Edição 244 - Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA

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17 DE abril DE 2012 • aNO XXi • N.º 244 • QUiNZENal GraTUiTO DirETOr camilO sOlDaDO • EDiTOrEs-EXEcUTiVOs iNês amaDO Da silVa E JOãO Gaspar

Crise e psiCologia Como a pressão financeira está a afetar-nos

acabra

pág. 12-13

JOrNal UNiVErsiTáriO DE cOimbra

Arranca em setembro projeto para colmatar falhas do Estado no ES

inês Balreira

DG/AAC vai apresentar ainda este ano o projeto de ação social que deseja dar resposta a carências dos alunos. Ricardo Morgado quer garantir que o estudante não abandone o ES

“T

emos que dar resposta ao estudante carenciado, seja bolseiro ou não”, afirma o presidente da direção-geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), Ricardo Morgado, a respeito do projeto de ação social que foi apresentado no Fórum AAC aos núcleos de estudantes participantes. No evento realizado entre 14 e 15 de

abril, em Gouveia, os núcleos puderam debater o projeto de ação social, ainda em construção, que vai entrar em vigor no ano letivo 2012/2013. Com a crise a fazer de sombra a Portugal, os pedidos de ajudam aumentam e a DG/AAC vê-se obrigada “a colmatar as falhas do Estado”. Desta forma, a iniciativa pretende ter soluções para problemas como a perda de bolsa, a falta de dinheiro

para alimentação ou problemas com alojamento. Para dar essa resposta, a direção-geral pretende celebrar parcerias com instituições e associações da cidade, assim como com a universidade e a Câmara Municipal de Coimbra. Este programa, de acordo com Ricardo Morgado, almeja “garantir que o estudante não abandone o ensino superior”. pág. 4

entrevista • miguel gomes

“Não percebo as pessoas que filmam o que não gostam” pág. 8

Lei do arrendamento ameaça Repúblicas

CrítiCa ao filme pág. 18

pág. 7

uma nova eduCação?

rugBy da aaC

Segmentação por nível na reforma educativa

Época positiva para “Consciência de a secção dos “Pretos” região”

A demagogia dos cortes vem sendo apregoada desde a imposição do memorando de entendimento com a “troika”. A educação junta-se ao lote e, com a reforma, levanta-se a hipótese de dividir os alunos por níveis de saber. Coordenadores de departamentos, docentes e associações avaliam a questão no sentido de saber qual a importância desta medida. pág. 16

CCdrC

A “final four” do escalão sénior e a final da taça de Portugal mostram o bom plano da Secção de Rugby. A isso, junta-se a taça nacional dos sub-21, assim como outros feitos dos escalões mais jovens. A direção realça o trabalho de estrutura como elemento fundamental do sucesso da secção. pág.10

Depois de cerca de cinco anos à frente do iParque, Joaquim Norberto Pires assumiu, em março, a presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC). Pretendendo desenvolver um trabalho técnico e sustentado, Norberto Pires pretende incutir uma “consciência de região” no centro do país. pág. 14

Bipedismo humano

aCademia

Estudo em chimpanzés

Suspensão da praxe

O trabalho da investigadora do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde, Susana Carvalho, revela que em condições de menor abundância do alimento mais desejado, os chimpanzés adotam uma postura bípede com maior frequência. O estudo reforça uma das teorias para o surgimento do bipedismo humano. pág. 15

Na sequência das queixas apresentadas ao Conselho de Veteranos relativas a abusos na praxe, gerou-se um debate no seio da comunidade académica. A praxe não era suspensa desde a sua restituição em 1980. págs. 2 e 3

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Mais informação em

acabra.net


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deStAqUe

Praxe: um debate constante A suspensão inédita das praxes relacionadas com caloiros na Universidade de Coimbra relança a discussão e levanta, novamente, interrogações sobre a tradição académica. A informação parece ser o método mais consensual para prevenir abusos futuros. Por Camilo Soldado

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esde o luto académico, decretado no decorrer da crise académica de 1969 e levantado em 1980, que a praxe não era suspensa na Universidade de Coimbra (UC). Devido a três queixas apresentadas no Conselho de Veteranos (CV) por estudantes da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da UC, nos passados dias 22 e 23 de março, as praxes de gozo e de mobilização foram suspensas. As versões sobre os acontecimentos que motivaram as queixas multiplicam-se e, por isso, o Dux Veteranorum, João Luís Jesus, é cauteloso: “estamos a ouvir as pessoas envolvidas, desde as queixosas às acusadas, procurar realmente o que é que se passou e em que condições, e apurar culpas, caso existam, relativamente às infrações praxísticas”. O Dux refere que, em algumas das queixas, aparecem referências a violência física, pelo que foi dito aos queixosos que essas questões “não fazem parte da praxe e devem ser tratadas no Ministério Público”. Uma semana depois de o Conselho de Veteranos ter tomado conhecimento do assunto, os tipos de praxe que implicam a interação de “caloiros” com “doutores” foram suspensas. O assunto tomou proporções mediáticas a nível nacional e o debate sobre abusos na praxe foi relançado com o Ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, a vir a público para condenar “as praxes violentas”. Não tardou a que docentes se pronunciassem sobre o assunto e

começaram a circular na Faculdade de Letras da UC (FLUC) e Faculdade de Economia da UC (FEUC) abaixo-assinados entre os professores. O investigador do Centro de Estudos Sociais (CES), Miguel Cardina, regista esta posição dos docentes. “É algo que tem alguma relevância porque os professores, muitas vezes, têm um défice de participação naquilo que é a vida académica, estão fechados

Professores com várias orientações relativamente à praxe já assinaram, garante Catarina Martins nas suas cátedras”, entende o investigador. Catarina Martins é uma das promotoras iniciais da petição que conta agora com mais de 100 assinaturas na FLUC. O abaixo-assinado, “que resulta de uma preocupação generalizada relativamente a abusos em práticas de praxe”, pretende fazer com que os órgãos diretivos da faculdade forneçam uma maior informação aos estudantes do primeiro ano. Na FEUC, José Manuel Pureza é um dos proponentes do abaixoassinado. “Há um silêncio que se tem estabelecido na Universidade de Coimbra em torno de práticas que são atentatórias da dignidade das pessoas que nelas vivem e esse silêncio é insuportável”, acredita o docente.

Professores com várias orientações relativamente à praxe já assinaram, garante Catarina Martins, que expõe “situações violentas física e psicologicamente para os estudantes, mas também para os professores porque há registo de atos de invasão de aulas por parte da praxe”, o que constitui “uma disputa do território da sala com os professores”. O docente da Faculdade de Economia esclarece que o sim ou não à praxe não está em questão. “O que está em jogo é uma iniciativa por parte da faculdade no sentido de informar, de acompanhar e esclarecer todos os estudantes”, explica José Manuel Pureza. João Luís Jesus considera que o intuito dos abaixo-assinados é “redutor”. “Aquilo que eles defendem é que a violência gratuita e a falta de educação devem acabar na praxe. Eu acho que aquilo que os docentes estão a pedir que acabe, deve acabar em todo o lado”, avalia o Dux. Reconhecendo que há abusos pontuais no decorrer da praxe, João Luís Jesus relaciona esse facto com o que diz ser a falha na formação cívica das pessoas. Um ritual em mutação O historiador e docente na FLUC, Amadeu Carvalho Homem, também já subscreveu o abaixo-assinado e tece duras críticas sobre aquilo que é hoje a tradição estudantil: “a praxe de hoje, em relação àquilo em que foi a praxe no passado, não é mais do que uma grosseira caricatura”. O excesso está ligado à história

da praxe, inclusive há registo de mortes de “novatos” nos anos em que a praxe ainda não tinha esse nome. Por entre suspensões e discussões, a praxe evoluiu. Carvalho Homem explica que “à medida que o tempo foi decorrendo, a própria dimensão e o maior eco da dignidade das pessoas e dos direitos humanos começou a ser preponderante”. Para o mesmo, “a praxe começou a ser um instrumento extremamente produtivo, eficaz e inteligente de dar coesão a uma determinada academia”. Nesta perspetiva, o Dux considera que, nas últimas cinco décadas, “grande parte daquilo que era corriqueiro acontecer, neste momento é proibido, mas a essência daquilo que é praxe e s t á inalte-

Cronologia das interrupções

1910 Com a implantação da repúb praxe é abolida. Seria retom em 1919.

1789 1727 D. João V suspende as práticas rituais, depois de estas resultarem na morte de novatos.

1830

1898

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rada”. Apesar de a praxe ter evoluído desde as suas origens e o seu código estar em mutação, João Luís Jesus é perentório: “A praxe é hierárquica, é machista, é sexista. São características intrínsecas à praxe da UC e quando isso deixar de existir, deixa de ser a praxe da UC”. O historiador considera que a praxe sempre foi “um instrumento de relacionamento dignificante para ambas as partes”, mas entende que esse sentido está perdido. Assim sendo, “significa que a praxe deixa de fazer sentido, que é quase higiénico acabar com a mesma se por acaso ela se mantiver tal como está”. A importância da informação Na Universidade do Minho, na sequência de práticas abusivas na praxe no início do ano letivo, a reitoria colocou restrições à praxe nas instalações da instituição. O proponente do abaixo-assinado na FEUC veria com bons olhos “uma intervenção por parte da reitoria no sentido de fazer sentir à comunidade universitária que repudia por inteiro quaisquer situações que violem a dignidade das pessoas”. No entanto, João Luís Jesus afirma que o código da praxe “já prevê essas restrições de modo a que não aconteçam atropelos no exercício das regras da praxe”. O Dux Veteranorum da UC acredita que não é a fazer esse tipo de proibições que se resolve o problema porque, “se se proibirem as pessoas de praxarem em determi-

nado local, pura e simplesmente, elas deslocam-se para outro”. Até ao fecho da edição, o Jornal Universitário de Coimbra – A CABRA, tentou obter um comentário da reitoria da Universidade de Coimbra, sem sucesso. A resolução dos problemas em termos de praxe deve ser efetuada através de informação e na tentativa de sensibilizar as pessoas para a realidade e para os limites que existem. A opinião é consensual entre os promotores das petições e o Dux: “as faculdades têm

a praxe é hierárquica, é machista, é sexista. são características intrínsecas à praxe da UC que ter um papel interventivo nessa dimensão de esclarecimento”, acredita Catarina Martins. Para João Luís Jesus, o papel do Conselho de Veteranos tem estado a ser cumprido. “Estamos a falar de um caso em vinte mil estudantes. Isso é sinal que isto é uma situação muito esporádica na UC”, afirma. Há três anos que o CV entrega gratuitamente um exemplar do código da praxe e, segundo o Dux, no primeiro ano foram entregues 600 exemplares, no segundo entre 800 e 900 e no presente ano letivo foram entregues mais de 1000. A completar a

entrega, o Conselho de Veteranos “faz regularmente sessões de esclarecimento nas faculdades de modo a que haja uma maior divulgação possível das normas”. Para Pureza, se o abaixo-assinado “der origem a debates sobre o que é a praxe, o que deve ser, o que não deve ser, excelente”. Entretanto, na Faculdade de Letras, está já agendado um debate para amanhã com o tema “A praxe académica ontem e hoje”. Catarina Martins adianta que já há contactos com várias universidades “para uma manifestação geral de docentes contra as praxes violentas”, apesar de serem apenas contactos preliminares. O fim da suspensão Os factos que deram origem ao inquérito remontam a “finais de outubro, início de novembro”, explica João Luís Jesus, mas só há três semanas chegaram ao conhecimento do CV, sob a forma de queixa. Enquanto o inquérito decorrer, mantém-se a suspensão da praxe de gozo e de mobilização, uma suspensão que nunca tinha ocorrido de uma forma transversal à UC, a não ser por razões políticas. O Dux prevê que a fase de inquérito esteja concluída até à Queima das Fitas pelo que, a seguir à semana festiva, o CV deverá reunir para analisar os factos recolhidos. Terminado o processo, será reposta a normalidade na praxe da Universidade de Coimbra.

1960

1980 1969 Com a crise académica de 1969 é decretado o Luto Académico, que inclui a suspensão da praxe. Em 1980 é levantado o luto académico e a praxe regressa à UC.

UMa breve história a substituição de termos como «troças», «investidas» ou «caçoadas», o termo praxe surge por volta de 1860-70, como sugere “a tradição da Contestação”, livro de Miguel Cardina. No entanto, mais de um século antes, em 1727, o rei D. João v, já tinha suspendido as práticas rituais na sequência da morte de alguns novatos. em 1873, morre um estudante de direito no decorrer de uma praxe e gera-se a discussão sobre a violência na praxe. Com a chegada da república, a praxe é abolida para ser reposta em 1919. Já no período do estado Novo, um projeto do Código da Praxe é aprovado em 1957. No mesmo ano, surge um debate entre estudantes pro e contra a praxe. anos mais tarde, quando é decretado o luto académico no decorrer da crise académica de 1969, a praxe também é suspensa. a sua retoma só viria a registar-se em 1980 com alguma controvérsia. No início de cada ano letivo e nas várias instituições de ensino superior, vários são os casos de abusos na praxe que surgem na comunicação social e, todos os anos, o assunto é debatido. apesar de, em Coimbra, os acontecimentos que originaram o inquérito terem ocorrido em outubro/novembro, só agora foram apresentadas queixas e, por isso, só agora foi decretada a suspensão.

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2012 A praxe relacionada com caloiros é suspensa depois de serem apresentadas três queixas no CV relativas a abusos.

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EnSIno SupErIor Fórum AAC

Projeto de ação social entra em prática já no próximo ano letivo FotograFIa CedIda pela dg/aaC

Iniciativa apresentada pela DG/AAC aos núcleos no passado fim de semana, no Fórum AAC, visa garantir que o estudante universitário não abandone o ES João Gaspar No Fórum AAC, realizado no passado fim de semana, foi apresentado, por parte da direção-geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), a todos os núcleos de estudantes presentes, um projeto de ação social, ainda sem nome definido, e que “pretende dar resposta ao estudante carenciado, seja bolseiro ou não”, refere o presidente da DG/AAC, Ricardo Morgado. O projeto vai ser apresentado ainda este ano e entra em vigor no próximo ano letivo 2012/2013. Segundo afiança Ricardo Morgado, com este projeto a AAC quer afirmar-se como um centro em que o estudante consiga ter uma resposta para a perda da bolsa, a falta de dinheiro para alimentação, problemas com alojamento, ou até com a necessidade de ter um trabalho ‘part-time’ para financiar a sua formação superior. “Com todas estas respostas queremos dar e garantir que pelo menos durante o ano letivo que vai entrar em vigor o estudante não abandona o ensino superior (ES)”. “O Estado falhou”, afirma Ricardo Morgado e, portanto, considera que

a DG/AAC deve “criar um mecanismo para colmatar as falhas do Estado”. Dessa forma, a AAC vai ser então o centro basilar de um projeto “de grande dimensão”, que pretende celebrar acordos entre instituições da cidade, associações com quem a academia já tem protocolos, assim como com a Câmara Municipal de Coimbra, com a Universidade de Coimbra e com os Serviços de Ação Social da UC (SASUC). “Podemos ter a solução para o estudante em dificuldade”, comenta Ricardo Morgado, considerando que, com esta iniciativa, a AAC pode “finalmente dar uma resposta aos alunos com dificuldades”. O projeto, de acordo com o presidente da DG/AAC, já tinha sido começado a ser desenhado antes da atual direção ter tomado posse, sendo que o dirigente adianta que até ao final do presente ano letivo o mesmo terá de estar definido e cimentado, para que possa responder a quaisquer pedidos de ajuda em setembro.

Foco na política educativa e ação social No Fórum AAC, os núcleos puderam entrar em contacto com o mesmo projeto e apresentar ideias para a iniciativa referida. “A discussão que se gerou em volta do projeto no fórum ajudou a que se conseguisse planear e a tirar algumas ideias para o mesmo”, afirma a coordenadorageral do pelouro dos Núcleos da DG/AAC, Ângela Gomes. O evento, que se realizou em Gouveia, dividiu-se em quatro painéis: pedagogia, ação social, política edu-

cativa e saídas profissionais. Este ano alterou-se o formato, com cada pessoa a fazer parte de dois painéis de discussão, para que os núcleos, cada um representado por duas pessoas, pudessem participar nos quatro painéis do Fórum AAC. A colaboradora do pelouro de Intervenção Cívica e Ambiente no Núcleo de Estudantes de Psicologia e de Ciências da Educação da AAC, Alexandrina Gonçalves, salienta o painel de Política Educativa, no qual participou, considerando que é “bastante importante” a comunicação com os estudantes para o processo de sensibilização: “não se pode deixar cair no esquecimento aquilo

que se quer fazer. Temos de informar os estudantes”. Quem também destaca o painel de política educativa é o presidente do Núcleo de Estudantes de Engenharia Informática da AAC, Tiago Abrantes, realçando ainda o trabalho efetuado no painel de ação social, em que foram debatidas medidas a serem tomadas caso se venha a fechar uma cantina, assim como a exigência da abertura da lavandaria dos SASUC. Também nesse painel foram debatidas propostas em torno do regulamento de atribuição de bolsas de estudo a estudantes do ES. O presidente do Núcleo de Estu-

dantes de Engenharia do Ambiente da AAC, José Rodrigues, presente no painel das saídas profissionais, salienta a produtividade do Fórum AAC e adianta que foram apresentadas várias ideias no painel referido, entre as quais a possibilidade de se introduzir um separador na plataforma Nonio, em que se encontrasse “todo o tipo de ofertas de estágios, trabalho e eventos a nível nacional relativos a emprego e formação onde todos os alunos tivessem acesso à informação”. No painel de pedagogia, o processo de Bolonha e a avaliação pedagógica dos docentes universitários foram os temas centrais.

Estudantes voltam a pedir a palavra à semelhança de 1969 Além de ir falar às aulas, a DG/AAC vai assinalar o 17 de Abril criando uma ligação com a Assembleia Magna do dia 18. A data vai também marcar o início de uma mobilização interna Inês Balreira A 17 de Abril de 1969, Alberto Martins pedia a palavra em nome dos estudantes. 43 anos depois, o atual presidente da direção-geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), Ricardo Morgado, vai voltar a pedir a palavra, mas desta vez ao professor que às dez horas da manhã se encontrar a lecionar na sala, onde Américo Tomás recusou ouvir os estudantes.

É com este gesto simbólico que a academia coimbrã vai recordar o dia que marcou a crise académica de 1969. Ao final do dia haverá uma tertúlia, no Café Santa Cruz, pelas 21h30, com antigos líderes estudantis de Coimbra, e o assinalar da crise de 1969 vai estender-se ao dia seguinte. “No dia 18 de abril de 69 houve Assembleia Magna (AM) e nós, nesse dia, também temos Magna”, lembra Ricardo Morgado. Assim, a direção-geral pretende criar uma ligação entre o dia 17 e 18 de abril. “O dia 17 marca muito a força dos estudantes da Universidade de Coimbra e esta força vê-se muito nas Magnas, por isso esperamos ter mais estudantes nesta”, afirma o dirigente. O presidente da DG/AAC explica também que a transposição da memória histórica “para a AM é o melhor significado que se pode

dar ao 17 de Abril”, uma vez que “os tempos não estão para grandes festejos” e a académica assinalou já a efeméride da crise académica no passado mês de março. Quando pedir a palavra, Ricardo Morgado vai recordar os acontecimentos que marcaram o dia 17 de Abril de há 43 anos, mas também alertar para os problemas com que os estudantes se debatem atualmente. “Este assinalar da data marcará também o início de uma verdadeira mobilização interna, que não morrerá aqui”, assevera o dirigente, assegurando ainda que “as campanhas de sensibilização dos estudantes para as problemáticas de hoje em dia vão continuar”. “O maior problema não está nos dirigentes associativos e no que fazem de melhor ou pior. Falta um grande sentido de comunidade entre a juventude, aliado a um espírito de desinteresse e confor-

mismo, e esse é um dos maiores desafios que a AAC tem de contrariar”, explica Ricardo Morgado. Ainda nesta semana de simbolismo para a académica vai ser

apresentada, na noite de quintafeira,19, a comissão organizadora das comemorações dos 125 anos da AAC, assim como o logótipo e a frase comemorativa oficiais. Inês BalreIra


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EnSIno SupErIor

Magna para balanço de atividades Debate da próxima Assembleia Magna prevê discussão das iniciativas realizadas no mês pasado, sendo que estas foram criticadas pelos vários movimentos estudantis Inês Balreira João Martins Aproximadamente um mês e meio depois da última Assembleia Magna (AM), os estudantes voltam a reunir-se no seu órgão máximo já amanhã, 18, nas Cantinas Azuis. A AM, convocada na última discussão, a 7 de março, tem como principal objetivo fazer o balanço do plano de atividades reivindicativas proposto e realizado pela direção-geral da Associação Académica de Coimbra

(DG/AAC) durante o mês de março, que terminou com as comemorações do cinquentenário do Dia do Estudante. Mais do que fazer um balanço das atividades, o presidente da DG/AAC, Ricardo Morgado, considera que o mais importante é “continuar com a discussão com todos os estudantes” de maneira a se decidir o futuro político da AAC. Contudo, os vários movimentos de estudantes da academia fazem um balanço negativo das iniciativas, questionando os resultados das mesmas. “Todas as ações foram completamente inconsequentes”, classifica Fabian Figueiredo, membro do coletivo AAcÇão. Já para a membro do movimento A Alternativa És Tu, Catarina Ângelo, as iniciativas foram “simplesmente simbólicas e não trouxeram resultados”. Por sua vez, o membro da Frente de Acção Estudantil (FAE), Igor Constantino, mostra-se cético em

relação aos resultados: “são positivos se tiverem continuidade e se forem o começo de algo mais, são negativos se não se fizer mais nada”. Opinião contrária tem Ricardo Morgado, que considera que esta “fase zero” conseguiu “colocar a AAC no centro da informação com uma grande projeção mediática” e que a reivindicação “também passa pelos meios de comunicação social”. No entanto, o dirigente declara que agora é altura de passar para uma maior interação com os estudantes. “Tanto o boicote às cantinas, a colocação da passadeira vermelha e o concerto do 24 de março não foram uma forma de interagir com os estudantes”, afirma o presidente da DG/AAC, assegurando que “o próximo passo será ir às faculdades, às aulas, chamar os estudantes e trazê-los para o debate”.

Movimentos clamam por ações mais consequentes “Apesar de ser tarde, é urgente que haja uma ação de protestos”, assevera Fabian Figueiredo. Também Igor Constantino é da opinião de que a ação da DG/AAC deve ser “mais consequente” e vão ser “as decisões da próxima AM que irão influenciar o resto do ano a nível político”. Caso não saiam propostas concretas e consequentes da Magna, “o governo pode ficar descansado e daqui para a frente cortar ainda mais, porque já sabe que os estudantes adormecidos são os melhores companheiros das medidas antissociais”, alerta Fabian Figueiredo. No sentido de combater o que considera ser o adormecimento dos estudantes, Catarina Ângelo afirma que a Alternativa És Tu vai “aproveitar a Queima das Fitas para um momento reivindicativo,

assim como a final da Taça de Portugal”. Igor Constantino afirma que, na AM, a FAE vai apresentar um “projeto que tem levado a cabo com várias faculdades e professores da Universidade de Coimbra (UC)” – a Carta aberta por mais transparência universitária – a ser enviada aos órgãos dirigentes da UC. O estudante revela que a carta “procura esclarecer e dar voz a vários problemas que afetam os estudantes, como o aumento das propinas ou como vai funcionar o fundo de apoio aos estudantes, que já existia e ninguém sabe como é que se pode aceder”. Igor Constantino acrescenta que, durante a semana, a FAE vai tentar reunir com os Serviços de Ação Social da UC, com os diretores da Faculdade de Letras e de Economia e também com o reitor. “Vai ser uma batalha difícil, mas é mais fácil se formos nós e o Ricardo Morgado”. arquIvo

a próxima assembleia Magna realiza-se na próxima quarta-feira, 18, na cantina das azuis pelas oito horas da noite.

Espaços e horários são os maiores problemas dos núcleos Condições dos núcleos variam entre os vários polos da uC: enquanto os do polo I veem o espaço reduzido, os do polo II e III vivem uma situação oposta Inês Balreira João Martins Há um ano atrás o Jornal A CABRA noticiou a falta de condições de alguns dos núcleos de estudantes da Associação Académica de Coimbra (AAC). Um ano depois, verifica-se que houve algumas melhorias na condição do espaço de certos núcleos, mas também há aqueles que viram a sua situação piorar. Exemplo disso são os quatro núcleos de estudantes da Faculdade de

Economia da UC (FEUC) que partilham o mesmo espaço. O presidente do Núcleo de Estudantes de Economia da AAC (NEE/AAC), Dino Alves, afirma que o espaço não é suficiente, contudo, entende que devido à falta de capacidade infraestrutural os quatro núcleos tenham que partilhar a mesma sala. Contudo, a realidade dos núcleos da FEUC vai mudar, uma vez que o local de trabalho vai ser deslocado para um local mais pequeno do que o atual, como revela o presidente do Núcleo de Estudantes de Sociologia da AAC, Filipe Alves. O dirigente assevera que esta deslocação vai ter um custo inerente para os quatro núcleos, no que diz respeito a obras. Ainda assim, Dino Alves vê com bons olhos esta mudança. “Este novo espaço representa uma maisvalia porque tem acesso para o exterior, o que nos vai permitir trabalhar fora das horas do funcionamento da faculdade”, afirma o estudante.

Situação semelhante vive o Núcleo de Estudantes de Administração Público-Privada (NEAPP/AAC), que também se encontra condicionado ao horário de funcionamento do local que ocupa, na Imprensa da UC. Para além do horário a distância à Faculdade de Direito da UC também é um problema. “A distância entre a nossa faculdade e a sede acaba por afastar os estudantes da infraestrutura do núcleo”, revela o presidente do NEAPP/AAC, David Saraiva. O estudante afirma que essa situação pode ser ultrapassada dentro de alguns meses, uma vez que “está prevista a mudança da sala do núcleo para as instalações da antiga Faculdade de Farmácia da UC”. Falta de espaço é o maior problema do Núcleo de Estudantes da Faculdade de Letras da UC da AAC (NEFLUC/AAC), que recentemente conseguiu uma sala trabalho exclusiva. “É um espaço que não dá para reuniões com muitas pessoas, bas-

tante escondido e de difícil acesso”, afirma o presidente do NEFLUC/AAC, Daniel Nunes. No entanto, o estudante esclarece que é uma situação provisória, uma vez que “foi assegurado pela direção da FLUC que assim que houvesse disponibilidade o núcleo seria prioridade”. Realidades diferentes vivem os núcleos situados nos polos II e III da UC que possuem espaços mais amplos e com melhores condições de trabalho. Exemplo é o Núcleo de Estudantes de Engenharia Civil da AAC (NEEC/AAC). “As condições do núcleo, em comparação com a maioria dos outros núcleos são bastante boas”, releva o presidente, Vasco Queirós. O dirigente diz ainda que o núcleo vai ter um novo espaço, pois “está a ser construída uma sala no departamento que ficará aberta 24 horas”, que vai ser divida com o Núcleo de Estudantes de Engenharia do Ambiente da AAC. Contudo, Vasco Queirós mos-

tra-se relutante pois teme que as condições não sejam as mesmas. Em condição sui generis está o núcleo de estudantes de Medicina da AAC (NEM/AAC), que possui a sede nas instalações do polo I da Faculdade de Medicina da UC, mas também uma sala no polo III. “Utilizamos o espaço no polo I para reuniões e o do polo III para atendimento, pois é lá que decorre a maior parte das aulas e é onde os alunos podem recorrer mais facilmente”, diz a presidente do NEM/AAC, Inês Madanelo. Para a coordenadora do pelouro dos núcleos da direção-geral da AAC (DG/AAC), Ângela Gomes, o fundamental para o bom funcionamento dos núcleos é um espaço de trabalho próprio, “sendo poucos os que ainda não têm esse espaço”. Face à falta de espaço de alguns núcleos, Ângela Gomes ressalva que a DG/AAC disponibiliza, “sempre que requisitados os espaços da associação em horários disponíveis”.


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ENSINO SUPERIOR Nova lei do arreNdameNto urbaNo

Continuidade das repúblicas em causa A nova lei do arrendamento urbano abre um possível precedente no que concerne ao futuro das repúblicas da cidade. Para além desta ameaça, os repúblicos evidenciam as dificuldades, já antigas, que enfrentam diariamente. Texto por Inês Balreira e Ana Morais. Fotografia por Inês Balreira

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ntre quezílias com os senhorios e com contratos que estão em litígio há mais de 20 anos, as repúblicas de Coimbra deparam-se hoje com um outro possível problema. A nova lei do arrendamento urbano, apresentada no início do ano pelo atual governo, prevê a atualização dos contratos de arrendamento, mas também uma maior facilidade nos procedimentos para despejo de inquilinos por incumprimento do contrato. Visto que a atualização antevê um ajustamento das rendas anteriores a 1990, as repúblicas, que na cidade albergam um elevado número de estudantes, podem ver as suas rendas disparar, visto que a maioria dos contratos remontam à década de 1960. Como explica Renata Cambra, da República Prá-Kistão, com a nova lei do arrendamento as rendas passam a ser feitas segundo o valor patrimonial da casa. Gonçalo Mota, da República do Kuarenta, equaciona – “depois da avaliação patrimonial, a renda anual será 1/15 desse valor, que se divide depois por 12 meses”. “A nova lei do arrendamento poderá dar uma machadada final em várias repúblicas, porque vai permitir aos senhorios aumentar exponencialmente a renda”. É desta forma que Fabian Figueiredo, da República Solar Os Kapangas, encara esta nova realidade. Também Diogo Duarte, da República do Kuarenta, mostra os perigos que esta lei pode acarretar: “os despejos vão-se tornar mais fáceis”. Igor Constan-

tino, do Solar Residência dos Estudantes Açorianos, alerta para o “risco” que correm as repúblicas. Contudo, antecipa a proliferação do problema, ao “afetar casas envolventes antigas e que são habitadas por população idosa”. “Ao aumentar os preços [das rendas] aumentam também os preços das casas em redor que alugam quartos a estudantes”, acautela Renata Cambra. João Azevedo, da República da Praça, atenta para o risco do aumento considerável de preços: “no início, até podem ser atualizações mínimas, algo simbólico, mas partindo hoje para a atualização de renda pode ser o início do fim para muitas casas”. Para “garantir a preservação do regime de exceção das repúblicas” à nova lei do arrendamento, o grupo parlamentar do Partido Socialista (PS) apresentou uma proposta de

“A nova lei do arrendamento é uma certidão de óbito de grande parte das repúblicas” alteração, recuperando uma salvaguarda já contemplada na lei de arrendamento 1982, mas que a atual lei não comporta. Segundo o deputado socialista da Assembleia da República, Rui Duarte, esta alteração pretende que “as repúblicas não estejam sujeitas a contratos que de-

pois possam pôr em causa a subsistência das mesmas”. Quanto às expetativas de aceitação da proposta socialista, Rui Duarte mostra-se confiante e acredita que a mesma “gerará acordo por parte dos partidos”, uma vez que “é uma questão cultural, da academia, que não pode ser posta em causa”. “As repúblicas não são casas de ouro” A par desta recente problemática, as repúblicas vão enfrentando, no seu dia-a-dia, diversas dificuldades. Falta de condições infraestruturais, cortes nos apoios dos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra (SASUC) e até problemas em questões contratuais são alguns exemplos da realidade destas casas. “Já tivemos uma ordem de despejo da Protecção Civil porque o edifício estava em risco de ruir”, confessa Igor Constantino, que acrescenta que, já há quatro anos, o telhado tinha caído. O sentimento de reerguer pelas próprias mãos a casa que habitam é transversal à maioria dos repúblicos e Gonçalo Mota espelha esse facto – “a cozinha dos Kuarenta foi feita pelas pessoas da casa, porque não tinha”. Também Fabian Figueiredo conta que, nos Kapangas, todas as obras desde a sua fundação foram feitas pelos próprios. Outro edifício classificado como de risco iminente é a República Prá-Kis-tão, cujos alicerces remontam ao século XVI, onde se notam problemas de infiltração de água no telhado e de mau isola-

mento nas janelas, o que “é horrível no inverno”, partilha Ana Costa, república daquela casa. “Para quem n ã o co-

nhece, as repúblicas não são casas de ouro, não são palácios papais, não tem torneira de ouro”, ironiza João Abílio Almeida, comensal da República da Praça. Também no acesso à alimentação, os estudantes que moram nestes espaços enfrentam sérios obstáculos. Ainda com o anterior administrador, Jorge Gouveia Monteiro, foi distribuído um ‘plafond’ por cada casa “consoante o número de pessoas e comensais”, explica Gonçalo Mota. Esta aquisição de produtos alimentares não é feita de forma

Além da problemática que a nova lei do arrendamento pode trazer, as repúblicas enfrentam já problemas infraestruturais e de apoio social

gratuita, mas sim a um preço mais reduzido e, ainda assim, o acesso não é fácil. Renata Cambra revela que, por vezes, depois de serem feitas as requisições dos produtos, estes não se encontram no armazém – “há semanas seguidas em que não há ovos, por exemplo”. A dificuldade em chegar à fala com os respetivos senhorios é outra vicissitude. Igor Constantino assegura que há mais de 30 anos não conseguem dialogar com o senhorio. Na República Os Açorianos esta figura é apenas encarada como alguém a quem se tem de pagar a renda. Da mesma opinião é Renata Cambra – “o senhorio para nós é apenas um número para transferir a renda”. Papel social em altura de crise No mesmo ano em que a candidatura da Alta da cidade a património da UNESCO foi oficializada, as repúblicas ganham peso. Para o deputado do PS, “as repúblicas dos estudantes de Coimbra são um elemento da cultura académica”. “Pela importância social que as repúblicas têm, achamos que merecem essa especificidade na lei, para que as proteja”, explica Ana Costa, ao pedir ainda o apoio de outras entidades como a UC, os SASUC, a direção-geral da Associação Académica de Coimbra e até da Câmara Municipal de Coimbra. João Abílio Almeida vai mais longe e protesta - “há que manter estas casas, que são casas únicas de Coimbra. E não podem acabar por vontade de Lisboa, de pessoas sentadas em gabinetes”. Fabian Figueiredo apelida mesmo esta nova lei do arrendamento como “uma autêntica certidão de óbito de grande parte das repúblicas”. Além do aspeto cultural evidenciado pela generalidade dos repúblicos, também a missão social é aqui evidenciada. “As repúblicas cumpriram, desde sempre, um papel social na cidade”, assegura Fabian Figueiredo, ao evidenciar que, no atual período de crise, têm auxiliado “muita gente”. Ainda assim, o “kapanga” deixa uma reflexão: “se por um lado, as repúblicas, retoricamente, são valorizadas como património material e imaterial da cidade e da académica, por outro lado, em alturas de crise, são atacadas”.


17 de abril de 2012 | Terça-feira | a

cabra | 7

CUlTURA eNtrevista • miguel gomes

O realizador que pensa no cinema como jogo e faz do mundo tabu(leiro) “Tabu” é o novo filme de Miguel Gomes estreado a 5 de abril nas salas de cinema portuguesas. Por cá, ainda é obra recente, mas, no estrangeiro, já foi reconhecido e premiado. Em entrevista, o realizador lamenta o panorama atual da cultura em Portugal, especialmente na área do cinema. Aponta críticas à nova secretaria de estado, que diz medir a cultura por termos quantitativos e não qualitativos. Há espaço ainda para uma atenção aos jovens realizadores, para que estes “façam aquilo que venha com os seus desejos pessoais”

os filmes. Alguém pode estar muito dentro do que está a ver e a pessoa ao lado muito aborrecida. Em Berlim, tive a sorte de haver um feliz encontro entre as pessoas do júri e o “Tabu”, o que me deixa contente e agradado, sobretudo. É bom que existam pessoas tocadas por um trabalho que se faça.

"É bom que existam pessoas tocadas por um trabalho que se faça"

Ana Duarte Daniela Proença Várias são as críticas favoráveis dos media nacionais e internacionais ao seu novo filme, “Tabu”. Também recebeu vários prémios no Festival de Berlim e no Festival Las Palmas. Como vê este reconhecimento ao seu trabalho? Há uma cena no filme em que uma pessoa está numa sala de cinema, a chorar, acompanhada por um amigo, que está a dormir. Isto passa-se todos os dias: o espetador tem uma relação individual com

Este filme passa-se entre a África portuguesa dos anos 60 e Lisboa da atualidade. Em que é que se baseou para o argumento desta história? Baseei-me em várias coisas, não fiz nenhum tipo de investigação histórica nem tenho uma ligação pessoal a África. A primeira vez que pus lá os pés foi quando fui escolher sítios para filmar. Portanto, esta África passa por uma mitologia do que foi a África colonial e não por uma perspetiva ou histórica ou autobiográfica do tempo em que lá estive. Tento ser ho-

nesto nos meus filmes e se calhar é uma África que pode vir do filme do Tarzan, um senhor que se atirava de árvore em árvore nos anos 30 em estúdios de Los Angeles. E acho que o filme também pode vir daí, não me sinto obrigado a manter essa relação com a realidade histórica das coisas. Em janeiro, a deputada do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, afirmou que não haverá produção de cinema em 2012, pois os dois mecanismos que existem para o investimento no setor “estão parados”. Consegue fazer uma previsão para o futuro do cinema em Portugal? Neste momento, existem vários problemas. Um deles é o facto de o antigo Ministério da Cultura ter desaparecido e ter dado lugar a uma secretaria de estado, que depende do primeiro-ministro. E este anda ocupado com as coisas lá da troika. Por outro lado, a situação do cinema é muito má nesta fase porque está tudo paralisado. Existia uma antiga lei do cinema e, agora, está a ser proposta uma nova. Vivemos entre duas leis: uma que já não é aplicada e outra que há de vir. E está em discussão pública, supostamente... Não percebo em que lugar público, não dei por isso. Mas existe um prazo. De repente, o secretário de estado aparece a dizer “afinal vamos precisar de mais 30 dias”. Já vamos para os 90 dias de dis-

cussão pública e isto faz-me questionar sobre se existe vontade política para a fazer aplicar. Estamos todos na expetativa, sabendo que a situação é dramática. Mas apesar de todos os cortes que se tem vindo a fazer na cultura, nomeadamente no cinema, este é cada vez mais reconhecido fora do nosso país, inclusive nas últimas décadas. Como vê este paradoxo? Os filmes que têm sido falados ultimamente foram fruto de uma política cultural que neste momento é a tal que não está a ser aplicada. Apesar deste momento parecer excecional, ao longo dos últimos 50 anos, o cinema português tem estado regularmente em destaque no circuito internacional de festivais. É uma coisa constante, há fases melhores e piores. Paradoxalmente, a quantidade de filmes produzidos por cá é 10 vezes inferior àquilo que é produ-

“Para os meus planos futuros, tenho a sorte de poder contar com financiamentos exteriores” AnA DuArte

zido em Espanha, por exemplo. O facto de haver esse reconhecimento com tão reduzido número de filmes por ano é notável. Que temas é que lhe dão mais gozo abordar? Em “Aquele Querido Mês de Agosto” explora-se o típico Portugal serrano dos bailes de verão, onde há o regresso às “terriolas” e as famílias se juntam, que é um tema um tanto renegado culturalmente... O que me move é o desejo de alguma coisa. O universo dos bailes de verão nas aldeias é algo que estava próximo de mim, porque tenho uma casa de família na região de Arganil. Acho que não são temas, são coisas que me tocam, independentemente do valor cultural que lhes está associado. Isso a mim não me diz respeito, porque os meus filmes são pessoais. Nunca filmei coisas de que não gostasse e não percebo as pessoas que filmam o que não gostam, mesmo que digam que é para denunciar. Tanto sou sensível ao que acontece às pessoas quando envelhecem, como ao tempo fugaz de um amor de verão numa aldeia perdida no interior de Portugal. São todas as coisas que me interessam e tento fazer disso cinema. Já há planos para o futuro? Algum trabalho que poderá realizar proximamente... Neste momento, não há possibilidades para nenhum realizador em Portugal poder trabalhar dentro de um esquema industrial. Para os meus planos futuros, tenho a sorte de poder contar com financiamentos exteriores. Mas para pessoas que ainda não tiveram oportunidade de filmar tanto quanto eu e dar a conhecer o seu trabalho, a situação é dramática. Para mim, que me sinto um beneficiado porque tive a chance de começar a filmar numa altura onde havia mais oportunidades, para os outros, que estão a começar, já é difícil, mesmo que se inspirem em mim ou noutros, a questão é académica e irrelevante. Deixa algum conselho para os novos realizadores? Façam aquilo que venha com os seus desejos pessoais. Filmem coisas pelas quais se interessem, arrisquem a possibilidade de serem pessoais. Sem grandes teorias, sem grandes antecipações do que é que poderá dar um filme. Foi assim que fiz e não me dei mal.

@

Entrevistas na íntegra em

cabra net


8 | a cabra | 17 de abril de 2012 | terça-feira

CuLturA

Abril da canção de Coimbra cá

cultura por

O 13º Mês do Fado arrancou já no dia 10. Mas a atividade da SF/AAC prolonga-se até dia 28, reunindo atuações e palestras, culminando na noite da Serenata Monumental da Queima das Fitas. Por Ana Duarte

13 a 28 ABR

FEStivAL SAntOS DA CASA Vários LoCais Vários horários Vários Preços

19 ABR

“PLAy, thE FiLME”

TeaTro TaGV • 21h30 enTre 4€ e 7,5€

20 ABR

“LA ChAnSOn nOirE” músiCa FnaC • 22h enTrada LiVre

23 ABR

“A DAnçA, LE BALLEt DE L’OPErA DE PAriS” Cinema TaGV • 21h30 4€ Com desConTos

24 ABR

“FunkEnStEin” músiCa TabaCaria 5 euros

da

omT • 22h

26 ABR

“MAiOr” dança TaGV • 21h30 enTre 5€ a 8€

27 e 28 ABR

“SunSEt On MArS” dança TeaTro da CerCa de s.bernardo 21h30 • enTre 5€ a 10€

30 a 1 ABR

MAIO

“ESCOrButO”

1

TeaTro TaGV • 21h30 e 24h enTre 4€ e 7,5€

MAIO

BirDS ArE inDiE + GOBi BEAr musiCa TabaCaria da oTm • 21h30 enTrada LiVre

LiLiAnA CunhA

“E

ste é o maior Mês do Fado”. A presidente da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra (SF/AAC), Alice Lopes, caracteriza assim aquela que é já a 13ª edição do Mês do Fado, evento cujo principal objetivo é “sensibilizar os estudantes e a restante comunidade para toda a envolvência da Canção de Coimbra e para os seus intérpretes”. Este ano há uma forte aposta na iniciativa, que conta com o apoio da reitoria da Universidade de Coimbra (UC), da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) e da direção-geral da AAC, devido ao facto de a SF/AAC ter vindo a sentir “o abandono e muita falta de interesse por parte da população em geral, mais especificamente por parte dos estudantes” na canção de Coimbra, elucida a presidente da SF/AAC. O programa vai decorrer de 16 a 28 de abril. Relativamente a anos anteriores, o número de palestras foi reduzido para apenas duas – uma a realizar no polo I e outra no polo II. O cultor da canção de Coimbra, Jorge Cravo, será o principal orador das palestras e vai debruçar-se sobre temas que vão desde a candidatura da canção de Coimbra, juntamente com a universidade, a património da UNESCO – efetuada pelo próprio -, até à praxe, visto que a SF/AAC é a única secção praxística dentro da academia. Um dos destaques deste mês dedicado ao fado será a “Audição das escolas”, a realizar no café Santa Cruz. Na noite de 20 de abril, os alunos que frequentam a SF/AAC terão a oportunidade de mostrar o trabalho

MAIO

FEStA DO CinEMA itALiAnO Cinema TaGV • Vários horários enTre 3€ e 12€ (Passe GeraL)

Por Ana Duarte

que têm vindo a desenvolver durante o ano. “Eles [alunos da SF/AAC] serão os próximos integrantes dos grupos de fado da secção, por isso esta noite é de grande protagonismo para os mesmos”, explica Alice Lopes. O dia 25 de abril não consta no programa por mero acaso. A “Noite da Canção de Coimbra”, que se realiza nos jardins Lúzio Vaz da AAC, vai percorrer a história da música de intervenção. Esta vai ser uma das novidades relativamente aos anos passados. Mas é a “Noite de Guitarradas”, no dia 18, uma das mais aguardadas. “Já tivemos algum feedback ao nível de interesse das pessoas, mais

principalmente para a noite de guitarradas”, adianta a presidente da SF/AAC. O apoio da CMC liga-se a uma atividade que já não é realizada há algum tempo e que a SF/AAC pretende reativar. O “Colóquio do Fado” realiza-se dia 28 de abril (não consta no programa oficial) e tem como finalidade trazer vários oradores que, dentro da temática da canção de Coimbra, consigam explicar e discutir o início e a sua essência. Esta iniciativa – que encerra o evento - vai percorrer também o seu presente e pensar o futuro: “como é que a canção de Coimbra pode evoluir?”, é a interrogação para a qual se tentará dar

uma resposta. Alice Lopes espera contar com um público vasto, especialmente composto por estudantes, neste Mês do Fado. “Esta é uma temática extremamente importante e faz da UC a única com um estilo musical próprio”, acrescenta. O evento também passa por aliciar a comunidade estudantil para a integração na SF/AAC: “espero que as pessoas adiram às atividades e que, obviamente, queiram depois integrar a SF/AAC num dos seus grupos. Se for de fado, tanto melhor”, manifesta a presidente.

Corpo e palavra nas Jornadas de Cultura Popular Entre abril e outubro, o GEFAC vai à procura do lugar do corpo e da palavra na cultura tradicional, através de conversas, documentários ou teatro João Gaspar

1a3

O Mês do Fado começou no dia 10 com uma gala no Teatro Académico de Gil Vicente

“Qual o lugar do corpo e da palavra na cultura tradicional?” É esta a pergunta que lança o mote da décima quarta edição das Jornadas de Cultura Popular organizadas pelo Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC). Entre abril e outubro, o corpo e a palavra assumem um lugar central de discussão, quer em ciclos de conversas, de cinema,

num colóquio, numa peça de teatro, ou numa exposição à volta de coveiros. “O corpo e a palavra são um excelente tema para percebermos o que é material e imaterial dentro da cultura tradicional”, expõe Catarina Alves, membro da comissão de organização das jornadas. Procura-se assim a representação do corpo, quer o que vemos em bonecos típicos de algumas regiões portuguesas, quer em festas ou rituais - manifestações da cultura popular que “materializam num corpo tudo o que é um sentir de uma determinada comunidade”, explica. “É importante ver como nos vemos, que imagens temos de nós ou que imagens queremos ter de nós”. A palavra será explorada no sentido da utilização da mesma em cruzamento com a própria ideia de

corpo, que surge, como exemplifica Catarina Alves, na ideia de ritual, que, segundo a mesma, “tem muito a ver com ciclos de vida, ligados a fases biológicas”. A membro do GEFAC realça ainda “a relevância da palavra e da expressão oral e escrita nas próprias manifestações da cultura tradicional”. O evento arranca com um ciclo de seis conversas durante seis semanas, intitulado “Encontros a Pretexto” com início marcado para 19 de Abril, na Casa das Caldeiras, e com o tema “Belo e Feio/ Grande e Pequeno”. Nesse mesmo ciclo vai ser explorado o processo de como um apelido surge de características corporais, a comunicação sem palavras, ou a forma como a palavra poética pode expressar aquilo que o corpo diz. A 2 de junho vai decorrer o coló-

quio com o mesmo nome do tema das jornadas e que irá incidir sobre rituais de iniciação, de fertilidade e de morte. Nesse mesmo dia, vai ser inaugurada uma exposição sobre coveiros, resultado do trabalho de pesquisa e de entrevistas de membros do GEFAC a coveiros espalhados pelo país, com o intuito de “procurar a perspetiva que eles têm da morte” - a finitude do corpo e da palavra. Também no âmbito das jornadas será realizada uma peça de teatro pelo GEFAC à volta do fim do corpo e da palavra: “o acabar do corpo é um momento marcante em qualquer cultura e qualquer cultura ritualiza e vive esse momento”, explana Catarina Alves. Dessa forma, o grupo vai procurar as suas próprias representações da morte e como a imaginam.


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cabra | 9

CuLturA

“Partilha” é a palavra do ano 2012 CATArinA GOMeS

Segundo um dos diretores criativos do evento, João Barros, não há ainda certeza da continuação do PFC.

A edição 2012 do PFC andou à volta da figura do curador no panorama cultural. Durante dois dias, em oito conversas, discutiu-se a seleção de conteúdos Catarina Gomes Andreia Gonçalves O Conservatório de Música de Coimbra recebeu a segunda edição do projeto Pensar Fora da Caixa (PFC), que pretendeu mais uma vez juntar público e comunidade artistíca nacional numa conversa em registo informal. Este ano, a iniciativa afastou-se do formato inicial de conferência e organizou oito “conversas”, assim como atividades em paralelo, proporcionando às pessoas o encontro com a cidade. O tema deste ano pretendia uma reflexão acerca do conceito de curadoria, presente em todos os momen-

tos do quotidiano, nas mais diversas áreas. Desde os posters nas paragens de autocarro alusivas a uma marca de vestuário, aos artigos que lemos no jornal, tudo é selecionado com vista a responder à procura do público, e a aliciá-lo. Segundo os organizadores, torna-se imperativo dominar tais noções, numa altura em que todos atuam como curadores e selecionam os próprios conteúdos.

A arte de servir sem vergar A avalanche de oferta de programas e produtos reforça cada vez mais a importância do curador na triagem, escolhendo divulgar os conteúdos com que, à partida, o público mais se identifica. A nível da cultura, o termo curador absorveu as funções do antigo comissário, responsável pela burocratização. Hoje em dia, pensar em curadoria é pensar em comunicação: implica saber falar ao público, estreitar laços com artistas, decidir sobre programação, formatos e ‘timing’ de divulgação, produção e negociação. “É fudamental que haja sintonia com o ritmo acelerado da criação de hoje”,

explana a curadora da Gulbenkian, Lúcia Marques, no decorrer do segmento “O Desafio da Programação e da Curadoria”, que serviu de base ao tema desta edição. No entanto, a figura do curador retira valor às críticas culturais, impossibilitando a medição de temperatura do público a sua recetividade. O diretor do suplemento P3 do jornal Público, Amílcar Correia, não deixou de apontar as deficiências da curadoria no jornalismo. Se por um lado, a procura de um certo conteúdo por parte do público é um fator fortemente influenciador da agenda mediática, por outro, não se pode descurar a firmação da marca própria do jornal. “Não podemos vergar completamente aos leitores”, afirma, lembrando inclusive que certos jornalistas culturais “vivem na periferia e caem no erro de achar que os conhecem”. O diretor aproveitou para sossegar a audiência, afirmando que não acredita na possibilidade de se vir a confirmar o fim da informação em papel. “Há pessoas habituadas ao jornal. Vão resistir se tiverem qualidade e não forem todos iguais”.

O papel das redes A difusão da internet e, mais recentemente, o aparecimento das redes sociais só veio perpetuar ainda mais o papel das massas como influenciadoras diretas da oferta. Os gostos de milhões de pessoas podem ser acompanhados diariamente no Facebook, onde cada um “partilha as músicas e conteúdos de que gosta”, refere Gonçalo Castro da Antena 3, a respeito do segmento “A Nossa Revolução Passa na Rádio”. Castro continua, denunciando que nem sempre é possível incluir algo novo nas playlists e que a tendência é divulgar antes na plataforma online, a “ver se pega”. Também na área da moda, os criadores presentes consideram a presença das marcas em plataformas online primordiais. Segundo o dono da Por Vocação, Pedro Caride, “uma loja que hoje em dia não consiga criar conteúdo não tem razão de existir”. Os que não o fazem podem dar-se ao luxo, porque “é sua intenção manter a exclusividade”. Carolina Costa, estudante de design, considera iniciativas como esta pertinentes, principalmente para

pessoas prestes a entrar no meio. “Conhecemos as experiências de quem já trabalha na área e como podemos intervir nos mais diversos ramos, como moda e gastronomia”. O estudante de som, Miguel Albuquerque, mostra-se igualmente satisfeito por ser possibilitado o contacto com pessoas empreendedoras, mesmo em tempo de crise. Exemplos encorajadores são o do criador Ricardo Andrez, que direcionou o seu negócio somente para o público masculino, Jorge Silva da empresa Silva!Designers e ainda Rui Quinta da empresa Fishing Ideas. Inicialmente pensado por estudantes universitários como um trabalho académico, o PFC evoluiu para o que é hoje, face ao desejo de partilhá-lo com o público. Em 2010, o evento recebeu 300 pessoas em cada dia, sendo nesta edição esperadas mais 100. A adesão ficou àquem das expetativas, tendo havido em contrapartida uma forte afluência através do livestream, Facebook e twitter. Segundo um dos diretores criativos do evento, João Barros, não há ainda certeza da continuação do PFC.

Todo o mundo é um palco e os actores são players O teatrão leva a palco “Shakespeare pelas Barbas”, até ao dia 29 de abril na OMt, antes da festa shakespeariana do próximo verão, em Montemor-o-velho Daniel Alves da Silva “Uma esponja dos nossos tempos contemporâneos” – é assim que o encenador Ricardo Correia nos apre-

senta esta peça. Não é uma mera colagem de excertos de obras shakespearianas, mas antes uma tentativa de ligar as angústias que existem no teatro de Shakespeare às dos próprios atores. “Tentar usar esse lado sublime que tem o trabalho dele” e “misturá-lo com o lado mais mundano” foi um dos desafios que se colocaram na construção deste trabalho, que “não nasceu de um texto existente”, acrescentou ainda Ricardo Correia, mas sim “durante o processo de ensaio”. Os atores no palco exploram essa relação, a forma com que “nós hoje

nos relacionamos com a obra deste autor” e de “como ela nos fala ainda”, marcando presença no cenário uma televisão e os textos shakespearianos, que representam as duas realidades que se misturam e se contaminam ao longo da encenação a que assistimos.

Um jogo ou uma representação? Há ténis, há boxe, há competições que se perdem e vencem em que domina a linguagem shakespeariana, “as palavras que parecem não nos caber na boca”, como explica o ence-

nador, “tentando comunicá-la ao público de hoje”. Há um “Quem Quer Ser Extraordinário?”, que transforma o teatro de Shakespeare em mero entretenimento. “O espetáculo tem uma base muito forte de jogo”, refere o ator Pedro Lamas; o objecivo “não é dar uma aula ou trazer saber enciclopédico sobre Shakespeare”, mas fazer um espetáculo a partir de improvisações dos atores, onde “em dados momentos pudemos encontrar Shakespeare”, aditou a também atriz Inês Mourão. Shakespeare refletia sobre as suas personagens e sobre o próprio teatro

em palco; nesta peça temos momentos em que estalam dedos e a personagem transforma-se no próprio ator que interpela diretamente o público. A atriz Margarida Sousa expõe-nos a “questão dos limites”: “é o ator?, é a personagem? é o ator que quer apanhar o outro no jogo, mas ao mesmo tempo é a personagem que está a jogar com outras personagens?”; são fronteiras que se esbatem. “Nós estamos habituados a entender e nem questionamos, fronteira é algo que separa coisas; não estamos habituados a entender como algo que as une”, conclui Pedro Lamas.


10 | a cabra | 17 de abril de 2012 | Terça-feira

deSPorTo prolongamenTo BASQU ETEBOL

A contar para o play-off da Liga Portuguesa de Basquetebol, a Académica voltou a perder com o Benfica, desta feita por 65-49, que garante assim vantagem, no total, por 2-0. O jogo, que decorreu no Pavilhão da Luz, ainda contou com boa réplica por parte dos estudantes, mas a equipa de Orlando Simões acabou por ceder aos encarnados, com o Benfica agora muito próximo das meias-finais da competição

FU T SA L

A Académica empatou a 0, no terreno do Fundão, resultado inóspito, dada a modalidade. Com 26 pontos na tabela classificativa, o treinador Custódio Coelho espera agora pela derradeira jornada, frente ao Benfica, para se iniciar, depois disso, a segunda fase. A Académica estará, a par de Belenenses, Braga e Boavista, nos jogos do play-out, para tentar assegurar a permanência. Recordese que, destes dois embates, duas equipas juntar-se-ão aos já despromovidos Associação de Moradores de Santo António dos Cavaleiros e Loures

R Ug B y

A derrota, no último sábado, por 2511, contra o Clube Desportivo de Direito, deixou os homens de Robert Sadler mais longe do título. Depois da chegada à final four, a conquista do campeonato nacional, que não acontece há oito anos, era uma forte esperança da formação da Académica. Porém, era necessária a vitória nos três últimos jogos, pelo que a derrota caseira fez esmorecer as ambições da Briosa

Ténis clube do choupal

Veteranos de competição sustêm o ténis do Choupal

Cercado pelo circuito de corrida da Mata do Choupal, o clube de ténis local vive da organização dos veteranos. Não que não haja ambição, mas as condições proíbem outras aspirações nos escalões mais jovens. Todavia, nem por isso se deixa de competir ao mais alto nível nacional. Por Fernando Sá Pessoa

N

ão se ouvem os gritos de esforço a que estamos habituados a ouvir na televisão. Porém, para quem anda, aos domingos, pelas canas da mata do Choupal, não será estranho encontrar bolas de ténis, entre gracejos trocados pelos jogadores. Ali, as pessoas que treinam no Ténis Clube do Choupal são sobretudo dos 35 anos para cima. Este ano é especial. O escalão de veteranos entre as idades de 55 e 65 subiu à primeira divisão nacional, e as expetativas são grandes. Provao o papel da inscrição na competição, qual troféu, que está nas mãos do tesoureiro, José Armando. Além disso, nos outros escalões dos mais experimentados, dos 35, 45 e 55 anos, todos estão na segunda divisão. Mas, na principal prova do país, é uma estreia. “É nesse escalão que agora estamos a apostar mais”, afirma o treinador Armando Campos. Do alto da sua barba branca, o técnico assume a veterania do clube. “É uma coisa que não existe muito em Coimbra, os clubes não arriscam nisso”, diz. “E nós temos todos os escalões mais velhos”. No entanto, a veterania é mais uma consequência das circunstâncias do que uma vontade, onde “o

mito que existe à volta da segurança do Choupal não ajuda”, afirma o próprio treinador. A verdade é que “não há condições para treinar todos os dias”, assume. Quando os atletas mais novos melhoram, é frequente pedirem para sair. Nesse caso, adianta, “temos que aconselhar. E já lançámos muitos miúdos para a alta competição assim”. A estrutura montada, garante o presidente, é “profissional”. Como que assentindo, o husky siberiano que circula nas instalações inclina a cabeça. A pequena casa que serve de sede dista poucos metros dos campos e faz jus à placa que data a fundação do clube, de 1991. Mas mostra organização e detalhe na arrumação. Não é que não se queira crescer, porque, afirma o treinador, “quer-se sempre mais e mais”. Embora se trate de um clube amador, está registado na Associação de Ténis de Coimbra e na Federação Portuguesa de Ténis. “Não fazem obras nem nos deixam fazer” Na verdade, as ambições estão tapadas por outros motivos. As instalações pertencem ao Instituto do Desporto de Portugal (IDP), entidade da qual o ténis tem um bene-

fício apenas: prioridade na utilização dos “courts”. “É grave e gritante”, reclama o presidente, Hélder Ferreira, “que não façam obras nem nos deixem fazer”. Em causa estão as mudanças do piso sintético, assim como a falta iluminação, que acaba por ser um dos maiores problemas durante o inverno. Contundente, o dirigente afirma que “não cabe na cabeça de ninguém que, se a função do IDP é fomentar o desporto, a instituição deixe de apoiar desta forma o Ténis

veteranos, fazemos três provas nacionais”. “Não é um clube rico mas, se nos deixarem, conseguimos melhorar”, assegura o presidente. No que respeita às finanças do clube, o presidente garante que “não se deve um tostão”. A estratégia encontrada pelos dirigentes acaba por ser o “uso por determinado número de horas por semana, e depois fazem-se contas entre os sócios do clube e a direção. E todos pagamos o mesmo”, afiança Hélder Ferreira.

“Nós temos todos os escalões mais velhos”, afirma o treinador Armando Campos

A terceira parte também conta No lado oposto aos campos de ténis, separado deles pela sede do clube, está o bar de serviço. Ali, os pulsos trocam as raquetes pelas canecas de cerveja, onde se forma “uma tertuliazinha depois do jogo, a terceira parte, ” afirma Armando Campos. A parte lúdica é das mais importantes do clube, na voz do próprio tesoureiro, onde as febras e as sardinhas são quase tão importantes como as bolas de ténis”. Não raras vezes, refere, “é assim que surgem atletas novos. Vêm os sócios, os amigos dos sócios, os amigos dos amigos e mais tarde já jogam connosco”. E, ao longo dos trinta anos, “a evolução tem sido feita assim.

Clube do Choupal”. A solução poderá estar numa eventual mudança dos destinos das instalações para as mãos da Câmara Municipal de Coimbra. “Esse poderá ser o primeiro passo, e já se falou na hipótese”, refere o dirigente. Apelando à atividade do clube, Hélder Ferreira aponta os torneios organizados pelo clube. “Só nos escalões

FernandO Sá PeSSOa

VOLEIBOL

A contar para a segunda divisão nacional de seniores masculinos, na segunda fase, série dos últimos, a Secção de Voleibol da Associação Académica de Coimbra venceu por 30 o Grupo Desportivo Cultural de Gueifães. Os estudantes encontram-se agora no segundo lugar, com 16 pontos, estando a permanência praticamente assegurada. Por Fernando Sá Pessoa

O Clube de Ténis do Choupal tem o seu pico de atividade a partir do mês de abril.


17 de abril de 2012 | Terça-feira | a

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deSPorTo A

21 ABR

V OL E I BO L AAC x ginástica Vólei 17h • Estádio Universitário Pavilhão 2

21 ABR

FUTSAL AAC x Benfica 16h • Pavilhão Engenheiro Jorge Anjinho

22 ABR

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R A g U EB I CDUL x AAC 16h • Estádio Universitário de Lisboa

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F U T E B OL AAC x Olhanense 20h15 • Estádio Cidade de Coimbra

“Secção de Rugby atingiu a plenitude” d.r.

Com a época perto do final, o balanço feito pela Secção de rugby da Associação Académica de Coimbra é positivo. entre os vários feitos, contam-se duas finais da Taça de Portugal Fernando Sá Pessoa O capitão da equipa sénior, João Lopes, não deixa de afirmar que “o balanço da época é positivo”, apesar de a conquista do título ter ficado mais longe. Nas palavras do presidente da secção, Jaime Carvalho, o “grande objetivo do escalão sénior, esta época, passava pela chegada à “final four”. A partir daí, seria preciso chegar ao segundo lugar para poder jogar a finalíssima de um título que foge à secção desde 2004. Recordese que a derrota com o Clube Desportivo de Direito, no passado dia 14 de Abril, diminuiu essas esperanças.

O campeonato nacional foge aos “pretos” desde 2004.

Porém, o dirigente salienta que a presença de todos os escalões de competição na respetiva “final four” nacional “enche de orgulho a direção da secção”. A juntar a esses êxitos, as finais da Taça de Portugal sub-21 e sénior – esta última, já perdida - são, por si, feitos únicos. Quanto aos troféus, o presidente da secção prefere adiantar que, “se somarmos, dentro dos desportos masculinos, todos os títulos conquistados de todos os clubes, não têm tantos como a secção de rugby”. Estes resultados são, no entender de toda a estrutura, fruto de um trabalho de formação que tem vindo a ser desenvolvido ao longo dos anos, onde a “mentalidade é extremamente coletiva e não há vedetas”, assegura o próprio Jaime Carvalho. Manuel da Costa considera-se uma referência da secção.

Desde 1957, assumiu, de jogador a presidente, todos os cargos. E refere a importância que sempre deu à “presença dos próprios atletas na direção”. Este ano, realça, a estrutura atingiu a plenitude”. “Modéstias à parte”, congratulase Jaime Carvalho, os sucessos desportivos devem-se à “organização da estrutura”. Como exemplo, o presidente aponta as parcerias feitas com diversas entidades empresariais, o que, entende, é “diferente de simples patrocínios em camisolas”. E desvela que se trata de “envolver essas empresas num projeto comum, levando mesmo os atletas a conheceremnas”.

tregue apenas à direção, ainda para mais numa modalidade em que os atletas não são pagos. Pelo contrário, “no Rugby, paga-se para jogar”, atira o presidente da secção. No caso da Académica, que é ainda um clube, à semelhança de toda a modalidade do Rugby em Portugal, semiprofissional, os atletas desembolsam uma quota anual. “Eles pagam pelas chuteiras e nós damos-lhes o equipamento”, refere. Aqueles que são pagos pertencem a um grupo restrito, os atletas de elite, que recebem uma bolsa variável entre os 300 e os 1000 euros. Em Portugal, apenas cerca de 35 jogadores têm este estatuto.

Ambiente dentro da secção Elemento agregador da esquipa é o Rugby Club, localizado junto às Escadas Monumentais. O edifício, além de ser fonte de receitas, acaba por ser o ponto de encontro de toda a estrutura clubística. Saudosista, o diretor da equipa de sub-18, José Varandas, lembra os tempos em que “ações oposicionistas” ao regime foram tomadas naquele espaço. “Sempre tivemos fama de ser brutos, e então eles pensavam que nós não nos metíamos na política e que só queríamos copos”, graceja. Jaime Carvalho fala numa tradição que surgiu com a fundação e que ainda hoje persiste, pelo que “o ambiente de equipa se vive também na direção e é transmitido dos mais velhos para os mais novos”. “Estamos aqui para servir os atletas e para lhes dar as melhores condições”. Porém, o presidente mostra também o lado não diplomático que esta relação entre direção e plantel acrescenta ao clube. “O chamar burro a um jogador, dizer que ele esteve mal”, faz parte.

Falta de reconhecimento Jaime Carvalho não tem pejo em lançar algumas farpas à Universidade de Coimbra (UC), entidade com a qual, diz, a “relação é uma treta”. Lembrando a vitória da Secção de Rugby no campeonato europeu universitário, há dois anos, que contribuiu para que a UC fosse considerada a melhor universidade a nível desportivo, o dirigente fala em “incompreensão” por parte da entidade. “No ano passado, não participámos nessa competição porque os professores não adiaram os exames”, lamenta. “E disseram mesmo que, a adiá-los, não se responsabilizariam pelo tipo dos mesmos”. Já em termos de sociedade, o dirigente acrescenta que se vive ainda numa “cultura futeboleira”, que “não se dá o devido valor à variedade de modalidades desportivas”. Daí que a projeção do Rugby acabe por ser menor e, consequentemente, também a pressão. “Temos de ser nós a trabalhá-la, como vimos na final da taça”, afirma Jaime Carvalho. “E foi bonito ver, em Lisboa, mais adeptos da Académica do que do Agronomia”.

“No Rugby, paga-se para jogar” O mérito não pode, porém, ser en-

Judo da AAC quer afirmar-se a nível internacional Com direção reeleita no passado dia 13, a Secção de Judo da Associação Académica de Coimbra pretende subir o patamar competitivo, tendo em vista as maiores provas internacionais Fernando Sá Pessoa “O nosso objetivo centra-se, a médio e longo prazo, em alcançar

resultados no mais alto nível internacional”, afirma o presidente reeleito da Secção de Judo da Associação Académica de Coimbra, Gonçalo Órfão. O desejo do mesmo passa por uma aposta fora de Portugal. O trabalho contínuo que tem sido desenvolvido dentro da secção nos últimos anos, reconhecido com os prémios Salgado Zenha e da Câmara Municipal de Coimbra, temse materializado, segundo o dirigente, em “lugares no pódio em todos os campeonatos nacionais”, pelo que começam também a existir ambições maiores. Na verdade, a experiência internacional já não é estranha à secção, uma vez que tem

alcançado títulos em séniores e juniores no circuito europeu de judo. Recentemente, a participação na Taça George Kerr, competição escocesa, destinada aos escalões mais jovens, exemplifica esse mérito conquistado além-fronteiras. Ademais, nomes como Ana Sousa têm ganhado alguma expressão fora de portas. No caso da judoca academista, o ano afigura-se, para já, positivo, com o primeiro lugar no Torneio de Lavalle, em França. Porém, a questão financeira é um dos pontos mais importantes na agenda dos dirigentes da modalidade. Segundo o presidente, “está a ser ponderada a participação na

Liga Europa do Judo”, unicamente por causa de escassez de verbas, apesar de o apuramento já ter sido garantido. Tal facto não é preocupante para Gonçalo Órfão, para quem, assegura, “a situação económica do clube está controlada, uma vez que tem sido acompanhada por um rigor financeiro muito grande”. O dirigente faz ainda menção à redução de investimentos feitos não só pela secção, como também pela federação e outras instituições, tendo em conta que, refere, “todo o investimento tem, atualmente, de ser muito cuidado”.

Vencer o campeonato nacional Na presente época de 2012, o objetivo primordial, muito embora esteja a ser pensada uma participação europeia com maior força, é, para o dirigente, o “ataque ao campeonato nacional de seniores”. Isto, numa altura em que essa competição ainda não começou. Recorde-se que, a nível interno, a última conquista importante aconteceu na época transata, aquando da vitória na Taça de Portugal, em seniores femininos e masculinos.


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crISE E SAúdE mEnTAl

A crise está a sub

Apesar de uma certa relutância em relacionar pressão financeira com psicopatologia, há uma opinião que un As experiências prévias dizem-no. E diz quem trabalha com os estudantes que os quadros depressivos e an Por Inês Amad

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“O desemprego, os divórcios, a perda da compaixão, a perda da espiritualidade, o egocentrismo, o hedonismo: isto tem a ver com uma sociedade doente”, aponta o psiquiatra Carlos Braz Saraiva

História tem-nos contado que, em situações de crise, económica e política, a austeridade e o desinvestimento em apoios sociais não têm tido boas relações com a saúde mental das populações. Note-se, por exemplo, que a disfunção da antiga União Soviética e dos Países Bálticos trouxe um aumento do número de suicídios aos países afetados, considerados ainda dos menos desenvolvidos da Europa. O exemplo é dado por Álvaro de Carvalho, coordenador do Plano Nacional para a Saúde Mental, que vai estar a decorrer até 2016 e está integrado na Direção Geral de Saúde (DGS). O psiquiatra salvaguarda: “provavelmente não vamos conseguir perceber, em Portugal, se a crise vai trazer mais ou menos suicídios”, uma vez que, para que os registos sejam fiáveis, é necessário que sejam feitos “durante um período mínimo de três a cinco anos”, acrescentando que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a União Europeia (UE) se têm preocupado com esta situação. Apesar das demais condicionantes, o nível de desenvolvimento de um país e a intensidade do seu Estadoprovidência mostram-se relevantes. Num estudo da OMS Europa, de 2009, no qual é feita uma análise comparativa entre Suécia e Espanha, verificou-se, em ambos os países, uma elevada taxa de desemprego. “Enquanto na Suécia a situação foi reconhecida oficialmente e houve reforço das intervenções sociais” – como o subsídio de desemprego e a prestação de cuidados médicos de proximidade – “em Espanha, o mesmo não se verificou”, explica. Sendo os países nórdicos conhecidos pelas elevadas taxas de suicídio, os resultados das políticas sociais são reveladoras: “na Suécia, mesmo com a crise de desemprego, houve um decréscimo sustentado e progressivo da taxa de suicídio; em Espanha, a taxa continuou a aumentar mesmo depois de o desemprego ter descido”. Pela falta ainda de uma base empírica, os especialistas mostram relutância em afirmar que, em absoluto, a crise económica esteja diretamente relacionada com o aumento de casos de doença psicopatológica. No entanto, o psiquiatra acede: “isto levanos a considerar que, nas situações de crise, tanto ou mais que nas medidas da saúde mental tem que se ter em atenção medidas políticas que passam pelo apoio social”.

Os estudantes, espelho de vulnerabilidade social “E se eu não conseguir? Como vai ser? E se os meus pais não têm recursos para me manter?” – é Ana Carvalhal de Melo, psicóloga do Gabinete de Aconselhamento Psicopedagógico dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra (GAPSASUC), quem empresta a voz a alguns dos receios da população estudantil que lhe chegam ao consultório. A psicóloga declara não ser ainda possível afirmar se há um aumento da procura da consulta de psicologia do GAP-SASUC no corrente ano. Assegura, no entanto, que “as pessoas têm mais a preocupação económica e trazem isso para a consulta”, traduzida em vontades como “não ser um peso para os pais, ter medo de perder a bolsa, de prescrever e de não ter recursos económicos para voltar a estudar”, enumera. Explica Ana Melo que um aluno que se vê a braços com uma dificuldade económica que não tinha “reage emocionalmente a isso”. Os efeitos da crise aumentam, assim, “a vulnerabilidade dos alunos para o desenvolvi-

A diminuição da flexibilidade cognitiva e emocional prejudica o desempenho académico mento de quadros psicopatológicos relacionados com a ansiedade e a depressão”, declara a psicóloga. Segundo Ana Melo, “a crise económica funciona como precipitante” para a perturbação, através da “vivência de situações adversas” ou apenas de um “medo antecipatório”. Aumenta uma “perceção de risco e de vulnerabilidade” que, apesar de se tornar maior aos olhos dos alunos, é verdadeira, uma vez que “há realmente um aumento do risco”: “hoje, os alunos estão muito mais atentos à situação económica dos pais - muitos perderam o emprego e estão em risco de perder coisas, nomeadamente casas”. Os constrangimentos financeiros vêm, desta forma, roubar aos estudantes capacidades para lidar com as perdas que as crises trazem: há uma diminuição da flexibilidade cognitiva e emocional, “prejudicando o desempenho académico” ao trazer “níveis

elevados de angústia” e dificuldade em encontrar estratégias adaptativas, o que pode levar a que “muitas vezes, coloquem a possibilidade de abandonar precocemente os estudos”, assevera. “Efetivamente, as condições de carência, de pobreza e de vulnerabilidade social vão ativar estas situações. Sabemos que existem pessoas mais vulneráveis, e quem tem tendência para fazer estes cenários antecipatórios agora tem o terreno fértil”. Ana Melo comenta ainda que, muitas vezes, são as assistentes sociais dos SASUC que reencaminham estudantes em risco de perder a bolsa para a consulta, “para ver se há alguma modificação no seu método de estudo, se ultrapassam algum problema emocional que o s possa estar a prejudicar”. A psicóloga explica que, neste âmbito, o GAPSASUC tem feito um trabalho no sentido de ajudar os estudantes a desenvolver as estratégias de ‘coping’, usadas para lidar com situações de risco – “para que o aluno não se desorganize, mas se mobilize para os objetivos que o vão ajudar a não ter que se deparar com a situação que teme”. Ana Melo ressalva, no entanto, que “há todo um conjunto de apoios sociais que têm que ver com o Estado-providência e que seria importante garantir”.

Uma felicidade com pés de barro Para Carlos Braz Saraiva, psiquiatra do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, a população portuguesa vive uma “situação confrangedora, que é a de se confrontar com o próprio passado das últimas dezenas de anos”: “o país adquiriu determinados padrões de vida, semelhantes a grande parte dos países da UE, mas chegámos à conclusão de que o gigante tinha pés de barro, ou seja, não nos preparámos em termos macroeconómicos”. Para o médico, é indiscutível o aumento dos quadros depressivos e ansiosos que frequentemente coexistem com


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Crise e saúde mental

ubir-nos à cabeça

e une os especialistas: em tempos de crise, as medidas de apoio social revelam-se absolutamente essenciais. ansiosos estão a aumentar, bem como os seus comportamentos de consumo, que vêm refletindo a crise. mado da Silva

perturbações do sono, níveis elevados de ansiedade, angústia e “uma frustração pela incapacidade de dar a volta ao problema. As pessoas adquirem a noção de que não estão a controlar certos fatores externos que as rodeiam”. “A minha convicção é de que estas patologias estão a aumentar”, afirma o médico, apontando alguns indicadores que poderão contribuir para essa perceção, como o facto de o país ser conhecido por um consumo excessivo de antidepressivos e ansiolíticos: “isso é um problema de saúde pública, mas seria bom se nos questionáss e m o s sobre o seu porq u ê ” que, s e nd o u m a ten-

dência “que já vem de há alguns anos”, pode “querer significar algo mais do que a própria crise económico-financeira”. Para o psiquiatra, a questão está em saber se a tendência é justificável com o “sofrimento social”, e assevera que o país passa também por um “problema de insensibilidade social”. “Claro que os portugueses têm as suas idiossincrasias, somos um povo que tem uma capacidade de resignação muito grande”, afirma Braz Saraiva. Num estudo da OCDE, iniciado em 2010 e feito sobre 40 países, Portugal surge como o terceiro país mais infeliz. Para caracterizar uma sociedade que considera “doente”, o psiquiatra evoca os valores enumerados pelo sociólogo Émile Durkheim, já no século XIX, e o seu conceito de anomia (a sensação de perda de identidade que o indivíduo experimenta na sociedade moderna): “o desemprego, os divórcios, a perda da compaixão, a perda da

espiritualidade, o egocentrismo, o hedonismo: isto tem a ver com uma sociedade doente”, lamenta, “e são aspetos que considero serem a anomia do século XXI”. Aludindo ao caso do suicídio de um cidadão grego, de 77 anos, na Praça Sintagma, em Atenas, o psiquiatra anota: “a História da humanidade ensina que os suicídios em público têm a ver com a dignidade, e a perda da dignidade é algo que gera sofrimento intolerável e interminável”.

A crise económica funciona como precipitante para a perturbação

ilustração por tiago dinis

Estudantes: a (de) pressão “As dificuldades de ordem psicopedagógica agravadas pela pressão económica existem - detetámos isso não apenas no GAP-SASUC mas também nas bolsas e nas fundamentações do menor aproveitamento escolar. Isso está a subir claramente”, admite o administrador cessante dos SASUC, Jorge Gouveia Monteiro. Quanto aos Serviços Médicos Universitários, Gouveia Monteiro é da opinião de que “não é difícil perceber que, de 2010 para 2011, não foram outros fatores que não os económicos os fundamentais: não alterámos a oferta de forma que permitisse supor um aumento da procura desta natureza” - as 11 mil consultas de 2010 passaram a 14 mil em 2011. “Acho que há uma relação direta entre as dificuldades em pagar taxas moderadoras e outras consultas e exames privados e a procura dos serviços médicos universitários”, admite. Gouveia Monteiro considera também alguns comportamentos dos estudantes que estão a mudar, como ir menos vezes a casa e a partilha de refeições entre pessoas da mesma residência. Também “à noite, os jantares [nas cantinas] têm vindo a perder”. No que toca ao alojamento, alguns fenómenos perturbam a procura das residências universitárias: “é um problema que está mal estudado, porque é que famílias com muitas dificuldades não optam pela residência universitária, que é imbatível em termos de preço. Há fatores psicológicos, hábitos, crenças que é preciso estudar melhor, mas que indicam que muita gente pensa que não há lugar e, portanto, nem se candidata”. Projeto Fundo Solidário e Linha SOS Estudante A socióloga do Instituto Justiça e Paz, Raquel Azevedo, é uma das pessoas que coordena o Projeto Fundo Solidário e recebe os estudantes que recorrem a esta ajuda. “Acredito que, neste ano, irá haver um aumento exponencial de pedidos”, afirma. Dos 52 estudantes já apoiados pelo fundo desde maio de 2010, 18 pediram ajuda já em 2012. Apesar de todos os casos terem especificidades, a socióloga admite o aparecimento de alguns padrões, como indeferimentos de bolsa por dívida dos pais. “As pessoas chegam até nós um bocado perdidas”, descreve: “não conseguem definir prioridades, querem resolver tudo ao mesmo tempo”. Alguns pais acompanham os filhos na hora de recorrer a esta ajuda. Raquel Azevedo conta que, nestas situações, vem ao de cima a questão da “pobreza envergonhada”: “os pais emocionam-se quando vêm pedir ajuda”. Na AAC, a presidente da Linha SOS Estudante, Joana Paiva, lamenta que a maioria das chamadas recebidas não provenha de estudantes, apesar de, nos últimos três anos, esta faixa estar a aumentar. Ressalva, no entanto, que não pode afirmar-se que tal se deva às dificuldades económicas: “a base até pode ser a das carências económicas, mas não temos dados que nos permitam dizer isso”. Joana Paiva deixa o apelo: “existe um serviço de apoio caso essas pessoas necessitem”.


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Cidade EntrEvista • norbErto PirEs • PrEsidEntE da ccdrc

“A Universidade não é empreendedora, portanto não pode ensinar a ser” INês AmAdo dA sIlvA

Há pouco mais de um mês na presidência da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), Norberto Pires é apologista da ideia de regionalização. Considera as pessoas a maior riqueza da região centro - ainda assim, admite haver dificuldades na fixação dos recursos humanos. Inevitavelmente associado ao iParque, o também professor da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra (FCTUC) critica aquilo que diz ser a falta de espírito empreendedor das universidades portuguesas. Ana Morais Inês Amado da Silva É inevitavelmente ligado ao iParque. Em que ponto está? O iParque tem três fases. Uma primeira que foi de conceção geral do parque. A segunda fase foi a de lançamento de infraestruturas, onde se decidiu a duplicação da área. Neste momento está nessa segunda fase, está ainda a instalar as primeiras empresas. Atualmente, já foi investido no iParque um valor na ordem dos 45 a 50 milhões de euros. Em que medida a sua formação académica contribui para desempenhar o cargo de presidente da CCDRC? É o meu perfil. Não contribui para a escolha, mas muito para a forma como atuo. Uma pessoa que privilegia muito iniciativas sustentáveis, bem pensadas. Coloco o foco em resultados, olho para as coisas e tento que elas sejam feitas com o menor número possível. Os cientistas são assim, têm um objetivo e nunca se afastam dele. Nesse tipo de abordagem acho que a minha formação tem uma influência muito grande. Que peça constitui o iParque no equilíbrio da região centro? É um conceito que não existe no país. Não é por acaso que é o primeiro parque de ciência e tecnologia da região que tem como parceiro uma universidade. Se funcionar como uma excelente relação entre indústria, economia e a universidade, é a primeira vez que se faz. A universidade não é aproveitada hoje, é um mundo muito protegido. A primeira vez que estão desprotegidos é quando abrem a porta e vos dizem para ir procurar emprego. Era necessário que a própria universidade vos picasse o rabo. A universidade tem esse espírito empreendedor? Não, não tem. Mas não é só a UC, é a

Há pouco tempo em funções, Norberto Pires quer incutir no centro do país uma “consciência regional” universidade portuguesa. A universidade vai fazer isso cada vez mais, porque vai sentindo a necessidade de gerar orçamento. Digam qual é o docente que vos incentiva a ser empreendedores, a irem para além do que vos pedem? A universidade não é empreendedora, portanto não pode ensinar a ser. Agora que está na presidência da CCDRC, quais são os maiores desafios e lacunas a que acha urgente responder? O primeiro desafio é isto funcionar como uma região. Neste momento, a região centro é uma associação de terras e não há uma consciência regional, não há o sentimento de pertença comum. A região centro, para ser alguma mais-valia, tem que ser a soma de 100 municípios à ação em conjunto. Caso contrário, para que funciona? Tem que ser algo para além das partes. Depois a questão de perceber que ao trabalhar dessa forma, há opções a fazer que têm como objetivo reforçar as competências que temos e através delas diminuir as diferenças que existem. É como se fôssemos uma família muito grande em que uns elementos têm que ajudar aqueles que têm mais dificuldades, de maneira a que a capacidade média seja distribuída. Isso só vai acontecer se tivermos a consciência de região, por isso é que eu dei o exemplo de família. Tem que haver aqui uma entreajuda maior para que essas assimetrias desapareçam.

Quais sãos os equilíbrios e desequilíbrios da região centro? Há um desequilíbrio grande entre o interior e o litoral que teve a ver com a deslocalização de pessoas. Não teve que ver com diferenças territoriais, nem diferenças culturais que não são significativas. A grande diferença está no facto de se terem deslocalizado pessoas. Portugal tem falhado na capacidade de fixar pessoas nos vários pontos da região. São elas que fazem a diferença. Desde o 25 de Abril, tivemos à disposição um conjunto grande de recursos e foi na política de fixação de pessoas e na atração de pessoas que falhámos redondamente. Temos que fazer também com que as mais-valias do litoral passem para o interior. Esse esforço tem que ser feito para que se esbatam as diferenças, para que Portugal não incline. Parece que está sempre inclinado para o mar. É preciso que as pessoas equilibrem a sua vida no interior. Qual é o maior potencial da zona centro? É humano, material ou natural? São as pessoas. A região centro tem, para além do contexto histórico que também forma as pessoas, um conjunto de instituições que formam os recursos humanos aos mais altos níveis. Um vetor que tem que se desenvolver é a capacidade de fixar estas pessoas, para que elas vejam e criem oportunidades na região. E quais são as suas maiores ca-

rências? As carências são visíveis. Por um lado, um certo défice de oportunidades. Um conjunto de indústria tradicional que não se renovou e que é pouco atrativa para pessoas com expetativas elevadas. Por exemplo, a percentagem de pessoas da região centro que tem mestrado e doutoramento é baixa. A oferta para estas pessoas que têm as expetativas mais elevadas é menor, percebe-se que fujam para onde a atividade é maior. A CCDRC poderá dar um parecer a propósito da reforma administrativa do poder local? As opiniões da CCDRC são baseadas em razões técnicas, é uma opinião fundamentada. O seu papel será sempre ouvido. Como tem obrigações ao nível da organização do território, tem como missão fazer estudos preparatórios. Estamos de momento a fazer um estudo de regiões nível três para que se possam reorganizar, de maneira a maximizar o impacto no novo programa comunitário, reorganizando as regiões olhando para indicadores técnicos. Este é o nosso papel e é nesse papel que gostamos e queremos estar. O papel político não é o nosso. Gostamos de fazer um trabalho mais técnico. Quais serão as linhas orientadoras do trabalho da CCDRC no seu mandato? Já falei em quase todas. A primeira é a consciência de região, a região per-

ceber que tem que funcionar em conjunto e distribuir as suas valências pelo território. Ao distribuir parte de conhecimento, aceleramos a distribuição funcional pela região e com isso a criação de mais-valia económica e a fixação de pessoas. A segunda é a de preocupação com a fixação de pessoas. O próximo quadro comunitário tem que ser para resolver esse assunto, a maioria das ações tem que ser para atrair pessoas. Uma estrutura local já existente poderia substituir o papel da CCDRC? Teria que ser uma coisa montada, não há nenhuma já existente que tenha as valências da CCDRC. A maior dificuldade seria outra instituição com as mesmas competências. Só uma estrutura já com historial poderia substituir-nos e eu não estou a ver nenhuma. Deixou claro que esta estrutura não pretende ser uma figura política. Sendo presidente desta instituição, como é que vê o seu papel? Nós somos todos políticos, mas o nosso papel aqui não é político. Obviamente faz interface com os atores políticos. Mas não sendo político, o papel é acima - não hierarquicamente - desse jogo. Eu gosto de estar neste papel.

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Entrevista na íntegra em

cabra net


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CiÊNCia & TeCNOLOGia

Chimpanzés mostram como terá surgido o atual bipedismo d.R.

a investigação, liderada por uma portuguesa, revela novas evidências que suportam a teoria de transporte de alimentos como o ponto de partida para uma postura bípede nos primeiros seres humanos. Por Mariana Morais e Paulo Sérgio Santos

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d.R.

A postura bípede permite transportar mais alimento.

usana Carvalho, investigadora ligada ao Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), acaba de colocar Portugal no mapa mundial do estudo da Evolução Humana. Ao publicar um artigo na revista Current Biology, juntamente com grandes nomes da Primatologia mundial, como William McGrew e Tetsuro Matsuzawa, revela novas evidências acerca da evolução do bipedismo humano, com base em comparações com estudos em chimpanzés. “A minha investigação tem ilustrado vários casos em que os chimpanzés foram modelos muito úteis para repensarmos ou criarmos novas pistas no conhecimento da evolução humana”, começa por referir a investigadora portuguesa. “A nossa história evolutiva é idêntica à dos chimpanzés”, clarifica Eugénia Cunha, professora catedrática de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC). A docente esclarece que “há mais de 60 teorias para explicar porque nos tornámos bípedes”, entre as quais a termorregulação [a regulação da temperatura corporal] e a bioenergética, que explana que o bipedismo é um meio de locomoção que consome menos energia que o quadrupedismo. “O trabalho da Susana vem precisamente trazer evidências que suportam outra teoria com 48 anos, a do transporte de alimentos”, conclui a docente. Gordon Hewes, antropólogo americano, foi o percursor dessa teoria

que inspirou o estudo protagonizado por Susana Carvalho, ao afirmar em 1964, após observações em cativeiro, que o transporte de alimentos teria constituído um estímulo evolutivo para o surgimento da locomoção bípede nos primeiros antepassados humanos. “No caso do bipedismo dos nossos chimpanzés, parece ser o fator "alimento imprevisível", em termos de frequência e distribuição, que espoleta o maior bipedismo”, explica então a primatóloga portuguesa, acrescentando que “o bipedismo está ligado à monopolização de recursos que se querem garantir, porque não se podem prever”. No fundo, em condições de menor abundância do alimento mais desejado, os chimpanzés adotavam posturas bípedes com mais frequência do que em situações de maior disponibilidade do mesmo alimento. Conclusões como estas foram possíveis de alcançar tendo por base um trabalho de campo, na região de Bossou, Guiné. “A vida no meio da selva tem o melhor do mundo e o pior também”, afirma Susana Carvalho. Nas palavras da investigadora, África é um mundo de paradoxos, onde aspetos religiosos e culturais são, muitas vezes, fontes de conflito. As condições são mínimas: ausência de transporte, falta de contacto com o exterior, habitabilidade com reduzido conforto, alimentação racionada e condições de higiene limitadas, “lavar é no rio, ou com um balde”, ilustra a investigadora. “Em África, o lema é flexibilidade, paciência e não

entrar em pânico. As coisas nunca correm como planeamos, a lei do desenrasca é essencial”, afirma, contrabalançando com “as recompensas que são infinitas, do ponto de vista humano”. No fundo, há algo de intangível em trabalhar no meio da selva com chimpanzés: “é um luxo, um privilégio de muito poucos, que muda a forma de ver a vida e os humanos”, declara. Portugal já se assume no panorama internacional da Primatologia e Evolução Humana. “Temos um mestrado em Evolução e Biologia Humana que é, sem dúvida, o melhor da Ibéria, e reconhecido na Europa”, refere Susana Carvalho, que é igualmente docente convidada desse mesmo mestrado, do qual já saíram alguns primatólogos portugueses. “Neste momento, um bom primatólogo português é conhecido em todo o mundo da Primatologia”, demonstra a investigadora, tendo em conta o seu próprio percurso. Algumas comparações com Jane Goodall, “personagem única, com uma missão global, que viveu uma época muito especial”, são inevitáveis. Susana Carvalho conta que fez alguns sacrifícios para poder custear o início da sua carreira, como vender o seu carro para poder ir para África. “Fico mais contente se, daqui a 30 anos, ficar conhecida como a primatóloga portuguesa que ajudou a abrir portas a excelentes alunos que podem ser a geração que irá mudar o panorama da Primatologia no país”, finaliza.

Excesso de antibióticos põe em risco a saúde pública apesar da maior incidência de bactérias resistentes em ambiente hospitalar, a investigação da Universidade de Coimbra pretende analisar como estas se propagam pelas águas ou animais Filipe Furtado Uma equipa de investigadores da Universidade de Coimbra (UC) está a estudar as estruturas genéticas envolvidas na disseminação da resistência das bactérias aos antibióticos. O estudo incide no ADN que suporta os genes de resistência, transferidos

de uma bactéria para outra. O grupo de trabalho multidisciplinar, constituído por farmacêuticos, biólogos, técnicos de saúde pública e veterinários, estuda bactérias de origem hospitalar e ambiental. O trabalho analisa a virulência e a resistência de bactérias como a Klebsiella sp., Salmonella sp., ou até a Acinetobacter sp. e a Escherichia coli, com novas estirpes multirresistentes identificadas. A coordenadora das pesquisas, Gabriela Jorge da Silva, realça a importância da investigação “para a compreensão do impacto na saúde pública da resistência aos antibióticos”. Tratar estas infeções tem um custo elevado: mais consultas médicas, prolongamento da hospitalização do doente, utilização de antibióticos caros e de uso restrito, acrescenta a investigadora, que enfatiza a “neces-

sidade urgente de racionalização do uso dos antibióticos”. A também docente da Faculdade de Farmácia da UC (FFUC) alerta para as noções de resistência e de virulência que, mesmo sem uma relação direta, podem estabelecer-se na mesma estrutura genética. “Pode estar a selecionar-se bactérias resistentes e simultaneamente virulentas. Isso tem aparecido, mas felizmente não são muitas bactérias”, aponta. “A maior percentagem de infeções por bactérias resistentes aos antibióticos ocorre ao nível hospitalar”, onde há doentes imunodeprimidos, pessoas submetidas a cirurgias e uso de antibióticos deste largo espectro bacteriano, que cobrem uma série de bactérias. O objetivo é também perceber “até que ponto as bactérias podem sair através de esgotos, das

águas ou animais”, destaca Gabriela Jorge da Silva. A resistência de bactérias aos antibióticos resulta da inativação dos próprios, através de enzimas; pode ocorrer por uma diminuição da entrada do antibiótico na célula da bactéria, um bombeamento do antibiótico para o exterior ou até a alteração dos alvos do antibiótico, não permitindo a fixação na estrutura da bactéria. As muitas resistências existentes resultam do uso “excessivo e inadequado dos antibióticos”, reitera Gabriela Jorge da Silva. Atenuar as resistências das bactérias implica conhecer as populações bacterianas mais comuns em cada hospital, para administrar os antibióticos correspondentes. É possível “fazer uma reciclagem de antibióticos”, isto é, após

um certo período de tempo, substituílos por outros. Segundo a investigadora, “não é cem por cento eficaz”, mas pode diminuir a taxa de incidência. A prevenção passa, também, por “dizer às pessoas que os antibióticos não são para tomar de qualquer forma”. O combate à infeção por bactérias multirresistentes complica o cenário clínico e, em certos casos, os “médicos não têm alternativas”. São então utilizados antibióticos de uso restrito, não disponíveis para a comunidade, de largo espectro bacteriológico, que causam mais resistências. A outra hipótese é “associar dois ou três antibióticos e tentar que a pessoa reaja”, mas depende do sistema imunitário de cada um. Em última instância, a pessoa pode morrer ou ficar com sequelas graves.


16 | a cabra | 17 de abril de 2012 | Terça-feira

PAís

A escola pública dividida no ensinar Revisão curricular portuguesa abre possibilidade de turmas passarem a dividir os seus alunos por estados cognitivos de aprendizagem diferentes. A asfixia económica trilha o caminho para a discussão, e o centro da aprendizagem oscila entre a especificidade do aluno e o perfil do professor. Por Liliana Cunha

A

pedagogia pública, o molde em que é lecionada e os alunos que a compõem sempre fizeram da educação ponto sensível da sociedade. Porque reformar o ensino é mais uma das batalhas que o país enfrenta em tempo de sobejos cortes, pensar a abordagem constrangida pelas dificuldades torna-se necessário. Dá até azo a polémicas. “A escola é obrigatória, tem de ser uma escola inclusiva”, assegura a diretora da Associação Nacional de Professores, Paula Carqueja. Reorganizar os alunos por graus de dificuldade é a carta que está em cima da mesa. Por assim dizer, a autonomia preconizada para as escolas faz com que algumas já apliquem esta ideia: “tanto nos preocupamos com a parte dos alunos que, tendo dificuldades, têm de estar integrados numa turma dita normal, como nos preocupamos com aqueles alunos que, tendo mais capacidades, poderiam ir mais além”, demonstra Lucinda Batista, coordenadora do 1ºciclo do agrupamento de Marrazes, em Leiria. No contexto da revisão curricular o acompanhamento é a principal linha orientadora para o combate ao insucesso. No entanto, essa flexibilidade tem gerado discórdia entre a classe que ensina: “a sociedade tem, hoje em dia, alguns pudores, apelidando estas situações de algum segregacionismo”, considera o professor de Educação Visual e Tecnológica do agrupamento de Amarante, José Rodrigues Taveira. Esse apelidado segregacionismo deriva da divisão de alunos entre bons, médios e menos bons, caracterizando o nível de rendimento a que correspondem. “Em Portugal, há armas históricas que explicam por que é que cá se olha para isso com receio e até de forma reacionária”, explica o dirigente do Fórum para a Liberdade na Educação (FLE), Fernando Fonseca. Antes do 25 de Abril, havia a escola industrial, formatada para a especialização técnica, e a liceal, pensada em formar os teóricos que seguiriam o ensino superior. Para Fernando Fonseca tal significava “uma estratificação da sociedade”, onde os mais dotados do sentido intelectual formar-se-iam no âmbito vulgarmente chamado de “doutor”. Trinta anos depois, há uma nova destrinça entre escolas profissionais e cientifico-humanísticas. “É preciso dar-lhes [às escolas profissionais] o estatuto social que têm os cursos regulares”, justifica o mesmo.

Carlota rebelo

o segundo e terceiro ciclo são alvo da maior parte da reforma educativa nacional, a vigorar no próximo ano letivo

Revisão da estRutuRa CuRRiCulaR 2012/2013 • Promover o rigor na avaliação obtendo dados fiáveis sobre a aprendizagem, através da introdução de provas finais no 4.º ano e da sua manutenção no 6.º e no 9.º ano, a Português e a Matemática; • Flexibilizar a duração das aulas segundo o critério de cada escola, removendo a obrigatoriedade de organizar os horários de acordo com tempos letivos de 45 minutos ou de seus múltiplos; • Prestar um maior acompanhamento aos alunos, através da oferta de apoio diário ao estudo no 2.º ciclo. esta oferta é obrigatória para as escolas e de frequência facultativa para os alunos indicados pelo Conselho de turma e os encarregados de educação; • substituir educação visual e tecnológica pelas áreas disciplinares de educação visual e de educação tecnológica, cada uma com o seu programa próprio e cada uma com um só professor;

• Possibilitar ofertas de componentes curriculares complementares com carga flexível, a serem utilizadas com o crédito da escola, nomeadamente a educação Cívica, a educação para a saúde, a educação Financeira, a educação para os Media, a educação Rodoviária, a educação para o Consumo, a educação para o empreendedorismo e outras. Modelo Alemão Hauptschule, Realschule e Gymnasium - são os três tipos de escolas secundárias alemãs. Pretendem segmentar o ensino para habilitar o aluno segundo os seus ritmos de aprendizagem. Assim, a primeira

corresponderá a uma preparação para o aluno seguir o ensino mais profissionalizante, nomeadamente na agricultura e na indústria; a segunda está direcionada para cursos mais adiantados e a terceira para os futuros teóricos e académicos.

“Nesta altura, na Alemanha, tem-se uma discussão muito aprofundada desta divisão”, salienta o professor Taveira. Os defensores das igualdades de oportunidades encontram-se, de momento, “a travar uma luta com alguma intensidade no sentido de acabar com esta divisão ou forma de progressão”, adianta o mesmo. Socialmente, o nível mais baixo dessas três vias – hauptschule - é apelidado de marginal. Para o professor de EVT, é digno de “crueldade”. Daí advém a discussão para, porventura, terminarem com a segmentação do ensino. Alunos versus professores “Deixou de haver tempo para pensar em medidas para melhorar os já de si bons”, frisa a professora Lucinda Batista. Usualmente, a maior preocupação dos docentes incide sobre os alunos com maior défice cognitivo; porém, os que têm maior ritmo em aceder às matérias não têm espaço para melhorar: “estamos a criar um país de medíocres-suficientes, não estamos a trabalhar para a excelência”, lamenta a coordenadora do 1ºciclo. O arquétipo de aluno nunca será homogéneo, mas o de professor

também não. “Depois de criar essas turmas, a seguir, que professores é que eu vou lá colocar?”, indaga o diretor pedagógico do Colégio da Imaculada Conceição (Cernache), António José Franco. Vai mais longe, questionando se porá “os melhores docentes na melhor turma, ou na pior”. A desorientação poderá dissipar-se se o centro for o cunho pessoal de cada aluno. Nas palavras da professora da licenciatura de Ciências da Educação na Universidade de Coimbra, Helena Damião, os docentes são quem “tem de ter grande destreza pedagógica e didática, pensar nas melhores alternativas de ensino”. O modelo público estandardizado é alvo de reticências - “quando fazemos uma viagem, mesmo que queiramos chegar à mesma cidade, se partimos de cidades distintas teremos caminhos distintos”, afirma o presidente da FLE para legitimar que o fundamento da educação deve seguir vias diferentes para potencializar as virtudes de cada um. “A maior parte desta reforma tem como única finalidade a redução dos custos na educação”, sustenta o professor Taveira. “É uma cegueira”, finaliza.


17 de abril de 2012 | Terça-feira | a

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MUndO Estados Unidos da américa

Agora a regra inverte-se: culpado até que se prove o contrário Após aprovação da legislação do Estado policial por Barack Obama, a legitimidade da lei é questionada e são postos em causa os direitos humanos Maria Garrido João Valadão A 31 de dezembro do ano passado, foi assinado pelo presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Barack Obama, o Nation Authorization Act Defense (NDAA), na sua tradução, Ato de Autorização de Defesa Nacional. Além de prever uma injeção de 662 biliões de dólares para a máquina de guerra, é autorizado com esta lei, aos militares americanos, prender qualquer cidadão do mundo e mantê-lo num centro de detenção militar por tempo indefinido, sem julgamento ou qualquer outro recurso legal. Uma detenção que se legitima apenas por uma

suspeita de terrorismo. “É uma aprovação estranha, porque é um presidente que começa por afirmar que iria vetar a lei e um mês depois acaba por aprová-la”, começa por analisar o especialista em política internacional, José Goulão, que acredita que esta aprovação se reflete numa “negação do espírito com que Obama se apresentou às urnas”. Por sua vez, o professor de Filosofia Política da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Alexandre Franco de Sá, não se mostra admirado: “nunca esperei que [a eleição de Obama] provocasse qualquer mudança muito nítida nos princípios da política externa americana”. Franco de Sá admite que houve “uma certa ingenuidade” em pensar que a administração Obama “poderia representar um momento de rotura” com a política externa dos EUA até agora. O professor compreende nesta “coerência de continuidade” três princípios fundamentais: a aposta numa hegemonia militar absolutamente incontestável”, a evocação dos direitos humanos “para reivindicar o direito de ingerência humanitária” e a “chamada guerra contra o

terrorismo”. O processo, até à aprovação, “sendo todo ele pouco transparente na forma como chega a este resultado, parece ter respeitado o

“É uma aprovação estranha, porque é um presidente que começa por afirmar que iria vetar a lei” formalismo democrático”, admite José Goulão, quando questionado sobre a constitucionalidade da lei. Alexandre Sá confirma: “esta lei é democrática, foi aprovada pelos procedimentos legais dos EUA”.

O conceito de terrorista Entendendo uma problemática no que toca à aplicação da lei, José Goulão realça: “o mais perigoso é que a interpretação de terrorista seja a de que é aquele que está contra o regime dominante”. Ainda segundo o especialista, é a “indefinição deste conceito que

permite um conjunto de arbitrariedades e decisões que podem ser discutíveis, mas que podem ser aplicáveis por quem tem o poder”. “O terrorista está aqui num limbo entre o combatente inimigo e o criminoso”, confirma Alexandre Sá, exprimindo a sua preocupação na definição de terrorista. Apesar de ser um “combatente com o qual estão em guerra, aqui há um estatuto de indefinição e isso é perigoso”, corrobora.

Violação dos direitos humanos No que toca à abrangência da aplicação da lei sobre qualquer cidadão no mundo, José Goulão explica que “não há nenhuma legitimidade, a não ser a legitimidade da força, do poder económico e do poder tecnológico”. Para o especialista, há uma “clara” violação dos direitos humanos, na medida em que este exercício de combate ao terrorismo é um “sinal muito inquietante de invasão das liberdades cívicas dos cidadãos”, salienta. Goulão concebe um paradoxo: “quem viola os direitos humanos é quem os define, ou pelo menos

quem define a sua aplicação”. Face à ação dos Estados Unidos em qualquer país do mundo, Alexandre Sá assegura que estes “não podem intervir globalmente”, tendo havido, no entanto, casos no passado. “Esses casos não são novos e colocam, obviamente, um problema nas relações internacionais, da relação entre Estados”, sublinhando que “não se trata de uma lei que veio inaugurar uma espécie de direito de pura e simplesmente atuar onde se quer”.

Exploração do sentimento de medo Quando questionado sobre a pretensão da criação de um sentimento de medo por detrás destas práticas de detenção, José Goulão defende que “toda a sociedade autoritária funciona no sentido do medo e de uma hesitação dos cidadãos perante o que podem ou não fazer”. Relembrando a premissa de um Estado democrático de que “todo o cidadão é inocente até prova em contrário”, Goulão mostra-se preocupado afirmando que “pelo caminho que as coisas estão a tomar, cada cidadão é culpado até prova da sua inocência”. d.r.

“Não há nenhuma legitimidade na aplicação da lei, “a não ser a legitimidade da força, do poder económico e do poder tecnológico”

Hungria: “uma situação cada vez mais dramática” Um pacote de medidas antissociais, antiliberdade e antidireitos foi aprovado por Viktor Orban. A situação agrava-se na Hungria, onde a violação dos direitos humanos é clara Maria Garrido Ana Sardo A nova Constituição húngara entrou em vigor no dia 1 do passado mês de janeiro. Dela resulta um novo pacote de legislação pelo qual o primeiro-ministro Viktor Orban é responsável, que tem vindo a ser criticado. Alterações como a restrição da liberdade de imprensa, a perda de estatuto legal de algumas religiões, a separação entre o poder judicial e o poder político que é posta em causa e a ilegalização do maior

partido da oposição têm vindo a ser aplicadas. De cariz nacionalista, vistas por muitos como antidemocráticas e na base do descontentamento do povo húngaro, as medidas são vistas como “absolutamente antissociais, anti liberdade e anti direitos”, nas palavras da eurodeputada do Bloco de Esquerda (BE), Marisa Matias.

vação de uma lei em que é cobrada uma multa de cerca de 200 euros a cada sem-abrigo que seja apanhado a dormir na rua e que pode, inclusive, vir a ser preso por esta ação. “Este é o tipo de política que está a ser posta em prática na Hungria. Tem muitos nomes, mas democracia não é, absolutamente”, afirma Marisa Matias.

Violação dos direitos humanos

De democrático a ditatorial

A também investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC) nas áreas da democracia e cidadania chama a atenção para uma situação que “é cada vez mais dramática”, sendo que o pacote aprovado está “para além de qualquer coisa que se possa dizer aceitável e não respeita minimamente os direitos humanos, quer individuais, quer coletivos”. Um dos casos mais graves, refere, é a apro-

“É muito mais próprio de um regime ditatorial do que democrático todas estas medidas”, assevera Marisa Matias. A eurodeputada refere a preocupação dos movimentos de oposição ao governo da “conversão daquilo que é um sistema democrático num regime centralizado e com alguns laivos de ditatorial”. A questão da tentativa de “apagar formas de resistência, reprimindo todas as manifestações públicas de descon-

d.r

tentamento com detenções arbitrárias e abusivas” leva Marisa Matias a acreditar nesta mutação. “Estamos a falar de um sistema que vai muito para além daquilo que é aceitável, num contexto de uma União Europeia que se diz democrática”, remata.

A ação da União Europeia Depois de terem sido enviadas cartas às autoridades húngaras por parte da Comissão Europeia, colocando uma série de exigências ao governo de Orban, o presidente da Comissão, Durão Barroso, deu o seu parecer e legitimou à margem de uma sessão plenária do Parlamento Europeu os procedimentos de infração levantados à Hungria: “esperávamos que as autoridades húngaras efetuassem as modificações necessárias para garantir o respeito do direito da União. Não é esse o caso até ao momento.”


18 | a cabra | 17 de abril de 2012 | Terça-feira

Cinema

arTes

P

“TaBu ” de Miguel goMes CoM Teresa Madruga laura soveral ana Moreira 2012

as saudosas colinas de África

ver

CrítiCa de joão terênCio

a

história de uma infância complicada é um tema geralmente apelativo ao espectador, mas não é tarefa fácil passar essas vivências para o grande ecrã. Longe do estilizado cinema americano, que tudo afunila para finais de felicidade eterna, esta produção dos irmãos Dardenne demarca-se do concetual. o início do drama é, desde logo, emotivo. cyril catoul (Thomas Doret), um miúdo de onze anos, é deixado pelo pai num orfanato. a ideia de que este o abandonou não é opção para cyril, que se agarra desesperadamente a tudo o que o liga ao progenitor. a certa altura, a criança foge até ao apartamento do pai na esperança de lá o en-

erdi a conta às vezes em que a minha mãe me falou do que era crescer em África. alegria, liberdade, natureza. Festas ao ar livre, o cheiro a terra molhada, os Beatles e a cocacola, então apenas motivos de inveja na metrópole colonizadora, orgulhosamente só no dito mundo civilizado. Já a minha avó, empurrada para um país que não era o seu, falava com pesar do modo de vida dos portugueses aqui no rectângulo, “sempre enfiados em casa”. rumo a África, pois então. Miguel Gomes regressa em abril já consagrado por Berlim, depois daquele mês de agosto que nos ficou na memória. após o retrato cândido do regresso estival dos nossos emigrantes, o realizador aventurase no continente esquecido, para contar uma estória de amor impossível. É de “Tabu” que se fala. apresentado sob a forma de um díptico (como já o tinha feito na sua anterior longa-metragem), encon-

tramos na primeira parte um retrato de Lisboa nos dias de hoje, através de duas mulheres. Pilar tenta encontrar sentido para os seus dias através da filantropia - a acolher estrangeiros, através das rezas ou do activismo. Tem ainda um “amigo” pintor, figura-cliché das grandes cidades. não é feliz. aurora, personagem central do filme, é aérea e ensimesmada, como se tivesse passado por várias vidas, demasiado cheias para se concentrar nesta. aqui brilha Laura Soveral - com particular destaque para o genial monólogo após mais um desaire nas máquinas do casino. Há ainda Santa, a empregada africana, memória viva do colonialismo, que tenta aprender a ler, escolhendo para isso “robinson crusoé”... aurora acaba por nos deixar, não sem antes abrir a porta para a segunda metade do filme, através de Giancarlo ventura, seu amante nessa existência anterior, e narrador que nos irá acompanhar na re-

cordação desse passado. este outro capítulo remete-nos então para África, e para a memória trágica do amor entre os dois. não existe um único diálogo daí até ao fim de “Tabu”, numa inequívoca opção de autor. e isto apesar de o argumento e o som serem magníficos, ao contrário do que nos habituou o cinema português. as vozes têm uma densidade que envolve e o barulho da savana faz-nos esquecer onde estamos. a versão inesperada das ronnettes aperta o coração quando deve. e mesmo sem se ouvir, ana Moreira e carloto cotta enchem qualquer plano. ouvimos a intenção de o governo passar a financiar o cinema com base em resultados de bilheteira e assistimos ao reconhecimento internacional posterior de Miguel Gomes e João Salaviza. o executivo - talvez esquecido - correu a felicitá-los. Ganha assim contornos de dedicatória o momento do filme em que, durante uma manifestação, se grita, “Shame onu!”

o Miúdo da Bicicleta contrar. o pai, porém, já há muito havia deixado a casa e vendido o que lá tinha. nesta cena cyril conhece Samantha (cécile de France), a cabeleireira local, que posteriormente encontra a bicicleta que Guy catoul (Jérémie renier) tinha oferecido ao filho. numa escolha que poderia ter tido uma maior abordagem por parte dos Dardenne, a mulher rapidamente se torna na família adotiva da criança. De qualquer forma, engane-se o espetador que pense que isto se trata de um enredo entre filho e pai: é em redor da ligação que cyril estabelece com Samantha que tudo se move. aliás, este diz-lhe que não o quer ver mais. as esperanças do pequeno jovem, que tudo faz para se jun-

tar ao pai, encontram assim um fim precoce. a negação serve apenas para aumentar a revolta que cyril sente dentro de si. a sua rebeldia irritante depressa o leva a ser tentado para os caminhos da delinquência, aqui figurados na pessoa de Wes (egon Di Mateo), o traficante local. Deixado pelo pai e atraído para o mundo do crime, resta ao menino decidir se quer percorrer caminhos obscuros ou aceitar a vida que Samantha ainda lhe oferece. o complicado e confuso destino de cyril é deixado em aberto, como se o filme fosse abruptamente cortado. uma interessante película dos irmãos Dardenne, que mais teria vingado se melhor aprofundada. joão Valadão

filme

De Jean-Pierre e Luc DarDenne eDitora DvD LeoParDo 2011

artigo disponível na:

Por ruas complicadas


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feiTas oUvir

ler

awe naturale ”

S

e pensarmos um pouco sobre a terra de Seattle, imediatamente nos chega à cabeça o grunge dos nirvana, poderemos fazer uma pesquisa e descobrir que é também o ultimo local de descanso do imbatível Bruce lee, mas também casa dos Fleet Foxes e de um dos grupos de hip hop mais interessantes dos últimos anos, Shabazz Palaces, que lançaram “Black up” em 2011. e foi neste disco que as THeeSatisfaction, Stas iron e cat HarrisWhite, se mostraram pela primeira vez ao mundo. chegam agora em nome próprio, e pela primeira vez, com uma de produção que faz jus à música THeesaTisfacTion que fazem. vêm do mundo do hip hop mas são muito mais editora que isso. “awe naturale” é um suB PoP caldeirão que junta Sun ra, Duke ellington, andré 3000 2012 ou as Floetry. o disco começa com “awe”, beat de 50 segundos espaciais interrompidos por um baixo no começo de “Bitch”, poema irónico ao jeito de Jill Scott no seu primeiro “Words and Sounds”. “QueenS” é erikah Badu nos seus melhores momentos, e “God” prova que as duas também dominam as linguagens da manipulação de samples e do jazz. Mas é quando chegamos a “enchantruss”, ritmo hipnótico em batida descompassada onde ishmael Butler dos Shabazz Palaces devolve o favor prestado, que percebemos que as THeeSatisfaction não podem ser reduzidas às suas influências. Mesmo que tudo o que aconteceu para trás na música negra americana tenha sido essencial para que elas tenham aparecido, em “awe naturale” são inovadoras e têm o ‘groove’ e o apelo de todos os artistas supracitados. o registo sonoro que fazem transcende géneros e fórmulas e é das melhores coisas que podia ter acontecido à música em 2012. Se há defeitos a serem apontados que chateiem é terem as músicas curtas e não nos deixarem ficar com elas mais tempo.

“satisfaz Plenamente”

luís luzio

e a noite roda

um volutear embriagado

de aleXandra lucas coelHo editora TinTa da cHina 2012

tezas e hesitações, o amor declarado e exaltado, as constantes separações, a melancolia angustiante e o fim natural, desde logo predito nas primeiras três páginas. os sentimentos atropelam-se a cada parágrafo, como se acotovelam os destinos e locais – onde o Médio oriente predomina. Todos os elementos giram num rodopio arrebatado, onde apenas as descrições dilatadas e constantes pautam os momentos e nos enquadram não só no espaço, mas também no tempo da acção. Há uma clara concepção de, mais do que egoísmo, um egocentrismo na narração, onde a protagonista assume a única verdade – apenas os seus e-mails, correspondência e SMS são transcritos para a obra. os de León, e o dos outros, surgem pela voz de Blau. este é o seu diário. Se intromissão é permitida, é a das emoções e afectos partilhados. no final, resulta uma obra em que o que alexandra Lucas coelho já nos habituou se alterna com notas de um discurso estigmatizado por uma série de lugares comuns apaixonados e trivialidades da rotina jornalística. “e a noite roda” confirma alexandra Lucas coelho, a jornalista, a cronista de ‘Fugas’, a repórter capaz de nos mostrar a imagem nítida de um frontão de uma casa palestiniana, o claro cheiro de jasmim de um terraço de Damasco ou o sabor exacto de uma iguaria de Jerusalém. e talvez seja este mesmo cárcere ao papel de repórter que deixe a desejar algo mais desta obra. joão Miranda

JoGar

l.a. noire ” Mais um clássico da rockstar

GUerra DaS CaBraS a evitar Fraco Podia ser pior vale a pena a cabra aconselha a cabra d’ouro

artigos disponíveis na:

T

alvez seja defeito profissional. Daquelas rotinas laborais que não conseguimos largar e que, numa circunstância mais inebriada, deixam o chaplin a agitar os braços no ar. ou pior, um vício (afinal, este livro repisa-os a cada página). o primeiro romance de alexandra Lucas coelho calcorreia as marcas narrativas de todas obras que lhe antecedem. estão lá o “caderno afegão”, “Tahrir! os Dias da revolução” ou o “viva México”. a cada página revisitamos as suas crónicas do ‘Público’, sobre o Brasil, Palestina ou israel. Há um decalque descomplicado da realidade, que acompanha acontecimentos autênticos – a morte de Yasser arafat, o coma de ariel Sharon, as eleições palestinianas. e tudo se compõe num registo que facilmente se poderia enquadrar num qualquer género jornalístico. enfim, os protagonistas são, eles próprios, jornalistas. ana Blau, jornalista catalã, empresta o nome a uma trama que se desenrola quase como um diário, onde, mais do que por datas, os diferentes estádios se demarcam por locais. a narração surge da dupla necessidade de esquecer um amor e de perpetuá-lo: “escrevo para acabar com a história, escrevo para que a história comece. esquece a morte e segueme”. ele é León Lannone, repórter belga, uns vinte anos mais velho, mal casado e com três filhos. Juntos vão viver um amor inteiro – os primeiros tempos de paixão, a embriaguez emotiva, as incer-

PlataforMa Ps3, XBoX ou PC editora rocksTar gaMes 2011

L.

a. noire é o título do terceiro free-roam criado pela rockstar para a nova geração, após os estrondosos sucessos de GTa iv e red Dead redemption. e se o estilo sandbox se mantém, até certo ponto, é o ambiente que distingue (e bem) este novo jogo dos seus predecessores, desta vez com interessantes adições a nível de jogabilidade e de motor gráfico. Quem espera encontrar um novo GTa não poderia estar mais enganado: embora alguns elementos sejam os mesmos, como a liberdade de conduzir por uma cidade extensa em qualquer dos 95 veículos disponíveis ou as cenas de acção intensas, a experiência é totalmente distinta. L.a. noire põe o jogador em 1947, na pele de cole Phelps, ex-marine e actual polícia, e todos os pormenores nos transportam para essa realidade - um dos grandes fortes do jogo é, de facto, o ambiente. a música enquadra-se na acção e a estrutura do jogo, embora um pouco linear, consegue contar a história de forma interessante, transportando o jogador para uma L.a. corrupta e muito noir. Jogando com um polícia, seria de esperar uma radical mudança na jo-

gabilidade face a títulos anteriores e aqui, de novo, as escolhas são certas. a narrativa divide-se em casos policiais, cuja solução dependerá da investigação de Phelps, que através da recolha de provas, entrevistas, ou mesmo o uso de alguma força, terá que acusar ou ilibar os muitos suspeitos existentes em cada caso. um dos focos do jogo é, aliás, o questionário: através de um novo motor gráfico, que permite expressões faciais foto-realistas, é necessária uma análise psicológica do suspeito ou testemunha, cabendo ao jogador decidir a veracidade do que é dito e contraargumentar com as provas que conseguir recolher. Se L.a. noire tem defeitos, estes são esparsos e mínimos, embora se possam destacar alguns bugs da i.a., ou problemas gráficos comuns a este tipo de jogo, como o pop-up evidente ou a ausência temporária de texturas. no geral, a L.a. dos anos 40 está bem e recomenda-se - um jogo a não perder.

Pedro leitão


20 | a cabra | 17 de abril de 2012 | Terça-feira

SolTaS

João Gaspar

Uma ideia Para o enSino SUPerior amílCar FalCão • ProFeSSor da FaCUldade de FarmáCia da UniVerSidade de Coimbra

Tomai e Comei

A “quAlidAde” que se exige!

É maiS Um boCadinho…

As amarelas fintaram-me. Em dia que anunciava batata assada com galinha saiu na lotaria febras de porco com arroz e batata frita. Mas, até aí, nada mau. Cheirava bem e prometia. Lá se vai para a fila. Uma pessoa apanha o tabuleiro, saca do pão, enche o copo, até quase transbordar, que já se sabe que a preguiça não vai deixar levantar o rabo da cadeira para ir encher o copo novamente, apanha a taça de arroz doce e espera pelo veredito da senhora que se prostra de colher na mão. O momento que define a refeição para quem tem olho de camionista quando é altura de comer: independentemente do que for, há que encher a pança! Olha-se a medo para os pratos servidos à espera que uma mão lhes pegue. Mas uma pessoa trinca o lábio e inspira fundo por causa da mão da cozinheira. Eis que tudo se resume a isso, pelo menos aos glutões que passam pela cantina. Perseguem a cozinheira que vai do arroz para as batatas e das batatas para a febra, a rezar para dentro por uma dose respeitável. O poder todo sobre a dosagem infligida às colheradas. Remetidos a uma dose “standard”, igual à do gajo da frente, há que fazer choradinho, que uma pessoa precisa de alimento, pelo menos uma pessoa com estômago que já rolou muito restaurante da nacional número 1. -Desculpe, não podia pôr mais um bocadinho de carne? -Ai, menino, olhe que eu vou presa! Se a polícia aí chega… -E um bocadinho de batatas? -Isto agora não dá para mais. É conta certa. Lá se fica com a conta certa, que até estava saborosa, mas a pedir por mais um bocadinho… com boné, bandeira do Benfica, matrícula com o nome da mulher, e de terço no para-brisas.

Por João Gaspar

Creio que a palavra-chave para o ensino superior é “qualidade”. E prefiro a palavra “qualidade” do que a muito desgastada “excelência”. E faço-o porque a “qualidade” conduz à “excelência”, embora a “excelência” não possa nem deva ser confundida com “qualidade”. “Qualidade” das instituições que integram a rede de ensino superior. É impensável que, após tantos escândalos públicos e notórios, ainda se continue a aceitar que instituições sem capacidade instalada (recursos humanos e materiais) possam fazer parte da rede de ensino superior. “Qualidade” da oferta educativa. Acabar definitivamente com a confusão entre ensino superior universitário e ensino superior politécnico é imperioso. É imperioso porque é incrível que ainda não se tenha percebido que ambas as instituições de ensino superior são indispensáveis ao progresso do país, sempre e quando cada uma delas fizer aquilo que lhe compete fazer e não aquilo que, eventualmente, gostaria de fazer. Portugal precisa de jovens com formação superior diversificada e com um mercado de trabalho à sua espera. Cursos com designações originais em áreas onde o desemprego é a saída profissional mais óbvia deviam ser liminarmente extintos. “Qualidade” na produção de conhecimento. As instituições de

ensino superior, com destaque para o ensino superior universitário, deveriam ser capazes de se organizar e formar redes capazes de gerar massa crítica capaz de responder a grandes desafios científicos. Para isso acontecer é necessário que haja a capacidade de identificar linhas estratégicas e apostar nelas com a paciência que se exige a quem trabalha em investigação. Instituições especialistas em generalidades não existem, pensam que existem. “Qualidade” na transferência do conhecimento. Regra geral, os empreendedores não se dedicam ao ensino e à investigação. E, infelizmente para todos nós, muitos dos que mostram ser empreendedores não acreditam na academia. É necessário haver quem se dedique à intermediação e, nesta matéria, a Universidade de Coimbra através do Instituto Pedro Nunes (IPN), tem sabido demons-

trar que a existência de uma interface é decisiva. “Qualidade” nas opções políticas. Que país o nosso que investe milhões de euros a formar jovens para depois lhes dizer que o seu futuro está no estrangeiro. Seremos nós mais espertos do que os outros que formam os seus quadros superiores à medida das suas necessidades e os fixam para enriquecer o país e multiplicar o investimento feito na formação dos seus jovens? “Qualidade” nas relações humanas. Numa organização o mais importante são sempre as pessoas. Procurar equilíbrios, evitar ruturas, promover a transparência e valorizar o mérito, são valores que devem estar presentes na gestão da nossa rede de ensino superior. No momento difícil que atravessamos, fazer da “qualidade” um objetivo prioritário é um ato de inteligência.

d.r.

Se Uma Janela Se abriSSe • TaGV • 12 de abril

arTe.PonTo

e se...?

N

a última quinta-feira, 12 de abril, o Teatro Académico de Gil Vicente abriu as portas, ou melhor, permitiu que uma janela se abrisse ao público. “Se uma janela se abrisse”, com texto e encenação de Tiago Rodrigues, trouxe a Coimbra um telejornal irreverente e inusitado. Quatro atores dobram imagens reais de telejornais a partir de um ponto de vista diferente. Ao mesmo tempo que um DJ, responsável pelo ritmo, dá o tom das notícias, além de realizar ótimas performances individuais. Estes cinco artistas completam o cenário que possui, no seu centro, ao alto, uma grande tela. Por maior que seja a tela, é impossível ter o foco voltado apenas nesta. Os atores e o DJ literalmente roubam a cena, uma vez que, independentemente de estarem ali sentados, possuem um grande dinamismo durante toda a peça. O formato adotado é simples e, por isso mesmo, conquista imedia-

d.r.

tamente o público, com uma ideia despretensiosa que é trabalhada de maneira inteligente. As notícias deste diferente telejornal rumam para um outro foco sobre o jornalismo, um novo olhar. Na primeira parte jogam com imagens e assuntos reais. Utilizam a ironia e o humor para realizar verdadeiras e pertinentes críticas políticas e sociais. Este inusitado noticiário aborda, sobretudo, reportagens que refletem o tema da comunicação, sempre à procura da gargalhada. Chamam a atenção da plateia para refletir onde está a importância de tantas notícias recebidas todos os dias; e que na vida de cada um há notícias muito mais relevantes do que o tamanho do buraco na camada de ozono. De uma primeira parte agitada e engraçada, não se parte direto à segunda parte, mas sim ao intervalo. Pois mesmo este merece ser aqui citado tão carinhosamente quanto os cinco componentes da peça o trataram, pois é, com muita piada, que

este é o momento de maior integração com o público. A segunda etapa dá continuidade ao bom humor e ao jogo de imagens e assuntos existentes. Contudo, nesta, o espetáculo trata de temas intrigantes como o pensar e o silêncio, algo tão individual, tão íntimo, que ali abordados instigam pensamentos e calam a plateia. É nesta altura que os olhares se voltam muito mais para os atores e a atmosfera fica completa com luzes amenas. A tela está ali, ainda com imagens, mas agora muda. Atentase à voz de cada ator e principalmente às histórias e às reflexões. “Se uma janela se abrisse” sugere no próprio nome novas possibilidades, a dúvida do que poderia surgir se mudássemos o olhar, se procurássemos outras perspetivas, se olhássemos para além do que nos colocam à frente; provoca uma vontade de abrirmos muito mais do que janelas, para que partamos do se para o acontecer. Por Stephanie Sayuri Komatsu


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SolTaS o TaPeTe maiS Feio do mUndo

miCro-ConTo

Por Jorge Vaz nande por fim sonhar que era um tapete igual aos outros, peludo e grande, aqueles tapetes que os pais passam para os filhos e os filhos para os netos e assim por diante. Mas o Márcio estava na festa também, e o Márcio é daquele tipo de pessoas que cria uma roda de convidados em volta dele e se põe a contar coisas que as fazem rir. Entre elas, o

tapete mais feio do mundo. Todos explodiram numa gargalhada, menos Dora, que ficava triste com as coisas que o n a morado dizia, e o dono do tapete, que decidiu enfiá-lo num armário até decidir o que fazer com ele. No dia seguinte, enquanto o dono arrumava a confusão que ficara da festa, o tapete estava triste. Ele não gostava do armário. O seu destino

enquanto tapete era o chão, onde todos o podiam pisar e limpar os sapatos. O escuro do armário era a humilhação suprema na sua curta vida. E "curta" era realmente a palavra certa: o dono planeava deitá-lo ao lixo no fim do dia. A campainha tocou.

cima do tapete". Nas horas seguintes, o tapete sentiu coisas inimagináveis para a maioria dos tapetes do mundo. O toque amigo da pele humana. A confusão do prazer enquanto joelhos e mãos se fincavam nele.

jorge Vaz nande

Ilustração Por ana beatrIz marques

E

ra uma vez um tapete. Muitas histórias poderiam começar assim. Mas ele não era um tapete qualquer, porque ele era o tapete mais feio do mundo. O dono já não se lembrava de onde o tinha encontrado. Pelo menos, nunca o admitiu a ninguém. Quando Márcio e Dora, um casal de amigos, o visitaram, Márcio riu-se e disse "não acredito que deste dinheiro por isto. Este é o tapete mais feio do mundo!". Dora baixou os olhos, triste com as coisas que o namorado dizia. E o dono do tapete tentou lembrar-se porque é que ainda era amigo do Márcio. O tapete já ouvia coisas parecidas desde que, acabadinho de sair da linha de produção, o pessoal da fábrica o olhou com preocupação. Um funcionário disse mesmo "será que pode ir para a loja assim?". O patrão chegou, viu toda a gente parada, atirou o tapete para a pilha dos vendidos e gritou "a crise já acabou ou quê? Tudo a trabalhar!". Na loja, as empregadas puseramno no fundo da pilha, com a esperança que ninguém o visse e saísse assustado. Mas, um dia, alguém comprou o camarada que estava por cima dele e, sem querer, levou-o também. A rapariga da caixa reparou no engano, mas não disse nada. O tapete mais feio do mundo tinha que se fazer à vida. Quando o dono do tapete fez aniversário, diminuiu e direcionou sabiamente as luzes para que ninguém na festa conseguisse notá-lo Ao tapete, soube bem sentir tantos pés a pisarem-no. Normalmente, era evitado. Mas nessa noite não: ele podia

Era Dora. "Posso entrar?". "Claro", respondeu ele com surpresa. Dora era uma mulher cobiçável pelos homens, e o dono do tapete não era exceção. O que ela fazia ali? Ela entrou e despiu-se à frente dele. "Quero-te aqui e agora, com uma condição". Ele estaria disposto a tudo. Ela continuou: "vai ser em

monUmenTaiS PanadoS SoCiaiS

As umidades caindo nos seus pelos, muitas vezes, repetidas vezes. E a perversão também, quando ela gritava o nome do Márcio no meio de uma onda de insultos enquanto o dono do tapete a ia preparando para o clímax. Ela, gozando, levantou os olhos. E o dono do tapete lembrouse então porque era amigo de Márcio: para ficar com Dora por perto. Depois de fumarem um cigarro, ela levantou-se, pegou as roupas do chão e vestiu-se. Ele riu-se: "E eu que ia deitar o tapete fora". Ela, que já estava perto da porta, disse "podes fazê-lo. Ele é feio mesmo. Mas há coisas que é má educação dizer". E saiu. Mais tarde, o tapete estava no meio do lixo de um contentor e sentia o ar frio da noite. Era o fim, ele sabia. Mas, em tão pouco tempo, ele tinha conseguido mais do que tantos outros seus camaradas. Em si, para a morte, levava as marcas de uma tarde de amor. E, sorrindo, foi levado pelos almeidas enquanto, em casa, o seu ex-dono pensava na Dora e tentava inventar uma maneira de preencher o espaço em branco com que ficara no chão.

define-se brevemente como alguém que escreve coisas. que já fez várias coisas. que vai deixar de fazer muitas outras. não se define pelos inúmeros prémios que já recebeu. nortenho de gema, de monção e com espanha à vista, em Coimbra a escrita venceu a batalha ao direito. da cidade do conhecimento a lisboa e a são Paulo foi um pulo, de onde agora colabora com diferentes instituições, como as Produções Fictícias, Fábrica de Ideias Cinematográficas e Canal q. Pode ser poesia, ficção, uma ópera ou curtas-metragens. ser um guionista ou um roteirista. o que lhe interessa é escrever, escrever com a sinceridade com que diz que é um português que não sabe muito sobre futebol, escrever com o mesmo gosto com que fala com taxistas e se vicia em séries de televisão e filmes, sendo talk radio o seu de eleição. Para a sua viagem rumo a um fim indeterminado e longínquo, leva os paradoxos tangíveis de quem lê albert Camus ou tom sharpe, ou ouve música clássica intercalada com bill Hicks num qualquer transporte público. ou ônibus, quem sabe na direcção da Patagónia e do Pólo sul...

Paulo Sérgio Santos

WanTed: dead or aliVe

Por doutorando Paulo Fernando • facebook.com/paulofernandophd

O

vosso doutorando teve direito a uma ‘preview’ da deliberação que vai sair mais ou menos assim do processo inquisidor movido pelo Sr. Presidente do Conselho de Veteranos aos eventos ocorridos onde certo indivíduo cometeu graves infracções à bíblia do cisma praxista – reza então assim: “Epum hoc entretantum metat-se et queima e tal… et solum pro quandum in rapazium se doctorarlis a gente est algum coisa facere, typus un febrada aut un burn-out in pólos”. Enquanto a justiça de gabinete roda as suas engrenagens ferrugentas, uma espécie de foguete coreano que rebenta antes de descolar mas que faz os homens mais poderosos do mundo soltar umas gotinhas, o distintivo de xerife da praxe caiu na rua. No mundo da praxe clama-se por justiça popular! Para quem não sabe, e com uma abordagem ética e deontológica muito responsável, o vosso doutorando informa que está a ser or-

ganizado um linchamento virtual do prevaricador. Vale a pena ir dar uma olhadela aquilo, porque tem muita piada. Há opiniões para todos os gostos, na generalidade bastante ponderadas, basta ter em conta o nome do grupo. Há algumas que parecem aquele ‘teaser’ da RUC do Kazuza, chamo a estes o grupo dos trauliteiros: “Tenho aqui binte AK’s, cinquenta beagles, 3 carebinas, e chinos com desconto”. Há os ‘opinion-makers’ do governo, tipo Marcelo Rebelo de Sousa, só que o único livro que tresleram na vida foi o código da praxe, e soam vulgarmente a isto: “Acho que este grupo é indecente. Estas questões deviam ser tratadas em sede própria, mas se apanho este gajo na rua #$@£§&*! “. Ou seja, tratar destas questões, não é na esquadra da Elísio de Moura, é na sala Sr. Xico. MAS, como isto é malta rija, se o apanham na rua é coiso e tal… uma questão de coerência. Entretanto publicita-se a referida cartilha, à

d.r.

venda numa papelaria académica perto de si. Há quem duvide da veracidade dos acontecimentos, que isto será uma cabala à Paulo Pereira Cristóvão, ou mais uma manobra da Grande Loja do Penedo da Saudade, porque na praxe, essa coisa pura e casta, não há registos históricos deste tipo de situações. Gente a levar no pêlo, só com uma

moca ou o salto do sapato e na volta umas tesouradas nos pêlos púbicos que vão até aos testículos. Há quem proponha manif’s de caloiros à porta da associação (porque não nos jardins da AAC?), e outro tipo de iniciativas mais ou menos simbólicas. Há ainda muitos elementos para reflexão, do género: “O estudante de Coimbra é mais do que “apenas

mais uma bêbado”” (de facto tem alturas do ano em que são muitos). Por fim, a referência aos legalistas: “o direito do uso da Capa e Batina, não é de quem [é] a favor da Praxe (…) mas sim de todo e qualquer estudante da UC, seja contra ou a favor da praxe” (eu diria mais, de qualquer pessoa que tenha trezentos paus para largar numa coisa que veste quando já não tem mais roupa lavada). E logo a seguir: “Trajado, deve estudar no Porto”, e se for vestido estuda em Tomar?O estudaste de Coimbra é mais do que "apenas mais um bêbedo". No fim de tudo isto quem se queixa são os professores!? Já fizeram uns abaixo-assinados e os estudantes nada. Pode ser que alguém faça um lançamento de balões ou uma ‘pillow-fight’. Entretanto, ninguém goza com a praxe. Diz que está em suspenso.


22 | a cabra | 17 de abril de 2012 | Terça-feira

opinião 15 anos a esCutar Joana paiva**

a Linha sos-estudante pretende oferecer um serviço de escuta anónima e confidencial, isento de juízos de valor e de influências de carácter filosofico, religioso, político, moral ou ideológico”

Foi há 15 anos atrás, a 17 de Abril de 1997, que “entrou em linha” a SOS-Estudante, linha de apoio emocional e prevenção primária do suicídio da Associação Académica de Coimbra. Foi lançada pelas mãos de Paulo David Carvalho, na altura estudante de Arquitectura, depois de um grupo de estudantes ter ficado sensibilizado para as especiais fragilidades da comunidade estudantil e constatado que um elevado número de alunos universitários se sentiam desintegrados e isolados. Enquadrada nos princípios da organização Befrienders International (Samaritans desde 2003), a Linha SOS-Estudante pretendia então, tal como hoje, oferecer um serviço de escuta anónima e confidencial, isento de juízos de valor e de influências de carácter filosófico, religioso, político, moral ou ideológico, proporcionando a livre expressão de quem nos liga e servindo como espelho no qual o apelante se consiga ver e analisar com minúcia e racionalidade, em especial relativamente aos seus sentimentos. Cerca de 15 voluntários anónimos, estudantes do ensino superior de Coimbra, asseguram o atendimento telefó-

nico, prestando um serviço solidário. Qualquer estudante que esteja interessado em ser voluntário pode contactar-nos através do email estudante.sos@gmail.com. No primeiro ano de funcionamento recebemos cerca de 200 chamadas, o que em 2003/2004 representava o volume mensal de atendimentos, evidência da utilidade da criação de uma linha de apoio centrada especificamente nos problemas dos estudantes. No ano lectivo passado recebemos 1135, das quais foram atendidas 728 abordando temas relacionados, sobretudo, com a sexualidade, solidão e relacionamentos, numa média de 66 chamadas atendidas por mês. Somos, actualmente, procurados por vários grupos geracionais e culturais provenientes de todo o país. De acordo com os dados de 2010/2011, quem nos liga é maioritariamente do sexo masculino e, ainda que a faixa etária dos 18 aos 35 anos seja a mais representativa, a maioria dos apelantes encontra-se acima dos 36 anos de idade. Adoptámos a regra de sempre atender e apoiar todos os que a nós recorrem, independentemente da sua idade ou profissão.

Estamos disponíveis através dos números 808 200 204 (número azul, preço de chamada local) e 969 554 545, de segunda a sexta (excepto férias escolares) entre as 20h e a 1h. Além da linha de apoio, e sendo uma secção cultural da A.A.C., promovemos também a realização de eventos culturais onde se abordam temas para os quais estamos mais atentos, como a solidão, o luto, o suicídio ou a sexualidade. Após estes 15 anos que celebramos hoje, dia 17, às 18h30, nos Jardins da Associação Académica de Coimbra, com a tertúlia “15 anos a escutar”, o balanço que fazemos é claramente positivo: em primeiro lugar, realçar a manutenção ininterrupta de um serviço que foi criado em prol da comunidade estudantil, mas que hoje ganha um âmbito nacional e transversal; em segundo lugar, e prestando-lhes, assim, homenagem, destacar o papel fundamental dos nossos escutantes anónimos, esses “estudantes-ouvintes” que têm mantido esta linha em funcionamento nos últimos 15 anos, disponibilizando algumas horas do seu tempo para escutar os outros, sem qualquer

o seu próprio apoio social. Não nos podemos deixar enganar: a acção social não é uma caridade, mas sim um meio para combater as desigualdades sociais e económicas na nossa sociedade. Portanto, consideramos que o facto de um só estudante abandonar os seus estudos por falta de meios económicos já é desrespeitar a Constituição. Neste momento, os números são avassaladores, sendo já 6000 os estudantes nesta situação. E com os 46.860 indeferimentos na atribuição de bolsas (48 por cento do total), este número trágico poderá sofrer um aumento substancial. Não podemos deixar de referir que o central da questão é o desinvestimento, o desinteresse do governo, e a aplicação cada vez mais gravosa de medidas prejudiciais a um verdadeiro ensino superior público. É importante referir que a nossa atenção e os nossos esforços

deverão ser direccionados para a administração central e não para meros intermediários, como o são a reitoria e os SASUC. Estes, meramente tentam sobreviver com uns meros tostões. O nosso grande objectivo é a reivindicação de mais financiamento para o ensino superior, pois este investimento não mais significa do que um investimento no país e no seu futuro.

interesse que não seja o de ajudar e sem esperar qualquer reconhecimento. É a todos eles, aos ouvidos que estiveram à escuta e às vozes que já disseram “Linha SOS-Estudante, boa noite”, que endereçamos um especial bem-haja, neste dia do nosso 15º aniversário. **Presidente da Linha SOS-Estudante

Cartas ao Diretor MoviMento a aLternativa és tu! Antes de entrarmos nas férias da Páscoa, o movimento A Alternativa és Tu! foi vinculado ao conteúdo de uma carta aberta direccionada à reitoria e aos Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra (SASUC) no Diário das Beiras. Não tendo sido realizado qualquer tipo de contacto entre os dinamizadores da iniciativa e o movimento, é de repudiar o oportunismo com que o nome deste grupo de estudantes é usado. Lamentamos e repudiamos este tipo de atitudes, salientando que não é deste modo que se cria unidade no seio da comunidade estudantil. Não é à revelia dos estudantes que se finge unidade. A unidade constrói-se consciencializando e apoiando as lutas concretas e consequentes, afirmando cada luta pequena na faculdade, no curso, e na turma, como mais um passo para uma vitória de todos. Não sendo este tipo de actos o essencial da nossa actividade na UC,

o movimento A Alternativa és tu! esteve, está e estará sempre na defesa intransigente dos interesses dos estudantes. Sempre nos demonstrámos fielmente contra a existência do pagamento de propinas no Ensino Superior. Deste modo, consideramos inadmissível a mera consideração de um aumento do valor das propinas, usando como motivo para tal, uma falsa caridade que unicamente esconde o verdadeiro objectivo - o aumento exponencial do valor daquelas. É inconcebível e toca até o ridículo, o facto de se pensar em aumentar o valor das propinas sujeitando as famílias que já se vêem estranguladas com as medidas austeras deste governo. Mais, um sacrifício que poderá ser fatal para algumas delas, que poderão mesmo não conseguir garantir a continuação dos seus filhos no ensino superior. É um sacrífico ilógico pois, seriam as próprias famílias a pagar

não é à revelia dos estudantes que se finge unidade. a unidade constrói-se consciencializando e apoiando as lutas concretas”

A Cabra errou: Na edição 243, no artigo “Juventudes: política ou partidarismo?”, o nome da presidente da Juventude Popular de Coimbra vem como Luísa Santos, quando, de facto, é Lúcia Santos. À lesada, as nossas sinceras desculpas. Na mesma edição, no artigo "Atores que se estreiam por entre misticismo", o nome de uma das encenadoras e de uma das participantes estão errados. Catarina Santana e Joana Salgado são, respetivamente, os nomes corretos. Às lesadas, as nossas sinceras desculpas. Cartas ao diretor podem ser enviadas para

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opinião

Crise De 1969 CarLos Baptista **

São já decorridos quarenta e três anos sobre a Crise Académica de 1969. O hábito das pequenas pausas para recordar o passado surge amiúde, por solicitação ou por iniciativa própria, mais pela necessidade de fixar em memória factos que merecem referência do que por qualquer exercício de saudosismo. E a Crise Académica de 69 em Coimbra é um desses factos. Quer pela sua importância histórica no contexto das lutas estudantis, mesmo a nível nacional, quer pela forma como motivou politicamente os milhares de estudantes que nela participaram. Recordo desses tempos toda a sucessão de acções que se iniciam antes e se prolongam para além de 1969. A constituição da Comissão Pró-Eleições (CPE), o movimento do abaixo-assinado exigindo eleições para a Associação Académica e a grande manifestação que resultou das comemorações da “Tomada da Bastilha”, em que participaram estudantes das três academias (Coimbra, Lisboa e Porto). A constituição da lista de candidatura aos corpos gerentes da Associação Académica, patrocinada pelo Conselho de Repúblicas, a apresentação do seu Programa de candidatura – Por Uma Universidade Nova. A esmagadora vitória eleitoral alcançada. A implantação e o trabalho das Juntas de Delegados já no interior das Faculdades. A inauguração do edifício das Matemáticas – o 17 de Abril. As suspensões e a greve às aulas com ocupação das Faculdades forçando o Governo ao encerra-

mento da Universidade. A Assembleia de 28 de Maio que votou a greve a exames, greve cumprida por uma grande maioria, em toda a época e em todas as Faculdades. Em plenas férias, com os estudantes dispersos, o poder intensificou a repressão e incorporou compulsivamente 49 dirigentes estudantis na vida militar, facto que proporciona a primeira manifestação contra a guerra colonial. Em Maio de 1970 a repressão policial cai de novo sobre os estudantes que se manifestavam junto ao Teatro Académico… A Universidade de Coimbra não mais voltará a ser a mesma. O 25 de Abril de 1974 devolveu-nos um

rever o passado deve ser um factor mobilizador para os combates que o presente exige”

País livre, livre do fascismo e do colonialismo, onde os direitos fundamentais estarão garantidos. Mas onde perigam os direitos sociais do cidadão. Os sectores públicos, a educação, a saúde estão a ser o alvo privilegiado da avidez predadora do privado. Quotidianamente surgem novos ataques a esses direitos. Se no passado o futuro imediato dos estudantes era assombrado pela guerra colonial, aos estudantes de hoje espera-os a instabilidade profissional, o provável desemprego ou, e a isso os aconselham, a emigração. São outros os problemas que exigem novas lutas. Rever o passado deve ser um factor mobilizador para os combates que o presente exige. **Presidente da Junta de Delegados de Ciências e do CF/AAC em 1969

Secção de Jornalismo, Associação Académica de Coimbra, Rua Padre António Vieira, 3000 - Coimbra Tel. 239821554 Fax. 239821554 e-mail: acabra@gmail.com

eDitoriaL a reguLariDaDe

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Poucos eram os hábitos pré-crise dos estudantes nos quais o governo da coligação ainda não tinha mexido. Aqui, deve abrir-se um parênteses para dissecar melhor a expressão “pré-crise”. A geração que frequenta agora o ensino superior não conhece outra palavra que caracterize o panorama socioeconómico português. O discurso que começou a ser apregoado na última vez que a coligação formou governo, entre 2002 e 2005, não sofreu alterações relevantes. Aqui, o pré-crise deve ser entendido como o período antes do agudizar da crise portuguesa em 2008. Desde que Passo Coelho tomou posse no passado verão, o prato social e as residências subiram em função da inflação e o novo regulamento de atribuição de bolsas trouxe os resultados por demais conhecidos. Chega a vez das repúblicas, lugares históricos que gravitam à volta da Universidade de Coimbra. A nova lei do arrendamento urbano vai atingi-las e permite, entre outros aspetos, uma maior facilidade de despejo dos inquilinos e a fórmula de cálculo prevista vai possibilitar uma atualização titânica das rendas. Se é certo que existe uma proposta do Partido Socialista para que haja uma salvaguarda à lei, a sua introdução ser comprometida pelo facto de a cooperação estratégica entre governo e principal partido da oposição não ser tão estável como era há uns meses atrás (e ainda bem que assim é em certos aspetos).

o papel da aaC não é substituir o estado quando ele está ausente, é pressionar o estado para que este não falte aos seus compromissos no que aos estudantes diz respeito”

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A direção geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) apresentou, no passado fim-de-semana no Fórum AAC um projeto de ação social que, segundo o presidente da DG/AAC, Ricardo Morgado, “pretende dar resposta ao estudante carenciado”. A direção geral propõe-se assim a ocupar o lugar do Estado, na ajuda a estudantes com dificuldades financeiras. Um projeto como este é mau sinal para um país que faz do estado social uma bandeira e constitui um sinal que a instituição que representa os estudantes está atenta às suas necessidades mais básicas. Reconhecendo que o Estado falhou, falha e, na atual conjuntura económica, não será descabido assumir que provavelmente falhará, esta é uma medida positiva. Mas o papel da AAC não é substituir o Estado quando ele está ausente, é pressionar o Estado para que este não falte aos seus compromissos no que aos estudantes diz respeito. Se a AAC falha no seu papel primário (o que não é responsabilidade exclusiva da equipa que se encontra atualmente em funções), tem que correr atrás do prejuízo e recorrer a mecanismos como este. Apesar de ser consensual que fazer o governo ceder está longe de ser uma tarefa fácil, dá a impressão que mais podia estar a ser feito. Os estudantes não precisam de mais informação e de mais consciencialização quando o já próprio rendimento escolar é afetado pelos duros fatores socioeconómicos que os rodeiam.

Camilo Soldado

Diretor Camilo Soldado Editores-Executivos Inês Amado da Silva, João Gaspar Editoras-Executivas Multimédia Ana Francisco, Catarina Gomes Editores Carlota Rebelo (Fotografia), Inês Balreira (Ensino Superior), Ana Duarte (Cultura), Fernando Sá Pessoa (Desporto), Ana Morais (Cidade), Filipe Furtado (Ciência & Tecnologia), Liliana Cunha (País), Maria Garrido (Mundo) Secretária de Redação Mariana Santos Mendes Paginação Carlota Rebelo, Inês Amado da Silva, João Miranda Redação Andreia Gonçalves, Joana de Castro, João Valadão, Paulo Sérgio Santos Fotografia Ana Duarte, Carlota Rebelo, Catarina Gomes, Inês Balreira, Inês Amado da Silva, João Gaspar, Fernando Sá Pessoa, Liliana Cunha Ilustração Ana Beatriz Marques, Tiago Dinis Colaborou nesta edição Ana Sardo, Andreia Gonçalves, Daniela Proença, João Martins, João Valadão, Mariana Morais, Paulo Sérgio Santos, Stephanie Sayuri Komatsu Colaboradores Permanentes Carlos Braz, João Miranda, João Ribeiro, João Terêncio, João Valadão, José Afonso Biscaia, José Miguel Pereira, José Santiago, Lígia Anjos, Luís Luzio, Pedro Madureira, Pedro Nunes, Rafael Pinto, Rui Craveirinha Publicidade João Gaspar 239821554; 917011120 Impressão FIG – Indústrias Gráficas, S.A.; Telefone. 239 499 922, Fax: 239 499 981, e-mail: fig@fig.pt Tiragem 4000 exemplares Produção Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra Propriedade Associação Académica de Coimbra Agradecimentos Reitoria da Universidade de Coimbra, Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão, Jorge Vaz Nande, Carlos Baptista


Mais informação disponível em

Redação: Secção de Jornalismo Associação Académica de Coimbra Rua Padre António Vieira 3000 Coimbra Telf: 239 41 04 37

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e-mail: acabra@gmail.com Conceção e Produção: Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra

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Secção de Rugby

Nuno Crato

Com o aproximar do final da época desportiva, o desempenho é bom, mas ficam a faltar os títulos da equipa sénior que, embora tenha chegado longe, continua sem conseguir reconquistar o título nacional. É de salutar, porém, o trabalho que tem vindo a ser feito nas camadas jovens, onde o papel da estrutura diretiva tem sido importante. Em termos globais, contam-se, esta temporada, duas finais da Taça de Portugal, para além da chegada de todos os escalões à fase final do campeonato nacional. F.S.P.

A última semana tem sido pródiga em notícias sobre a reforma curricular nacional. Nuno Crato tem a pasta de mais um ministério que terá obrigatoriamente de lidar com a sufoco orçamental. Massificação das turmas, exclusão de professores na disciplina de E.V.T. e o regresso das provas finais no quarto ano do 1ºciclo, já antes utilizadas durante o Estado Novo, constituem algumas medidas. Contudo, há um princípio demagógico nesta reforma. Dividir os alunos por níveis põe em causa o fim do sistema público. Terá a flexibilização do ensino a ver com o seu aperfeiçoamento ou com a corda do dinheiro pendurada na sua raiz? L.C.

EUA

Uma vez mais os EUA legitimam a sua ação sob uma já habitual teoria do medo. O terrorismo (esse medo ‘made in america’) é a desculpa para a máquina de guerra continuar a atuar como garante da sua hegemonia. Um presidente em que muitos viam como sendo a rotura com as políticas de George Bush acaba por demonstrar que consegue espetar o medo ainda mais fundo nas já amedrontadas costelas dos norte-americanos. Poder ser-se preso para sempre, sem acusação nem julgamento. Eis uma lei que nem Bush tinha imaginado, ainda para mais vinda de um senhor que evoca tão sofregamente os direitos humanos. Cordeirinho? Só a pele. M.G.

Um rapaz, Um lUgar e o amor por andreia gonçalves

200 x 100 “Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando ininterruptamente, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade”, Sophia pensava através do que escrevia. Ele ouviaa. Ele perguntava-se porque não se falava de Amor nos jornais. Esqueciam-no ou ignoravam-no? Seria porventura tabu? Morava-lhe o desejo tão perto da lágrima. “O Amor?” lamentava o rapaz sabendo que era o propósito de todas as vidas conhecidas. Um bem tão essencial que muitos por ele pagavam. Naquele dia, encostado a fumar um cigarro, ao som das guitarradas, lembrava-se dos muitos que por ali passavam, poucos escutavam, ele sabia-o. Alimentava o sonho, de todos os cantos do mundo era aquele que mais amava. A brisa da manhã fazia rodopiar um pedaço de cotão no chão, era agora o sonho ou o Amor que comandava a sua vida?


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