na criação de emprego, nas receitas fiscais e na mobilidade – 15% da criação líquida de emprego na França nos primeiros 6 meses do ano de 2016 vem do ramo VTC. Essa cifra atinge 25% na Ile de France... 25 24 Uber, le parfait esclavagiste moderne? In: http://www.huffingtonpost.fr/ arnaud-touati/greve-uber-economie/ Publicado em 10/01/2017.

25 www.bcg.fr/documents/file217182.pdf, sem data.

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O BCG também não esquece de assinalar a necessidade de ajustes para melhorar a condições dos motoristas de VTC (Uber), inclusive os taxistas. Falamos acima do bloqueio jurídico e político ex ante que protege tais iniciativas. Lastreado em estudos numéricos sobre crescimento de postos de trabalho, de ingressos de impostos e da taxa de crescimento do PIB, o avanço de relações de trabalho desprovidas de direitos entra na conta de uma certa fatalidade tecnológica, para a qual não haveria alternativas, a não ser módicas políticas de redução de danos para os trabalhadores, sem alterar sua condição. O compromisso exigido aos Estados é o de apoio à iniciativa privada, de disciplinamento da força de trabalho (de preferência com aval eleitoral) e de rentabilizar seus recursos (outra maneira de mencionar a disciplina fiscal). Os ajustes visam sobretudo a reduzir os transtornos causados pelas mobilizações de trabalhadores, taxistas ou motoristas de Uber. Aliás, boa parte das regulamentações jurídicas da Uber é deixada às administrações municipais, o que favorece o silêncio obsequioso de legislações mais abrangentes, permitindo o alastramento dessas iniciativas e provando que o procedimento do trabalho desprovido de direitos (trabalho sem emprego) figura como um dos modelos desejáveis para a relação entre o capital e os trabalhadores em escala internacional. Apenas mais um exemplo, dentre os inúmeros que podem ser encontrados na web a respeito do Uber e que mostra como tal bloqueio ex ante pode assumir formas diversas: o novo prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante do Brasil, decidiu substituir toda a frota de automóveis da prefeitura (em boa parte alugada), pela utilização do aplicativo26.

Algumas considerações A empresa Uber figura aqui apenas como exemplo, embora extremamente elucidativo. Em diferentes ramos de atividade, nas diversas modalidades de contrato, descontrato e subordinação do trabalho, por exemplo, observa-se uma mescla de formas similares. No campo brasileiro, a engorda de animais (frangos e porcos), a produção de ovos, etc., é realizada por pequenos proprietários, que devem assegurar, por seus próprios meios (em geral, através de 26 http://exame.abril.com.br/brasil/doria-manda-trocar-frota-alugadapor-app-de-transporte/, 16/02/2017 junho 2017 / KALLAIKIA

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endividamento bancário) as instalações exigidas e certificadas por grandes empresas agro-industriais. Estas, detentoras dos recursos sociais de produção, definem o processo de trabalho e o tempo máximo de sua realização (como o tempo de engorda de cada tipo de animal). Os pequenos proprietários convertem-se em elos de uma enorme cadeia produtiva, na qual realizam processos similares aos que o operário parcelar executa em grandes indústrias, arcando com os custos físicos de implantação e de manutenção do processo e sem... salário. Como alguns dos motoristas Uber, permanecem proprietários dos meios diretos de produção, mas sua atividade é subordinada diretamente ao capital sem mediação de relação empregatícia. Diferentemente dos motoristas da plataforma Uber, ainda possuem pequenos quinhões de terra. São facilmente expropriáveis, a começar pelos bancos que financiam as instalações técnicas e, a qualquer atraso, podem recuperar a propriedade. Os variados tipos de terceirização da contratação de trabalhadores (bancos, indústria automobilística, mas também têxteis, calçados, música e inúmeros outros27), objetivam claramente curtocircuitar a legislação em defesa de trabalhadores, assegurando um distanciamento crescente entre o empregador direto e o proprietários do recursos sociais de produção (a grande empresa contratante das empresas fornecedoras de força de trabalho). Os cercamentos parlamentares estão em plena atividade. Pode-se supor que o agigantamento do número de entidades sem fins lucrativos a partir da década de 1980 tenha uma relação direta com esses processos. Frente ao crescimento do desemprego e da imposição de uma concorrência aguçadíssima entre os trabalhadores, generalizou-se entre diversos setores iniciativas voltadas para mobilizar sobretudo jovens com o objetivo de minorar o sofrimentos dos mais pobres, ou mais vulneráveis. Mais uma vez, não se tratava de alterar as relações capitalistas, mas de reduzir seus efeitos deletérios. Nessas novas entidades se implantavam relações de trabalho voluntárias e, portanto, desprovidas de direitos. Pouco a pouco, parcela dessas entidades passou a substituir atividades públicas (na assistência social) e consolidavam uma atuação mercantil-filantrópica: de um lado vendiam projetos a financiadores 27 Antunes, Ricardo. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2006

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(privados e públicos), que asseguravam a manutenção das entidades e sua própria subsistência, e de outro lado se convertiam em forma de expropriação de direitos em diversos níveis. Essa prática agia no sentido da redução de políticas universais, ao defenderem intervenções pontuais, quase cirúrgicas, em situações dramáticas (fome, abrigo, algumas doenças, etc.). Em muitos países, enfrentaram forte oposição pela manutenção das políticas universais, e sua intervenção se limitou algum tempo ao âmbito da filantropia. Na medida em que as privatizações avançaram e os cercamentos parlamentares conseguiram extorquir direitos, passaram a se apresentar como as mais aptas para parcerias público-privadas, sobretudo na educação e saúde públicas. Mudavam de escala: fortemente financiadas por grandes empresários, essas entidades hoje são profissionalizadas e procuram elaborar as políticas nacionais e abocanhar parte de seu funcionamento, sobretudo na área da gestão. Entidades privadas, embora sem fins lucrativos, acedem à gestão de hospitais e de sistemas escolares públicos. O conjunto do fenômeno ainda é insuficientemente pesquisado, embora já tenhamos muitas pesquisas a respeito de Organizações Não Governamentais. Nunca ficou tão evidente que a própria forma de organização da sociedade capitalista impele à conversão generalizada da esmagadora maioria da população em massa trabalhadora fragmentária, desprovida ao máximo de direitos e de defesas frente ao grande capital e com jornadas de trabalho necessário crescentes, além do aumento do tempo de trabalho, pelo recuo das aposentadorias. Nunca ficou tão claro o papel do Estado como agenciador ex ante, apoiado em entidades empresariais, elas também “sem fins lucrativos”. Agora trata-se de disciplinar a necessidade direta, reduzindose a intermediação tradicional do despotismo fabril. O Estado deve converter-se em controlador ex post (pelo convencimento e pela violência), dessas massas de trabalhadores, assegurando sua docilidade e disponibilidade para formas de sujeição ao capital desprovidas de direitos. Tanto a rapinagem empresarial, como a escala da concentração e centralização, assim como o papel cumprido pelo Estado estão evidentes. A questão dramática é porque, nessa enorme explicitação das relações sociais, ocorre paralelamente um aparente recuo da consciência de classe e das lutas dos trabalhadores para a superação do capital? junho 2017 / KALLAIKIA

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Essas considerações, fragmentárias e insuficientes, podem contribuir para aprofundamentos ulteriores. Necessitamos de coletivos de pesquisadores, voltados para a compreensão das relações sociais concretas, ainda quando delas resulta uma infinidade de abstrações, sob as quais os processos de dominação e de extração de mais-valor procuram se ocultar. Alguns equívocos merecem ser evitados: · A confusão entre emprego (contrato/direitos) e trabalho (venda da força de trabalho), alimenta a suposição de um fim do “trabalho”, como se o capitalismo não repousasse sobre a extração de mais-valor. A chantagem imposta pelo capital encontra eco em variadas tendências teóricas; · acresce a essa confusão a suposição de que o capital “financeiro” pode reproduzir-se sem a valorização do valor propiciado pelos processos de trabalho. Esquecem-se que ele integra a concentração exacerbada da propriedade das condições sociais de produção que, ela, é a maior impulsionadora da extração de valor sob quaisquer condições. Longe de acabar com o trabalho, a atuação desse pólo concentrado reduz o emprego com contratos e direitos a alguns setores dos trabalhadores, e impulsiona firmemente a extensão de formas de sujeição direta dos trabalhadores a processos apenas aparentemente abstratos. A tecnológica “plataforma de conexão” é, de fato, uma empresa e um enorme conglomerado; · a superposição de modalidades díspares de subordinação do trabalho ao capital exacerba a fragmentação efetiva da massa de trabalhadores, seccionados entre os com-direitos, os com algum-direito, os com poucos-direitos, os quase-sem-direitos e os sem-direitos que, estimulados a defender seu lugar específico na hierarquia de direitos, dessolidariza o conjunto de maneira profunda. Outra tendência forte é a dessolidarização intergeracional: conservam-se os direitos dos mais velhos, enquanto são praticamente suprimidos os direitos dos novos ingressantes no mercado de trabalho; · Ao crescer a distância entre os proprietários dos recursos sociais de produção (ocultos sob holdings, conselhos de acionistas, plataformas digitais, entidades sem fins lucrativas, etc.) cresce a dificuldade dos trabalhadores, já segmentados, a enxergarem seu 110

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processo de sujeição – e sua atividade criativa, o trabalho - como um processo coletivo; · essa fragmentação estimula a reatualização das segmentações pré-existentes entre trabalhadores (nacionalidades, cor de pele e racismos, sexismos diversos, etc.) que, novamente de maneira confusa, é apresentada por tendências teóricas diversas como “novas tensões” ou “novos” movimentos. Aqui, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, ocorre um processo intelectual – e prático - de apagamento das classes sociais, nutrido ainda por uma mercantil-filantropia que recebe recursos das entidades capitalistas internacionais e das pontas mais concentradas do capital. Chegamos ao ponto de aceitarmos uma periodização fictícia, na qual se propõe uma espécie de “marco zero” de “novas” reivindicações na década de 1970, apagando-se as intensas lutas feministas e anti-racistas que atravessaram os séculos XIX e XX, sombreando as lutas anti-coloniais e o papel desempenhado pelos partidos comunistas, trotskystas e, até mesmo, socialistas; · há uma espécie de aceitação tácita do capitalismo como insuperável numa vasta gama de movimentos e partidos, inclusive dentre muitos que se autoproclamam de esquerda. Desse ponto de vista, ser de esquerda parece significar certa devoção para ‘minorar’ as difíceis condições de vida de alguns setores sociais. Esse tipo de atitude adota a postura da filantropia mercantilizada e banaliza a suposição do fim do trabalho e das classes sociais, supostamente substituídas pela pobreza, excluídos, vulneráveis, etc.; · rapinagem burguesa expropriando conquistas populares ancoradas no Estado, através de um hiperativismo empresarial legiferante, produzindo leis (e arbitragens privadas) destinadas a reduzir direitos da grande maioria da população, composta por trabalhadores, ao mesmo tempo em que promove sucessivas legalizações (ajustes) adequando práticas ilegais postas em ação em ampla escala pelo empresariado. A essa rapinagem se acrescenta a privatização de empresas e serviços públicos, ao lado da intensificação da captura dos recursos organizativos populares pelo grande capital: estímulo aos fundos de pensão privados e de investimento, como compensação à fragilização imposta aos sistemas públicos de previdência;

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Capitalismo em tempos Virgínia Fontes

· insegurança social crescente, pelo aumento da concorrência predatória no interior da classe trabalhadora, com estímulo legal. Ao se intensificarem políticas de Estado para conter as massas trabalhadoras, aumenta simultaneamente a violência – aberta e simbólica – contra os setores populares. Processos de militarização da vida social se disseminam. Finalmente, seria importante assinalar que essa expansão da relação direta de extração de valor resulta de e gera novas e poderosas contradições. Como mencionamos acima, boa parte de novas tecnologias nasceu em ambientes contestadores do mercado ou de algum tipo de propriedade, porém nascem dentro de relações sociais capitalistas e as reproduzem. Utilizam permanentemente linguagem com expressões contestadores, mas convivem com a naturalização do capital e com formas brutais de extração de valor. Por isso, prestam-se facilmente a interpretações idealizadas, que as tomam ao pé da letra, como se a colaboração que sugerem não estivesse emprenhada pela valorização do valor. A forma da relação social efetiva, concreta, entre os trabalhadores e os proprietários das condições sociais de produção prossegue sendo a do trabalho contra o capital e segue sendo essa a luta capaz de abrir novos horizontes históricos para a humanidade.

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Cinco cousas que sabemos serem verdadeiras. Um compêndio de factos irrefutáveis para esta nossa época tam destituída de certezas1 Conselho de Redaçom da Scientific American, Michael Shermer, Harriet Hall,Ray Pierrehumbert, Paul Offit e Seth Shostak

1. Introduçom2 As verdades científicas som sempre provisórias nalgum grau. Dantes, acreditávamos que os continentes estavam fixos sobre a superfície da Terra, e agora sabemos que se movimentam; julgávamos que o universo era estático, e agora sabemos que está a expandir-se; pensávamos que a margarina era mais saudável do que a manteiga e que a terapia de substituiçom hormonal constituía o tratamento adequado para um grande número de mulheres pós-menopáusicas, e agora sabemos mais e conhecemos melhor. 1 Traduçom realizada por Carlos Garrido de «5 Things We Know to Be True. A Compendium of Irrefutable Facts for these Fact-Starved Times», artigo publicado no número de novembro de 2016 da revista Scientific American (pág. 40–47). (N. da R.) 2 A cargo dos membros do Conselho de Redaçom da Scientific American. (N. da R.)

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No entanto, se bem que os cientistas nom saibam todo, há muitas cousas que eles si sabem. Por isso, e especialmente durante esta temporada política [eleiçons presidenciais estado-unidenses de 2016], é desencorajador verificarmos quantas pessoas —mesmo candidatos!— grotescamente rejeitam algumhas das verdades mais básicas, fundamentadas em sólidas provas, que constituem alicerces da ciência atual. Geralmente, na revista de divulgaçom Scientific American informamos sobre os avanços mais recentes da investigaçom científica e técnica, mas, agora, achamos conveniente recuarmos um bocado para analisarmos alguns factos científicos firmemente estabelecidos. Entre os cientistas honestos nom existe, no essencial, debate em volta destas verdades, que estám fundamentadas em provas verificáveis, que tenhem sido aceitadas durante decénios e que, à medida que novos indícios continuam a acumular-se, nom deixam de receber crescente confirmaçom. No entanto, os estudos psicológicos tenhem mostrado que a confrontaçom com tal cúmulo de provas pode, na prática, empedernir a atitude dos negacionistas da verdade, polo que nom esperamos que os cinco ensaios que aqui se seguem arranjem o problema. Todavia, pensamos que é o nosso dever proclamarmos que algumhas cousas som, de facto, verdadeiras, e mesmo no domínio da ciência, que se encontra em constante desenvolvimento e evoluçom.

2. Cinco ensaios sobre cinco factos científicos (que algumhas pessoas nom compreendem) 2.1. A evoluçom é a única explicaçom racional para a biodiversidade da Terra3 A 14 de janeiro de 1844, Charles Darwin escrevia umha carta ao seu amigo Joseph Hooker, a lembrar a travessia que figera em volta do mundo a bordo do Beagle, navio da marinha real británica. Depois de cinco anos passados no mar e após sete anos no lar familiar 3 A cargo de Michael Shermer, editor da revista Skeptic, colunista da Scientific American e membro da junta de governo da Chapman University (eua). O seu último livro é The Moral Arc. (N. da R.)

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a refletir sobre a origem das espécies, Darwin chegava a esta conclusom: «Por fim vejo umha réstia de luz e estou quase convicto de que as espécies —em completa oposiçom à opiniom de que partia— nom som —e isto é como confessar um assassínio!— imutáveis.»4. Como confessar um assassínio. Dramáticas palavras. Nom fai falta, porém, ser-se umha eminência —ou um naturalista inglês— para compreender por que umha teoria sobre a origem das espécies por meio da seleçom natural havia de ser tam controversa. Se as novas espécies som criadas de forma natural, e nom por via sobrenatural, que lugar fica reservado, entom, a Deus? Nom admira, portanto, que, mais de século e meio depois, os crentes de algumhas religions ainda achem essa teoria tam terrivelmente ameaçadora. Nom obstante, nos anos que entretanto decorrêrom, os cientistas tenhem encontrado tantas provas em favor dessa teoria que seria extraordinariamente surpreendente que ela nom vinhesse a revelar-se verdadeira, tam chocante como se a teoria microbiana das doenças vinhesse a desmoronar-se ou como se os astrofísicos se vissem forçados a abandonar o modelo da Grande Expansom do universo. Por que? Por causa da convergência que se regista nos indícios proporcionados por múltiplas linhas de investigaçom. Por exemplo, comparando os dados obtidos em pesquisas sobre genética de populaçons, geografia, ecologia, arqueologia, antropologia física e lingüística, os cientistas descobrírom que os aborígenes australianos estám mais estreitamente relacionados, de um ponto de vista genético, com os habitantes da Ásia meridional do que o estám com os negros africanos, o que fai sentido sob o prisma evolutivo, umha vez que a rota migratória do ser humano a partir de África primeiro o conduziu a Ásia e, depois, à Austrália. O facto de as técnicas de dataçom coincidirem nos resultados também reforça a nossa confiança na teoria da evoluçom. Por exemplo, os métodos de dataçom do uránio-chumbo, do rubídio -estrôncio e do potássio-árgon som razoavelmente concordantes na sua determinaçom da idade de rochas e de fósseis. Estas idades som 4 Original: «At last gleams of light have come, & I am almost convinced (quite contrary to opinion I started with) that species are not (it is like confessing a murder) immutable.». (N. do T.) junho 2017 / KALLAIKIA

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determinadas como estimativas, mas as margens de erro acham-se por volta de um por cento. Nom é, portanto, como se um cientista determinasse que o fóssil de um hominíneo tem 1,2 milhons de anos de antigüidade, enquanto outro especialista achasse que tem 10.000 anos. E nom é só que as dataçons concordem, como também acontece que os fósseis apresentam estádios intermédios, algo que os antievolucionistas ainda teimam em dizer que nom existe. Por exemplo, já conhecemos, polo menos, seis estádios fósseis intermediários na evoluçom dos cetáceos, e mais de umha dúzia de hominíneos fósseis, vários dos quais tenhem de ter sido antecessores do ser humano desde que os hominíneos se separárom da linhagem dos chimpanzés há seis milhons de anos. Além disso, os estratos geológicos mostram-se concordantes, ao revelarem a mesma seqüência de fósseis. Assim, as trilobites e os mamíferos encontram-se afastados entre si por muitos milhons de anos, polo que achar um eqüídeo fóssil no mesmo estrato geológico que umha trilobite —ou ainda mais drástico, um hominíneo fóssil no mesmo estrato que um dinossauro— se revelaria problemático para a teoria da evoluçom, mas tal cousa nunca tem acontecido. Por último, as estruturas vestigiais constituem sinais de história evolutiva. A serpente Pachyrhachis problematicus, do Cretácico, tinha membros posteriores de pequeno tamanho, que nom se conservam na maioria das serpentes atuais. Os cetáceos atuais conservam umha pélvis diminuta, associada a pernas posteriores nos mamíferos terrestres que fôrom os seus antepassados. Do mesmo modo, as aves que nom voam possuem asas, e, é claro, os seres humanos estamos repletos de inúteis estruturas vestigiais, sinal distintivo da nossa ascendência evolutiva, como dentes do siso, mamilos masculinos, pilosidade corporal, o apêndice vermiforme e o cóccix. Em conclusom, como numha célebre frase afirmou o grande genético e teórico da evoluçom Theodosius Dobzhansky, «nada em biologia fai sentido exceto à luz da evoluçom»5.

5 No original, «Nothing in biology makes sense except in the light of evolution.». (N. do T.)

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2.2. A homeopatia nom tem base científica6 A homeopatia é um sistema de medicina que pretende tratar a doença com doses diminutas de substáncias que numha pessoa sadia produziriam sintomas dessa doença, e baseia-se nas crenças nom científicas de umha pessoa concreta, evidentemente enganada, o médico alemám Samuel Hahnemann, quem a inventou nos inícios do decénio de 1800. Nom é só que a homeopatia nom funcione, mas também acontece que ela nom poderia funcionar, já que se revela incompatível com os nossos conhecimentos fundamentais de física, química e biologia. Oliver Wendell Holmes desacreditou-na totalmente em 1842 no seu ensaio «Homeopathy and Its Kindred Delusions» [A Homeopatia e Outros Enganos Afins], e teria-se horrorizado ao saber que algumhas pessoas ainda crem nela em 2016. Poucos utilizadores da homeopatia se dam ao trabalho de se informarem sobre o que estám a tomar ou sobre as ideias loucas que lhe subjazem. O modo mais simples de explicar a teoria homeopática é com o seguinte exemplo: se o café o mantiver acordado, o café diluído conseguirá adormecê-lo, e quanto mais diluído for, mais intenso será o seu efeito adormecedor. Assim, se o diluir até nom restar umha única molécula de café, o efeito será maximamente intenso (a água, de algumha forma, recordará-se do café que já nom está presente). Se, agora, figer pingar esta água desprovida de café sobre um comprimido de açúcar e a deixar evaporar, a recordaçom do café será transferida para o comprimido de açúcar, e o comprimido aliviará a insónia. Se algumha cousa disto figer sentido para você, deve preocupar-se. O leitor nom acreditará que alguém adquira um medicamento que nom contém qualquer substáncia ativa, mas, de facto, isso acontece. Na maior parte das farmácias dos eua está a vender-se um produto denominado Oscillococcinum, que rende, segundo as 6 A cargo de Harriet Hall, médica de família reformada que escreve sobre medicina, medicina alternativa, ciência, pseudociência e pensamento crítico. Cofundadora e coeditora do blogue Science-Based Medicine [Medicina Cientificamente Fundamentada], membro do Committee for Skeptical Inquiry [Comité para a Pesquisa Cética] e membro da junta diretiva da Society for Science-Based Medicine [Sociedade para umha Medicina Cientificamente Fundamentada]. (N. da R.) junho 2017 / KALLAIKIA

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estimativas, cerca de 15 milhons de dolares [= 14.160.000 euros] anuais, gastos por clientes que nutrem a esperança de assim aliviarem os sintomas da gripe e da constipaçom. Esse nome provém das bactérias oscilatórias que um médico francês, Joseph Roy, imaginou ver no sangue de vítimas da gripe e no fígado de patos, embora mais ninguém algumha vez as tenha visto. A embalagem do Oscillococcinum assevera que o ingrediente ativo é «Anas barbariae 200 CK HPUS», o que significa pato-do-mato7 (o seu coraçom e fígado) e que o diluírom na proporçom 1:100 e repetírom essa operaçom 200 vezes, submetendo-o a sucussom após cada diluiçom (o preparado é sacudido, mas nom remexido). Qualquer estudante de química sabe utilizar o número de Avogadro para calcular que, na 13.ª diluiçom, a probabilidade de umha única molécula de pato restar é de 50 %, e que na 200.ª diluiçom, o pato já é história (da carochinha). Os homeopatas que prescrevem tratamentos som inacreditavelmente néscios, e interrogam o paciente seguindo umha lista interminável de questons irrelevantes: De que cor som os seus olhos? De que alimentos nom gosta? De que cousas tem medo? Entom, os homeopatas consultam dous livros: o primeiro é um Repertório que consigna remédios para quaisquer sintomas possíveis (por exemplo, clarividência —si, é considerada sintoma!—, cárie dentária e «lacrimoso» [sic]); o segundo livro é umha Materia Medica que resenha os sintomas associados a cada remédio («sonhar com salteadores» é vinculado ao sal de cozinha). Com efeito, o sal de cozinha diluído, e quase qualquer outra cousa imaginável, pode constituir um remédio! Alguns dos meus favoritos: muro de Berlim, luar em eclipse, cerume de cam e pólo sul de um íman. É absurdo, mas estima-se que cinco milhons de adultos e um milhom de crianças recorram a remédios homeopáticos cada ano nos eua, na sua maior parte autoprescritos e adquiridos numha farmácia. Embora se tenham publicado estudos a afirmarem que a homeopatia funciona, a verdade é que é possível encontrar um estudo para apoiar quase qualquer cousa, e as revisons rigorosas efetuadas por cientistas de todo o corpo de investigaçons tenhem concluído, de forma constante, que a homeopatia nom funciona 7 O nome científico válido hoje deste anatídeo americano é Cairina moschata. (N. do T.)

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melhor do que os placebos. Como fam notar Edzard Ernst, professor emérito de Medicina Complementar da Universidade de Exeter (Inglaterra), e o ensaísta Simon Singh, «As provas apontam para a existência de umha indústria fraudulenta que nada oferece aos pacientes para além de fantasia.»8. A fda [agência do medicamento dos eua] permite a venda de remédios homeopáticos sob umha cláusula «de privilégio» que os isenta da necessidade de se demonstrar a sua eficácia, ainda que agora esteja a ponderar introduzir mudanças nesta regulaçom. Quem dera que exigissem um rótulo na embalagem a anunciar «Este preparado nom inclui qualquer substáncia ativa e só se destina ao entretenimento das pessoas»! A persistência da homeopatia patenteia a incapacidade de muitos cidadaos para pensarem criticamente e, de facto, algumhas pessoas tenhem recorrido à homeopatia, em vez de a fármacos, vacinas ou antipalúdicos eficazes, com resultados desastrosos. E tenhem morrido pessoas! A homeopatia era léria em 1842 e continua léria hoje. Nesta altura já devíamos sabê-lo bem!

2.3. As teorias conspiratórias sobre a alteraçom climática som ridículas9 Sempre me deixa perplexo que algumhas pessoas se tenham convencido a si próprias de que o consenso científico que constata o aquecimento planetário antropogénico é umha enorme conspiraçom para destruir o modo de vida estado-unidense, para impingir o socialismo às massas desprevenidas ou para... incorpore aqui a sua queixa favorita! Ora bem, se for umha conspiraçom, ela tem de ser verdadeiramente notável, a abranger quase dous séculos e as comunidades científicas de dúzias de países. Os alicerces dos nossos conheci8 Original: «The evidence points towards a bogus industry that offers patients nothing more than a fantasy.». (N. do T.)

9 A cargo de Ray Pierrehumbert, que rege a Cátedra Halley de Física da Universidade de Oxford (Inglaterra). (N. da R.)

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mentos sobre a temperatura planetária som lançados no decénio de 1820 com o trabalho do físico francês Joseph Fourier, que estabeleceu que a temperatura de um planeta é determinada polo balanço entre a energia recebida do Sol e a subseqüente radiaçom infravermelha emitida para o espaço. A quantificaçom da ideia fundamental de Fourier ficava a depender do desenvolvimento da teoria da radiaçom do corpo negro efetuada polo austríaco Ludwig Boltzmann em meados do decénio de 1800 e polo seu contemporáneo alemám Gustav Kirchhoff. Por sua vez, o físico de origem irlandesa John Tyndall traguera à baila, no fim do século xix, o dióxido de carbono, ao mostrar que ele captura a radiaçom infravermelha, e o químico sueco Svante Arrhenius acabou por compor todo o quadro pouco tempo depois. Posteriormente, no século xx, produzírom-se muitos avanços, que culminárom numha teoria assaz completa que incorpora a retroaçom entre o dióxido de carbono e o vapor de água, desenvolvida por Syukuro Manabe enquanto trabalhava, nos decénios de 1960 e 1970, no Laboratório Geofísico de Dinámica de Fluídos da estado-unidense National Oceanic and Atmospheric Administration. Desde entom, muitas cousas temos vindo a descobrir, mas Manabe, basicamente, deu polo truque. A nossa compreensom da ligaçom existente entre os gases de efeito de estufa e o aquecimento planetário baseia-se nos mesmos princípios que subjazem ao funcionamento dos mísseis guiados polo calor, dos satélites meteorológicos e dos telecomandos de radiaçom infravermelha. Seria precisa umha conspiraçom muito grande para poder falsificar isso todo. Ainda maior seria a conspiraçom necessária para falsificar as alteraçons sofridas polo clima da Terra que a teoria predi e que os cientistas tenhem observado, entre as quais se acham o incremento da temperatura média do planeta, a elevaçom do nível do mar, o recuo do gelo no Ártico e na Antártida, o derretimento dos glaciares, o aumento da intensidade e da duraçom das vagas de calor, etc. O conluio também teria de falsificar todos os dados respeitantes aos climas do passado geológico, que afiançam que nom existe qualquer mecanismo mágico (como nuves) que nos poda salvar dos efeitos de aquecimento derivados da açom conjunta do dióxido de carbono e do vapor de água. Tal conspiraçom teria de falsificar, ainda, as observaçons que nos mostram que está a elevar-se 120

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a temperatura das águas oceánicas superficiais, o que prova que a energia que está a aquecer a superfície do planeta nom provém dos oceanos (dado que a energia se conserva, se os oceanos estivessem a provocar o aquecimento da superfície terrestre, eles, em resposta, arrefeceriam, e, aqui, «conservar-se» nom é umha virtude pessoal, mas umha lei física!). Igualmente, eis os dados relativos aos isótopos e ao balanço de trocas do carbono, que provam que o dióxido de carbono que se está a acumular na atmosfera si provém, realmente, do desflorestamento maciço e da queima de combustíveis fósseis. Teria de falsear-se, também, a conjunçom do arrefecimento estratosférico com o aquecimento troposférico, que é caraterística da influência sobre a atmosfera do dióxido de carbono e de outros gases de efeito de estufa persistentes. E assim por diante, o que resulta numha data de cousas que seria preciso falsificar... Em comparaçom, a falsificaçom da chegada do ser humano à Lua seria canja! A ciência recompensa aqueles que conseguem tombar um dogma estabelecido (pensemos na teoria quántica frente à mecánica clássica), de modo que se revela bem eloqüente o facto de a teoria do aquecimento planetário antropogénico ter resistido a todos os desafios desde que ela surgiu na sua forma atual, no decénio de 1960. O aquecimento planetário é problemático, e nós somos os seus causadores, o que é verdade mesmo que o Donald Trump nom concorde! Na verdade, debater sobre a mesma existência desse problema nom tem cabimento num discurso sensato.

2.4. As vacinas nom causam autismo10 Há quase vinte anos que um artigo publicado na revista médica Lancet dava origem à ideia de as vacinas causarem autismo. Desde entom, mais de duas dúzias de estudos tenhem refutado tal crença, e o artigo original foi retirado da revista. Na sua maior parte, o dinheiro e o tempo dedicados a estudar a hipótese da ligaçom entre as vacinas e o autismo tenhem valido a 10 A cargo de Paul Offit, professor de Pediatria na Divisom de Doenças Infeciosas dos estado-unidenses National Institutes of Health e diretor do Vaccine Education Center [Centro para a Formaçom sobre Vacinas] do Hospital Infantil de Filadélfia (eua). (N. da R.) junho 2017 / KALLAIKIA

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pena. Em primeiro lugar, os meios da comunicaçom social já nom divulgam esta estória sob o falso pretexto do equilíbrio, e já nom falam de dous bandos, quando apenas um é apoiado pola ciência. Agora, o relato é o de umha ideia refutada proposta por um médico desacreditado. Em segundo lugar, a maior parte dos pais já nom acreditam que as vacinas causem autismo, de modo que um estudo recente mostrava que 85 % dos pais de crianças com autismo nom crem que as vacinas fossem a causa. Infelizmente, apesar do monte de indícios que refuta essa associaçom, um pequeno grupo de pais ainda crê que as vacinas poderiam provocar autismo, e o facto de nom vacinarem os filhos nom só pom em perigo essas crianças, como também compromete a «imunidade de grupo» que mantém sob controlo os surtos das doenças. Há várias razons verosímeis que explicam esse comportamento. Umha possibilidade é o facto de a causa ou causas do autismo continuarem desconhecidas, a mesma situaçom que se verificava em relaçom à diabetes no século xix, quando ninguém sabia o que a causava ou como tratá-la. Nessa altura, propugeram-se diversas causas extravagantes e curas heroicas. Entom, em 1921, Frederick Banting e Charles Best descobrírom a insulina e todas essas falsas crenças se dissipárom. Do mesmo modo, até nom surgir umha causa clara e umha cura para o autismo, a falsa hipótese das vacinas será difícil que desapareça por completo. Outra possibilidade é que a ideia de as vacinas causarem autismo se revele confortadora, sem dúvida muito mais confortadora do que esses estudos que lhe tenhem atribuído umha base genética. Se o autismo for causado por circunstáncias que se verificam fora do útero, os pais podem exercer algumha forma de controlo, mas, se o distúrbio for genético, nom há controlo possível. Por último, os pais de crianças com autismo a miúdo as vem desenvolverem-se com normalidade até cerca dos doze meses de idade. Entom, após receber umha série de vacinas, a criança nom consegue adquirir os rudimentos de expressom, linguagem, comportamento e comunicaçom que som típicos do segundo ano de vida. Na realidade, vários estudos baseados no exame de gravaçons de vídeo efetuadas durante o primeiro ano de vida tenhem mostra122

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do que estas crianças nom estavam a desenvolver-se normalmente, mas, do ponto de vista dos pais, elas si estavam. O aspeto mais encorajador da controvérsia sobre as vacinas e o autismo tem sido o facto de numerosos investigadores universitários, médicos, funcionários do sistema público da saúde e pais terem tomado a palavra na internet, nas ondas hertzianas e na imprensa para divulgarem os conhecimentos científicos que exoneram as vacinas. Como conseqüência, a maré mudou e agora ouvimos as vozes de pais que estám zangados com esses outros pais que, ao decidirem nom vacinar os filhos, ponhem em risco todas as crianças. O clamor da sociedade estado-unidense em favor das vacinas nom se fijo esperar aquando do surto de sarampo de 2015, que começou no parque temático da Disney sediado no sul da Califórnia e que chegou a afetar 189 pessoas, na sua maioria crianças, em vinte e quatro estados e em Washington. Infelizmente, nada educa melhor que o vírus, e, como sempre, som as crianças que sofrem pola nossa ignoráncia.

2.5. Nom existem indícios credíveis da visita de seres extraterrestres11 Milhons de pessoas nos eua afirmam ter sido abduzidas (raptadas) por seres extraterrestres, de acordo com um artigo publicado no Washington Post, o que, na verdade, constitui um registo impressionante para os extraterrestres. Todavia, a reaçom do governo estado-unidense tem sido tíbia, o que devemos interpretar em dous sentidos: quer as autoridades pensam que isso nom está a acontecer, quer elas fam parte do problema. Muitas pessoas acreditam no segundo e afirmam que o governo sabe que os extraterrestres estám aqui, mas mantém a informaçom oculta na Área 51 ou nalgum outro local de máximo segredo12. Mas espera aí! 11 A cargo de Seth Shostak, astrónomo-chefe do seti Institute (organizaçom estado-unidense sem fins lucrativos que estuda a natureza da vida extraterrestre) e co-apresentador de um programa semanal de rádio intitulado Big Picture Science [Ciência do Grande Quadro]. (N. da R.)

12 Extrato do artigo “Área 51” da Wikipédia-pt: «A instalação da Força Aérea dos Estados Unidos conhecida geralmente como a Área 51 é um junho 2017 / KALLAIKIA

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A menos que os extraterrestres prefiram os cidadaos estado -unidenses —e, excecionalismo à parte, por que havia de ser assim?—, a taxa de abduçons em todo o mundo nom deveria ser muito diferente da que temos nos eua. Supondo-lhes um esforço do tipo «extraterrestres sem fronteiras», dezenas de milhons de gajos em todo o mundo terám sido raptados pola raça cinzenta13. Penso que as Naçons Unidas o notariam. Penso que você o notaria. As abduçons, naturalmente, apenas representam um componente do denominado «fenómeno ovni». A maior parte dos indícios é integrada por avistamentos (relatos de testemunhas presenciais, fotografias e vídeos), e os mais desses casos podem ser explicados como se tratando de avions, foguetons, balons, planetas brilhantes ou, às vezes, fraudes. Alguns avistamentos permanecem sem explicaçom, mas tal só significa que continuam inexplicados, nom que se trate de discos voadores, com independência do grau de convicçom que puderem mostrar as pessoas que os relatam. Na prática, nom restam provas validadas cientificamente de que os extraterrestres tenham estado aqui, nem recentemente nem no passado remoto. As pirámides, as linhas de Nazca no Peru e todos os outros artefactos que tenhem sido atribuídos a astronautas da Antigüidade podem explicar-se, simplesmente, como fruto da atividade humana. De facto, poucos cientistas ou conservadores de museus científicos pensam que a hipótese de estarmos a receber a visita de extraterrestres seja mesmo verosímil. Mesmo deixando de parte os formidáveis desafios técnicos de umha viagem interestelar, pergunte a si próprio isto: por que é que eles estám aqui agora? O Homo sapiens destacamento remoto da Base Aérea de Edwards, dentro da Área de Teste e Treinamento de Nevada. De acordo com a Agência Central de Inteligência (CIA), os nomes corretos para a instalação são Aeroporto Homey (ICAO: K XTA) e Lago Groom, embora o nome “Área 51” seja usado em um documento da CIA da Guerra do Vietnã. O espaço aéreo de uso especial em torno do campo é referido como Área Restrita 4808 Norte (R-4808N). O objetivo principal atual da base é publicamente desconhecido; contudo, com base em evidências históricas, ela provavelmente apoia o desenvolvimento e teste de aeronaves experimentais e sistemas de armas (projetos negros). O intenso sigilo em torno da base a tornou tema frequente de teorias de conspiração e um componente central para o folclore que envolve objetos voadores não identificados (OVNIs).». (N. do T.) 13 No original, «the grays», suposta raça de seres extraterrestres. (N. do T.)

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só tem estado difundindo a sua presença ao universo através das ondas de rádio desde o advento da televisom e do radar, e, a menos que os extraterrestres provenham de um sistema estelar muito próximo, nom terá havido tempo suficiente para eles saberem da nossa existência e para voarem rumo à Terra. Mesmo se aqui pudessem chegar à velocidade da luz (o que eles nom poderiam fazer), teriam de viver num raio de cerca de 35 anos-luz da Terra... e nom existem tantas estrelas próximas! Além disso, as viagens espaciais a alta velocidade requerem de umha quantidade enorme de energia, e pagaria você a ciclópea fatura de um empreendimento público consistente apenas numha pequena campanha de pesca desportiva (com «captura e libertaçom») de hominíneos? Nom obstante, durante decénios, as sondagens tenhem mostrado que cerca de um terço da populaçom dos eua acredita que o nosso planeta albergue visitantes do espaço. Se, apesar da falta de indícios sólidos, você teimar em crer que isso é verdade, também terá de admitir que os extraterrestres som os melhores hóspedes que poderia ter. Nom nos matam, nom causam distúrbios, nom roubam a prata da casa. O incidente de Roswell já foi há quase setenta anos; se os extraterrestres levam vivendo entre nós desde entom, é claro que merecem medalhas por bom comportamento!

Bibliografia Clarke, David. 2015. How ufos Conquered the World: The History of a Modern Myth. Aurum Press. Climate Central. 2012. Global Weirdness. Pantheon. Coyne, Jerry A. 2009. Why Evolution is True. Viking Adult. Mnookin, Seth. 2012. The Panic Virus: The True Story behind the Vaccine-Autism Controversy. Simon & Schuster.

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LuĂ­s Seoane Tinta da China sobre cartolina. 1944

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CONTO

Cançom de embalar Henrique da Costa A Lembrança é para ti, por mulher e camarada, por mae, razom e caminho, por mártir republicana

Cantadeiras de Trasancos

Foi ao abrente, só havia três vidros de luz ferida dourando as cortinhas, e um canto de galo rachado em três tempos. «Marinheiro fusilado», Ernesto Guerra da Cal

- Colhons, soldado! Por falta de colhons é que se perde umha guerra. O oficial abaixara-lhe o cano da espingarda para o chao, afastara-o a um lado com ímpeto e desfechara um primeiro tiro de pistola, pum!, depois um segundo. Um terceiro ainda. E o de graça, o quarto, nem teria feito falta. O corpo, ensanguentado e inerte, pendurava vertical, com a cabeça a um lado, atado no poste. Ninguém fora capaz de perceber nele lágrimas mal contidas e ardentes a rolar pela sua face. Figera-se um silêncio suspenso do ámbito assim que os disparos calárom e houvo quem visse reguerinhos de umha névoa evanescente ao rás do chao. - Polotom, rematem vocês a faina. O tiro de graça há que dá -lo! -rachara com estridência o silêncio; dixera-o mal recompondo a compostura, com falsa autoridade e elevando ostentosamente o tom. junho 2017 / KALLAIKIA

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Cançom de embalar Henrique da Costa

No fosso do castelo ecoava a voz e transportava-a na distáncia. Chegava poucos metros atrás, lá onde estám o juiz e o padre, e até ao alto onde o camiom que há de levar os cadáveres. Ecoava polos cimos dos telhados e polos caminhos da vila encostada à fortaleza, mal adormecida desde há tempo em que as descargas estám a suceder com o raiar da alva. Também até à embarcaçom do pai, a sua buceta12 de pesca, chegárom as reverberaçons da tragédia. Os disparos e vozes horríssonas na manhanzinha enquanto a voga parou por uns instantes, e umha parte da alma deles, pai, esposo e filha de quem acabam de executar, fijo um abalo contrito por querer fugir do corpo; de todos quantos hoje excecionalmente vam a bordo, fora da inocente criança, Gabriel, agasalhada num xaile sobre o peitinho da meninha, de regresso para a casa na outra banda, à qual Amada mais nunca há de voltar. O dia todo, anterior ao do fusilamento, os presos do castelo de Sam Filipe tentaram umha inútil rebeliom por que nom tivesse acontecido. As entranhas do penal foram um clamor ensurdecedor de vozes, de ruídos metálicos, de comida e imundícies espalhadas polo chao. Tam-pouco os berros, enquanto a execuçom se estava a produzir, nem tinham cessado por um instante. Até houvo quem se prestou a fazer troca com a infeliz Amada, petiçons de serem fusilados em vez dela. Três mesinhos menos quatro dias, essa foi a data escolhida, o tempo com que contava o Gabriel desde que saíra do ventre de Amada Garcia no Hospital de Caridade, de ter visto a luz primeira, para logo morar naquele espaço lôbrego e insalubre que sua mae só abandonaria para ser trucidada, deitada como fardo num camiom e enterrada. Vinte e sete de janeiro de mil novecentos e trinta e oito. Após uns bons goles de bagaceira, alguns dos seus executores nem ganharam valor. Atirárom por cima das cabeças dos réus, de modo a afundirem as balas no tabuleiro de madeira diposto detrás deles para estas nom poderem ricochetear. Duas descargas dos mosquetons para acabar com a vida de sete homes. Quatro, lacrimosas, vaziadas da pistola do oficial para ceifar a de Amada Garcia. 1 Buceta: Bote pequeno de pesca a remo e à vela com a proa que pode ser quase idêntica à popa. Arredondadas no Norte e aguçadas no Sul.

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Henrique da Costa Cançom de embalar

Foram felizes os seus vinte e oito anos de vida. Nos quase dez de casada com o Gabriel, trabalhador da Mestrança do Arsenal, dera-lhe duas filhas, umha falecida a pouco de nascer, e agora o Gabrielzinho, malpocado! Agasalhado com o xaile, dorme enrodilhado no colo da irmá no frio da amanhecida navegando para a outra banda. No meio da ria tentando ela tragar os choros, os impos mal reprimidos polo medo cavado, soturno que lhe dificulta a respiraçom. Sobrevéu o silêncio com as primeiras luzes da aurora, apenas roto polo ronronar de um camiom. Os mortos já nom podem pensar, caminham silentes em rodopio enquanto a memória no-los trague. E Amada continua viva, embora nom poda pensar por si. Agora som outros quem a pensam. Lá os corpos desangrados, esburacados polo metal que junto ao dela, sete, fôrom trespassados polas armas. Ronroneia o camiom subindo as encostas pinas de Sam Filipe abrindo caminho entre o rumor choroso do ventinho mareiro dos castanheiros e pinhais que abeiram a estrada. «Irmaos, camaradas. O futuro da classe trabalhadora está nas nossas maos. Marinheiros e redeiras, lavradores e peixeiras, padeiros e costureiras, amas de leite e serradores, carpinteiros de ribeira, lavadeiras... Todos fazemos parte deste destino universal e comum na defesa da República. Nom queiramos cair nas provocaçons em que uns poucos desejam ver-nos envolvidos. Ignoremo-los com a palavra, com o nosso desprezo se figer falta. Hoje, mais que nunca, o nosso dever é sermos como um punho fechado, sem fissuras. Essa é a nossa fortaleza para tempos tam azarentos. As direitas no Parlamento, sabemo-lo, jogam ali à moderaçom, e à discórdia por comícios e ruas. Essa é a sua dupla moral. Mas sejamos firmes. Sejamos convictos em que somos capazes contanto que podamos estar organizados. Só assim ganharemos um futuro melhor. O amanhá será nosso, dos trabalhadores, pois. Avante, camaradas!». O bonito cinema Zárate enchera-se. Meio Mugardos acorrera para escuitar. Valente, Amada, aquela mulher doce, rosto angelical mas enérgica, que falava certeira aos coraçons, nem se arredou quando se viu lá ao pé de Matias Usero. O ex-padre, extremamente grande ao pé dela, de oratória contundente e requintada, incidira nas suas teimas de ser a Igreja umha verdadeira autocracia, umha sociedade prepotente, política e ultramontana, umha instituiçom superior ao Estado que, no caso de esperar conseguir algum benejunho 2017 / KALLAIKIA

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Cançom de embalar Henrique da Costa

fício, nom duvida em se aliar a toda a força retardatária e conservadora, a todo o poder despótico e fascista. Tal como era costume, o experiente tribuno fora aplaudido com arrebatamento pola concorrência. Mas Amada Garcia, umha vez lhe foi cedida a palavra, nom se arredou. Verteu aquelas suas últimas dicas com firmeza e a certeza de que a vitória havia de ser sua, deles todos, convicta nos seus princípios. O entusiasmo, aquelas sentidas ovaçons finais fôrom o colofom àquilo que acabava de ser o derradeiro dos seus comícios. Vinte e cinco de agosto de mil novecentos e trinta e seis, Matias Usero. Vinte e sete de janeiro de mil novecentos e trinta e oito, Amada Garcia. O castelo de Sam Filipe fora o seu cadafalso. - Dava-che o mundo inteiro, umha fortuna e papava-te toda, Amandita. Se tu quigesses, ai se tu quigesses, o que eu daria! - Afasta de aí, Manuel, sanguessuga repugnante, que o que eu che dava mas era umha boa purga de tanchagem. - Tés-me enfeitiçado, Amandita, sê compreensiva comigo. - Arreda de mim, lacrau nojento. Eu som mulher de um só home. O cárcere de mulheres, no convento da Companhia de Maria, acolheu-na até ao catorze de maio de mil novecentos e trinta e sete. A um arrependido, a um vizinho seu, fora-lhe impossível retirar a acusaçom. Dous padres, apiedados pola infortunada, fôrom desterrados por tentarem interceder. «Dava-che o mundo inteiro, umha fortuna e papava-te toda, Amandita. Se tu quigesses, ai se tu quigesses, o que eu daria!». Um capitám do exército recorrera até altas instáncias por ver de comutar a horrível pena, dada em 14 de maio de mil novecentos e trinta e sete. Falsos testemunhos assinados por vizinhos e conhecidos analfabetos, ameaças, coimas às testemunhas da defesa. O conselho de guerra convertera-se numha pantomima. Bordara umha bandeira comunista que guardava na casa. Assaltara um paço. Mas o capitám, o vizinho analfabeto, os padres apiedados, todos fôrom ignorados. «Dava-che o mundo inteiro, umha fortuna e papava-te toda, Amandita. Se tu quigesses, ai se tu quigesses, o que eu daria!».

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Henrique da Costa Cançom de embalar

Os mortos já nom podem pensar, caminham silentes em rodopio enquanto a memória no-los trague. E Amada continua viva, embora nom poda pensar por si. Agora som outros quem a pensam. Sua filha deixou a morada de seus avôs paternos e entrou para o convento de freiras carmelitas de Eiriz. Gabriel foi criado polos avôs maternos, pescador ele, ela redeira. O outro Gabriel, Toimil do Pico, o pai de ambos, entrou para o cárcere, preso por calúnias semelhantes às de Amada. Na parede traseira lateral do castelo do semi-baluarte leste do hornaveque, boca da ria de Ferrol, ficárom retidos os ecos dos disparos. Também os rastos do chumbo que nom queriam matar e se fôrom incrustar na pedra. Ecos que ainda se deixam sentir, no caso de afinarmos o ouvido, prestes a flutuar polas madrugadas sobre a tona das águas. Umha carta escrita a lápis, ouro em pano, fora deslizada para o marido por Amada. Os nomes dos seus delatores, os motivos, ficárom nela gravados a lume. Manuel Vasques Farinha. «Davache o mundo inteiro, umha fortuna e papava-te toda, Amandita. Se tu quigesses, ai se tu quigesses, o que eu daria!». Incitadora de massas, comunista de açom, alternava em comícios revolucionários, chamava para o cometimento das mais horríveis selvajadas, dixera ele. E pugérom-lhe um guarda à porta enquanto paria no Hospital de Caridade. Oitenta e oito dias depois, roubado o filhinho ao seu peito no último instante enquanto o embalava, tinha sido conduzida até à parede traseira lateral do castelo do semi-barluarte leste do hornaveque. Faltara valor ao soldado do polotom, tremeram-lhe as pernas a ponto do desmaio. Mas o oficial, ardente em lágrimas, desfechara três tiros e ainda o desnecessário de graça. E todo acabou. Mas houvo quem visse uns reguerinhos de umha névoa evanescente ao rás do chao. Com o raiar da aurora, vividamente diáfanos, há quem diga tê-los visto. Nessa ardora2 confusa sobre a superfície das águas calmas da ria. Pescadores de trainheiras3, botes polveiros4, de meia 2 Ardora: 1. Fosforescência do mar. 2. Arte de pesca tradicional consistente na procura da sardinha polo brilho que os cardumes fam quando vam à flor das águas. 3 Trainheira: Barco de pesca aparelhado com trainhas, isto é, grandes redes de cerco para a captura da sardinha.

4 Bote polveiro: Pequena embarcaçom tradicional dedicada à pesca do junho 2017 / KALLAIKIA

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Cançom de embalar Henrique da Costa

contruçom5 e bucetas falam de fosforescências e de um fuminho muito subtil vagamente rumoroso. Há quem fale até de faúlhas ectoplasmadas de defuntos mortos de desgraça, pois brilham de umha outra maneira, e vozezinhas que escorregam como num frufru semelhante a sedas, a um cardume brincalhom e assustadiço. Rastos, pensamentos, clamores. O certo é que os mortos já nom podem pensar, caminham silentes em rodopio enquanto a memória no-los trague. É Amada junto dos sete homens fusilados ao rente dela, mais outros muitos que antes e depois lhes seguírom. Continuam vivos embora nom podam pensar por si. E é que agora som outros quem tenhem o dever de os pensar. Mas, entretanto, ao rás das águas mansas da ria, ouve-se umha cançom de embalar.

In memoriam

Amada Garcia Rodrigues Joám Teixeira Leira José Maria Monteiro Martis Ángelo Roldós Gelpi António Heitor Caniça Ramom Rodrigues Lopes Jaime Gonçales Peres Germám Lopes Garcia

polvo. Tem quilha, proa e popa e forma arredondada na construçom. Som propulsados a remo e à vela latina.

5 [Bote de] meia construçom : Bote tradicional cuja peculiaridade é o seu perfil de casco pentagonal com poraos retos. A popa é também pentagonal e inclinada para fora.

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LuĂ­s Seoane Tinta da China sobre cartolina. 1943

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RECOMENDAÇONS Tore Janson, professor sueco de línguas africanas na Universidade de Gotemburgo até a sua reforma em 2001 e especialista na história do latim é o autor de The history of languages: An introduction (2012). O livro foi traduzido para a variedade brasileira da nossa língua polo lingüista Marcos Bagno e tirado do prelo em 2015 sob a chancela editorial da Parábola.

A história das línguas: Uma Introdução Tore Janson Parábola 2015

A História das Línguas analisa processos gerais de mudança lingüística e casos específicos de línguas, desde as mais faladas no mundo -chinês, inglês, galego-português-; a línguas desaparecidas –latim, grego clássico-; línguas minoritárias e/ou menorizadas -gaélico escocês, línguas banta africanas- e ainda casos de desdobramentos lingüísticos, de grande interesse para o público galego, como o holandês/africâner. O estudo, concebido como um manual didático para estudantes universitários de história, lingüística e línguas em geral, é estruturado num prefácio e seis partes, divididas à sua vez em capítulos, no final das quais há umha proposta de revisom de conteúdos com diferentes atividades para trabalhar em aulas. A introduçom informa de que o tema do ensaio é o papel das línguas na história e reflete sobre como o estreito vínculo entre ambas “tende a ser obscurecido pela simples razão de que a história é tratada pelos historiadores enquanto os linguistas se ocupam das línguas”. Portanto, um dos propósitos do livro é precisamente esse: “contribuir para transpor a lacuna que separa os praticantes dessas disciplinas”.

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Diego Bernal A história da língua

A primeira parte intitulada Antes da história é dividida em dous capítulos. O primeiro aborda um tema complexo, quando é que as línguas passárom a existir? Janson fornece os principais dados sobre a origem das línguas, as possíveis razons que explicam o surgimento delas e traz à tona os poucos sistemas linguísticos de sociedades coletoras-caçadoras que chegárom aos nossos dias como os dos bosquímanos no sul da África ou os dos aborígenes australianos. Polémicas tam atuais no contexto galego como a própria definiçom de língua ou o nome que recebe som aludidas aqui. O segundo capítulo expom os grandes grupos lingüísticos com exemplos concretos de línguas indo-europeias, asiáticas, africanas e americanas. A base da história é o título da segunda parte do livro. Nela explica-se o nascimento da escrita, marco que determina o fim dos tempos pré-históricos e o início dos históricos. Apresentam-se as circunstáncias históricas que tratam a apariçom da escrita na regiom dos rios Tigre e Eufrates, narra-se pormenorizadamente o caso dos hieróglifos egípcios e dos logogramas chineses e da influência histórica que o Estado chinês exerceu sobre diferentes escritas asiáticas. A terceira parte centra a atençom na expansom das línguas, fenómeno que é explicado através de três capítulos dedicados ao espalhamento do grego, latim e árabe e um último capítulo no qual os casos destas três famosas línguas som contrastados e dadas algumhas conclusons. O prestígio alcançado polo grego serve ao lingüista nórdico como desculpa para debater sobre o darwinismo lingüístico e também para introduzir o conceito de koiné ou língua padrom. Quanto ao latim, é o seu vínculo ao poder imperial que é usado como exemplo para explicar a troca e extinçom de línguas e dos seus usos como língua internacional na Europa medieval. Já o alastramento do árabe é ligado à religiom mussulmana. A queda do império árabe e a sua posterior divisom linguística em “dialetos” também merece a atençom do estudioso para reflexionar sobre a existência de umha ou várias línguas árabes. Na quarta parte, Línguas e nações, Tore Janson ocupa-se de como os diversos dialetos do latim falados na Europa se tornárom línguas através da chamada mudança metalingüística que é ilustrada através da experiência concreta das línguas italiana e francesa. junho 2017 / KALLAIKIA

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A história da língua Diego Bernal

Depois, é historicizada a língua inglesa, narraçom da qual tirámos liçons bem úteis: De ser umha língua à beira da desapariçom virou o esperanto dos dias de hoje. Um capítulo sobre a noçom de língua nacional e variados aspetos sociolingüísticos encerram esta parte com recomendáveis atividades de revisom de conteúdo, tópicos para discusom e sugestons de pesquisa para os alunos. É na quinta parte onde o ensaísta se debruça sobre o caso das línguas europeias que hoje som faladas no continente americano, isto é, fundamentalmente o inglês, o espanhol e o galego-português. Os pidgins e crioulos, o contraste entre o holandês europeu e o africano ou africáner, a curiosa duplicidade de grafias para representar o norueguês contemporâneo, a padronizaçom das línguas africanas ou as razons que explicam o abandono do gaélico escocês por parte dos seus falantes ou a diversidade lingüística mundial som outros dos pontos desenvolvidos nesta interessante parte da obra. Por último, nos primeiros capítulos da parte VI, Passado recente, presente, futuro, o estudioso sueco mostra as causas que figérom do inglês a língua ecuménica e avalia a sua situaçom atual. Logo a seguir, embrenha no chinês contemporáneo para vasculhar sobre o radical processo de simplificaçom que o isolou do chinês clássico. Finalmente profetiza sobre o futuro das línguas no planeta a curto-prazo, douscentos anos, a meio-prazo, dous mil anos e mesmo a longo-prazo, dous milhons de anos, achegando inovadoras ideias sobre a próxima língua hegemónica no mundo, o número de línguas que serám faladas e mesmo lobrigando um tempo em que nom existam mais os seres humanos e, portanto, o que hoje denominamos, com melhor e pior fortuna, língua. Leitura amena e agradável, com informaçons substanciais e cativantes fam deste volume umha leitura indispensável para qualquer professor de galego-português ou de pessoas ávidas de saber sobre a essência dessa ferramenta que nos afasta dos animais e nos humaniza, a língua.

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Desde o fim do ano 2016, graças ao coletivo brasileiro Sycorax, podemos aceder na nossa língua e em livre leitura, à magnífica obra de Silvia Federici, Calibám e a bruxa, publicada pola primeira vez em inglês no ano 2004.

Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva Tore Janson Sycorax 2016

“Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva”1 (assim é o seu título completo em português do Brasil) é um minucioso e documentado trabalho histórico que seguramente nom tenha atingido todo o merecido reconhecimento, mas sim se tem tornado umha obra de referência e impacto no movimento feminista atual, e especialmente, umha leitura obrigatória para o feminismo de tradiçom marxista. Silvia Federici, militante feminista e professora, fai neste texto um percurso pola génese e desenvolvimento do capitalismo do ponto de vista das mulheres, sob um título que nos sugere os eixos temáticos principais da leitura: Calibám, personagem da peça teatral de Shakespeare “A tempestade”, é um escravo rebelde, filho da bruxa Sycorax. Assim, escravos e bruxas som dous elementos que nom por acaso figuram já relacionados no cabeçalho e ao longo de toda a obra apresenta-se um dilatado conjunto de provas e argumentos que justificam tal conexom. Com a obra “Il Grande Calibano: storia del corpo sociale ribelle nella prima fase del capitale” (1984) como precedente da que nos ocupa, a autora analisava o conceito marxista de “acumulaçom primitiva” a partir da perspetiva das 1 Traduçom brasileira disponível para descarga online https://we.riseup.net/subta/ calib%C3%A3-e-a-bruxa-texto-corrido. junho 2017 / KALLAIKIA

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Calibã e a bruxa Eva Cortinhas Ferreira

mulheres, concluindo que a brutal exploraçom e dominaçom das mesmas foi um elemento central para o pleno desenvolvimento do capitalismo por se tratar das produtoras e reprodutoras da única mercadoria imprescindível: a força de trabalho. Com um alcance histórico mais amplo, em Calibám e a bruxa, Federici apresenta umhas teses que representam umha redefiniçom das categorias históricas aceites até o momento, pois tenta dar resposta à execuçom de centenas de milhares de mulheres no contexto da crise demográfica e económica dos séculos XVI e XVII, situando este processo feminicida popularmente conhecido como “caça às bruxas”, como fator fundamental para o assentamento do modo de produçom capitalista, à altura da colonizaçom ou da expropriaçom de terras do campesinato europeu, estas últimas já contempladas pola teoria marxista. A autora considera assim a caça às bruxas como um passo primordial para a domesticaçom do corpo das mulheres e a conseqüente divisom sexual do trabalho que relegou as mesmas ao trabalho reprodutivo, requisito sine qua non para a substituiçom definitiva do feudalismo polo capitalismo. A sua tese sobre o papel das mulheres no processo de acumulaçom originária, apesar de tomar o marxismo como quadro de referência, constitui um desafio a algumhas das conclusons de Marx, nom só por ele ter analisado a génese do capitalismo do ponto de vista dos trabalhadores homes europeus, mas também, e conseqüência do anterior, por considerar que o capitalismo representou um avanço relativamente ao feudalismo no processo de libertaçom humana. Federici questiona radicalmente esta última conclusom, fazendo um percurso polas luitas antifeudais e polos movimentos sociais da Europa medieval e reconhecendo no capitalismo umha forma de reaçom, umha violenta contrarrevoluçom orquestrada polos setores dominantes (nobreza, clero e mercadores) ante a crescente oposiçom ao regime feudal. E o que é mais importante, analisa a coincidência temporal da formaçom de proletariado, e conseqüente consolidaçom do capitalismo, com a brutal perseguiçom e assassinato de mulheres acusadas de bruxas, hereges, malfeitoras, loucas, tagarelas, prostitutas, adúlteras, infanticidas ou desobedientes. Demonstra assim, sustentando-se numha minuciosa 138

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Eva Cortinhas Ferreira Calibã e a bruxa

análise documental que, nos alvores do capitalismo, as mulheres experimentamos um retrocesso no controlo sobre o nosso próprio corpo em benefício do Estado burguês e que se levarmos em conta tal mudança, dificilmente se poderá definir a nova formaçom social emergente em termos de progressom, como umha “superaçom do feudalismo”. A autora vai desde o fim das relaçons de servidom e o começo da proletarizaçom do campesinato no fim do século XIII, passando polas revoltas contra os impostos e abusos dos senhores, polos movimentos heréticos como formas de resistência e de ensaio de organizaçom comunal até os primeiros julgamentos por bruxaria no século XIV ou a institucionalizaçom da prostituiçom. Assim, deparamo-nos com um revelador repasso histórico que mostra como as mulheres experimentárom umha desvalorizaçom, fôrom afastadas do trabalho qualificado e assalariado (lembra-nos que 72 dos 80 grémios ingleses incluíam mulheres na Idade Média) e como a diferenciaçom social, psicológica e mesmo física entre homes e mulheres se acentuou como nunca o tinha feito. O modelo produtivo que emergia nom só acarretou espoliar novos territórios, escravizar a sua populaçom e remover o campesinato do seu principal meio de subsistência, como exigia a produçom de força de trabalho ou, por outras palavras, de mao de obra que configurasse o corpo proletário sobre o qual o capitalismo se sustenta. Isto conduziu os novos Estados a exercerem controlo sobre o corpo e a capacidade reprodutiva das mulheres, anulando-lhes a possibilidade de decidirem sobre a natalidade e criminalizando os métodos anticoncecionais e abortivos, direito que segundo a autora nom tinha sido questionado em toda a Idade Média. Aquela mulher que burlasse ou desobedecesse a nova lei seria, pois, condenada por bruxa. Assim é como o corpo da mulher se tornou um espaço político, um campo de batalha em que o Capital encontra a sua razom de existência. É por isso que Silvia Federici situa o corpo como o principal terreno de exploraçom da mulher, analisa o surgimento da visom mecanicista do mesmo e polemiza com Foucault, defendendo a necessidade de analisar a sexualidade e o disciplinamento do corpo do ponto de vista feminista pola específica opressom a que este é submetido, derivada da sua capacidade de produzir vida, junho 2017 / KALLAIKIA

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Calibã e a bruxa Eva Cortinhas Ferreira

ou o que é o mesmo para o capitalismo, força de trabalho. Em definitivo, a autora nom só nos apresenta umhas teses que divergem significativamente daquelas socialmente aceites, mas também deita luz sobre um processo que a história dominante está a ocultar deliberadamente e que é tam justo como necessário investigar e divulgar. Além disso, cumpre lembrar como o próprio corpus teórico marxista, um dos principais eixos de resistência ao sistema socioeconómico vigente, também tem ignorado o específico papel que a mulher cumpriu na gestaçom e desenvolvimento do mesmo e a maneira concreta como afetou as suas condiçons de existência. Deveria-se esperar pois, de qualquer projeto político transformador, nom reproduzir erros históricos e si realizar análises rigorosas que alarguem, aperfeiçoem e, se for o caso, corrijam o quadro teórico de referência, pois tal e como a autora demonstra amplamente, nom só se trata de rigor histórico, como também de entender bem o funcionamento da maquinaria opressora para ajustar os métodos de luita. Reconhecer a misoginia, violência e, em definitivo, terrorismo que se dirigiu contra a mulher no desenvolvimento do capitalismo e o papel que cumpriu, ajuda-nos a entender a escalada de feminicídios no contexto de crise socioeconómica atual, a feminizaçom da pobreza, os padrons familiares e de relaçons sexo-afetivas dominantes, a ditadura da “beleza” ou o descarado fomento por parte da classe dominante da conversom do útero da mulher num produto de mercado. Ainda mais, compreender como a divisom sexual do trabalho e desvalorizaçom da mulher tem contribuído para dividir a classe trabalhadora e para debilitar a sua capacidade de resposta, poderia ajudar-nos a entender a necessidade de reescrever a história da nossa classe, das mulheres e dos homes trabalhadores; tarefa ainda pendente por esta ter esquecido, dum e doutro bando, a perspetiva de metade da populaçom mundial. Calibám e a bruxa é um magnífico e gratificante primeiro passo.

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Murguía: Revista Galega de Historia, número 33 Instituto Galego de História (igalhis) janeiro - junho de 2016

Mais um número de Murguía, Revista Galega de Historia acaba de sair à rua. A publicaçom, editada polo Instituto Galego de História (igalhis), conta com as suas secçons habituais. No presente número 33, a revista abre com a recuperaçom de duas importantes fontes. En primeiro lugar, o diretor da Murguía, Uxío-Breogán Diéguez, resgata um texto pouco conhecido sobre o galeguismo de direitas e a sua posiçom perante o plebiscito do Estatuto Galego em 1936. En segundo lugar, Xurxo Martínez Crespo aproxima-nos da personalidade de José Velo e da sua participaçom no Diretório Revolucionário Ibérico de Libertaçom (dril), de modo que o autor acompanha o percurso de Velo neste movimento, desde a sua criaçom até a expulsom do ativista galego do seu seio, cujo documento se reproduz. Cinco trabalhos integram a secçom de investigaçom. No primeiro artigo, Perfecto Ramos Rodríguez chega-se à figura do dirigente republicano Marcelino Gómez Arias. No contexto da tentativa de sublevaçom republicana de 1905, Gómez Arias, acabado de chegar da Argentina, formou umha partida para se sublevar na zona de Crecente. O fracasso dos republicanos espanhóis neste ano nom deve fazer-nos esquecer o compromisso republicano e agrarista de Marcelino Gómez Arias. No segundo artigo, Natália Jorge Pereira proporciona importante informaçom sobre um dos mais sobranceiros líderes galeguistas do século xx: Antom Alonso Rios. Desta feita, a figura de Alonso Rios é enxergada desde a sua participaçom no movimento agrarista da zona de Tominho. No terceiro trabalho, Prudêncio Viveiro Mogo apresentanos o labor dos emigrados galegos na Améjunho 2017 / KALLAIKIA

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Murguía Prudencio Viveiro Mogo

rica como dinamizadores culturais, especialmente no campo da ediçom de livros e na criaçom de umha imprensa galega nos países de acolhimento. Neste trabalho realiza-se umha aproximaçom aos principais marcos da ediçom de livros por parte da emigraçom galega, assim como a sua influência na ediçom na própria Galiza. Destaca-se a fundaçom de numerosos cabeçalhos jornalísticos, que reduziam para os emigrantes as distáncias com as suas localidades de origem. Ángel Arcay Varela aproxima-se, no quarto dos trabalhos de investigaçom, à figura de Carlos López García-Picos, destacado representante de toda umha geraçom de músicos populares galegos que, quer na Argentina, quer no seu Betanços natal, desenvolveu um importante labor tanto na qualidade de compositor como na de docente. Finalmente, o último dos trabalhos que integram esta secçom é dedicado à figura do poeta Manuel Maria, a quem se dedicou em 2016 o Dia das Letras Galegas. Neste caso, o professor Xosé Estévez lembra as viagens do poeta a Euskadi e as atividades desenvolvidas nesse país, sempre vinculadas às associaçons de emigrantes galegos. Nas páginas dedicadas à entrevista falamos com Manuel Gago Mariño, diretor do portal culturagalega.gal (do Consello da Cultura Galega) e professor da Universidade de Santiago de Compostela. Nesta conversa, centramo-nos no labor de Gago como valedor e difusor do património cultural galego, nas suas variadas vertentes. Conversamos também sobre um dos seus últimos projetos: a exposiçom «Galicia 100». Nesta mostra, organizada polo Consello da Cultura Galega, pretende-se apreender a cultura galega em cem objetos caraterístiscos. A exposiçom passou ao longo do ano 2016 nas cidades de Compostela e da Corunha, enquanto que no ano 2017 se inaugurará em Vigo. Já no capítulo de lembranças, aproximamo-nos de um dos principais líderes galeguistas do século xx: Antom Lousada Diegues (1884-1929). Lousada foi um dos principais representantes da tendência conservadora e tradicionalista do galeguismo. Dele reproduz-se um artigo que publicou n’A Nosa Terra por ocasiom do Dia da Pátria de 1922.

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KALLAIKIA / junho 2017


Prudencio Viveiro Mogo Murguía

Em cada número da Murguía chegamo-nos a umha biblioteca, museu ou arquivo para umha descriçom dos seus fundos. Neste número, Pedro Íncio apresenta-nos o fundo galego da Biblioteca da Universidade de Santiago de Compostela. Íncio aproxima-nos da história deste fundo, assim como da evoluçom dos seus títulos. Na secçom de leituras recenseiam-se quatro livros. Gustavo Hervella García focaliza as publicaçons Historia das historias de Galicia e A política e a organizaçom exterior da UPG (1964-1986). No primeiro volume, coordenado por Isidro Dubert, de umha perspetiva crítica analisa-se a investigaçom histórica na Galiza do século xix. O segundo dos livros, obra de Luís Gonçales Blasco «Foz», representa umha importante achega documental a um dos principais partidos políticos do nacionalismo galego contemporáneo. Xosé Manuel Malheiro aproxima-se, por seu turno, da coletánea Alfonso XIII visita España. Monarquía y nación, coordenada por Margarita Barral, analisa as visitas deste monarca por diferentes localidades do Estado, entre as quais a Galiza, numha tentativa de nacionalizar a monarquía (ou monarquizar a naçom). Finalmente, Prudencio Viveiro Mogo focaliza o volume que recolhe o epistolário do pintor Carlos Maside. Em Correspondencia [1928-1958]. Cartas inéditas e dispersas som de destacar especialmente as cartas que Luís Seoane enviou a Maside, nas quais se deixam sentir as angústias do artista que cria longe da sua terra. Encerra o volume a análise de um sítio internético dedicado à História da Galiza. Neste número, chegamo-nos a <http://onosopatrimonio.blogspot.com>, espaço impulsionado e administrado por Xabier Moure.

Prudencio Viveiro Mogo

junho 2017 / KALLAIKIA

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