Panoramica (1ª edição)

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Panorâmica Uma nova perspectiva sobre o Cinema Ano 1 - Novembro de 2012 - 1ª Edição

Lilian Solá Santiago: a cineasta da diáspora negra no Brasil

Insônia: resgate do cinema de rua na Fcad

Pablo Villaça discute Argo, a nova produção de Ben Afleck para o cinema


Arte: Luciene Agassi


Foto: Caio Felipe Fré

4 Editorial As muitas faces do cinema

5 Expediente 6 Reportagem

1ª edição do Insônia é sucesso na Fcad

pág. 8 Foto: Gordon Willis (The Godfather - EUA - 1972)

Uma viagem aos tempos do cinema de rua

8 Agitos

Insônia estreia com sucesso na Fcad A geração “teen” que invadiu as telas de cinema

10 Clássicos

A trajetória da máfia no cinema

14 Entrevista

17 Audiovisual

A máfia no Cinema: a estilização da violência

pág.10 Foto: Adri Brumer Lourencini

Lilian Solá Santiago, cineasta-professora do Ceunsp fala sobre o cinema da diáspora negra no Brasil De música e de cinema

18 Making of

Cinema experimental: o significado das imagens

20 Crítica

Argo - o novo filme de Ben Afleck - por Pablo Villaça

22 Vanguarda

Como financiar seu filme pela internet

24 Ensaio

Lilian Solá Santiago: a primeira cineasta negra do Brasil

pág.14

Ensaio sobre a cegueira: se tiver olhos, veja! Foto: Rodrigo Prieto - www.argothemovie.warnerbros.com

26 Dissertando

A telenovela e o imaginário: a influência de “Avenida Brasil” no comportamento

Pablo Villaça comenta “Argo”, recente produção de Ben Afleck

pág.20

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Charlie Chaplin “on set” (1918) Foto: Kaystone/Getty Images

As muitas faces do cinema Quando fomos convidados pela professora Fernanda Cobo para produzir a revista de Cinema, bateu o frio na barriga. O fascínio pela sétima arte iria virar agora, também, uma grande responsabilidade, pois já sabíamos que não iríamos apenas “falar” sobre o tema, mas, especialmente sentir, respirar o clima do universo audiovisual. A primeira terefa foi a de formar uma boa equipe – daí nasceu o “Plano Sequência”. Após algumas conversas, as ideias ganharam forma – que deram origem ao blog de mesmo nome. As contribuições vieram de estudantes de diferentes níveis do curso de Cinema, com ensaios, críticas, sinopses e vídeocasts. Para reforçar o time contamos com a valiosa colaboração de futuros jornalistas, publicitários e fotógrafos. As primeiras páginas da revista são dedicadas ao cinema de rua, aquele que reunia os familiares e amigos, e significava um momento lúdico na vida cotidiana. Para resgatar esse clima, o grupo criou o “Insônia”, que proporcionou uma verdadeira virada cinematográfica, inédita na unversidade. O sucesso foi absoluto e ganhou espaço especial na revista. Falando nisso, a próxima edição do “Insônia” já tem data marcada, e o tema: a máfia – que recebeu também um artigo que fala de sua trajetória na telona e as principais produções do gênero. Conversamos com a cineasta e professora do Ceunsp, Lilian Solá Santiago, sobre sua incrível experiência na produção de filmes que abordam a cultura africana. Entre as participações especiais, está a de Pablo Villaça, que discute “Argo”, a nova produção de Ben Afleck, e de Larissa Padron, falando sobre como financiar seu filme na internet. Nosso primeiro número também traz ensaio e artigos sobre cinema experimental, os grandes músicos retratados pela sétima arte e a influênca da telenovela no comportamento. O cinema é uma arte extremamente coletiva. Uma obra possui diversas facetas. Assim, podemos dizer que a revista Panorâmica tem diversos autores – nós, vocês, eles e elas. O espaço estará sempre aberto para sugestões, textos e opiniões - é o “fazer e comunicar o cinema” sob novas perspectivas. Boa experimentação!

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Foto: John F. Steinz

Expediente Revista Panorâmica - Ano I - Novembro 2012 - 1ª Edição (virtual)

Editorial - Adriana Brumer Lourencini, Antonio Caju Lopes Textos - Adriana B. Lourencini, Caio Felipe Fré, Caroline Liberal Rivieri, Melissa Vassalli Colaboradores - Filipe Salles, Fina Tranquilim, Larissa Padron, Pablo Villaça, Paulo Aranha Arte - Adriana B. Lourencini, Caio Felipe Fré, Caroline L. Rivieri, Luciene Agassi Capa - Muro de Berlim - mostra interativa alemã (foto: Markus Schreiber/AP - portal G1) Diagramação - Adriana B. Lourencini Fotos/Imagens - Caio Felipe, Caroline L. Rivieri, Google imagens Supervisão - Fernanda Cobo A revista virtual Panorâmica é um projeto da equipe Plano Sequência da agência experimental da Faculdade de Comunicação, Artes e Design (Fcad) do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp), Salto-SP. Contato: cinemafcad@gmail.com Blog Plano Sequência: www.planosequencia.com

Gloria Swanson, vivendo ‘Norma Desmond’ em “Crepúsculo dos Deuses” (1950)

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Cinemas de rua Os cinemas de rua marcaram gerações, porém estão desparecendo - hoje, as salas dos shoppings dominam as cidades. Caroline Liberal Rivieri

Antigamente as pessoas tinham o fascínio de ir ao cinema e se emocionar com os filmes românticos, rir com os grandes comediantes da época, fixar o olhar nos filmes de ação ou se assustar com as cenas de terror. Os casais e as crianças da época tinham o prazer de frequentar salas de cinema, sejam elas em locais adaptados ou não. Em Itu, interior de São Paulo, havia espaços improvisados para a exibição de produções que ficaram na história. Entre as gerações mais antigas é comum ouvir a frase: ‘’Que saudade eu tenho do cineminha do Carmo’’, que ainda hoje está gravado na lembrança de muitos ituanos que se divertiam ao assistir filmes, principalmente os famosos seriados exibidos naquela época. Muitos meninos e jovens trabalhavam nas bombonières ou vendiam balas e doces nas antigas salas de cinema ituanas. Em 1957, os filmes de Charles Chaplin eram exibidos ao ar livre, além dos célebres “O gordo e o Magro”, “Marcelino pão e vinho” e “Tarzan”. Esse trabalho pioneiro era realizado por ambulantes cinematográficos que viajavam de cidade em cidade. O cinema adaptado era feito com barracas de lona quadriláteras, armadas no estilo de circo, e eram adquiridos filmes americanos e europeus para as exibições por todo o interior de São Paulo.

de vinho se foram para sempre.

‘’Frequentei apenas o Cine Marrocos, onde vi a estreia de “O Rei Leão”. Era muito novo, tinha uns quatro anos, mas lembro de algumas coisas: da minha mãe comprando o ingresso na bilheteria, depois comprando um saco de pipoca... Mas foi só. Logo depois disso, o Marrocos fechou e nós ituanos ficamos reféns do Cine Plaza.’’ André Inaugurado em 1965, o Cine Boni, no bairro de Vila Nova, Felipe Constante Roedel, 21 anos. foi a primeira sala em Itu a oferecer poltronas almofadadas (eram 650 lugares). Como a projeção era feita direta- Perguntamos ainda se ele acredita que, quando o cinema mente na parede do cinema, quando as cenas continham é localizado em um shopping, ele perde o valor que teria bastante luz, a qualidade da projeção era maior. Porém, se estivesse em outro local, e ele respondeu: “O shopem cenas mais escuras, a imagem ficava comprometida. ping surgiu da necessidade do hoDepois do Cine Boni surgiram outros cinemas de rua, mem moderno fazer várias coisas em como o Marrocos, que marcou época. Inaugurado em um curto período de tempo. Vários 1952, no centro de Itu, o Cine Marrocos exibiu o musical serviços, de lojas de roupa a bancos, “Paraiso Tropical”, e teve casa cheia durante os quinze André Roedel: o cinema foi criado para ser dias de exibição do épico “Os Dez Mandamentos”. O apreciado Cine Marrocos encerrou suas atividades em 1998 – o prédio continua lá, mas o sabor da pipoca e as poltronas cor Foto: Carol Rivieri

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minha filha lá para assistir ‘Rei Leão’”, conta ela. Atualmente os ituanos contam apenas com o Cine Plaza Itu, que funciona no Plaza Shopping desde 2001. São três salas com 300 lugares cada uma. Não restou qualquer lembrança daquele cinema de rua que encantava pessoas de todas as idades. Hoje as salas de cinemas estão todas localizadas em shoppings. É comum pagar caro pela pipoca, enfrentar longas filas, comprar o ingresso pela internet, colocar os óculos 3D e assistir o filme de cartaz mais chamativo. Muitas pessoas não vão mais ao cinema pelo filme – elas vão aos centros de consumo, o filme é só uma opção de entretenimento. Foto: Carol Rivieri

Cine Ritz, em Florianópolis (SC) - acervo de George Richard Daux (década de 1940) Fonte: Blog Cine Luz

com uma enorme praça de alimentação para saciar a fome desses ávidos em consumir. Já o cinema foi criado pra ser apreciado. Por isso, não condiz que uma forma de arte seja posta ao lado de um grande centro de consumo. Tudo bem, o cinema virou um grande negócio, mas ainda há espaço para a cultura dentro dele. E, como qualquer outra loja de um shopping, o intuito de um cinema dentro do mesmo é vender. Nos cines de rua a coisa é diferente. É privilegiada a experiência, em detrimento do consumismo desenfreado. Você vai para assistir a um filme, e não “comer um lanche no McDonald’s e, se der, pegar a sessão das 19h”. Adriana Liberal, 42 anos, também tinha o hábito de frequentar o cinema. “Lembro-me do Cine Boni, onde assisti ‘Marcelino, pão e vinho’, era em preto e branco; lá eu vi também ‘Embalos de sábado à noite’ e ‘Os trapalhões’. Do Cine Marrocos, lembro-me de que o cinema era grande, maior que uma sala de cinema de shopping, o chão era plano, e o telão era bem menor do que estamos acostumados hoje. Antes, podia até fumar dentro do cinema. Levei

Prédio do antigo cine Marrocos, rua Paula Souza, centro de Itu

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‘Insônia’ é sucesso Em sua primeira edição, o evento surpreendeu com inovações e público lotou as sessões no auditório da Faculdade de Comunicação, Artes e Design (Fcad) do Ceunsp. Caio Felipe Fré

Sabe quando você não consegue dormir de forma nenhuma? E tudo que mais quer é Com sessão cheia, público espera pelo início do filme ‘Cova Rasa’ ligar a televisão e passar o resto da noite vendo filmes e Foto: Carol Rivieri mais filmes? Ou talvez ouvir uma boa música em meio ao silêncio da madrugada? Para completar só um bom café No salão principal foram colocados pufes, sofás, tapetes para acabar de vez com a falta de sono, certo? É exata- e cobertas, criando um ambiente aconchegante, onde as mente isso que a primeira edição do ‘Insônia’ trouxe para pessoas puderam se acomodar e até tirar um cochilo. A descontração ficou por conta de alguns jovens que o público presente. vieram fantasiados de personagens dos filmes. Puderam Com o slogan ‘cinema, música e café’, o evento ficou ser encontrados “Mr. Pink” (personagem de Steve Busconhecido como “viradão de cinema”, que começou às cemi) de ‘Cães de Aluguel’ e “Alex” (personagem de Evan 22h30 de sexta-feira, 14 de setembro, e só terminou na McGregor) de ‘Cova Rasa’. manhã de sábado, por volta das 7h30. A temática da primeira edição do ‘Insônia’ foi “a primeira vez”, com expo- Para preencher o vazio no estômago não faltaram sições dos primeiros filmes da carreira de três diretores mesinhas com guloseimas doces e salgadas, além de cafezrenomados. Apesar de pouco conhecidos do público par- inho e a tradicional pipoca. A decoração cinematográfica ticipante, o auditório ficou lotado. Quem assistiu aos fil- completou o cenário. mes também ficou surpreso com a qualidade das imagens. A última sessão se iniciou às 6h30 da manhã, com ‘O El“Cara, o Tarantino é um gênio. Eu só conhecia ele a partir emento do Crime’, do delirante Lars Von Trier. Apesar do de ‘Grande Hotel’, ‘Kill Bill’, nunca tinha visto ‘Cães de remanescente público que não ultrapassava 40 pessoas — Aluguel’. Foi genial. O jeito que ele ironiza é demais.” – a maioria dos espectadores estava no saguão apreciando disse a estudante Camila, 19 anos. Sucesso absoluto entre um delicioso café da manhã. O filme terminou ao som de os presentes, o filme ‘Cova Rasa’ rendeu alguns minutos aplausos. de aplausos e uma sensação de satisfação nos rostos das pessoas. “Filmão. Só isso. Filmão. Onde tava esse filme Surgiam os primeiros raios de sol; luzes apagadas e sattodo esse tempo sem eu conhecer?” – deliciou-se Fabio isfação de um bom trabalho realizado. Assim terminou a primeira edição do ‘Insônia’, deixando o gostinho de Luiz, 21 anos. quero mais. Além dos longas-metragens, o ‘Insônia’ também trouxe a as bandas Satans Of Swing e Hellgrass – esta última, da O projeto surgiu a partir da ideia de cinema de rua, na gravadora Trama, arrancou gritos histéricos das garotas tentativa de resgatar o clima de reunião com amigos, um com seu som “folk rock” e seu violoncelista Jeff Novaes. bom filme e, claro, muita pipoca! E, parece que deu certo! Durante as apresentações, cenas de conhecidos filmes como ‘Harry Potter’ e ‘Alice’ podiam ser vistas no telão Agora, é só aguardar a segunda noite de ‘Insônia’, porque na Fcad, cinema, música e café são mais legais! lateral.

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Realeza adolescente O segredo das atrizes que marcaram os filmes juvenis da década de 2000 Caio Felipe Fré

Elas são bonitas, doces e sempre encontram o amor verdadeiro aos 16 anos. Em contrapartida, não têm muitos amigos, não são populares e sempre tendem a enfrentar o mundo para serem apenas quem são.

Foto: Hilary Duff in A Cinderella story (2004) Warner Bros.

Basicamente, essa é a formula de sucesso dos filmes adolescentes que ficaram famosos nos anos 2000 e deram a alguns nomes como Hilary Duff, Lindsay Lohan e Aman-

da Bynes o título de ‘teen queens’ – rainhas dos adolescentes. Se você tem mais de 17 anos com certeza presenciou a enxurrada de longas protagonizados por essas atrizes entre 2002 e 2006. Títulos como “A nova Cinderela”, “Meninas mal-vadas” e “Tudo o que uma garota quer” foram sucessos de bilheteria e disputados em video locadoras. Mas, o que fez essa geração de garotas conquistar tanta fama e respeito? O pioneirismo pode ser considerado o maior fator de sucesso. Até então existia apenas animações para crianças e temáticas um tanto machistas para garotos do ensino médio. O mercado cinematográfico era carente desse tipo de filme considerado ‘para meninas’, mas que tam- bém atraiu meninos sem preconceitos. O grande talento delas aliado às trilhas sonoras e principalmente, a publicidade em torno do lançamento nas salas de cinema fizeram com que as novas estrelas tivessem seus nomes gravados no imaginário do público. Atualmente, a maioria dessas produções são exibidas na tv aberta, porém, permanecem rendendo lucro e audiência, tornando-as ainda mais memoráveis. O fator proximidade com o real também teve influência na identificação das jovens atrizes com o público adolescente. Hilary Duff e Amanda Bynes, por exemplo, nunca apresentaram padrões de beleza impossíveis de se alcançar - elas possuem a aparência típica de meninas da sua idade. Lindsay Lohan, por sua vez, surgiu como a garota ruiva cheia de sardas em meio ao mar de loiras esculturais do cinema americano. A vida de suas personagens segue o mesmo conceito, ou seja, são pessoas normais, de carne e osso, que têm conflitos familiares e sentimentais, nem sempre ganham; algumas vezes estão felizes, em outras, tristes. Temas como “bullyng”, homossexualidade e drogas também per- meiam a realidade dessas garotas, transformando-as em ícones de uma geração e referenciais de compor- tamento.

Hilary Duff - ícone dos filmes adolescentes

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Foto: Gordon Willis (The Godfather - EUA - 1972)

A trajetória da máfia no cinema Ação, violência, glamour e valores familiares completam o cenário de enredos marcantes sobre o crime organizado

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Marlon Brando dá vida a ‘Vito Corleone’ em “O poderoso chefão” (1972)


Adriana Brumer Lourencini

Nos filmes de gangster vemos uma sequência bem montada, com frases e roteiros pomposos, e a violência é exposta de forma quase estética. Os gestos escancaradamente latinos e os cabelos emplastados com gel dos protagonistas misturam-se a uma atitude machista galanteadora e armas dos mais diversos calibres, que despertam no espectador o desejo de adentrar aquele universo secreto envolto em códigos e condutas másculas. Por causa do Cinema, podemos dizer que a imagem de um mafioso nos remete à ideia de alguém ligado ao poder, que estampa uma vida glamourosa, tem os bolsos cheios de dinheiro e bala na agulha.

pescoço e não no rosto, como o protagonista do longa. Hawks declarou que chegou a consultar mafiosos de verdade sobre o projeto, e que Capone quis uma cópia da película para ele. Exagero ou mentira do diretor, o fato é que “Scarface” contém vários incidentes inspirados em histórias reais. Foi uma empreitada complicada, pois naquele tempo havia forte rejeição às produções de Hollywood que pareciam endeusar os gangsteres, a exemplo de “Alma no lodo” (“Little Caesar”, 1931) e “O inimigo público número um” (“The public enemy”, 1931). A censura também implicou com o filme de Hawks, que chegou a rodar finais alternativos, mais moralistas, eliminou sequências inteiras e referências raciais, além de ter que deixar vago A máfia se consolidou como gênero cinematográfi- o tema do incesto. co com a trilogia “O poderoso chefão” (The godfather – 1 e 2-1972, 3-1974). Francis Ford Coppola nos brin- Em 1983, Brian de Palma produz um “remake” de “Scarda com uma engenharia estética sofisticada em seus tre- face”, com roteiro de Oliver Stone – que transfere o enchos, e mostra Marlom Brando bochechudo e com voz redo para os anos 1980 e ambienta a trama para a badagutural, sem parecer caricato – comandando o “modus lada Miami. Al Pacino encarna Tony Montana, líder de operandi” da máfia italiana na tentativa de ocupar postos uma quadrilha de traficantes na cidade, que comete o erro de comando político e econômico no novo mundo. O de se viciar em drogas. O longa também revela Michelle patriarca Don Vito Corleone aparece como uma figura Pfeiffer, que vive Elvira Hancock, a paixão de Montana. benevolente e sábia, que compreendia a alma de seus familiares e inimigos e demonstrava seus sentimentos atra- No final da mesma década, de Palma lança outra produvés de gestos brandos, porém implacáveis. Coppola dá ção contextualizada no crime organizado. “Os intocáênfase ao drama que lembra as grandes óperas, em que os veis” (“The untouchables”, 1987) mostra o período da personagens sofrem com as reviravoltas da vida. A cultu- lei Seca em Chicago, nos anos 1930, e o mote narrativo ra italiana é exposta por meio das danças e costumes, e a é a atuação de Al Capone (Robert de Niro) no Estado, máfia recebe um tratamento simpatizante e legitimador. A desafiando as forças do bem, representadas pelo corretísmúsica, composta por seu pai, Carmine Coppola, merece simo Elliot Ness (Kevin Costner). Aqui, o poder da máfia destaque, assim como a cena na qual Michael Corleone é tratado sob uma ótica realista, mostrando a corrupção (Al Pacino) batiza o filho, considerada a mais bonita dos político-social presente no cotidiano. Seguindo o estilo filmes do gênero, e a sequência dos guerrilheiros do gueto assassinando seus rivais em momentos de sofisticação. Esse era o modo simples e direto da máfia resolver seus problemas. Um tiro na cabeça durante um jantar, ou uma saraivada de balas enquanto o rival está recebendo uma massagem no outro lado da cidade. Se as duas sequências de “O poderoso chefão” ocupa até hoje a liderança na modalidade, o terceiro lugar no pódio pertence a “Scarface, a vergonha de uma nação”, de Howard Hawks, 1932. O primeiro filme retrata a forma com que a máfia da Chicago dos anos 1930 se comportava e como era vista pelo cidadão americano da época. Recheado de metáforas que abordam de homossexualidade a incesto, o primeiro “Scarface” foi inspirado na vida de Al Capone, que realmente tinha uma cicatriz, porém, no

Foto: Lee Garmes e L. William O’Connell

“Scarface” (1932) - ingredientes da vida real e cenas barradas pela censura

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A última obra de Brian de Palma sobre o gênero veio nos anos 1990, com “O pagamento final” (“Carlito’s way”, 1993). Al Pacino retorna como protagonista, dividindo sua atuação com Sean Penn (que interpreta o advogado Dave Kleinfeld). O enredo é sobre Carlito (Pacino), exgangster que sai da prisão e quer se manter limpo para fugir com sua namorada para as Bahamas. Até aqui, trata-se apenas de mais do mesmo, porém, de Palma consegue ir um pouco além do tema já batido e repetitivo. “O pagamento final” é um momento de maturidade do diretor. De Palma se interessa por seus personagens, por aquilo que fazem e aquilo que são. Junto com seu roteirista, David Koepp, o diretor nos oferece o outro lado da moeda, mostrando que um gangster americano também possui alguém a quem ama, tem amigos e metas que não sejam apenas o crime e assassinatos.

Foto: Michael Ballhaus

Na mesma década, “Os bons companheiros” (“The godfellas”, 1990) e “Cassino” (“Casino”, 1995), ambos de Martin Scorsese, estão entre as grandes produções e trazem personagens quase idênticos. “Os bons companheiros” tem ação intensa e conta a história do irlandês Henry Hill (Ray Liotta) que cresce entre a máfia italiana do Brooklin, em Nova Iorque, é protegido por James Conway (Robert de Niro) e acaba se envolvendo em golpes cada vez maiores. Em “Cassino” Scorsese se inspira no terceiro filme da trilogia de Coppola, mostrando famílias italianas que tentam expandir sua influência no

“Os bons companheiros” (1990) - a máfia nos guetos

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Foto: Stephen H. Burum

americano, “Os intocáveis” deixa clara a questão das diferenças sociais e traz consigo a moral de que o crime não compensa, e o bem sempre vence o mal. Um dos momentos mais tensos é a cena da escadaria na estação de trem – uma referência à emblemática tomada de Eiseinstein em “O encouraçado Potemkin” (1925).

“Os intocáveis” (1988) - mocinhos e bandidos na Chicago dos anos 1930

noroeste americano por meio de um polo de jogo e prostituição na Las Vegas dos anos 1970. A história é baseada na vida do chefe de cassino Frank “Lefty” Rosenthal. Mais tarde, Scorsese lança “Os infiltrados” (“The departed”, 2006), tratando com maestria a relação entre a máfia e seus subordinados. Enquanto o jovem policial Billy Costigan (Leonardo di Caprio) é infiltrado no grupo mafioso liderado por Frank Costello (Jack Nicholson), ganhando sua confiança, o criminoso Colin Sullivan (Mat Damon) se torna o espião da máfia na polícia. Na trama não há um lado certo para ficar: policiais e criminosos têm a moral comprometida. Sam Mendes também contribuiu para a saga do crime organizado nos cinemas com “Estrada para a perdição” (“Road to perdition”, 2002), que tem como plano central a relação entre pai e filho nos conflitos com a máfia irlandesa. A atuação brilhante fica por conta de Tom Hanks no papel de Michael Sullivan, que tenta salvar o filho das garras dos criminosos. No reino dos gangsteres, arte e vida se inspiram mutuamente. Porém, não tenhamos ilusões - a crueldade real da máfia supera a ficção. John Dickie, em seu livro “Cosa Nostra - História da máfia siciliana” (Edições 70, 2004EUA / 2006-Portugal) diz que os Estados Unidos, por intermédio de Hollywood, vêm apresentando a máfia como fenômeno seu, e revela: “Seria ao mesmo tempo presunçoso e incorreto dizer que a máfia apresentada em obras de ficção é pura e simplesmente falsa — ela é estilizada. O glamour do cinema não consegue sobreviver a um confronto com a terrível realidade da Cosa Nostra. [...] enquanto a história de Michael Corleone lida com os perigos morais do poder ilimitado, os verdadeiros mafiosos sicilianos preocupam-se obsessivamente com as regras de honra que restringem as suas ações.”


Arte: Caio Felipe Fré

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Foto: Caio Felipe Fré

Lilian Solá Santiago Pioneira do cinema da diáspora negra no Brasil 14 Panorâmica


Caroline Liberal Rivieri

Muitas produções de Hollywood se fixaram na mente dos fãs de cinema como obras que retratam muito bem a vida dos negros, como no filme “A cor púrpura” (“The color purple”, 1985, Steven Spielberg). Porém, há ainda muito a ser revelado sobre a cultura africana, especialmente a que foi disseminada pelos escravos no Brasil e na América Latina. A paulista Lilian Solá Santiago, cineasta e professora do curso de Cinema e Audiovisual do Ceunsp vem realizando, desde 2007, um trabalho pioneiro no cinema da diáspora negra – expressão que designa as produções inspiradas por questões ou personagens negras. Em seu currículo estão os documentários: “Eu tenho a palavra”, que levou o prêmio Etnodoc de 2009, e “Balé de pé no chão”, produzido em 2005 – entre os vários prêmios conquistados, está o de melhor documentário no I Hollywood Brazilian Film Festival, também em 2009. Assinou o “doc-ficção” “Graffiti” (2008), que faturou o Prêmio Estímulo ao Curta-Metragem; e “Uma Cidade chamada Tiradentes” (2007), além do filme-documentário “Família Alcântara” (2005), com Daniel Santiago, exibido nos cinemas e na TV e ganhador de diversos prêmios.

cultura popular africana? Lilian Solá: Desde que eu nasci. A cultura popular africana é um universo muito rico e pouco representado. Panorâmica: Como surgiu a ideia para o roteiro do documentário “Batuque de graxa”, que será lançado este ano? Lilian Solá: Li a frase de um jornalista: “Com muitos timbres é a riqueza da música brasileira”, e fui pesquisar, descobri um personagem que tinha sido engraxate – seu Antonequim batuqueiro – e comecei o projeto em 2009. Ele faleceu e tive que mudar o roteiro. “Batuque de graxa” representa o berço do samba em São Paulo nos anos 1950 - os engraxates que ficavam na Praça da Sé usavam seus instrumentos de trabalho para fazer samba. Panorâmica: Como foi o processo de desenvolvimento do roteiro de “Eu tenho a palavra”?

Lilian Solá: “Eu tenho a palavra” é um patrimônio da cultura negra. Foi filmado em Minas gerais, e eu fui lá atrás da única personagem que sabia um dialeto de AngoLilian nos conta um pouco de sua experiência com pro- la; o projeto era levar Dona Fiota para a Angola e trazer dução e direção de documentários no País. Confira a en- um angolano para Minas, mas não deu certo. Dona Fiota trevista. não queria ir para a Angola, pois tinha medo de avião.

“A cultura popular africana é um Universo muito rico e pouco representado.”

Panorâmica: O que você quis enfatizar nos seus documentários?

Lilian Solá: A permanência do imaginário, como as pessoas mantêm essa tradição, o poder da oralidade, mostrar Panorâmica: Por que você decidiu ingressar na área de o trabalho de quem está por trás, as pessoas e as concinematografia? dições de vida. No documentário “Balé de pé no chão” conto a história de uma dançarina negra que fez uma coLilian Solá: Foi o trabalho que me apareceu, demorei em reografia misturada com o candomblé para mostrar para decidir o que ia fazer, fiz teste vocacional e o resultado foi o público como foi o início da dança moderna. para a área de Comunicação. Tenho um irmão produtor que me chamou para participar como figurante – fiz o papel de uma moça de outra época. Vi a atriz principal sentada com outras pessoas do filme e ela disse um palavrão, aí então eu pensei: quero ser assim, uma mulher linda e que pode falar palavrão. Na época que fui fazer vestibular queria ser Ministra da Cultura, um professor meu de história indicou o curso de História, que eu fiz na USP. Panorâmica: Você tem planos para um futuro filme?

“Batuque de graxa” representa o berço do samba em São Paulo.”

Panorâmica: Quando começou esse seu fascínio pela Lilian Solá: Tenho um projeto, mas é embrião ainda,

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prefiro não falar sobre isso agora. Só posso dizer que é táxi e minha mãe era doméstica, e eu consegui! Tem que inspirado em poesia. acreditar e ir atrás. Panorâmica: Como você vê o mercado de cinema hoje? ____________________________________ Lilian Solá: O cinema começou no século XIX, hoje não é tão valorizado, não existe mais aquele ritual em que as pessoas se arrumavam para ir com a família assistir a um filme. Hoje todos passeiam no shopping e, se sobrar tempo vão ao cinema. Outro dia presenciei um casal de idosos que estava andando pelo shopping e viu um cinema 6D. Eles nem queriam saber qual filme estava sendo exibido – só queriam sentar um pouco. O cinema está num momento de transição, e acredito que no futuro existirão filmes com um formato menor. O cinema lá fora tem um público para classe média, aqui no Brasil temos uma questão histórica – como o “Cinema novo”, que ficou conhecido internacionalmente. Os diretores no Brasil acham que faz mais sucesso lá fora mostrar nossa periferia nas produções. Meus filmes sobre cultura negra nunca vão fazer tanto sucesso nas bilheterias como “Tropa de elite”, por exemplo. As empresas sofrem, pois quem produz não tem poder de mercado – são os distribuidores que mandam no cinema; eles escolhem o que vai para o público. O exibidor é obrigado a mostrar isso no seu cinema, fazendo sucesso de bilheteria ou não. O cinema brasileiro procura prêmios e títulos e não público e bilheteria. Meu professor falava que a política cinematográfica é assim: “Dá incentivo para ganhar prêmios e não um público”. Não temos mais uma identidade nacional – essa ideia precisa ser incentivada para não acabar com os novos filmes.

A Prefeitura municipal de Salto realiza, entre os dias 10 e 21 de novembro de 2012, a semana da consciência negra, com o tema “O valor da identidade negra”. Lilian Solá irá apresentar o documentário “Meio século”, como coordenadora do curso de produção de vídeo. A exibição será no dia 21, às 19h30, na sala Giuseppe Verdi, - rua José Galvão, 104 - Centro- Salto. O evento tem o apoio das Secretarias da Educação, Cultura e Turismo, e parceria com o Ceunsp. Informações e programação: http://www.salto.sp.gov.br/ ____________________________________ Lilian Solá Santiago é graduada e mestre pela USP, com passagens pela UFSCar e Cásper Líbero. Atualmente é docente do curso de Cinema no Ceunsp e conta com extensa filmografia, além de premiações em festivais nacionais e internacionais.

“Vi a atriz principal sentada com outras pessoas do filme e ela disse um palavrão, aí então eu pensei: quero ser assim, uma mulher linda e que pode falar palavrão. ” Panorâmica: Ainda é muito difícil conseguir incentivo/ patrocínio para rodar um longa no Brasil? Lilian Solá: É difícil, mas não é impossível. Os alunos me falam “Só quem é rico faz cinema”. Lógico que para Documentário “Eu tenho a palavra”. quem tem grana é mais fácil. Meu pai era motorista de Da direita para a esquerda: Lilian Solá, o personagem Chitacumula, o fotógrafo Valnei Nunes e o microfonista Artur (foto: www.liliansantiago.blogspot.com.br)

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De música e de cinema Filipe Salles

Uma das minhas lembranças mais remotas de profunda emoção ao sair de uma sessão de cinema foi quando assisti, em 1986, ao épico biográfico de Mozart, o festejado filme de Milos Forman Amadeus. Um dos filmes mais expressivos já produzidos pela indústria cinematográfica (ainda que sendo uma co-produção tcheca/americana), foi baseado na peça homônima de Peter Shaeffer, e, além de tudo, uma das únicas vezes que vi a Academia de Ciências Cinematográficas de Los Angeles premiar merecidamente um filme. Levou nada menos que 8 oscars, deixando, surpreendentemente, filmes favoritos na lanterna. Ninguém esperava aquele espetáculo, em todos os sentidos: cenografia impecável, direção de fotografia das mais belas, interpretações magníficas: uma mis-en-scène quase sem defeitos. Entretanto, foi um filme que acabou sendo aos poucos esquecido, em parte por conta da opinião não de cineastas, mas dos músicos. Como era um filme que supostamente contava a vida de Mozart, a imprensa em geral foi colher mais informações da classe musical, e acabou tendo uma certa decepção. A maioria dos músicos desdenhou o filme, pela justa razão de que, como biografia, o filme não era fiel à vida de Mozart. E aí é que perdura o grande equívoco, que reside numa análise meramente formal, e não do sentimento que o filme propõe.

Foto: Google imagens (autor desconhecido) - Fonte: www.cinema10.com.br

Curiosamente, ao escolher como pano de fundo a história de Mozart e Salieri, ele acaba por ser muito mais fiel à personalidade de Mozart do que outros filme-biografias, que, mesmo sendo fiéis historicamente, não traduzem com tanta intensidade a psique de Mozart.

Exemplo contrário é a biografia de Beethoven, Minha Amada Imortal, (My Immortal Beloved, 1994), dirigida por Bernard Rose. Apesar de ser um filme absolutamente perfeito em reprodução historica, é frio enquanto descrição de personalidade, e propõe que toda a inspiração de Beethoven tenha vindo de uma paixão não correspondida, o que me parece muito mais inverossímil que achar que Salieri tenha encomendado o Requiem. Ademais, toda a história é contada pela visão de Salieri, o que torna as supostas “inverdades” históricas verossímeis, podendo Em outras palavras, o filme não é uma biografia de Mo- ser justificadas por uma avançada neurose senil. zart (tal como a peça de Sheaffer propõe), e sim uma fantasia sobre o contraste do gênio e do medíocre. O que é Apesar de tudo, nenhum filme que eu tenha visto faz desum gênio? o que é um medíocre? Como se comporta o filar com tanta precisão os contrastes das personalidades ser humano diante do desejo de ser genial, e ao mesmo gênio e medíocre, traduzindo assim uma das caracterizatempo tendo que reconhecer-se medíocre, frente a outro ções de Mozart que eu considero mais fiéis, num filme exemplo, este sim considerado (por ele mesmo) genial? que, paradoxalmente, é tido como uma falácia histórica. Coisas que só são possíveis no cinema. E, ainda além, Um assunto de densidade psicológica, filosófico, até. uma aula de direção e de interpretação, um filme para reQuem define o que é o gênio? Genialidade é uma dádiva ver sempre.” divina, um privilégio de poucos? Estas são algumas das perguntas que o filme suscinta, sendo que, para revestir estes elementos de ação, o autor escolheu, entre muitos _____________________________________ exemplos possíveis, a conhecida rivalidade entre Mozart e Salieri. Esta richa é, inclusive, anterior a Shaeffer, já ten- Filippe Salles é fotógrafo e cineasta, formado em Cinema pela do sido tema de um livro de Puchkin e uma ópera de FAAP e Mestre e Doutor pela PUC/SP. Atualmente coordena e leciona nos cursos de Comunicação e Artes do Ceunsp. Rimsky-Korsakov.

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Paulo Aranha

A leitura da imagem é um ponto de partida para estabelecer um diálogo: compartilhar o prazer de descobrir significados ao interagir com o universo da arte. Para despertar realmente o interesse do conceito imagético nos fotogramas e no cinema, é necessário perceber que os conteúdos explorados podem adquirir sentido próprio e que essas descobertas podem ter repercussões práticas na vida presente e futura. Na arte podemos visualizar e nos expressar através das imagens, e em cada fragmento do fotograma descobrimos novos significados no contexto expressivo da criação. Conduzir a criação de uma obra experimental é garantir a possibilidade de apresentar idéias e compartilhá-las através das imagens criadas por condições psicológicas do conhecimento, na integração do objeto, na relação com a obra, nas referências de idéias e na maneira consciente de sua elaboração. É conectar-se ao pensamento do artista, com o fazer artístico no mundo contemporâneo e criar diálogos com os diferentes modos de representação, trazendo a interdisciplinaridade. É sociabilizar questionamentos e inquietações do indivíduo com o coletivo na expressão artística, aguçar os sentidos, estabelecer uma criação e realizar imagens através dos vários suportes de captação imagética. Experimentalismo é a criação de um pensamento artístico, de simples sonho, de pinturas sobre a película, das memórias dos significados em lembranças ou até mesmo de objetos que fazem uma elaboração estética e concreta da imagem. A fotografia sempre foi um campo de experimentação desde o seu surgimento e o cinema fez parte deste processo com as fotografias em movimento, dando início a criação de linguagem, inovação e expansão da imagem. Esta é uma experiência do olhar e dos sentidos, vivemos num mundo visual. Sobre os olhos não é preciso cogitar a sua ausência no processo de formação, de apreciação, de percepção e aceitação de uma obra fílmica experimental. É possível registrar muitas imagens, sendo características fundamentais para marcar os momentos do passado e do presente. O importante é o fato de que o momento re-

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Imagem: Google Imagens (autor desconhecido)

Cinema Experimental: O significado das imagens

gistrado vai durar por longos tempos e contribuir para eternizar memórias. “Todos os filmes começam com memórias, todos os filmes são também uma soma de muitas memórias. Por outro lado, muitas memórias nascem através dos filmes”. (WENDERS, 1990, p. 57). No conceito da subjetividade, podemos definir através das palavras do cineasta poético Luiz Rosemberg Filho que o “cinema é significação de subjetividades, que ultrapassa o próprio homem. E sua riqueza é a experimentação permanente”. (ROSEMBERG FILHO, 2011, p. 1). Podemos concluir que o registro de uma imagem, abre um leque de idéias na forma de abordagem de uma única: a luz. Em cada horário almeja o tempo na composição estética da obra de arte, “pois cinema ou fotografia nada mais é do que o trabalho de moldar imagens através do contraste entre a luz e a sombra existentes na natureza”. (SALLES, 2009, p. 73). O cinema experimental abrange tanto o seu aspecto histórico quanto o seu aspecto estético e pode ser encontrado em obras individuais, homogêneas, correntes e nas fases do cinema de vanguarda, dos filmes surrealistas, filmes undergrounds, filmes superoitentistas (bitola super-8), cinema expanded ou cinema expandido (forma de interação), cinema marginal, found footage (utiliza de imagens de arquivo), documental, vídeo arte e animação. O cinema experimental é um objeto de difícil fixação. Ci-


Foto: Sergei Eiseinstein (Google Imagens - autor desconhecido)

nema experimental, que, por definição ambígua, é um ci- RENAN, Sheldon. Uma introdução ao cinema/undernema, ainda e sempre, para (e por) se descobrir. (ADRIA- ground. Rio de Janeiro: Lidador, 1970. NO, 2007, p. 15). SALLES, Filipe. Apostila de cinematografia: iluminação para cinema e vídeo. São Paulo: Mnemocine, 2009. O cinema experimental se entrega a uma estética, des- WENDERS, Win. A lógica das imagens. Rio de Janeiro: construindo o tempo e o espaço num processo sempre de Edições 70, 1990. inovação pessoal no tratamento do sistema ótico, da tonalidade imagética, experimentar através da poesia, sons, _____________________________________ imagens, significados e da vida. Referências bibliográficas ADRIANO, Carlos. Um guia para as vanguardas cinematográficas. Trópico, São Paulo, 2003. FERREIRA, Jairo. Cine de invenção. 2ª edição. São Paulo: Limiar, 2000. FILHO, Luis Rosemberg. Quatro x Resnais. Rio de Janeiro: Via política, 2011. MACDONALD, Scott. Avant-garde film. Boston: Cambridge, 2003.

Paulo Aranha é formado em Fotografia pela Faculdade de Comunicação, Artes e Design (Fcad)-Ceunsp. Cineclubista, ex-vice-presidente da Federação Paulista de Cineclubes, responsável pela construção do Cineclube Ceunsp. Trabalha com performance arte, vídeo arte, colagem, fotografia, vídeo instalação, cinema, artes visuais e as artes multimídias. Em 2009 foi jurado do 10 Festival de Super-8 de Campinas, pesquisador de cinema e das artes. Atualmente trabalha com cinema, artes visuais e fotografia experimental, e é diretor dos curtas: “Sapatógrafo”, “Memórias Fotográficas” e “Palavras para Glauber”.

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Foto: Cartaz oficial - www.argothemovie.warnerbros.com

É compreensível. Além da já citada tendência do Cinema ao exagero (um eufemismo para “mentira”), a história recontada pelo roteiro de Chris Terrio a partir de um artigo de Joshuah Bearman traz elementos absurdos demais para que não duvidemos de sua veracidade: ambientado em 1979, quando manifestantes iranianos invadiram a embaixada norte-americana em Teerã (o que torna o longa atualíssimo, considerando os eventos recentes na Líbia), Argo acompanha os esforços do agente da CIA Tony Mendez (Affleck) para

Argo Pablo Villaça Filme: Argo (Argo) Ação – 2012 – Estados Unidos Direção: Ben Affleck. Com: Ben Affleck, Alan Arkin, John Goodman, Bryan Cranston, Clea DuVall, Kyle Chandler, Zeljko Ivanek, Tate Donovan, Victor Garber, Bob Gunton, Chris Messina, Philip Baker Hall, Michael Parks, Richard Kind.

Em 4 de novembro de 1979, um revolução iraniana chega a seu auge. Militantes chegam à embaixada americana em Teerã e fazem 52 reféns americanos. Mas, no meio do caos, seis americanos encontram uma maneira de fugir e se refugiar na casa do embaixador canadense. Sabendo que apenas uma questão de tempo até que os seis sejam encontrados e assassinados, um especialista em resgate da CIA, Tony Mendez (interpretado por Affleck) aparece com um plano arriscado para tira-los do país

resgatar seis funcionários que escaparam durante os ataques, escondendo-se na casa do embaixador canadense Ken Taylor (Garber). Ciente de que será apenas uma questão de tempo até que a inteligência iraniana descubra onde os foragidos se encontram, Mendez tem aquela que seria descrita como a “melhor má ideia” para resolver a situação, empregando a ajuda do maquiador John Chambers (Goodman) e do produtor Lester Siegel (Arkin) para simular a existência de uma produção de ficção científica interessada em usar o Irã como locação, o que justificaria sua entrada no país e a posterior fuga com os seis norte-americanos, que assumiriam os papéis de integrantes do projeto cinematográficos. O nome da tal produção? Argo. Esforçando-se para evitar uma postura ufanista tão comum em produções do tipo (lembrem-se do repulsivo ‘Falcão Negro em perigo’), o filme contextualiza a invasão à embaixada ao explicar o papel fundamental desempenhado pelos Estados Unidos na queda do presidente Mohammad Mosaddeq e sua substituição pelo sádico xá Reza Pahlevi, que prendia e torturava dissidentes e levou o país à miséria enquanto esnobava sua opulência – e o roteiro chega a exagerar ao trazer funcionários da CIA fazendo uma improvável autocrítica com relação às ações no Irã. A partir daí, o filme salta de Teerã a Los Angeles com fluidez enquanto acompanha os preparativos do protagonista, que ainda é obrigado a enfrentar não apenas disputas internas em sua própria agência, mas também a natureza implacável de Hollywood.

Hollywood corroeu tanto a própria credibilidade ao produzir obras “inspiradas em fatos reais” que nada têm a ver com a realidade que, ao final deste Argo, o diretor Ben Affleck sente uma clara necessidade de exibir na tela parte do material de pesquisa utilizado para recriar os incidentes narrados em seu filme a fim de convencer o espectador de que tomou o menor número possível de liberdades criativas – e até mesmo um áudio do ex-presidente Jimmy Carter discutindo os acontecimentos é incluído pelo ci- Neste sentido, Argo parece se dividir em dois filmes com atmosferas radicalmente diferentes: de um lado, há a urneasta.

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gência e a tensão das sequências no Irã, que lidam com as dúvidas e receios dos foragidos; de outro, a leveza e as piadas envolvendo as passagens em Los Angeles (uma diferença ressaltada pela boa fotografia de Rodrigo Prieto, que oscila entre a paleta dessaturada e fria de Teerã e as cores quentes e intensas da Califórnia). Aliás, é admirável observar a segurança com que Ben Affleck conduz a narrativa, continuando a se solidificar como um diretor excepcionalmente talentoso ao mesmo tempo em que expande seu universo, que até então se limitava a histórias ambientadas em sua Boston natal. Por outro lado, é inevitável que o longa perca um pouco de seu peso dramático em função do humor presente nas cenas em Hollywood, o que é uma pena. Contando com um elenco coeso (e carregado de figuras vindas da televisão, como Bryan Cranston, Tate Donovan, Kyle Chandler e Richard Kind, entre outros) que Affleck explora com eficiência, Argo cria uma narrativa ambiciosa e complexa ao lidar com um grande número de personagens sem criar muita confusão na mente do espectador – e é lamentável, portanto, que algumas ideias acabem sendo mal exploradas, como o óbvio alcoolismo

do protagonista ou a relação entre os personagens de Goodman e Arkin, que parecem apenas oferecer alívio cômico ao filme (algo que fazem admiravelmente bem). Eventualmente se entregando aos exageros dramáticos que parece tão ansioso para negar,Argo tropeça também na artificialidade do clímax, que atira uma série de obstáculos improváveis no caminho do herói apenas para acentuar a tensão - mas quando isto ocorre, o filme já ofereceu tantos bons momentos que se torna fácil perdoar o equívoco de seu cada vez mais promissor realizador.

_____________________________________ Pablo Villaça é crítico de cinema desde 1994 e colaborou com publicações nacionais como ‘MovieStar’, ‘Sci-Fi News’, ‘Sci-Fi Cinema’, ‘Replicante’ e ‘Set’. Atualmente, além de diretor do Cinema em Cena, criado em 1997, é também professor de Linguagem e Crítica Cinematográficas em curso ministrado em mais de dez cidades em todas as regiões brasileiras ao longo de 30 edições.

Foto: Rodrigo Prieto - www.argothemovie.warnerbros.com

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Como financiar seu filme pela internet Larissa Padron

Você sabe o que é crowdfunding? Traduzindo ao pé da letra, crowdfunding significa “fundo de multidão”, ou seja, é um financiamento coletivo, pessoas físicas e jurídicas doando dinheiro por alguma causa. Vulgo “vaquinha”. E por mais que esse sistema já exista há décadas, ele tem sido bastante utilizado no âmbito da internet, especialmente a partir de 2008, quando doações online feitas por mais de um milhão de pessoas ajudaram na campanha e eleição de Barack Obama, atual presidente dos Estados Unidos. Crowdfunding também significa que você pode realizar velhos sonhos a partir do um real dos outros. Mas o que isso tem a ver com cinema? Tem a ver que para conseguir colocar na tela aquele seu velho roteiro você não precisa sair lendo editais ou procurando empresas patrocinadoras. Claro, isso ainda é necessário dependendo do caso, mas hoje você já pode concluir seu filme usando apenas o seu Facebook. Para esta edição da coluna Que Cinema é Esse? conversamos com Diego Reeberg, sócio-fundador do Catarse, e Bruno Beauchamps, sócio-diretor do SIBITE. Eles são responsáveis por dois dos principais sites do sistema de crowdfunding no Brasil.

Foto: Google imagens (autor desconhecido)

mais caros normalmente requerem um tempo maior para arrecadação. Por exemplo: se você está sem dinheiro para realizar a sonorização de seu filme e orçou o valor necessário em R$ 8 mil, você elabora uma descrição e um vídeo para explicar o seu filme como um todo, envia o vídeo para o site junto como uma justificativa de onde será aplicado o dinheiro, e o site vai definir se o projeto é viável e determinar o tempo (o que pode ser semanas, meses, um ano...) em que ele ficará disponível para doações. Os valores variam muito e podem ser doados tanto por pessoas físicas, o que é mais comum, quanto por pessoas jurídicas. No caso do SIBITE, também existe uma rede de investidores e o site realiza a mediação, podendo encontrar uma empresa patrocinadora para o seu projeto. Com o projeto no ar, uma porcentagem do valor arrecadado fica para o site como taxa de manutenção. No caso do Catarse, a taxa é de 7,5% do montante, mas apenas para os projetos bem sucedidos, que conseguem atingir a meta no tempo estipulado. Aqueles que não conseguem não perdem nada, pois a inscrição no site é gratuita e o dinheiro arrecadado é devolvido aos investidores nesse caso. Mas além de possibilitar o financiamento de projetos culturais, os sites de crowdfunding são principalmente um espaço de troca entre pessoas engajadas culturalmente. O SIBITE, por exemplo, possui uma rede social dentro do próprio site, na qual você pode entrar em contato direto com uma rede de investidores e ainda mobilizar mais pessoas para divulgar seu projeto. No Catarse você pode fazer login com a sua própria conta do Facebook, mas Reeberg explica que a interação pode ir mais além: “O Catarse é mesmo um espaço de trocas. O financiamento é o cerne, mas por ali rolam discussões, algumas pessoas oferecem serviços de ajuda aos realizadores, o realizador pode criar uma comunidade a partir de quem apoiou o projeto, e por aí vai”.

Como funciona? Para inscrever um projeto nesses sites você precisa ter um plano bem estruturado do que pretende fazer com o investimento, ter uma explicação do projeto como um todo, o valor que precisa (que será a sua meta) e oferecer as contrapartidas, que é o que você oferece em troca das doações. Por exemplo, quem doar acima de R$ 20 pode ganhar um ingresso para a pré-estreia do filme; quem doar acima de R$40 ganha ingresso para a pré-estreia e mais um cartaz autografado, e por aí vai. Normalmente, quanto mais criativas as contrapartidas, maiores as chances de sucesso. Para ambos os sites você também precisa criar um vídeo explicando o projeto. A partir disto, a curadoria de cada site vai avaliar o seu projeto e verificar se ele é viável, se as contrapartidas são interessantes, se o benefício é realmente para um projeto cultural, e não para ações individuais, E como fazer funcionar? e estabelecer um tempo para a meta ser atingida. Projetos Quanto mais bem divulgado o seu projeto for, mais chan-

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crowdfunding, ele está pré-vendendo alguma coisa que ainda não saiu do papel, que não aconteceu. Isso gera um boca a boca, uma campanha na internet antes de o projeto realmente acontecer”. Mas... Dá mesmo certo?

Em apenas um ano de funcionamento, o Catarse já teve 278 projetos finalizados, uma média de cinco por semana. Mais da metade desses projetos foram bem sucedidos, arrecadando ao todo R$ 1,36 milhão de mais de 15 mil pessoas, de todas as regiões do país. Cerca de 15% desse montante arrecadado foi para a área Cinema & Vídeo, a segunda mais bem sucedida no site (a primeira é Música). O projeto que mais deu certo no site é um projeto de cinema. O documentário Belo Monte – Anúncio de Uma Guerra arrecadou R$ 140 mil reais para a sua finalização. Já no SIBITE, a série de animação em rotoscopia O Mensageiro da Galáxia foi o segundo projeto a bater sua meta no site, conseguindo mais de R$ 10 mil para fazer o seu episódio piloto. Quer saber mais se fazer um filme (ou ajudar um) com dinheiro de vaquinha online vale a pena? Na segunda parte desta edição da coluna, você vai conhecer o lado de quem tem um projeto cadastrado em um site de crowdfunding e o de quem investe nesses projetos.

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Larissa Padron escreve para a coluna ‘Que cinema é esse?’ do site Cinema em Cena – www.cinemaemcena.com.br.

Foto: Google imagens (autor desconhecido) - Fonte: httos://mais.al (Fest. Cinema Univ. Alagoas)

ces ele terá de ser bem sucedido - e, para isso, as diversas redes sociais existentes são grandes aliadas. As redes sociais são tão importantes para o sistema de crowdfunding que até mesmo pelo próprio Facebook você pode montar uma página para angariar os fundos dos quais necessita. O aplicativo Mobilize foi criado especificamente para isso. Os próprios nomes dos sites dizem da essência do sistema de crowdfunding. “Catarse”, no dicionário, é “palavra pela qual Aristóteles designa a ‘purificação’ sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática”. É realizar um desejo seu através da realização dos outros. Já o nome “SIBITE” vem da importância da insistência para realizar um projeto cultural no Brasil. Segundo Beauchamps, “Sibite é um tipo de passarinho do nordeste brasileiro, um passarinho mirrado, mas muito persistente, que não desiste nunca. Nosso movimento cultural é bem por aí também. Temos que criar uma cultura de investimento”. As vantagens desse método de financiamento são menos burocracia, maior facilidade de divulgação, aproximação com o público e menos risco financeiro. Mas não é só isso. Segundo Reeberg, “em geral, é caro fazer cinema. Então é muito comum um projeto entrar no site para fazer parte da captação só para a edição, só para a sonorização, só a montagem. Essa é uma oportunidade bem bacana pra captar aquela grana final para o projeto acontecer, além de deixar o público mais perto. E o fato de que as pessoas podem contribuir a partir de muito pouco, né? R$10 todo mundo tem!” Beauchamps conclui: “O sistema de crowdfunding democratiza o acesso dos pequenos ao mercado cultural. Quando alguém coloca um projeto numa plataforma de

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lência e o desejo sexual. E para inibir esses instintos, criou o sentimento de culpa. É possível fazer um paralelo com o livro: quando a humanidade perde a visão (um possível mecanismo regulador do sentimento de culpa), logo os Ensaio sobre a cegueira: dois instintos já mencionados afloram. Mas o livro também fala sobre medo, sobre dominação e poder, enfim, o Se tiver olhos veja Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. leque é infinito. O leitor parece receber um material bruto e precisa tirar dele suas próprias conclusões. José Saramago. A adaptação dirigida por Fernando Meirelles (2008) é exMelissa Vassali tremamente fiel ao livro. Não que a fidelidade ao original O escritor português José Saramago, morto em 2010, dis- seja algo realmente importante, muitas vezes as adaptase que um dia, sentado à espera do almoço, lhe veio uma ções ganham quando vão em direção oposta. Mas no caso dúvida à cabeça: e se ficássemos todos cegos? E tão súbita de Ensaio Sobre a Cegueira, que se propõe a ser justaquanto a dúvida, veio a resposta: mas nós estamos todos mente isso, um ensaio, um tratado sobre a condição hucegos. Porque para estar cego é preciso muito menos que mana, o filme cresce ao expor os fatos exatamente como são narrados. enxergar tudo negro. Se durante o filme recebemos tantas informações que fica até difícil pensar, ao final a reflexão é inevitável. Meirelles não tenta encontrar explicações para o inexplicável e abre um espaço para que o público se questione. É possível dividir o filme em três partes: um prólogo, que mostra como os principais personagens ficam cegos; as sequências no manicômio e a parte final, quando os cegos ganham as ruas. Na abertura, quando o primeiro homem fica cego, é interessante observar as luzes do semáforo, que são enquadradas e se apagam como olhos que deixam O próprio autor definiu essa cegueira como uma ceguei- de ver. ra da razão – não que o homem seja irracional, ao contrário. O problema é que utiliza sua razão para destruir A já tão comentada fotografia superexposta, os enquaoutros homens. Irracionais são os animais, que matam dramentos tortos e as imagens desfocadas, usados para por instinto. O homem mata por prazer. Ainda que esse retratar nas telas a cegueira branca, são destaques do filtenha sido o sopro de ideia que deu vida ao livro, quando me. Mas outros recursos ajudam a mostrar os horrores lançado ao mundo as possibilidades de interpretação se desse mundo caótico, uma iluminação fria, a direção de abriram, como acontece como qualquer obra de arte. E arte também em tons frios, sobretudo durante as cenas assim, Ensaio Sobre a Cegueira ganhou suas dimensões do manicômio. Assim surgiu a inspiração para escrever Ensaio Sobre a Cegueira, uma de suas obras mais conhecidas, em que uma epidemia de cegueira branca se espalha incontrolavelmente. Os primeiros contagiados são levados para quarentena em um antigo manicômio, mas mesmo assim o mal não para de se propagar, colocando à prova as bases que sustentam a civilização. Nesse mundo caótico, apenas uma mulher, esposa de um médico, ainda é capaz de enxergar.

políticas, sociológicas, filosóficas.

Fotos: Cesar Charlone

Assim como no livro, os personagens não têm nomes. Freud disse que para o homem viver em sociedade foi ne- São identificados por suas condições: o médico, a mulher cessário abrir mão de seus instintos mais primitivos: a vio- do médico, o velho da venda preta, etc. Isso, somado à

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violência da história, é sempre um risco, pois atrapalha a identificação do público com os personagens. O próprio diretor reconhece que precisou fazer algumas concessões nas cenas de estupro, por exemplo. Mas quando se assiste ao filme, não dá para imaginar que elas ainda poderiam ser mais violentas. Se já é difícil lidar com toda essa intensidade no livro, nas telas os horrores crescem exponencialmente. Quando José Saramago assistiu ao filme, disse que finalmente pôde conhecer os rostos de seus personagens. E a escolha dos atores, cada um representando uma etnia diferente, mostra que o mal de que a história fala é um mal de toda a humanidade. Certamente, Ensaio Sobre a Cegueira não é um filme para ser assistido num sábado à noite. Ou talvez seja, mas é preciso estar preparado psicologicamente. Quem estiver preparado, que veja e repare.

Imagem: Cartaz Ensaio sobre a cegueira #2

Foto: Cesar Charlone

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A telenovela e o imaginário

A influência transformadora de “Avenida Brasil” Fina Tranquilin Ao se analisar qualquer produto de TV é sempre necessário levar em conta que os receptores são ativos, independe de qualquer classificação social como geração, faixa etária, grau de escolaridade ou de nível econômico. Estamos falanImagem: Google (autor desconhecido) do de seres humanos, portanto de gente que pensa, age, sonha, deseja e raciocina – por mais que isso desiluda aqueles que acreditam que quanto menos favorecidos economicamente os indivíduos são, menos serão sujeitos de sua própria história e da história social. Portanto, estou aqui deixando claro que não compartilho da ideia de manipulação de forma alguma, principalmente a manipulação advinda da indústria cultural, como afirma a Escola de Frankfurt, por mais que o produtor a deseje. Outra coisa que precisa ficar muito clara quando analisamos a recepção é que os produtos culturais, como a telenovela, vêm ao encontro daquilo que somos como seres humanos: Somos 100% natureza e 100% cultura ao mesmo tempo, o que significa dizer que a relação existente entre nosso cérebro complexo e a realidade que vivemos é sempre caótica, pois a cultura existe para impedir, regrar, normatizar a nossa natureza Sapien-Demens – como bem analisa Morin. Não podemos esquecer que o ser humano é o único animal que mata por prazer, assim como salva pelo mesmo motivo. Ao analisar o impacto da telenovela “Avenida Brasil”, pensando na recepção podemos dizer que foi uma telenovela que se aproximou da camada popular de forma maravilhosamente bem, ou seja, o núcleo rico, normalmente muito forte em telenovelas – como podemos ver em Salve Jorge – foi minimizado no folhetim, e o que ganhou força foi o núcleo da camada popular. Isso pode ser analisado tanto pelo olhar na produção quanto pela recepção. Vou trabalhar aqui somente o da recepção. Ainda assim, essa análise poderia ser elaborada por vários aspectos, mas vou trabalhar aqui, somente dois deles: Os mecanismos de identificação e projeção existentes no imaginário humano. A proximidade com o modo de vida das camadas populares gerou uma grande identificação com os indivíduos a ela pertencentes, aliás, o grande público da rede Globo hoje são as classes C e D. De qual identificação estou falando? Daquela que faz parte dos nossos mecanismos imaginários. O mecanismo de identificação faz com os indivíduos incorporem o meio ambiente no seu próprio eu e o integrem afetivamente. Dessa forma, ao se identificar com as personagens (Nina, por exemplo), com as relações que se dão nos determinados ambientes sociais (como as refeições na casa do Tufão), com os estilos de vida (as relações no Divino), com o figurino (Suelen, Muricy etc.), com a música, enfim, os receptores trazem esses elementos identificatórios para a vida real e para seu próprio imaginário, e isso faz com que todos queiram acompanhar a telenovela, que queriam postar elementos da narrativa nas redes sociais, que

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consumam os produtos que as personagens consomem etc. E por que a identificação foi tão profunda? Porque os elementos culturais e imaginários presentes na narrativa de “Avenida Brasil” são muito próximos da vivência real e imaginária dos receptores das camadas populares – não somente delas, pois independente da classe social, os brasileiros sabem que o Brasil é o pais da diversidade cultural, da desigualdade social, mas também da alegria contagiante, da sensualidade etc. Outro ingrediente que levou à grande audiência pode-se dizer que foi o mecanismo imaginário de projeção. A projeção é um processo universal (existe em toda a espécie humana) e multiforme (se manifesta de várias maneiras). As nossas necessidades, aspirações, desejos, obsessões, receios individuais, projetam-se, não só nos nossos sonhos e imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos os seres – as projeções imaginárias estão ligadas àquelas coisas que normalmente são proibidas socialmente de acontecer e por isso são reprimidas pela nossa natureza. Quem de nós não sente vontade de fazer muitas coisas que a Carminha fez? E a Nina, quem não gostaria de planejar uma vingança como a que ela planejou? Que homem não gostaria de ter o físico do Leleco, com aquela idade e ainda ter duas mulheres lindas, sendo uma delas bem jovem? Poderíamos dizer que imaginariamente muitos possuem essa vontade, mas quase tudo isso é moralmente proibido – alias, é bom que o seja. Quando admiramos uma personagem e seus atos ilícitos passamos a nos projetar imaginariamente, ou seja, a personagem faz por nós aquilo que não podemos fazer e isso nos dá prazer, alivia as nossas tensões e, assim, passamos a admirá-la e, obviamente, que isso amplia a audiência dos produtos culturais. Por isso que no caso de “Avenida Brasil”, a vilã (Carminha), o cafajeste (Cadinho) e a vulgar (Suelen) passam a ser também amados quando deveriam ser odiados pelos receptores. Não devemos esquecer nunca que qualquer o consumo, e principalmente o consumo cultural, é sempre uma troca instigante e interessante entre Natureza e Cultura. _____________________________

Fina Tranquilin é graduada em Ciências Sociais pela PUC-SP, onde também realizou mestrado e doutorado em Antropologia. É pesquisadora de grupos vinculados ao CNPQ e ao Observatório Ibero Americano de Teledramaturgia e docente em Sociologia e Pesquisa no Ceunsp.




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