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O ETERNAUTA, de Oesterheld, chega ao Brasil PÁGINA 41

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Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

FEVEREIRO 2012

ILUSTRAÇÃO MUNIR AHMED

Quase 40 anos depois, o fotógrafo que mostrou Vladimir Herzog sem vida no Doi-Codi revela a farsa então armada.

JUSTIÇA PARA

PERSEGUIÇÃO PERSEGUIÇÃO

HERZOG

DEPOIMENTO DEPOIMENTO

PÁGINA 29 E EDITORIAL NA PÁGINA 2

Querem calar o repórter que defende a Amazônia PÁGINA 3

Alberto Dines conta tudo sobre a sua saída do JB PÁGINA 12

HISTÓRIA HISTÓRIA

O melancólico fim do escritor Stefan Zweig PÁGINA 38

Nossa homenagem ao Jaguar oitentão! PÁGINA 32

VIDAS DEJEAN PELLEGRIN • LOUREIRO JÚNIOR • ORLANDO BATISTA • AL RIO


EDITORIAL

DESTAQUES

A VERDADE, AFINAL MAURÍCIO AZÊDO MAIS DO QUE UM EXTRAORDINÁRIO feito jornalístico em si, com a espetacular forma de furo característica dos melhores tempos da atividade profissional, a localização do fotógrafo Silvaldo Leung Vieira pelo jornalista da Folha de S. Paulo Lucas Ferraz, que o entrevistou de forma serena e sem preocupação de sensacionalismo, teve o condão de lançar luz sobre o assassinato nas dependências do Doi-Codi de São Paulo do jornalista Vladimir Herzog, um dos episódios mais cruéis da repressão da ditadura militar. DESDE AS PRIMEIRAS HORAS após esse crime nefando, em 25 de outubro de 1975, os setores democráticos do País identificaram o que ocorrera nas masmorras do II Exército. Vladimir, o festejado Vlado de numerosos amigos, fora vítima das torturas que sofrera e sob a violência destas encontrara a morte. Não era um suicida, como a repressão queria fazer crer, e sim mais uma vítima das brutalidades então infligidas aos presos políticos e a simples cidadãos comuns arrolados em inquéritos, como esse que resultou no sacrifício de Vlado. NÃO VACILARAM ENTÃO as autoridades do II Exército, comandado pelo General Ednardo Ávila Melo, em montar uma farsa que encobrisse o crime cometido, para que não crescesse a generalizada indignação da sociedade diante dos horrores que a ditadura militar impunha ao País. Tratou-se logo, com esse fim, de armar o cenário do suicídio inexistente, mediante a exposi-

ção do corpo inerme de Vlado com um cinto supostamente utilizado para o enforcamento e a exibição de sua imagem de forma que tornasse crível a versão da ditadura. Para isso foi convocado um jovem fotógrafo que pouco antes se iniciara no serviço público da Polícia de São Paulo. Silvaldo Leung Vieira, cuja identidade foi agora revelada, foi escalado para fazer a fotografia que apresentava a criminosa simulação concebida e promovida pelas autoridades militares. AGORA, QUASE QUATRO DÉCADAS depois desse bárbaro momento, Silvaldo Leung narra como se deu a tomada dessa fotografia, pormenor essencial de um quadro mais amplo da mistificação então promovida. Seu atual nível de consciência política e social, muito acima daquele que tinha nos verdes anos em que fez a fotografia, levaram-no a não apenas contar o episódio ao repórter Lucas Ferraz, mas também a manifestar sua disposição de falar à Comissão da Verdade, para o registro histórico que esta fará sobre esse e outros atos da vilania imposta ao País durante a ditadura militar.

03 PERSEGUIÇÃO - O injustiçado pela Justiça ○

06 LEMBRANÇAS - Histórias do repórter Zé Grande ○

07 REFLEXÕES - A memória e o esquecimento, por Rodolfo Konder ○

11 FOTOJORNALISMO - Uma imagem premiada da Presidente Dilma ○

12 DEPOIMENTO - Dines, o provocador ○

32 HOMENAGEM - Jaguar, você é bárbaro! ○

36 MEMÓRIA - O rádio brasileiro em sua mais fina sintonia ○

37 A RTE - Modigliani, o Lobo Branco, por Paulo Ramos Derengoski

O FURO DA FOLHA DEMONSTRA a pertinência do clamor pela abertura dos arquivos da ditadura e pelo levantamento dos crimes torpes que ela promoveu e ocultou, como os desaparecimentos, assassinatos e tortura de milhares de homens e mulheres que sonhavam com um Brasil sem iniqüidades como estas, que precisam ser expostas à luz do sol.

INSTITUTO VLADIMIR HERZOG

38 HISTÓRIA - Stefan Zweig, o escritor da esperança ○

41 L IVROS - A longa espera por El Eternauta ○

42 HISTÓRIA - Há 90 Anos, uma Semana ○

SEÇÕES

“Vladimir, o festejado Vlado de numerosos amigos, fora vítima das torturas que sofrera e sob a violência destas encontrara a morte. Não era um suicida, como a repressão queria fazer crer.”

0 A CONTECEU NA ABI 08 As idéias e as ações do ex- Governador Brizola 10 Cony relembra tempos de repressão ○

26 L IBERDADE DE I MPRENSA Sim, Tim Maia era assim ○

29 D IREITOS H UMANOS Enfim, a foto de Vlado revelada por inteiro ○

V IDAS 45 Loureiro Júnior, Orlando Batista ○

46 Dejean Pellegrin ○

47 Al Rio ○

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JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012


PERSEGUIÇÃO

O injustiçado pela Justiça POR PAULO CHICO

Exaurido pela maratona de processos judiciais de que é vítima, sentindo-se perseguido e previamente condenado pela Justiça do Pará, o jornalista Lúcio Flávio Pinto desiste de recorrer judicialmente no processo de danos morais movido por um poderoso grileiro. Numa indefensável decisão judicial, é condenada a liberdade de imprensa. Perdemos todos nós. JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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PERSEGUIÇÃO O INJUSTIÇADO PELA JUSTIÇA

É

quase senso comum a afirmação de que a Justiça brasileira não é das mais céleres. Contudo, para surpresa de alguns, é também possível constatar que, por vezes, ela sequer é justa. Esta premissa encaixa-se perfeitamente na batalha judicial experimentada nos últimos anos por um jornalista de Belém do Pará. Processado por um influente empresário que lhe cobra indenização por ‘danos morais’, Lúcio Flávio Pinto, esgotado pela maratona de 33 processos sofridos em quase duas décadas, decidiu não mais recorrer pela via legal. Descrente da Justiça, desistiu de fazer valer os seus direitos.

“Depois de muitos incidentes de percurso, este processo específico finalmente subiu para o Superior Tribunal de Justiça, em dezembro do ano passado. Mas o Presidente do STJ, Ari Pargendler, recusou-se a receber meu recurso. Alegou que o mesmo não estava formalmente preparado, com todas as peças exigidas. Nem apreciou o mérito. Tomou uma decisão drástica demais. Em oportunidades recentes, o mesmo Tribunal decidira considerar o recurso, pois as peças dos autos possibilitavam a plena apreciação da questão. Mas o Presidente negou seguimento liminarmente. Nesse momento decidi recusar-me a prosseguir na demanda porque o recurso cabível teria que ser novamente apreciado pela Justiça do Pará que, ao longo de todo o processo, demonstrou parcialidade contra mim. Decidi, então, denunciar a perseguição”, contou Lúcio Flávio ao Jornal da ABI. O empresário que processou o jornalista era Cecílio do Rego Almeida, dono de uma grande construtora e falecido em 23 de março de 2008, aos 78 anos. Em reportagem publicada em 1999 no Jornal Pessoal, veículo local produzido solitariamente por Lúcio Flávio, o empreiteiro foi chamado de ‘pirata fundiário’ por se apossar de imensa área de terras do Vale do Rio Xingu – que, segundo a própria Justiça Federal, pertence à União. Dentre os ‘incidentes de percurso’ citados pelo processado e ocorridos ao longo do trâmite da ação, um chama especial atenção pela estranheza jurídica. “Fui surpreendido quando saiu a sentença de primeiro grau, em 2006. O juiz não era o titular da vara. Ele assumiu o lugar por um único dia, substituindo a verdadeira responsável, que fora fazer um curso no Rio de Janeiro. Pediu um único processo, o meu. Constatou que não podia sentenciar, porque o processo nem numerado estava e só podia ser retomado quando um recurso que eu apresentara à instância superior fosse devolvido. Mesmo assim, o Juiz Amílcar Guimarães levou os autos, com 400 páginas, numa sexta-feira, e só os devolveu na terça-feira seguinte. Mas com data retroativa, pois a titular, Luzia Santos, já voltara à função. Ele nem consultou as provas dos autos para me condenar a indenizar o grileiro de terras. Confessou que tinha interesse pessoal na causa, embora dissesse que esse interesse era pela demonstração de uma tese. Na verdade, era para me condenar. Mesmo sendo ile4

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gal, a condenação foi mantida em todas as instâncias e em todos os movimentos pelo tribunal. Cheguei à conclusão de que eu podia dizer o que quisesse. Já estava previamente condenado no campo político”, diz Lúcio Flávio. Dos R$ 8 mil iniciais, aplicados retroativamente ao ano de publicação da reportagem, o valor atual estimado da indenização a ser paga por Lúcio Flávio Pinto é de cerca de R$ 20 mil, somados os juros de 6% ao ano e os encargos. “Não tenho grana para sustentar uma representação desse porte. Mas os recursos financeiros não constituem o maior problema. Há uma subscrição pública para reunirmos o dinheiro necessário ao pagamento da indenização quando a sentença for executada. Acredito que as doações permitirão cobrir o valor final. No dia da execução, convidarei as pessoas que deram seu dinheiro para irmos ao Tribunal fazer a entrega e denunciar esse fato insólito: o grileiro, além de se apropriar ilicitamente de um bem do patrimônio público, ainda tem que ser indenizado porque se considerou ofendido ao ser chamado de ‘pirata fundiário’ na reportagem”, diz Lúcio Flávio. A absoluta descrença de que a justiça pudesse efetivamente ser feita foi o que levou Lúcio Flávio a desistir de entrar com o recurso judicial – que poderia ter sido impetrado até 28 de fevereiro. “Eu podia até continuar no STJ para que a decisão isolada do Presidente fosse revista e o processo seguisse para ser apreciado por uma das turmas do Tribunal. Mesmo perdendo nessa instância, haveria à minha disposição a ação rescisória, que permite a reapreciação do processo. Mas ela teria que ser submetida ao Tribunal de Justiça do Pará, cujo objetivo de me condenar se tornou claro. Não só para favorecer o grileiro, mas também para punir um jornalista crítico, que nos últimos anos tem denunciado os erros do Judiciário estadual.”

NA REPERCUSSÃO, O APOIO DE COLEGAS DE PROFISSÃO

É exatamente a coerção ao trabalho da imprensa o dado mais relevante de todo o imbróglio judicial em que se transformou o caso. Como bem definiu Ricardo Kotscho em seu blog Balaio do Kotscho, em texto publicado no dia 14 de fevereiro, intitulado Jornalista ameaçado: somos todos Lúcio Flávio.

“Trabalhei durante muitos anos com um jornalista excepcional: Lúcio Flávio Pinto, um paraense de notável coragem, que dedicou toda sua vida pessoal e profissional a divulgar e defender a sua terra e a sua gente. É o maior especialista em Amazônia do jornalismo brasileiro. É, acima de tudo, um estudioso, um trabalhador incansável, que não se conforma com as injustiças e as bandalheiras de que são vítimas a floresta e o povo que nela habita. Por isso, foi perseguido a vida toda pelos que ameaçam a sobrevivência desta região transformando as riquezas naturais em fortunas privadas”, escreveu Ricardo, que prosseguiu. “Agora quem está ameaçado é o próprio Lúcio Flávio, na sua luta solitária contra dezenas de processos movidos pelos poderosos na Justiça para impedi-lo de continuar denunciando os assassinos da floresta. Onde estão nesta hora as poderosas entidades patronais da mídia, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e o Instituto Millenium, e seus arautos sempre tão pre-

“ELA TERIA QUE SER SUBMETIDA AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARÁ, CUJO OBJETIVO DE ME CONDENAR SE TORNOU CLARO. NÃO SÓ PARA FAVORECER O GRILEIRO, MAS TAMBÉM PARA PUNIR UM JORNALISTA CRÍTICO, QUE NOS ÚLTIMOS ANOS TEM DENUNCIADO OS ERROS DO JUDICIÁRIO ESTADUAL.” ocupados na defesa da liberdade de imprensa e de expressão? Lúcio está fora da grande imprensa há muitos anos, sobrevivendo com o seu Jornal Pessoal, um quinzenário que produz sozinho. Talvez por isso não mereça a atenção dos editorialistas dos jornalões e das entidades que costumam se manifestar nestas horas, como a Ordem dos Advogados do Brasil-OAB e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)”, criticou Kotscho. Outro profissional de imprensa que saiu em defesa do jornalista de Belém foi Raul Martins Bastos, que, citado por Kotscho em seu texto, foi chefe de ambos no Estado de S.Paulo. “Lúcio Flávio Pinto é um profissional excepcional e fonte obrigatória quando for ser escrita a verdadeira história da região amazônica dos anos 1970 para cá. Trabalhou, entre outros lugares, na Realidade, no Correio da Manhã e, por longos anos, no Estado de S.Paulo como principal repórter daquela área e coordenador-geral da cobertura dos correspondentes locais. Nesse período teve vida acadêmica e deu cursos sobre a Amazônia em universidades dos Estados Unidos e da Europa”, descreveu Raul Bastos. Aproveitando o perfil que lhe foi brevemente traçado por Raul Martins Bas-

tos, vale a pena falar um pouco mais de Lúcio, nascido em Santarém em 1949 e jornalista profissional desde 1966. Começou em A Província do Pará. Após passar por Redações de veículos de expressão nacional, deixou a grande imprensa em 1988, passando a dedicar-se ao seu Jornal Pessoal, espaço em que tem a liberdade para realizar o jornalismo combativo de que tanto gosta. Ao longo da carreira, Lúcio, que é formado em Sociologia, recebeu quatro Prêmios Esso e dois Fenaj, da Federação Nacional dos Jornalistas, instituição representativa que já considerou sua publicação a melhor do Norte e Nordeste do País. Ele é autor de 12 livros individuais publicados, todos sobre a Amazônia, os últimos dos quais são: Hidrelétricas na Amazônia; Internacionalização da Amazônia; CVRD: A Sigla do Enclave na Amazônia; Guerra Amazônica; Jornalismo na Linha de Tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o Prêmio Colombe d’Oro per La Pace. Em 2005 recebeu o Prêmio anual do CPJ (Comittee for Jornalists Protection), de Nova York, pelas denúncias feitas em seu jornal e pela defesa intransigente da floresta e dos direitos humanos. Curioso que o motivo de tamanho reconhecimento, inclusive internacional, tenha justamente colocado o jornalista no banco dos réus. “Lúcio sofre pressão sistemática dos poderosos da região por publicar matérias que denunciam indignidades e incomodam justamente os poderosos. Tentam calá-lo de várias maneiras, da intimidação à agressão, e ele tem resistido bravamente. Tentaram sufocá-lo com 33 processos. Um deles teve agora um desfecho desfavorável. Mas, qual o ‘crime’ de Lúcio Flávio Pinto? Publicou denúncias comprovadas de que estava ocorrendo uma enorme grilagem de terras na região. Com isso impediu que o empreiteiro Cecílio do Rego Almeida fizesse na Amazônia a maior grilagem da História do Brasil. Em represália, foi processado”, criticou Raul Martins Bastos. O próprio Lúcio Flávio falou ao Jornal da ABI sobre o significado de sua ‘condenação’ sumária nos tribunais. “Ela representa uma ameaça grave. Provei que o empresário armou uma fraude para se apoderar de uma área de terras públicas de nada menos do que 4,7 milhões de hectares. Ele não tinha nenhum documento válido de propriedade, que foi esticada enormemente a partir de meros direitos de posse restritos. O caso foi relatado no Livro Branco da Grilagem, do Governo Federal, em 2002. Todos os órgãos públicos atestaram o crime. O Ministério Público Federal denunciou os grileiros e no ano passado o Juiz da 9ª Vara da Justiça Federal em Belém, Hugo da Gama Filho, mandou cancelar os registros imobiliários feitos no cartório de Altamira, onde se consumou a posse indevida. A própria Justiça estadual interveio nesse cartório e demitiu seus funcionários por justa


causa. Mesmo assim, minha condenação foi mantida. Se provar que a verdade se tornou inútil, para que existe a imprensa? E a Justiça: qual é a sua função? Não há democracia de fato em tais circunstâncias.”

UM HISTÓRICO DE BATALHAS JUDICIAIS INTERMINÁVEIS

SILVIA IZQUIERDO/AP PHOTO

Lúcio Flávio já sofreu 33 processos, dos quais 14 ainda estão em curso. Já foi condenado quatro vezes em primeira instância, mas sempre recorreu. Por isso, ainda mantinha a condição de réu primário. O interessante é que 19 processos são de autoria dos donos do maior grupo de comunicação do Norte do País – O Liberal. “Apesar de ter jornais, televisões e emissoras de rádio, o Grupo nunca contestou o que escrevi sobre ele. Nem também exerceu, por uma única vez que fosse, o direito de resposta. Meu maior patrimônio é jamais ter sido desmentido nem acusado de sensacionalista. Provo tudo o que publico. E só publico o que é de relevante interesse público. Por isso esses fatos jamais são divulgados pela grande imprensa.” Exatamente pela ligação estreita entre os grandes grupos de comunicação e os poderosos empresários locais, as matérias de denúncias acabam configurando uma espécie de ‘reserva de mercado’ involuntária – e indesejada – do Jornal Pessoal. “Como não podem me enfrentar na arena pública, os herdeiros do Grupo Liberal apelaram para a Justiça, pressionando-a para que atenda seus interesses. O efeito dessa perseguição pela via judicial é que preciso dedicar a maior parte do meu tempo aos processos. Isso prejudica o meu trabalho jornalístico, que é o que eles querem. Se puderem mandar me prender, melhor. Até já me espancaram. Mas não me intimidaram. No entanto, sei que a condição de sobrevivência do meu jornal é precária. Como diria o Millôr Fernandes, para o Jornal Pessoal cada número é um número. O futuro não entra na pauta das minhas cogitações. Como na poesia de Drummond, vivo do tempo presente.” A decisão de Lúcio Flávio de não recorrer mais da condenação na ação movida por Cecílio do Rego Almeida provocou, além de manifestações de apoio de colegas como Ricardo Kotscho e Raul Martins Bastos, dois outros tipos distintos de reações. “Alguns me aconselharam a prosseguir na disputa na Justiça. Outros me julgaram precipitado ao recolher contribuições para pagar a indenização indevida aos herdeiros do empresário. Claro que a minha decisão, tomada no dia 7 de fevereiro, logo em seguida à sentença do Presidente do STJ, foi impulsiva. Foi um ato de indignação. Mas não foi súbita”, afirma Lúcio Flávio, que explica a razão fundamental de seu protesto. “Os processos contra mim começaram em setembro de 1992, nas esferas cível e penal. Neste percurso, sofri todas

as formas de injustiça, consumadas à revelia das normas legais, ou simplesmente violando-as. No início, acreditei na Justiça do Pará. Aos poucos fui percebendo que, independentemente dos magistrados e serventuários decentes, honestos e competentes, havia um esquema de bastidores para me condenar. A palavra ‘conspiração’ está gasta, mas não há outra para aplicar ao meu ‘caso’, em especial.” Enquanto isso, diversas páginas da internet, como o blog A Perereca da Vizinha, mantido pela jornalista Ana Célia Pinheiro, também de Belém do Pará, fazem questão de dar destaque a pedidos como esse: “Se você considera a liberdade de imprensa importante; se você não aceita que tentem lhe negar o direito à informação, ajude o jornalista Lúcio Flávio Pinto, condenado pela (in)justiça a indenizar um grileiro. Deposite qualquer quantia na conta poupança 22.108-2 da agência 3024-4 do Banco do Brasil, em nome de Pedro Carlos de Faria Pinto, irmão de Lúcio. Ajude quem luta para garantir o seu direito à informação.” Apoio semelhante foi prestado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Pará, por intermédio de sua Diretoria e da Comissão de Ética e Liberdade de Imprensa. “Queremos denunciar, de modo veemente, a gritante inversão de valores em que o autor de uma denúncia pública pela imprensa, devidamente comprovada, no caso o jornalista Lúcio Flávio Pinto, é condenado, e o denunciado, no caso a empresa CR Almeida, que não se defendeu perante a opinião pública, ainda é premiado com indenização determinada pelo Judiciário

paraense. O presente episódio é apenas um dos capítulos da longa batalha judicial travada por esse profissional do jornalismo”, dizia a nota, divulgada no dia 15 de fevereiro e assinada por Sheila Faro, Presidente do Sindicato. Em carta divulgada no dia 11 de fevereiro deste ano, o Editor do Jornal Pessoal explicou os pontos da perseguição a que foi submetido. E, mais uma vez, justificou sua postura. “Não quero extrapolar dos meus direitos. Decisão judicial cumpre-se ou dela se recorre. Se tantos erros formais foram realmente cometidos no preparo do agravo – o que me surpreendeu e causou perplexidade – paciência: vou pagar por um erro que impedirá o julgador de apreciar todo meu extenso e profundo direito, demonstrado à exaustão nas centenas de páginas dos autos do processo. Terei que ir atrás da solidariedade dos meus leitores e dos que me apóiam para enfrentar mais um momento difícil na minha carreira de jornalista, com quase meio século de duração. Espero contar com a atenção das pessoas que ainda não desistiram de se empenhar por um País decente.”

O CASO TEVE POUCA VISIBILIDADE NACIONAL

Cartas do Editor do Jornal Pessoal, com teor semelhante, não tiveram espaço nos grandes jornais, mas foram publicadas em blogs e sites alternativos, como o do Centro de Mídia Independente (CMI Brasil). No próprio Jornal da ABI, Lúcio Flávio e sua saga pela liberdade de imprensa foram alvo de reportagem, publicada na edição de abril de 2011. Na

ocasião, ele falou sobre o papel conceitual da sua publicação e dos percalços pelos quais já havia passado. “Se as questões amazônicas estivessem sendo tratadas corretamente pela grande imprensa, eu já teria encerrado a carreira do Jornal Pessoal. Fazê-lo há 24 anos acarreta um grande sacrifício pessoal. Mas não fazê-lo abre uma lacuna. Sinceramente, gostaria que isso não fosse verdade, mas, infelizmente, é. Por isso o meu jornal existe. Já recebi ameaças anônimas de morte e frui agredido fisicamente, em janeiro de 2005, por Ronaldo Maiorana, um dos donos do Grupo Liberal, num restaurante. Em seu ato, ele contou com a cobertura de dois seguranças particulares, ambos da ativa da Polícia Militar”, contou Lúcio a este mesmo jornalista. O silêncio de boa parte da mídia diante das constantes intimidações sofridas por Lúcio Flávio, quase sempre via tribunais, pode ser melhor compreendido quando analisada a trajetória de Cecílio do Rego Almeida – provavelmente o principal algoz do jornalista. Ele foi fundador e Presidente do Conselho de Administração do Grupo CR Almeida, que reúne mais de 30 empresas e atua nas áreas de construção pesada, concessão de rodovias e logística de transporte e química e explosivos. Entre suas principais obras podem ser citadas a pavimentação das rodovias Belém-Brasília e Rio-Santos, a construção da freeway Porto Alegre-Osório e da Usina Hidrelétrica de São Simão – localizada na divisa de Minas Gerais e Goiás e a segunda maior do Brasil. Mais recentemente, o grupo fez a duplicação da Rodovia dos Imigrantes, em São Paulo. Mesmo acuado financeiramente e tendo sua atuação profissional cerceada, Lúcio Flávio não se sente só. “Muito pelo contrário. Sinto toda a força do apoio das pessoas. O que falta é a reação institucional. A sociedade reage prontamente a absurdos como esses. Os poderes constituídos, não. Daí o fosso entre a sociedade civil e suas representações. Entre povo e poder ”, reconhece ele, que, corajoso como sempre, desfere um golpe final, quando questionado pela reportagem se chegou a pedir o auxílio a entidades como a OAB. Será que, com sua tradição de defesa da imprensa e da livre expressão, a respeitada instituição não se mobilizaria em seu favor? “O atual Presidente Nacional da OAB, Ophir Cavalcante, quando presidia a Seccional do Pará, teve um comportamento vexaminoso. Ao ser provocado pela imprensa para se manifestar sobre a agressão física de que fui vítima por parte de Ronaldo Maiorana, em razão dos artigos que escrevo no jornal, ele disse que o caso se tratava de uma rixa pessoal. Depois, quando o Juiz federal Antônio Campelo quis me censurar, Ophir, já no comando nacional da Ordem, alegou que não falaria sobre uma questão regional. Ele teve, agora, a mesma atitude em relação à minha condenação. É uma pessoa que não está à altura da Ordem dos Advogados do Brasil”, concluiu Lúcio Flávio Pinto. JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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LEMBRANÇAS

Histórias do repórter Zé Grande Personagem destacado da mitologia da cobertura policial no Rio de Janeiro, ele era um profissional competente, querido e alvo de brincadeiras dos colegas. P OR U BIRAJARA R OULIEN

José Côrtes dos Santos, carinhosamente chamado de Zé Grande, devido aos seus quase dois metros de altura, era uma pessoa maravilhosa, bem humorada, gentil, e reverenciava todos os companheiros sempre que chegava aos locais de apuração de um fato. Por ser assim, era alvo de brincadeiras dos colegas, principalmente os da Redação de O Dia, jornal em que iniciou a carreira de jornalista, em 1959, até se aposentar, após mais de 50 anos de serviço ativo. Levando tudo na esportiva, ao final de cada brincadeira ele reagia da seguinte forma, sempre sorrindo: – Vocês são uns canalhas... Bombeiro Honorário do Corpo de Bombeiros, Zé Grande, por determinação do comando da corporação, era informado em primeira mão sobre todas as saídas para atendimento à população. Numa noite de plantão, calmo, no jornal O Dia, na época funcionando num sobrado da Avenida Marechal Floriano, ouviu um funcionário alertar ao secretário de Redação Raul Azêdo que o prédio estava pegando fogo. Antes de deixar o prédio, às pressas, como todos estavam fazendo, Zé Grande se preocupou em telefonar e avisar aos bombeiros sobre o incêndio no jornal. – Companheiro, aqui é de O Dia... Reconhecendo a voz do repórter Zé Grande, o plantonista não o deixou terminar a frase. – Zé, não amola, tá tudo calmo, vai dormir. Por sua vez, Zé Grande interrompe o bombeiro e fala: –Tudo calmo é uma porra! O prédio do

Jornal da ABI ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha presidencia@abi.org.br / franciscoucha@gmail.com

jornal está pegando fogo! Já to sentindo o calor na minha bunda... E largou o telefone e saiu correndo. Seu aviso foi fundamental e o fogo debelado, impedindo verdadeira catástrofe. Alvo de muitas brincadeiras sadias, Zé Grande terminava seu plantão às duas horas da madrugada. Como eu e três repórteres – Ubirajara Moura, Jonas Tavares e Dílson Behrends – iniciavam jornada à zero hora, não havia necessidade de mobilizar o Zé Grande após esse horário, salvo em casos de extrema necessidade, como foi por ocasião da explosão na refinaria Reduc, em Campos Elísios, Duque de Caxias, quando O Dia já estava instalado na Rua Riachuelo. Zé, então, em sua mesa, tirava um cochilo até 1h45min da madrugada, momento em que era chamado para bater seu ponto, às duas horas da manhã. Num desses cochilos, com a conivência de toda a Redação, cerca de oito pessoas, Manoel Abrantes, chefe de Reportagem, preparou mais uma brincadeira com Zé Grande. Pediu para cerrar todas as persianas das janelas e que as luzes fossem apagadas. Pediu que todos procurassem conversar, gritar, chamar uns aos outros, enfim, criar um clima de Redação e espalhou próximo à mesa de Zé algumas cadeiras. De sua mesa ligou para o telefone na mesa de Zé Grande e gritava: – Zé ! Acorda! Atenda o telefone... Sonolento, Zé atende o telefone, com tudo escuro. Ouvindo vozes dos colegas, não enxergando nada, se levanta da mesa e tropeça nas cadeiras colocadas ali por Abrantes; apavorado, em desespero – ele tem uma reação alucinada: – Abrantes, Abrantes, fiquei cego... estou cego!

Nunca se riu tanto e tão alto como naquela madrugada. Já com as luzes acesas, Zé Grande, bem humorado, reagiu como sempre: – Vocês são uns canalhas... Também funcionário público, Zé Grande sempre preferiu morar perto dos terminais dos ônibus. Isso porque, trabalhando na repartição até às l8 horas, para se recuperar tinha como reforço os cochilos tirados entre meia-noite e duas horas da manhã na Redação, e também no trajeto de O Dia até sua casa. Com isso ele eliminava a possibilidade de, dormindo, passar do local onde deveria desembarcar. No ponto final era acordado pelo cobrador. Zé se recolhia assim que chegavam os repórteres das madrugadas, eu, Jonas e Dílson. E certo dia nova brincadeira foi preparada para ele. Na época as máquinas de escrever tinham a parte de cima móvel para colocação e substituição de fita e, também, para retroceder a fita, porque em muitas máquinas esse processo tinha que ser manual, no “dedômetro” mesmo.O Zé roncava e o Abrantes retirou a parte de cima da máquina e a colocou sobre o telefone. Voltou à sua mesa e de lá ligou para o ramal do Zé. Como ele demorasse a acordar, Abrantes, aos gritos, mandava-o atender o telefone. – Atende, Zé, pode ser uma informação boa. Uma manchete! Sem perceber, Zé Grande pega a tampa da máquina e a coloca no ouvido. Olhos fechados, parecendo ainda dormir, vira-se para o chefe e diz: – Calma, chefia, calma, tá tudo sob controle, já estou apurando... Foram as gargalhadas dos colegas na Redação que fizeram Zé perceber que fora alvo de mais uma chacota. Certo dia, eu, então repórter do Jornal do Brasil, telefonei para O Dia e informei que estava indo para a Baixada, pois um ladrão e estuprador havia sido preso, linchado e estava amarrado a um poste. Cheguei ao local a tempo de fotografá-lo amarrado. Zé Grande chegou quando o preso já estava dentro da caçapa do camburão. Avisei a ele que tinha a foto do preso no poste. Zé se dirigiu ao policial e pediu que o preso fosse retirado do carro, pois que-

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum.

Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva.

MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda

Diretor Responsável: Maurício Azêdo Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira

Conselheiros Efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho.

Impressão: Gráfica Lance! Rua Santa Maria, 47 - Cidade Nova - Rio de Janeiro, RJ

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,

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ria entrevistá-lo. Insistiu e conseguiu que o policial retirasse o ladrão da caçapa. Pegou o preso e levou-o até o poste. Amarrou-o, chamou seu fotógrafo e disse: – Rápido! Bonequeia ele logo! A seguir o desamarrou e o entregou ao policial. Sorrindo de orelha a orelha, virou-se para mim e parafraseou: – Obrigado, meu amigo Bira. Você é um canalha, mas é meu amigo. Vamos tomar uma... Um dos maiores repórteres de Polícia da cidade, Zé Grande era muito conhecido no Rio e no antigo Estado do Rio, principalmente nas áreas carentes. Por sua maneira de lidar com as pessoas, em cada local de apuração ele fazia amigos e admiradores. Gentil, atencioso, bem humorado, cativava aquelas pessoas que geralmente vão aos locais de crimes, de tragédias, enfim onde ocorrem fatos que necessitem da presença de polícia, bombeiro, médicos etc... Certo dia, em campanha política para reeleição a deputado federal, o empresário Chagas Freitas, dono de O Dia, se surpreendeu ao ser interpelado por um menino na Baixada Fluminense, que acompanhava a passeata da comitiva, querendo saber quem era ele. Atencioso como deve ser um candidato, Chagas respondeu ao menino que era Deputado e também dono do jornal O Dia, naquela época o matutino de maior penetração nas áreas populares. O menino, sem entender a resposta de Chagas Freitas, então, voltou a interpelá-lo com a seguinte pergunta: – Então o senhor trabalha no jornal do Zé Grande? Entre risos das pessoas da comitiva que assistiam à conversa, Chagas admitiu que sim, era empregado no jornal do Zé Grande. Zé Grande foi um apurador de invulgar talento, companheiro fidalgo que eu chamava de Voz do Além. É que ele , também relações-públicas do Cemitério do Caju, nos dias de Finados era o locutor do serviço de divulgação do cemitério. Apelidei a mesa do Zé de quitinete. Ali, entre outras coisas, ele guardava seu macacão de cetim vermelho e preto, cores da Sociedade Carnavalesca Clube Tenentes do Diabo, com sede na Praça Tiradentes, para onde ele ia no período de carnaval.

Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros Suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Lênin Novaes; Secretário, Wilson de Carvalho; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • FEVEREIRO DE NÃO 2012 ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. O 375 JORNAL DA ABI


REFLEXÕES

ELIANE SOARES

A memória e o esquecimento POR RODOLFO KONDER

O

que um rio leva para o mar? O Saint Lawrence, por exemplo, arrasta para o Atlântico Norte as memórias geladas dos conquistadores, as imagens de índios mutilados, o som áspero das batalhas, as sobras de algumas cidades e o óleo de muitos navios. O Amazonas, com seus afluentes brancos, negros e verdes, carrega um país inteiro de lendas, apreensões, alegrias, gestos de ousadia e momentos de solidão, até sua foz gigantesca, dominada pela Iha de Marajó. As sinuosidades do Tigre e do Eufrates, que já definiram os limites da antiga Babilônia, são os caminhos de conflitos e realizações, avanços e derrotas. Nas águas barrentas do Yang-tsé vão os restos da Revolução Cultural, os discursos de Mao e a nostalgia dos velhos mandarins. O Rio Moscou eterniza as cúpulas douradas do Kremlin. A liberdade se banha no Hudson, ao Sul de Manhattan. O Nilo pariu o Egito e os seus enigmas. O Sena beija Paris. O Tâmisa derrama no oceano as lembranças estilhaçadas de um império perdido. E o Reno, com suas walkírias? E o Rio da Prata, com as canções de Gardel e os poemas de Borges? E o Ganges? “Que rio é este, por onde corre o Ganges?”, pergunta Borges, no poema Heráclito. “Que rio é

este, de fonte inconcebível? Que rio é este, que arrasta espadas e mitologias? É inútil que durma. Ele corre no sonho, no deserto, num sótão. O rio me arrebata e sou este rio.” Há, de fato, um rio que antecede os rios. Ele corre dentro de nós. Somos este rio, sempre em transformação. Nossa vida é a correnteza que nos transporta em busca do destino, ou seja, na realização de algum sonho, até porque, antes do mergulho definitivo, precisamos sonhar. O sonho dá sentido ao nosso rio. Mas nossos sonhos, nossos segredos e nossas memórias também afundarão, um dia. E depois? Onde se depositam nossos sonhos, onde descansam? Talvez se abriguem nos escombros de velhos barcos naufragados, quando não se realizam. Talvez simplesmente se deitem no lodo das profundezas, ao lado das emoções mais fortes, das memórias mais nítidas, das lembranças que também desaparecem conosco. No caso dos sonhos plenamente realizados, talvez ganhem as asas de um pássaro e deixem para sempre o oceano da morte, povoado de mistérios e movido por desígnios que jamais conheceremos, mas que prevalecem sobre as leis da Física e estão além dos limitados horizontes humanos.

Há outra possibilidade. Talvez Deus seja – como sugere o escritor Gilles Lapouge – o grande oceano do esquecimento, para onde fluem nossas lembranças, nossos sonhos, nossas realizações, as imagens que guardávamos, os odores, os sons, os gostos. Também para lá escorre tudo o que soubemos e perdemos. Os mistérios dos maias, dos teotihuacanos, de todos os povos que mergulharam em suas águas turvas, das cidades soterradas, dos centros abandonados, de Sodoma e Gomorra, da Mesopotâmia, do Egito dos faraós e da Esfinge; e os nossos princípios morais, a nossa ética, as amizades, os amores, a devoção dos cães, os conhecimentos dos vencidos, os livros queimados, religiões que há muito deixaram de consolar, dúvidas jamais esclarecidas – tudo isso segue nas corredeiras do nosso rio, na direção do desconhecimento que se mistura com a memória, da morte que se confunde com a vida. Deus, afinal, talvez seja mais nossa inexistência e nossa ignorância do que nossos pálidos feitos e nossa enlouquecida aventura. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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ACONTECEU NA ABI

As idéias e as ações do ex-Governador Brizola Livro comemorativo dos seus 90 anos reúne os seus pensamentos conclusivos. DIVULGAÇÃO

P OR C LÁUDIA S OUZA

Centenas de pessoas participaram na ABI do ato de lançamento do livro Leonel Brizola – A Legalidade e Outros Pensamentos Conclusivos, em comemoração aos 90 anos de nascimento do ex-Governador, aplaudido como um dos maiores nomes da História do Brasil. O evento, no dia 23 de janeiro, reuniu parentes, amigos, colaboradores e admiradores do líder trabalhista. Organizado pelo jornalista Osvaldo Maneschy, com prefácio do jornalista Paulo Henrique Amorim, o livro reúne o pensamento político e social de Leonel Brizola. Os textos foram transcritos na íntegra a partir de entrevistas, palestras e discursos dele entre 1991 e 2004, totalizando mais de 300 horas de gravação. A obra é dividida em duas partes, uma é dedicada ao movimento Cadeia da Legalidade que contém um cd com uma narração de Brizola sobre o episódio. A outra parte apresenta a reedição do livro Com a Palavra, Leonel Brizola, originalmente publicado em 1994, no qual Brizola fala sobre política, economia, sociedade, mídia, violência e miséria, entre outros temas. Presente ao lançamento, Maria Prestes, viúva do líder revolucionário Luiz Carlos Prestes, destacou o papel de Brizola na construção da democracia brasileira: “Este livro representa um resgate histórico do Brasil em suas diversas fases, desde a ditadura até a anistia, pela qual Brizola tanto lutou. Sua figura emblemática precisa ser divulgada para que o povo conheça a luta pela democracia. Se os projetos dele, como os Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), tivessem tido continuidade, nós não estaríamos vivenciando este atual quadro deplorável. Eu e o Velho tivemos uma convivência muito próxima com Brizola, que constantemente visitava a nossa casa na Gávea para debater as importantes questões nacionais”. O Presidente da ABI, Maurício Azêdo, aplaudiu o resgate da memória do líder trabalhista: “Este livro permite às novas gerações entrar em contato com a efervescência da vida pública deste homem extraordinário, que ao lado de Getúlio Vargas e de Luiz Carlos Prestes é uma das três maiores figuras do Brasil no século 21. Através deste livro é possível reavivar e mostrar a atualidade de suas idéias.” Autor da obra 50 anos Desta Noite, lançada em 2011, dentro das comemorações pelo cinqüentenário da Campanha da Legalidade, o médico Eduardo de Azeredo Costa, Secretário de Saúde do Governo Brizola entre 1983 e 1986 e Secretário de Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia entre os anos 1991 e 1994, destacou a Ca8

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Fala o autor: “Ele foi um homem reto e um governante íntegro” Em entrevista à jornalista Cláudia Souza, Oswaldo Maneschy, organizador do livro, e Luiz Erthal, editor da obra, detalharam aspectos importantes sobre a trajetória de Brizola e os projetos de preservação e resgate da memória do líder trabalhista. As declarações de Maneschy são reproduzidas a seguir. As de Erthal podem ser acessadas no site da ABI: www.abi.org.br (goo.gl/SIBKm). Jornal da ABI - Como surgiu a idéia de escrever sobre Brizola?

Mais de 300 horas de gravação de pronunciamentos e entrevistas de Brizola foram utilizadas pelo jornalista Oswaldo Maneschy para montar o texto básico do livro.

deia da Legalidade como um dos episódios mais importantes da História do País: “Em 50 anos Desta Noite reuni as memórias do meu tempo de estudante de Medicina em Porto Alegre. Entrei na universidade em 1961, justamente quando a campanha pela legalidade ganhava os estudantes nas ruas, sob a liderança do então Governador Leonel Brizola. Estou escrevendo um segundo livro sobre o tema e tenho um projeto para o terceiro, que vai abordar o período entre 1979, quando Brizola retornou ao Brasil, até 1982. Precisamos registrar a História do Trabalhismo no Brasil com Getúlio Vargas e depois Brizola.” “Esta lembrança enriquece minha alma”

Subprocurador-Geral da República aposentado e ex-Procurador-Chefe da Procuradoria Regional da República do Estado do Rio de Janeiro, o advogado e professor de Direito Carlos Roberto Siqueira Castro ocupou a Chefia da Casa Civil no Governo Brizola no Rio de Janeiro. Para ele, a in-

fluência de Brizola deve ser estendida às novas gerações: “Todo livro sobre a vida e a obra de Brizola é altamente oportuno. Os jovens poderão conhecer a coragem, o espírito público e o patriotismo que tanto o caracterizaram. Tive a honra de ser seu colaborador e amigo durante muitos anos. Esta lembrança enriquece a minha alma, especialmente por ter tido a oportunidade de testemunhar seus grandes momentos na vida pública.” Carlos Alberto Oliveira dos Santos, Caó, jornalista, deputado constituinte, membro da ABI, ocupou a Secretaria de Trabalho e Habitação nos dois mandatos de Brizola no Governo do Rio. Ele assinalou o perfil conciliatório de Brizola nos momentos de decisão: “Durante os oito anos do Governo Brizola, ao contrário de que se percebia de sua personalidade, ele costumava ouvir muito e voltava atrás em suas decisões, quando convencido de que eram inadequadas. Ele analisava e acatava nossas observações. Ele era um homem de compromisso e de ponto de vista sempre aberto às conversas.”

Osvaldo Maneschy – Brizola foi um político singular na vida brasileira. Trabalhista histórico, fundador e dirigente do PTB de Getúlio Vargas, cunhado do Presidente João Goulart, quando governador do Rio Grande do Sul, ainda na década de 1950, Leonel Brizola teve a coragem de expropriar duas empresas multinacionais que atravancavam o desenvolvimento dos gaúchos. Uma empresa de telecomunicações norte-americana subsidiária da poderosa ITT, a mesma que derrubaria Salvador Allende do Governo do Chile em 1973, e outra do setor de produção de energia. Dois setores básicos: energia e telecomunicações. Isto lhe valeu o ódio permanente dos defensores dos interesses dos Estados Unidos no Brasil. Mas ele não ficou nisto. Em 1961 quando os militares golpistas que tentaram derrubar Vargas em 1954, obrigando-o a dar um tiro no coração para defender sua honra; que tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek em 1955; esses mesmos militares tentaram impedir a posse de João Goulart após a renúncia do Presidente Jânio Quadros. Mas fracassaram porque Brizola, com a sua Rede da Legalidade mobilizou a opinião pública nacional contra os golpistas, dividiu o Exército e os derrotou politicamente. Por tudo isso Brizola teve que pagar um preço altíssimo: tornou-se o inimigo número um da elite e dos meios de comunicação controlados por ela. O livro surgiu como uma reação ao cerco midiático ao qual Brizola foi submetido depois que passou 15 anos no exílio e recomeçou a sua vida política no Brasil.


AGÊNCIA BRASIL

Uma tentativa de furar o cerco da mídia mostrando aos brasileiros o verdadeiro Leonel Brizola. O livro foi lançado em 1994, quando Brizola disputou pela segunda e última vez a presidência da República, mostrar o Brizola que a grande mídia escondia e atacava. Isso nos motivou a escrever o livro e neste seu relançamento ampliamos para incluir nele o episódio da Legalidade. Brizola falando sobre o que aconteceu em 1961. Jornal da ABI - Como foi a sua convivência com Brizola?

Osvaldo Maneschy – Fui Subsecretário de Imprensa no segundo Governo de Brizola no Rio de Janeiro, trabalhando com Fernando Brito, Secretário de Imprensa do Palácio Guanabara. E no primeiro Governo de Brizola, a partir de sua eleição de 1982, trabalhei na Secretaria de Justiça e também na equipe do Diário Oficial Notícias, criado naquela ocasião. Em 2000, quando Brizola disputou a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, fui o seu assessor de imprensa. Tenho muito orgulho de ter trabalhado com Brizola, aprendi muito com ele, que tinha orgulho de ser sócio da ABI e da Associação dos Jornalistas do Rio Grande do Sul.

Jornal da ABI - Em que aspecto a trajetória de Brizola pode contribuir para as novas gerações de políticos e de jornalistas?

Jornal da ABI - Qual foi o critério utilizado para definir o tema do livro?

Osvaldo Maneschy – Nós gravamos mais de 300 horas de fitas do Brizola. Falando para jornalistas, em palestras, em conferências, em reuniões. O livro é todo na primeira pessoa – nós não falamos, quem fala através dos trechos que selecionamos para formatar o livro é Leonel Brizola. As pessoas gostam muito exatamente por isto. A nossa interferência, como organizadores do livro, foi colher a palavra de Brizola e colocá-la no livro. Brizola tinha uma característica muito pessoal: ele raciocinava falando. Sua lógica e raciocínio encantaram milhares e milhares de pessoas através do rádio e depois, da televisão. Brizola sabia, como poucos, prender a atenção das pessoas. Não tenho dúvida de que os debates eleitorais nos meios de comunicação foram praticamente banidos porque a elite, e os militares recém-saídos do poder, sabiam como Brizola era persuasivo. Esses debates foram fundamentais na campanha eleitoral de 1982, quando ele se elegeu Governador do Rio de Janeiro, sem material de campanha, sem dinheiro, sem nada, e com um PDT recém-fundado e praticamente cartorial. Um homem praticamente imbatível na discussão de idéias. No livro abordamos vários temas, através das palavras de Brizola, procurando mostrar o que ele pensava das coisas. Além do texto transcrito, achamos importante acrescentar no livro um cd de quase uma hora de duração em que o próprio Brizola relata o episódio da Legalidade. Ao final de cada um dos trechos gravados e incluídos no livro, há a data em que a fala aconteceu e temos todas as gravações que foram transcritas no livro.

Jornal da ABI - Quando você começou a escrever o livro?

Osvaldo Maneschy – A primeira parte do livro, uma reedição de Com a Palavra,

sileira se reúnem e decidem atacar juntos determinado governo ou político – é um efeito arrasador, praticamente incontrolável. Brizola, na minha opinião de jornalista, foi vítima desse sistema. E como nenhum outro político brasileiro, teve coragem de enfrentar a grande mídia recorrendo, inclusive, aos famosos tijolões – artigos que o PDT mandava publicar, como anúncio, nos quais ele expressava a sua opinião – totalmente isolada e só – sobre os grandes assuntos nacionais. Ryff dizia que conhecia a dimensão de um homem pelo tamanho de seus adversários. Brizola nunca temeu os adversários – por isso era o desafeto número um do todo-poderoso jornalista Roberto Marinho, dono e controlador das Organizações Globo, que não hesitaram, em determinada ocasião, botar a Neuzinha Brizola visivelmente drogada no ar no Jornal Nacional, só para atacar não só o Governador que era seu desafeto, como também o pai Leonel Brizola. Há coisas que não dão para esquecer. Esta é uma delas.

Leonel Brizola, foi escrito em 1993. Já a segunda parte, onde Brizola relata os acontecimentos relacionados ao movimento da Legalidade, foi escrita ano passado, quando se completaram 50 anos da rebelião da Legalidade que garantiu a posse na Presidência da República do Vice-Presidente Constitucional João Marques Belchior Goulart que estava na China, em visita oficial àquele país, e teve sua posse vetada pelos três ministros militares, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica que manietaram o Congresso Nacional e começaram a dar ordens a partir de Brasília, aboletados no poder. Jornal da ABI - Outros jornalistas participaram do trabalho?

Osvaldo Maneschy – Na primeira edição, o único jornalista fui eu. Paulo Becker e Madalena Sapucaia, que me ajudaram na tarefa, não são jornalistas. Becker é médico e psicanalista, Madalena é psicóloga e psicanalista. Nós três trabalhamos em cima das gravações selecionando trechos das falas de Brizola. Um trabalho que Becker uma vez descreveu como parecido com o do garimpeiro que seleciona pepitas na sua batéia. Fizemos várias reuniões, discutimos o que iríamos incluir no livro. Um trabalho que nos tomou quase um ano. Uma coisa interessante: Brizola só conheceu esse livro impresso. Nós não perguntamos a ele se poderíamos fazer ou não. Fizemos. E o livro chegou às mãos dele, impresso, através de Neiva Moreira. Ele gostou do livro, pretendia republicá-lo e usá-lo na campanha presidencial de 1994, mas a idéia não vingou, a campanha não teve verba, foi tudo muito difícil para ele naquela jornada.

Jornal da ABI - Entre os fatos narrados por Brizola no livro, qual teria mais destaque?

Osvaldo Maneschy – Acho tudo importante. Para nós, é um pouco do pensamento político de Brizola que expressamos nesse livro. Sobre o episódio da Legalidade, com certeza, há fatos narrados que só as pessoas que realmente viveram aquilo com ele têm conhecimento. Brizola não gostava de falar sobre o desfecho da crise de 1961, a posse de João Goulart e a derrota dos militares golpistas, porque ele queria que Jango fechasse o Congresso em 1961, prendesse os golpistas e convocasse uma Assembléia Nacional Constituinte. Jango conciliou naquele episódio, não quis o confronto armado e os militares golpistas de 1961 – que eram os mesmos que tentaram derrubar Getúlio e impedir a posse de Juscelino – conseguiram, em 1964, finalmente chegar no poder. Brizola ficou mais de 10 anos rompido com Jango e só poucos anos antes da morte de Jango, no exílio, fizeram as pazes.

Jornal da ABI - Crítico feroz da grande imprensa, que reflexões importantes Brizola trouxe para o jornalismo brasileiro?

Osvaldo Maneschy – Brizola foi vítima da grande imprensa brasileira. Ele tinha uma visão absolutamente singular da mídia – que ele chamava de partido único. Aliás, Raul Ryff, grande Secretário de Imprensa do Presidente João Goulart, grande amigo com quem convivi no início de minha vida profissional no Jornal do Brasil, costumava dizer – com a experiência de ter vivido com Jango, Ministro do Trabalho do Governo Vargas e, depois, no próprio Governo João Goulart – que quando as famílias que controlam a mídia bra-

Osvaldo Maneschy – A coragem de dizer a verdade. Dizer o que realmente pensa, sem subterfúgios ou jeitinhos. Brizola foi um homem absolutamente reto e íntegro, como governante. A Educação foi sua bandeira de vida, ele sempre acreditou no Brasil e, além de raciocinar falando, como político foi um grande e imenso professor de Brasil. Ele sempre lutou – como Vargas – por um Brasil autônomo, independente, voltado para os seus filhos. Priorizando as crianças, a educação e o desenvolvimento. Numa luta constante contra a pobreza, o analfabetismo e a subserviência do Brasil a quem quer que fosse. Aos Estados Unidos, à União Soviética, a quem quer que fosse. Brizola sempre acreditou no Brasil e no seu destino de grande potência.

Jornal da ABI - Carisma, força, determinação, coragem são características da personalidade de Brizola. Como você explicaria o fascínio e o respeito que ele exercia sobre as pessoas?

Osvaldo Maneschy – Até pelo seu exemplo pessoal. Acusavam-no de caudilho, mas ele sempre ouvia as pessoas antes de tomar suas decisões. Eu me aproximei muito dele na fase final de sua vida por conta do trabalho que desenvolvi e desenvolvo junto aos professores, doutores e especialistas em informática que participam do Fórum do Voto Eletrônico (www. votoseguro.org), uma página de internet que está no ar desde 1998, criada pelo engenheiro Amilcar Brunazo Filho, que questiona a segurança das urnas eletrônicas que usamos em nossas eleições. São máquinas inauditáveis que não produzem contraprova em papel, que não garantem um princípio básico para qualquer democracia – a verdade eleitoral. Só Brizola teve coragem de investir contra essas máquinas que ele comparava à argola que se coloca no nariz do touro, para levá-lo para onde quiser. O touro que ele se referia, é claro, era o Brasil. Brizola sempre foi um político e um homem comprometido com o Brasil. E que tinha o dom da palavra por ser extremamente didático em seu raciocínio.

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ACONTECEU NA ABI

Cony relembra tempos de repressão Entre as evocações, a do processo contra ele movido em 1965 pelo então ditador General Artur da Costa e Silva. que na época era Presidente da ABI. Polidamente, como era de seu temperamento, Adonias recusou o encargo, ponderando que nos dias seguintes iria receber a Medalha do Pacificador, honraria que o Exército concede anualmente a personalidades, e soaria como uma descortesia depor em favor de um adversário do regime. Cony acabou ganhando com essa desistência: depuseram em seu favor o jornalista e escritor Austregésilo de Athayde, Presidente da Academia Brasileira de Letras, o escritor Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) e o jornalista e poeta Carlos Drummond de Andrade. Lembrou ainda Cony que nos anos 1970 participou na ABI de um momento traumático da vida nacional, a morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 25 de outubro de 1975 nas masmorras do Doi-Codi do II Exército (Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações da Defesa Interna), e das manifestações que se seguiram, principalmente em São Paulo e no Rio. “Sob a liderança de Prudente de Morais, neto, Presidente da ABI, e de Barbosa Lima Sobrinho, Presidente do então chamado Conselho Administrativo, tivemos no grande auditório do nono andar um comovente ato em memória de Herzog. Foi uma manifestação silenciosa de uns 15 minutos que refletia a emoção que vivíamos”, contou Cony. Antes de visitar a ABI, Cony foi homenageado pela Associação dos Antigos Funcionários do Banco do Brasil, que comemorava seus 35 anos e lançou uma agenda cuja capa foi dedicada ao escritor. No encontro na ABI, Cony autografou exemplares da agenda e do seu livro Eu, Aos Pedaços com carinhosas dedicatórias para Arcírio e o Presidente da ABI.

Fotógrafos defendem melhorias nas condições de trabalho Entre os temas em discussão, a relação com as novas tecnologias. Um grupo de repórteresfotográficos debateu na ABI em 24 de janeiro medidas para assegurar melhorias nas condições de trabalho. O encontro reuniu profissionais de O Globo, O Estado de S. Paulo, O Dia e agências fotográficas. O coordenador de fotografia do Uol, Júlio Cesar Guimarães, disse que o principal objetivo do encontro seria discutir propostas que serão encaminhadas à Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Rio de Janeiro-Arfoc, para que a entidade fique atualizada com as demandas atuais do exercício do fotojornalismo: “Vamos discutir a relação dos

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repórteres-fotográficos com a tecnologia, novas mídias, internet banda larga, entre outras questões importantes para que os fotógrafos possam se qualificar e melhorar a sua capacidade de trabalhar.” Fernando Soutello, da agência Agif, disse que muitas vezes a Arfoc fica um pouco distante da realidade que os fotógrafos enfrentam no dia-a-dia. Por isso, o debate é uma boa oportunidade para que os profissionais estejam mais próximos da associação: “Ninguém melhor do que nós, que estamos atuando diariamente com a fotografia, para ajudar a identificar os pontos positivos e

negativos relativos à cobertura fotográfica” Wagner Méier, repórterfotográfico da agência Foto Arena, disse achar positivo que os próprios profissionais de fotojornalismo se interessem em debater sobre as suas necessidades: “Acho muito bom esse encontro, porque demonstra o interesse de quem se dedica ao fotojornalismo e se une em prol de melhorias nas coberturas diárias de grandes eventos. Estamos reunidos aqui para discutir a melhor forma de organização da categoria dos repórteres-fotográficos.”

GUTO COSTA-AGÊNCIA O GLOBO

A convite do associado Arcírio Gouvêa Neto, membro do Conselho Deliberativo da Casa e que foi seu companheiro de trabalho na Bloch Editores, nos anos 1970, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony visitou no dia 9 de fevereiro a ABI, onde relembrou as perseguições de que foi vítima durante a ditadura militar – além de sofrer seis prisões, foi processado em 1965 pelo então ditador, General Artur da Costa e Silva, sob a acusação de crimes punidos pela Lei de Segurança Nacional. Cony, então com 38 anos, era editorialista e cronista do Correio da Manhã, em cujo segundo caderno escrevia uma crônica diária sob o título genérico A arte de falar mal. Foi um dos seus textos nessa seção que levou o General-Presidente a processá-lo. Defendido por uma equipe de grandes advogados – Nélson Hungria, Virgílio Donnici, Clemente Hungria e Jorge Wanderley –, Cony conseguiu uma grande vitória no Supremo Tribunal Federal, o qual acatou a tese de Nélson Hungria de que os crimes que ele tivesse cometido deveriam ser enquadrados na Lei de Imprensa, e não na Lei de Segurança Nacional. Julgado pela Justiça comum, e não a militar, como seria se prevalecesse o enquadramento inicial, Cony foi condenado, mas, como disse em crônica no volume Eu, Aos Pedaços, lançado em 2010, recebeu a sentença como um problema pessoal. Ao narrar o episódio, lembrou Cony que inicialmente teve dificuldades em mobilizar testemunhas para deporem em seu favor, dado o clima sufocante da época: seu antagonista no processo era nada menos que o Presidente da República e chefe da chamada linha-dura, os radicais do regime militar. Seu primeiro convidado foi um companheiro de letras, o escritor Adonias Filho,

Processado pelo ditador da época, General Costa e Silva, Cony contou em seu favor com os depoimentos de Austregésilo de Athayde, de Alceu Amoroso Lima e do poeta Drummond.

Solidariedade às vítimas dos desabamentos Atendendo a apelo do associado Octavio Blatter, sócio remido da Casa, a ABI cedeu espaços no Edifício Herbert Moses, sua sede, para a realização das primeiras reuniões da Associação das Vítimas do Desabamento do Edifício Liberdade, criada por proprietários e locatários de andares e salas nos edifícios do Centro do Rio que desabaram no fim de janeiro passado. Blatter, de 83 anos e associado da ABI desde 1948, mantinha há mais de 20 anos no Edifício Liberdade seu escritório de advocacia, à qual passou a se dedicar após afastar-se do jornalismo como profissional. Em solidariedade com as vítimas dos desabamentos, que provocaram 17 mortes e o desaparecimento de cerca de duas dezenas de pessoas, cujos corpos não puderam ser retirados dos escombros, a ABI enviou mensagem ao Prefeito do Rio, Eduardo Paes, solicitando a apuração das causas do trágico acidente e a adoção de medidas de caráter permanente que evitem a repetição de ocorrências do gênero.


FOTOJORNALISMO

A foto de Wilton Júnior que causou polêmica depois de publicada no Estadão e ganhou o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha.

Uma imagem premiada da Presidente Dilma O fotógrafo brasileiro Wilton Júnior recebe prêmio internacional por foto de Dilma Rousseff numa cerimônia que nada tinha de especial. P OR S ERGIO L UCCAS

Habilidade para captar um instante de perfeita sincronização cujo resultado produz surpresa. Este foi o critério do júri da 29ª edição do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha, ao avaliar e premiar o fotógrafo brasileiro Wilton de Souza Júnior, repórter fotográfico do jornal O Estado de S.Paulo, Sucursal Rio de Janeiro, na categoria Fotografia. O resultado foi anunciado no dia 12 de janeiro pela Agência Efe e pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional (Aecid), que concedem anualmente o prêmio, entregue pessoalmente pelo monarca espanhol Juan Carlos, desde 1983, ano da edição inaugural. Ao todo, o Prêmio Ibero-americano de Jornalismo Rei da Espanha reuniu 176 trabalhos nas categorias Imprensa (70), Televisão (40), Rádio (28), Fotografia (18) e Jornalismo Digital (20). O Brasil mais uma vez foi o país que apresentou o maior número de trabalhos inscritos, com 52 candidatos, a maior parte na categoria Imprensa.

A foto vencedora foi feita durante cerimônia de entrega de espadins aos 441 cadetes da turma Bicentenário do Brigadeiro Sampaio, realizada na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, na Região Sul do Estado do Rio. Nela o fotógrafo combinou a imagem de Dilma inclinada para a frente com o registro, em segundo plano, de um militar empunhando uma espada. Como resultado final, a Presidente parece ser transpassada pela arma. Wilton Júnior recebeu 6 mil euros como prêmio pelo seu trabalho. Ele tem 37 anos de idade, 20 de profissão e desde 2001 é repórter-fotográfico de O Estado de S.Paulo na Sucursal do Rio de Janeiro. Participou de importantes coberturas como a captura dos assassinos do jornalista Tim Lopes, em setembro de 2002; a passagem da tocha olímpica pelo Rio, em abril de 2004; a visita do Papa Bento XVI à cidade de São Paulo, em maio de 2007; a Copa América na Venezuela, entre junho e julho de 2007, e a Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Também colaborou com os jornais Folha Dirigida, Jornal dos Sports e O

Dia. Em 2003, foi um dos finalistas do Prêmio Ayrton Senna e em 2010 recebeu o Prêmio Estado de Fotografia. Um sonho realizado “Esse prêmio internacional era um sonho desde o início, quando comecei na profissão inspirado pelo meu pai, Wilton Souza, que foi repórter fotográfico de O Dia e meu grande mestre. É muito gratificante ter seu trabalho reconhecido, ver que as pessoas entenderam e valorizaram sua proposta”, diz Wilton Júnior. A foto premiada foi publicada na edição de 21 de agosto de 2011 de O Estado de S. Paulo e no dia 31 do mesmo mês na revista Veja, que a escolheu como “imagem da semana”. A publicação ocorreu em um momento delicado do Governo Dilma, em que o PMDB, principal aliado, estava em conflito com o PT, partido da Presidente, em disputa por espaço e troca de acusações que envolviam ministros dos dois partidos. A Presidente também havia perdido seu quinto ministro em menos de oito meses de Governo, qua-

tro deles envolvidos em acusações de corrupção. A foto gerou polêmica nas mídias sociais; somente no blog do Estadão recebeu 132 comentários, entre críticas e elogios pelo conteúdo político. A repercussão da foto publicada na época já foi uma conquista, segundo Wilton. “Consegui que as pessoas refletissem sobre o cenário político do momento a partir de uma imagem que sintetizava a pressão que a Presidente vinha sofrendo em sua própria base. Esse é o papel do fotógrafo”. Wilton conta que como repórter-fotográfico sempre busca enriquecer a pauta, captando imagens que não se limitem a registrar um acontecimento, mas transmitam informação para as pessoas pensarem. “Nem sempre é possível transmitir uma informação desse tipo numa imagem, mas às vezes acontece.” Na cobertura do evento que envolveu a Presidente, por exemplo, ele enfrentou uma série de restrições. Os fotógrafos não podiam ficar circulando, estavam longe dela, com uma fita delimitando o espaço. “Era dali que a gente tinha que se virar para fazer as fotos. Estava com uma teleobjetiva de 400 milímetros, que acabou ajudando, pois aproxima os planos, o espadim parecendo mais perto dela do que realmente estava. A foto faz parte de uma seqüência fotográfica, publicada depois no blog do Estadão. Ao editar o filme vi que era a que melhor traduzia minha visão sobre o momento político”. Um caso de estudo Agora reconhecida pelo prêmio internacional, a fotografia também foi caso de estudo no blog do Centro de Fotografia da ESPM-Sul. A imagem foi analisada por Luiz Barth, mestre em Artes Plásticas que leciona Composição, e o professor e fotojornalista Ricardo Chaves, o Kadão. Barth começa apontando que captar um instante como este exige, sim, certa dose de sorte. “O enquadramento e a composição estão ótimos, com Dilma inclinada, quase caindo, quebrando a simetria e criando um ‘desconforto’”, analisa. Este recurso, definido como “o desastre eminente”, que prende o olhar do espectador, é um artifício utilizado por ilustradores e fotógrafos para chamar a atenção. Além disso, Barth aponta um detalhe interessante na imagem: o senso de humor. Kadão destaca que embora as Redações sempre tentem utilizar as fotos como verdades definitivas, provavelmente pelo fato de que isso corrobora o jornalismo afirmativo, a fotografia é subjetiva: “Ela é uma representação, um símbolo, um recorte da realidade”. A foto em questão é um ótimo exemplo disso, já que interessa por mostrar simbolicamente o delicado momento político vivido pela Presidente. “É uma realidade que no fundo é uma ilusão, uma situação subjetiva. É uma representação de um estado de espírito que a nação percebe”.

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DEPOIMENTO

Dines

O provocador Inquieto, desafiador e, acima de tudo, um apaixonado pela imprensa. Aqui estรก uma boa parte da Histรณria do jornalismo recente praticado no Brasil. POR FRANCISCO UCHA F OTO DE M ARTIN CARONE DOS SANTOS

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lberto Dines recebeu o Jornal da ABI por duas tardes no mês de janeiro em sua aconchegante casa de trabalho, localizada no bairro paulistano de Vila Madalena. Ao chegar, sentimos um certo ar interiorano e bucólico. É preciso bater palmas. O jornalista logo nos atende gentilmente; quando passamos pelo portão, vemos que as plantas que sobem pelas antigas paredes parecem levar o nosso olhar até o quadro de azulejos decorados com a inscrição “Jornalistas Associados”. Ao entrarmos na casa, caminhamos por um estreito corredor formado por estantes e mais estantes repletas de livros e arquivos preciosos que formam outros corredores estreitos; quase um labirinto. A luz bem captada pelas lentes da clássica Leica IIIf, Elmar 3,5cm, de 1932, de Martin Carone desenha na penumbra a aparente desordem e a clara paixão de Dines pela palavra impressa. Ali trabalha um provocador que não aceita o conformismo. Seus 60 anos de profissão contam uma boa parte do que de melhor aconteceu na imprensa brasileira nesse período. Pacientemente ele nos revela, entre muitas idéias e experiências, a trama maquiavélica de sua demissão do Jornal do Brasil, publicação que ajudou a conceituar em 11 anos de dedicação total. Nesse mesmo período ele cria na mesma empresa os Cadernos de Jornalismo e Comunicação. Dines nos relata a sua opção pelo jornalismo biográfico e sua experiência como Professor Visitante da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. De volta ao Brasil, participa da brilhante reforma gráfica da Folha de S.Paulo, capitaneada por Claudio Abramo, e cria o Jornal dos Jornais, coluna que começa a lhe render muitos inimigos na imprensa brasileira. Seus artigos na Folha desafiam a ira dos ditadores, mas ele não se cala. Sua bela amizade com Roberto Civita, que sempre esteve presente nos momentos difíceis e nos bons momentos também, não é esquecida. E os sete melhores anos de sua vida, vividos em Portugal, ganham destaque especial em seu relato. Assim como a criação do Observatório da Imprensa, projeto que permeou toda a sua vida profissional. Foram mais de nove horas de gravação editadas nos dois primeiros números de 2012 do Jornal da ABI. Este depoimento é uma aula de História do bom jornalismo praticado no Brasil e começa exatamente do ponto onde parou na edição anterior.

A

Jornal da ABI – O Jornal do Brasil foi marcante para uma geração.

Alberto Dines – Sem dúvida. Estou lendo o livro O Rio É Tão Longe, com as cartas que Otto Lara Resende enviou para Fernando Sabino, e são incríveis as coisas que ele fala sobre o JB. Tem uma frase lá que reflete bem o clima que havia: “O Jornal do Brasil é imprescindível. Ponto”. Uma frase solta que mostra a importância do jornal. As coisas tinham que estar no Jornal do Brasil. O JB foi realmente um espírito que persiste até hoje. Veja bem, o jornal acabou, mas o pessoal do JB vira e mexe está fazendo algum encontro no Rio, porque é uma chama de todas as gerações. Tem o JB da minha geração e o das gerações posteriores. Fazíamos um trabalho jornalístico às vezes imperfeito, claro, mas buscava-se a perfeição. Houve um momento formidável na História do jornalismo carioca que foi o embate entre O Globo e o Jornal do Brasil quando O Globo resolveu sair aos domingos e o JB, em represália, passou a sair às segundas-feiras. Foi um dos momentos mais espetaculares da luta profissional entre os dois veículos. Isso foi no início da década de 1970. O Globo estava em processo de expansão e não se

considerava apenas um vespertino, até porque o conceito de vespertino naquela época já estava terminado. Ele saía de manhã e queria também estar de manhã no melhor dia da semana que é o domingo. O JB tentou barrar, até que se decidiu que ele iria sair todo dia; decidiu sair também às segundas-feiras, que era o dia em que O Globo lavava a égua em matéria de anúncio e circulação. Foi uma batalha! Ambos se prepararam para fazer matérias espetaculares, cheias de conteúdo e foi um embate muito bom; eu diria que nesse primeiro embate o JB ganhou, mesmo não tendo o apoio da televisão que O Globo tinha. E isso era facilmente comprovado por causa do número de exemplares vendidos, havia o IVC, número de páginas de anúncios. Batemos em termos de venda e qualidade. Qualidade era conosco, O Globo estava começando. Foi um embate de altíssimo nível, buscando a qualidade, o melhor jornalismo, as melhores matérias, correspondentes internacionais. Foi uma das últimas coisas que comandei no JB. Jornal da ABI – A luta pelo furo jornalístico era constante...

Alberto Dines – Era mesmo. O furo era muito importante na

época, depois o furo passou a não ser tão importante. Mas você tocou nesse assunto e me lembrei de um episódio que é inesquecível e que faço questão de contar: Prédio velho, anos 60, trabalhava conosco um grande repórter de polícia, Octávio Ribeiro, o Pena Branca. Numa tarde, a cidade do Rio de Janeiro parou. Um sujeito estava ameaçando se suicidar num prédio na Rua do Catete. E o trânsito parou lá embaixo, com bombeiros, ambulâncias, a polícia. Por um prédio ao lado, o Peninha chegou até onde estava o cara e começou a falar com ele, pedindo para desistir de pular. Fez fotos e fez tudo, tudo. Então, o cara decidiu não pular; era um bancário que estava com uma crise psicológica qualquer. E o Peninha chegou na Redação e disse que tinha a história toda. “Eu entrevistei ele”, disse. Porém, embora não tivéssemos um manual de estilo, muito comum hoje em dia, tínhamos algumas orientações na Redação do JB. E uma das coisas que a gente não publicava era tentativa de suicídio, porque se o cara escapou com vida você tem que dar uma chance pra ele se recuperar. E eu falei: “Peninha, a gente não vai dar essa matéria desse jeito, vamos dar a notícia que o trânsito parou, e dar as iniciais do sujeito só, numa

matéria discreta”. E o Peninha compreendeu porque era uma vida que ele estava salvando mesmo. Ele salvou a vida da pessoa que não pulou e estávamos ajudando na reabilitação dessa pessoa. Então, você vê que naquela época não se discutia ética, mas isso era ética. Era uma preocupação humana, o jornal tinha esse princípio porque era um jornal discutido. Eu não era o dono do jornal, eu era o Editor-Chefe. Eu tinha outros editores; então, o JB era um jornal colegiado efetivamente. Tinha essa coisa extraordinária que eu acho que hoje em dia não há mais. Hoje não sei se os jornais são tão discutidos assim. Acho que há um certo autoritarismo. Jornal da ABI – É um autoritarismo ou as empresas ficaram tão grandes que não há mais como controlar a qualidade do conjunto?

Alberto Dines – As duas coisas se confundem. Nós tínhamos reuniões de pauta, era onde a gente se encontrava e muitas coisas aconteciam ali. Mas hoje tudo se tornou muito apressado e também os jornais são feitos com muita antecedência. Na quinta-feira você já está fazendo o jornal da semana que vem.

Jornal da ABI – É. No sábado já podemos comprar o jornal de domingo! Isso não faz o menor sentido!

Alberto Dines – Pois é. Tem essas coisas.

Jornal da ABI – Vamos voltar para a sua saída do JB. Como aconteceu de verdade?

Alberto Dines – Eu saí do JB três meses depois daquele episódio do Allende. Foi uma surpresa total. Tenho que entrar em detalhes, porque pelo menos para minha vida isso foi crucial. Aconteceu uma “operação militar” para me depor, e nem precisava porque eu não tinha nenhum poder. Mas, de novo, a Direção do jornal achava que eu tinha um poder galvanizador sobre a Redação, e preparou tudo em segredo! Foi um golpe de Estado, uma coisa terrível que atingiu o editor do jornal e o segundo, que era o Lemos. Ele seria o meu substituto natural. Foi preparado pra isso, mas deram outra função pra ele; cortaram-no porque existia uma lealdade, uma aproximação. Minha saída tem muito a ver com política; é uma hipótese minha, mas o que o Élio Gaspari já publicou sobre o Geisel e o Golbery confirma a minha teoria. E o que foi publicado no livro do Wilson Figueiredo [E a Vida Continua] também confirma. O que aconteceu? Quando o Médici estava terminando o mandato dele, o candidato natural seria o Geisel, que tinha o apoio do irmão

dele, que era Ministro da Guerra, e dos militares ligados ao Castelo. O Brito, que era um irresponsável, cometeu um erro brutal não só político, como moral também. Ele até fez coisas boas, mas não conseguia fazer sempre coisas boas. Ele era uma vítima da ditadura, e a vítima deve ficar de fora. Mas ele resolveu entrar no jogo político dentro da ditadura e passou a apoiar um candidato contra o Geisel. E o candidato que estava surgindo naquele momento com mais chance era um civil chamado Leitão de Abreu, que era Chefe da Casa Civil do Médici. Era uma jogada muito inteligente. Um gaúcho, durão, jurista, foi um dos que preparou o AI-5. Seria o Médici entregando o poder para um civil... mas esse civil era da linha-dura! E o Brito resolveu comprar essa idéia; participou de reuniões. O Brito e o alto comando do JB. Eu nunca fui convidado para esse tipo de coisa. Jornal da ABI – Mas o Senhor sabia que essas reuniões aconteciam?

Alberto Dines – Sabia que existiam; eles falavam, mas nunca participei... Jornal da ABI – E o Senhor não achava isso uma loucura?

Alberto Dines – Claro, claro... Não é que eu achava que um era melhor que o outro; eu achava que não cabia à vítima participar do banquete do vilão. Não se mete! E o Brito foi o único que fez isso. Roberto Marinho não se metia. Os Mesquitas não se metiam, o Frias não se metia. Ficavam olhando. Eram chamados, claro, mas não conspiravam. O Brito entrou na conspiração contra o Geisel e o Leitão de Abreu perdeu. E aí o Brito ficou apavorado porque ele ganhara dois canais de televisão, um no Rio e outro em São Paulo; tinha recebido do Delfim Neto um monte de empréstimos na Operação 63, que era o dólar muito facilitado, mas com juros altíssimos... e essa foi a desgraça do JB, do Estadão e outros jornais também... Então o Brito estava muito amarrado ao esquema do Governo e precisava de um bode expiatório. Ele precisava chegar para o Geisel, que foi eleito, e dizer “quem empurrou o jornal contra o Governo foi um judeuzinho aí” – e essa era a expressão... E o “judeuzinho” era eu. Em outubro de 1973 houve uma grande crise do petróleo por causa de mais um conflito entre Israel e seus vizinhos. As conseqüências econômicas foram tremendas: o preço do petróleo foi lá em cima, o preço de todas as commodities transportadas subiu, papel inclusive. O papel de imprensa triplicou! Tudo foi lá pra cima. E o Geisel, que era o homem do pe-

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AS FOTOS HISTÓRICAS QUE ILUSTRAM ESTA ENTREVISTA SÃO DO ACERVO PESSOAL DE ALBERTO DINES.

tróleo, pois foi Presidente da Petrobras, também tinha influência na política externa brasileira. Ele queria conseguir dos árabes condições favoráveis para o petróleo. Estava certo. Então o Brito quis se aproximar do Geisel dizendo que o jornal estava fazendo uma política sionista, porque tinha um judeu como Editor. Ele achou que isso iria amenizar qualquer zanga dele. E foi exatamente isso! Eu, que não freqüentava reunião de políticos, não fazia editoriais, fui apresentado como o bode expiatório. O JB tinha pouquíssimos judeus naquela época e eu até tomava muito cuidado para não ter, para depois não dizerem que tinha uma invasão semita lá. Mas por que tiraram a Clarice Lispector cinco dias depois que eu fui demitido? Porque ela não trazia prestígio ao jornal? Ao contrário, ela já era uma grande escritora e trazia um prestígio danado! Ela foi demitida, outros judeus foram demitidos aos poucos para não chamar muita atenção. O Hélio Fernandes acompanhou isso e publicou na Tribuna da Imprensa. Aliás, ele foi muito legal comigo! O Paulo Francis também escrevia na Tribuna me defendendo: “Era uma sacanagem o que estavam fazendo, era uma degola na Redação do Jornal do Brasil”. E qual foi a outra ação maquiavélica do Brito? Foi a de trazer alguém que agradasse muito, se não ao Geisel, pelo menos ao Golbery. Então, o homem que foi escolhido para chefiar a Redação não era um jornalista conhecido. Era o chefe da nossa Sucursal em São Paulo, chamado Válter Fontoura, que era da área de publicidade, da parte comercial... e jornalista também; escrevia até direitinho. Naquela época, o chefe da Sucursal de São Paulo era sempre alguém atento aos interesses comerciais. Mas ele nunca tinha dirigido um jornal na vida, nem revista estudantil. Então, o Válter trouxe como braço-direito dele o Élio Gaspari, que era o homem do Golbery. Foi a forma que escolheram para amenizar: “Olha, o jornal é seu agora. O judeu foi afastado e o Golbery tem o homem dele na Redação”. E o Élio Gaspari é um grande jornalista. Uma das boas fases que o Jornal do Brasil teve foi com ele. Embora faça certas restrições porque eu acho que ele sempre precisa ter alguém acima dele... mas, tudo bem. Isso foi feito de tal forma que o Brito tinha que me dar uma porrada pra mostrar que ele estava punindo aquele antiGeisel e ao mesmo tempo me oferecendo na bandeja... foi uma coisa terrível. Jornal da ABI – Isso parece uma trama cinematográfica...

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Equipe de comando da Redação do JB em 1973: ao centro, o Editor-Chefe Alberto Dines, acompanhado por José Silveira (em pé), Secretário de Redação; Sérgio Noronha, Chefe do copidesque e Secretário da Redação; Carlos Lemos, Chefe de Redação, e Luís Orlando Carneiro, Editor de Notícias.

Wilson Figueiredo inclusive – armaram para que ele me recebesse lá no jornal, para tentar fazer as pazes . Eu nunca o encontrei pra uma conversa mais íntima. Mas na edição de aniversário do Jornal do Brasil ele me fez um baita elogio: “O melhor diretor que passou por aqui foi o Dines”. Pô, se eu fui o melhor diretor, por que ele me demitiu? Para mim foi um choque brutal. E depois as portas de toda a imprensa se fecharam para mim. Jornal da ABI – Mas como aconteceu isso? As portas se fecharam?

Alberto Dines – E tem mais... No livro recém-lançado do Wilson Figueiredo tem uma coisa muito importante na página 176. O que aconteceu foi o seguinte: em dezembro de 1973 eu não sabia de nada e minha demissão já estava sendo tramada há uns 15 dias ou mais. Comecei a estranhar que quase todos os dias o Otto Lara, que era Diretor da empresa, telefonava para minha casa de noite. Ele não era muito de telefonar, ele escrevia, mandava as cartas dele, mas ele me telefonava toda noite, perguntava como eu ia, se estava tudo bem comigo. Eu achava extremamente gostoso isso, afetivo, fraterno, mas não entendia; mas também não me chamava a atenção. Nós éramos muito próximos; alguns fins de tarde no verão ele descia para minha sala, que dava para o porto do Rio, e a gente ficava falando de navios. A vista era muito bonita. De repente passa a me ligar à noite para não falar nada. E eu não tinha nenhuma preocupação maior a não ser a edição do jornal. Eu vivia o jornal com muita intensidade e esse foi um problema sério no meu primeiro casamento... e só não é no segundo porque eu casei com uma jornalista. [risos] Então o jornal estava na minha cabeça o dia inteiro. O Otto me telefonava porque era uma preocupação dele. Como era diretor da empresa, ele já sabia! O Wilson Figueiredo conta mais detalhes em seu livro e revela quando soube da minha demissão. Foi numa noite em que o Otto lhe deu uma carona: “O Otto parou o carro na minha porta e continuou a puxar o assunto, senti que ganhava tempo para alguma revelação. Passava da meia-noite quando ele disse ‘o Dines vai ser demitido hoje’. Ele sabia que eu era amigo do Dines e não me disse, mas é certo que tenha tentado impedir a demissão”. Então a verdade é essa, o Otto estava incomodado com isso, mas tinha que ser leal à direção

do jornal ou então pedir demissão. Mas começou a se afastar da direção do JB e depois saiu e foi para O Globo. Depois conversamos muito, mas eu nunca tive coragem de pedir ao Otto detalhes dos bastidores dessa demissão. Eu tinha uma relação com ele muito boa, antiga, ainda dos tempos da Manchete. Jornal da ABI – Quem lhe deu a notícia de que o Senhor estava fora?

Alberto Dines – Eu tinha que ir à casa do Brito, em Santa Teresa, para despachar com ele uma vez por mês. A gente discutia idéias, alguns planos que eu pensava. O dia seguinte a essa revelação que o Otto fez ao Wilson era um desses dias. Cheguei lá com uma pasta de papéis pra falar com o Brito e ele levou um susto e perguntou “o que é isso?”. E eu disse “é o nosso despacho”. Ele estava sitiado... me viu com papéis e achava que eu ia jogar os papéis na cara dele! Assim que eu sentei, ele falou “Olha, Dines, eu quero te dizer o seguinte: você não vai mais trabalhar no jornal; você está sendo demitido.” E eu: “Hã? O que é que aconteceu?” E ele respondeu “Você está sendo demitido por indisciplina!” Fiz um ar meio perplexo e ele disse, “Amanhã você não dirige mais o jornal.” Aí eu falei “tá bom.” Me levantei e ele falou “Onde você vai?” E eu disse que ia pra minha casa. Ele falou que eu podia passar no jornal para pegar minhas coisas. E eu disse “Não quero, não. Manda a secretária me enviar as coisas.” E aí houve uma onda danada, porque todo mundo soube que eu não seria mais o editor do jornal e no fim da tarde toca o telefone. Era o Válter Fontoura, a pessoa que ia me substituir. Ele era meu amigo. Freqüentemente ele vinha ao Rio e vinha jantar na minha casa, tínhamos uma relação ótima. E no telefone ele perguntou se dava pra manter nossa amizade. Eu disse: “Não, Válter! O que

você fez foi uma traição! Não queira propor isso; não dá pé.” E houve todo um movimento: durante uns 15 dias toda noite vinha uma multidão me visitar em minha casa. Jornalistas do JB, gente que tinha sido demitida, gente que não tinha sido demitida. E depois houve coisas terríveis: algumas pessoas que foram me visitar e se mostraram revoltadas, foram demitidas dois dias depois. Porque havia gente que ia à minha casa e depois contava para a direção o que as pessoas falavam! Jornal da ABI – Quem foi demitido?

Alberto Dines – A Marina Colasanti, por exemplo. Jornal da ABI – O Senhor sabe o nome de quem delatou?

Alberto Dines – Tinha minha ex-secretária... não era a secretária naquele momento. Era uma moça que gostava muito de cinema e me pediu para trabalhar fazendo a cobertura noticiosa de cinema, a programação do cinema. Dei essa chance para ela e ela foi à minha casa. Era filha de um oficial da Marinha. E eu não vou dar o nome, mas tenho toda a certeza de que foi ela que passou. A Marina foi um caso típico: não era judia, não era de esquerda. Era uma pessoa séria, íntegra, mas que na minha casa estava revoltada. E dois dias depois estava demitida. Jornal da ABI – O Senhor não chegou a perguntar ao Brito qual foi essa indisciplina?

Alberto Dines – Não. Eu nunca mais o vi. Quer dizer, eu o vi só uma vez em 1992, quando o jornal comemorou o centenário e o Brito mandou me convidar para escrever um artigo. E ele fez um bruto elogio a mim.

Alberto Dines – Todas. Mas aí era uma capacidade que o Governo tinha. E também o medo, o mito que se criou de que eu era um cara revolucionário, que ia inflamar as Redações. O Geisel estava assumindo o Governo numa situação muito delicada e ele representava a distensão.

Jornal da ABI – Então o Senhor ficou desempregado?

Alberto Dines – Eu fiquei sem emprego. Quando estive com o Roberto Civita, que era muito meu amigo, ele me aconselhou a sair do Brasil. “Alberto, vai para os Estados Unidos. Fica fora um tempo; faz como o [Jean-Jacques] Servan-Schreiber e escreve um livro”. O Servan-Schreiber era um jornalista francês, que largou o jornal dele, o L’Express, e escreveu nos Estados Unidos um livro de grande sucesso. E eu disse: “O livro já está sendo escrito, Roberto, está sendo escrito aqui mesmo.” Mas ele insistiu para que eu saísse do Brasil. Mais ou menos um mês depois desse encontro recebo uma carta do reitor da Universidade de Columbia, que eu conhecia. Era um grande jornalista nascido no Canadá, mas fez a vida nos Estados Unidos. Nessa carta ele me convidava para ser professor visitante da Universidade de Columbia. O Roberto Civita tinha estudado lá e era muito conectado com eles. Ele vai negar, mas eu tenho certeza de que foi o Roberto Civita que articulou isso para que eu tivesse uma saída! Ele falou para eu ficar fora um ano que depois eu voltaria tranqüilo. E assim foi. Eu podia escolher entre ficar um semestre ou dois e preferi dois porque um era curto demais. Então, fui pra lá em agosto de 1974, porque o ano letivo começa no inicio de setembro e voltei no fim de maio. O semestre acadêmico lá é mais curto. Fui até à formatura da turma de Jornalismo de lá.

Jornal da ABI – Em 1992?

Alberto Dines - O jornal fez centenário em 1991. Eu morava em Lisboa e em 1992 vim ao Rio. Alguns amigos em comum – o

Jornal da ABI – Mas, voltando um pouco, como surgiu a idéia de escrever o livro O Papel do Jornal, hoje um clássico do jornalismo?


Alberto Dines – Em dezembro de 1973, depois que saí do JB, vi que a coisa ia ficar feia pra mim. Não conseguia emprego. A TV Globo, que me namorava há tempos e onde tinha amigos, não podia me empregar; O Globo, que tinha me namorado poucos anos antes, também não; a Editora Abril, que o próprio Roberto Civita também já tinha me convidado, não podia. Claro, porque o Ministro da Justiça Armando Falcão tinha criado uma barreira para que eu não fosse aproveitado. Foi aí que pensei em escrever um livro, porque se eu fosse deixar o jornalismo, pelo menos estaria deixando uma avaliação do que fiz entre 1952 a 1973. Esquematizei e comecei a mandar brasa. O livro saiu em abril de 1974 e já foram publicadas nove edições. Mas a tese do livro é válida ainda hoje. Para enfrentar a internet você tem que melhorar o impresso. Naquela época era a televisão; hoje é a internet. Um impresso de merda não vai enfrentar a internet, que é de merda. A internet é a fragmentação, é a pulverização, o efêmero, acho. Ela vence pela atualidade, mas não vence pela qualidade. Então, naquela época da crise do petróleo eu já estava dizendo isso, e isso acho da maior importância e é válido até hoje: melhorar o produto, mas melhorar muito, para que ele não desapareça.

Homenagem a Odylo Costa, filho (esquerda), ex-Diretor do Jornal do Brasil responsável pela reforma de 1956. À sua direita, Nascimento Brito, Dines, o historiador Francisco de Assis Barbosa – que preparava a edição do IV Centenário do Rio de Janeiro – e o Diretor Comercial, Francisco Araújo Neto.

Em outubro de 1970, Alberto Dines foi distinguido com o 32° Prêmio Maria Moors Cabot, concedido anualmente pela Universidade de Columbia, por sua atividade na formação profissional de jornalistas e em defesa da liberdade de imprensa, e também pelas inovações que introduziu no JB. Na foto, com a beca da Columbia durante a cerimônia de entrega do Prêmio.

Em visita ao Rio no final dos anos 1960, o ex-Premiê David Ben Gurion, fundador do Estado de Israel, é entrevistado por Dines

O aprendizado na Columbia Jornal da ABI – Conte um pouco de sua experiência como professor visitante na Universidade de Columbia.

Alberto Dines – Para mim foi ótimo! Eu pude acompanhar toda a discussão pós-Watergate. A discussão sobre o comportamento da mídia na própria mídia. Isso me chamou muito a atenção porque eu nunca tinha visto a imprensa sendo discutida. Isso aconteceu porque algumas práticas não foram legais, não dos dois repórteres do Washington Post e nem do próprio New York Times. Por exemplo, houve um procurador-geral que, depois de deixar o Caso Watergate, vendeu suas memórias sobre esse caso para uma revista. Daí surgiu a expressão checkbook journalism, ou o “jornalismo de talão de cheque”. Como o cara se tornou uma figura pública, ele recebeu uma grana pra revelar uma história da qual foi protagonista na condição de funcionário público! Essa discussão foi longa. Discutiu-se muito e a imprensa se acompanhou, a imprensa se viu no espelho e se discutiu. E isso me chamou muito a atenção.

Dines, Editor-Chefe do JB, ao lado de Herbert Moses, Presidente da ABI. Dines com a coluna de blindados israelenses que ocupou as colinas de Golan cobrindo a Guerra dos Seis Dias (de 6 a 12 de junho de 1967)

Com o Presidente João Goulart num evento no Jockey Club do Rio de Janeiro.

Alguns dos jornalistas que participaram do livro Os Idos de Março e a Queda em Abril durante o lançamento: Alberto Dines, Wilson Figueiredo, Araújo Neto, Antonio Callado, Pedro Gomes e Cláudio Melo e Souza.

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“Discutir a imprensa está dentro de mim, não é uma coisa teórica.” A minha participação lá na Columbia foi muito discreta, eu não fui lá para ensinar jornalismo para esse pessoal. Os caras eram bambas. Um dos professores da Escola de Jornalismo era o Fred Friendly, que foi interpretado pelo George Clooney no filme Good Night, and Good Luck (no Brasil: Boa Noite e Boa Sorte), que era um idealista mesmo. Foi ele que criou a PBS, a rede pública de televisão dos Estados Unidos. Pô, eu vou ensinar jornalismo para esses caras? Então, o que vou fazer? Vou falar daquilo que eu sei! A História da imprensa brasileira; as relações Governo e imprensa no Brasil, que eles têm que saber, já que eles estudam a democracia americana, eles têm que saber como não funciona a democracia abaixo do Equador. O professor visitante não tem que dar aula; faz seminários e conferências. Toda a minha linha de ensino foi a partir da História da imprensa brasileira, desde o Hipólito da Costa. Foi lá que eu realmente me aprofundei nesses assuntos. A Biblioteca de Columbia é enorme e tudo que era editado aqui havia lá. Bom... não tinha o Werneck Sodré, mas o Otto me mandou um exemplar de História da Imprensa no Brasil. Para mim, que nunca estudei em curso regular, esse período foi uma pós-graduação. Eu aprendi muito mais do que ensinei. Embora meus alunos gostassem do que eu estava contando porque era algo muito diferente. Jornal da ABI – Mas durante o período do JB o Senhor também editou Cadernos de Jornalismo, que foi algo revolucionário para a época e era uma publicação que tinha um olhar sobre a imprensa...

Alberto Dines – Foi de 1965 até quando eu saí. Não era uma publicação regular, saía umas três vezes por ano. Eu tinha duas coleções encadernadas; uma eu doei para a ABI, completa. Cadernos de Jornalismo é uma publicação preciosa; encadernados, não são muitos volumes, são apenas seis. Esse projeto começou depois que retornei dos Estados Unidos, quando fiz o curso para editores de jornais latino-americanos na Universidade de Columbia. Nesse curso cada aluno escolhia um jornal para conhecer, e eu escolhi o New York Times e o Herald Tribune de Nova York. E no New York Times havia uma coisa que achei formidável: era um mural que ocupava duas paredes enormes que chamava Winners and Sinners, vencedores e pecadores em inglês. Era um espaço onde os jornalistas comentavam as coisas boas e as ruins, as cagadas. Achei isso formidável! 16

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Jornal da ABI – Mas eles faziam comentários críticos de toda a imprensa?

Alberto Dines – Não, só deles, só do que era publicado no New York Times. Mas fiquei fascinado! Veja bem, em 1965 essa discussão sobre a imprensa não era usual. Tive muita resistência de jornalistas de esquerda quando escrevia a coluna Jornal dos Jornais, na Folha! Muitos me chamavam de censor! E eu dizia: “Sou ‘sensor ’ com ‘s’; estou farejando as coisas, não sou um censor!” Digo a você que essa coisa de discutir a imprensa está dentro de mim, não é uma coisa teórica. A imprensa tem que falar de si mesma, porque ela fala sobre tudo. Assim que eu voltei com as apostilas do curso e anotações que fazia vim com essa idéia na cabeça. Como já falei, criamos no JB uma entidade não oficial chamada “Comitê do Futuro”. Era eu, Gabeira, Murilo Felisberto, gente que, com o perdão da palavra, se masturbava com o negócio do jornalismo, como é que é isso, o que vai ser, como vamos fazer? Gabeira é um grande jornalista! Ele pegava você na esquina e começava a falar sobre jornal! Ele era um adorador da ciência ou da arte jornalística. Então fizemos esse Comitê e eu falei da idéia do mural do New York Times. Mas como a gente pode fazer? Um mural não dava porque o JB era um prédio velho e não tinha nem parede livre, era muito precário e as salas eram separadas... não ia dar certo. E começamos a pensar a respeito disso e surgiu a idéia: vamos fazer uma publicação! O JB tinha uma gráfica pequenininha que fazia formulários, envelopes, e conseguimos autorização da direção para fazermos um boletim. E eu tenho a impressão... não tenho a certeza... de que o primeiro editor teria sido o Gabeira... ou foi o Gabeira ou o Murilo Felisberto. E começamos a fazer! Mas era uma coisa assim: ninguém tinha tempo nem ganhava pra fazer a publicação. Não tínhamos uma idéia muito clara do que queríamos fazer, mas queríamos fazer. Eu fiz um artigo, o outro fez um artigo, vários colaboraram. O Oldemário Touguinhó escreveu vários artigos muito bonitos. Foi uma experiência... hoje pode-se até falar “que pauta mais horrível, que coisa pouco revolucionária, inovadora”... tudo bem, mas foi a primeira e continuou a sair.

Dines viajou a convite da Federação dos Jornalistas da União Soviética para os festejos dos 50 anos da revolução de 1917. Na foto, tirada no dia 1° de maio de 1967, ele está ao lado do fotógrafo Thomas Scheier, da revista Manchete, na Praça Vermelha, em Moscou.

Ao lado de Norma Couri, Dines entrevista Victor Alves, um dos capitães da Revolução dos Cravos, na residência do Adido português Jacinto Rego de Almeida, em São Conrado, Rio de Janeiro.

Jornal da ABI – As reflexões que vocês faziam no Cadernos de Jornalismo eram sobre o que a imprensa produzia?

Encontro festivo na Editora Abril: o atual Diretor da revista Veja São Paulo, Carlos Maranhão, na época na Placar, ao lado de Dines e Victor Civita.

Jornal da ABI – Essa publicação era distribuída ou chegou a ser vendida?

Alberto Dines – Ah... teve uma época que começou a ser vendi-

da na Entre-Livros, uma grande rede de livrarias do Rio. O dono era o José Silveira, que era o Secretário de Redação do JB. Mas também muita gente pedia... e o jornal mandava para as agências, os anunciantes. Mas os Cadernos de Jornalismo eram feitos totalmente à revelia da direção do jornal. Quem foi o artífice disso foi o Gerente Administrativo da empresa. Osvaldo.... infelizmente não lembro o sobrenome dele agora. Era um bom gerente e chefiava a gráfica que fazia todos os impressos burocráticos do jornal. Falei com ele, que gostou da idéia e conseguiu autorização da empresa para imprimir. Como era um rapaz de muito bom gosto, culto, ele dava sugestões gráficas também. Então, foi um trabalho coletivo a despeito da direção, que nunca interveio ou se interessou pela publicação. Só interveio uma vez, uma única vez: para acabar com ela. Mas foi a decisão de interromper uma edição que já estava totalmente pronta e com um artigo meu. O artigo era “A crise do papel e o papel dos jornais”, onde eu fazia uma análise geral sobre a imprensa mundial e dizia que aquela era a hora de investir para enfrentar a televisão, porque ela tem cores, tem satélite, tem tudo, e o jornal impresso só tinha qualidade. Não sei se foi coincidência, mas o Brito talvez tenha lido o artigo e suspendeu a edição.

Na Redação da Sucursal da Folha de S.Paulo. Foto de Ubirajara Dettmar.

Alberto Dines – Eram sobre tudo. Houve até discussões sobre Marshall McLuhan. Hoje ele está esquecido, mas o Marshall McLuhan tinha idéias avançadas e estava certo tanto para a época quanto para os dias de hoje. McLuhan era muito inteligente e nós publicávamos vários artigos dele. Aliás, a revista passou a se chamar Cadernos de Jornalismo e Comunicação porque as faculdades de Comunicação estavam começando a proliferar. Então publicamos também artigos sobre rádio, televisão. Agora... era uma coisa que a gente fazia com prazer, no nosso tempo livre; não tínhamos muitos recursos. Mas para mim os Cadernos de Jornalismo e Comunicação têm importância porque essa publicação foi a primeira etapa de uma série de coisas que fui fazendo nessa área: o Jornal dos Jornais, o Observatório da Imprensa.

Jornal da ABI – Depois de uma gestão absolutamente equivocada, o Jornal do Brasil acabou melancolicamente. O Senhor acha que mesmo assim seu título ainda tem força para garantir seu retorno?


Em 24 de agosto de 1968, com Samuel Wainer, na Hebraica do Rio de Janeiro.

Alberto Dines – Ao mesmo tempo em que o título é precioso, não vale nada. Se você me fizer a mesma pergunta sobre o Correio da Manhã, que foi um jornal espetacular também, eu diria que é um nome que não cola. Agora, o Jornal do Brasil é um nome único, porque é o jornal “do Brasil”. É o único jornal que tem uma entonação nacional a partir do nome. Ele não é o jornal de São Paulo, não é o jornal do Rio, não é o jornal de Minas. Ele é um jornal “do Brasil”. Então, esse é um título que tem força. É possível que daqui a uma década já não tenha tanta força. Agora, dos títulos que estão aí sobrando, conhecidos, o nome mais espetacular, mais valioso no ponto de vista de preço, é o Jornal do Brasil! Jornal da ABI – Parece que o empresário responsável pelo seu desaparecimento quer retornar com a versão impressa do JB. Dessa forma ele deixará de ser o “primeiro jornal 100% digital do País”, seu novo slogan na internet...

Alberto Dines – O Tanure não gosta de jornalismo! Ele não lia jornal, aliás, ele não gosta de nenhum dos seus negócios. Ele foi um dos primeiros empresários de internet no Brasil já nos anos 1990. Foi um precursor dessa área, mas não tinha um computador na mesa dele. Na verdade ele gosta do negócio de comprar um esqueleto e vender por dez vezes mais; esse é o negócio dele! Ele não é jornalista. Então, ele pode relançar o Jornal do Brasil, e tomara que ele tente fazer isso, e tomara que dê certo, mas ele não é a pessoa pra chefiar o processo. E o processo tem que ter um comando. Tem que ter uma figura solitária ou de preferência rodeada por alguns nomes de confiança, pra dar essa chama, porque jornal é uma coisa muito humana, não é mecânico. E acho que a internet, por uma série de razões tecnológicas, não passa esse calor que um jornal ou uma revista impressa passa. Um dia a internet vai passar, um dia vão encontrar uma entonação. Anne Sinclair, a mulher do Dominique Strauss-Kahn, que era Diretor do FMI, é uma grande jornalista que tem um blog e vai lançar a edição francesa do Huffington Post, que é o jornal digital mais bem sucedido dos Estados Unidos. Ela é uma figura muito conhecida na França e ficou ao lado do marido nesta campanha de difamação que ele sofreu. Ela é bonita e talentosa e eu tenho a impressão de que deve conseguir passar essa chama nesse jornal digital. No papel seria fácil, mas passar esse calor humano, essa vibração que tem o jornalismo de papel em sua

forma digital é mais difícil. Em megabites não passa, não. Talvez ela consiga, mas é difícil.

Abramo e Dines: a reforma da Folha Jornal da ABI – Em que circunstâncias acontece sua contratação pela Folha de S.Paulo?

Alberto Dines – Quando eu estava terminando o segundo semestre como professor na Universidade de Columbia, o Cláudio Abramo me procura lá. Eu não tinha grandes intimidades com ele; conhecia-o muito bem, mas não era amigo próximo. Mas o Cláudio me diz “ouvi falar que você está voltando e no dia que você chegar ao Brasil eu gostaria que a primeira empresa que você procure seja a Folha de S. Paulo. É que o Frias me chamou para fazer uma reforma no jornal, ele quer fazer um grande jornal! E o jornal está empresarialmente bem e não deve um tostão. Eu quero você.” Eu voltei e procurei o Frias. Ele e o Cláudio Abramo me receberam e falaram do projeto do novo jornal. E na época, antes da reforma, a Folha era um péssimo jornal, era ruim, muito ruim. Eu gostava do Estadão! Na época do JB eu o olhava com respeito: “Esse jornal era páreo para o JB”. E o Frias me falou: “Isso vai mudar. Você está sendo convidado para mudar isso. Quero fazer um jornal de grande conteúdo, agora nós vamos ser grandes empresarialmente e grandes jornalisticamente. E quero que você assuma a Sucursal do Rio de Janeiro, com as seguintes tarefas: chefiar a Sucursal e quero um artigo diário seu sobre política.” E olha que eu não era uma pessoa famosa, eu era conhecido como um orquestrador de jornais, não era um articulista. Não sei, mas o Frias tinha aquele feeling de ter grandes nomes colaborando no jornal. Provavelmente o Cláudio Abramo passava um pouco disso para ele. Mas eu já sabia que ele ia me convidar para escrever uma coluna, pois o Abramo tinha me dito e eu combinei com ele de questionar o Frias: “Como é que eu vou escrever um artigo se o jornal não tem uma página de Opinião? Tem que ter uma página, uma âncora!” E o Abramo me deu uma piscada. E ele falou: “Então está bom... depois que a gente acertar tudo aqui você vai com o Cláudio na sala dele e vocês fazem uma página de Editoriais, de Opinião, porque eu acho que é isso mesmo.” O Frias jogava muito. Ele ouvia a opinião de um, depois de outro e na frente dos dois ele tomava partido. Era um “businessman”. [risos] Aí eu falei: “Mas

Frias, tem o seguinte, não acabou... Não quero um tostão a mais do que você já me ofereceu... Eu quero fazer um serviço a mais. Eu quero que você me dê duas colunas toda segunda-feira no segundo caderno, porque eu quero comentar a imprensa.” Então contei para ele minha experiência nos Estado Unidos. A primeira reação dele foi muito negativa: “Ô Dines, você vai arranjar inimigos! Escrever sobre jornalista?! Sai dessa!” Mas eu expliquei que era uma discussão mais do que salutar. E o primeiro texto do Jornal dos Jornais, além das notas curtas, era “A distensão é para todos”, no qual eu dizia que a distensão tinha que ser vendida para a sociedade brasileira como um todo, não apenas na parte política. Como o Frias era muito ligado ao Golbery, e ele comprou essa idéia da “distensão”, então acabou concordando com a coluna. Mas qual não foi a minha surpresa quando vi que o meu artigo saiu no domingo, na página 6 do primeiro caderno e metade da página! É onde, até hoje, é publicada a coluna do Ombudsman. O Cláudio e o Frias fizeram uma tabelinha muito boa. Jornal da ABI – Como era o Frias?

Alberto Dines – O Frias foi espetacular de 1975 a 1977. Primeiro, muito permeável. Ouvindo e processando. Ele encostou o Boris Casoy, porque o Diretor efetivo era o Boris Casoy, que era e é um merda ainda hoje. Estava lá porque era um homem de extrema direita e o Frias vinha de uma posição conservadora. Mas com o Cláudio lá assumindo a mudança, o Boris nem se metia.

Jornal da ABI – Mas aí o Senhor sugere escrever uma coluna que ia comentar a qualidade da imprensa num jornal que você qualificava que não era bom.

Alberto Dines – Mas estava apostando numa melhora...

Jornal da ABI – O Senhor foi corajoso...

Alberto Dines – É... mas eu tinha que arriscar. [risos] Eu sempre fui meio malucão, embora não pareça. Minha função não era gozar o título que estava errado, não era isso. Era a função social e política da imprensa, que estava ainda sob censura. Naquele momento ainda havia muitos jornais que estavam sob censura. Foi uma coisa muito arriscada de minha parte.

Jornal da ABI – Até porque, é aquele negócio que o Frias falou, o Senhor ia começar a colecionar inimigos!

Alberto Dines – Colecionei na hora, logo na primeira coluna...

e alguns são inimigos até hoje. Mas eu fui em frente e graças a isso, a primeira pessoa que falou sobre o Herzog sofrendo ameaça fui eu e ele estava vivo. Ele ainda estava vivo, quando o Zuenir um dia me telefona e diz: “Dines, tem um jornalista de São Paulo que gosta muito de você e acompanha a sua coluna, não sei se você o conhece, mas ele está sendo perseguido com ameaças, com notinhas no Shopping News – que era um jornal de merda – mas tinha um cara lá, o Cláudio Marques, que era da Polícia e estava ameaçando ele, dá uma notinha.” E eu dei uma nota no domingo antes de ele ser assassinado. Eu dei o nome do Cláudio Marques e o que ele estava dizendo. Dei a prisão do Mauricio Azêdo, comentei a morte da Zuzu Angel naquele desastre e perguntei: “Por que a imprensa não está dando todas as teorias, todas as hipóteses?”. A revista Veja não pôde falar sobre a morte dela. Mas ela deu apenas o título “Zuzu Angel”, registrando sua data de nascimento e morte. A Veja ainda estava sob censura. Eu comentava porque a Folha não tinha censor na Redação. Jornal da ABI – Mas o Senhor não ficava com medo?

Alberto Dines – Não, nenhum. Aí, meu caro, eu já estava montado num cavalo fogoso partindo... Não tive medo de nada! O Rodolfo Konder sabe! Logo que o Herzog foi morto eu publiquei um artigo botando pra quebrar! Eu era responsável pelo meu pedacinho ali. E era um lugar muito honroso, porque em cima vinha a coluna de Brasília assinada pelo Rui Lopes, que era amigo do Frias e o comentarista político de Brasília. E não tinha assinatura, não! Só iniciais. Então Rui Lopes, RL em cima. No meio, Rio de Janeiro, AD. Embaixo, São Paulo, SW, de Samuel Wainer! Naquela altura o Samuel Wainer, cujo jornal tinha sido comprado pelo Frias, era empregado do Frias e estava fazendo uma coisa tão surpreendente quanto eu. Ele estava fa-

zendo o trabalho de colunista. O Frias gostava. Depois ele chamou o Bahia, chamou o Callado. Brincando, certa vez eu falei que a Folha era o jornal com o maior número de ex-diretores de jornais por centímetro quadrado: tinha o Osvaldo Peralva, que dirigiu a Última Hora e o Correio da Manhã, Luis Alberto Bahia, Alberto Dines, Samuel Wainer, Antônio Callado, Cláudio Abramo, que dirigiu o Estadão. Era um grupo de ex-diretores que nunca nenhum jornal conseguiu reunir. Isso foi uma grande sacada do Frias. Ele apostou na inteligência e no conteúdo. Mas houve um momento em que eu estava indo muito duro e um dia recebi um recado daquele general que foi me visitar na prisão. Acho que ele ligou pro meu irmão, meu irmão ligou pra mim e eu liguei pra ele. E ele me pediu para ir ao Segundo Exército conversar com o General Dilermando Monteiro, militar muito equilibrado. Eu morava no Rio, peguei um avião para São Paulo e almocei com o Frias. Ele falou para que eu ficasse calmo porque não ia ser preso. Acho que o Frias já sabia de tudo. Eu fui lá e fui muito bem recebido pelo General, que tinha um dossiê com todos os meus artigos. E ele falou assim: “Seu Alberto, o senhor é um homem muito inteligente. Temos amigos comuns. O Senhor é um liberal, não é um subversivo, um louco. Mas o Senhor tem que tomar cuidado, são momentos difíceis, vá com calma”. Foi uma coisa de pai pra filho! E passei um período muito bom na Folha! No fim de 1975 o Frias me telefonou um dia, também em dezembro, me convidando para jantar. Veja a sua grandeza! Ele falou: “Pega um avião e vem aqui jantar com a gente. O Cláudio e o Paulo Francis estão aqui”. O Francis trabalhava lá naquela época e o Frias ouvia muito o Francis. Estávamos tomando uísque na casa do Frias e ele me convida para assumir o comando da Redação em São Paulo. “Você está indo muito bem na Sucursal, mas tem uma embocadura para dirigir o JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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“Armando Falcão disse para o Frias que ia cassar jornalistas da Folha e eu estava entre eles.” jornal e você se dá muito bem com o Cláudio”. Eu falei que ia pensar. Voltei e escrevi pra ele dizendo que quem tem que chefiar esse jornal era a pessoa que fez o jornal, o Cláudio Abramo. Eu tenho uma cópia da carta até hoje. Falei também que estava acabando de me separar e ir para São Paulo naquele momento seria um choque para meus filhos. Não queria ficar ainda mais longe deles naquele momento. E disse que no Rio eu poderia dar uma boa mão para o Cláudio. E ele aceitou isso perfeitamente. Jornal da ABI – Depois disso o senhor se acalmou um pouco?

Alberto Dines – Não. Era um período muito radical. Todos nós radicalizamos, eu inclusive, tanto que várias vezes o Armando Falcão disse para o Frias que ia cassar alguns jornalistas, porque o Governo podia cassar. Ia cassar jornalistas da Folha e eu estava entre eles. O Frias me telefonou e me pediu para maneirar. Em 1976 o MDB conseguiu uma vitória eleitoral acachapante e o Governo ficou muito incomodado com isso e criou uma série de medidas ditatoriais e naturalmente todos nós reagimos. E cassou, afastou gente, fez coisas terríveis. O Governo Geisel estava espremido entre os liberais, que queriam a democracia, e a linhadura, que não deixava abrir. Não podia apressar as coisas. Houve um cronista da Folha que escrevia crônicas amenas no segundo caderno, chamado Lourenço Diaferia, que escreveu no dia 25 de agosto, que é o Dia do Soldado, um artigo com metáforas sobre a estátua do Duque de Caxias, alguma coisa assim. E isso irritou muito os militares e quiseram cassá-lo. Diaferia era um sujeito tranqüilo e não era um jornalista político, mas pegaram isso como exemplo. A coisa cresceu de forma incontrolável e os milicos começaram a pressionar o Geisel, pois a Folha estava indo longe demais. E o Frias foi obrigado a fazer um recuo drástico. Ele se afastou da presidência da empresa. O Cláudio Abramo se afastou do comando do jornal. Chamaram o Boris Casoy de volta para assumir o comando do jornal. Na página 2, os articulistas desapareceram. Não havia mais editorial, só artigos sobre o sexo dos anjos. O Jornal dos Jornais parou. Eu não perdi o emprego, continuei como chefe da Sucursal, mas já não escrevia minha coluna. Foi um recuo e, sob o ponto de vista político, chamou a atenção de que a ditadura ainda estava aí. Jornal da ABI – E quem assumiu no lugar do Frias? Foi o filho dele?

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Alberto Dines – Não, foi o sócio dele, o Caldeira, que também nunca se interessou por política. O cabeça mesmo era o Frias. Aos poucos eu voltei a escrever na página 2, mas a partir daí quem passou a ler meus artigos foi o Boris Casoy e várias vezes o artigo não saiu, e isso causou a minha saída em 1980. O Boris passou a controlar tudo e o Cláudio passou a ter uma função absolutamente secundária. Ele continuou lá, mas depois foi ser correspondente na Europa. Mas foi um recuo feio. No período em que podia escrever na página 2 fiz uma espécie de sacanagem. A Argentina estava na pior fase da ditadura e eu tive uma idéia: queria mostrar que a ditadura daqui não me deixava escrever, mas que eu podia entrevistar os ditadores de fora. Então consegui uma entrevista através do embaixador da Argentina no Brasil com o ditador de lá, o Videla. E aí eu fiz uma série de três matérias que o Frias bancou. Eu fui à Argentina e entrevistei o Videla, uma entrevista de merda, porque tive que mandar as perguntas por escrito e ele respondeu por escrito e me recebeu por uns 10, 15 minutos. Um papo idiota, eu nunca vi uma pessoa mais cheia de tiques, o olho dele tremia, ele era gago com aquele uniforme nazista, mas fiz questão de publicar, para mostrar que a Folha estava ali, os ditadores estavam ali, nós os estávamos chamando de ditadores, não estávamos dizendo que eles eram inocentes, nada. Jornal da ABI – Na entrevista saiu publicado que ele era ditador?

Alberto Dines – Ah, Claro! Depois eu fui ao Peru e entrevistei o ditador de plantão de lá, e na Bolívia entrevistei o Coronel Hugo Banzer. Para mim foi muito bom porque eu conheci a América Latina, estudei e escrevi sobre esses países e fiz o antes e o depois das entrevistas. E foi uma forma muito interessante de conhecer uma área que eu não conhecia bem, não uma área geográfica, mas uma área histórica relacionada com a história do Brasil. Jornal da ABI – Mas que tipo de pergunta o Senhor fazia?

Alberto Dines – Ah, como era o regime, quando voltaria a plena democracia. Eu tinha uma pauta. O único que tive que fazer um questionário por escrito foi o Videla; os outros não precisaram. Eram regimes mais brandos. Aquele foi o pior período da Argentina. E isso tudo foi para o jornal, que não podia publicar nada sobre a ditadura brasileira, mas falava sobre as outras. Foi uma experiência muito boa que o Frias permitiu que eu fizesse

no período em que eu não podia aparecer muito. Mas depois a coisa foi ficando complicada com o Boris. Eu não posso dizer que aconteceu com muita freqüência, mas ele começou a vetar o meu artigo. E aí ficava complicado! Depois houve a greve dos jornalistas, em 1979, que eu acho que foi uma das maiores burradas que a categoria fez, foi um suicídio. Não era pra fazer. O Lula participou da greve fazendo piquete, como líder metalúrgico. Ele fez piquetes em defesa dos jornalistas. Mas ele comentou isso já como Presidente da República: “Eu fui pros piquetes, mas os jornais estavam saindo, pô! Então, o que adianta fazer greve?” Os caras que decidiram a greve não estavam levando em conta que a tecnologia tinha avançado, não tinha internet, mas já tinha telex, tinha transmissão de fac-símile, os jornais podiam sair sem jornalistas. E foi o que aconteceu. Eu fiz uma coisa que me custou o cargo de Chefe da Sucursal. Eu liberei o ponto; quem quiser vem, quem não quiser não vem. Eu escrevia e fiquei na Redação porque tinha cargo de chefia, cargo de confiança. Mas a direção do jornal não admitiu isso e eu perdi a função. Continuei como articulista, mas perdi a função de Chefe da Sucursal. Perdi a minha sala, fui pra Redação, sem problema nenhum. Foi uma burrada. Os verdadeiros líderes sindicais eram contra, mas alguns radicais malucos queriam! E depois eles se tornaram os maiores patronais; estão aí lambendo as botas do patronato! Não quero dar nomes porque esses ainda continuam na profissão em posições próximas ao patronato. Mas eles é que empurraram a classe para esse suicídio. Foi uma coisa de louco. Criou-se um clima absurdo porque não havia uma democracia ainda! Era uma ditadura e o confronto político foi muito radical, muito estúpido. E foi em função dessa greve que se criou a ANJ. Eu sei porque fui testemunha. O que foi a ANJ? Os velhos donos de jornal não se entendiam, mas a nova geração começou a se comunicar. O filho do Frias, com os filhos do Mesquita, com os filhos do Roberto Marinho e um dia o Otavinho veio ao Rio para conhecer os filhos do Roberto Marinho. E me pediu para ir com ele a O Globo, porque eu conhecia o João Roberto e conhecia os outros. E foi assim que eles se conheceram... e foi assim que se criou, na minha opinião, uma das maiores distorções da imprensa brasileira. Porque fazer a ANJ não tem nada de errado. Fazer uma associação de donos de jornal é legítimo, todo mundo

tem. Que eles tomem atitudes coletivas nas relações laborais também é legítimo, afinal, o sindicalismo tem que ser aberto nas duas partes. Mas... que eles tomem decisões jornalísticas de comum acordo, isso é autoritário. Porque você cria um pool e a ANJ é um pool político. Isso é que é perigoso. Quem começou a campanha contra o diploma foi a ANJ. E quem escreveu o primeiro artigo contra o diploma foi o Boris Casoy. Não na Folha, onde ele era o diretor, mas na última página da Veja, que antigamente havia um rodízio nessa página, era aberta.

Shakespeare no Pasquim Jornal da ABI – E como acontece a sua saída da Folha?

Alberto Dines – Logo depois teve o episódio da greve do ABC, que o Lula organizou e o Paulo Maluf confrontou. Houve mortes e uma repressão violenta que o Maluf chefiou e eu escrevi um artigo para a Folha. Acho que o título era “A greve dos Dois Paulos”, o Dom Paulo (Evaristo Arns) e o Paulo Maluf. O Dom Paulo tentando convencer as autoridades a não reprimirem e o Paulo Maluf fazendo a repressão. Eu dizia que a repressão era comandada pelo Paulo Maluf. O Maluf sempre gozou de uma condição muito especial na Folha. Agora não, mas na época do Boris Casoy e depois, sim. E o artigo não saiu! Eu fiquei chateado! Foi uma coisa forte demais, de novo! Extremada demais. No seguinte eu escrevi sobre o mesmo assunto, mas fiz um outro texto. E, de novo, o Boris não publicou! Nessa época eu estava dando uma mão no Pasquim, que estava sofrendo os atentados. Havia atentados às bancas e as vendas do Pasquim tinham caído muito. E o Ziraldo e o Jaguar me conheciam e me pediram uma ajuda no fechamento. Eles me pediram para eu ir às sextas e nas segundas-feiras, que era o dia do fechamento. O jornal era feito praticamente todo na segunda-feira. E eu topei fazer isso. Nem acertei salário, eles estavam sem dinheiro, depois é que a gente acertou alguma coisa. E eu estava ajudando. Aí eu falei para o Ziraldo e o Jaguar: “Olha, eu tenho um negócio aqui que eu quero lançar. Eu vou fazer um artigo imitando o meu artigo da Folha, com a mesma paginação, e a seção vai se chamar Jornal da Cesta. Não da sexta-feira, mas da cesta de papéis. E terá uma frase que eu vou atribuir ao Shakespeare, mas que obviamente não era do Shakespeare: ‘Na história da imprensa, o que conta não é o que sai publicado, mas o que vai

pra cesta’”. [risos] E publiquei o último artigo que tinha sido vetado pelo Boris Casoy. Saiu, o Boris viu e por telefone me demitiu. Achou uma provocação e me demitiu por telefone. [risos] Jornal da ABI – Foi ele que ligou?

Alberto Dines – Ele ligou e disse: “Dines, o seu artigo não sai amanhã e você não escreve mais na Folha”.

Jornal da ABI – E o tom da voz dele?

Alberto Dines – Nada... ele é um cínico. Pra mim ele me fez um grande favor, mas foi uma estupidez. Aí eu continuei no Pasquim. Mas eu digo que foi grande favor, porque eu já estava com a idéia de me meter no projeto literário da biografia do Stefan Zweig, que resultou no livro Morte no Paraíso, já estava empenhado, já estava lendo, já tinha o título. Eu também já tinha lançado pela Codecri, em 1979, uma sátira política chamada E Por Que Não Eu?, sobre a posse de João Figueiredo. Era todo escrito na primeira pessoa a partir dos pensamentos de uma figura delirante que acha que se o Figueiredo pode, por que não ele? O gozado do livro é que eu cito pessoas conhecidas. O personagem do livro monta um ministério só com pessoas conhecidas: Raimundo Faoro, que era o presidente da OAB, Mangabeira Unger, que naquela época não estava tão louco assim. Era uma brincadeira que eu fazia, gozando as circunstâncias todas. Então, a Folha me pagou um bom Fundo de Garantia. Como a Bolsa de Valores estava indo muito bem, peguei meu Fundo de Garantia e entreguei a meu corretor para aplicar em mercados futuros. Foi uma coisa muito arriscada, mas fui indo bem. E fui escrevendo o livro. Durante um ano e meio fiquei dedicado só ao livro. Nas sextas e nas segundas-feiras dava uma passada no Pasquim e, aí sim, a gente combinou um salário, na base de prólabore, sem vínculo empregatício nem nada. Isso foi de 1980 até o início de 1982. Mas aconteceu que um mês e meio depois o Otavinho (Frias) me telefona, vai ao Rio e diz que quer conversar comigo. Eu tinha uma empregada que cozinhava divinamente, ela se chamava Oneida e eu comprei o melhor camarão. O desempregado vai receber o expatrão. E realmente ela deu um show de culinária bem brasileira, mas muito boa. E no almoço ele me disse: “Vim aqui para convidar você a voltar para a Folha. “ E eu falei, “Olha, Otavinho, não dá. Vamos descer aqui no meu escritório porque eu vou te mostrar o livro que estou escrevendo; e agora não vou parar esse livro”.


Em 1953, Alberto Dines era co-produtor do programa Falando de Cinema, da Rádio Mec. À esquerda, ele aparece ao lado de Alberto Shatovsky (com o microfone), que entrevista Mário Pagés, diretor de fotografia de Agulha no Palheiro, sob o olhar de Alex Vianny, o diretor do filme. No flagrante à direita, em 1955 participando do programa Clube da Crítica, de Pascoal Longo. A versatilidade de Dines: à esquerda, como fotógrafo e repórter na Redação da revista Visão, em São Paulo. Ao lado, no programa High Society, da TV Tupi, do Rio. Ele escrevia as histórias contadas por Ibrahim Sued e participava da apresentação do programa.

Em fevereiro de 1958, durante sua primeira viagem a Israel, com o mukhtar (líder, chefe) de uma aldeia árabe na Galiléia. À direita, jovenzinho numa foto para a formatura do ginásio no Colégio Hebreu Brasileiro, em dezembro de 1946.

No início da década de 1950, Dines faz pose atrás de uma câmera Mitchell, nos estúdios do Instituto Nacional do Cinema, que funcionava no prédio da Rádio Mec.

Durante o fechamento de uma edição do Diário da Noite, já transformado em tablóide.

Em janeiro de 1961, depois da demissão do Diário da Noite por ter desobedecido uma ordem de Chateaubriand para não publicar a notícia do seqüestro do transatlântico português Santa Maria, Dines faz uma reportagem para a TV Rio com os responsáveis pela ousada ação no apartamento do editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira. Em primeiro plano, à direita, o Capitão Galvão, que comandou a operação.

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Em 1977, nos estúdios da TV Bandeirantes, com Roberto Civita, durante as comemorações do 10° aniversário da revista Veja.

Jornal da ABI – Então, o Boris Casoy deve ter ficado numa situação delicada depois que o demitiu?

Alberto Dines – Isso é típico da Folha. Ela morde e assopra depois. E, sobretudo, a direção arrependeu-se porque teve alguma repercussão. Embora só aparecesse AD, todo mundo sabia que a Folha demitiu o Alberto Dines. E o velho Frias estava sabendo disso; o Otavinho não foi lá sozinho, o pai mandou, percebeu que tinha sido uma gafe. Mas eu recusei. Não podia assumir um novo compromisso, pois a Nova Fronteira ia lançar o livro e já tinha até uma data. Era o primeiro centenário de Stefan Zweig, novembro de 1981, e eu tinha pouco mais de um ano para escrever o livro, que era complicadíssimo, de um escritor que escrevia em alemão, viveu a vida toda na Áustria, passou no Brasil menos de um ano. Depois a Editora Abril me convidou a vir uma vez por semana a São Paulo para dar uma assessoria lá. Jornal da ABI – Que tipo de assessoria?

Alberto Dines – Coisa técnica, ajustes, pautas. E um dos que me ajudou muito nesse período foi o Rodolfo Konder, que era Redator copidesque da revista Nova. E ele insistiu com a Diretora da revista, Fátima Ali, uma boa jornalista, para que ela me chamasse como consultor. Então, eu vinha uma vez por semana e voltava até no mesmo dia. Depois a Abril me ofereceu o cargo de Secretário Editorial, um cargo de coordenador da revista, e eu vim morar em São Paulo. Jornal da ABI – E desde essa época, o Senhor mora em São Paulo?

Alberto Dines – Desde 1982. Morava aqui na Rua Jericó, no prédio onde o José Carlos Marão morava. Eu fiquei até 1988 na Abril daqui. Mas em 1988 eu fui a Portugal, e a Abril de lá me contratou até 1995. Fiquei então um período grande lá. A Abril de Portugal era outra empresa do Grupo Abril. Jornal da ABI – Foi nesse tempo que o Senhor desenvolveu a pesquisa sobre a Inquisição?

Alberto Dines - A pesquisa da Inquisição, sim, mas tudo isso tinha começado naquele outro exílio nos Estados Unidos, quando comecei a preparar as conferências da Universidade de Columbia. Quando eu lancei o livro Morte no Paraíso, foi uma coisa muito boa, um dos melhores momentos da minha vida, porque o livro foi muito bem recebido, muito embora eu tivesse bolsões de má vontade em mui20

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tas Redações por causa da coluna Jornal dos Jornais. Mesmo na Folha, que deu uma excelente cobertura. Paulo Francis publicou dois artigos seguidos. O Paulo Sergio Pinheiro escreveu na página 3. Eu me surpreendi, porque eu não sabia que teria essa cobertura. O Estadão publicou. Eu estava na lista-negra de O Globo naquele momento, porque o Caban havia brigado com o Maurício Azêdo. Ambos eram do Partidão, mas de correntes diferentes. E eu dei uma grande cobertura ao Mauricio Azêdo quando foi preso. O Caban tomou isso como uma posição contra ele; então o meu nome não saía no Globo. Quando meu livro foi publicado, uma moça que infelizmente já morreu, uma acadêmica, estudiosa, chamada Bella Joseph, escreveu um artigo de página inteira muito bem diagramado, com recortes da morte de Stefan Zwieg, com trechos inteiros entre aspas do meu livro, só que não foi publicado nem o meu nome e nem o título do livro! Eu, então, fiz uma maldade com ela... eu estava no Pasquim e escrevi um artigo fazendo uma gozação, chamando a moça de “a rainha da chupação”. [risos] Mas outra coisa que foi bem mais dramática aconteceu na Abril, na Veja. O Roberto Civita era um grande amigo e, provavelmente, falou para a Veja dar uma cobertura ao meu livro que estava sendo muito bem recebido. Não sei dos detalhes de como foi esse pedido. Sei apenas que os dois diretores da Veja, o José Roberto Guzzo e o Élio Gaspari, foram ao Roberto Civita e disseram: “Se você insistir em publicar alguma coisa sobre o Alberto Dines a gente pede demissão”. Naquela época a Veja tinha dois diretores. E acabou não saindo nem uma linha! E eu fiquei puto da vida. Eu tinha feito uma opção pela biografia; fui o primeiro biógrafo jornalista. O Rui Castro só começou anos depois. Fernando Morais, anos depois. Eu fui o primeiro porque saquei que biografia é jornalismo literário e na primeira edição do livro está lá escrita a opção que fiz. Era a forma de fazer o que eu sei fazer, que é jornalismo, num ambiente literário. Eu estava apostando no sucesso do livro, que vendeu muito bem. Vendeu a primeira edição em um mês. Eu fiquei muito chateado porque se a Veja tivesse dado venderia muito mais. Então, fiz uma perversidade... eu dei uma nota de cinco linhas no Pasquim sobre a direção da Veja. Pequenininha, mas perversa, perversa. Aí o grupo que mandava na Veja teve o pretexto que precisava! Até hoje eu estou na lista-negra do grupo do

Elio Gaspari. Alguns deles nem sabem o porquê, mas sabem que o Elio Gaspari não gosta de mim, mas também não querem saber. Meu nome só apareceu na Veja quando o Cláudio Humberto, que foi Assessor de Imprensa do Presidente Collor, escreveu um artigo na Veja sobre o livro que o Caio Túlio Costa lançou quando deixou a função de ombudsman na Folha, cujo título eu não lembro. Nessa resenha ele escreveu que eu fui o primeiro ombudsman da imprensa brasileira pelo trabalho que realizei no Jornal dos Jornais. E eles não iam censurar o Cláudio Humberto! Depois, em 1992, quando publiquei o livro Os Vínculos do Fogo, sobre a Inquisição. Eles deram duas páginas, bom destaque, mas escolheram para escrever um cara que certamente não ia gostar da obra. Isso foi um truque florentino do Mário Sérgio Conti, que concordou em dar uma cobertura boa e chamaram um acadêmico desses que nunca meteu a mão num documento e escreve sobre livros. O cara fez um reparo: o narrador de um dos capítulos fala da bandeira tricolor francesa em 1709, e nessa época a bandeira não era tricolor. Só passou a ser tricolor depois que caiu o velho regime. Mas, de qualquer forma, pelo menos o Mário Sérgio Conti deu duas páginas. Jornal da ABI – Apesar de exigir uma dedicação muito grande, escrever livros biográficos acabou lhe dando uma nova perspectiva jornalística, não?

Alberto Dines – Foi muito bom porque descobri um caminho que não abandonei mais e continuo cada vez mais convicto de que a biografia do Brasil se desenvolveu mais, ao contrário de outros países, porque ela passou a ser feita por jornalistas, e não mais por acadêmicos. Eu tive um precursor que foi um grande jornalista, mas também era acadêmi-

co, o Raimundo Magalhães Júnior, que fez uma biografia do Rui Barbosa. Mas eu fui o primeiro jornalista de Redação que decide fazer uma biografia juntando os dois gêneros: jornalismo literário. É uma pena que esses rancores me prejudiquem como biógrafo, até hoje. Jornal da ABI – Morte no Paraíso será relançado?

Alberto Dines – Vai sair agora a quarta edição. Eu já reescrevi esse livro quatro vezes. Isso é importante também porque só jornalista faz isso. Não são todos, eu faço. Faço um texto novo a cada nova edição, inclusive as internacionais. O texto que serviu de base para a versão alemã é um texto novo. O texto que estou usando agora para a quarta edição é o texto que eu fiz para a versão espanhola e que ainda não saiu, mas vai sair. Jornal da ABI – Esse livro foi publicado em quantas línguas?

Alberto Dines – Em alemão e está sendo traduzido para o espanhol. Mas essa coisa de listanegra merece um estudo sério, porque não é a primeira vez que acontece na História da Imprensa brasileira. A primeira vítima foi Lima Barreto. A imprensa não gosta de lembrar disso. Agora falou-se muito no Lima Barreto mas ninguém diz que ele foi vítima de um embargo de meio século por parte do Correio da Manhã e dos outros veículos por solidariedade. É uma vilania corporativa. Grande parte dos jornais e revistas têm nomes nas listas-negras. Isso é coisa do passado e continua hoje. Vou te dar um exemplo que faço questão de dar: houve um jornal que durante algum tempo só citava o meu nome em assuntos de imprensa, se a matéria citasse também o meu “oponente”, que é aquela besta do Carlos Alberto Di Franco, que escreve no Esta-

dão, que é o homem da Opus Dei aqui no Brasil, teórico de comunicação. Como o Di Franco é muito fraco, agora estão inventando um outro nome. Num outro dia vieram me entrevistar para um jornal, que também não vou citar o nome, para falar sobre os vespertinos. O repórter me entrevistou e quando terminou ele falou que tinha que entrevistar o Matías Molina, porque a matéria tinha que ter o nome dos dois. Eu e o Matías Molina estamos travando uma polêmica sobre o papel da Inquisição no atraso brasileiro, a não comemoração dos 200 anos da nossa imprensa, o Hipólito da Costa. Ele numa posição e eu noutra. Já percebi que em determinados veículos, todos da ANJ, só irão citar o meu nome se aparecer o do Molina. É uma manipulação de noticiário de uma perversidade, de uma desumanidade! Se não concorda comigo, discorda no editorial! Quando um repórter me ligava do Zero Hora eu falava, “Meu caro, não me entreviste, porque não vai sair. Vai na direção da Redação e vê se você pode me entrevistar; se liberarem, eu te dou a entrevista”. E não voltava, porque eu critiquei muito o Nelson Sirotski, Presidente da ANJ. Ao contrário do tio dele, Jaime, que foi um excelente Presidente da ANJ, o Nelson foi péssimo. Então o jornal é dele e é ele quem determina quem pode ou não aparecer. Isso ainda existe na imprensa brasileira no século 21, em pleno Brasil democrático. Isso é medieval. E é perverso sob o ponto de vista humano, pois quer, digamos, matar uma pessoa. Porque a intenção é essa. Você não pode existir! Não é o caso do Roberto Civita, que é meu amigo. Mas como ele dá liberdade à sua Redação, ele também não pode confrontar! Naquela Redação da Veja o meu nome não podia sair.


Jornal da ABI – Isso também não é uma questão histórica de colonização?

Alberto Dines – É uma questão latino-americana. Cultura colonialista, ibérica, inquisitorial. É por isso que estou nessa guerra com o Matías Molina, porque a Inquisição deixou raízes muito profundas na cultura e na antropologia brasileira, na mentalidade brasileira. Os portugueses trouxeram um controle cultural absurdo, obscurantista. É importante dizer que os primeiros livros impressos em Portugal, depois de Gutemberg, ainda no século 15, não foram livros escritos em português, foram livros em hebraico. Pra você ver o quanto a Península Ibérica é retrógrada. A Espanha deu um salto depois da queda do Franco. É por isso que eu saúdo sempre o El País, o jornal que abriu a cabeça dos espanhóis. Ainda é um grande jornal. Foi ele que trouxe a Espanha para a Europa! Um jornal que transformou um país medieval num país moderno tem que ser louvado! Jornal da ABI – Não é estranho que na época em que o Senhor trabalhava na Abril a Veja não publicava o seu nome?

Alberto Dines – A Veja é a mesma empresa, mas sempre foi um outro vice-reinado, eu chamaria. A Veja era uma coisa e as outras revistas eram outra coisa. Inclusive, quem mandava nas outras revistas era o Tomás Souto Correia. Ele não tinha a menor interferência na Veja; o Roberto [Civita] tinha pouca, mas o Tomás nenhuma. E eu tive papel secundário na Abril, mas não vejo isso negativamente, porque a gente fez naquele período coisas muito importantes. Primeiro eu era Secretário Editorial, depois fui promovido a Vice-Diretor Editorial. Quer dizer, trabalhava com o Tomás, que era o Diretor Editorial. O Curso Abril foi criado na minha gestão. Quem começou isso foi a Editora Abril... Aliás, o primeiro foi no JB, que tinha cursos internos. Depois, quando a Abril estava lançando a Veja, deu cursos para preparar jornalistas para escrever uma revista semanal. Foi um negócio muito bem feito, mas depois parou. Quando fui para a Abril, o Roberto Civita me pediu também para organizar um curso. Eu fiz o Curso Abril de Jornalismo e o tornei regular, em convênio com os sindicatos. Os melhores alunos eram escolhidos e iam ser estagiários e depois se profissionalizavam. Fizemos também em parceria com a Gazeta Mercantil, que estava no seu auge e com apoio da ANJ, uma coisa importantíssima. Quem estava chefiando a

ANJ naquela época era o Mauricio Sirotski Sobrinho, que topou fazer um curso nacional para professores de Jornalismo. Trouxemos os melhores professores que pudemos chamar; gente do Brasil inteiro. Ficaram num hotel durante 20 dias. Foi fantástico. Eram professores teóricos, nunca tinham visto um jornalista nacional e de repente eles estavam ali conversando com jornalistas. Foi uma coisa muito boa. Jornal da ABI – O que o Senhor acha do ensino de Jornalismo no Brasil?

Alberto Dines – O ensino de jornalismo é fraco, eu acho falido embora muito rentável. E o ensino vai mal porque não tem a parte prática. O ensino de Jornalismo na Universidade de Columbia é mestrado, mas é profissionalizante. No primeiro dia você já vai pra rua fazer matéria ou para o jornal, agora deve ter um site também, ou para a rádio ou para o programa de televisão. A escola de Jornalismo tinha essa função: quebrar o cidadão civil e fazer dele um jornalista. Em toda essa discussão sobre o diploma, sempre tenho defendido o diploma, mas no círculo profissional sempre digo que o que nós temos que defender não é o diploma de graduação, mas um diploma de um mestrado profissionalizante. O importante seria o que a Abril está fazendo hoje. Isso eu acho legal: ela está fazendo um curso de mestrado profissionalizante com a ESPM. Então, há gente de todos os jornais. Agora mesmo a primeira turma se formou e os jornais estão pagando pelo aluno.

Uma nova vida no paraíso Jornal da ABI – Por que o Senhor se mudou para Portugal?

Alberto Dines – Com o sucesso de Morte no Paraíso, pensei em

“Isso ainda existe na imprensa brasileira no século 21, em pleno Brasil democrático. Isso é medieval. E é perverso sob o ponto de vista humano, pois quer, digamos, matar uma pessoa. Porque a intenção é essa. Você não pode existir!” escolher outro personagem que já estava na minha lista há algum tempo: Antônio José da Silva, o Judeu, que era carioca que revolucionou o teatro e a comédia em Portugal e foi executado pela Inquisição com 34 anos. Eu comecei a pesquisa aqui e me dediquei muito. Comprei o meu primeiro computador para começar a trabalhar o material do Antônio José da Silva. Era Scopus, um negócio imenso. Comecei a escrever e chegou um momento em que eu achava que o livro estava pronto e fui participar de um congresso sobre Inquisição em Portugal, em Lisboa. Apresentei um texto, uma contribuição, e aproveitei pra ir à Torre do Tombo, onde estão os documentos. Até então eu tinha trabalhado no meu livro com fontes impressas, fontes secundárias, não primárias. Quando cheguei lá vi que não podia escrever esse livro só com fontes secundárias, tinha que meter a mão nesses processos. Fui à Torre para fazer algumas anotações, mas quando vi aquele negócio falei: “Tenho que vir pra cá!” Uma amiga portuguesa que é paleógrafa me ensinou o básico da paleografia, de ler documentos antigos, que não é qualquer um que os lê. Século 18, pois, é mais recente, mas pega século 16 ou 17, que às vezes está em gótico! Você quebra a cara. Resolvi que tinha que viver em Portugal, pois o livro que eu havia escrito estava insuficiente. Comecei negociações com a Abril,

porque eles estavam querendo criar coisas lá. Mas ainda não tinham nada definido. Então decidi ir por conta própria! Foi uma maluquice! Eu não era mais criança! Tinha 56 anos, era um homem maduro! Mas pedi demissão e eles me deram uma indenização. Me candidatei a uma bolsa de uma fundação fantástica aqui de São Paulo chamada Vitae, me deram um dinheiro, disseram: “Fique o tempo que quiser, gaste como quiser, mas queremos depois uma obra.” Recebi uma aprovação, fiquei muito honrado e fomos para Portugal; eu e a Norma. Ela trabalhava no JB e conseguiu ser correspondente do jornal e eu ia ficar full time fazendo pesquisa. Fiquei na Torre do Tombo trabalhando em tempo integral. Morávamos num apartamento bom que conseguimos alugar perto e dava para ir a pé para o trabalho. Foram os sete melhores anos da minha vida! De vez em quando o então Diretor da Abril Raimundo Cohen ia lá me visitar, me convidava pra jantar. O Roberto Civita ia até Lisboa e a gente sempre se encontrava. Até que um dia o Raimundo me diz que o Roberto ia lançar umas revistas em Portugal e queria que eu assumisse a primeira delas. E me falou também que o sócio dele gostava muito de mim. O sócio português do Roberto Civita era o Francisco Pinto Balsemão, que tinha me conhecido na época do Jornal do Brasil! Foi uma coincidência extraordiná-

Durante a final da Copa do Mundo de 1982, em Barcelona. Ricardo Setti (esquerda), repórter de Veja conversa com Dines. Ao lado, Carlos Maranhão e Juca Kfouri, diretores da revista Placar.

ria! É que num determinado momento o Brito tentou fazer um jornal em sociedade com o Balsemão e eu fui conversar com ele! Era cultíssimo, excelente jornalista, um pouco mais novo do que eu, mas o negócio não foi em frente; eles não se acertaram. Mas de repente o Balsemão cresceu muito em Portugal e se tornou sócio do Civita. E quando o Civita quis lançar a revista Exame o sócio seria o Balsemão e o Civita sugeriu o meu nome e ele disse: “Mas é claro, eu o conheço muito bem”. Então, foram dois patrões ótimos, mas ficou mais duro pra mim. Eu trabalhava de manhã na Torre do Tombo até 14h, ia a pé para minha casa, comia, pegava meu carro e ia para a Abril, que não era muito longe e trabalhava na revista, que era mensal. Foi um sucesso. Foi a primeira revista de economia e negócios de Portugal. Lá não tinha isso, esse gênero não existia. E continuei fazendo a minha pesquisa. Foi um trabalho puxado. Eu li cerca de 400 processos inquisitoriais. Eu peguei a família do Antonio José da Silva desde o século XVII e fui acompanhando eles todos. Fiz um livrão de mil páginas! E foi só o Tomo 1. Jornal da ABI – E o segundo volume quando sai?

Alberto Dines – Eu tenho um compromisso de finalizar o Tomo 2, ou nesta vida ou na outra e já estou com a pesquisa pronta! E o que tenho a contar é sensacional. Se quiser eu conto em apenas 10 laudas. Mas vou escrever muito mais. Felizmente eu tive um patrocinador muito legal. O José Mindlin estava querendo lançar um livro em 1992 pelos 500 anos da descoberta da América. Mas também são os 500 anos da expulsão dos judeus e dos mouros da Espanha. Foi uma comoção muito grande. Muitos dos acompanhantes de Colombo eram judeus porque se eles ficassem na Espanha ou se convertiam ou seriam mortos. Calculava-se que 30% da população espanhola era de judeus. E os mouros, naquela mesma ocasião, também foram expulsos, já tinham perdido a guerra. E o Mindlin estava querendo publicar uma coisa que lembrasse essa saga da expulsão e ele era muito amigo do José Safra, dono do Banco Safra. E o Safra topou bancar um livro sobre o evento. Então o Luiz Schwarcz, que era muito amigo do Mindlin, soube e disse que ia lançar o meu livro. Ele me telefonou e eu enviei uma sinopse do livro. O Safra gostou da idéia, deu os incentivos fiscais pro Luiz e ele lançou uma edição caprichadíssima, com capa dura.

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“O erro é quando você confunde a militância jornalística com uma lealdade política.” Jornal da ABI – Na realidade, quando o Senhor decide escrever biografias sobre judeus acaba contando histórias universais, não é verdade?

Alberto Dines – Sim! Sobre a História da cultura brasileira. Algumas pessoas me dizem sem maldade alguma que eu estou muito preso a uma só temática. Mas estou preso da mesma forma que Tolstoi estava preso à temática russa ou José de Alencar, que só escreveu sobre temas do Ceará.

Jornal da ABI – E como foi seu retorno ao Brasil?

Alberto Dines – Eu comecei a ver muitos problemas na Editora Abril de Portugal. As pessoas que estavam lá metiam a mão e eu botei a boca no trombone. Falei para o Roberto Civita que estava na hora de eu voltar para o Brasil. Os sujeitos faziam o que queriam, metiam a mão no bolso e eu não ia compactuar com isso. Então o Balsemão me convidou para trabalhar com ele. De 1992 até 1995 fui consultor do Grupo Balsemão. Ele tinha o maior semanário chamado Expresso, semanário clássico, que era muito bom. Ele tinha também revistas e depois começou com televisão. Mas eu estava mais como consultor da mídia impressa dele. Tive um problema de saúde lá e vim ao Brasil me tratar. Era tuberculose. Fiquei um mês aqui, mas voltei para Portugal.

Finalmente, o Observatório Jornal da ABI – Mas como a Unicamp entra na sua vida?

Alberto Dines – Quando eu estava doente, me recuperando no Brasil, já estava muito preocupado com a imprensa brasileira. Tinha havido o impeachment do Collor e vi a imprensa se desmandando; estavam fazendo coisas absurdas só porque ganharam uma parada. Acho que está na hora de criar um estudo sistemático sobre mídia. De novo aquela história dos Cadernos de Jornalismo. Comentei com o Luiz Schwarcz que queria fazer um curso de pósgraduação de imprensa para estudar com seriedade. E ele me indicou o Carlos Vogt, Reitor da Unicamp, porque era muito aberto, topava tudo. De Portugal passei um fax pra ele dizendo que queria fazer um instituto, um centro de estudos sobre a mídia. Argumentei que a mídia estava fazendo as mesmas burradas de quando houve o Watergate nos Estados Unidos. Mas lá eles discutiram, e aqui ninguém está discutindo nada. Coincidentemente, ele estava indo a Paris e passou em Portugal antes para conversarmos. 22

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Foi um fim de semana em Lisboa. Coloquei-o num hotel fantástico e levei-o aos melhores restaurantes. E ele gostou muito da idéia e me disse: “Estou deixando a Reitoria e agora fico mais livre para coordenar esse projeto sob o ponto de vista acadêmico”. Depois trocamos idéias e ele sugeriu fazer um laboratório. E eu dei o título Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, inspirado no que o Einstein tinha feito com a Física, antes da bomba atômica, o Laboratório de Estudos Avançados em Física. Houve um lançamento do Labjor com participação da grande imprensa. Roberto Civita falou, outros empresários falaram. Começamos a bolar algumas coisas e eu já sabia que teria que voltar para o Brasil. Foi um período que eu vinha muito ao Brasil a convite. Pagavam minha passagem e eu vinha. Em 1995 resolvi voltar. Minha mulher não gostou muito e ficou um pouquinho mais, pois o Augusto Nunes, que era o Diretor de Redação do JB, bancava todas as coisas que ela propunha e ela estava muito feliz lá. Mas um dado curioso é que o nome “Observatório da Imprensa” foi pensado em Portugal. Enquanto eu estava criando o Laboratório aqui, um grupo de jornalistas portugueses jovens, mas também muito preocupados com a profissão, me procurou porque queriam fazer um grupo de estudos. E falei com eles do Labjor de Campinas. Imaginei até que poderíamos fazer um intercâmbio. Quando voltamos a nos encontrar, eles me falaram o nome que haviam pensado: “Observatório da Imprensa”. Falei que os franceses tinham acabado de lançar o “Observatoire de La Presse”, era um negócio pequeno que nem prosperou. Excelente nome. Lá fizemos o Observatório e aqui fizemos o Laboratório. Fizemos muitos projetos em Campinas. Mas eu achava que estávamos falando pra nós mesmos, para jornalistas, estudantes ou professores de Jornalismo. Eu achava que já era hora de falar para toda a sociedade, porque é ela que faz toda a massa crítica, ela que vai dizer se a imprensa está boa ou não está. Aí fizemos um monte de reuniões em Campinas pra decidir o que iríamos fazer. Um jornal? Uma revista? Surgiram mil idéias. Mas um dos companheiros mais jovens, que eu havia conhecido no JB, chamado Mauro Malin, falou: “Por que a gente não experimenta uma coisa nova? Tem a internet aí, e não precisa imprimir, põe na internet e cria um veículo”. A idéia era interessante. Falamos com Vogt, que sempre estava muito ligado às novas tecnologias. Ele gostou e apresentou um

projeto no Ministério de Ciência e Tecnologia. Nessa época estava começando o grupo gestor de internet. Apresentamos o pedido e eles bancaram os custos para pagar as despesas de montagem do site. Mas surgiu a dúvida: “Como vamos chamar o site?” Eu pedi licença aos portugueses para usar o nome Observatório da Imprensa. Eles permitiram que a gente utilizasse o nome. Depois fiz pesquisas. Vi que o conceito de observar era extraordinário porque ao observar um fenômeno você não apenas o observa, mas você está interferindo no fenômeno. Em matéria de imprensa isso é ótimo, porque não se está fiscalizando; está observando. Está observando, mas o objeto observado está se sentindo observado e muda seu comportamento. Esse é o chamado científico do Observatório: a mídia tem que se sentir observada, porque aí ela muda seu comportamento. E muda mesmo, acho que ela evoluiu muito. Embora em muitas coisa ainda não. Tivemos a sorte de logo depois começar o Uol e o Caio Túlio sugeriu que ficássemos hospedados lá. E foi ótimo, porque tivemos mais exposição, estávamos num portal. À medida que o Uol crescia, nós crescíamos também. Depois tivemos problemas com o Uol e não renovaram. Então passamos pro Ig e passamos a cobrar pelo conteúdo. Isso nos permitiu começar a pagar as pessoas direitinho. Jornal da ABI – E como o Observatório vai para a televisão?

Alberto Dines – Foi a antiga TVE, do Rio, que me procurou querendo fazer um programa parecido com o Observatório da internet. E eu falei: “Parecido não. Vai ser igual.” E eu percebia que havia interconectividade entre as mídias. Tentamos fazer coisas naquela época que se mostraram impossíveis por falta de tecnologia; não havia banda larga. Depois foi tudo mais fácil. E estamos fazendo há quinze anos. O Observatório passou a ser semanal, ficou maior que o Labjor, e tinha que ter liberdade para publicidade. Então ficamos separados de Campinas e criamos nosso próprio Instituto, que se chama Instituto para o Desenvolvimento do JornalismoPróJor. Está crescendo muito porque ele vai ter atividade além do Observatório. Antes o PróJor e o Observatório eram praticamente a mesma coisa. Agora, estão surgindo núcleos de negócios que são diferenciados. Sempre ligados a mídias, sempre ligados a estudos, sempre independentes, nunca a serviço de partidos políticos. Jornal da ABI – Falta espaço para o bom jornalista? Muitos pro-

fissionais ficam reclamando que o mercado está ruim, que não têm espaço...

Alberto Dines – Que não têm oportunidade! Pois é... o profissional tem que criar o seu próprio emprego. Eu criei o meu emprego e o de mais quinze pessoas. Se o mercado está fechado, você tem que criar suas alternativas. Sobretudo agora com todas essas mudanças tecnológicas. Nós fizemos o Observatório da Imprensa... Hoje, o número de pessoas que querem escrever em nosso site é enorme. Há uns que falam que querem escrever toda semana de graça. Então, o profissional tem que criar alternativas. Hoje nos Estados Unidos e na Inglaterra estão surgindo alternativas muito interessantes de propriedade jornalística, tipo empresa não lucrativa. E isso tem que ser fortalecido no Brasil. A imprensa comunitária americana foi a que mais sofreu com a chegada das novas tecnologias e começou a fechar. E a democracia americana funciona porque ela é capilarizada pelo país inteiro, inclusive a partir dos pequenos jornais, pequenas comunidades que eram símbolos da fiscalização, da denúncia. Então surgiu um novo formato que já está adotado plenamente: é a entidade não lucrativa; nonprofit organization, como eles chamam. Com isso, ela não paga imposto, está liberada de um ônus terrível. Sendo não lucrativa você passa a ter vantagens espetaculares. Um dos melhores jornais do mundo é inglês; chama-se The Guardian. Ele é nonprofit; pertence a uma fundação. Jornal da ABI – A internet pode ser uma arma fundamental nesse segmento.

Alberto Dines – Pois é! Se você faz um veículo nonprofit na internet, você tem duas vantagens: não precisa fazer a impressão e não tem que ter distribuição de lucros, não paga impostos. Tem que se encontrar uma forma brasileira para criar essa nova modalidade de negócio, isso tem que ser estudado. Nós no Observatório começamos naturalmente. Vamos começar a fazer um veículo nosso, temos anúncios, pagamos salários, mas não temos acionistas e não temos a obrigação de dar lucro e não pagamos impostos. Existem fórmulas muito interessantes de organizar uma imprensa livre, equilibrada, se você usar o que há de novidade. Jornal da ABI – Por falar em alternativas de veículos, você participou da criação da Caros Amigos, não é?

Alberto Dines – O título Caros Amigos é meu... Começou aqui pertinho no escritório do Sergio [de Souza], e tudo começou quando eu voltei de Portugal com essa idéia de fazer um veículo cooperativo de jornalistas. Aqui ao lado morava o [José Carlos] Marão, um grande jornalista da revista Realidade; o Juca Kfouri vinha às reuniões também. A gente se encontrava às sextas-feiras no fim do expediente e fizemos o projeto. O título foi meu. A plataforma editorial foi minha. Só que quando eles fizeram a número zero, vi que virou um negócio da esquerda furiosa. Aí eu saí, saiu o Juca Kfouri, o Hélio de Almeida – que era o designer que nós tínhamos trazido – também não quis continuar. Então eles lançaram o jornal – e aí eu não discuto a qualidade – mas que era um jornal com uma opção ideológica que nós não pretendíamos. O projeto editorial de Caros Amigos era totalmente diferente e eles sempre negavam isso. Depois de muitos anos, quando eles comemoravam os aniversários da publicação e eu escrevia no Observatório que não estavam contando a verdade, aí eles passaram a admitir isso. O erro é quando você confunde a militância jornalística, a devoção ao jornalismo com uma lealdade política. Você está certo hoje, mas pode estar errado no dia seguinte. Jornal da ABI – Mas se consegue fazer um jornalismo que não tenha um viés político?

Alberto Dines – Eu acho que o Observatório da Imprensa consegue. Foi muito amargo esse período de radicalismo político do Brasil... e que existe até hoje! A imprensa brasileira está polarizada politicamente, de parte a parte. A maioria é... vamos chamar de conservadora ou neoliberal, para simplificar; a minoria é de esquerda, e eu acho que ambas estão erradas. O Observatório da Imprensa dá os dois lados. Acho que o jornalista tem que desencarnar da política, ter um conhecimento político muito grande a ponto de não ser um militante partidário. Conhecer política é uma coisa, ser militante partidário é outra. E é aí que as coisas ficam complicadas.

Jornal da ABI – Queria que o senhor falasse um pouco sobre o Mindlin e o projeto de fazer um fac-simile de todo o Correio Brasiliense.

Alberto Dines – Tudo isso está muito intercalado. Conheci o Henrique Mindlin, irmão dele, que era um grande arquiteto e desenhou o prédio novo do JB. E o Mindlin eu conheci quando


Encontro de gigantes: Millôr Fernandes e Alberto Dines em junho de 1981, no Recife.

lancei o Morte no Paraíso. Ele foi ao lançamento e comprou cinco exemplares porque queria dar de presente. Ficamos amigos, um homem simpaticíssimo! Impossível não ser amigo dele. E depois, quando a gente já estava embalado no projeto do Observatório, fizemos três congressos internacionais, em parceria com o Observatório português; o Congresso Internacional de Jornalismo da Língua Portuguesa. Um aconteceu em Recife, um em Lisboa e outro em Macau, quando Macau já ia deixar de ser portuguesa. Quando a gente fez o Congresso em Recife, em 2000, eu quis dar um brinde para os congressistas. E a idéia que tive foi a de fazer a edição fac-similar das quatro primeiras edições do Correio Braziliense reunidos num volume. O Hipólito da Costa também é importante para Portugal, porque o Correio Braziliense foi o primeiro jornal sem censura em Portugal. Falei com o pessoal da Imprensa Oficial [de São Paulo], com o Sérgio Kobayashi, que era o Presidente, um jornalista agilíssimo, um cara formidável, e ele topou. Fez um convênio com o Correio Braziliense de Brasília. Fizemos uma tiragem pequena e publicamos alguns artigos; o Mindlin escreveu um. Quando foi distribuído no Congresso, todo mundo elogiou. E aí eu tive a idéia de fazer a coleção inteira. Falei com o Sérgio Kobayashi e ele topou. E aí começamos do zero! Refizemos o tombo 1 e os outros 29 volumes. E aí o Mindlin foi formidável, porque ele tinha quase três coleções completas – duas e meia na realidade – e nos cedeu para realizar esse trabalho. Então, quando um exemplar não estava bom numa coleção, geralmente estava na outra. E a equipe de artistas gráficos da Imprensa Oficial era extraordinária. Era tudo fotografado, e quando uma palavra tinha uma letra no original que estava esgarçada eles, que já tinham feito uma cópia de boa qualidade de todas a letras utilizadas no Correio Braziliense, aplicavam a letra corrigida e o texto ficava restaurado. A qualidade dessa impressão é melhor que o original do Mindlin. Conseguimos fazer isso em dois anos e meio. Fizemos 29 volumes; o trigésimo volume com ensaios sobre o Hipólito, do Correio Brasiliense, e mais um volume de índice. Deste fizemos o fac-símile em convênio com a Biblioteca Nacional, porque eles tinham nos anos 1970 um índice que estava esgotado. Então a Biblioteca Nacional nos emprestou um exemplar para reproduzirmos. Jornal da ABI - Para encerrar, o Senhor poderia dar um depoimento sobre Paulo Francis?

de de conteúdo. Pegou a literatura grega e romana, mandou traduzir e publicou. Gutemberg inventou a imprensa, mas a única coisa que fez foi a Bíblia. Ele não fez mais nada em termos de conteúdo nem de formato. O Aldus inventou o formato pequeno, a portabilidade! Jornal da ABI – Uma palavra tão em moda hoje...

Alberto Dines – Eu conheço o Paulo Francis... desde sempre. Ele enfrentava o ambiente cultural e intelectual do Rio de Janeiro e eu também. Nos encontrávamos muitas vezes. Na minha saída do JB ele escreveu, na Tribuna da Imprensa, artigos muito candentes a meu favor contra o Jornal do Brasil. A Tribuna estava dando uma grande cobertura sobre a minha demissão e ele escreveu belos artigos e eu fiquei muito grato a ele. Depois quando fui pra Nova York, ele já estava lá e eu ia à casa dele, não muito, porque não queria incomodar; ele tinha uma vida reclusa. Mas fiquei amigo da mulher dele, a Sônia Nolasco... Jornal da ABI – Ele fazia um tipo e gostava de fazer umas frases de efeito para provocar, não é?

Alberto Dines – Primeiro ele tinha uma atitude iconoclasta, de destruir todos os ídolos e, ao mesmo tempo, também tinha uma embocadura de ídolo, se apresentava com a palavra final. E tinha competência pra isso, tinha cultura, sabia o que falava. Música, teatro e na política era trotskysta, um seguidor do Isaac Deutscher, biógrafo do [Leon] Trotsky. Mudou-se para os Estados Unidos e lá encontrou o ambiente dele, Nova York com toda aquela ebulição cultural. Depois, quando voltei pro Brasil, continuei indo muito a Nova York. Numa dessas idas, em 1979, nos encontramos e ele me perguntou: “O que você está fazendo?” E eu respondi que estava escrevendo a biografia do Stefan Zweig. Aí ele falou uma frase que pra mim foi importantíssima: “Esse é o livro que eu gostaria de escrever!” Porque ele era de Petrópolis e conhecia a trajetória do Stefan Zwieg. Aí eu falei: “Então estou no caminho certo!” Acho que ele foi massacrado pelo sistema jornalístico. Pagavam bem, mas tiravam o couro. Hoje há muita gente nas grandes

empresas jornalísticas que ganha bem, mas é escravizada. Não vou citar nomes porque as pessoas estão aí e não quero prejudicálas. Trabalham em horários malucos, todos os dias, fazendo mil coisas. E com o Francis foi assim. Na Folha o obrigavam a fazer uma página inteira diária! Isso não existe. Depois ele se chateou com a Folha e foi para o Estadão e lá continuou fazendo essa página diária! É muita coisa, ninguém agüenta. Ele era desatento, mas mandava os textos sem fazer uma revisão e depois enviava uma errata. Os textos foram perdendo a qualidade porque ele tinha que produzir quantidade. Ele também escreveu alguns livros; se tivesse tido um pouco mais de tempo, teria feito livros melhores. A literatura dele não faz jus ao seu talento e inteligência. Tinha uma vida inteiramente desregrada e fazia televisão, fazia não sei mais o quê. O coração dele não agüentou. Teve dois dias de dores nos ombros e no terceiro ele se foi. Era um período em que o Francis estava muito preocupado porque escreveu uma asneira contra a Petrobras, e a Petrobras o processou na Justiça americana. E lá a Justiça funciona! Ele ficou muito preocupado com isso, teve um infarto e morreu. Mesmo quando eu morava em Portugal, ia a Londres encontrar o Ivan Lessa, que eu conhecia do Pasquim, e eles eram muito amigos. Então, fui várias vezes a Londres e encontrava o Ivan e o Francis por lá também. Havia aí uma patota carioca, de um Rio de Janeiro que já não existia naquela época e hoje muito menos. Então, o Francis foi uma vítima do sistema. Se tivesse se preservado, ele poderia ter produzido mais coisa e não teria morrido tão cedo. Jornal da ABI – Voltando às novas tecnologias, o Senhor acredita que estamos próximos do final das publicações impressas em papel?

Alberto Dines – Não acho que vai ser um final definitivo e não vai ser tão traumático quanto se apregoa. Há cinco ou seis anos se fala do fim do papel e o papel está aí, no Brasil está explodindo. Eu não sei se o tablet vai substituir as publicações de papel. O El País, por exemplo, é um formato tão conveniente, tão agradável. Só acho que o jornal vai ter que se adaptar, vai ter que se complementar. Ele terá que fazer o que a internet nunca conseguirá, porque a internet não amarra, ela é fragmentária. Eu acompanho a edição online do New York Times o dia inteiro e eles não conseguem amarrar a notícia toda, porque a notícia está acontecendo. Eu acho que o papel não acabou e não vai acabar. O que vai acontecer é a convivência que sempre existiu. O processo de divulgação de informações, de conhecimento, vai agregando tecnologias. O cinema está aí, o rádio está aí, a televisão está aí. A internet vai entrar na televisão. O que vai acontecer agora é que na sala de estar você vai poder acessar a internet na tela grande, ver um filme, ler um texto. Então, eu sou otimista. Não vejo o apocalipse, eu vejo a conjunção. Jornal da ABI – Mas essa garotada, essa nova geração mais próximadasnovastecnologias,nãosente dificuldade em manusear o papel?

Alberto Dines – É possível, mas a gente não pode dizer que talvez eles não cheguem ao papel como uma forma de evolução. Não posso garantir. Mas na História do mundo, nos últimos três mil anos de formação, nenhum veículo foi abandonado. Claro, o rolo de pergaminho não se usa mais, mas criou-se o livro. O Gutemberg não inventou o livro. O livro existia antes dele. Quem inventou o livro como formato foi a Aldo Manúcio no século 15. Ele foi o primeiro editor e criou o livro como nós o conhecemos. E ele criou varieda-

Alberto Dines – Pois é! Naturalmente ela não existia naquela época. [risos] Então, vejo as coisas evoluindo sempre de forma convergente. Convergência de tecnologias, suplementação. O ser humano não abre mão daquilo de bom que ele inventou. Quer ver? Navegação a vela! Agora estão lançando modelos de navios de energia limpa movidos a vela, mas são com computadores que permitem que as velas girem rapidamente para aproveitar melhor o vento. A pólvora existe, a bússola existe, o remo existe, de tudo que se inventou o ser humano não abre mão. As coisas ficam mais sofisticadas. Então vejo o caminho da convergência. E, sobretudo na nossa profissão; o jornalismo em si é um armador, um arrumador, um desfragmentador. O jornalismo junta os cacos pra fazer um todo. E para isso é necessário uma tecnologia unificadora; não pode ficar fazendo jornalismo a cada dois segundos, porque você não consegue. Jornal da ABI – Mas muitos jornais diários estão tentando imitar a internet. O Senhor não acha isso um equívoco?

Alberto Dines – Exatamente. Mas o tablet é ótimo e veio pra ficar. Já existe smartphone um pouquinho maior que une o tablet e o telefone num aparelho. Mas, na medida em que há a compactação dos aparelhos e tudo fica menor, mais vantagens você dá ao veículo impresso. Porque o segredo do veículo impresso é que tem notícia aqui que fica ao lado de outra, e aí você vê a importância de uma e de outra. Compara. Se você tem coisas muito pequenas, você tem que miniaturizar, e aí você perde o poder de comparação. O tamanho e a posição na página, a hierarquia do que é mais importante. Você abre uma página de portal e tem tanta coisa que se perde a noção do conjunto, não se sabe a importância e a hierarquia de tudo, porque não cabe na tela. E no jornal você tem a possibilidade de folhear e vê tudo. E claro que se vai encontrar alguma fórmula intermediária para melhorar isso, não tenho a menor dúvida. Só não tenho a pretensão de acompanhar isso, não vai dar. [risos]

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LIBERDADE DE IMPRENSA

SIM, TIM MAIA ERA ASSIM Polêmica em torno de foto do publicada no Facebook coloca em choque a produção de uma fotógrafa e os interesses dos representantes legais do cantor. Como principal vítima da censura póstuma, agoniza a liberdade de expressão. P OR P AULO C HICO

“Não fumo, não bebo e não cheiro. Mas, às vezes, minto um pouquinho”. A frase é quase tão genial quanto o artista que a proferiu e o traduz com desconcertante exatidão. Assim era Sebastião Rodrigues Maia, ou simplesmente Tim Maia. Pensando bem, nada em Tim era simples. A começar pelo talento musical, que mal cabia no físico corpulento que ostentava muitos quilos a mais do que pregaria qualquer cartilha médica. E, claro, passando pela capacidade inesgotável de viver e criar confusões, turbinadas pelo uso excessivo de álcool e drogas. Chegou-se mesmo a criar em torno do cantor a lenda – verdadeira, garantem alguns – de que era comum o registro de sua ausência aos próprios shows, quase sempre por estar detonado, fora de combate. Sem condições de subir ao palco. Mesmo depois de morto – faleceu em 15 de março de 1998, aos 55 anos –, o artista alimenta polêmicas, ainda que involuntárias. A mais recente envolve uma fotógrafa e seu ofício. O nome dela é Luciana Whitaker. É ela quem conta como foi seu encontro com o dono da voz mais grave da MPB. “Editando fotos, encontrei uma nunca publicada. Tim Maia tinha hora marcada para receber a reportagem da Folha de S.Paulo. Cheguei lá, no apart hotel da Barra, no Rio. Ele estava de camiseta rasgada e… cueca! Com o rádio muito alto, não conseguia escutar as perguntas do repórter – acho que era o Marcelo Migliaccio. Pediu para eu desligar o som. Olhou minha mão em seu aparelho e disse: ‘Hum, que mãozinha gostosa…!’ Fiquei braba e acabei fazendo a foto dele de cueca mesmo.” A foto mostra um Tim meio combalido, por inteiro à vontade, exatamente como era seu costume transitar pelos bastidores do mundo artístico. Irritada com os galanteios nada sutis de Sebastião – sim, o cantor era um inveterado mulherengo –, Luciana fez o clique que, por cerca de duas décadas, repousou em segredo em seu baú. Somente ao revirar seu acervo reencontrou as lembranças daquele dia. Não pensou duas vezes. Numa sexta-feira, dia 27 de janeiro, publicou a imagem, até então inédita, em seu Facebook. Na noite seguinte à publicação, centenas de pessoas já haviam compartilhado a postagem. O que Luciana não esperava, no entanto, ocorreu alguns dias depois. 26

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“Eu acabei retirando a foto do Facebook por conta da carta formal que recebi dos procuradores do Tim Maia, dizendo que a foto era degradante, e pedindo para eu retirá-la do ar. Como não tenho o menor interesse em agredir ninguém, fiz o que pediram, apesar de a foto não ter sido ‘roubada’ e sim feita com hora marcada. A

carta é do dia 31 de janeiro. E essa foi a noite que eu a retirei. Naquela altura já tinha 953 compartilhamentos”, contou Luciana ao Jornal da ABI. Ainda surpresa com a reação dos representantes do cantor, a fotógrafa imediatamente escreveu para um blogueiro que havia pedido autorização para colo-

car a foto em seu blog. “E ele a retirou. Passei vários e-mails para os blogs que publicaram a foto sem minha autorização pedindo que a retirassem do ar e logo passei uma mensagem para minha advogada. Ela disse que eu agi corretamente”, recorda Luciana, para quem a reação dos representantes legais do cantor difere e muito das respostas dos fãs. “A reação das pessoas a essa foto na minha página foi positiva. Fiquei até bastante impressionada de ver como todos louvavam o jeito de ser do Tim Maia. Na minha página ninguém comentou que a foto era degradante. Ao contrário, todos falaram que era a foto mais ‘Tim Maia’ que já tinham visto! E que achavam legal isso.” A experiência relatada por Luciana é por ela classificada como uma espécie de censura. “Sim, acho que sofri censura, mas como não tenho intenções entrar numa batalha judicial, não foi uma grande questão retirar a foto do ar... Tampouco tenho intenções de polemizar mais essa questão. Imagino que os procuradores do Tim também não, se eles não querem expor mais essa foto.” Um dos primeiros a compartilhar a controversa imagem de Tim Maia feita por Luciana foi Sandro Fortunato, jornalista, fotógrafo e editor do portal Memória Viva, que logo saiu em defesa da colega. “Sou jornalista e fotógrafo há mais de 20 anos, tendo trabalhado a maior parte do tempo na área cultural. Sou fã do Tim. Na minha opinião, jamais houve melhor cantor na história da música brasileira. Nessa foto, só consigo ver o retrato fiel do porra-louca que ele sempre foi e do qual se orgulhava muito de ser. Grande cantor, grande artista, grande beberrão, mulherengo e safado. Em resumo: um ser humano. Cheio de potencialidades, de boas e más qualidades, de defeitos e contradições. Assustar-se ou achar degradante essa foto é não entender que Tim era assim. Não se importava com aparências, com o que pensavam dele, com con-

O blog do jornalista Sandro Fortunato antes e depois da carta dos procuradores de Tim Maia: a foto proibida foi feita com a aprovação do cantor durante uma entrevista. Ele, que sempre desafiou as convenções da sociedade, certamente reprovaria a censura.


DIVULGAÇÃO

Luciana recebeu uma carta formal dos procuradores de Tim Maia dizendo que a foto era degradante: “Sofri censura, mas não tenho intenção de agredir ninguém”

venções sociais”, diz Sandro, que segue em sua análise: “Em bom e claro português: a foto é do caralho! Nem dá para imaginar o impacto que teria se estampada na Folha de S.Paulo dos anos 1990. A Luciana não diz quando foi feita, não sabe precisar a data. Mas creio que tenha sido naquela década. O impacto, enfim, veio agora, muitos anos depois da morte de Tim e pelo Facebook. A meu ver, um impacto positivo. A imagem é a cara dele, sem talquinho ou água de colônia. Mais que histórica, a foto é honesta!”, entusiasma-se. Luciana Whitaker esclarece que a Folha de S.Paulo não publicou a foto em sua edição, pois, quando chegou à Redação indignada com as agressões sexuais cometidas pelo Tim na frente de repórteres, ela própria as contou em detalhes ao Diretor. “E nem falei disso no meu post de Facebook... Na época, a direção da Redação também se indignou com aquela situação que eu havia sofrido e resolveu não publicar a matéria”, recorda. Censura póstuma

Em entrevista ao Jornal da ABI, Sandro Fortunato lembrou do impacto que a foto causou nas redes sociais: “Vi a imagem no mesmo dia em que Luciana a postou. Compartilhei-a no dia seguinte pelo perfil do Memória Viva no Facebook e comecei a ficar chocado com alguns comentários que a achavam ‘degradante’ e ‘depreciativa’. A partir daí, escrevi em meu blog o texto Retrato do Grão-Mestre Varonil, no qual falava da foto, dizendo que talvez fosse ela a primeira imagem realmente icônica de Tim Maia. Fiquei sabendo da censura – e não há outra palavra para definir isso – pela própria Luciana, que entrou em contato comigo, dizendo que ‘os procuradores de Tim Maia’, provavelmente médiuns, para terem contato e saber o que ele quer ou não, haviam pedido que ela retirasse a foto do ar. Em respeito a Luciana, que havia autorizado o uso da mesma, tirei a foto do texto postado e a substituí por um aviso sobre a censura”.

Surpreso, Sandro diz não se lembrar de outro caso de censura desse tipo. “Creio que este seja o primeiro episódio de censura póstuma à foto de um artista. E acredito que ela esteja intimamente relacionada a algo que ainda é muito novo – em muitos sentidos – para nós: a liberdade de expressão e o uso das redes sociais, onde não existem filtros. O que teria acontecido se, na época em que foi feita, a Folha de S.Paulo tivesse publicado a foto? Tim Maia seria idiota ao ponto de dizer que fora pego desprevenido? Poderia entrar com um processo contra o jornal e contra quem a fez. No máximo, ganharia algum dinheiro e o direito de que não fosse publicada de novo. Mas teria que peitar uma empresa grande, com bons advogados... Poderia até ganhar. Mas teria que abrir um amplo debate sobre direito de uso de imagem, liberdade de imprensa, até onde uma figura é pública, censura e até sobre hipocrisia.” No Memória Viva, Sandro Fortunato chegou a ser irônico, numa alusão à onda do ‘politicamente correto’, que parece rondar os meios de comunicação e a própria produção artística nacional – como os humoristas. Uma política conservadora. E que levada ao extremo beira a censura. “Alto, loiro, branco, olhos azuis, porte atlético, requintado, sem vícios e com uma educação de causar inveja à realeza britânica. Assim era Sir Sebastião Rodrigues Maia, o Belo Brummel da Tijuca, esse aí da foto. Qualquer relação com aquele menino preto, gordo e pobre, preso várias vezes nos Estados Unidos e no Brasil, que bebia, fumava maconha, cheirava cocaína, arranjava confusão com meio mundo e que, adulto, atenderia pelo nome de Tim Maia, é criação de alguma mente desequilibrada”, provocou. Os herdeiros censores

Enquanto segue sendo merecedor de homenagens, como a longa temporada carioca da peça musical Vale Tudo, na qual é interpretado com exatidão por Tiago Abravanel, Tim Maia acabou alvo de, pelo menos, outro tipo de censura. E, vejam só, em pleno carnaval de rua do Rio. A nota Liberem o Tim, publicada na coluna Gente Boa, de Joaquim Ferreira dos Santos, em O Globo de 9 de fevereiro, informava: “Os herdeiros de Tim Maia não autorizaram o bloco Estratégia, que homenageia o cantor, a usar músicas dele. A turma desfilou segunda-feira, na Lavradio, com repertório de canções gravadas por Tim, mas de outros autores”. “Os representantes do cantor parecem desconhecer aquele a quem dizem representar, tratam-no como um incapaz que não soubesse o que estava fazendo, que foi pego de surpresa por uma diabólica fotógrafa que não esperou que ele montasse uma fantasia para parecer um lorde inglês. E, com isso, tentam reescrever a história. E a biografia de Tim Maia escrita por Nelson Motta não atinge a honra e mancha a imagem do cantor? Não. Porque é escrita, estamos em um País onde se lê pouco e quem lê não é tão idiota a ponto de querer mascarar a verdade. Mas imagine se a TV Globo resolvesse fazer uma mini-série baseada no livro. Não poderia nem pensar em mostrar, cena sim, cena não, o personagem cheirando cocaína ou fumando maconha”, diz Sandro.

O responsável pelo Memória Viva ainda fala sobre o aspecto legal do veto sofrido por Luciana, que, formada em Comunicação Visual pela Puc-Rio, atua como fotógrafa freelancer, fotojornalista e documentarista, com trabalhos publicados em diversos jornais, revistas e agências de notícias no Brasil, Estados Unidos e Europa: “Na prática, o que vemos é que o direito de imagem é algo ainda muito vago e aberto a interpretações e intervenções desse tipo. Em uma época muito recente, quando um fotógrafo trabalhava com filmes e era contratado com exclusividade por uma empresa que bancava sua produção, a quem pertencia o direito de uso de uma foto? A quem aparecia nela, a quem fotografou e a quem pagou pelo serviço. É óbvio que se você é uma figura pública, recebe jornalistas e fotógrafos para uma matéria, já está concordando em ter sua imagem utilizada”, sentencia. Contudo, a internet veio também para mexer nesses conceitos. “Décadas depois,

quando a pessoa que aparece na foto já morreu e o fotógrafo não tem mais vínculo com a empresa que o contratou, a quem pertencem tais direitos? E se, nesse intervalo, apareceu um negócio chamado internet, onde a informação não é mais vendida, mas corre livremente, e a publicação é feita sem qualquer fim lucrativo, meramente por curiosidade ou interesse histórico? Quem tem o direito de dizer que essa imagem pode ou não ser mostrada? Se você é um fotógrafo desamparado usando uma rede social, qualquer doutor por decreto imperial pode parecer muito ameaçador. Se você faz parte de uma corporação que compra sua briga – e acho que, neste caso, ela deveria ser formada por todos nós, fotógrafos e jornalistas, na luta para manter a verdadeira liberdade de expressão –, a discussão vai para outra esfera e não fica no ‘cala a boca, jornalista!’, comum nos anos de ditadura e proibição”, sugere Sandro Fortunato.

Jornal de Sorocaba perde ação de danos morais contra a Igreja Universal As notícias não podem deixar de ter comprometimento com a realidade, sustentou juiz de São Paulo na sentença condenatória. O Diário de Sorocaba foi condenado a pagar R$ 20 mil de indenização por danos morais à Igreja Universal do Reino de Deus, em razão de reportagem que fez sobre a cobrança de dízimo, em junho do ano passado, sob o título: Quem não paga dízimo à Universal pode ficar com o nome sujo no SPC”. “Quanto ao seu conteúdo, o requerido não demonstrou possuir o mínimo de veracidade. Notícias como essa, publicadas sem o mínimo de comprometimento com

a realidade, escapam do conceito de liberdade de expressão e dão ensejo, em tese, ao dever de indenizar ”, disse o Juiz Mário Gaiara Neto, da 3ª Vara Cível. Alegou a Igreja Universal que a matéria causou prejuízos à sua honra e imagem, além de ser falsa e tendenciosa, por sugerir que a prestação de assistência espiritual tem fins lucrativos. O jornal, por sua vez, alegou que as informações contidas na notícia vêm sendo discutidas na internet e em outros meios de comunicação.

O GLOBO DERROTA ÁLVARO LINS

mandando que os jornalistas parassem os trabalhos e passando imediatamente às agressões verbais, que só foram interrompidas com a saída da equipe do local.

O jornal O Globo livrou-se de indenizar o exDeputado estadual e ex-diretor da Polícia Civil do Estado do Rio, Álvaro Lins dos Santos, por decisão adotada em 2 de fevereiro pelo Superior Tribunal de Justiça. Em entrevista ao jornal, o Delegado Antônio Teixeira Alexandre Neto acusou Lins de mentor do atentado que sofreu, no qual foi alvejado por tiros ao sair de um bar em Copacabana. Álvaro Lins processou tanto o jornal quanto Neto pela matéria, alegando danos morais, porém perdeu as duas ações. Entendeu o STJ que O Globo narrou fatos de interesse público.

PMs DE ALAGOAS NUMA NICE Uma equipe de reportagem do jornal Primeira Edição foi agredida verbalmente por um policial militar ao registrar imagens do Posto Policial do 1º Batalhão da PM, localizado no Posto 7, na praia de Jatiúca, em Maceió. Os jornalistas haviam sido autorizados pelo responsável pelo Comando de Policiamento da Capital (CPC) a checar como andavam os trabalhos na Ronda Cidadã no bairro. Ao chegar ao local, a equipe se deparou com policiais sem farda, assistindo televisão com as pernas para o alto, como se estivessem de folga. Foi pedido a um deles que as imagens fossem feitas, sem que eles aparecessem. Apenas interessavam as imagens do Posto e das viaturas. Porém, um policial identificado como Ramos saiu do Posto

ESTADÃO PERDE PARA PROMOTOR O jornal O Estado de S. Paulo foi condenado a indenizar em R$ 62 mil o promotor de Justiça Thales Ferri Schoedl, citado em diversas reportagens como “assassino” por ter, em 2004, matado, com dois tiros, o estudante Diego Modanez, de 20 anos, que mexeu com sua namorada. O Juiz Edward Wickfield, da 35ª Vara Cível da Comarca da capital paulista, sentenciou que “havendo excesso na publicação da notícia, bem como críticas pessoais a terceiros que firam os bens jurídicos estabelecidos na Constituição Federal, podem ser interpostas medidas que visem a coibir esse tipo de atitude”.

ROUBARAM A TV RECORD Um veículo de reportagem da TV Clube, afiliada da TV Record, foi arrombado na tarde de 2 de fevereiro no Recife, enquanto a equipe da emissora se preparava para realizar uma matéria na sede do bloco carnavalesco Galo da Madrugada. Os repórteres haviam deixado o carro estacionado próximo à Praça Sérgio Loreto; quando retornaram ao local, verificaram que, além de o veículo ter sido arrombado, equipamentos e um netbook foram levados pelos asssaltantes. A bolsa de uma das jornalistas foi encontrada vazia.

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LIBERDADE DE IMPRENSA

Brasil cai no ranking mundial do 58º para o 99º lugar O aumento da violência e a morte de três repórteres levaram o Brasil à 99ª classificação no ranking mundial de liberdade de imprensa. O relatório, com base em informações de 179 países, foi elaborado pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Com esse resultado o Brasil perdeu 41 posições em relação a 2010, quando ocupava a 58ª posição. A RSF divulgou o relatório em 25 de janeiro, destacando “o alto índice de violência no Brasil, o crime organizado e atentados contra o meio ambiente” como as principais ameaças aos profissionais de imprensa no País. Sem citar os três crimes referidos no relatório, a RSF aponta as Regiões Norte e Nordeste como as mais ameaçadoras para os jornalistas. Segundo a organização, a queda do Brasil no ranking foi a mais acentuada da América Latina. O Presidente da ABI, Maurício Azêdo, lamentou a situação do País apontada no relatório: “É um dado que demonstra como a liberdade de expressão vem sendo golpeada no País, mesmo quando estamos

submetidos a uma Constituição democrática. Essa triste situação decorre principalmente da violência contra jornais e jornalistas no interior do País. No ano passado, tivemos pelo menos 11 assassinatos de jornalistas. Os crimes não são sequer esclarecidos e os meios para a punição e investigação são muito precários. Só posso dizer que é lamentável, depois de anos de luta em favor da liberdade de imprensa, hoje se constatar essa realidade”. O estudo da RSF é elaborado há dez anos. Os três primeiros colocados na edição 2011-2012 do ranking foram Finlândia, Noruega e Estônia. O Uruguai (32º) atingiu a melhor posição entre os países da América Latina, seguido de Argentina (47º), Chile e Paraguai (80º). Os últimos colocados são Turcomenistão, Coréia do Norte e Eritréia. Recentemente, a International News Safety-Insi classificou o Brasil como o oitavo país do mundo mais perigoso para o trabalho da imprensa. Em 2011, cinco pessoas morreram no exercício da profissão de jornalista. (José Reinaldo Marques)

Violências marcam as relações do Poder com os jornalistas neste começo de ano no mundo todo México, Estados Unidos, Iraque, Inglaterra, Bolívia, Canadá, Venezuela, Noruega e Guatemala compõem o mapa de restrições e de riscos para o exercício da atividade profissional. Turbulências e incompreensões, estas seguidas de violências, marcaram as relações entre autoridades de diferentes regiões do México e os jornalistas e os meios de comunicação neste começo de ano. Em 30 de janeiro, jornalistas sofreram agressões de policiais. Um fotógrafo do jornal Noroeste, além de ser agredido, perdeu sua câmera fotográfica. Horas depois, o profissional recuperou o equipamento, mas as imagens que fez de um confronto durante o qual três militares morreram, na cidade de Guasave, em Sinaloa, haviam sido apagadas. No Estado do México, um editor foi detido, agredido e ameaçado de morte por policiais. Alberto Cruz Moreno, do jornal Hablemos Claro, havia feito imagens da prisão de um funcionário público. Ele também perdeu sua câmera.

CELULAR APAGADO O fotógrafo Casey Monroe, do ABC 24 News, foi detido e teve imagens feitas com o celular apagadas por policiais, em 29 de janeiro, na cidade norte-americana de Memphis. Monroe havia usado seu celular para filmar a prisão de um homem que discutiu com um policial por causa de infração de trânsito.

DESPROTEÇÃO NO IRAQUE A lei de proteção a jornalistas não garante padrões de liberdade de expressão e deve ser anulada imediatamente pelo Governo do Iraque, entende o Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). A legislação, aprovada pelo

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Parlamento em agosto, passou a valer em novembro do ano passado depois de pressão feita ao Governo por uma reforma na lei midiática, mas não oferece nenhuma proteção significativa aos profissionais de imprensa. Além disso, impõe restrições a quem pode ser definido como jornalista e como é possível exercer a atividade e ter acesso a informações. A lei, composta de 19 artigos e repleta de ambigüidades, define um jornalista como alguém que trabalha em tempo integral – o que exclui repórteres que trabalham meio expediente, blogueiros e outros profissionais.

CREDIBILIDADE EM QUEDA O escândalo dos grampos telefônicos no News of the World parece ter prejudicado a credibilidade dos tablóides britânicos. Pesquisa da empresa global de relações públicas Edelman revelou que quase 70% do público no Reino Unido não confia em títulos como Daily Star, Daily Mirror e The Sun. O Estudo Anual de Confiança da Edelman (Edelman Trust Barometer) é uma pesquisa que mede a confiança dos britânicos em instituições como o Governo e as organizações não-governamentais.

PRISÕES PELO OCCUPE Pelo menos seis jornalistas foram detidos durante um protesto do movimento “Occupe” em Oakland, no Estado da Califórnia, em 28 de janeiro. Um repórter da revista Mother Jones,

Gavin Aronsen, foi preso mesmo depois de mostrar sua credencial de imprensa à polícia. A KQED News listou mensagens de jornalistas no Twitter com detalhes dos confrontos com a Polícia. Além de Aronsen, os jornalistas Krisitin Hanes, da KGO Radio; Susie Cagle, repórter independente; Yael Chanoff, do San Francisco Bay Guardian; Vivian Ho, do San Francisco Chronicle, e John Osborn, do East Bay Express, também foram detidos. Cerca de 50 já foram presos desde o início do movimento “Occupe”, em Wall Street.

ÍNDIOS VIOLENTOS A jornalista Helga Velasco perdeu dois dentes, o cinegrafista Carlos Saavedra sofreu uma fratura no nariz e o também cinegrafista Alejandro Estívariz ficou com um corte profundo no rosto ao cobrirem um protesto indígena na capital, La Paz. Os manifestantes do Consejo Nacional de Indígena del Sur-Conisur também atacaram mais de 20 policiais durante o ato. O grupo de indígenas marchou mais de 500 quilômetros até a Plaza Murillo, onde se localiza o Congresso boliviano, para exigir a construção de uma rodovia na reserva ecológica do Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro-Secure (Tipipnis).

TEMOR DE EXILADA A repórter mexicana Karla Berenice García Ramírez, que atualmente vive no Canadá, luta para não ser deportada. Ela acredita que sua volta ao México equivale a uma sentença de morte, inclusive para sua família. Karla Ramírez denunciou corrupção no Ministério da Cultura de seu país e pediu asilo no Canadá em 2008, mas sua solicitação foi negada em 2010 e uma ordem de deportação foi emitida em novembro de 2011. García, que começou a receber ameaças de morte em 2003, por causa de seu trabalho, disse que as tentativas de intimidação aumentaram após a publicação, em outubro de 2010, de um livro sobre corrupção no Governo, intitulado O talento dos charlatões.

REPRESÁLIA PANAMENHA Autoridades panamenhas impediram a entrada no país da jornalista canadense Rosie Simms, em 21 de janeiro, alegando que o passaporte dela era inválido. O documento, porém, só expira em 2015. Depois de ficar retida por quatro horas, incomunicável, e de ter os serviços consulares negados, Rosie Simms foi obrigada a embarcar num avião para os Estados Unidos. Ela suspeita que sua entrada no Panamá tenha sido negada em represália a textos dela sobre a polêmica reforma da lei de mineração, escritos quando trabalhava para o Centro de Incidência Ambiental-Ciam, em 2011, e defendia direitos dos povos indígenas e o desenvolvimento da mineração na comunidade indígena Ngöbe-Buglé.

HACKERS CHAVISTAS Os jornalistas Orian Brito e Alberto Rodríguez, críticos do Presidente Hugo Chávez, tiveram suas contas no Twitter invadidas por um grupo de hackers conhecido como N33.. O mesmo grupo é responsável por outras ofensivas cibernéticas a opositores do Governo, vistas como um novo tipo de ameaça à liberdade de expressão no país.

PREFEITA AMEAÇA O apresentador Moisés Campos, do programa semanal Noticias TV, foi ameaçado de morte após iniciar investigações sobre a Prefeita Corina de la Cruz, de Tocache, na região de San Martín, no Peru. Campos informou que a ameaça foi feita num panfleto colocado sob a porta de sua casa em 25 de janeiro. O jornalista divulgou uma entrevista com o último líder do grupo terrorista Sendero Luminoso, Artemio, que negou as acusações da Prefeita de que ele seria “o autor de uma série

de extorsões e cobrança de quotas em troca de sua segurança”. Ao saber disso, a população de Tocache pediu o impeachment de La Cruz. Campos prosseguiu suas investigações e publicou outra matéria em que insinuava que La Cruz estava envolvida em desvio de verbas públicas. A partir daí, começou a receber ataques injuriosos de Francisco de la Cruz, irmão da Prefeita e apresentador de um programa local na Radio Solar.

AGRESSOR CONDENADO A Justiça militar do Chile condenou um policial a 541 dias de prisão por haver agredido um fotógrafo da agência Efe que cobria um protesto na cidade de Valparaíso, em 21 de maio de 2008.. O fotojornalista Víctor Salas disse que apelará da decisão para exigir uma condenação maior contra o policial Iván Barría Álvarez. Após ser atingido em seu olho direito, Salas “foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, mas não recuperou totalmente a visão “.

ATÉ O TIMES, QUEM DIRIA A Polícia investiga a acusação de possível espionagem de mensagens eletrônicas por parte do jornal The Times, paralelamente às escutas telefônicas do extinto tablóide News of the World. A investigação começou após o diretor do jornal, que também faz parte do império de Rupert Murdoch, admitir a uma comissão judicial que investiga as práticas da imprensa britânica que um de seus jornalistas acessou ilegalmente a conta de e-mail de um policial blogueiro. O Deputado trabalhista Tom Watson divulgou em 2 de fevereiro em seu site oficial uma carta datada de 25 de janeiro na qual a Polícia confirma que está investigando o Times por suposta espionagem de correios eletrônicos.

TERRORISTAS PUNIDOS A Justiça de Oslo, capital da Noruega, condenou em 30 de janeiro dois homens por planejarem um atentado contra o jornal dinamarquês Jyllands-Posten, que publicou caricaturas de Maomé. Mikael Davud, suposto líder da rede terrorista, foi condenado a sete anos de prisão e Shawan Sadek Saeed Bujak, a três anos e meio, com fundamento nas leis antiterrorismo norueguesas. Um terceiro réu, David Jakobsen, foi absolvido e ajudou nas investigações. As investigações mostraram que Davud “planejou o ataque juntamente com a Al-Qaeda”. Os acusados alegaram inocência nas acusações de conspiração para terrorismo e negam qualquer ligação com a organização Al-Qaeda.

INVASÃO NO KUWAIT O prédio da TV Al Watan, do Kuwait, foi invadido em 1º de fevereiro por dezenas de manifestantes durante um debate entre dois candidatos às eleições legislativas. Os manifestantes entraram pela parte traseira do edifício. Houve confronto com a Polícia, que utilizou gás lacrimogêneo para dispersar a multidão. Vários civis e 14 agentes de segurança ficaram feridos.

JORNALISTAS APRISIONADOS O Exército da Guatemala resgatou um grupo de 12 jornalistas detidos por moradores da comunidade de Santa María Saraguate quando produziam uma reportagem para a revista National Geographic na região.. Os jornalistas são de nacionalidade norte-americana, francesa e guatemalteca. Informou o Exército que os membros dessa comunidade costumam prender quem vem de fora, como forma de autoproteção. Fonte das matérias reunidas sob os títulos Jornal de Sorocaba perde ação de danos morais contra a Igreja Universal e Violências marcam as relações do Poder com os jornalistas neste começo de ano no mundo todo: Tambor da Aldeia, ano VII, nº 6, 6 de fevereiro de 2012. Pesquisa e edição dos textos: Vilson Antônio Romero.


DIREITOS HUMANOS

Enfim, a foto de Vlado revelada por inteiro Reportagem especial da Folha de S.Paulo levanta a identidade do autor da foto do suposto suicídio de Vladimir Herzog no Doi-Codi de São Paulo – uma das imagens que evidenciaram as atrocidades cometidas pelos militares durante a ditadura. Coube ao tempo revelar a verdade que, há mais de três décadas, uma foto tentou ocultar. Matéria publicada pela Folha de S.Paulo no dia 5 de fevereiro, intitulada O Instante Decisivo, desvendou a farsa do suposto suicídio de Vladimir Herzog nas dependências do Doi-Codi de São Paulo. A imagem, feita em 25 de outubro de 1975, mostrava o corpo inerte de Vlado – como era conhecido o jornalista – com os joelhos dobrados e apoiados sobre o chão, tendo um cinto envolto em seu pescoço e preso à janela da cela. A reportagem da Folha de S.Paulo, de autoria de Lucas Ferraz e publicada no caderno Ilustríssima, trouxe a público a identidade do autor da imagem, na época estampada em primeira mão no Jornal do Brasil – e depois reproduzida por diversos veículos. Cena que até hoje figura entre as mais representativas dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura instaurada em 1964. O fotógrafo é Silvaldo Leung Vieira, na época aluno do curso de fotografia da Polícia Civil de São Paulo. Localizado pela reportagem da Folha, em Los Angeles, onde vive desde 1979, Silvaldo contou como foi a sua atuação como fotógrafo do Instituto de Criminalística de São Paulo. E confirmou aquilo de que muitos desconfiavam – e que a própria imagem feita por ele sugeria. Vlado não cometeu suicídio. Foi vítima de espancamento, choques elétricos e afogamento. Morreu asfixiado. Como muitos outros presos políticos, foi covardemente torturado e assassinado nas dependências do Doi-Codi. De acordo com a reportagem, quando Silvaldo chegou ao local para fotografar Vlado – morto aos 38 anos, quando ocupava a direção de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo – deparou-se com o ambiente do suposto suicídio já todo preparado. “Numa cela o corpo pendia de uma tira de pano atada a uma grade na janela. As pernas arqueadas e os pés no chão. Completavam o cenário papel picado, um depoimento que Vlado fora forçado a assinar e uma carteira escolar”, diz um trecho da matéria de Lucas Ferraz. O jornalista da Folha de S.Paulo falou ao Jornal da ABI sobre o caso. “Fiquei feliz por uma reportagem tão extensa, num caderno cultural, ter tido o espaço e o tratamento que teve. É algo difícil de ver em nossos jornais, infelizmente.

MUNIR AHMED

P OR P AULO C HICO

Acho que foi uma aposta ousada do jornal”, afirmou. Sobre a notícia de que estaria preparando um livro com os bastidores da matéria, Lucas esclarece: “Acho que houve uma confusão aí. Não vou escrever livro sobre o caso. Apenas disse que não

falaria nada sobre os bastidores agora, pois estou ainda apurando outras histórias relacionadas ao tema. Qualquer publicidade poderia atrapalhar. Depois, em um outro momento, talvez valesse a pena contar como foi essa produção, mas não em livro.”

Para fazer o registro, Silvaldo, então com apenas 22 anos de idade, usou uma câmera Yashica 6x6 TLR, tipo caixão. Ele lembra que o clima no ambiente do DoiCodi o deixou tenso e que antes de chegar à sala onde estava o corpo passou por vários corredores. JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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DIREITOS HUMANOS “Havia uma vibração muito forte, nunca senti nada igual. Mas não me deixaram circular livremente pela sala, como todo fotógrafo faz quando vai documentar uma morte. Fiz o registro da foto da porta. Inclusive, não me deixaram ficar com a câmera, nem com o negativo. Só depois é que fui entender o que tinha acontecido”, declarou ele à reportagem da Folha de S.Paulo. A descoberta do autor da foto que, produzida por ordem do Dops (Departamento de Ordem Social e Política), tinha como intuito fazer crer que o jornalista havia se suicidado, teve grande repercussão. Em especial, junto ao Instituto Vladimir Herzog. Constituído em 2009 e presidido por Clarice Herzog, viúva de Vlado, o Instituto tem a missão de contribuir para a reflexão e produção de informação que garanta o direito à vida e à justiça. Foi um dos dois filhos do jornalista, Ivo Herzog, Diretor-Executivo do Instituto, que falou publicamente sobre a importância da matéria publicada pela Folha de S.Paulo. “Era um fato que a identidade do fotógrafo estava oculta – e que ninguém nunca tinha parado para pensar e investigar isso. Algumas pessoas ainda sustentavam a versão do suicídio. Essa versão não tem pé nem cabeça. E acho que a reportagem ajuda a enterrála ainda mais”, disse Ivo Herzog. O Instituto Vladimir Herzog publicou nota oficial sobre a descoberta feita pelo repórter Lucas Ferraz. “Essa documentação fotográfica da farsa montada nos porões do totalitarismo se destinava claramente a coonestar a versão formalizada em nota oficial pela ditadura, no sentido de que Vlado se suicidara. Em conseqüência de processo movido por Clarice Herzog, tal versão foi posteriormente desmentida pela Justiça e pelo Governo brasileiro, que reconheceram ter o jornalista sido torturado e assassinado pelos esbirros que povoavam os cárceres da ditadura. Vlado foi o 38º preso político cuja morte foi oficialmente classificada como suicídio – forma usual de disfarce para o que não passava de assassinato”, afirma a nota, que prossegue: “Mas a publicação, agora, dessa reportagem se torna extremamente oportuna logo após a sanção, pela Presidência da República, da Lei de Acesso a Informações Públicas e dá renovada urgência à necessidade de implantação e ativação da Comissão da Verdade, com a nomeação de seus membros pela Presidenta Dilma Rousseff. Dedicado à luta pelos direitos humanos à vida e à justiça, o Instituto Vladimir Herzog acredita que uma das primeiras missões dessa Comissão deveria ser a de inquirir o Sr. Silvaldo Leung Vieira, com total transparência e isenção, para que ele esclareça pormenorizadamente as circunstâncias em que realizou a foto em questão, de forma a permitir o aprofundamento e ampliação da investigação.” A nota, assinada por Clarice e Ivo Herzog, conclui: “Segundo Silvaldo, na con30

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A capa do caderno Ilustríssima e duas páginas internas da reportagem escrita por Lucas Ferraz.

dição de fotógrafo da Polícia Civil de São Paulo, ele recebeu ordem para fazer esse trabalho por requisição do Dops. Mas quem lhe teria dado essa ordem? Em outras palavras, quem era seu chefe? E quem eram os outros 23 fotógrafos que, segundo ele, foram aprovados no concurso que selecionou esses profissionais para trabalhar na Polícia Civil? O que eles fotografavam, por ordens de quem e o que mais faziam? Por que agora, 36 anos mais tarde, ele resolve se expor publicamente e contar sua história?”, questiona o Instituto. Vladimir Herzog compareceu espontaneamente ao Doi-Codi em São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975, após ter sido procurado por agentes da repressão em sua casa e na TV Cultura. Ele deveria prestar “esclarecimentos” sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro. Segundo relatos de testemunhas, como o também jornalista Rodolfo Konder, Vlado foi torturado e espancado até a morte, numa longa sessão de interrogatório. “Ainda carrego um triste sentimento de ter sido usado para montar essas mentiras. Tudo foi manipulado, e infelizmente eu acabei fazendo parte dessa manipulação. Depois me dei conta de que havia me metido em uma roubada. Isso aconteceu, acho, porque eles precisavam simular transparência”, afirmou Silvaldo à Folha de S.Paulo. Apenas três meses depois de fotografar o corpo de Vlado, o fotógrafo foi chamado ao mesmo local para registrar em imagem o cadáver de outro ‘suicida’: o metalúrgico Manoel Fiel Filho, também assassinado sob tortura. A farsa montada pelos agentes da ditadura militar no caso Vlado não se sustentou por muito tempo, graças à intervenção do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que, com o apoio da ABI, mobilizou a categoria de jornalistas e exigiu do Exército uma explicação plausível para o caso. Sentindo-se ameaçado e per-

seguido pelo regime a que serviu, Silvaldo afirma não ter tido alternativa a não ser abandonar o emprego no serviço público e também o País. Embarcou para os Estados Unidos em 1979, mas deixou para trás uma das imagens mais marcantes das atrocidades da ditadura militar – e que ajudaria a colocá-la em xeque perante toda a opinião pública. Oficialmente, o trabalho daquele time de fotógrafos era apenas registrar os

presos condenados antes que fossem transferidos para os presídios. “Mas ia sempre além. Muitas vezes tinham que fotografar também presos políticos, alguns que acabavam de sair das sessões de tortura. Eu não agüentava aquilo, reclamava que minha atribuição não me permitia fazer esse serviço. E quanto mais eu questionava, mais a situação ficava delicada”, recordou Silvaldo na matéria publicada no dia 5 de fevereiro.

Fala Silvaldo, o fotógrafo Autor da foto de Vladimir Herzog morto, Silvaldo Leung falou à reportagem do Jornal da ABI. Ele se dispõe a colaborar com a Comissão Nacional da Verdade. P OR P AULO C HICO

Fotojornalistas vivem de registrar os fatos. Documentam a história. Por vezes, contudo, acabam fazendo parte dela. É o caso de Silvaldo Leung. Ao fazer a imagem do suposto suicídio de Vlado, aquele rapaz de 22 anos não poderia imaginar-se autor da foto que se tornaria símbolo dos crimes executados pelos militares que tomaram o poder após o golpe de 1964. Sim, a posição de Silvaldo é destacada. E também delicada. Ao mesmo tempo em que, ainda que involuntariamente, cooperou para o início do enfraquecimento do regime de exceção, ao revelar à sociedade brasileira as atrocidades cometidas com os presos políticos, Silvaldo permaneceria recolhido, quieto, em silêncio, distante nos Estados Unidos, nas décadas seguintes. Ele teria e ainda tem muito o que falar. Mais do que contou à Folha de S.Paulo. Mais do que revelou ao Jornal da ABI, é bem provável.

Foi um Silvaldo ‘desarmado’ e solícito que atendeu ao pedido de entrevista feito por este repórter, que, longe de tentar promover qualquer julgamento histórico, busca aqui apenas levantar os fatos. Ainda de Los Angeles, contou-nos por e-mail maiores detalhes de sua passagem como estagiário de fotografia na Polícia Civil de São Paulo naqueles pesados anos de chumbo. “O Diário Oficial do Estado de 6 de junho de 1975 informou, na página 59, o nome dos 24 aprovados no concurso de fotógrafo da Polícia Civil. Silvaldo era o de número 17. As aulas preparatórias, na Academia de Polícia, no campus da Usp, começaram no dia 8 de outubro. Deixou a casa da mãe, em Santos, e juntou-se aos estudantes ‘forasteiros’ no alojamento da escola, na Cidade Universitária”, relatou o repórter Lucas Ferraz em seu texto original. Filho de pai chinês e mãe paulista, Silvaldo, chamado por alguns pelo apelido de ‘China’, encantou-se pelas câmeras


ainda criança. Atuou no jornal Cidade de Santos. No estágio na polícia enxergou a oportunidade de desvendar crimes e produzir provas técnicas, além de aprimorar o domínio dos equipamentos. Apenas 17 dias depois de iniciar o curso, seria convocado para sua primeira aula prática. “Disseram apenas tratar-se de um trabalho sigiloso e que eu não deveria contar para ninguém. A requisição veio do Dops”, afirmou à Folha de S.Paulo. Pois bem. Era 25 de outubro de 1975, Vlado era covardemente assassinado. Seria um clique assim, assustado, feito por um jovem desavisado. É uma imagem que ficou para a História, retrato pungente de um pesadelo recente.

Silvaldo Leung foi ameaçado por um oficial do Exército que o acompanhava: ‘É melhor ficar calado e não comentar nada. Se você não se calar, a gente te cala’.

Jornal da ABI – O que o atraiu para a fotografia? Como foi parar no estágio na Polícia Civil de São Paulo?

Silvaldo Leung – Minha relação com a fotografia começou muito cedo. Trabalho desde os 15 anos como fotógrafo. Meu primeiro trabalho registrado em carteira como fotógrafo foi na Prefeitura de São Vicente, em 1970. Depois passei um período como freelancer... Foi quando decidi, em 1974, prestar concurso para fotógrafo pericial. Achei interessante a idéia de utilizar a fotografia para ajudar a desvendar crimes. Jornal da ABI - Qual a natureza da maioria das fotografias feitas nas dependências do Doi-Codi?

Silvaldo – Pela minha experiência, foram encontro de cadáveres.

Jornal da ABI - Você chegou a pensar na possibilidade de utilizar seu instrumento de trabalho – a câmera – como forma de denunciar os abusos ocorridos por lá?

Silvaldo – Seria muito complicado e perigoso. Eu não presenciei abusos, só depois de ocorridos os fatos é que eles requisitavam a presença dos fotógrafos. Jornal da ABI - Em termos de formação profissional, de que lhe serviu este estágio?

Silvaldo – Abandonar tudo e sair do País.

Jornal da ABI - Falando especificamente do episódio Vlado, em que momento percebeu que aquele cenário de ‘suicídio’ era uma farsa?

que entregasse todo seu material daquela noite aos militares?

Silvaldo – Inicialmente, achei que era normal, pois mandávamos os filmes para o laboratório. Jornal da ABI - Sentiu-se usado pelo regime? Ameaçado, em algum momento?

Silvaldo – Sim, primeiro eu estava iniciando o curso, estava na segunda fase do concurso, não conhecia a cidade de São Paulo, pois sou de Santos. Aquele foi um momento tenso. Aliás, foi uma semana tensa. Como declarei à Folha de S.Paulo, no caso da morte do metalúrgico Manoel Fiel Filho eu sabia que eles tinham feito merda. Cheguei a fazer um comentário: ‘Aqui acontecem coisas estranhas’. Um oficial do Exército que me acompanhava e que parecia ser muito jovem, então, me ameaçou: ‘É melhor ficar calado e não comentar nada. Se você não se calar, a gente te cala’. Jornal da ABI - Como o jornalista da Folha de S.Paulo Lucas Ferraz chegou até você como autor da foto?

Silvaldo – Eu achei muito estranho aquele local, depois veio caindo a ficha, com as publicações e a repercussão da imagem.

Silvaldo – Ele pesquisou, e notou que o meu nome aparecia nos créditos da fotografia. Tenho Facebook, Orkut... Então, não foi difícil me encontrar. Ele me passou um e-mail e eu aceitei de imediato colaborar com a reportagem.

Jornal da ABI - Como recebeu a ordem de

Jornal da ABI - Na época, como reagiu ao

Medalha Chico Mendes para Mário Augusto Por decisão adotada em 13 de fevereiro pelo coletivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, o jornalista e escritor Mário Augusto Jakobskind, membro do Conselho Deliberativo e da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da ABI, será um dos agraciados com a Medalha Chico

Mendes de Resistência. A entrega da distinção, que se efetuará pela 24ª vez, será feita em ato público no dia 2 de abril, às 18 horas, no Salão Nobre da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção do Estado do Rio de Janeiro, na Avenida Marechal Câmara, 150, nono andar. Além de Mário Augusto, receberão a

ver aquela imagem reproduzida em diversos jornais, como o Jornal do Brasil, e tendo repercussão nacional?

Silvaldo – Pois é... Foi complicado. A mais estranha sensação que tive foi quando, em 1984, eu já fora do Brasil há cinco anos, vi na casa de um amigo brasileiro uma revista Veja, uma edição comemorativa de 20 anos. Lá estava a foto com meu nome completo nos créditos. Levei um susto. Jornal da ABI - Em que medida a experiência como fotógrafo na Polícia de São Paulo, naqueles anos, pesou na sua decisão de mudar-se para os Estados Unidos em 1979? Foi aconselhado a fazê-lo?

Silvaldo – Não vi condições de pedir demissão e continuar no Brasil trabalhando. Aí decidi abandonar tudo e sair do Brasil. Foi muito difícil. Não falava inglês, passei um período como clandestino, sem documentos. Tive que recomeçar a minha vida do zero.

Jornal da ABI - Quais conseqüências essa experiência teve em sua vida?

regressar ao Brasil. Em alguns momentos, senti saudades até dos inimigos (risos). Consegui um trabalho de aprendiz de ourives, sobrevivi trabalhando como ourives por alguns anos. Passei por dois grandes terremotos aqui em Los Angeles, em 1987 e 1994. No primeiro fiquei aterrorizado – e o pior era que naquele momento eu não podia regressar ao Brasil, tinha acabado de receber minha permissão para trabalhar de forma legal. O segundo, em 1994, foi muito forte e o epicentro foi muito perto de onde eu morava, no Vale de San Fernando. Também trabalhei como assistente de produção, joguei xadrez, fiz de tudo... Hoje trabalho como monitor no computer lab do Good Shephard Center, em Los Angeles. Jornal da ABI - Nestas últimas três décadas veio ao Brasil? Mantém contato com o País?

Silvaldo – Sim, sempre que posso eu vou ao Brasil. Tenho minha mãe em Santos e sonho em voltar.

Jornal da ABI - A fotografia continua a ser a sua paixão?

Silvaldo – Ela foi a minha primeira paixão... E primeira paixão a gente não esquece, né? Mas preciso me atualizar, comecei na fotografia na era do preto e branco. Tudo mudou.

Jornal d ABI - Como é seu cotidiano hoje em Los Angeles?

Jornal da ABI - No Brasil, entidades como a ABI e a OAB lutam pela abertura dos arquivos da ditadura militar, com a identificação e punição de responsáveis por crimes como assassinatos e tortura. Acredita que poderia colaborar com essas ações, como a Comissão Nacional da Verdade?

Silvaldo - Fiquei mais de 10 anos sem

Silvaldo – Sim. No máximo do possível.

Medalha Chico Mendes, em caráter póstumo, dois desaparecidos da Guerrilha do Araguaia: Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, que se celebrizou pela coragem com que enfrentou as tropas do Exército que dizimaram a guerrilha, no começo dos anos 1970, e Maria Célia Corrêa, jovem estudante que se integrou à guerrilha com o irmão e o marido. Também postumamente será homenageado Gabriel Pimenta, escolhido como integrante da categoria Violência Rural. Os demais distinguidos com a Medalha

Chico Mendes serão a médica Maria Augusta Tibiriçá Miranda, única sobrevivente da campanha O petróleo é nosso, nos anos 1940 e 1950, e Presidente de Honra do Movimento de Defesa da Economia Nacional – Modecon; a socióloga Moema Toscano, na categoria Movimento de Mulheres; as militantes sociais Deize Maria de Carvalho e Márcia Honorato, na categoria Violência Urbana; a Comunidade Pinheirinhos, de São José dos Campos, São Paulo, na categoria Movimento pela Moradia, e o jurista Belisário dos Santos Júnior.

Silvaldo – Amadureci, aprendi muito no decorrer da minha trajetória. Vendo o Brasil de fora a gente fica mais brasileiro.

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HOMENAGEM

JAGUAR VOCÊ É BÁRBARO! P OR V ERÔNICA C OUTO

S

alve o prazer, salve o prazer. Para o compositor Assis Valente, que era triste, a gente inventou a batucada para deixar de padecer. Jaguar inventou o Jaguar. Um dos maiores cartunistas do mundo, Jaguar completou no dia 29 de fevereiro 80 anos de irreverência libertária. Seu traço genial e rascante reflete o modo radical de não se levar a sério, de rejeitar o posto de celebridade nas artes, de ridicularizar todas as hierarquias, inclusive as da linguagem. “Jaguar não acredita em nada do que tem, faz graça com tudo”, avisa o desenhista e amigo Chico Caruso. É um “anarquista orgânico”, diz. Para Ziraldo, que enviou por escrito seu depoimento sobre o companheiro dos tempos do jornal O Pasquim e de muitas festas pelo Rio – estiveram entre os criadores da Banda de Ipanema, em 1965 – , o desenho de Jaguar sai dos poros, da ponta dos dedos. “E sai com a crueldade que o Grande Humor exige. Este ‘Grande Humor ’ aí, você escreva, por favor, com letra maiúscula.” Jaguar recusa os clichês, quebra as expectativas, não amacia, investe contra os 32

JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

limites, a censura, o moralismo, a hipocrisia. “Carregados de uma crítica ácida, desbocados, livres daquele zelo e pudor que tantas vezes inibem o humor, seus cartuns sabem ser toscos e refinados ao mesmo tempo”, analisa o ilustrador Daniel Bueno. Chico Caruso conta que o jovem intelectual Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe (ainda sem o apelido dado pelo amigo ilustrador Borjalo, nos tempos da revista Manchete) lia muitos poemas, especialmente os franceses – Baudelaire, em particular. Aos 18 anos, tomou comprimidos, na tentativa de se suicidar. “Teve só uma dor de cabeça”, resume o amigo. Andou pela Amazônia, quis ingressar na Marinha Mercante e teria até conseguido arrastar ao projeto alguns amigos. “Daí se apaixonou, resolveu se casar, e desistiu da idéia”, lembra Chico Caruso. “Depois, veio O Pasquim (em 1969) – e a Busca Insaciável do Prazer [BIP, nome da seção em que recomendava bons botecos], que ele continua até

hoje”. É dessa época o surgimento do rato Sig (de Sigmund Freud), inspirado em um rato de estimação do escritor Ivan Lessa, outro integrante de O Pasquim. E de quem Chico Caruso acredita que ganhou muito do espírito anárquico e dadaísta. Também surgiu lá Gastão, o Vomitador. Em entrevista concedida na edição 339 do Jornal da ABI, publicada em março de 2009, Jaguar lembra que o personagem durou pouco tempo e revela por que parou de desenhá-lo: “Nunca tive saco pra desenhar história em quadrinhos. Eu comecei a fazer quadrinhos juntamente com o Mauri-

MARCOS RAMOS/AGÊNCIA O GLOBO

Um dos maiores cartunistas da História faz 80 anos de humor libertário e sem concessões. Chico Caruso o define: é um anarquista orgânico.

cio de Sousa... mas eu não tinha saco!” Foram apenas nove tiras, mas o bastante para fundar a onomatopéia “BLUAHH”. “Não é possível falar sobre a história das artes gráficas e do cartum no Brasil sem mencionar o Jaguar ”, afirma Bueno. Para ele, o artista marcou época na antológica revista Senhor (1959 a 1964) – foi um de seus principais cartunistas –, e como um dos criadores do Pasquim. “Mas sua contribuição vai muito além destes grandes feitos: seus cartuns anárquicos e escrachados, caracterizados por um traço irreverente e desleixado, sempre a serviço da idéia, estão entre os melhores já produzidos no País. Desde sua estréia na imprensa no final da década de 1950 na revista Manchete – passando por publicações como Pif-Paf, Revista da Semana, revista Bundas, jornais Última Hora, Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã –, a presença de Jaguar é das mais marcantes no cartum brasileiro da segunda metade do século XX.” Jaguar costuma dizer que não sabe desenhar. Na avaliação de Caruso, é na verdade “um desenhista fantástico, excelente pintor; inimitável”. Para Bueno, “o traço de Jaguar é expressivo e inteligente”. E em sua raiz ele aponta duas das mais significativas referências dos cartunistas de sua geração: Steinberg e André François. “A obra do desenhista romeno naturalizado norte-americano Saul Steinberg foi apresentada por Millôr Fernandes aos colegas do Pasquim e suas qualidades foram assimiladas, em especial o desenho sintético e ‘gráfico’ que rejeita o acabamento virtuoso e gratuito e se coloca a serviço da idéia e da vontade de dizer algo. Nos cartuns de Jaguar, é sempre a idéia que vale para o humor prevalecer.” Dentre os cartunistas da “geração Pasquim”, Bueno acredita que “talvez seja Jaguar o que mais demonstra em seu trabalho a influência do André François cartunista, como o do livro The Tattooed Sailor (1953), pelo traço marcado – menos leve e sinuoso que o de Steinberg – e humor corrosivo.” O ilustrador, no entanto, diz que Jaguar, ao falar de uma influência direta, costuma citar o humor moderno dos franceses da Paris-Match, revista de variedades. “Chaval, Bosc, Mose, com destaque para o Trez, em suas palavras jocosas ‘o mais medíocre deles’. Apesar de todas essas referências, o trabalho de Jaguar é de grande personalidade: há uma ‘grosseria’ sofisticada, uma sabedoria na síntese dos elementos – dentre eles seu traço trêmulo e aparentemente displicente –, de modo a ser direto e preservar o humor.” “As piadas nunca são bobas”, diz Caruso. Sobre a recente greve de policiais militares da Bahia, quando PMs invadiram a Assembléia Legislativa do Estado e foram reprimidos em manifestações de protesto, ele conta que Jaguar desenhou um soldado jogando spray de pimenta nos grevistas: “Isso é só o começo, depois vem spray de dendê, urucum...”, descreve o amigo. Chico Caruso tem na parede outro exemplo dessa visão que recusa o fácil e o lamentoso. “São dois náufragos. Um está deprimido, barba comprida, segurando um ossinho; o outro observa: – Oba! Vai dar praia. Essa


O “Eu quero mocotó!” de Pedro I detenção reproduzia o quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, no qual a figura de Dom Pedro I vinha acompanhada de um balão com uma frase tirada da música de Erlon Chaves: “Eu quero mocotó!”. Com o fim de O Pasquim, em 1991, passa a editar A Notícia. Com Ziraldo e outros parceiros de O Pasquim, cria em 1999 a revista Bundas. Em 2008, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça aprovou o seu processo de indenização e de outros 20 jornalistas. Além de participação em várias antologias, publicou também os livros Nadie es Perfecto (Argentina, 1973), A Vida Sexual de Jaguar (1979), Ipanema – Se Não me Falha a Memória (2000), Confesso que Bebi, Memórias de um Amnésico Alcoólico (2001).

ro livro do Jaguar: Átila, você é Bárbaro (Editora Civilização Brasileira, 1968), uma antologia de cartuns. “Eu achei o livro o máximo. Além de o conteúdo ser de primeira, com cartuns antológicos, o livro era muito bem paginado, com uma capa bacana. É um clássico do desenho de humor brasileiro.” Em 1974, Reinaldo tomou coragem e subiu a ladeira Saint-Roman, em Copacabana, e foi mostrar seus desenhos na Redação do Pasquim. “Por sorte consegui ser atendido pelo Ziraldo e pelo Jaguar. Os dois gostaram e me deram a maior força. Publicaram logo uma página inteira com meus desenhos. Como morava perto, passei a freqüentar a Redação, levei mais desenhos e fui ficando, até 1984. Foi vendo o Jaguar e sua turma editar o Pasquim que aprendi o que eu sei de humor na imprensa. Se antes eu já aprendia de longe, vendo o que o Jaguar publicava, ver o cara em ação era melhor ainda. Presenciei ao vivo a parceria dele com Ivan Lessa, fazendo o Gip-Gip Nheco-Nheco, a Pasquim-novela e um monte de outras coisas no jornal. “ Mais recentemente, Jaguar editou o livro de Reinaldo, Desenhos de Humor (Desiderata/Ediouro). “E ainda escreveu na orelha do livro um monte de elogios hiperbólicos... Falei com ele que foi um pouco exagerado e me lembrou o

que ele fazia às vezes nas Dicas do Pasquim, na seção BIP (Busca Insaciável do Prazer), onde escrevia coisas do tipo: ‘descobri um pé-sujo em Benfica onde se come o melhor bife a cavalo da América Latina. E, é bom lembrar: além de desenhar, o cara também escreve muito bem.” O jornalista e escritor Luís Pimentel guarda de Jaguar a lembrança do gesto solidário. Colaborador do Pasquim no final dos anos 80, só foi conhecer de fato o cartunista no jornal O Dia, onde ambos publicavam crônicas semanais – no caso de Jaguar, também charges. “Quando me indispus com a turma que então dirigia a Redação, ele me indicou ao Ziraldo para

ser editor-executivo da revista Bundas, que o Mineiro Maluquinho planejava. Graças a essa indicação, participei de uma das mais estimulantes experiências de minha vida como jornalista. Juntamente com esses dois geniais cartunistas e criadores brasileiros (que nasceram no mesmo ano, 1932, trilharam muita estrada juntos, e estão entre minhas eternas admirações), além de Sérgio Augusto, Fausto Wolff, Aldir Blanc, Verissimo e outros, botamos a revista nas bancas por 78 semanas. Foi solidário comigo, e agradeço a ele até hoje.” Entre os humoristas da nova geração influenciados direta ou indiretamente por Jaguar, Daniel Bueno cita Allan Sieber, André Dahmer, Arnaldo Branco, Leonardo. “Jaguar pode ficar despreocupado: não me parece que o desenho de humor irá acabar.” Chico Caruso destaca, ainda, os trabalhos de Angeli e de Glauco como herdeiros dessa visão indomesticável de humor. Para Ziraldo, como faz aniversário no dia 29 de fevereiro, data que só ocorre em anos bissextos, Jaguar é um menino, tem apenas 20 anos. Faz sentido. “É a figura mais importante da minha vida”, afirmou na conversa com a reportagem, antes de, desconfiado dos jornalistas, resolver criar ele mesmo as perguntas que gostaria de responder sobre o amigo. ACERVO REINALDO

é a diferença entre o humor paulista e carioca. O paulista é negativo, o carioca é solar.” O humorista Reinaldo, um dos criadores do jornal Planeta Diário, em 1984, encontrou outro dia com Jaguar na rua, que contou a ele, rindo e achando o máximo, a seguinte história. “Um sujeito se aproximou dele num bar, olhou bem de perto e atentamente pra cara dele durante uns segundos, para depois mandar essa: ‘É incrível! O senhor é muito parecido com o falecido Jaguar!’ Para mim, foi muito bom ouvir o próprio Jaguar contar essa história e se divertindo muito com ela. Isso realmente é a cara dele. É humor-negro, mas alegre. E é desse tom que eu sempre gostei no humor do Jaguar, desde o tempo em que eu o conhecia só de longe, vendo seus desenhos nos jornais e revistas.” Jaguar também abriu janelas para o mundo das artes gráficas. Antes de O Pasquim, Reinaldo acompanhava o cartunista na revista Senhor, na revista do Diners (1962), e no suplemento de humor do Jornal dos Sports, o Cartum JS (1967), editado pelo Ziraldo. Nessa publicação, Jaguar mantinha uma seção com desenhos dos seus cartunistas internacionais favoritos. “E a seleção era ótima. Foi graças ao Jaguar que comecei a ter uma noção de como era o desenho de humor no resto do mundo. Esses desenhos eu fui recortando e guardando numa pasta que tenho até hoje.” Outro fato marcante para Reinaldo, nessa época, foi a publicação do primei-

Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, começou a carreira na revista Manchete, em 1952, onde ganhou do desenhista Borjalo o apelido consagrado. Era então funcionário do Banco do Brasil, chefiado por Sérgio Porto. Colaborou na Revista da Semana, Revista Civilização Brasileira, Pif-Paf, e nos jornais Tribuna da Imprensa e Última Hora. Em 1968, lançou sua primeira antologia, Átila, Você é Bárbaro. Com o golpe militar de 1964, somou forças na resistência intelectual à censura e, com Tarso de Castro e Sergio Cabral, integrou a equipe fundadora de O Pasquim, em 1969. Surge Sig o rato provocador e irreverente, e Gastão, o Vomitador. No final dos anos 1970, quase toda a equipe do jornal é presa, Jaguar incluído. Segundo declarou em entrevista ao Jornal da ABI, a obra que serviu de estopim para a

Momento histórico: o cartunista e comediante Reinaldo fez o papel de um onanista e Jaguar foi o cirurgião numa fotonovela do Pasquim escrita pelo Ivan Lessa.

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HOMENAGEM JAGUAR, VOCÊ É BÁRBARO

UM SENHOR ILUSTRADOR Em 1959, Jaguar passou a fazer parte da equipe capitaneada por Nahum Sirotsky, que criou a SR. (Senhor), uma das melhores e mais importantes revistas já editadas no Brasil. Só para se ter uma idéia da dimensão dessa publicação, basta uma rápida olhada no expediente e nas assinaturas dos textos e ilustrações para encontrar nomes como os de Paulo Francis, Carlos Scliar, Newton Carlos, Glauco Rodrigues, Caio Mourão, Rubem Braga, Antonio Callado, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Jorge Amado, Flávio Damm, Luiz Lobo e tantos outros. A capa abaixo foi criada por Jaguar para a edição de dezembro de 1959. Era o décimo número da revista, que trazia reportagens como Julião da Galiléia (quem é o homem das “ligas camponesas”), escrita por Callado, e Vinte dias de Paris, de Fernando Sabino; além do conto A Galinha, de Clarice Lispector, e O Maravilhoso O, de James Thurber, adaptado por ninguém menos que Ziraldo. Jaguar tinha 27 anos quando publicou estas ilustrações e charges. O belo desenho do cavalo foi publicado assim mesmo, sobre o texto do artigo de Teófilo de Vasconcelos: Um cavalo não é um cavalo, não é um cavalo.

Desenhos para a revista Senhor... ...e o humor do Pasquim!

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Ziraldo entrevista Ziraldo

“O JAGUAR EXPULSA SEU DESENHO” Ziraldo fez questão de enviar ao Jornal da ABI um bate-papo que ele fez com ele mesmo em homenagem aos 80 anos do Jaguar. Nessa pequena auto-entrevista ele fala dos secquacci do Millôr e de uma época marcante na história da Zona Sul do Rio, no final dos anos 1950.

Isto também é uma outra história.

JUNIOR ARAGÃO

Sua experiência na revista Senhor acabou fazendo dele um desenhista de humor dos maiores do mundo.

Como foi que você conheceu o Jaguar?

Ziraldo: É uma longa história. Em todos os sentidos, no tempo e no espaço. Se estivesse nos meus planos escrever minha autobiografia, a presença do Jaguar seria exatamente longa nesses dois sentidos. Eu vim para o Rio definitivamente em 1957, depois de ter vivido aqui uns três anos e ido para Minas pra me formar em Direito. Usava-se, na época. Vivi aqui, no final da adolescência, mas não tinha descoberto esta cidade, seus segredos, seus mistérios. Jaguar foi o meu guia para esta aventura.

A Flávia Savary, não é? Que escreve para crianças.

Como foi que vocês se encontraram?

Ziraldo: Eu já estava publicando minhas coisas na revista Cigarra, no O Cruzeiro e no Jornal do Brasil. O Millôr arrumou uma briga definitiva com o Cruzeiro e acabou saindo da revista. O Millôr passou anos às turras com O Cruzeiro. Eu estava muito próximo quando o desenlace definitivo aconteceu. Mas isto é outra história. Um dia você conta.

Ziraldo: É. Pode ser. Aí, que que aconteceu? O Millôr saiu de O Cruzeiro e o Borjalo, que estava fazendo o maior sucesso na Manchete, foi convidado para substituílo. Aceitou o convite para começar a publicar, a cores, aqueles seus desenhos de traço econômico, bonequinhos sem boca, bem minimalistas. Embora o termo não fosse usual na época. A Manchete, então, abriu uma espécie de concurso para escolher um substituto pro Borjalo, que iria ocupar sua tradicional última página. E o Jaguar ganhou o concurso?

Ziraldo: Não, exatamente. Ele, o Claudius e um outro jovem cartunista chamado Brandão – que sumiu sem dar notícias – ocuparam a página. Aliás, o Claudius ficou lá por 13 anos, mas isto também é outra história. Uma tarde, eu estava visitando o Millôr, quando ele me informou que um jovem cartunista tinha marcado para ir lá, naquele mesmo horário, mostrar seus desenhos para ele. Para ouvir a opinião do mestre, não é?! Era o Jaguar. Aliás, era o Sérgio de Magalhães Jaguaribe, parente do José de Alencar e do Barão que tem rua em Ipanema. Um bem nascido! Finalmente, vamos conhecer o Jaguar.

Ziraldo: Aí, adentrou a sala um jovem muito branco, coradinho, parecendo excessivamente tímido, com oclinhos redon-

Ziraldo: É mesmo... Onde o Jaguar ia com a Olga, ele levava eu e a Vilma, a mãe da Daniela, da Fabrízia e do Antônio. De quem, aliás, eu sou o orgulhoso pai. O Jaguar morava na Praça General Osório, no centro do furacão, quase em cima de onde foi o Fox. Era um apartamentinho mínimo. Eu me lembro de ter ido lá visitá-los e o cercadinho da Flávia, que era um bebê dos olhos mais azuis que já vi na minha vida, ocupava quase a sala inteira.

dos, de aro fino e uma pastinha com seus desenhos debaixo do braço. Millôr, diligentemente, olhava um por um, fazia sua análise e me passava os desenhos para ouvir minha opinião. Fiquei me achando, né?! E comecei a dar uma de auxiliar do mestre: “Quais são suas influências? Você conhece o Steinberg? E o André François? E o Ronald Searle?” Ele aí citou vários nomes de outros cartunistas d o Punch, do New Yorker e de publicações francesas, como o Paris Match, e fiquei impressionadíssimo. Eu achava que só o Millôr e eu é que conhecíamos esses artistas. Conclusão, nunca mais abandonei o Jaguar.

seu equivalente em espanhol antigo. Seu significado está mais para capanga do que para discípulo. O Millôr deve ter lido alguma história sobre esse pessoal de Florença e vivia se queixando de nós, seus secquacci. Quando, no Pasquim, ele se irritava, dizia que nós éramos um íncubo na vida dele. Íncubo também é outra palavra que ele nos apresentou. Tá no Houaiss. [íncubo: demônio que, segundo a crença popular, assume a forma masculina e se apodera das mulheres adormecidas levando-as ao pecado da carne.] Isto foi em que ano?

Seu guru não era o Millôr? Você trocou de guru?

Ziraldo: O Millôr era o guru de nós todos. Meu, do Fortuna, do Claudius e do Jaguar. Nós inauguramos a primeira geração de secquacci do Millôr. Como se escreve?

Ziraldo: S-E-C-Q-U-A-C-C-I. Acho que é assim, uma palavra italiana. Foi o Millôr que nos apresentou a ela. Ele a pronunciava bem italianamente e um dia explicou pra gente que era o nome que Leonardo da Vinci, creio, dava a seus auxiliares ou discípulos. Por coincidência, outro dia mesmo a procurei no Google. Achei, apenas,

Ziraldo: Final da década de 1960. Olha que tem tempo. A partir daí, Jaguar, que era um festeiro, me levava pra todos os lugares onde ia. Praticamente, me apresentou o Rio. Não ao Rio, mas o Rio mesmo, a cidade sendo mostrada para ser vista com outro olhar. Jaguar é O carioca. Uma verdadeira instituição. Como o velho Sérgio Cabral, por exemplo, que só perderia para o Albino Pinheiro, de saudosa memória. Aliás, o Albino Pinheiro era o parceiro de agito do Jaguar, como sua mulher, a Olga Savary, que, com o mesmo jeito tímido do Jaguar, também era outra festeira. As históricas festas do Jaguar e do Albino, que marcaram a história da Zona Sul do Rio, foram uma invenção da Olga, como, aliás, foram também as Dicas do Pasquim.

Ziraldo: Isto. A Flávia Savary é hoje uma das autoras de livros infantis mais importantes do País. Em 1959, o Jaguar saiu da Manchete e, junto com o Scliar, o Glauco Rodrigues, o Naum Sirotski, Paulo Francis, o Luiz Lobo e outros nomes da pesada, foi viver a grande aventura da revista Senhor. Ali, o Jaguar pôde exercer, tchan, tchan, tchan, tchan... o seu grande talento! Para o qual, aliás, ele nunca deu muita importância. A não ser que estivesse fingindo. Estava não. Ele desenhava em qualquer papel, tudo do tamanho que ia sair na revista, pequenininho, e enfiava no bolso da camisa, amarrotava tudo. Sua experiência na revista Senhor acabou fazendo dele um desenhista de humor dos maiores do mundo. Aliás, o Fernando Sabino quando elogiava o texto de alguém, dizia: “Olha que disto eu entendo!” Pois é o que eu digo quando me refiro ao Jaguar. Que é o que há de melhor nesta galeria onde estão aqueles cartunistas de que falei no começo, os mestres. O Steinberg e os outros dois...

Ziraldo: André François e Ronald Searle. Deixa eu explicar isto direito. O desenho do Jaguar é, na minha opinião, o melhor de nós quatro, os tais secquacci do Millôr. Porque ele não sabe desenhar. Quer dizer, não sabe, convencionalmente. O Claudius, que é arquiteto, e eu sabemos desenhar qualquer coisa. O Fortuna também sabia. Nós sabemos, por exemplo, desenhar um cavalo igualzinho a um cavalo. O Jaguar, não. Ele desenha um cavalo que só existe na cabeça dele. Além disso, alguns dos seus cartuns são dos melhores que conheço, não bastasse a qualidade de seu desenho. Explicando melhor: o Claudius, quando resolve, lucidamente, fazer um desenho antológico, ninguém o segura. Mas há ali uma intencionalidade, a certeza de que ele está fazendo uma obra-prima. E ele tem feito muitas. Já o Jaguar expulsa seu desenho, entende? Sai dos poros, da ponta dos dedos. E sai com a crueldade que o Grande Humor exige. Este Grande Humor aí, você escreva, por favor, com letra maiúscula. Preciso fazer um álbum com os melhores cartuns do Jaguar, mas onde é que vou achar os originais? JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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MEMÓRIA FOTOS: DIVULGAÇÃO

O ano de 2012 é especial para o rádio brasileiro. Inicialmente pelo fato de marcar os 90 anos da primeira transmissão oficial no Brasil – ocorrida em 7 de setembro de 1922, durante as comemorações do centenário da Proclamação da Independência. Naquele dia, a estação de 500 watts instalada no morro do Corcovado deu voz ao discurso do Presidente da República Epitácio Pessoa, transmitido para os visitantes da Exposição Internacional do Rio. A partir daquele passo inicial, o rádio seguiu sua história, embalado por nomes fundamentais, como Edgard Roquette-Pinto, fundador da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, primeira emissora nacional, em 1923. Poucos personagens, porém, foram tão importantes quanto Ademar da Silva Casé para a consolidação do veículo no País. Nascido na cidade de Belo Jardim, em Pernambuco, no dia 9 de novembro de 1902, era filho de João Francisco e Rita Leopoldina. Para muitos, foi o verdadeiro ‘pai’ do rádio brasileiro – ou, na pior das hipóteses, o responsável por sua formatação e profissionalização. Completaria 110 anos de vida em 2012. Há ainda outro motivo de homenagens: sua principal criação, o programa que levava seu nome, também faria aniversário redondo este ano – estreava há exatas oito décadas. Não por acaso, é recorrente a idéia de que Ademar fundou – ou representou ele próprio – a principal escola do rádio no Brasil. “Numa fase da vida ele foi um grande vendedor de rádios, de porta em porta mesmo. Até que comprou um aparelho que pegava ondas curtas, e começou a ouvir emissoras da Europa e dos Estados Unidos. Aí ele percebeu que o que fazíamos por aqui, na verdade, não era rádio. Em 1932 o Governo Vargas libera a publicidade no rádio – que era vetada até então. Ele vislumbra a possibilidade de fazer um programa lucrativo. Assim nascia o Programa Casé, em 14 de fevereiro daquele ano, às oito horas da noite. O veículo, que no Brasil ainda era muito incipiente, entraria numa nova era”, conta Rafael Casé, neto de Ademar. Jornalista, professor universitário e Editor-Chefe do Observatório da Imprensa, programa apresentado por Alberto Dines na TV Brasil, Rafael descreve seu avô. “Ele era um cara simples, com escolaridade básica, um verdadeiro pé-de-boi. Fez o projeto do programa, sem nunca ter feito algo parecido. Teve coragem de encarar aquele desafio. E soube delegar funções e se cercar de bons profissionais, pois não tinha nenhum conhecimento artístico. Chamou diversas pessoas das áreas de música, poesia... Montou sua equipe e foi um organizador, um maestro daquele time. Atuava até mesmo como corretor, vendia os anúncios para manter aquele sonho vivo. Fazia de tudo! E faria qualquer coisa para que o programa fosse ao ar! Se fosse preciso passar o dia carregando caixas, ele não hesitaria em colocar a mão na massa.” Casé introduziu um dinamismo jamais visto nos programas de rádio em 36

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O rádio brasileiro em sua mais fina sintonia O inovador Ademar Casé contribuiu de forma decisiva para a profissionalização e consolidação do veículo no Brasil. P OR P AULO C HICO

estações brasileiras. Eram o fim do amadorismo e o início de programas bem produzidos. Era costume, nas emissoras nacionais da época, abandonar o ouvinte à própria sorte, enquanto se afinava um instrumento ou se resolvia algo no estúdio. O microfone era sempre desligado nesses intervalos. Influenciado pelo modelo das emissoras norte-americanas, introduziu o bg (background), uma música de fundo contínua durante os intervalos entre as apresentações do programa. Um recurso utilizado até os dias atuais. Rafael Casé conta ainda que Ademar, apesar de emprestar seu nome ao programa, não tinha qualquer talento de comunicador. “Houve ocasiões em que ele precisou exercer o papel de apresentador, e foi um desastre. Seu talento era comercial. A própria escolha do nome do programa foi por acaso, em cima da hora, praticamente no ar. Ademar não havia

pensado em um nome e coube ao Diretor da Rádio Philips, Augusto Vitoriano Borges, improvisar: ‘A Rádio Philips do Brasil, PRAX, vai começar a irradiar o Programa Casé’, anunciou ele, meio que no improviso”. Inovações que fizeram História O Programa Casé entrou para a História do rádio por apresentar uma série de inovações. Era uma grande revista, com doses de poesia, humor, música clássica, música popular, instrumental, cânticos. Trazia ritmos novos, como rumba e maxixe. Compositores de samba como Noel Rosa, até então, só tocavam nos clubes ou em festas fechadas... “Esse som novo entra no rádio graças ao Ademar. E começa a se formar ali o conceito de música popular brasileira. Ela já existia, é claro, mas não tinha veiculação, os fatos aconteciam na penumbra e os artistas apareciam de forma muito isolada.

Foi através das ondas do rádio, e seus programas pioneiros, que a mpb ganhou visibilidade e identidade nacional. E foi a partir daí que artistas de todos os Estados passaram a migrar em massa para o Rio e São Paulo, que se tornaram centros culturais”, explica Rafael. Houve épocas em que o programa chegou a ter 12 horas de duração – começava ao meio-dia e prosseguia até à meianoite, aos domingos. Um recorde na maratona dominical, digna de causar inveja a Silvio Santos, mesmo no auge da carreira do apresentador de tv e dono do SBT. Ademar fez o primeiro jingle do País e iniciou a onda de contratos exclusivos com artistas, num casting que incluía nomes como Carmem Miranda, Silvio Caldas, Almirante, Braguinha, Aurora Miranda, Lamartine Babo e Dorival Caymmi. Essa, aliás, era uma estratégia vital para encarar as emissoras concorrentes que surgiam. “A atração quase sempre foi líder de audiência, e sempre foi muito respeitada. Mas, quando surgiu a Rádio Nacional, em 1936, com a chancela do Governo, muitos artistas migraram para lá. Assim, Ademar passou a fazer os contratos de exclusividade, cachês que ele bancava. Pagava bem e pagava em dia... Garantia visibilidade e dava segurança aos artistas. Alguns deles escapuliam, iam tocar em outras rádios, com pseudônimos, é bem verdade”, conta Rafael, destacando que ao longo da vida Ademar ganhou dinheiro e teve uma vida confortável. “Ele não ficou rico, mas morou numa bela casa em Copacabana, no Bairro Peixoto. E, até por ser de origem humilde, gostava de ter coisas bonitas em casa, obras de arte e carros caros.” O Programa Casé esteve no ar até 1951, tendo diversos apresentadores – até Carlos Lacerda e Nássara foram alguns de seus speakers, como eram chamados os locutores. Passou por diversas emissoras, como Tupi, Globo e Mayrink Veiga. Só não foi veiculado pela Rádio Nacional. A atração acabou por entrar em certa decadência. Aliás, o rádio como um todo passou por esse processo, com o surgimento da televisão. Como visionário que era, adepto das novidades, Ademar foi se dedicar ao novo veículo, em parceria com Assis Chateubriand. Montou uma agência de propaganda e na televisão teve outros êxitos, como o programa Noite de Gala, musical apresentado por Murilo Néri. Ademar captava recursos, sugeria formatos, dava condições de trabalho à produção. Em 1960, após sofrer um enfarte, o gênio do rádio abandonou os meios de comunicação por recomendação médica, o que não o impediu de abrir outra Agência de Publicidade, a Agência Casé. Ademar faleceu em 7 de abril de 1993 e deixou de herança, além de importantes capítulos da História do rádio no Brasil, descendentes com destacada presença no cenário da comunicação e das artes. O arquiteto Paulo Casé, o diretor de tv Geraldo Casé e o publicitário Maurício Casé – este, pai de Rafael – são seus filhos.


ARTE

Pelo menos outros dois netos de Ademar têm atuação artística destacada. A atriz Regina Casé, filha de Geraldo, costuma afirmar: “Meu avô me ensinou a ver tudo. No seu programa, ele fazia o que hoje um prédio inteiro faz. Do comercial ao artístico. Não é à toa que trabalho que nem uma louca, do figurino ao texto, passando pela divulgação e o comercial”. Marido de Regina, Estevão Ciavatta lançou, em 2010, o documentário Programa Casé – O Que a Gente Não Inventa Não Existe. Também o neto Augusto Casé, filho de Paulo, tem reconhecida carreira no cinema como produtor de filmes. Rafael Casé é autor do livro Programa Casé, O Rádio Começou Aqui, lançado pela Mauad originalmente em 1995. Uma nova edição da obra, com atualizações e acréscimo de fotos, chegará ao mercado em setembro deste ano. “Esse livro é importante, pois, assim como o filme feito pelo Estevão, ajuda a manter viva a História de um período muito pouco retratado, mas que é fundamental para a comunicação, a cultura e a história do nosso País. Eu não queria deixar que a memória do Ademar sobre casos e fatos se perdesse no tempo”, diz ele. “Se para fundar a primeira emissora brasileira foi preciso um intelectual e homem de ciência como Edgard Roquette-Pinto, empolgado pela idéia de levar a educação a todos os pontos deste País,

seria preciso um corretor de anúncios e vendedor de receptores para completar a obra do mestre, tornando o novo meio de comunicação um utensílio indispensável em todos os lares – a caixa mágica da identidade nacional. Como se não bastasse ter criado a primeira e única escola de rádio do Brasil, Ademar ainda fundou uma dinastia digna do patriarca, repleta de talentosos publicitários, arquitetos e de pelo menos uma grande atriz. É dessa árvore frondosa que surge agora Rafael Casé para nos contar a fascinante aventura de seu avô”, escreveu na orelha da primeira edição do livro Luiz Carlos Saroldi, radialista morto em 2010. A trajetória de Ademar Após uma infância difícil, com a necessidade de fuga de toda a família de sua cidade natal de Belo Jardim devido a perseguições políticas comuns naquela época, Ademar e seus pais mudaram-se para Caruaru. Um imenso desafio esperava a todos naquele novo lugar. Uma epidemia mundial também atingiu a cidade. A gripe espanhola expandiu-se de uma maneira que em todas as residências alguém estava com o vírus. Na casa de Ademar não foi diferente. Todos ficaram doentes, exceto sua mãe. O pai tornouse vítima fatal. Em busca de melhores condições de vida, o jovem Ademar, com apenas 17 anos, foi para Recife. As economias acabaram e o emprego não surgia. Ele dormia

REPRODUÇÃO

A foto acima reúne uma boa parte do elenco fixo do Programa Casé, entre os quais Noel Rosa e Pixinguinha. Abaixo, o locutor Alziro Zarur entre a dupla caipira Bentinho e Xerém, que dava um tom humorístico ao programa.

nas praças e passava fome. Após breve passagem pelo Bilhares Recreio, onde varria o chão e arrumava as mesas de jogo, seguiu para o Rio de Janeiro em 1922, em busca da realização da carreira militar. Era 1922 e a capital federal vivia um intenso clima político com a sucessão presidencial. O Presidente Epitácio Pessoa – o mesmo que fez o discurso da primeira transmissão radiofônica do Brasil – elegeu o seu sucessor Artur Bernardes, o que provocou revoltas e protestos em vários Estados. O agrupamento militar, com o qual Ademar saiu do Recife, foi direcionado para a Vila Militar, Primeiro Regimento de Infantaria, um dos focos de oposição ao então novo Presidente. Involuntariamente, Ademar Casé entrou em combate. Na Vila Militar, diferentemente do que ocorreu no Forte, a revolta foi rapidamente abafada. Acabou preso, levado para São Paulo e, depois, transferido para a cidade de Rio Claro/SP, ficando na Segunda Companhia de Metralhadoras Pesadas. Dois meses depois foi posto em liberdade e embarcou em navio de volta a Pernambuco. Disposto a vencer na vida, juntou algum dinheiro e retornou ao Rio de Janeiro. Após diversos empregos – chegou a ser corretor de imóveis e agenciador de anúncios para a revista Don Quixote e outras publicações como A Careta, Revista da Semana, Fon-Fon, Para Todos, Cena Muda e O Malho –, Ademar decidiu investir numa atividade paralela, que lhe garantisse alguma renda extra. Começou a vender receptores Philips. Com a lista telefônica na mão, buscava nomes e endereços de possíveis clientes. A tática era visitar as casas durante os dias úteis. Ele esperava o dono da casa sair para trabalhar e só então tocava a campainha. O segredo consistia em pedir para falar com o proprietário da casa chamandoo pelo nome como se realmente o conhecesse. Em seguida, falava para a esposa que tinha informações de que o marido estava interessado em adquirir um rádio. E como a esposa nunca estava sabendo do assunto, e seria impossível saber, ele deixava o aparelho ligado e sintonizado na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a mesma fundada por Roquette-Pinto e citada no início desta matéria. Quando voltava, três dias depois, a família já estava encantada pela novidade eletrônica. As vendas eram impressionantes e o diretor comercial da Philips do Brasil quis conhecer pessoalmente aquele vendedor que chegava a levar 30 aparelhos no carro, vendia todos e voltava com um pedido de mais 27. Aproveitando os contatos e a sua fama como grande profissional dentro da Philips, Ademar sugeriu ao Diretor Augusto Vitoriano Borges o aluguel de um horário. Explicou que essa nova experiência seria ainda melhor e mais dinâmica do que o Esplêndido Programa, atração de maior sucesso na época, transmitida pela Rádio Mayrink Veiga. O tempo logo se encarregaria de mostrar que Ademar estava certo. Absolutamente certo. Seu programa logo entraria no ar. Seria um sucesso. E faria História.

JEANNE HEBUTERNE COM COLAR, 1917

Modigliani, o Lobo Branco P OR P AULO R AMOS D ERENGOSKI

Se Gaughin, Van Gogh, Monet, Degas foram os pintores da natureza em fúria ou das paisagens verdejantes impressionadas pela luz, Amedeo Modigliani, o Lobo Branco de Montparnasse, foi o mais urbano dos artistas. Romântico, desesperado, livros e filmes foram feitos sobre sua apaixonada boemia. Talvez por ele ser o próprio protótipo do que se enxerga hoje sobre o artista maldito. Alcoólatra total, executou sua obra nos estúdios imundos de Montparnasse entre miséria e desastre. Para sobreviver vendia caricaturas nos bares e até pedia esmola. No entanto foi o maior retratista de toda uma época. Nascido na Itália em 1884 morreu em Paris, sem um tostão, aos 35 anos. Seus quadros com mulheres nuas estão entre os melhores já produzidos na face da Terra: há uma simplificação pungente e grandiosa em todos eles. A plasticidade é tão forte que chega a lembrar esculturas, numa síntese estrutural perfeita, numa firmeza volumétrica. São imagens de forte caracterização, tensas e dolentes, com visível matizes emotivos. Todos os nus de Modigliani são retratos incendiados pela paixão carnal. Pintou as inúmeras amantes, as porteiras de prédios, as aristocratas que o protegiam, os amigos como Cézanne, Soutine e Picasso. No fim da breve vida estava melancólico, indiferente, e os quadros foram ficando cada vez mais suaves, com uma intimidade crepuscular, os tons cinzas quebrados apenas pelo vermelho dos lábios das mulheres. Seu último auto-retrato é terrível. Está só, enfermo, consumido, anguloso, enfraquecido. Sente que o fim se aproxima entre sucessivos ataques de delirium tremens. Ele que fora um homem de excepcional beleza era – tuberculoso aos 35 anos – um farrapo humano. Paulo Ramos Derengoski, jornalista e escritor, sócio da ABI, é radicado em Lages, Santa Catarina.

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WOLF RAICH

HISTÓRIA

Stefan Zweig O escritor da esperança Há 70 anos suicidava-se, no auge da fama, o autor consagrado que a imprensa linchou no lançamento de Brasil, País do Futuro. P OR F UAD A TALA

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S TEFAN Z WEIG ARMANDO PACHECO

Com essa patética “Declaração” reproduzida à direita, datada de 22 de fevereiro de 1942, despedia-se da vida e de seus amigos Stefan Zweig, um dos mais celebrados e populares escritores do século XX. Acompanhou-o no derradeiro passo a segunda mulher, Charlotte Elizabeth Zweig, Lotte, na intimidade, uma polaca-alemã de 34 anos, sua fiel e silenciosa ex-secretária. O Brasil perdia o seu mais apaixonado admirador e propagandista, judeu de origem, pacifista e humanista no mais elevado sentido do termo, que um dia sonhou em encontrar no País a paz que tanto buscava, em fuga do fantasma do anti-semitismo que assombrava a Europa. Aqui também esperava concretizar “sua derradeira esperança no tocante ao destino do mundo”, no dizer de Alberto Dines, seu mais autorizado biógrafo brasileiro. O cenário da tragédia foi a singela casa em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, paradoxalmente, no País que ele elegera como o último refúgio das vítimas do ódio nazista. Aos 60 anos, Stefan Zweig estava no esplendor de sua maturidade criadora. Rico, famoso, cercado de amigos e admiradores por toda parte, traduzido em mais de 30 idiomas, era amado pelo público e aplaudido calorosamente nos auditórios da Europa e da América, onde pronunciava concorridas conferências. Dedicouse praticamente a todas as atividades literárias, destacando-se em biografias como as de Maria Antonieta, Maria Stuart e Napoleão; novelas e romances, como Carta de uma Desconhecida, Amok, Vinte e Quatro Horas na Vida de uma Mulher, e A Novela de Xadrez, entre outras. Muitos de seus romances inspiraram roteiros de filmes em Hollywood e Estocolmo. A notícia de sua morte abalou o mundo. Mais que a perplexidade diante do óbito, foi o impacto chocante das circunstâncias em que ele se consumou. De sua extensa bibliografia, para nós principalmente, ficou o verdadeiro hino de amor que dedicou ao País que tão carinhosamente o acolheu. A obra, cujo título se transformou numa espécie de alcunha nacional, é Brasil, País do Futuro, tão mal recebido pela crítica na ocasião de seu

“Antes de deixar a vida por minha livre e espontânea vontade e em pleno domínio de minhas faculdades, sinto-me impelido a cumprir uma última obrigação: fazer um sincero agradecimento a esta esplêndida terra do Brasil, que me proporcionou a mim e ao meu trabalho um repouso tão generoso e hospitaleiro. Meu amor por este país aumentou dia após dia, e em nenhum outro lugar eu teria preferido reconstruir uma vida nova, hoje que o mundo de minha língua desapareceu para mim e que meu lar espiritual, a Europa, destruiu a si mesmo. Mas, depois de sessenta anos, é preciso ter uma força incomum para fazer um começo inteiramente novo. A que possuo esgotou-se nos longos anos de perambulação sem teto. Assim, julgo melhor concluir, em tempo hábil e de cabeça erguida, uma vida na qual o trabalho intelectual representou a mais pura alegria, e a liberdade pessoal, o bem mais precioso da Terra. Saúdo todos os meus amigos! Possam eles ter a graça de ainda ver a alvorada depois da longa noite! Eu, impaciente demais, sigo na frente”.

lançamento. O apelido foi usado à exaustão tanto por ufanistas como por marqueteiros de todos os matizes. E por muito tempo o Brasil foi reconhecido como país do futuro. A estreita relação de Stefan Zweig com o Brasil é mais que o fruto de um amor à primeira vista. Ele sonhou o Brasil antes de se apaixonar por ele; cedo manifestou interesse pelo Novo Mundo, onde vislumbrava uma sociedade humana sem os ódios e as turbulências que começavam a agitar a Europa a partir do fim da Primeira Guerra Mundial. A liberdade ia a pique. O ano de 1933 assinala a ascensão de Hitler. A queda de sua querida Áustria, em 1938, torna-o um errante. Tentou a França, cujo clima de guerra já chegava às suas fronteiras. Depois a Inglaterra, onde adquiriu uma bela casa em Bath, local das antigas termas romanas, rodeado pelos repousantes campos verdes do interior inglês. Ante o avanço de Hitler, temeu a próxima chegada das forças nazistas. Não o atraíam os Estados Unidos. Voltou-se para a América do Sul, em particular o Brasil, que a esse tempo já conhecia de alguma leitura e contatos epistolares. Decidiu dar andamento ao seu projeto de conhecer a América do Sul. Ele esteve no Brasil em três ocasiões. A primeira em agosto de 1936, quando, materializando projeto antigo que chegara a tratar com seu amigo e futuro editor Koogan, da Editora Guanabara, a convite

do Governo brasileiro, fez uma escala no Rio, onde permaneceu por alguns dias, antes de seguir viagem para Buenos Aires, como convidado de um congresso do Pen Clube. Aqui, tornou-se alvo das maiores homenagens. A imprensa deu grande cobertura à sua chegada. Foi recebido no Catete por Getúlio Vargas, e todo o seu staff. Estávamos às vésperas da decretação do Estado Novo. O Jockey Clube ofereceulhe um banquete na elegante sede da Lagoa Rodrigo de Freitas. O Pen Clube brasileiro, a Academia de Letras, a ABI, dirigida por Herbert Moses, as entidades judaicas do Rio de Janeiro, todos renderam-lhe os maiores tributos. Foi à Floresta da Tijuca, deslumbrou-se com o nascer do sol surgindo do mar e descobrindo-se lentamente dos contornos do Pão de Açúcar, extasiouse com a visão do Corcovado. Embora avesso a essas manifestações, Zweig ficou encantado com a generosidade e com o carinho com que era tratado por todos. Ele rendeu-se à simpatia e à informalidade do povo, encantou-se com tantas coisas mais, o colorido das ruas, a mistura de gente de todas as procedências, de todas as cores e etnias. Fora inoculado por aquele sentimento que faz o indivíduo descobrir-se dentro de si mesmo, em harmonia com o lugar, os homens e o mundo. Numa de suas declarações à imprensa, prometeu tornarse “o camelô do Brasil”. A segunda foi em 1940, em pleno “fascismo tropical”, no auge do anti-semitis-


mo que resultou no Holocausto, o massacre dos judeus, ao tempo que a situação na Europa evoluía rapidamente para o colapso total das liberdades sob os regimes fascistas do Eixo. Dines relata que, atormentado pelo perigo do avanço das tropas nazistas, um dos primeiros gestos de Stefan foi tentar a cidadania brasileira. Havia rigorosa restrição ao ingresso no País de refugiados, principalmente de judeus, árabes, asiáticos em geral. A ditadura de Vargas não chegou a adotar uma política de Estado anti-semita. Havia, sim, dentro do próprio Governo, nichos de anti-semitismo, unicamente. Mas também o contrário. Como uma pequena rede de proteção. Foi o caso do Embaixador Souza Dantas, que, ignorando as rígidas determinações do Itamarati, chefiado por Osvaldo Aranha, facilitou a entrada de refugiados judeus, concedendo-lhes vistos nos passaportes. Diga-se que Souza Dantas conseguiu a proeza de permanecer por mais de duas décadas à frente da Embaixada brasileira em Paris, inclusive durante a ocupação nazista. Fábio Koifman, no seu Quixote nas Trevas, documenta de maneira exaustiva o papel de Souza Dantas nessa missão humanitária; com base nos milhares de documentos e arquivos que pesquisou, chegou a localizar mais de 500 judeus evadidos do nazismo a quem o Embaixador ajudou. Assim, acima do “fascismo tropical” que vigorava no País, que Zweig também ignorou, ironicamente, diante do que ocorria na Europa fascista, o Governo brasileiro não criou obstáculos à sua segunda vinda ao Brasil. Ele vinha a pretexto de realizar uma série de conferências na América do Sul e embarca em Nova York, ao lado de Lotte, com destino ao Brasil. Mas, antes, numa escala em Buenos Aires, cumprindo compromissos, obteve no Consulado brasileiro o visto de residência definitiva no País. O feito coroava o esforço secreto de amigos junto ao Itamarati. Concretizando o que prometera em sua primeira viagem, já imbuído do papel de “camelô”, viera na verdade preparar o livro sobre o Brasil. Desta vez ele se demorou por cerca de cinco meses. E iniciou sua peregrinação para conhecer e entender melhor o país que elegera como seu último refúgio Mergulhou na história, visitou vários pontos do território, foi a São Paulo, a Minas Gerais, ao Rio Grande do Sul, a convite do Governo baiano foi a Salvador, onde se encantou mais ainda com a mistura étnica e a alegria do povo; não conseguiu ir à Amazônia, nas fronteiras do Brasil com o Peru, por causa das chuvas que dificultavam a navegação, nem conhecer o Rio São Francisco, como planejara. Mas nada de conferências, mordomias e regalias que se costuma dar a convidados ilustres. Tudo era por sua conta e risco. Queria apenas ver, sentir, pensar o País. De volta ao Rio, onde se deteve por mais tempo, escreveu boa parte do livro, seguindo depois para os Estados Unidos, onde completou suas pesquisas nas abastadas bibliotecas americanas. Em 1941, no ápice da Segunda Guerra Mundial, já acometido da profunda depressão provocada pela incerteza de seu futuro, conclui o livro, a que deu o títu-

lo de Brasil, País do Futuro. Em meados desse ano, o livro foi lançado simultaneamente em seis edições diferentes, nos Estados Unidos, na Inglaterra, Argentina, Espanha, Suécia, inclusive uma versão em alemão. Na introdução da edição brasileira, prefaciada por Afrânio Peixoto, Stefan Zweig fala de suas primeiras impressões ao desembarcar no Rio de Janeiro pela primeira vez: “Deu-se então minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e ao mesmo tempo comovido, pois se me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas também uma espécie inteiramente nova de civilização.” Em outro trecho do livro, ele registra: “O que separa com hostilidade e desconfiança nos outros países aqui se combina livremente. Quantas raças encontramos nas ruas: o preto de casaco roto, o europeu com terno bem talhado, o caboclo de olhar grave e cabelos pretos e lisos; em centenas e milhares de matizes, as mesclas de todos os povos e de todas as nacionalidades: mas todos não como em Nova York ou em outras cidades, separados em bairros.... Todos aqui se misturam, e a rua, pela grande variedade de fisionomias, se torna um quadro constantemente cambiante.” Zweig reconhece que lhe seria impossível tirar conclusões definitivas ou fazer predições ou profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil, pois aqui todas essas questões eram tão novas, tão especiais e acima de tudo dispostas de modo tão indistinto, em conseqüência da vastidão do País, que cada uma delas demandaria um grupo de especialistas para esclarecê-las inteiramente. E profetizou:

“O Brasil, pela sua estrutura etnológica, se tivesse aceitado o delírio europeu de nacionalidades e raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranquilo do mundo.” No prefácio, Afrânio Peixoto chama a obra de “livro de amor presente e esperança futura”: “Nunca a propaganda interesseira, nacional ou estrangeira, disse tanto bem do nosso país, e o autor, por ele, não deseja nem um aperto de mão, nem um agradecimento.” Afrânio fala do amor sem retribuição, dos “pátria-amada”, dos “ufanistas” que ficarão de “cara à banda, pois ninguém, até hoje, escreveu livro igual sobre o Brasil”. Em agosto desse ano, poucas semanas depois do lançamento do livro, de posse de seu visto de residência definitiva, Zweig volta ao País pela terceira vez. Agora para ficar e escrever o último capítulo de sua desesperada fuga do repertório de horrores que se consumava no Holocausto. No Brasil, o livro foi um sucesso de público. Mas a imprensa do Rio de Janeiro o massacrou. Nos círculos governamentais, também, o livro foi muito mal recebido. As autoridades não gostaram do relato fiel, sem retoques nem decalques, das condições das favelas cariocas e a extrema pobreza em que vivia a população negra do País, entre outros pontos. Quanto aos intelectuais brasileiros, que também torceram o nariz para a obra, ainda Alberto Dines, em entrevista ao escritor e jornalista Luciano Trigo, lembra que Zweig era um autor de sucesso, “um dos maiores best-sellers mundiais”, fato bastante suficiente para justificar a ojeriza que autores estrangeiros de sucesso despertavam naquela intelectualidade sem muita expressão que o cercou. Quando chegou, Stefan Zweig esperava encontrar um País à sua espera, em

FOTOS CASA STEFAN ZWEIG

A elegância de Stefan Zweig no desembarque no Rio em 1936. Abaixo, sua segunda mulher Charlotte Elisabeth Altmann, ou simplesmente Lotte.

festa, sentia-se feliz por imaginar que com aquele hino de amor retribuía pelo menos em parte ao País que o recebera de coração aberto, diferente da Europa destruída pelo furacão nazista, onde cada nação inventara uma palavra de ódio ou de motejo para aplicar, depreciativamente, à outra. Chegou arrasado, esmagado pelo terror da guerra. A depressão se agravava a cada dia. A contundência corrosiva da crítica o deixou mais abatido ainda. Não reagiu, não contestou, não respondeu a qualquer crítica. Apenas lamentou-se com seu editor Koogan. No entanto, menos pelas críticas recebidas da imprensa do que para fugir da canícula carioca, instala-se em Petrópolis. E o isolamento, a cidade de clima ameno, com seus casarões imperiais e verdes deslumbrantes, momentaneamente lhe aplaca a febre que o consome, mas logo descobre que lhe faltam o contato e a presença dos círculos intelectuais, dos amigos com que se habituara a conviver. Faltam-lhe bibliotecas, faltam-lhe livros indispensáveis ao seu trabalho. Petrópolis pouco tem a oferecer além da tranqüilidade. Pouco conhece do acanhado circuito local. Salvo os amigos do Rio que de vez em quando subiam a serra, apenas uns outros mais. O diretor da biblioteca, o prefeito, que procura com alguma regularidade para conversar sobre a cidade. Não consegue escrever. Aos poucos, descobre que lhe falta o chão. A solidão de Petrópolis o deprime ainda mais, circunstância a que se junta o agravamento da saúde de sua querida Lotte, às voltas com uma insidiosa asma. O desespero cresce, está próximo o epílogo dessa tragédia. Além da “Declaração” dirigida aos brasileiros, Zweig deixa outros bilhetes de despedida. Ao prefeito e ao diretor da biblioteca de Petrópolis, à sua ex-mulher Frederike, que morava nos Estados Unidos. A ela dedica uma mensagem mais patética ainda. É a mensagem de um homem no limite final da desesperança, em marcha batida para o gran finale que ele mesmo escreveu no silêncio do seu estoico martírio: “Quando receberes esta carta, estarei bem melhor. Em Ossining me viste muito melhor e mais calmo. Mas minha depressão piorou, me sinto tão mal que já não consigo mais me concentrar no trabalho. A isto se soma a tristeza, a única que temos, de que esta guerra há de durar por muitos anos e que passará muito tempo antes que possamos regressar à nossa casa. Quanto à solidão, que no início era um notável apaziguamento, se transformou num desgosto... Escrevo-te estas linhas nas últimas horas. Não podes imaginar quanto me sinto aliviado desde que tomei esta decisão.” Em Morte no Paraíso, Dines descreve a cena do encontro dos dois cadáveres: “Abraçados numa cama-patente Faixa Azul, tamanho solteiro, num modesto bangalô petropolitano que escolheram para refugiar-se da hecatombe... o último dos europeus e sua silenciosa companheira. Simples como um folhetim.”

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HISTÓRIA STEFAN ZWEIG

O massacre do Correio da Manhã na pena impiedosa de Costa Rego

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No dia seguinte, 6 de agosto, Costa Rego volta à carga. Em Os milhões de Zweig, faz um jogo de duplo sentido, primeiro tripudiando dos “milhões de imigrantes italianos, japoneses, alemães” que Zweig menciona, possivelmente, numa figura de retórica, para falar da imigração no Brasil. “Homem de sua raça, Stefan Zweig não deixaria de se impressionar no Brasil com a inteira ausência de qualquer preconceito étnico” diz o jornalista, e acusa-o de carregar nas cores em relação “à mescla livre e sem estorvo dos brasileiros”. Segundo, ligando sub-repticiamente os milhões do título do artigo à versão circulante de ter sido o livro escrito sob encomenda do Governo. Há ainda, em seqüência, um terceiro artigo, publicado no dia 7 de agosto. Em Voltando a Zweig , Costa Rego transcreve um trecho de Brasil, País do Futuro, aquele em que o autor comenta que enquanto na planície triste e sem encantos da Europa o trabalho é a única coisa que salva o homem da tristeza, numa natureza tão rica, tão exuberante de frutos, e que dá beleza e dá felicidade à vida, como no Brasil, o dinheiro “não desperta, como entre nós, intensamente, o desejo de enriquecer ”. A tristeza, no modo de ver dos brasileiros, afirma Zweig, não é o acúmulo do dinheiro poupado graças a inúmeras horas de trabalho, não é também o resultado de um esforço freneticamente enervante. “O dinheiro é algo com que se sonha: tem que vir do céu, e no Brasil é a loteria que substitui o céu”. Zweig interpretava isso como um desapego do brasileiro à vida material, como um ideal de felicidade. Costa Rego toma esses juízos como ofensa aos brasileiros, rebate sua observação, acusando-a de exagerada, e que, embora houvesse loteria no Brasil, a vida não giraria em torno da loteria. Hoje, não merecem contestação os julgamentos de Costa Rego, marcados invariavelmente pela má vontade ou pura maldade. Basta ver hoje, por exemplo, o festival de loterias que funcionam no País e flagrar as imensas filas que se formam diante das lotéricas em ocasiões especiais, como nos prêmios acumulados que substituem o céu sonhado pelos brasileiros acenando com milhões aos vencedores. E sobre as faltas ao trabalho no fim do mês a que se referiu Zweig, embora não seja a regra, é inegável que ainda subsiste algum resquício dessa antiga prática. Também no Correio da Manhã, outro articulista, Carlos Maúl, não escapou de

dência, documentos e demais pertences. A oferta foi encaminhada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Os ventos da guerra européia já chegavam por aqui. O assunto foi postergado, relegado a segundo plano, esquecido no fundo de uma gaveta burocrática. Era mais um episódio do desapreço que o Brasil costuma dedicar à sua memória e apenas para avaliar a extensão desse crime, na mesma cidade em que Zweig teceu sua utopia, basta lembrar a demolição do Palácio Monroe, que integrava harmoniosamente o cenário histórico da Cinelândia, sede do Senado brasileiro durante muitos anos. Aliás, o Rio de Janeiro é uma cidade que perdeu a referência da maior parte do seu passado. Mas enfim, uma boa notícia. A Biblioteca Nacional conseguiu reunir em sua Seção de Manuscritos uma raStefan Zweig em visita a São Paulo em 1936. zoável documentação sobre Zweig. Ela consta de recortes de imprensa, o carimbo desferir sua verrina contra o livro, ao qual concedendo o visto de residência nos pasqualificou de “mau”, critica as imprecisaportes de Stefan e de Lotte, corresponsões históricas, considerando despropodências no Brasil, telegramas, bilhetes, sital o peso que Zweig empresta à partifotos, o contrato original para a edição bracipação européia na formação do Brasil e sileira de Brasil, País do Futuro e anotações afirma que sua obra, sobre ser deplorável diversas. Em Petrópolis, a casa da Rua sob todos os aspectos, não passa de uma Gonçalves Dias em que viveu seus últimos propaganda negativa do País. “Em resumo, meses no Brasil foi reformada e se transconclui Maúl, o livro de Zweig é um formou em Casa de Stefan Zweig, preserexcelente repositório de matéria que pode vando também algum acervo. Deixamos ser utilizada contra nós, fora daqui, por para o fim as perguntas cuja resposta, para qualquer escriba de má vontade. As palamuitos, permanecerá para sempre um vras bonitas que encerra não chegam a mistério imperscrutável. Por que Zweig? amortecer o efeito de quanto nele se Por que o Brasil do Estado Novo? Justamencontém de equívoco e tendencioso”. te ele que perambulava sem teto pelo Má vontade que ele, Maúl, exibiu, ao mundo, à procura da liberdade pessoal que expressar na própria condenação a rejeipara ele era o bem mais precioso da Terra. ção do livro cujo sentido não entendeu. Liberdade varrida de sua Europa, que imaA notícia do suicídio de Stefan Zweig ginava ter encontrado aqui, reinventada e Lotte foi publicada com destaque na edino paraíso que idealizou com sua generoção do dia 24 de agosto de 1942 do Correio sidade e benevolência de humanista. De da Manhã, incluindo a “Declaração” de Alberto Dines, que consagrou o epíteto despedida. Rende-lhe as homenagens que que dá o título a este artigo, transcrevo o lhe devia – e das quais se omitiu durante expressivo trecho de Morte no Paraíso em a longa agonia que precedeu o fim trágique ele sonda o mistério do suicídio de co do casal – e destaca sua obra literária. Stefan Zweig, “o escritor da esperança”: Na edição do dia 28 de agosto, Costa Rego “O fugitivo do nazismo foi encontrar ainda voltaria a Zweig. Comentando o abrigo no Eldorado autoritário do Estado suicídio, qualifica-o de “puro acidente”. Novo. E gostou. Irônico. O Éden, porém, Lamenta o gesto, mas não pode condenar não disfarça exílios... O trópico viçoso não a intenção. espanta todos os fantasmas. O sol bri“Suicídio lamenta-se, não se julga”, lhante é insuficiente para secar todos os sentencia ele. náufragos encharcados.” Os herdeiros de Zweig ofereceram, em Setenta anos depois, Zweig está mais doação ao Governo brasileiro, por meio da do que nunca entre nós. Umbilicalmente Embaixada em Londres, todo o acervo do ligado ao Brasil. Cada qual com seu quiescritor, incluindo a biblioteca, corresponnhão, um faz parte da biografia do outro. CASA STEFAN ZWEIG

A imprensa do Rio de Janeiro recebeu o livro com críticas contundentes. Zweig, homem rico, que sempre recusou regalias oficiais, entre outras coisas, foi acusado de ter-se vendido ao Governo Vargas. Outros, disseram que o livro era ufanista, uma utopia tresloucada; outros, ainda, que ele escrevera sobre coisas que mal conhecera e interpretara de maneira tendenciosa. De fato, o próprio Zweig, na apresentação do livro, reconhece que sua descrição é incompleta e nem podia ser de outra maneira, dada a dimensão do País e a multiplicidade de sua cultura. “Passei cerca de meio ano neste país e precisamente só agora sei, que apesar de toda a diligência em aprender e de todo o viajar, ainda não posso dizer que conheço o Brasil...” Do que viu – e não foi tão pouco assim – pôde captar com sua sensibilidade de humanista o essencial da alma do Brasil e dos brasileiros, descontados os naturais equívocos históricos ou juízos de valor. Em seu livro, não há crítica, não há denúncia, não há condenação. Mesmo os defeitos e as deficiências estruturais do País, os eventuais desvios do caráter brasileiro, são relatados com olhos benevolentes, de quem não conhece tudo, mas compreende que ali presenciava um estágio de civilização que teria de passar necessariamente por uma depuração e aprimoramento no correr da História. O mais ferrenho e impiedoso crítico da obra de Zweig foi Costa Rego, o todopoderoso redator-chefe do Correio da Manhã, jornal que cunhou sua história pela combatividade e oposicionismo quase sempre virulento aos desmandos políticos e os poderosos do momento. O caso de Zweig foi mais um dos inúmeros equívocos em que o jornal se enredou e que em algumas ocasiões rendeu ao proprietário Edmundo Bittencourt e seu filho e sucessor, Paulo, longas temporadas na prisão, quando não a interdição temporária ou o fechamento do jornal por longo período. No dia 5 de agosto de 1941, Costa Rego publica o primeiro de uma série de artigos em que procura desqualificar e ridicularizar Brasil, País do Futuro, insinuando inclusive intenções venais do autor. Em Interpretações abusivas, critica maldosamente Zweig por afirmar que era hábito no Brasil o trabalhador brasileiro, mesmo o servidor público, receber o salário do mês e faltar dois ou três dias ao trabalho. Ele via nisso uma insinuação à preguiça nacional. A observação, dizia Costa Rego, não era digna do autor e nem podia ser “desculpa a maneira breve e perfunctória” do que Zweig havia visto no Brasil, “pois aqui permaneceu o suficiente para saber distinguir juízos falsos”. Atribui o teor de exaltação do livro ao amor excessivo do autor ao pitoresco e ao exótico, “do qual é impossível ser agradecido, ferindo como feriu a verdade, ensejando aos estrangeiros interpretações errôneas e abusivas”.


LIVROS

movem uma guerra de resistência contra a força invasora, nas ruas de uma Buenos Aires perfeitamente registrada pelos desenhos precisos de Solano López. O final, arrebatador e intrigante, ajudou a transformar a saga de Juan Salvo numa das mais bem realizadas narrativas dos quadrinhos e, de longe, a mais popular entre os argentinos. Cenas dos quadrinhos, com o rosto de Juan Salvo em sua roupa de mergulho, estão grafitadas por toda a Buenos Aires, e foram até usadas na campanha de eleição da atual Presidente da Argentina Cristina Kirchner. Os autores e a obra

A longa espera por El Eternauta Mais de meio século depois, uma das melhores histórias em quadrinhos argentinas finalmente chega ao Brasil. P OR C ESAR S ILVA

Cada cidade tem bem definidas as peças de arte que melhor traduzem sua identidade. No caso de São Paulo, por exemplo, as canções de Adoniran Barbosa, do Rio de Janeiro, de Noel Rosa e Cartola. Quando pensamos na capital da Argentina, Buenos Aires, logo somos remetidos a Carlos Gardel e Astor Piazzolla. Mas um dos retratos mais bem acabados da cultura portenha é, na verdade, uma história em quadrinhos. Trata-se de O Eternauta, romance gráfico escrito pelo roteirista Héctor Germán Oesterheld e ilustrado por Francisco Solano López, originalmente publicado em episódios no jornal Hora Cero Semanal, entre 1957 e 1959. Considerada uma das mais importantes e bem feitas histórias em quadrinhos do mundo, estranhamente continuava inédita no Brasil. Até agora. Finalmente em 2012 a Editora Martins Fontes trouxe para os leitores brasileiros a saga completa de O Eternauta, pelo selo Martins. Inspirada no clássico Robinson Crusoé, de Daniel Dafoe, trata-se de uma história de ficção científica, na qual um viajante do tempo, surgido do nada, relata ao espantado Germán, alter ego do próprio Oesterheld, o drama de um grupo de pessoas que em algum momento, poucos anos depois, se viu ilhado num chalé no subúrbio de Buenos Aires durante uma nevasca que se revelou mortal. Juan Salvo, sua esposa Elena, a filha Martita, mais Favali, Polsky e Lucas, amigos da família que estavam ali jogando baralho, lutam para manter a neve venenosa do lado de fora, enquanto pelas janelas acompanham impotentes as tragédias que se desenrolam na vizinhança. As transmissões radiofônicas dão notícias de detonações atômicas realizadas pelos americanos, e logo su-

põem-se que aquela neve seria resultado desses experimentos. Preocupados com a possível falta de ar, comida e água, Salvo e seus amigos fazem uso de uma roupa de mergulho, guardada na garagem, para improvisar um traje isolante, de forma que possam procurar por suprimentos e sobreviventes. Dias depois, descobrem que a nevasca nada tinha a ver com os testes nucleares, sendo de fato o início de uma invasão alienígena que se manifesta em etapas. A segunda onda da invasão vem na forma de uma tropa de enormes pulgões, os Cascudos, seguidos por outros tipos de alienígenas cada vez mais perigosos, que vão tomando conta da cidade esvaziada de vida humana. Os poucos humanos capturados são transformados em escravos radiocontrolados, os homens-robôs, através de um dispositivo fixado em suas nucas, aparelho este que também podia ser visto em todos os alienígenas usados na invasão. Salvo descobre então que todos são robôs também, controlados por algum tipo de alienígena mestre, que ainda não se revelara. Na tentativa de salvar sua família de um destino trágico nas mãos dos invasores, Salvo e os demais sobreviventes pro-

Héctor Germán Oesterheld é o mais importante roteirista de quadrinhos da Argentina. Nascido em 1919 e formado em Geologia, começou a atuar como escritor em 1950, escrevendo contos infantis, relatos de aventuras e roteiros para histórias em quadrinhos. Em 1957, fundou a Editorial Frontera, pela qual publicou boa parte de seus maiores sucessos, como Sargento Kirk, Ernie Pike, Sherlock Time, Bull Rockett, Ticonderoga, Radall, Mort Cinder e, é claro, O Eternauta. O sucesso dessa série levou Oesterheld a publicar em 1962 pela Editorial Ramírez um periódico de ficção e divulgação científica também chamado El Eternauta, que, além de quadrinhos, trazia artigos e contos. Oesterheld nunca produziu uma versão literária para a primeira parte da novela, mas fez publicar nessa revista uma novela em capítulos com uma continuação às histórias de Juan Salvo, bem como diversos contos curtos, reunidos na antologia El Eternauta y Otros Cuentos de Ciencia Ficción, publicado em 1996 pela Ediciones Colihue, de Buenos Aires. Nos anos 1970, Oesterheld finalmente deu seqüência à história de Juan Salvo, em El Eternauta II, com desenhos de Solano López, publicados na revista Skorpio, da Ediciones Record, material que também está de posse da Martins Fontes para publicação oportuna. Há ainda uma versão curta e sombria de O Eternauta, produzida nos anos 1960 para a revista Gente, com desenhos do ilustrador uruguaio Alberto Breccia e roteiros do próprio Oesterheld, numa releitura mais política da história, um material que também merece a atenção dos editores brasileiros. Na Itália, a popular revista L’Eternauta apresentou aos seus leitores L’Eternauta III, produzida por diversos autores pouco conhecidos. Outro motivo para O Eternauta ter se tornado tão mitológico entre os argentinos foi o dramático desaparecimento de Oesterheld, em 1977, nos porões da ditadura militar juntamente com suas quatro filhas, Estela, Diana, Beatriz e Marina, duas delas grávidas, e também dois genros. Sobreviveram ao massacre apenas sua esposa, Elsa Sánchez de Oesterheld, e dois netos, Fernando e Martín, filhos de Diana e Estela, respectivamente. Além de escritor talentoso, Oesterheld era um combativo ativista político, filiado à Juventude Peronista e ao grupo Montoneros. Dedicou uma de suas mais importantes obras à memória de Che Guevara,

o álbum Che, com desenhos espetaculares de Alberto e Enrique Breccia, publicado em 1968, poucos meses depois da morte do guerrilheiro e logo censurado pelo Governo. Che foi publicado no Brasil em 2008 pela Conrad Editora. Francisco Solano López é um artista de importância no quadrinho argentino e espanhol. Nascido na Argentina em 1928, teve sua estréia profissional em 1951, na Editorial Columba. Conheceu Oesterheld na Editora Abril (da Argentina) e o acompanhou quando, em 1957, ele fundou a Editorial Frontera. Dividiu com Hugo Pratt os desenhos de Ernie Pike, e passou dois anos desenhando El Eternauta. Também foi autor dos personagens Aguila Negra, Calle Corrientes e Evaristo. Devido ao viés político de seus trabalhos, mais de uma vez teve de se exilar. Morou na Espanha e na Itália, sempre trabalhando com quadrinhos, e chegou a morar no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990. De volta à Argentina, em parceria com Pablo Maiztegui (Pol) deu seqüência a O Eternauta, tendo completado El Eternauta: El Regreso pouco antes de seu falecimento, em agosto de 2011, aos 82 anos. López participou de pelo menos um trabalho no Brasil, o álbum Sangue Bom, (2003, Ópera Graphica) ao lado dos brasileiros Carlos Patati e Allan Alex. O Eternauta no Brasil

A edição brasileira impressiona: 360 páginas no formato original, apresentações assinadas pelos autores, um prefácio inspirado do jornalista Paulo Ramos e ótima tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. A capa, assinada por Ednei Gonçalves, é tímida e não traduz toda a importância do trabalho. O uso do papel offset 90 gramas deu ao livro um volume avantajado. O pesado volume ganharia uma manuseabilidade mais adequada se a editora o tivesse encadernado com capas duras. Certamente merecia. O álbum é apresentado em preto e branco, mas existe uma belíssima versão para El Eternauta publicada em 1981 pela Ediciones Record, com cores de Luis Parmiggiani, elaboradas em ricas tonalidades aquareladas que dignificam a história. Na comparação com o original, pode-se perceber que a edição brasileira não foi decorada, ou seja, não houve nenhuma intervenção nos desenhos para encaixar a tradução dos textos, prática muito comum na indústria de quadrinhos no Brasil, que costuma irritar os colecionadores e especialistas. Os balões estão exatamente nos mesmos tamanhos e forma que na edição original. Contudo, houve um ligeiro ganho no traço, que deixou o desenho da edição brasileira um pouco mais pesado que no original. Nada que atrapalhe a beleza dos desenhos e a leitura, que continua tão emocionante como sempre foi. A aspereza do preto e branco até colabora para uma dramaticidade ainda mais crua. É curioso observar que ainda nos anos 1950 e muito antes que o mercado internacional sonhasse com a produção de histórias em quadrinhos para adultos O Eternauta já cumpria plenamente esse papel. Há muito para o brasileiro aprender com O Eternauta, de Oesterheld e López. A longa espera certamente não foi em vão. JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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FRANCISCO UCHA

HISTÓRIA

HÁ 90 ANOS, UMA SEMANA Em fevereiro de 1922, São Paulo promoveu uma revolução que influenciaria a cultura do País décadas afora com um vigor que excedeu a ambição de seus idealizadores e protagonistas. P OR C ELSO S ABADIN

Um dos filmes brasileiros mais negativamente criticados dos últimos tempos é As Aventuras de Agamenon, O Repórter. Não apenas a crítica especializada foi pródiga na munição para detoná-lo, como também o próprio espectador destilou incontáveis manifestações de ira e revolta nos comentários de blogs e sites de cinema. Um raro caso de concordância entre crítica e público. Marcelo Madureira, conhecido cômico do grupo Casseta & Planeta, e um dos principais mentores de Agamenon, saiu em defesa do seu filme. Para defender o indefensável, o humorista afirmou que o longa “exige reflexão para total compreensão do seu humor devastador tropicalista e autofágico (...) e o que está mais evidente na proposta antropofágica é ver o Pedro Bial fazendo piada sobre ele mesmo, é ver Marcelo Adnet cantando um funk na década de 1940, é ver um casal se apaixonar à primeira vista no meio de uma suruba”. Piorou. Certamente Oswald de Andrade dançou maxixe em seu túmulo ao ouvir o seu Manifesto Antropofágico servir de base para tão frágil defesa. Por mais que Madureira seja um humorista, a citação soou como aberração. Principalmente às vésperas do nonagésimo aniversário da tão importante Semana de Arte Moderna de 1922: há exatos 90 anos o Theatro Municipal de São Paulo servia literalmente de palco para uma das principais revoluções artísticas do País. De 13 a 18 de fevereiro de 1922, a capital paulista em particular e o Brasil em repercussão foram sacudidos por novas idéias e conceitos nos campos da pintura, escultura, poesia, literatura e música. Depois de uma Guerra Mundial, nada mais seria como antes Nada disso aconteceu num rompante. A Semana de Arte Moderna, ou simplesmente a Semana de 22, como ficou depois conhecida, foi o auge de uma série de pensamentos e inquietações que há anos já encontravam ressonância nas turbulências políticas e sociais que se espalhavam pela Europa. Dez anos antes, em 1912, o próprio Oswald de Andrade já havia declarado que o Brasil estava culturalmente meio século atrasado em relação ao Velho

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Mundo. Enquanto a Europa travava contato com o Futurismo proposto por Filippo Tommaso Marinetti, nós ainda nos preocupávamos em medir versos e rimas de forma milimétrica e parnasiana. No ano seguinte, em 1913, Mário de Andrade classificou o trabalho de Lasar Segall, pintor lituano radicado no Brasil, como “a primeira exposição de pintura não acadêmica em nosso País”. Trabalho, aliás, que abriu o caminho para a primeira exposição de Anita Malfatti, que voltava da Europa repleta de novos olhares. Sacudida pelos horrores da I Guerra, a Europa não poderia mesmo continuar pautando sua arte sobre os mesmos preceitos comodistas do século anterior. E parte da burguesia brasileira (paulista?) que tinha acesso ao pensamento europeu em transformação se incumbiu de importar para cá um pouco de toda aquela revolução que se sentia por lá. Em 1917, Mário de Andrade utiliza o pseudônimo Mário Sobral para lançar, aos 24 anos, sua coletânea de poesias Há uma Gota de Sangue em Cada Poema. Um libelo pacifista que apregoava: “Há uma gota de sangue em cada poema/ Assim como há resquício de barro/Nas estradas asfaltadas/E ruínas pelo impacto das guerras e catástrofes”. No mesmo ano seguem-se as publicações de Moisés e Juca Mulato, de Menotti Del Pichia, e A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira. O mesmo Bandeira que se atreveria a escrever em versos livres, pouco depois, em sua obra Carnaval. Ainda em 1917, Anita Malfatti monta sua segunda exposição, carrega nas cores e nas formas expressionistas e encanta a nova geração já impregnada pelos novos ideais, ao mesmo tempo que atrai para si a ira dos conservadores. Monteiro Lobato, que anos antes já havia cuspido e escarrado na figura do caipira paulista com seu artigo A Nova Praga, publicado no jornal O Estado de S.Paulo, novamente se faz valer das páginas da família Mesquita para criar mais uma polêmica: publica Paranóia ou Mistificação?, afirmando que os modernistas “vêem anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo

de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento”. Mais especificamente sobre a exposição, Lobato escreveu em seu artigo: “Na exposição Malfatti figura, ainda, como justificativa da sua escola, o trabalho de um «mestre» americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque o diz a nota explicativa) uma figura em movimento. Ali está entre os trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem prega: eu sou o ideal, sou a obra- prima; julgue o público do resto, tomando-me a mim como ponto de referência. Tenhamos a coragem de não ser pedantes; aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos, ou dos pés, fechou os olhos e fêlo passear pela tela às tontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado seria absolutamente igual”. O artigo tem, para o mundo das artes, um impacto semelhante ao atentado que matou Francisco Ferdinando, herdeiro da Áustria: se os tiros deflagraram uma guerra mundial que já estava entalada nas gargantas de meio mundo, as palavras de Lobato levaram os jovens modernistas a

uma união maior, além de escancarar a necessidade de se divulgar o movimento com maiores empenho e foco. Mordidos pelo artigo de Lobato e ansiosos por entrarem de fato num novo século que já havia começado há duas décadas, os então denominados modernistas se articulam em várias ações. No Palácio Trianon, coração da refinada Avenida Paulista, Oswald de Andrade faz um empolgado discurso em homenagem ao lançamento de As Máscaras, de Menotti Del Picchia, e anuncia a chegada ao País da tão esperada revolução modernista. Na série de artigos Os Mestres do Passado, Mário de Andrade se esmera em estudar e analisar os poetas parnasianos, para poder afirmar com mais propriedade que eles representam um tipo de poesia a ser imediatamente deposto. O movimento se faz sentir também nas demais artes. Vila-Lobos se encanta com a atonalidade de Stravinsky, Victor Brecheret expõe as maquetes de seu Monumento às Bandeiras, quadros de Vicente do Rego Monteiro chamam a atenção por se calcarem em temáticas indígenas, Di Cavalcanti exibe desenhos e caricaturas em sua exposição Fantoches da Meia-Noite, e Oswald publica um artigo em homenagem a Mário intitulado O Meu Poeta Futurista. Em muitos casos, a denominação “futurista” se confundia com “modernista”. Oswald e Mário (que não eram irmãos, como muitos pensavam), ao lado de Del Picchia e Cândido Mota Filho, se encarregavam de divulgar o Modernismo em


jornais e revistas. Eram, de forma inadvertida e pioneira, os “assessores de imprensa” do Modernismo. Idéias efervescentes; era preciso lançá-las A rigor, o movimento já era uma realidade. Faltava, porém, um marco, um divisor de águas. Vale lembrar que naqueles longínquos anos 1920, o hábito era o de primeiro se criar algum tipo de conteúdo artístico, para somente depois lançá-lo sob a forma de livro, disco, exposição ou evento. Exatamente o contrário do que acontece hoje, quando primeiro se lança o evento, para depois se verificar se existirá ou não algum conteúdo que o justifique. Atribui-se à esposa de Paulo Prado, a francesa Marinette Prado, a idéia de canalizar toda aquela energia criativa numa “semana de artes” igual à que era costumeiramente realizada na cidade francesa de Deauville. Paulo Prado era uma figura influente na sociedade e na política paulistanas da época. Era filho do Conselheiro Antonio Prado, Prefeito da cidade entre 1899 e 1911, e Presidente do economicamente poderoso Automóvel Clube de São Paulo. Uma de suas irmãs namorava Graça Aranha. Foi Prado quem articulou as negociações com o então Prefeito paulistano Firmiano de Morais Pinto e com o Presidente da Província, Washington Luís, para obter um sólido apoio político à iniciativa. A capital paulista, cada vez mais repleta de imigrantes e ideais europeus, vivia um forte surto desenvolvimentista e tinha pressa em se desvencilhar da imagem provinciana, rural e caipira que carregava até então. Dar novos ares artísticos a esta Paulicéia Desvairada e inseri-la num novo mundo industrial e cultural era uma estratégia muito bem vista pelo Partido Republicano Paulista-PRP, liderado por Washington Luís, que, não coincidentemente, tinha no jornal Correio Paulistano praticamente o seu órgão oficial. Ontem, como hoje, não se fazia arte no Brasil sem política. Como as ambições dos jovens modernistas não eram pequenas, o palco escolhido foi o imponente Theatro Municipal de São Paulo, então com apenas 10 anos de idade, que já na época podia ser alugado para eventos. Assim, a “Semana” foi agendada para acontecer entre 13 e 18 de fevereiro de 1922. Na programação, exposições diárias no saguão e sessões de leituras de poemas, audiências musicais, palestras e conferências a serem realizadas no palco nos dias 13, 15 e 17. A poucas horas da abertura oficial, o saguão do Municipal estava repleto de esculturas nos mais diversos materiais (incluindo bronze, mármore e madeira), além de plantas e maquetes arquitetônicas de residências, templos, monumentos e até túmulos. Assinavam as obras nomes como Victor Brecheret, Wilhelm Haarberg, Hildegardo Leão Veloso, Antônio Garcia Moya e Georg Przyrembel. Espalhavam-se também pelas galerias e pelas suntuosas escadarias do teatro telas, óleos, gravuras, aquarelas, desenhos e colagens assinadas por Alberto Martins Ribeiro, Anita Malfatti, Yan de Almeida Prado, Antônio Paim Vieira, Di Cavalcânti, Inácio da Costa Ferreira (Ferrignac), John Graz, Oswaldo Goeldi, Zina Aita, Vicente Rego Monteiro e Martins Ribeiro. Era uma segunda-feira de verão, em que a temperatura máxima chegou a 28 graus,

A capa da Klaxon número 1; o cartaz criado por Di Cavalcanti, e um anúncio publicado no Estadão com o programa do evento: Conferência de Graça Aranha (”A emoção esthetica na arte moderna”), música de Vila-Lobos e poesia de Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho.

com uma sensação térmica acentuada pelo abafamento do tempo nublado. Não garoava na cidade naquela noite. Casa cheia. Homens de chapéus, mulheres... também. As telas e esculturas do saguão faziam que alguns narizes burgueses se torcessem. Os mesmos burgueses que Mário de Andrade ofendia em sua Ode ao Burguês, publicada em Paulicéia Desvairada naquele mesmo ano: “Eu insulto o burguês! O burguêsníquel, o burguês-burguês! A digestão bemfeita de São Paulo! O homem-curva! O homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!” No palco, o escritor e diplomata Graça Aranha, a quem Mário chamava sem cerimônia de “Aranha sem Graça”, proferiu uma palestra intitulada A Emoção Estética da Arte Moderna, acompanhada de comentários musicais de Ernâni Braga. Sem muita repercussão. Mas era apenas o primeiro dia. No decorrer da semana, o clima esfriou, a garoa veio, e a temperatura dentro do teatro subiu. Textos sem rima e sem métrica de Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Sérgio Milliet e Luís Aranha eram impiedosamente vaiados pelos conservadores. A pianista Guiomar Novais consegue desagradar a todas as tendências: é vaiada e tem seu número interrompido pela platéia ao tomar liberdades musicais, e criticada pelos próprios modernistas ao executar clássicos consagrados. A palestra de Menotti Del Picchia sobre arte, estética, e os ideais de uma suposta nova geração de paulistas é “saudada” pelos mais diversos sons de onomatopéias animais vindas do público. Ronald de Carvalho lê o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira (“Enfunando os papos / Saem da penumbra/ Aos pulos, os sapos/ A luz os deslumbra. Em ronco que aterra/ Berra o sapo-boi:/ – Meu pai foi à guerra!/ Não foi!/ Foi/ Não foi!) debaixo

de um “coro de sapos” também improvisado pelo público. E, a cereja do bolo, o maestro Heitor Vila-Lobos entra em cena de casaca... e chinelo num dos pés. A platéia vem abaixo, acreditando que se tratava de mais uma manifestação contra a burguesia. Somente mais tarde a verdadeira razão do insolente chinelo veio à tona: uma gota mal tratada. Há relatos de obras de arte atacadas a bengaladas. Assim como há desconfianças de que o eternamente irrequieto Oswald de Andrade teria sido o articulador oculto de várias manifestações contrárias, com o simples motivo de gerar polêmica e, conseqüentemente, visibilidade. Ao contrário do conservador O Estado de S.Paulo, o jornal Correio Paulistano era um dos principais arautos do movimento. Seu colunista, que assinava somente “Hélios”, escrevia quase que diariamente palavras de louvor e incentivo aos jovens revolucionários. “Feriu-se a primeira batalha da Ars Nova. Não houve mortos nem feridos. Acabou num triunfo” ou “Houve quem cantasse como galo. Houve quem latisse como cachorro. Cada um, porém, fala na língua que Deus lhe deu.” eram algumas das frases de efeito publicadas pelo Correio. Nem todos sabiam, porém, que as opiniões do colunista não eram exatamente imparciais: “Hélios” era o pseudônimo de Menotti Del Picchia, também chefe de Redação da publicação, e obviamente forte aliado de Washington Luís. Terminada a tão tumultuada semana e feito seu balanço contábil, a empreitada resultou em prejuízo financeiro para os barões do café que, capitaneados por Paulo Prado, financiaram o evento. Como não é de se estranhar, o grande público não se interessou pelas discussões artísticas, e a Semana de 22 foi freqüentada principalmente por estudantes e por parte da aristocracia. As exposições no saguão

tinham suas entradas franqueadas ao público, mas para participar das sessões de poesia, literatura e música programadas para os dias 13, 15 e 17 eram cobrados ingressos de 186 mil réis (camarotes e frisas) e 20 mil réis (cadeiras e balcões). Preços válidos para os três dias, e os ingressos podiam ser adquiridos na sede do Automóvel Clube, então no Vale do Anhangabaú. Não foi suficiente. Pelo menos monetariamente, pois artisticamente o Modernismo ganhou corpo e desenvoltura. A própria importância da Semana, mal dimensionada num primeiro momento, foi crescendo e se solidificando com o passar do tempo. No calor de sua realização, ela nunca virou assunto em rodas de bate-papos fora dos meios estudantil e artístico e foi praticamente ignorada pela grande parte da população. Se fosse hoje, jamais chegaria aos trending topics do twitter. De uma forma geral, sua repercussão na imprensa foi pífia. Além do já citado Correio Paulistano, que era praticamente um órgão oficial dos modernistas, o movimento foi divulgado por duas revistas de circulação mais do que restrita: a Klaxon e a Revista da Antropofagia. A Klaxon (palavra que designa aquelas antigas buzinas que ficavam do lado de fora dos automóveis) teve periodicidade mensal e vida curta: somente de maio de 1922 a janeiro de 1923. Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Di Cavalcânti estavam entre seus colaboradores. Já a Revista de Antropofagia é uma consequência do Manifesto Antropofágico escrito por Oswald de Andrade em 1928. Em sua primeira fase, a publicação foi dirigida por Antônio de Alcântara Machado e Raul Bopp. De maio de 1928 a fevereiro de 1929, a revista teve 10 edições e colaboradores como Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, Pedro Nava e Plínio Salgado. O mesmo Plínio Salgado que alguns anos depois fundaria o Partido Integralista Brasileiro, totalmente inspirado no nazismo, era um modernista. A segunda fase, publicada entre 17 de março e 1º de agosto de 1929, como suplemento do jornal Diário de São Paulo, foi dirigida pelo jornalista e crítico literário Geraldo Ferraz, marido de Pagu. Duas frases atribuídas a Oswald de Andrade explicam bem a linha editorial da publicação: “A Revista de Antropofagia não tem orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago”. Ou: “Não fazemos crítica literária. Intriga, sim!” Apenas com o distanciamento temporal e histórico a Semana de 22 foi gradativamente conquistando sua real e definitiva importância dentro do panorama artístico-cultural brasileiro. Foi depois dela que surgiram o Manifesto PauBrasil (1924), o Verde-Amarelismo de Plínio Salgado e Menotti Del Picchia (1926), que descambaria para o fascismo, e o Movimento Antropofágico, criado por Oswald em 1928 e vilipendiado por Marcelo Madureira em 2012. Percebem-se fortes ecos do Modernismo na Bossa Nova (uma antropofagia do jazz), na arquitetura de Oscar Niemeyer, no Tropicalismo e sua mistura de influências, e – por que não? – na própria figura de um dos maiores comunicadores da História da televisão brasileira, Abelardo Barbosa. Afinal, o principal ícone do Chacrinha não era uma klaxon?

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HISTÓRIA SEMANA DE 22 SYLVIA MASINI

do novas tendências em vigor na Europa, desde que afinadas com um autêntico nacionalismo. Essa histórica Semana, que ofereceu maiores consequüências em anos posteriores, teve como expoentes Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira na literatura, Anita Malfatti, Victor Brecheret, Di Cavalcânti, Vicente do Rego Monteiro nas artes plásticas e Heitor Vila-Lobos, Guiomar Novais e Frutuoso Viana na música.

THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO: UMA HISTÓRIA CENTENÁRIA Cenário da Semana de Arte Moderna de 1922, esse templo cultural tem uma existência marcada por polêmicas e voltou a ser programado após três anos em reforma. P OR A LFREDO S TERNHEIM

Fechado desde 2008 para uma ampla reforma, o Theatro Municipal de São Paulo voltou a funcionar em 2011, ano em que completou o centenário de sua inauguração. Os festejos começaram a partir de 10 de junho com três recitais diários seguidos de composições dos brasileiros Radamés Gnattali e Ronaldo Miranda e do inglês Vaughan-Williams. A reabertura oficial, porém, aconteceu em 12 de setembro, o mesmo dia em que, cem anos antes, foi inaugurada a casa de espetáculos concebida e executada pelo escritório do engenheiro Ramos de Azevedo, nome da praça onde está situada. A idéia de sua construção surgiu por volta de 1900, após o incêndio que destruiu o Theatro São José, onde eram apresentados os principais espetáculos de São Paulo, que tinha então 240 mil habitantes. A lei que autorizou o início das obras foi aprovada em novembro daquele ano. Porém, como ocorre hoje, contratempos políticos atrasaram os trabalhos. O local atual só foi adquirido em 1902 e a construção, iniciada em 5 de junho de 1903, terminou somente em 30 de agosto de 1911. Na ocasião o programa inaugural motivou discussão entre as autoridades. “Tem que ser aberto com música brasileira”, diziam alguns, que ao mesmo tempo queriam um grande nome internacional. Contrataram, de improviso, o barítono Titta Ruffo, o maior do mundo, que por acaso excursionava pela Argentina. O espetáculo teve início com a abertura de Il Guarany, de Carlos

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Gomes, mas os discursos se alongaram de tal maneira que o último ato da ópera escolhida, Hamlet, de Ambroise Thomas, foi eliminado e todos foram para casa sem saber o fim da história”, conta o professor e pesquisador Sérgio Casoy, um dos maiores especialistas em música lírica no Brasil, autor de livros como Ópera em São Paulo 1952-2005. Coincidentemente, na noite de reinauguração em 2011, aconteceu algo similar. Após os habituais atrasos, discursos e coquetéis, a nova encenação de Rigoletto, de Giuseppe Verdi, terminou madrugada adentro. Quando começou o último ato da ópera, boa parte do público já tinha ido embora. Esta foi a terceira grande reforma que interrompeu por longo tempo as atividades do teatro. A primeira, considerada a mais radical, começou em 1952 e terminou em 1955, com um ano de atraso. A previsão era aprontar a casa para os festejos do quarto centenário de São Paulo, em 1954. A segunda, entre 1985 e 1988, preocupou-se com uma restauração de acordo com o desenho original. E trocou a cor das poltronas: saiu o vermelho, que retorna agora, e colocou-se o verde. Não há consenso a esse respeito. “Na reforma dos anos 1980, passaram a ser verdes porque, conforme se dizia, essa era a cor original da inauguração em 1911. Verde e dourado simbolizavam a bandeira verde-amarela do Brasil. Talvez uma certa nostalgia pelas décadas 1950-1970 tenha trazido o vermelho de volta. Provavelmente a próxima reforma torne verdes as poltronas outra vez.”, observa Casoy.

Presenças brilhantes A trajetória do Theatro Municipal está pontilhada de presenças brilhantes. No campo da ópera, em espetáculos ou recitais solo, foi possível apreciar talentos como Enrico Caruso, Tito Schippa, a brasileira Bidu Sayão (quando já era uma diva nos Estados Unidos), Beniamino Gigli, Ghena Dimitrova, June Anderson, Renata Tebaldi e Maria Callas. Sim, ela mesma, considerada a maior cantora lírica do século 20. Callas veio em 1951, pouco antes da fama mundial. Então gordinha, fez parte de um elenco italiano sob a regência de Túlio Serafim, o seu grande mentor. Este, Arturo Toscanini e Lorin Mazel estão entre os famosos maestros que se apresentaram no teatro, bem como o pianista Arthur Rubinstein e o violinista Yehudi Menuhim. Na dança, destacaram-se a transgressora Isadora Duncan, Margot Fonteyn, Nijinsky, Tâmara Toumanova e os dissidentes Barishnikov e Nureyev. No teatro de prosa, os paulistanos aplaudiram Vivien Leigh (de ... e o Vento Levou), o inglês Sir John Gielgud, o italiano Vittorio Gassman, os franceses Louis Jouvet, Jean-Louis Barrault e Pierre Brasseur, além de Rita Gam e Viveca Lindfors, atrizes de Hollywood integrando o Actors Studio. Porém, a polêmica no teatro quase sempre se deu por conta dos brasileiros. Primeiro foi a Semana da Arte Moderna, entre 11 e 18 de fevereiro de 1922. Ano do centenário da independência, reuniu escritores e artistas de várias áreas em um movimento que combatia o aparente academicismo predominante em nossa cultura, difundin-

A audácia de Pacheco O clima de preconceitos que cercaram a Semana fez-se sentir também em 1964, quando o Maestro e jornalista Diogo Pacheco resolveu apresentar as Bachianas Brasileiras nº 4 e 5, de Vila-Lobos, com Elizeth Cardoso. Uma cantora de música popular no palco do Municipal era considerado um sacrilégio pelo público assíduo e pelos que faziam música lírica. Mas Diogo, com a ajuda do empresário Max Feffer, levantou recursos e foi em frente. “Pouca gente sabia ou sabe que a Bachiana nº 5 é baseada em um texto do poeta Manuel Bandeira sobre passarinhos. Só a primeira parte é solfejada. Nunca ninguém entendeu o texto porque cantor erudito geralmente está mais preocupado com a emissão de voz do que com o texto que canta. Eu achava que uma cantora popular teria essa capacidade de passar o texto. Naquela época, a Elizeth Cardoso era, para mim, a maior cantora de música popular. Foi a coisa mais bonita que fiz na minha vida”, lembra Diogo. Diante do êxito de sua iniciativa, nunca mais surgiram barreiras para a apresentação de música popular nas escadarias, nos salões e no palco do Municipal. Elis Regina, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, o argentino Astor Piazzolla e a espanhola Sarita Montiel estão entre os que lá se exibiram. Diogo Pacheco provocou outra polêmica em 1971. Nomeado diretor artístico da temporada lírica pelo Prefeito Figueiredo Ferraz, ele decidiu convidar diretores de cinema brasileiros para cuidar da encenação. “Como vi na Europa Luchino Visconti e Franco Zeffirelli dirigindo óperas, achei que um bom caminho aqui seria fazer o mesmo. Alguns aceitaram, mas houve muita oposição. Naquela temporada, houve muita inovação cênica. Os puristas não gostavam; quando eu regia, me vaiavam, porque sabiam que eu era o responsável por toda essa liberdade de criação que antes não existia no Municipal”, conta o maestro. Essa temporada foi realizada exclusivamente com elenco brasileiro e desde então começou a haver uma maior preocupação em escalar nossos intérpretes. Com isso, ampliou-se a função geradora de produção do Municipal, que, desde o seu início, gradativamente foi incorporando outros setores criativos para os seus espetáculos. Surgiram a Orquestra Sinfônica Municipal em 1921; o Coral Paulistano, fundado em 1936 por Mário de Andrade; o Quarteto de Cordas em 1935, e o Corpo de Baile em 1940, denominado Balé da Cidade a partir de 1974. Este, durante muito tempo, funcionou nos baixos do Viaduto do Chá, onde hoje está o Museu do Theatro Municipal, quase esquecido do público, mas que consegue dar uma pequena amostra dessa bela história centenária.


VIDAS

Loureiro, um senhor comentarista Rádio esportivo perde Loureiro Júnior, referência profissional de uma geração de craques.

Na galeria dos radialistas esportivos que marcaram época entre as décadas de 1960 e 1980, Carlos de Loureiro Júnior ocupa lugar de destaque por ter contribuído com seu reconhecido talento como comentarista para o sucesso das equipes em que atuou. O radialista faleceu aos 76 anos, no dia 5 de fevereiro, em São Paulo, em decorrência de um tumor maligno. Em mais de 40 anos de carreira, Loureiro Júnior, como era conhecido, passou pelas maiores emissoras de rádio do País. Em 1963, deixou as salas de aula em Jacareí (SP), sua cidade natal, onde lecionou Português por dez anos, para trabalhar como narrador esportivo contratado pela Rádio Panamericana, em São Paulo. Um ano depois, trocou a função pela de comentarista, após um episódio que gostava de contar aos amigos. “Num jogo entre Juventus e Portuguesa, no Pacaembu, com pouquíssimo público, ao narrar um gol no final do jogo ele desafinou feio e alguns torcedores nas arquibancadas que ouviam a narração pelo rádio começaram a chamá-lo de galo garnizé”, relembra Roberto Carmona, repórter das Rádios Transamérica e Record. A desafinada, porém, foi mero acidente de percurso. Em 1967, ganhou projeção na Rádio Gazeta (AM 890) na “equipe disparada”, ao lado de Pedro Luís, Darcy Reis e Luciano do Valle. Nos anos 1970, trabalhou na Rádio Bandeirantes (AM 840) e, posteriormente, na Rádio Globo AM 1100 de São Paulo e Globo AM 1220 do Rio de Janeiro.

“Em 1977, tive o prazer de contratar Loureiro Júnior para a equipe de Osmar Santos na Rádio Globo. Profissional e pessoa de grande valor, Loureiro era dono de um português impecável. Lá no céu, ele tem lugar garantido no escrete dos grandes nomes do rádio esportivo brasileiro”, diz Jair Brito, jornalista de rádio e tv que gerenciava a rádio na época. Na fase de maior sucesso da consagrada equipe comandada por Osmar Santos na Rádio Globo faziam parte Loureiro Júnior e Carlos Aymard, comentaristas, Fausto Silva, Roberto Carmona e Henrique Guilherme, repórteres de campo, além dos também narradores Osvaldo Maciel, Oscar Ulisses e Odinei Edson, estes dois últimos, seus irmãos. Juarez Soares também participou da equipe, como apresentador de um programa que falava de futebol e variedades. O narrador Osvaldo Maciel, que o levaria anos depois para a Rádio Record AM 1000, relembra bons momentos ao lado do colega Loureiro. “Além da fluência e capacidade de improvisar, ele era bem humorado e brincalhão. Na cobertura do jogo Itália e França, na Copa de 1978 na Argentina – uma das oito que Loureiro cobriu –, fazia um frio de três graus abaixo de zero. Ele sugeriu que déssemos “um tapa no beiço”. Levou uma garrafa de conhaque para a cabine e fomos tomando até o final do jogo.” Henrique Guilherme, atualmente comentarista da Rádio Transamérica FM, de São Paulo, ressalta que Loureiro Júnior era um comentarista excepcional. “Transferia conhecimento pela forma precisa de falar, tiradas inteligentes e li-

ADILSON GOMES

P OR S ERGIO L UCCAS

Loureiro Júnior ao lado de Milton Neves durante a entrega do Prêmio FordAceesp que aconteceu em 2010 no jantar de final de ano da Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo.

nha de pensamento muito clara. Não foi à toa que ficou conhecido como “um senhor comentarista”. Além de conhecer tudo sobre futebol, era nosso consultor para qualquer dúvida de português.” Em seu blog, Jota Jr., narrador do canal Sportv, também lembrou o amigo. “Ele foi um dos mais qualificados comunicadores do rádio brasileiro. Marcou fortemente sua vida no rádio pela clareza de suas colocações, português correto, respeito ao ouvinte, profundo conhecimento do futebol. Minhas homenagens ao querido amigo. Mantivemos sempre uma respeitável amizade e admiração mútua irretocável. O rádio esportivo tem muito a agradecer.” Como bem registrou Antonio Edson Marques, narrador esportivo das rádios

Transamérica FM e Record AM, em seu site Rancho do Tonicão, Loureiro era do tempo em que no intervalo do jogo o narrador, após a bola parar, chamava os repórteres que depois lhe devolviam o comando. Então, ele chamava o plantão com os resultados de momento, e na volta o comentarista era o astro. “Loureiro Júnior vivia o clima do jogo, observava atentamente de sua cabine o posicionamento dos times e de lá passava aos ouvintes, com todo seu conhecimento e carisma, o que o torcedor, com o radinho colado no ouvido, esperava e queria ouvir. Saber como estava o jogo, como foi o gol, se seu time estava bem ou não. O comentarista era uma voz de imensa credibilidade, era dele a palavra final.”

Orlando Batista, o mais laureado Ele foi um dos ases da narração esportiva no Rio, ao lado de Jorge Cury, Valdir Amaral, Doalcei Bueno, Oduvaldo Cozzi. “O mais laureado locutor esportivo do Brasil”. A vinheta que fez parte do dia-a-dia das rádios no País marcou a história de um grande personagem do jornalismo esportivo brasileiro: o narrador de 14 Copas, Orlando Batista. Considerado um dos “monstros sagrados” do rádio, tinha mais de 60 anos de carreira, tendo passado pelas principais emissoras do Brasil. Nascido na cidade de Tijucas, Santa Catarina, Orlando começou sua história com apenas 16 anos, como cantor e apresentador de um programa infantil na Rádio Tupi. Foi na Rádio Mauá, porém, que se destacou e se formou como radialista e locutor, comandando um dos programas de esporte de maior sucesso na época, a Turma do Bate-Papo. Teve destaque, entre as décadas de 1950 e 1970, ao lado de nomes consagrados como Jorge Cury,

Valdir Amaral, Doalcei Bueno e Oduvaldo Cozzi. “Eu conhecia o Orlando há mais de 15 anos. Ele era um guerreiro. Um chefe exigente, que cobrava bastante, mas ao mesmo tempo ensinava muito. Estava sempre correndo atrás de melhorias para a rádio e para o programa. Era um cara muito inteligente e que sabia montar e liderar uma equipe como ninguém”, conta Walter Sales, colega radialista que cobria as partidas para a Turma do Bate-Papo. Orlando era conhecido pela forma única como narrava os jogos, com imparcialidade, palavreado fácil e entonação mais branda. Sua relação com o Vasco – quando a aposta das rádios cariocas caía sobre o Flamengo – marcou seu importante papel na cobertura dos bastidores do futebol brasileiro. “Ele teve uma visão maior. Percebeu que poderia se ‘calçar’ no Vasco e correu

atrás dessa oportunidade. Enquanto as outras emissoras disputavam o Flamengo, nós fazíamos uma cobertura completa do dia-a-dia no Vasco”, lembra Walter. A relação com o clube carioca era tão próxima que muitos não sabiam qual era o verdadeiro time do radialista. Enquanto alguns colegas dizem que nunca revelou seu time do coração, outros afirmam que Orlando era, na verdade, tricolor. “O time dele era Fluminense, sim, mas a proximidade com o Vasco acabava ofuscando esse fato. Ele era muito profissional e imparcial quando o assunto era futebol e cobertura dos times. O Orlando fez uma escola dentro dele. Tinha um jeito de lidar com o trabalho e narrar com improviso que poucos tinham”, conta o radialista Carlos Borges, que trabalhou com Orlando na Rádio Continental, em 1977.

Tendo narrado 14 Copas do Mundo, a última em 2002 – quando o Brasil foi pentacampeão –, Orlando ainda esteve à frente de programas como Campo do 13, na TV Record, e Dois na Bola, na TV Brasil. “Eu sou fã do Orlando. Ele tinha um jeito diferente – imparcial, mas assertivo – de narrar e lidar com o mundo dos esportes. Era uma pessoa que ensinava, cobrava bastante e tinha uma personalidade forte, mas sempre educado”, lembra o locutor Jorge Nunes, que trabalhou com Orlando na Rádio Mauá e atualmente integra a equipe da Tupi. O locutor faleceu no final de janeiro e recebeu homenagens de várias personalidades do rádio e do futebol brasileiro, entre elas o Presidente do Vasco, Roberto Dinamite, que se referiu a ele como “locutor esportivo e grande amigo”. JORNAL DA ABI 375 • FEVEREIRO DE 2012

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VIDAS

Dejean, o supercinéfilo FRANCISCO UCHA

Um dos fundadores da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, Dejean Magno Pellegrin foi um dos responsáveis pelo crescimento da cultura cinematográfica do País. Seu acervo pessoal de filmes contava com mais de 12 mil títulos. P OR C LÁUDIA S OUZA

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filmes da coleção particular de Dejean Pellegrin, que comentou na época: “A mostra A Imprensa no Cinema tem a função de valorizar a arte cinematográfica e o jornalismo, oferecendo ao público uma programação de qualidade.”

trabalho de paciente pesquisador, Dejean Magno Pellegrin, ardoroso fã e emérito estudioso do cinema que inclui em seu currículo e em sua trajetória de intelectual a forte participação em destacados momentos da atividade cultural relacionada com a produção cinematográfica, como a criação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.” Em 2008, em comemoração ao centenário da ABI e aos 200 anos da Imprensa Régia, Dejean foi o curador da mostra A Imprensa no Cinema, que privilegiou o jornalismo como temática central e exibiu os clássicos Cidadão Kane, Todos os Homens do Presidente, Carlitos Repórter, A Montanha dos Sete Abutres, entre outros

Uma foto histórica

ROBERT LÉON CHAUVIÈRE

Reconhecido como um dos maiores incentivadores da atividade cultural cinematográfica no Brasil, o jornalista, cineasta e pesquisador Dejean Pellegrin, 81 anos, morreu no dia 6 de fevereiro no Rio de Janeiro, de enfarte. A cerimônia de cremação do corpo foi realizada no dia 11, no Crematório do Cemitério do Caju, Zona Norte do Rio. Dejean Magno Pellegrin, associado da ABI, dedicou a vida ao estudo e difusão da Sétima Arte – foi um dos fundadores da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (Mam), nos anos 1950. “Nos últimos meses, mesmo com a saúde debilitada, Dejean vinha mantendo as atividades relacionadas ao cinema. Há cerca de um mês meu pai veio morar comigo por causa dos problemas de saúde, mas continuava se dedicando aos projetos neste setor, como roteiros sobre a Missão Francesa no Brasil. Criador dos primeiros cineclubes no País, meu pai foi grande amigo de Gláuber Rocha e Leon Hirszman e ajudou a formar as bases para o Cinema Novo e outros movimentos artísticos importantes. É uma grande perda para a cultura nacional”, disse Melinda Pellegrin, filha do cineasta. A morte de Dejean, que atuou como crítico e jornalista, comoveu parentes, colegas de profissão e velhos companheiros de jornada, como Jurandyr Noronha, escritor, cinegrafista, montador, redator, roteirista e diretor de filmes: “Tomei conhecimento da morte dele na tarde desta terça-feira, dia 7. Sinto-me muito abalado e imensamente triste por este duro golpe. Nós éramos excelentes amigos. Sempre fomos muito ligados. Todas as quartas-feiras ele vinha à minha casa para exibir filmes de sua vasta coleção, que reúne mais de 12 mil títulos. O objetivo era me fazer companhia, já que estou me locomovendo apenas em cadeira de rodas. Conversávamos muito sobre todos os assuntos, incluindo cinema. Ele era como um irmão para mim.” Freqüentador do Auditório Oscar Guanabarino, no 9º andar do edifício-sede da ABI, há mais de cinco décadas, Dejean contribuiu de forma efetiva para o desenvolvimento das atividades cinematográficas na Casa. Em entrevista ao jornalista José Reinaldo Marques para o Jornal da ABI, ele comentou: “Podemos afirmar que a ABI teve e tem ainda uma participação importante

na difusão da Sétima Arte através de projeções periódicas em seu auditório, assim como um local que faz parte da História de nosso cinema. Desde 1946 até hoje posso dizer que nunca deixei de freqüentar o auditório da ABI, não apenas para as suas sessões de cinema, porém também para outros eventos, juntamente com Leon Hirszman, Walter Lima Júnior, David Neves, Marcos Faria, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, entre outros jovens que mais tarde fundariam o Cinema Novo. Posso dizer que a ABI contribuiu para a formação cultural cinematográfica do País.” Em janeiro de 2007, o Jornal da ABI publicou uma edição especial (número 316) dedicada ao cinema. No editorial o Presidente Maurício Azêdo destacou o papel de Dejean no cinema nacional: “Qualquer que tenha sido o papel que cumpriu e ainda cumpre, o cinema norte-americano teve a sensibilidade de lançar seus olhos sobre um dos aspectos mais fascinantes da vida social: o mundo do jornalismo, da imprensa e da comunicação em geral, que desde o ano 1900, quando se produziu o primeiro filme sobre o tema, tem oferecido copiosa riqueza de temas para a produção de obras que assumiram forte teor dramático, ainda que, em número expressivo de casos, este não sacrificasse a possibilidade de momentos de humor, de indução ao riso(...) É a esse filão da produção cinematográfica norteamericana que o Jornal da ABI dedica esta edição especial, que reproduz minucioso

Na noite de 16 de maio de 2010, Dejean Pellegrin organizou uma sessão especial para a inauguração de um quadro com a fotografia ampliada da platéia que compareceu à sessão da Cinemateca do Museu de Arte Moderna em 13 de maio de 1958, no suditório da ABI, quando foi exibido o filme O Ferroviário, do italiano Pietro Germi, um dos mestres do neo-realismo. O filme narra a história de Andrea Marcocci, um maquinista, casado, pai de três filhos, que enfrenta problemas familiares. Suas dificuldades aumentam no momento em que ele se desentende com o sindicato e se vê isolado, tanto no trabalho quanto em casa. Registrada por Robert Léon Chauvière, a fotografia histórica da platéia da ABI em 1958 revela a presença de grandes nomes do cinema nacional e fundadores do Cinema Novo, como Cacá Diegues, Walter Lima Júnior, Leon Hirszman, David Neves e Marcos Farias. Autor do convite a Chauvière para fazer a fotografia em 1958, Dejean falou então sobre o vínculo entre a história do cineclubismo e das cinematecas no Brasil com a ABI, onde eram realizadas as sessões: “Nós tínhamos um interesse muito grande pelo cinema. Corríamos atrás de livros sobre o assunto, que eram escassos na época. Era um ideal, um amor total pelo cinema.”


Um aluno de Georges Sadoul P OR R ODRIGO C AIXETA

O interesse de Dejean Magno Pellegrin por cinema começou bastante cedo. Aos cinco anos, já freqüentava as salas de exibição de Campo Grande, bairro em que morava na Zona Oeste do Rio, e onde ia, às quintas-feiras, à matinê do Cinema Progresso, em 1935. Também freqüentou o Cine Teatro Campo Grande, o segundo criado naquele bairro e inaugurado em 1937. Aos 13 anos, mudou-se para Vila Isabel e continuou com o hobby que se tornaria sua profissão. Na época, ganhou de presente o livro O cinema: sua arte, sua técnica, sua economia, de Georges Sadoul, que muitos anos depois, em 1959, foi seu professor no curso de Filmologia feito na Sorbonne, graças a uma bolsa de estudos concedida pelo Governo francês. Era então colega de Maurício Azêdo, Presidente da ABI, na Faculdade de Direito da atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro-Uerj, que teve que abandonar – mas não se arrependeu. A leitura do livro abriu sua mente e mostrou-lhe que cinema não era só diversão, mas também arte e indústria. Começou, então, a saber quais eram os filmes importantes, marcos do cinema, criadores de escolas como o neo-realismo e o expressionismo. E, conseqüentemente, passou a conhecer os bons diretores, os filmes sérios e procurou os cineclubes. Descobriu que na ABI havia o Círculo de Estudos Cinematográficos, fundado por três jornalistas: Luís Alípio de Barros, que era crítico de cinema do Diário Carioca; Alex Viany, também cineasta, que traduziu para o português o livro de Sadoul, e Antônio Moniz Viana, conhecido como um dos melhores críticos de cinema do Rio de Janeiro. Mas Dejean foi ainda mais longe. Em 1956, fundou seu próprio cineclube, o Museu de Arte Cinematográfica, que fez as primeiras exibições na ABI e durou seis meses. Em seguida, Dejean, desde moço um cinemaníaco, fundou o Grupo de Estudos Cinematográficos da União Metropolitana dos Estudantes-Ume, que também começou na ABI e depois foi para uma sala do Ministério da Educação. Foi ainda membro fundador da Cinemateca

do Mam, quando esta era ainda chamada Cinema do Museu de Arte Moderna, em 1954. Durante o curso de Filmologia, Dejean trabalhou na Cinemateca Francesa, em Paris. Paralelamente, foi jornalista da Radiodifusão e Televisão Francesas (RTF) e locutor e tradutor do jornal cinematográfico Les Actualités Françaises. Durante a temporada parisiense, conheceu, entre outros cineastas, Jean Rouch (19172004), documentarista francês, criador do cinema etnográfico, de quem se tornou grande amigo. Depois, morou no Egito, onde promoveu uma semana de exibição do cinema brasileiro no Cairo e ainda uma semana de cinema cubano também naquele país. Como funcionário do Itamarati, trabalhou na Embaixada do Brasil na União Soviética e promoveu a primeira semana do cinema brasileiro em Moscou, Alma-Ata e Baku. De volta ao Brasil, em 1976, foi chefe do setor de difusão e planejamento do Departamento do Filme Cultural da Embrafilme. Dejean é também um dos fundadores da Associação Brasileira de Documentaristas e do Centro dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro. Apesar de sua posição de esquerda, diz que prefere o cinema norteamericano, mas afirma que o cinema nacional está muito bom tecnicamente. O problema, diz, é que o brasileiro não está acostumado a ver o que é feito aqui. Outra observação do jornalista e cineasta é com relação ao trabalho dos críticos de cinema. Ele – que já foi crítico de O Globo e da Tribuna da Imprensa – fica horrorizado com as coisas que lê, pois percebe que “os colunistas não conhecem cinema e dizem muitas bobagens”. Para Dejean, cinema não se aprende na escola, mas vendo muitos filmes e cultivando sabedoria, por meio da leitura de grandes teóricos e do acúmulo de conhecimentos gerais. Grande amigo de Gláuber Rocha, foi Dejean quem lhe entregou sua primeira medalha internacional, pela vitória do longa Barravento no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary, na antiga TchecoEslováquia. Gláuber, que havia ido ao evento mas não ficara até o fim, foi premiado sem saber, e só veio a receber seu prêmio alguns dias mais tarde, das mãos de Dejean, num encontro num bistrô em Paris.

Al Rio e suas mulheres Um dos primeiros brasileiros a desenhar quadrinhos para grandes editoras no mercado norte-americano, cearense de Fortaleza, ele morreu cedo, aos 49 anos. No mundo das histórias em quadrinhos todos conhecem o Capitão América, Hulk, X-Men. O que poucos sabem é que muitos destes personagens saíam da prancheta de um cearense de Fortaleza que descobriu seu talento, reconhecido internacionalmente, desenhando histórias em quadrinhos. Álvaro Araújo Lourenço do Rio, conhecido como Al Rio, fez seus primeiros traços aos 10 anos. E essa paixão transformou sua vida. Filho de um funcionário da Polícia Rodoviária Federal e de uma copeira, o artista foi um dos primeiros brasileiros a se aventurar no mercado norte-americano de quadrinhos e desenhar para grandes editoras, como Marvel e DC Comics. Sua trajetória é longa. Foi cantor de bar, em Curitiba – conhecido, inclusive, por ser fã de cantores como Belchior e Fagner –, estudante de Belas-Artes, no Rio de Janeiro, publicitário e diretor de animação. Começou desenhando personagens infantis, mas ficou reconhecido pelos traços perfeitos com que desenhava mulheres sensuais – que podem ser vistos nos dois volumes editados da coletânea The Art of Al Rio. “Eu já conhecia a arte, mas o artista eu achava que jamais iria conhecer. Como o improvável é sempre possível, tive meu primeiro contato com Al Rio na década de 1990, quando estava começando a entrar para o mercado americano de quadrinhos. Ele era surpreendentemente atencioso e, sem dúvida, um artista completo. O entusiasmo e a humildade – característica que poucos artistas têm hoje – me marcaram bastante. Tive a honra de fazer com ele alguns trabalhos bem legais, como Purgatori, Chastity, Coven e Avengelyne. Não foram muitos, mas foram de grande relevância para minha carreira, porque a cada página que fazíamos eu aprendia algo novo”, conta o amigo, desenhista e artefinalista de quadrinhos Alex Lei. A lista de empresas e trabalhos da carrei-

ra de Al Rio é enorme. Trabalhou para as editoras Dark Horse, Chaos, Image, Zenescope, Malibu, Wildstorm, Crossgen, Vertigo e Amazing. E seus desenhos abrilhantaram títulos como Dungeon Siege, Grimm Fairy Tales, Titan A.E., Exposure, Knockout, Mystic, Homem-Aranha, além de, claro, sucessos protagonizados por personagens femininas, como Vampirella, Voodoo e Avengelyne. O reconhecimento e o prestígio internacional, com os quais Al Rio já havia se acostumado, não lhe tiraram o carisma e a personalidade agradável, sempre lembrados por quem teve contato com o desenhista. “Ele era um artista que esbanjava técnica, sem falar no excelente profissional. Isso, com certeza, me influenciou muito. Algo que notei logo foi como ele era sempre positivo. Se estava avaliando o meu trabalho, apontava para o que eu precisava melhorar de uma forma que não me deixava para baixo. Uma cena nunca me sai da memória. Em uma das últimas vezes que o vi, estavam avaliando um de meus trabalhos. Meu agente dizia: ‘Isso aqui não está legal, precisa melhorar aqui...” e o Al dizia logo em seguida: ‘Mas tá massa, cara. Tá massa’”, lembra o também artista e amigo Walter Geovani, complementado pelo colega Geraldo Borges: “O Álvaro, além de ser um grande artista, talvez um dos mais completos que conheci, era uma pessoa muito generosa, que sempre fazia questão de ajudar quem precisava. No meu primeiro trabalho profissional com quadrinhos, em 1997, juntamente com dois amigos meus, ele simplesmente cedeu as instalações de seu estúdio-escola, na época, para que pudéssemos produzir. Aprendia muito sempre que tinha a oportunidade de ver seus originais, cujo acabamento e limpeza saltavam aos olhos”. Al Rio faleceu em casa, na cidade de Fortaleza, no dia 31 de janeiro. Aos 49 anos, deixou mulher, Maria Zilda, e três filhos.

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