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LUIZ CLÁUDIO CUNHA O jornalismo verdadeiro tem de ser exercido com ética e uma forte indignação moral

GREGÓRIO BEZERRA A nova edição das memórias do militante político que permaneceu mais tempo preso

PÁGINAS 29, 30 E 31

P ÁGINAS 32 E 33

Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa

368 J ULHO 2011

SAMUEL WAINER NUMA FOTO MUITO QUERIDA COM HERBERT MOSES, PRESIDENTE DA ABI

PÁGINAS 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 E 13

Ustra: o torturador foge da Justiça O MATADOR DO JOVEM JORNALISTA LUIZ EDUARDO MERLINO MANOBRA PARA ESCAPAR DE PUNIÇÃO. PÁGINA 27 E EDITORIAL NA PÁGINA 2


Editorial

DESTAQUES DESTA EDIÇÃO 03

Especial - Samuel Wainer na intimidade

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Arte - Van Gogh: a mais forte pintura de todos os tempos, por Paulo Ramos Derengoski

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Memória - Freitas Nobre, um homem valente, por Rodolfo Konder

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Especial - Banditismo na imprensa

A VERDADE DO CASO MERLINO A AÇÃO JUDICIAL QUE A IRMÃ e a excompanheira do jornalista Luiz Eduardo Merlino, assassinado no Doi-Codi de São Paulo em março de 1974, ajuizaram contra seus matadores, aviva no âmbito do Poder Judiciário o clamor pela responsabilização penal e civil dos agentes da ditadura militar que cometeram crimes horrendos contra presos políticos, como aqueles de que foi vítima esse idealista, um moço de pouco mais de 20 anos que se insurgira contra a brutalidade instalada no poder. ASSIM COMO MILHARES DE OUTRAS vítimas do regime, Merlino sofreu padecimentos inenarráveis enquanto esteve sob o guante dos esbirros do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante daquele Doi-Codi de outubro de 1969 a dezembro de 1973 e réu dessa tardia tentativa de produção de justiça. Com as pernas quebradas após prolongadas e impiedosas torturas, Merlino não encontrou em seus captores a caridade da assistência de que carecia. Por ordem direta do Coronel Ustra, foi condenado à morte, a ser imposta com uma simulação que permitisse disfarçar as circunstâncias de seu fim. Levado para uma estrada, seu corpo e suas pernas foram esmagados pelos veículos pesados que por lá transitavam.

Jornal da ABI Número 368 - Julho de 2011

Editores: Maurício Azêdo e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Edição de textos: Maurício Azêdo Apoio à produção editorial: Alice Barbosa Diniz, André Gil, Conceição Ferreira, Guilherme Povill Vianna, Maria Ilka Azêdo, Ivan Vinhieri, Mário Luiz de Freitas Borges. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva, Paulo Roberto de Paula Freitas. Diretor Responsável: Maurício Azêdo

DO TRÁGICO FIM DE MERLINO há depoimentos que podem conduzir a Justiça de São Paulo à responsabilização pelo menos civil de seu cruel assassino, como um passo para a responsabilização penal que o Supremo Tribunal Federal recusou promover, por obra e graça do Ministro Eros Grau, quando provocado a respeito pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Além de companheiros de Merlino na militância partidária, chamados a depor no processo como testemunhas e que fizeram impressionantes relatos na audiência realizada no dia 27 de julho na 20a. Vara Cível de São Paulo, também o ex-Ministro de Direitos Humanos Paulo Vannuchi, que esteve preso na mesma época, reproduziu os tormentosos momentos finais do jovem jornalista, do qual esteve a um metro de distância e ao qual chegou a perguntar o nome quando ele era conduzido no interior do Doi-Codi. ESTÁ DESDE JÁ RECONSTITUÍDO nesse processo, independentemente de outros testemunhos que possam ser obtidos e provas que possam ser recolhidas, um dos mais ominosos episódios da repressão implacável que, sob o comando do Coronel Ustra, o rei da tortura do regime militar, foi imposta a ferro e fogo aos que não se dobraram à tirania imposta ao País.

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula, Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: Marcus Antônio Mendes de Miranda

Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br

Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Diretor: Rodolfo Konder Rua Dr. Franco da Rocha, 137, conjunto 51 Perdizes - Cep 05015-040 Telefones (11) 3869.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira

Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tiognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral.

Impressão: Gráfica Lance! Rua Santa Maria, 47 - Cidade Nova Rio de Janeiro, RJ

Conselheiros Efetivos 2009-2012 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Álvarez Campos, Jorge Miranda Jordão, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Wilson Fadul Filho. Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felipe Meiga Santiago, Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas,

Jornal da ABI 368 Julho de 2011

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Veículos -Status, uma questão de elegância

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Autobiografia - Memórias de uma luta sem fim

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Esporte - Do tamanho da paixão

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Esporte - Neimar e o Olimpo do futebol, por Marcos de Castro

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Livros - Uma reportagem em quadrinhos

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Depoimento - As incríveis aventuras de Álvaro de Moya

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“A Última Hora mudou minha vida” ○

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Uma Medalha do PCB para David Capistrano

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Fez 100 anos o criador do slogan o petróleo é nosso

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SEÇÕES A CONTECEU NA ABI

L IBERDADE DE I MPRENSA Ricardo Teixeira dá show de totalitarismo ○

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DIREITOS H UMANOS Ustra: O rei da tortura foge do banco dos réus

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OEA vai julgar o Brasil pela morte de Herzog

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“No jornalismo, a indignação é uma obrigação moral”

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V IDAS Sai de cena Arlindo Silva ○

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Gustavo Dahl, o Bravo Guerreiro

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Rogério Marinho, Ayrton Baffa

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Chico Mattos, Itamar Franco

Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães.

Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. Conselheiros Suplentes 2009-2012 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Jordan Amora, Jorge Nunes de Freitas (in memoriam), Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Raimundo Coelho Neto (in memoriam) e Rogério Marques Gomes. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes,, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO A CORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O DECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

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FOTO DE PINK WAINER POR JOÃO WAINER. FOTOMONTAGEM FRANCISCO UCHA.

ESPECIAL

TODAS AS FOTOS DE SAMUEL WAINER PUBLICADAS NESTA EDIÇÃO FAZEM PARTE DO ACERVO DA FAMÍLIA.

Em depoimento exclusivo, a artista plástica Pinky Wainer relembra episódios da infância e sua relação com o pai. POR MARCOS STEFANO E FRANCISCO UCHA

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á exatos 60 anos circulava pela primeira vez o jornal Última Hora. Para uns, uma publicação revolucionária. Para outros, um inimigo a ser combatido. De uma forma ou de outra, o jornal mexeu com a imprensa brasileira. Seja com inovações na diagramação, seja com a valorização dos jornalistas, pagando salários mais dignos e que tiraram a profissão da condição de eterno “bico”. Ou, ainda, redefinindo a expressão

“popular”, já que era um veículo que dialogava com o povo, mas com criatividade e textos bem escritos, sem precisar de apelação para atrair os leitores. Tão provocativa quanto a principal de suas obras era a vida de seu artífice. Muito além da polêmica sobre o local de seu nascimento, falar de Samuel Wainer é como fazer uma crônica do jornalismo brasileiro moderno e de sua relação com o poder, já que ele foi não

somente uma testemunha privilegiada da História, mas também se transformou num de seus protagonistas. Assim, nada melhor do que recordar e descobrir quem foi o homem e o jornalista que recebeu alcunhas como “O Bessarabiano” e “O Profeta”, no momento em que completaria 100 anos. Bem, até isso é polêmico. “Ele tinha duas datas de nascimento: 19 de dezembro de 1910 e 12 de janeiro de 1912”, explica a artista plástica Débora “Pinky” Wainer. Jornal da ABI 368 Julho de 2011

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ESPECIAL SAMUEL WAINER NA INTIMIDADE

Pouca gente conheceu tão bem Samuel em sua intimidade quanto ela. Filha do meio do jornalista e da ex-modelo e escritora Danuza Leão, Pinky foi uma das responsáveis pela publicação da autobiografia do fundador da Última Hora e até hoje é a guardiã informal de sua memória. Na Loja do Bispo, misto de ateliê, livraria e editora que mantém nos Jardins, em São Paulo, a artista plástica recebeu o Jornal da ABI e deu um depoimento exclusivo sobre as lembranças que guarda do famoso pai, falecido em 1980. “É estranho falar que seu pai é centenário. Algo meio distante e completamente diferente do que ele significa para mim. Pois não tenho uma só memória especial do Samuel. Eu o tenho inteiro na memória e muita saudade. Sempre que vejo uma notícia, lembro-me dele.”

Uma importante capa de Diretrizes reúne Vargas e Franklin Roosevelt em 1939. Abaixo, uma foto de 1944. A partir da esquerda, Salvador Allende, sua esposa Hortensia Bussi, Bluma, Rosinha, Herman Santa Cruz e Samuel Wainer, em Santiago.

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Jornal da ABI 368 Julho de 2011

Imprensa independente Samuel Wainer começou no jornalismo em uma época diferente. Esse negócio de ‘imparcialidade’ não era tão forte. As pessoas tinham um lado nas disputas políticas. Os jornais também. Todo mundo tem o rabo preso com alguém e nem por isso falam em falta de liberdade de imprensa. Jornal que não mostra de que lado está não merece confiança. Aprendi a ler nas entrelinhas da imprensa com o meu pai. Ele dizia que é muito mais importante quando um jornal não dá a notícia do que quando dá. Por aí você consegue perceber ligações e privilégios. Como cresci aprendendo a procurar o que há por trás do texto no jornal ou da imagem na televisão, prefiro a internet. Sem dono, sem filtros. Ele me ligava o dia inteiro do jornal, dizendo o que estava acontecendo, qual era o escândalo da vez, quem tinha feito o quê.

Samuel Wainer e sua primeira esposa, Bluma, vêem um filme fotográfico na Alemanha, em 1945. Ao lado, em Paris, como correspondente dos Diários Associados, de Chateaubriand.

Política Todo mundo fala da aliança que ele fez com Getúlio Vargas, um presidente que foi ditador. Mas esquece que, quando o homem era ditador, meu pai esteve preso e foi impedido de trabalhar. Tenho muito orgulho dele, por ter sido um nacionalista. Ter participado de campanhas como o petróleo é nosso e encampado lutas populares. Diante de toda polêmica sobre seu nascimento, se na Bessarábia se no Brasil, costumava dizer que era muito mais brasileiro que qualquer um. Afinal, era o único declarado assim pelo Supremo. Na parte política, falam muito sobre a relação dele com o Getúlio. Acho que ele foi um espectador privilegiado. Esteve presente em momentos históricos e escolheu o lado que julgava melhor. Seja nas alianças com o Getúlio ou nas brigas com o Lacerda. No jornalismo, ele foi revolucionário e isso é pouco comentado. Ele foi o responsável por dignificar a profissão, pagando salários decentes. Até então, os profissionais tinham vários empregos para se manter. Ele também foi o primeiro a publicar textos assinados pelos autores, abriu espaço para a fotografia. Mudou a cara daquela imprensa aristocrata e parada no tempo. Em minha opinião, essa foi sua grande contribuição.

Minha Razão de Viver No livro, minha participação foi acompanhar a transcrição, entregar para o Augusto, estar por perto, pois não queria que houvesse nenhum tipo de censura ao Samuel. Não queria que o melhorassem nem o piorassem. Simplesmente não queria que mexessem com aquilo que ele fez. Da forma como ele se coloca em suas memórias, pode ser que tenha até exagerado algumas vezes. Mas ele era assim, não queria que o mudassem. No final, o Augusto editou o texto de forma esplêndida. Ao ler é como se você ouvisse o Samuel falando. Também participei fazendo os contatos. Procurei o Jorge Amado para escrever o prefácio e conversei com a editora para acertar a publicação. O livro foi escrito com base em depoimentos tomados em duas etapas. Na primeira, durante cerca de dez dias, foram gravadas 52 fitas. Samuel concedeu essas entrevistas para um grupo encabeçado pelo Sérgio de Souza. Quando você ouve as fitas percebe a grande animação das conversas. Havia bebida e a presença de mulheres. A segunda parte foi realizada pela jornalista Marta Góes (leia depoimento na

página 6). Nessa época, ele já estava deprimido. Os depoimentos foram bem pessoais, mas tristes. Ele repetiu as histórias, procurando preencher alguma lacuna. É um livro excelente. Porém, nas autobiografias as pessoas costumam mentir muito, exagerar pelo menos. Ninguém tem uma visão equilibrada sobre si mesmo. Espero que, algum dia, alguém ainda escreva a biografia dele, contando a verdadeira história. Quando Minha Razão de Viver saiu, foi um escândalo. Pela primeira vez no Brasil, alguém desnudava a imprensa, revelava seus bastidores. As relações com o poder. E perpetuou legado e memória do Samuel. Antes de sair, ele fez questão de que fosse publicada pela Editora Record. Era a editora que publicava o Jorge Amado. Mas seu dono, o Alfredo Machado, era também o melhor amigo do Lacerda. Bom, o livro saiu no dia 23 de dezembro, apenas com dois, três mil exemplares. Mas o sucesso foi imediato. Em janeiro foi necessário imprimir mais 30 mil exemplares. Foram 180 mil em apenas quatro meses. Hoje o livro está esgotado. Mas será relançado em breve. Além disso, estamos tentando disponibilizar o conteúdo gratuitamente na internet por 60 dias.


Clarice Lispector Tudo começou no twitter. Sou uma twitteira de primeira e havia acabado de ler a biografia da Clarice, escrita pelo jornalista norte-americano Benjamin Moser. Fiquei muito impressionada, porque a cada trecho há uma citação sobre o meu pai e por um bom número de páginas. Meu pai, por sua vez, nunca abriu a boca para falar qualquer coisa sobre ela, mesmo se a conhecia. E olha que ele era muito falastrão, cheio de contar vantagem. Ficava fazendo charme e costumava contar pequenas histórias engraçadas de sua convivência com alguém de muito prestígio, ou grande inteligência, ou dinheiro, ou muito nobre. Mas nunca, nunca mesmo, falou no nome de Clarice. Nem para falar mal. O que ele fazia às vezes, em família. Porém, lembrei-me que, quando meu pai morreu, encontrei uma foto dele com a Clarice, em Paris, tirada em 1946. No retrato, estão ele, Apolônio de Carvalho, seu cunhado Daniel, Clarice e seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente. Intrigada com tudo aquilo, comentei no twitter e o jornalista Vilmar Ledesma me procurou. Ele havia encontrado, em antigas revistas Diretrizes, na Biblioteca Mário de Andrade, a primeira entrevista da Clarice, concedida justamente a meu pai. Foi na edição 70, de 30 de outubro de 1941, uma série de reportagens sobre universitários e sua relação com a literatura. Copiou tudo à mão e me passou. Coube a mim divulgar. Clarice era muito amiga da primeira esposa de Samuel, Bluma. É estranho meu pai nunca ter comentado. Deve ter acontecido alguma briga feia, talvez relacionada a separação dele e da esposa. Bem, no fim, torneime uma espécie de guardiã, ainda que informal, da obra do Samuel Wainer.

Carteira da ABI de 1970: matrícula 1097.

Ao lado, uma rara foto de Wainer com Getúlio Vargas. Acima, uma das inúmeras fotos que ele enviava para a família durante a guerra. Atrás, ele relatava os tempos difíceis: “Bluma querida, você não pode conceber até que ponto a derrota e a fome podem levar um povo a perder sua dignidade e decência. Aqui em Berlim vagam quase quatro milhões de seres miseráveis e cínicos, prontos a vender a filha por um pacote de cigarros.”

Família Meu pai sempre poupou muito os filhos dos problemas. Assim a derrocada que tivemos me marcou muito. Até 1964, tempo em que estava com oito, nove anos, eu era uma menina muito arrogante, metida mesmo. Pensava que meu pai mandava no Brasil. Convivíamos com o poder com tranqüilidade. A ponto de eu ligar para o Darcy Ribeiro, então Ministro da Educação, para reclamar da minha prova de Matemática. Fomos para o exílio e quando voltamos, em 1968, começou a decadência absoluta. Vi credores entrarem em casa e saírem com objetos debaixo do braço. Especialmente quadros, que tiravam de nossa parede. Meu pai tinha uma coleção de arte bacana. Depois, eu mesma fui ameaçada de seqüestro por ex-funcionários do jornal, que queriam receber. Teve uma vez que houve um bafafá enorme lá em casa, veio Polícia, grampearam o telefone e o Samuel tentou me esconder de todas as formas possíveis. Quem mais ficava apavorado com os ataques do Lacerda e as acusações de que Samuel não era brasileiro eram nossos parentes do Bom Retiro, em São Paulo. Só de sair nas ruas e ouvirem os comentários, eles entravam em polvorosa. Assim, decidimos divulgar a verdade na autobiografia só depois da morte dos irmãos. Quando saiu a nova edição, pela Editora Planeta, só havia uma das minhas tias viva.

Nesta foto de 1952, um exemplo do bom humor de Samuel Wainer: ele aparece ao lado do Príncipe Ali Khan – um freqüentador assíduo das colunas sociais da época –, que estava acompanhado de D. João de Orleans e Bragança, da Família Real brasileira. Atrás da foto, Samuel não deixou por menos e escreveu “Príncipes reais com o Rei do jornalismo brasileiro”.

Última Hora A Última Hora foi o grande veículo dele. Ela mudou a cara da imprensa popular no Brasil, inovou no projeto gráfico e trouxe as mulheres à Redação. No fim, o bem mais precioso que restou foi o arquivo de fotos. Milhões de negativos. Seria tudo jogado na massa falida e ia virar sabão, literalmente. Naquele tempo, estava casada com o produtor de televisão Roberto Oliveira. Conversava direto com meu marido sobre isso. Não nos conformávamos. Resolvemos falar com meu pai, que ainda estava vivo. Ele autorizou. Arrumamos uma jamanta, encostamos no prédio da Sotero dos Reis, no Rio, e trouxemos todo o arquivo para São Paulo, em um sítio que tínhamos. Chamamos estudantes universitários e tiramos o filé mignon dali. Centenas de milhares. Mesmo assim, ainda sobraram algumas centenas de armários de aço de material. Devolvemos o que sobrou. Foi uma coisa maluca, mas necessária para

salvar parte importante da história, que agora está com o Arquivo Público do Estado de São Paulo. Existe um filme, do qual gosto muito, chamado O Céu que nos Protege, do Bernardo Bertolucci. Ele narra a história de um casal que sai de casa e vai para a África em busca de aventuras e nova razão para viver. A obra é baseada no livro de Paul Bowles e é magnífica. Num dos diálogos, a mulher está em um café parisiense com um senhor, não sabendo se continua a aventura ou se volta para os Estados Unidos. Nisso, o homem lhe diz que na vida de qualquer pessoa acontecem uma ou duas coisas importantes. Alguém que possa ocupar a mão inteira contando coisas importantes que lhe aconteceram é um privilegiado. E ela volta para o deserto. Meu pai ocupou mais de uma mão. Houve a cobertura de Nuremberg, a revista Diretrizes e muitas outras coisas. Mas o dedo principal é a Última Hora.

Paixão até o fim

Dinheiro

Depois que perdemos tudo, acompanhei seu esforço para tentar outras grandes aventuras em sua vida. Lembro de reuniões de madrugada lá em casa, nas quais ele juntava grupos de jornalistas. Ficavam todos ao redor da mesa discutindo. Estavam criando novas publicações, jornais. Discutindo projetos e analisando bonecos. Alguns saíram. A maioria, não. Mas era a vitamina dele, o que dava forças para continuar lutando. Quem trabalhou e conviveu com o Samuel o adorava. Porém, não havia mais clima para ficar no Rio com o regime militar. Antigos conhecidos evitavam falar com ele. Foi aí que decidi vir para São Paulo. Ele veio atrás. Aqui reencontrou a auto-estima. Era uma cidade de imigrantes, que valorizava o trabalho e gostava muito do que ele fazia.

Meu pai não era rico, não tinha dinheiro. Tudo que ganhava era investido no jornal, era do jornal, não nosso. Dizia que tinha se corrompido, saído com mulheres para conseguir anúncios. Quando ele morreu, não deixou herança. Apenas um telefone na parede de um apartamento alugado. O telefone valia cerca de mil dólares. Só. Tanto que não tem inventário. Meus irmãos levaram o que quiseram e eu catei a papelada dele. Fez de tudo para deixar a família preparada. Eu estava casada. O Samuca e minha mãe deram entrada num apartamento. O Bruno, caçula, também precisava de casa própria. Antes de sua morte, meu pai trabalhava para o Domingo Alzugaray. Pediu 70% do salário de um ano adiantado. Só que

morreu em setembro e o pagamento do empréstimo acabava em novembro. No final, o Alzugaray perdoou a dívida. Naquele tempo, minha mãe dirigia uma boate no Rio, a Hippopotamus, e o Samuel brincava comigo: ‘Não pense que você é grande coisa. Sua mãe dirige um bordel e seu pai trabalha numa revista de sacanagem’. Era a Status, primeira revista masculina do Brasil. Depois da anistia, fui procurada por diversos advogados. Tentavam me convencer a entrar com processo contra a União. Nos primeiros tempos da ditadura militar, a Última Hora foi dilapidada pela ação do Governo e suas represálias contra anunciantes do jornal. Economicamente, o veículo foi destruído por causa disso. Mas achei que não cabia uma ação assim.

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ESPECIAL SAMUEL WAINER NA INTIMIDADE

O protagonista de uma grande aventura P OR M ARTA G ÓES Não conheci o poder de Samuel Wainer, mas acho que fui testemunha de sua grandeza. Quando o vi pela primeira vez, em 1972, na Redação da Última Hora/São Paulo, ele já havia perdido seu império e trabalhava no jornal graças a um gesto de cavalheirismo de seu novo proprietário, Octávio Frias, que o contratara quando ele voltou do exílio, em dificuldades. Tornou-se, assim, o diretor de Redação do jornal que fundara, àquela altura um veículo sem importância, uma sombra do que fora no passado. O único charme da Última Hora, naquele momento, era a presença de seu lendário fundador. Ele me contratou como repórter da Geral. Samuel atraía àquela Redação empoeirada e decaída uma revoada de figuras curiosas, composta de artistas, grã-finas, intelectuais e jornalistas. Trabalhavam lá, entre outros, Plínio Marcos, Mário Prata, Sheila Leiner, Nessia Leonzini, Maria Helena Amaral, Celso Curi e Jorge da Cunha Lima.Todos se divertiam muito. Movido pela elegância, ele fazia de conta que também estava achando graça. Depois que Samuel se desligou do jornal para levar adiante outros projetos, continuamos em contato, pois Mário Prata, que conheci na Redação e com quem me casei,tornara-se muito amigo dele. Eu estava em casa, cuidando dos filhos pequenos, quando ele me ligou perguntando se eu poderia trabalhar com ele em sua autobiografia. Já iniciara e interrompera diversas vezes o relato de suas memórias a um grupo de grandes jornalistas, entre eles Sérgio de Souza e Hamilton de Almeida. Mas eles acabaram sendo absorvidos pelas urgências da vida, e Samuel estava com pressa. Durante alguns meses fui à sua casa, um apartamento modesto na Alameda Tietê, em cima de um supermercado, pa6

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ra ouvi-lo. Ofereci-lhe, sobretudo, meu olhar curioso e admirado, o mínimo indispensável para que ele se animasse a falar de sua história formidável. Alguns vestígios de um passado grandioso eram visíveis em fotografias nas paredes – Samuel com Mao Tse Tung, Samuel no julgamento de Nuremberg, Samuel com Getúlio Vargas, com Jango Goulart... E, a não ser pelo jeito chique e despretensioso como recebia as pessoas em casa, nada naquele cenário indicava um passado glamuroso. Trabalhávamos num pequeno escritório, sentados frente a frente em sua mesa de trabalho, o gravador grandão no meio. Éramos interrompidos de vez em quando pela empregada, Isabel, que vinha trazer café fresco e bolo quente, ou pedir dinheiro para compras da casa. Ele desligava o gravador. “Não adianta, Isabel, você não vai entrar nas minhas memórias”, brincava. Ora cansado, com a respiração difícil, ora animado, divertido, avançava por suas lembranças povoadas por presidentes, poderosos, inimigos, audácias e riscos. De vez em quando, ele mesmo se interrompia. “Então, você acha que isso vai dar uma boa autobiografia?”. Ouvi histórias fantásticas, naquelas tardes, mas é esta cena que me vem à lembrança quando penso em Samuel: um homem revendo o filme de sua própria vida e, aparentemente derrotado, saboreia o luxo de ter sido protagonista de uma grande aventura. O luxo de ter vivido.

Samuel participou ativamente do sucesso da campanha o petróleo é nosso nos anos 1950. Acima, ele põe a mão no ouro negro empoçado. Na foto maior, escavações na Bahia.

Em 1952 Samuel teria indicado Walter Moreira Salles para assumir a Embaixada brasileira em Washington. À direita, na frente do extinto Diário Carioca, ele e Luiz Fernando Bocayuva Cunha.

Samuel se defende veementemente durante a CPI armada por Carlos Lacerda. Ao lado, uma foto publicada na Última Hora em 30 de junho de 1953. Dizia a legenda: “O Presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Fiação e Tecelagem, Nelson Rusticci, dá a sua solidariedade a Wainer. Pouco depois, o "louco do Lavradio" insultava os trabalhadores paulistas, através da televisão do Sr. Assis Chateaubriand, por esse gesto de desassombro e dignidade.”


Uma prova de que Samuel era brasileiro: a carteira de identidade expedida pelo Instituto Félix Pacheco, do Rio de Janeiro.

Um jornalista orgânico, vital POR ALBERTO DINES Em 20 de julho de 1969, pouco depois de voltar do exílio, Samuel recebe na Redação da Última Hora, na Sotero dos Reis, no Rio de Janeiro, a escritora Françoise Sagan. Na foto, na frente dele, uma amiga francesa de ambos: Claude de Leusse. À direita, quase saindo da foto, Débora “Pinky” Wainer. Pouco depois todos assistiriam pela tv à chegada do homem à Lua. Ao lado, Samuel no aeroporto em Recife com Miguel Arraes exatamente um ano antes do golpe: 1° de abril de 1963.

Samuel leva o filho, Samuel Wainer Jr., o Samuca, para acompanhá-lo na cerimônia em que foi condecorado com a Medalha de Honra do Mérito Naval. Depois do golpe, os militares cassaram a distinção, mas a Medalha continuou com a família. Ao lado, Samuel e Moacir Werneck de Castro num jantar de apoio ao Presidente João Goulart na casa de Di Cavalcânti.

ESPECIAL PARA O JORNAL DA ABI

Jornalista orgânico, biológico, integral. Sua razão de viver era a bobina de papel. Samuel Wainer fez pelo menos duas revoluções no jornalismo brasileiro, merecia ser melhor estudado. Merecia ser revivido com toda a sua carga de eletricidade e capacidade inventiva. Diretrizes (fundada em 1938, um ano depois da implantação da ditadura do Estado Novo) foi a matriz de um jornalismo político numa época em que não se podia fazer política, incubadora de uma geração de grandes repórteres e cronistas como Joel Silveira e Rubem Braga. Última Hora (criada em 1951) criou um novo paradigma de jornalismo popular com um suporte de altíssimo nível intelectual. Não se considerava um intelectual, talvez por modéstia. Infalível caçador de talentos. Conhecia a força das palavras, sabia usá-las com maestria, um dos melhores mancheteiros com quem convivi. Datilografava com dois dedos em alta velocidade e muita emoção. Intenso em tudo: suas broncas eram arrasadoras. Quando percebia que fora excessivo acionava o lado sedutor: “uma bronca não se perde...” Um de seus gurus foi o francês Pierre Lazareff, criador do vibrante Le

Soir e, depois da guerra, do France Soir. Ambos sabiam transitar com igual desenvoltura da política ao show biz, sempre em defesa das causas justas. Sempre antifascistas. Apreciava o jornalismo americano, mas o seu xodó era a França – um europeu. Trabalhou em O Jornal, mas era um vespertineiro clássico, adorava fazer o jornal do dia e não da véspera. Ironicamente, foi o responsável pelo recuo do horário de saída dos vespertinos cariocas: sem máquinas e recursos para enfrentar O Globo (capaz de rodar e distribuir grandes tiragens no meio da manhã) não teve outra alternativa senão antecipar o fechamento e rodar às sete da manhã. Grande impulsionador do jornalismo de cidade e de polícia ia às bancas para ver quem comprava o seu jornal. Era o seu ibope. Mas aprendeu com o velho Chatô que uma empresa jornalística no Brasil, para ter voz, tem que adotar uma entonação nacional. Inventou então o sistema de edições múltiplas: a rotativa do Rio imprimia além da UH local também a fluminense e a mineira. A paulista abrigava uma edição satélite no Paraná. Jornalista vital. Energizador, mesmo num perfil com 365 palavras.

Sempre cercado de belas mulheres: ao lado, Samuel dança com a atriz Maria Della Costa; acima, se divertindo com Kim Novak.

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ESPECIAL SAMUEL WAINER NA INTIMIDADE

Com o arquiteto Oscar Niemeyer, durante a inauguração de Brasília.

BRUNO WAINER, FILHO

“A função mais nobre do Jornalismo é a reportagem” “A lembrança que tenho do meu pai é de uma pessoa muito cativante, atenciosa, inteligente, charmosa, tanto em casa como em público. Só posso dar minha opinião sobre sua atuação profissional pelas histórias contadas por ele. Segundo o próprio Samuel, a função mais nobre do jornalismo é a reportagem. Ele nunca deixava de atender a um telefonema, de investigar uma possível história. Ele dignificou a profissão de jornalista, revolucionou a imprensa brasileira, atraiu colaboradores brilhantes e, sobretudo, priorizou o interesse do público na sua linha editorial. Com isso, criou a primeira rede de jornais verdadeiramente populares no Brasil. Rapidamente conquistou a preferência dos leitores. Só não se consolidou como grupo empresarial de comunicação por causa do golpe de 1964. Acho que sua importância é devidamente reconhecida, sim, por quem tem cultura e informação. Agora, o País tem pouca memória, e muitos dos seus grandes homens são esquecidos, não só o Samuel. Mas até neste caso ele está em ótima companhia. Não sou historiador, mas observo que na maioria dos países da Europa e também nos Estados Unidos existe uma imprensa importante, tanto da situação como da oposição. Na Europa existem grandes jornais ligados aos conservadores, outros ligados aos liberais, e ainda outros ligados aos movimentos populares. No Brasil isso não acontece. Todos os grandes órgãos de imprensa estão do mesmo lado, representam os mesmos interesses. A falta que a Última Hora faz é justamente privar o grande público de uma opção de imprensa que apresente um ponto de vista diferente sobre os assuntos que dizem respeito a todos”.

JOÃO WAINER, NETO

“Profissionais como ele fazem falta em qualquer cenário” “Quando meu avô morreu eu era muito novo. Ele não influenciou minha es-

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Samuel Wainer e Danuza Leão com Mao Tse-tung durante as comemorações do 10° aniversário da Revolução Comunista na China, em outubro de 1959. Na foto, representantes de Associações de Jornalistas: Jenaro Medina Vera (E), do Chile, e Carlos Borche, do Uruguai.

colha profissional mas seguramente me empolgou para continuar nela nos momentos mais difíceis. Ele mesmo dizia, com toda razão, que jornalismo não é hereditário. Não me considero como muitos dizem “com jornalismo no sangue”. Ser neto do Samuel Wainer, pra mim, é apenas um grande prazer, não me faz melhor do que ninguém. Ele foi fundamental para a imprensa brasileira. Mudou o jeito de fazer jornalismo, tornando-o mais acessível para população. Graças a jornalistas como ele e a jornais como a Última Hora, o jornalismo evoluiu e hoje é diferente. Profissionais fora de série como ele sempre fazem falta em qualquer cenário, mas não devemos lamentar. O que eles fizeram e representaram continua no ar, é a base do jornalismo que é feito hoje.”

CACÁ DIEGUES, ADMIRADOR

“Ele fará falta sempre por seu desejo permanente de renovação” “Samuel Wainer tinha uma obsessão pela notícia e muita confiança em quem trabalhava com ele. Samuel foi o primeiro dono de jornal no Brasil a valorizar a assinatura dos jornalistas e deixar que eles incluíssem em seu trabalho um estilo pessoal que distinguia cada um de todos os outros. Ele modernizou o jornalismo brasileiro, tanto no empenho de um estilo para seus jornalistas, como também na paginação mais arejada e dinâmica que adotou para Última Hora. E, sobretudo, respeitava o mercado por onde circulava a UH e o adotava como referência da qualidade do jornal. Além disso, ele foi fiel às suas idéias e se empenhou em dar ao Brasil um jornalismo democrático de esquerda, com um caráter muito especial. Quando todos os jornais brasileiros atacavam sem piedade o Presidente Getúlio Vargas, no período em que ele foi eleito democraticamente, por sua política nacionalista e de justiça social, a Última Hora foi o

único jornal que o defendeu sem vacilar um só dia, em uma só manchete. Samuel fará falta sempre, pela qualidade de seu jornalismo e seu desejo permanente de inovação. A Última Hora era um jornal de posições muito nítidas, numa época em que havia muitos jornais no Rio e no resto do Brasil, cada um com posições nitidamente diferentes dos outros. Isso não existe mais – embora nossos principais jornais tenham suas características próprias e procurem manter-se fiel a elas, de modo geral não existe mais o jornal combativo em torno de uma idéia, de um programa, de um projeto político determinado. Jornais como Última Hora não sobreviveriam a esse ‘equilíbrio’ contemporâneo.”

A foto da vida de Samuel Wainer: emocionado, ele acena para os amigos ao embarcar para o exílio. Acima, momentos antes de chegar ao aeropoorto.


Aconteceu na ABI

“A Última Hora mudou minha vida” Um comovente depoimento do repórter Domingos Meirelles no seminário comemorativo do 60º aniversário de criação do diário de Samuel Wainer, que reuniu na ABI, para evocações saudosas, antigos integrantes de diferentes equipes do jornal.

Trote em Nélson Meirelles enumerou grandes nomes que integraram a Redação de UH durante o período em que trabalhou no jornal:

Domingos Meirelles ao lado de Pinheiro Júnior, seu primeiro chefe de Reportagem na UH.

“Tive o privilégio de trabalhar com Aguinaldo Silva, Nélson Rodrigues. O Nélson Rodrigues era um fumante inveterado. Quando ele se afastava da máquina de escrever para fumar e tomar café, o pessoal da seção de Polícia ia lá e escrevia alguma coisa no texto da crônica que ia sair no dia seguinte. Sempre reclamando de tudo, Nélson voltava e continuava escrevendo sem perceber que alguém tinha acrescentado algumas palavras ou até mudado o sentido do que ele estava expondo. Ele não tinha um bom relacionamento com a Redação devido à sua posição extremamente conservadora, de apoio ao Governo militar. A Redação reuniu ainda João Saldanha, Octávio Malta, um grande intelectu-

al, Moacir Werneck de Castro, Jorge de Miranda Jordão, que era o diretor de Redação, João Ribeiro, editor da primeira página, que só conseguia fazer a manchete comendo papel. Ele pegava a lauda, mastigava-a, mastigava, mastigava, até encontrar naquele suco de celulose a inspiração para a manchete. (risos). Pinheiro Júnior foi o meu primeiro chefe de Reportagem. Otávio Ribeiro era um repórter de Polícia que não tinha muita intimidade com a gramática, mas era um cão farejador, um caçador de boas histórias. Anderson Campos, Jânio de Freitas, Nilson Lage também foram grandes nomes. Maurício Azêdo foi o meu tutor, aquele mestre que se preocupava com o texto. Eu sempre levava o meu ACERVO PINKY WAINER

“Na minha memória afetiva, a Última Hora ocupa um lugar de eterna devoção porque aquela Redação mudou a minha vida. Naquela Redação aprendi que para exercer esse ofício era preciso ter um lado, o lado de todos aqueles que tinham sido vítimas de algum tipo de violência de governos militares, o lado dos desafortunados. Entrei na Última Hora em 1965, movido pelo sentimento de indignação diante das violências praticadas pelos governos militares. Cerca de 70% do corpo da Redação tinha formação em Direito, mas não exercia a profissão de advogado, daí esse arraigado sentimento em defesa do restabelecimento do Estado de Direito, do retorno das garantias individuais, do direito de expressão de pensamento. Trabalhei no jornal durante um ano e sete meses. A Redação era muito homogênea e aguerrida.” Feito com contida emoção, esse depoimento do jornalista Domingos Meirelles foi um dos momentos comoventes do seminário Os Sobreviventes, com que a ABI comemorou o 60º aniversário de lançamento do diário Última Hora em 12 de junho de 1951 pelo jornalista Samuel Wainer, que em poucos meses revolucionou a imprensa da antiga capital e do próprio País, ao apresentar um veículo que inovava na programação visual, na audácia das reportagens, no estilo dos textos e, também, na remuneração do jornalista: foi com a Última Hora de Samuel, que pagava salários muito acima da média adotada pelos demais órgãos de imprensa, que começou a profissionalização do jornalismo no País. Organizado pelo jornalista Alcyr Cavalcanti, membro do Conselho Deliberativo da ABI e que teve entre seus pontos altos o lançamento do livro A Última Hora (Como Ela Era), do jornalista Pinheiro Júnior, um dos mais destacados membros da equipe de Samuel, o seminário atraiu veteranos como Francisco Baleixe Filho, que fez 90 anos em 12 de outubro passado, e Victor Cavagnari Filho, que veio da cidade de Bragança Paulista, no interior de São Paulo, especialmente para rever antigos companheiros de trabalho. Além deles, compareceram antigos repórteres, redatores e editores, como Antônio Teodoro Magalhães de Barros, Benício Medeiros, Continentino Porto, o citado Domingos Meirelles, Jarbas Domingos, Jonas Vieira, Jurdan Amora, José Pereira da Silva (Pereirinha), Milton Coelho da Graça e Ubirajara Moura Roulien, e os repórteres-fotográficos Alcyr Cavalcanti, Avanir Niko, Antônio Nery, Hélio de Moraes, Ignácio Ferreira, Joaquim Morel.

CARLOS JOÃO DI PAOLA

P OR C LÁUDIA S OUZA

Durante o tempo em que esteve preso, Samuel recebeu a visita de amigos, como Nélson Rodrigues.

texto para o Azêdo olhar, ele era o secretário do segundo caderno do jornal.” Meirelles fez ainda uma homenagem especial aos fotógrafos que ajudaram a construir a história do jornal: “Gostaria de citar os nomes de Luís Pinto, Antônio Nery, Joel Maia, Sebastião Marinho. Joel Maia, por exemplo, era um fotógrafo com quem ninguém queria sair, porque ele dava azar. Certa vez ele estava sentado no departamento fotográfico embaixo de um lustre que ameaçava cair, mas nunca caiu. No dia em que o Joel Maia sentou ali, o lustre despencou. Joel levou seis pontos e ficou afastado do jornal. Quando retornou, Pinheiro Júnior o aconselhou a se benzer nos Barbadinhos, tradição de uma igreja da Tijuca. Joel Maia foi ao local com o Carlos Aleixo para fazer uma matéria. Carlos colocou-o à força na fila para receber a bênção. Quando o padre começou a benzer, a esfera que fica na ponta do aspersor de água benta se soltou e atingiu o rosto do Joel, que chegou na Redação com um galo. (risos) Em outra ocasião, ele foi assaltado no dia do pagamento por três homens, na Praça da Bandeira. A turma fez uma vaquinha para cobrir o salário dele. Quatro dias depois ele chegou na Redação muito pálido dizendo que os três homens que o assaltaram tinham sido encontrados mortos num terreno descampado na Baixada Fluminense. (risos) “Garoto, você está contratado” No final do depoimento, Domingos detalhou as circunstâncias que determinaram a sua contratação na Última Hora: “Fui efetivado com um mês e 15 dias de Redação, numa época em que se era contratado somente após seis meses de estágio. No dia 31 de março de 1965, recebi a tarefa de telefonar para uma lista de generais que haviam tido participação expressiva no golpe de 1964, entre eles o General Mourão Filho, que começou a soltar os cachorros em cima do Governo militar, revelando um fato até então desconhecido, que foi o acordo que o antigo PSD tinha feito com os militares de não cassar o Juscelino, o que foi rompido pelos militares. Quando eu entreguei o texto para o chefe de Reportagem, Iram Frejat, ele disse que eu tinha sido vítima de um trote, que eu tinha ligado errado. Várias pessoas telefonaram para o Mourão Filho, que confirmou a entrevista. Aí o Miranda disse o seguinte para mim: ‘Garoto, a partir de amanhã você está contratado!’ Não lembro se foi o Pinheiro Júnior ou se foi o Iram Frejat que esteve na casa do Mourão Filho para que ele rubricasse as laudas da entrevista quilométrica. Só sei que na volta Iram veio em minha direção com aquele monte de laudas rubricadas e disse: ‘Garoto, a partir de amanhã você tem aumento de 10%!” (risos). A Última Hora mudou a minha vida e me forneceu os parâmetros que até hoje norteiam a minha vida profissional.”

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Aconteceu na ABI

“UH tinha um carisma que sobrevive até hoje” Benício Medeiros pesquisa e conclui: Última Hora está inscrita na memória afetiva de leitores e de ex-colaboradores.

Técnica da diagramação O viés inovador de Última Hora foi assinalado por Benício: “A inovação principal foi a técnica da diagramação, que até então não existia na imprensa brasileira. Samuel importou um grupo de craques argentinos, entre eles o artista gráfico Andrés Guevara, para ensinar os brasileiros a desenhar o jornal. Antes da Última Hora, os textos eram arrumados nas páginas conforme o gosto do secretário de Redação. Curiosamente, o homem que trouxe a diagramação ao Brasil nunca se adaptou a ela. Para desespero dos editores, os textos de Samuel sempre estouravam, eram textos fluviais, entornavam página afora. Samuel também tinha uma grande dificuldade em compor um título ou manchete no tamanho exigido pelo diagramador. De todo modo, a técnica da diagramação tornou os jornais brasileiros, a começar pela Última Hora, muito mais bonitos e atraentes. Samuel queria fazer um jornal popular, mas não um jornal popular de escândalos. Ele

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queria um jornal que levasse a informação correta àquele segmento da população que chamamos hoje de povão. Um jornal que informasse e esclarecesse. O Diário Carioca, o Jornal do Brasil e mesmo o Correio da Manhã, contemporâneos à Última Hora, eram jornais de elite feitos para servir ao público da Zona Sul do Rio de Janeiro. Samuel queria atingir num primeiro momento a Zona Norte e os subúrbios cariocas, como de fato atingiu. O povo da Zona Sul esnobava um pouco o jornal do Samuel. Mas a verdade é que a Última Hora não tinha vergonha de ser um tanto quanto brega. Porque Samuel sabia que o povão era brega mesmo, e era preciso fazer um jornal que correspondesse a suas referências estéticas. Daí a importância que Samuel dava à reportagem policial e aos títulos e manchetes criativas ricas para surpreender o leitor, aguçar a sua curiosidade e conduzi-lo para dentro do jornal. A manchete conta a história Benício lembrou ainda algumas manchetes da Última Hora que ficaram famosas: “Morreu gritando gol!” A manchete que por si só conta toda a história. Um torcedor na arquibancada comemorando o gol de seu time, que de tanta emoção teve um ataque cardíaco dentro do estádio e morreu feliz com um sorriso nos lábios. Essa manchete é de autoria de um

de uma família de imigrantes pobres que mal sabiam falar português.” Onde o calo aperta Outra contribuição importante da Última Hora, na opinião de Benício, foi a questão salarial. “Samuel, pelo fato de ser repórter e por saber onde o calo da Redação apertava, começou a pagar salários realmente dignos a seus empregados. Isso é reconhecido até hoje. Depois, Samuel começou a ser golpeado por todos os lados, golpes duros, com o objetivo de acabar com ele e com o jornal. Carlos Lacerda, que na época era dono da Tribuna da Imprensa, questionava o Governo Vargas, sobre os empréstimos concedidos à Última Hora, vendo um favorecimento ilícito e corrupção em tudo, e conseguiu montar uma CPI na Câmara dos Deputados para apurar as supostas irregularidades. Assis Chateaubriand, barão da imprensa daquela época, acusava Samuel de às custas do dinheiro público inflacionar o mercado jornalístico, oferecendo salários irreais e mirabolantes aos seus contratados. Salvo o exagero contido na ótica naturalmente patronal e usurária de Chateaubriand, Samuel honrou todos os compromissos que assumiu com o Banco do Brasil e com a Caixa Econômica. Isso foi muito importante para profissionalização dos jornalistas, pondo fim ao que antes era um bico, a remuneração com a qual se podia pagar o aluguel e o colégio dos filhos. Os bons salários da Última Hora atraíram muita gente boa para o jornal, como João Cabral de Melo Neto, Sérgio Porto,Otto Lara Rezende, Nélson Rodrigues, Moacir Werneck de Castro, Octávio Malta, Paulo Francis. Samuel era uma pessoa generosa, gostava de ajudar pessoas que caíam em desgraça na vida pública. Era um empresário sui generis, excêntrico, no sentido de que às vezes tomava decisões que iam até de encontro ao seu próprio negócio.” ACERVO PINKY WAINER

Autor do livro A Rotativa Parou — Os Últimos Dias da Última Hora de Samuel Wainer (Civilização Brasileira, 2009), o jornalista Benício Medeiros, ex-Diretor da Diretoria de Jornalismo da ABI, descreveu o papel do diário na História da imprensa do País: “Pinheiro Júnior trabalhou 17 anos na Última Hora, quase a existência total do jornal, que durou 20 anos. Eu só trabalhei lá durante um ano e meio, entre 1970 e 1971. Mas mesmo assim foi um período cheio de emoções. Eu ouvi algumas pessoas mais empolgadas dizerem que a Última Hora revolucionou a imprensa brasileira. Outros, menos empolgados, disseram que a Última Hora não revolucionou coisa nenhuma, que Samuel Wainer era um jornalista da antiga, e que a Última Hora já nasceu velha em 1951. Essa última opinião especificamente é a opinião do Jânio de Freitas, tanto que ele não queria assinar a orelha do meu livro e só assinou porque eu insisti muito e porque ele é meu amigo. Conheci a Última Hora na sua fase hormonal e tinha impressões juvenis, pouco amadurecidas e também um pouco românticas. Depois que eu ouvi ex-colaboradores da Última Hora, o que eu achei disponível sobre o assunto, acabei chegando a duas conclusões principais: a Última Hora tinha, de fato um carisma que sobrevive até hoje, e está inscrita até hoje, talvez, como nenhum outro jornal morto na memória afetiva dos leitores e dos ex-colaboradores. Concluí também que a Última Hora não tinha realmente nada de revolucionário. Embora não seja daqueles que vão criticar a sua importância. Samuel Wainer e seu jornal introduziram questões e avanços que aperfeiçoaram em muitos aspectos a imprensa brasileira.”

dos mais famosos manchetistas da Última Hora com quem tive a honra de conviver durante um ano. Todo mundo aqui o conheceu: chamava-se João Ribeiro, um maranhense alto, boa praça, que usava óculos com lentes de fundo de garrafa. Lembro do dia em que João Ribeiro entrou na Redação agitado. Vivia-se o drama da nave Apolo 13, que devia pousar na Lua, mas ficou pelo caminho perdida no espaço por causa de uma pane. Ninguém sabia se os astronautas iam conseguir ou não voltar para a Terra. Foram oito dias de suspense que o mundo inteiro acompanhou pela televisão. Um dia, o João Ribeiro entrou na Redação empolgado e disse: “Tenho a manchete!”, que era a seguinte:” Vem queimando a nave louca!” Os editores devem ter achado aquela manchete criativa demais e a recusaram, mas João Ribeiro não ligava, continuava tentando deixar sua marca pessoal na primeira página do jornal, e na maioria das vezes conseguia. Essas duas amostras de manchete do João Ribeiro são indicativas do estilo da Última Hora. Manchetes populares, mas sem apelação e sem duplo sentido, que expressavam corretamente o que se queria noticiar. Haja vista que nessa época, alguns jornais sensacionalistas apelavam bastante em seus títulos na primeira página. Ficou famosa a manchete: “Cachorro fez mal à moça”, sobre uma jovem que se intoxicou depois de comer cachorro-quente numa lanchonete do Rio. Outra que ficou famosa foi: “Violada na platéia”, a propósito do tresloucado compositor Sérgio Ricardo, que quebrou seu violão e o arremessou contra o público que o vaiava no Festival da Canção da TV Record de 1967. Mas nenhuma dessas manchetes é da Última Hora, que detestava as apelações e as cascatas que, no jargão da imprensa são notícias fictícias, ou mais ou menos fictícias, inventadas pelo repórter para atrair leitores. O fato é que Samuel Wainer tinha afinidade com o povo, vinha

Momentos emocionantes: Samuel Wainer não gostava muito, mas o pessoal da oficina não se importava, queria cumprimentar o chefe.


Documentário mostrou páginas significativas O seminário Os Sobreviventes foi realizado no Auditório Oscar Guanabarino, no 9º andar do Edifício Herbert Moses, sede da ABI, e contou com uma mesa de honra coordenada pelo Presidente da Casa, Maurício Azêdo, e inmtegrada por jornalistas que atuaram na Última Hora, entre os quais Antonio Theodoro de Magalhães Barros e os Conselheiros da ABI Milton Coelho da Graça, Pinheiro Júnior, Domingos Meirelles, Pery Cotta, Alcyr Cavalcanti e Benício Medeiros. Maurício abriu o encontro ressaltando a importância do jornal Última Hora para a História da Imprensa no Brasil. “Criado em 12 de junho de 1951 pelo jornalista Samuel Wainer, o jornal Última Hora ocupa ainda hoje um papel destacado pelo caráter inovador e progressista de Samuel e de seus companheiros de jornal. A partir do lançamento da Última Hora, a imprensa criada no Rio de Janeiro e no Brasil deixou de ser a mesma: antiquada, viciada e com teor reacionário muito forte. Este seminário constitui uma homenagem a Samuel Wainer e àqueles que, sob a liderança dele, construíram este veículo marcante na História da Imprensa. A platéia, que reuniu colegas de trabalho, amigos e familiares de Samuel Wainer, associados da ABI, professores e alunos da rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro, além dos interessados em geral, foi saudada pelo Presidente da ABI: “Queremos agradecer a presença de todos e registrar a presença de uma delegação de representantes do Ciep Samuel Wainer, o Centro Integrado de Educação Pública Samuel Wainer, localizado na Avenida Almirante Cochrane, na Tijuca, e que foi uma das principais iniciativas no campo da educação adotadas sob a liderança do nosso inesquecível companheiro e mestre Darcy Ribeiro. Temos aqui a honrar a ABI a presença da Diretora do Ciep Samuel Wainer, Ângela David, e da Professora Maria Elizabeth, que leciona Língua Portuguesa nessa unidade escolar.” Ângela David cumprimentou os presentes e falou sobre a função do jornal na educação: “Estamos aqui atendendo ao convite do jornalista Pinheiro Júnior, autor do livro. Trouxemos alguns alunos do quinto ano que fazem parte do grêmio estudantil. O jornal faz parte do nosso projeto pedagó-

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Nem Samuel escapou das lentes dos repórteres-fotográficos: flagrante do momento em que saia da prisão, depois de garantir sua liberdade, em1952.

gico que se chama “Aluno leitor”. Como o patrono da nossa escola é o jornalista Samuel Wainer, achamos importante para os alunos conhecerem a História e como é produzido e editado um jornal antigo, em relação aos atuais. Utilizamos o jornal em sala de aula para trabalhar a escrita e a redação dos alunos.” Maurício aplaudiu também a presença do Professor Hélio Alonso, membro do Conselho Deliberativo da ABI: “O Professor Hélio Alonso tem um papel destacado no ensino de Comunicação do Rio de Janeiro e do Brasil, como criador do primeiro curso de Comunicação não vinculado a uma universidade pública, o Curso Hélio Alonso, com atuação nas áreas de Comunicação e de Turismo. Em seguida, foi exibido um vídeo de oito minutos produzido por Alcyr Cavalcanti com imagens de capas e fotografias que marcaram a história da Última Hora. Ao término, os debatedores formaram a mesa e Maurício passou a palavra ao jornalista Pinheiro Júnior.

Roberto Maia, 3 mil fotos; Baleixe, 90 anos O repórter-fotográfico Alcyr Cavalcanti, organizador do seminário, para o qual fez um documentário de oito minutos com primeiras páginas significativas de UH, grifou o talento dos fotógrafos do jornal. “Gostaria de citar os fotógrafos presentes, como Joaquim Morel, Avanir Niko, Ignácio Ferreira, um dos pioneiros e um dos maiores, Antônio Nery, Hélio de Moraes. Em duas décadas de Última Hora, mais de 3 mil primeiras páginas importantes foram feitas por um gênio da fotografia que eu lamento não ter conhecido, um modelo de fotógrafo, de pessoa, de caráter, que era Roberto Maia.”

Antes de franquear a palavra à platéia, Maurício Azêdo prestou homenagem ao jornalista Baleixe Filho: “Queremos registrar a presença do nosso companheiro Baleixe Filho, que para honra nossa, alegria nossa, fez recentemente 90 anos. Baleixe está aqui na primeira fila, exibindo a vitalidade e alegria de viver que foram a marca de sua passagem pela vida profissional.” Baleixe Filho saudou a platéia e destacou a importância do evento: “Gostaria de agradecer a Maurício Azêdo pela oportunidade que me deu agora e dizer que eu estou feliz em participar desta conversa. Sinto-me como se estivesse vivendo outro período do jornal. Agradeço muito mais ao Azêdo pela sua Presidência da ABI, o impulso dedicado a esta entidade que eu conheço há tantos anos e que agora realmente está mais acessível a todos nós.”

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Aconteceu na ABI

Os sobreviventes depõem

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Em seguida, Maurício Azêdo passou a palavra para o jornalista Antônio Theodoro Magalhães de Barros: “Na condição de um dos poucos sobreviventes, tive a alegria de reencontrar aqui alguns dos colegas da época da Última Hora, que realmente foi um jornal que revolucionou a imprensa carioca. Antes da Última Hora trabalhei no Diário Carioca e depois no Correio da Manhã. Mas foi na Última Hora, em várias funções, a última delas como editor internacional, que me realizei como jornalista, não só fazendo reportagens, mas principalmente editando a parte do noticiário internacional. Pena que hoje nós sejamos tão poucos e que a Última Hora esteja tão longe, 60 anos. Mas o exemplo que a Última Hora deu como linha de conduta e cobertura jornalística vai continuar a fazer seguidores. Fui professor da Universidade Federal Fluminense e tenho a esperança de que alunos e ex-alunos que hoje militam na imprensa voltem a buscar as lições da Última Hora para que o nosso jornalismo melhore ainda mais.” FRANCISCO UCHA

“Estou vendo aqui figuras que praticamente me deixam em lágrimas, como o meu velho amigo Baleixe Filho, companheiro de lutas na Última Hora naqueles tempos negros de perseguição. Estou vendo Domingos Meirelles, de quem tive a honra de ser o primeiro chefe de Reportagem. Estou vendo Olegário Wanguestel Júnior, com quem eu tive a oportunidade de trabalhar durante um dos meus exílios voluntários no jornal O Fluminense, de Niterói. E tantos outros, cuja fisionomia me trai um pouco, porque ficaram mais jovens, como se tivessem descoberto o segredo da eterna juventude. Este seminário celebra os 60 anos da Última Hora. O lançamento do meu livro é apenas um detalhe, uma parte do encontro que pretende congregar o maior número possível de sobreviventes da velha Última Hora. Quando estava autografando os livros, fui surpreendido com a presença de Felipe, Gabriel e a Noêmia Wainer, descendentes de Samuel Wainer. Última Hora era um jornal extraordinário, extremamente polêmico, à frente dos outros. Naquela época ele já praticava o que agora está sendo apresentado como o Novo Jornalismo: a reportagem narrativa. A estética de reportagem que a Última Hora publicava e que fez história é um exemplo típico deste jornalismo narrativo, que eu tive a oportunidade de praticar também.” Para ilustrar o assunto, Pinheiro Júnior citou reportagens que, em sua opinião, marcaram a trajetória do diário: “Moacir Werneck de Castro, o grande editorialista da Última Hora, dizia que o nosso jornal não transmitia apenas notícia, pois lutava pelas grandes causas do País. Um exemplo disto foi a matéria sobre o Sanatório Pedro II, feita pelo grande repórter José Montenegro, que mostrou como os pacientes mentais daquela unidade eram tratados e punidos como se fossem criminosos hediondos em tempos medievais. Para tanto, José Montenegro se internou no Pedro II.

FRANCISCO UCHA

Pinheiro Júnior: “Temos aqui um Napoleão. Por que não um repórter do jornal Última Hora?

FRANCISCO UCHA

ACERVO PINKY WAINER

Herbert Moses visita Última Hora, com Samuel e Paulo Silveira, em 1958.

Theodoro de Barros: “Espero que os novos jornalistas sigam as lições de UH”

Quando ele tentou sair do hospício, cansado de ver tanta tortura e falta de alimentação, recorreu ao segurança do local: “Eu sou repórter da Última Hora.” E o guarda respondeu: “Olha, se aqui dentro tem Napoleão e Jesus Cristo, por que não teria um repórter da Última Hora?”. (risos) Foi preciso que outro repórter do jornal fosse ao local para soltar o José Montenegro. Todos pensaram que ele era maluco também. (risos) Segundo Pinheiro Júnior, as matérias sobre o descaso das autoridades com a população de rua também levantaram polêmica: “O grande repórter de Polícia Amado Ribeiro descobriu que o Governo estadual estava jogando mendigos no Rio da Guarda para limpar a cidade, e isso não se fazia nem com lixo, por causa das restrições. Os mendigos morriam afogados e a corrente levava os corpos para o mar. A matéria “Psicanálise: remédio ou risco”, do repórter Luiz Edgard de Andrade, deu a Última Hora o disputado Prêmio Esso de Reportagem. O jornal denunciou que terras brasileiras estavam sendo vendidas para empresas estrangeiras. Alguns Municípios no Paraná, por exemplo, estavam sendo vendidos com praças e ruas e até a sede do Governo municipal. As matérias eram publicadas em série e prendiam a atenção do leitor, que buscava nas bancas a continuação dos assuntos. Agradeço a oportunidade de estar aqui falando sobre os bastidores da Última Hora.”

Pery Cotta: “Roberto Marinho era admirador do jornal de Samuel” Pery Cotta, Presidente do Conselho Deliberativo da ABI, falou, em seguida, sobre a sua experiência na Última Hora em meados dos anos 1970: “Não trabalhei no jornal naqueles tempos memoráveis sobre os quais os companheiros estão comentando. Foi em 1975 e 1976, quando a Última Hora já estava sendo dirigida por Ary de Carvalho, numa caminhada para ser fechada, encerrada. Eu trabalhava em O Globo na década de 60 e tinha um contato quase diário com Roberto Marinho, que estava sempre na Redação. Percebi nestes contatos a admiração que ele tinha pela criatividade da Última Hora, pelo estilo de jornalismo que o Pinheiro Júnior ressaltou. Roberto Marinho levou para O Globo todos os comentaristas da Última Hora, o jornal que mais o fascinava pela capacidade de diálogo com seu público, por falar uma linguagem ao mesmo tempo simples e profunda em termos de noticiário, de informação, pelo texto maravilhoso dos jornalistas e pelo talento dos profissionais de outras áreas do jornal.”

Milton Coelho: “Minha prisão foi uma prova da força de UH Nordeste” Em prosseguimento ao encontro, o jornalista Milton Coelho da Graça falou sobre a sua atuação no jornal: “Vou contar para vocês como acabei chefe da Última Hora de Pernambuco. Ela retrata quem foi Samuel Wainer para mim. Eu era copidesque na seção de Polícia, chefiada por Pinheiro Júnior, que todo dia me ensinava alguma coisa. Um dia, uma garota de programa se atirou do Othon Palace Hotel, em São Paulo, e eu estava pegando a matéria. Já no finzinho, veio a ordem de que o Samuel queria fazer a matéria. Ele tinha tido um caso com ela e fazia questão de escrever. O texto dele era primoroso, contava que a mulher tinha morrido sem dizer que era suicídio. O chefe de Reportagem perguntou se eu tinha gostado do texto do Samuel. Eu respondi que sim, mas que o meu título era melhor que o dele. O chefe de Reportagem, então, resolveu contar tudo para o Samuel: “Ô Samuel, esse cara é novo aqui, só tem um mês no jornal e disse que o título dele é melhor do que o seu.’ Samuel olhou o título e respondeu: ‘E é melhor mesmo. Bota o título dele!” Recebi um bônus de 15 dias de salário pelo título e no primeiro cargo de chefia que apareceu no jornal Samuel me deu a chefia de Reportagem. Esse era o Samuel, um cara que queria escolher quem era bom. Milton Coelho da Graça sublinhou também a força política do jornal em diversos Estados.” “Última Hora foi decisiva para a vitória do Miguel Arraes em Pernambuco, mas nesta época eu já havia saído do jornal. Assim que o golpe militar foi instaurado no Recife, eles destruíram a Última Hora e passaram a me caçar pela cidade, apesar de eu não estar mais ocupando a chefia de Redação. No final de 1964, só havia quatro presos em Pernambuco: Miguel Arraes, Gregório Bezerra, Francisco Julião e Milton Coelho da Graça. Só deixei a prisão com um habeas corpus do Supremo Tribunal Federal. Eu era importante? Não, eu era apenas o jornalista da Última Hora, que chefiara a Redação na vitória eleitoral em 1961. Conto isto para que vocês tenham uma idéia do ódio dos militares direitistas e dos setores mais retrógrados da nação pelo jornal Última Hora. Isso mostra quem foi Samuel Wainer e o que foi a Última Hora.”


RENAN CASTRO

ACERVO PINKY WAINER

CONSELHO

Formalizada a criação da Representação da ABI em Minas Em sua reunião mensal de junho, realizada no dia 28, o Conselho Deliberativo da ABI formalizou a criação da Representação da Casa em Minas Gerais, através da edição de resolução aprovada por unanimidade e firmada no mesmo dia pelo Presidente do Conselho, Pery Cotta, e pelo 1º e 2º Secretário da Mesa do Conselho, Sérgio Caldieri e Marcus Antônio Mendes Miranda. O ato tem seguinte teor: “RESOLUÇÃO Nº 1, DE 2011 Cria a Representação da ABI no Estado de Minas Gerais, e dá outras providências O Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa, no uso de suas atribuições. Samuel em Viracopos embarca para a Europa em novembro de 1961 com sua inseparável máquina de escrever.

“A história de meu avô é uma grande aventura” Na platéia, o estudante de Cinema Gabriel Wainer, 27 anos, neto de Samuel Wainer, acentuou a relevância de encontros sobre a História da Imprensa: “Percebo que a minha geração conhece muito pouco a história de meu avô. Cursei um período do curso de Comunicação Social na PUC, por influência dele e da família. Pouco se ouve falar sobre Samuel Wainer. A história dele é uma grande aventura, de dar inveja a qualquer Indiana Jones. Estudo Cinema e pretendo produzir um documentário sobre a vida de meu avô. Estou muito feliz: é bom saber que a História está viva em eventos como este.” O jornalista Felipe Wainer, 33 anos, também neto de Samuel Wainer, considera que o resgate da memória da imprensa brasileira precisa ser incentivado. “É muito importante o lançamento deste livro e que palestras como estas sejam realizadas em um país com a memória tão curta. É imprescindível este tipo de homenagem para que não se perca a História. É um absurdo um jornalista hoje se formar – conheço vários que estão se formando – sem saber quem foi Samuel Wainer. Citando Pinky Wainer, meu avô foi um homem que não corrompeu seus ideais, nem como político nem como jornalista. Essa foi a questão mais importante para a vida dele. E que nós preservamos como lição.” Colaborou Renan Castro, estudante de Comunicação Social, estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI.

RESOLVE: Art. 1º – Fica criada a partir de 1 de junho de 2011, Dia da Imprensa, a Representação da ABI no Estado de Minas Gerais, à qual caberá coordenar as atividades e iniciativas da Casa em território mineiro. Art. 2º – A Representação terá sede em Belo Horizonte e contará com um Diretor, um Presidente de Honra e um Conselho Consultivo, este com mandato de três anos. Art. 3º – A Diretoria da ABI expedirá os atos regulatórios e administrativos necessários ao bom desempenho da Representação. Art. 4º – Ficam designados: I – Diretor da representação o jornalista José Eustáquio de Oliveira; II – Presidente de Honra da Representação o jornalista José Mendonça; III – Membros do Conselho Consultivo da Representação os jornalistas Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares. Art. 5º – Esta Resolução entra em vigor nesta data. Sala Heitor Beltrão, 28 de junho de 2011 A Mesa Diretora do Conselho Deliberativo: Pery Cotta Presidente Sérgio Luiz Caldieri 1º Secretário Marcus Antônio Mendes Miranda 2º Secretário.”

O jornalista Jian Hua, líder da delegação chinesa, entrega uma lembrança ao Presidente da ABI.

As mulheres dominam o jornalismo online na China Nas Redações comuns é igual o número de homens e o de mulheres; no jornalismo eletrônico elas têm a supremacia. POR J OSÉ R EINALDO M ARQUES Em visita à ABI no dia 6 de julho, o Secretário-geral da Associação de Jornalistas da Província chinesa de Zhejiang, Chen Jian Hua, revelou que as mulheres dominam o mercado de jornalismo online na China. Ele disse que nas Redações dos veículos de mídia impressa o número de profissionais homens e mulheres na maioria dos casos é igual, mas na internet predominam jornalistas do sexo feminino. “As notas das mulheres nas provas para ingressar na faculdade são melhores (risos)”, afirmou o Chen Jin Hua. Cheng esteve na ABI acompanhado da jornalista Huang Cai Jun, representante do grupo de mídia Qiang Jiang e membro da Associação dos Jornalistas de Zhejiang; Tyan Young, do Diário de Ninbo; Xang Zi Qiang, do Diário de Jia Xing; e Hang Zhou, do jornal legislativo de Zhejian. Eles foram recepcionados pelo Presidente da ABI, Maurício Azêdo, na Sala Belisário de Souza, no 7º andar da sede da entidade, no Centro do Rio. Indagado pelo Presidente Maurício Azêdo se na China também há a exigência do diploma de curso superior de Jornalismo para exercer a profissão, Chen Jin Hua disse que os casos dessa natureza são raros. Em virtude da grande oferta de mão-de-obra, a exigência passou a ser a pós-graduação em mestrado e doutorado. Os chineses fizeram perguntas sobre o funcionamento do mercado de mídia no Brasil. Tyan Young quis saber quantos veículos de imprensa circulam atualmente no País. Maurício respondeu que de acordo com dados da Associação Nacional de Jornais existem pelo menos 150 jornais diários, além dos cerca de 4 mil diferentes formatos de periódicos semanais e revistas. O Presidente da ABI informou aos jornalistas chineses que a Folha de S.Paulo é o jornal com maior circulação no Brasil, com algo próximo de 300 mil exemplares por edição. Maurício acrescentou que mesmo sendo a líder do ranking de vendas, a Folha teve uma queda na circulação, que chegou a atingir 1 milhão de exemplares nos anos 70.

Tyan Young quis saber se no Brasil o jornalismo digital está causando danos ao jornalismo impresso. Maurício respondeu que a internet hoje é uma fonte de informação especial, mas que não chega a causar danos à circulação dos impressos e à audiência da televisão: “O noticiário eletrônico (rádio e tv) tem alcance muito maior do que qualquer forma de jornalismo que use a internet”, afirmou o Presidente. Ele informou aos chineses que o noticiário produzido para a internet é uma atividade das grandes empresas jornalísticas, devido à capacidade que têm de contratação de profissionais para busca e tratamento da informação do ponto de vista de sua apresentação: “Esse é um jornalismo típico dos principais centros do País, que se faz sem sacrifício do fato de que pessoas individualmente mantêm sistemas de informação através de blogs, Twitter e outras formas de manifestação que enriquecem esse universo de fornecimento de informações ao conjunto da sociedade”, esclareceu. Ao final do encontro Cheng Jian Hua falou sobre a Província de Zhejiang, que, disse, é uma das mais importantes da China, com uma população de 51,8 milhões de habitantes. Lá circulam cerca de 80 jornais, editados por empresas privadas. O mais importante é o Diário de Qian Jiang, do grupo Qian Jiang, cuja circulação é de 1 milhão de exemplares. O Secretário-Geral contou que a Associação dos Jornalistas de Zhejiang é uma entidade sem fins lucrativos que agrega 50 mil associados. Além da manutenção de uma página na internet, eles produzem uma revista que é distribuída para o quadro social e os demais integrantes da imprensa local. Chen Jian Hua quis saber se o Presidente da ABI conhece a China. Maurício informou que visitou o país quando exercia um mandato legislativo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e que como vereador foi o autor do projeto de resolução que declarou Rio e Pequim cidades-irmãs, num período em que não havia relações diplomáticas entre o Brasil e a China.

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Aconteceu na ABI

Uma Medalha do PCB para David Capistrano Jornalista, Deputado estadual em Pernambuco na primeira eleição após o fim do Estado Novo (1937-1945), ele integrava a resistência ao regime militar e foi preso em março de 1974, com seu companheiro Célio Guedes quando, clandestinos, vinham de Montevidéu para São Paulo. Seus corpos jamais foram encontrados.

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Capistrano: Quase meio século depois, não há notícia sobre o seu corpo.

viou uma saudação a Maria Augusta e David Capistrano, cujo texto é o seguinte: “A homenagem que a Fundação Dinarco Reis lhe presta a David Capistrano constitui um honroso reconhecimento de sua notável trajetória, que se inicia no crepúsculo da ditadura do Estado Novo e se estende até março de 1954. Jornalista, Deputado estadual em Pernambuco na primeira eleição democrática que se seguiu à derrubada da ditadura Vargas, Capistrano manteve-se até os últimos dias como lutador infatigável e desprendido do movimento socialista, causa a que se dedicou com a sua também admirável companheira Maria Augusta de Oliveira Costa, uma das heroínas na luta pela anistia, em abril de 1945, e ainda uma das defensoras dos ideais que a transformaram ainda muito jovem num exemplo de mulher combativa, solidária e coerente.” Dinarco Reis Filho exaltou o espírito de luta de David Capistrano não só no Brasil mas também na Europa: “Para nós este é um momento especial em razão da trajetória de lutas deste herói não somente da História do nosso País, mas também no combate ao nazifascismo na Europa. Capistrano era um verdadeiro internacionalista”, afirmou. Exigência renovada Em seu discurso, Wadih Damous reiterou a exigência de que o Governo brasileiro abra os arquivos da ditadura, em defesa da justiça, da memória e pela verdade:

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Um internacionalista Impedido de comparecer à cerimônia, o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, en-

REPRODUÇÃO

Em cerimônia realizada na ABI na noite de 22 de julho, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Fundação Dinarco Reis entregaram a Medalha Dinarco Reis a Maria Augusta de Oliveira Costa, de 92 anos, viúva do jornalista David Capistrano, assassinado durante a ditadura militar em março de 1974 quando, clandestino, viajava de Montevidéu para São Paulo. em missão de seu partido, de cujo Comitê Central era destacado membro. Com ele foi preso seu companheiro Célio Guedes, responsável por seu transporte e sua segurança. Os corpos de ambos jamais foram encontrados. O ato reuniu dezenas de pessoas, entre antigos membros do PCB e representantes da Ordem dos Advogados do BrasilSeção do Estado do Rio de Janeiro-OABRJ, do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e da ABI. A mesa de honra que conduziu a homenagem foi composta pelo Presidente Nacional do PCB, Ivan Pinheiro; o Presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, depois substituído pelo advogado Modesto da Silveira; Dinarco Reis Filho, Presidente da Fundação Dinarco Reis; Joana D’arc Ferraz, Primeira-Secretária do Grupo Tortura Nunca Mais no Rio; jornalista Geraldo Pereira dos Santos, membro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos da ABI, e o professor e historiador Rubem Aquino. Ao receber a Medalha, cuja denominação homenageia o militante do PCB Dinarco Reis, membro do Comitê Central do Partido, Maria Augusta de Oliveira relatou sua história de luta em defesa do País: “Hoje eu sou uma senhora de idade que vive em função de todo um passado de luta política e acompanhando tudo aquilo que se passa no Brasil, com a finalidade de melhorar cada vez mais a situação do povo brasileiro. Agradeço a todos os companheiros esta homenagem e desejo que todos tenham fé na sua luta em prol da democracia e da liberdade no Brasil”. Em seguida, Maria Augusta falou sobre a importância da homenagem ao seu marido. “É justo que se faça este tipo de homenagem a essas pessoas que dedicaram toda a vida à luta por um país mais justo, onde a população tenha uma vida melhor, principalmente a classe trabalhadora”, afirmou.

“Enquanto esses arquivos não forem abertos, enquanto a verdade não vier à tona, a OAB continuará em pé, de cabeça erguida ao lado do povo brasileiro, ao lado dos verdadeiros brasileiros na luta pela verdade, pela memória e pela justiça. O Brasil não terá uma sociedade mais justa e igualitária enquanto essa página da História do País não for virada com dignidade”. Ivan Pinheiro criticou a forma como o Governo trata a questão da abertura dos arquivos da ditadura e citou outros países da América do Sul onde isso já acontece, inclusive com a prisão de torturadores. Geraldo Pereira dos Santos lembrou o legado deixado por Capistrano, que “ao

Firme na denúncia dos crimes da ditadura, entre os quais o assassinato de seu marido e companheiro de lutas desde o fim do Estado Novo, em 1945, Maria Augusta recebe as homenagens de seus companheiros de PCB. O advogado Modesto da Silveira, defensor de presos políticos e Conselheiro da ABI, lembrou a trajetória política de David Capistrano da Costa, militante da luta contra duas ditaduras.

nascer enriqueceu o patrimônio humano; quando dele se despediu, assassinado pelos órgãos de repressão, legou seu patrimônio revolucionário à humanidade”, destacou o representante da ABI. Joana D’arc Ferraz, do Grupo Tortura Nunca Mais, reafirmou a necessidade de resgatar a memória dos torturados e desaparecidos durante a ditadura militar: “O que a gente tem neste País é uma maquiagem, como se se lavasse com água sanitária a nossa História. O que estamos tentando fazer hoje aqui é relembrar um pouco desta história que foi jogada para debaixo do tapete durante tantos e tantos anos”, afirmou.


Fez 100 anos o criador do slogan o petróleo é nosso Com uma cerimônia comovente, a ABI e outras instituições da sociedade civil celebraram o centenário do Brigadeiro Francisco Teixeira, que, jovem oficial, lançou no Clube Militar, em 1948, a campanha em defesa do monopólio estatal do petróleo. ex-comandante Francisco Teixeira. Suas últimas palavras foram pronunciadas com grande dificuldade: ele não conseguiu conter a emoção e só pôde concluir a intervenção com o estímulo dos intensos aplausos com que, também emocionada, a platéia saudou suas palavras finais.

Companheiro de Teixeira no fim do Governo Goulart, o ex-Ministro Waldir Pires veio de Salvador especialmente para o ato. RENAN CASTRO

Coragem para a resistência Ao declarar aberta a cerimônia, o Presidente da ABI destacou a importância do Brigadeiro Francisco Teixeira em momentos decisivos para o País. “Como não sou tão jovem quanto desejaria, fui testemunha da luta do Brigadeiro Francisco Teixeira e outros patriotas das ForA viúva do Brigadeiro, Iracema Teixeira, recebe da ças Armadas que como ele Doutora Maria Augusta Tibiriçá, Presidente de Honra do tentaram sustentar o GoModecon, o diploma de Defensora da Soberania, verno democrático do Presidente João Goulart. A nossa Modecon, Professor Lincoln de Abreu geração assistiu e ouviu inclusive depoPenna, e integrada pelo Presidente da imentos que mostravam não só o engaABI, Maurício Azêdo; o Brigadeiro Rui jamento democrático do Brigadeiro Moreira Lima; a médica e economista Francisco Teixeira mas também a sua Doutora Maria Augusta Tibiriçá, Presicoragem de enfrentar os monstros que dente de Honra do Modecon; a viúva do tomavam o poder naquele triste dia 1º de Brigadeiro Francisco Teixeira, Iracema abril de 1964”, afirmou Maurício Azêdo. de Souza Teixeira, acompanhada dos fiPor suas convicções esquerdistas, o lhos Aloísio Teixeira, ex-Reitor da UniBrigadeiro Francisco Teixeira foi cassaversidade Federal do Rio de Janeiro, Raul do nos primeiros dias que se seguiram Teixeira e Maria Lúcia Werneck; uma ao golpe militar, quando era Comanneta de Teixeira, Marina Teixeira Wernedante da então III Zona Aérea, atual 3º ck Viana, que comoveu a platéia ao ler Comar, com sede no Rio de Janeiro. uma carta em que Teixeira, já oficial da Antes ocupara o cargo de Chefe de Aeronáutica, com 28 anos, pediu em caGabinete do Ministério da Aeronáutica. samento a jovem namorada Iracema, dez Nacionalista, dirigiu a Revista do Clube anos mais nova que ele; o ex-Ministro da Militar na época da campanha o petróPrevidência Social e dos Transportes Walleo é nosso, à qual aderiu. Teve também dir Pires; o Comandante Paulo de Melo atuação marcante no movimento conBastos, Presidente do Comando-Geral tra o envio de tropas do Brasil para a dos Trabalhadores-CGT até abril de 1964 Guerra da Coréia (1950-1953). e que antes, como piloto militar, fora comandado de Teixeira; o advogado MarMensagem de Jobim celo Cerqueira; o representante do CluO Ministro de Estado da Defesa, be de Engenharia, Paulo Metri, e o PresiNélson Jobim, enviou mensagem em dente da Associação dos Engenheiros da homenagem ao Brigadeiro, na qual afirPetrobras-Aepet, Pedro Carvalho. ma que ele “ deixou para nós exemplos Com 93 anos, o Comandante Paulo de firmeza de caráter e tolerância, atride Melo Bastos fez comovido discurso butos que tornaram possível a construde exaltação do Brigadeiro Francisco Teição da sua sólida liderança militar e poxeira e impressionou a assistência pela lítica”. Disse ainda Jobim: nitidez de suas lembranças, a voz firme, “Felizmente para o Brasil os tempos o carinho e a admiração que deixou são outros. Amadureceram as nossas instransparecer por seu antigo camarada e tituições democráticas, as Forças Arma-

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A emoção de Melo Bastos A mesa de honra do ato, a que compareceram centenas de antigos companheiros, parentes e admiradores do homenageado, foi encabeçada pelo Presidente do

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Com o Auditório Oscar Guanabarino lotado, a ponto de muitos convidados acompanharem a sessão de pé, no fundo do salão, a ABI e outras instituições da sociedade civil, à frente o Movimento de Defesa da Economia Nacional-Modecon, prestaram homenagem no dia 25 de julho ao centenário de nascimento do Brigadeiro Francisco Teixeira, que foi apontado pelo Brigadeiro Rui Moreira Lima, seu comandado na Aeronáutica, como o responsável pela criação do slogan o petróleo é nosso da campanha pelo monopólio estatal do petróleo, que culminou na criação da Petrobras. Moreira Lima, de 90 anos, lembrou que Teixeira, então Diretor da Revista do Clube Militar, articulou o começo da campanha no âmbito da entidade, em 1948, ao convidar o General Juarez Távora, primeiro, e o General Júlio Caetano Horta Barbosa, depois, para conferências no Clube Militar. Em sua palestra, Juarez preconizou a participação estrangeira na exploração do petróleo, enquanto Horta Barbosa defendeu a instituição do monopólio estatal, tese nacionalista que empolgou os presentes, militares e civis, pela idéia em si e por uma cena imprevista: Horta Barbosa desceu a escadaria do Clube, na Avenida Rio Branco, Centro do Rio, de braço com o ex-Presidente Artur Bernardes, cujo Governo foi marcado por conflitos com os militares e insurreições,como a Revolta dos 18 do Forte, em 5 de julho de 1922, e a Coluna Prestes, a partir de 1924. Presidente de Honra da Associação Democrática e Nacionalista dos Militares-Adnam, fundada sob a liderança de Teixeira após o golpe de 1º de abril de 1964 para a defesa dos direitos dos militares perseguidos pela ditadura, Moreira Lima fez essas evocações no pronunciamento de abertura da solenidade, no qual leu o perfil que traçou de Teixeira para a cerimônia de inauguração do Centro Integrado de Educação Pública Brigadeiro Francisco Teixeira, unidade da rede municipal de ensino público da Cidade do Rio de Janeiro. Com uniformes azuis, numeroso grupo de professores e alunos desse Ciep compareceu à cerimônia, ocupando o mezzanino do Auditório Oscar Guanabarino, onde eles receberam aplausos da numerosa assistência.

O Brigadeiro Ruy Moreira Lima acompanhou a pregação nacionalista de Teixeira desde a Revista do Clube Militar, nos anos 1940.

das não mais se envolvem na política, dedicando-se exclusivamente à defesa da nossa soberania e às ações humanitárias externas e internas, conquistas estas, estou certo, que decorrem do esforço persistente de lideranças como a do Brigadeiro Teixeira. Lideranças que miram o futuro para construir o presente, deixando para trás as mágoas do passado.” Diploma para Iracema O ato foi marcado também pela entrega do diploma de “Defensor da Soberania Nacional” a Iracema de Souza Teixeira, viúva do Brigadeiro. Coube à Doutora Maria Augusta Tibiriçá entregar o diploma a Dona Iracema, em outro dos muitos momentos de emoção do ato.

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Mensagens

ARTE

Van Gogh: a mais forte pintura de todos os tempos Suas telas eram o redemoinho efervescente de sua alma torturada. POR PAULO RAMOS DERENGOSKI

É "EXEMPLAR HISTÓRICO" "Em nome do Excelentíssimo Senhor Governador Ricardo Vieira Coutinho, gostaria de agradecer o envio do exemplar 367 do Jornal da ABI, em que aborda, em detalhes, o período de exceção vivido pelo povo brasileiro durante a ditadura militar, com o excelente artigo A Prova dos Crimes. Sua Excelência, ao congratular-se com V. Sa. pela publicação deste exemplar histórico, cujo editorial sintetiza bem que Silêncio Eterno, só na Morte, abre caminhos para que, conhecendo melhor o passado recente, possamos nos prevenir para um futuro melhor. Cordialmente (a) Lúcio Flávio Vasconcelos, Chefe de Gabinete do Governador." “Constato com prazer, caríssimo Konder, que o Jornal da ABI, hoje, realiza o mais competente e melhor qualificado registro histórico do País. Forte abraço, Renato Claudio Alves Ribeiro.” CENTENÁRIO DE NELSON WERNECK SODRÉ “Francisco e Marcos, Estou entusiasmada ao ler a matéria lançada por vocês no Jornal da ABI. É uma matéria que merecia ser veiculada em outros meios de comunicação pela síntese que conseguiu fazer da trajetória de NWS e de nossa luta para reabilitar sua obra. Parabéns!!! Olga Sodré.” ANGELO AGOSTINI “Caro Francisco, tudo bem? Recebi aqui, na última semana, o Jornal da ABI, com sua matéria sobre o Agostini. Só tenho a agradecer imensamente. A matéria ficou excelente (em uma publicação ótima também)! Além de tudo, fiquei envaidecido. Forte abraço, Gilberto Maringoni.”

ERRATA EDIÇÃO 366 - MAIO DE 2011 Página 30 - São de Carlos João Di Paola, e não de Renan Castro, as fotos de Zuenir Ventura com o filho Mauro e a esposa Mary e com Arthur Xexéo e Ziraldo. EDIÇÃO 367 - JUNHO DE 2011 Páginas 10 e 11 - São também de Carlos Di Paola as duas fotografias publicadas.

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estranho – e não deixa de ser criminal – que durante toda a vida Van Gogh (1893-1890) tenha vendido um ou dois quadros e hoje seja o pintor mais caro do mundo. A sociedade bem pensante da época, os comerciantes de arte, os críticos e os pintores – sim, os pintores seus colegas também souberam ser sabujos, à exceção de Gauguin! – empurraram-no para a beira do abismo. É claro que sabiam a força de seu talento. Como não reconhecer, a olho nu, o poderio daqueles quadros iluminados, os traços fortes com a espátula, torcidos e retorcidos como as tripas do demônio, as cores solares transparentes da natureza, a “expressão” individual finalmente superando para sempre a “impressão”. E a luz a refletir nas superfícies vibrantes... Na obsessão pelo amarelo (que é a cor do diabo) Van Gogh transformava os céus, as árvores, as estrelas e o olhar em labaredas de fogo, que pareciam querer incendiar o mundo, mas que eram o redemoinho efervescente de sua própria alma torturada. Lenta e dolorosa foi sua carreira. Dos temas realistas de características sociais que marcaram seus primeiros trabalhos, passaria às pinturas sem relevo, de influencia japonesa. Depois viria o impressionismo, oscilando do pontilhismo de um Seurat ao simbolismo de Gauguin. Só nos dois ou três anos finais de sua vida é que a intensidade cromática – dos girassóis em diante – atingira uma tensão e uma exaltação febril, furiosa, desesperada. Mas as chamas intensas não duram muito. As sombras se alongam à medida que o sol se põe... E o grande feitiço coletivo, mas perigoso que as pequenas maledicências de povoado, voltam-se contra os que recusam a converter-se às imensas porcarias de insignes hipocrisias. A pintura de Van Gogh, ao quebrar o ritmo das visualizações fáceis através de um paroxismo monocromático, ofendeu uma maneira de ver o mundo. Na verdade, ele criou um outro mundo. E a criação de um mundo é início da loucura: obra anormal... As paisagens exibem hostilidades. O sobrenatural vem nas asas dos corvos negros a sobrevoar trigais maduros e amarelos... Nos auto-retratos, as pinceladas se expandem com raios emitidos por nuvens luminosas. A expressividade furiosa se dirige em direção ao céu noturno borrascoso e ensandecido. As luzes incertas dos cafés da noite parecem que se apagam em meio Às terríveis paixões humanas dos que freqüentam esses ambientes sórdidos “onde qualquer pessoa

A IGREJA EM AUVERS, VAN GOGH, 1890.

se arruína”. O contraste, a perspectiva deformada, o uso das cores puras, a ameaça da tempestade iminente, os olhares vagos e perturbados: eis aí impressões digitais de um gênio absoluto. Dizia ele: “Quando a natureza é excepcionalmente bela, não sou mais eu, perco consciência e as imagens vêm a mim, como um sonho”. O sonho e a realidade! Depois de aplicar a tinta em traços, com os impressionistas, passa para curvas espiraladas, em camadas cada vez mais grossas, trocando o pincel pela espátula e logo pintando diretamente com os dedos e com o tubo sobre a tela. Com Van Gogh, jamais, na História da Humanidade, a cor seria usada de forma tão expressiva, tão dolorosa. Tal intensidade assustava. Até mesmo o irmão, que o sustentou quase toda a vida, tinha medo de sua obra. E o entregaria, numa espécie de vampirismo familiar, ao psiquiatra Dr. Gachet. Do qual Van Gogh não mais se libertaria. A não ser encontrando a fuga pela porta escura da morte... Sua obra atravessou a noite do tempo. Pode-se dizer que é a mais forte pintura de todos os tempos. Os quadros valem ouro. Sua memória continua maltratada por vorazes. Mas suas telas brilham como a expressão máxima do talento humano. PAULO RAMOS DERENGOSKI, jornalista, escritor e sócio da ABI, é radicado em Lages, SC.


MEMÓRIA

Freitas Nobre, um homem valente Jornalista, escritor e parlamentar, ele foi um guerreiro, um combatente pacífico da liberdade; nos anos da reconstrução, sabia valorizar o diálogo e a negociação.

REPRODUÇÃO

“S

omos nossa memória”, dizia o mago Jorge Luis Borges. E nossa memória nos fala sempre de um Freitas Nobre que jamais se deixou intimidar pelos mastins da ditadura erguida a partir de 1964. Ao contrário aponta-o como um dos corajosos fundadores do MDB, partido da oposição, naqueles anos escuros, para alguns quase esquecidos. Mesmo a estes, porém, lembramos novamente Borges: “o esquecimento é uma das formas da memória. Seu vago porão”. Freitas Nobre era franzino, magro, e baixo. Usava óculos. Parecia frágil. Quem o conhecia, no entanto, sabia-o um homem de ferro. Ninguém podia humilhá-lo, porque era feito de rara fibra nordestina, inquebrável, curtida na sequidão do agreste. Foi dirigente sindical e político destacado. Conquistou o respeito e admiração mesmo de quem discordava dele. Por quê? Porque jamais se recusava ao bom combate. Nem ao entendimento necessário. Nunca deu o troco errado por baixo da mesa. Nem tropeçou em promessas vãs ou nas palavras jogadas a esmo. Marcava-o o espírito público, qualidade ainda rara entre os políticos brasileiros. Estive com ele no início dos anos 80, para convidá-lo a ser um dos fundadores da Anistia Internacional no Brasil. Ele aceitou o convite, sem hesitar. Em 1983, já vivíamos ao sol da democracia recém-conquistada, em São Paulo, com o Governo de André Franco Montoro, base sólida para o resgate democrático de toda a nação. Acabávamos de inaugurar a sede brasileira da Anistia Internacional, na Vila Madalena, quando os esbirros acuados da ditadura militar ainda instalada em Brasília nos atacaram, incendiando a casa alugada. Ao lado de José Carlos Dias, Secretário de Justiça do Governo Montoro, Freitas Nobre foi dos primeiros a se manifestar, solidário e disposto. Assim era ele. Se nos tempos nebulosos e censurados dos senhores da guerra interna Freitas foi um guerreiro, um combatente pacífico da liberdade, nos anos da reconstrução sabia valorizar o diálogo e a negociação. As perseguições, as ameaças e a cassação de antes

POR RODOLFO KONDER

Três nomes que representavam a retidão na política brasileira na época das lutas democráticas do histórico Movimento Democrático Brasileiro: Freitas Nobre, Ulysses Guimarães e Paulo Brossard.

não o transformaram num sectário ressentido. Costurava, amarrava, articulava. Nunca recorreu à violência, mas fazia tremer os violentos, com a tenacidade, a firmeza de suas convicções libertárias. Estudioso, dedicado, empenhado, lia e relia, registrava e brandia seus conhecimentos como armas letais contra qualquer forma de autoritarismo. Por isso mesmo, jamais o atraíram os extremos, de direita ou de esquerda. A defesa da democracia, do pluralismo e dos direitos humanos era o seu norte. Também era grande no dia-a-dia. Lembrome de sua emoção quando me acompanhou num gesto de protesto, em apoio a Alberto Helena Junior, demitido de maneira torpe da TV Gazeta, nos dias flácidos de Ferreira Neto. Demitimo-nos todos, no ar, ao vivo. Freitas

mal conseguia falar, de tão emocionado. Com essa mesma grandeza buscou sua reintegração na Universidade de São Paulo e voltou a competir, nas urnas, por um mandato. Ali, creio, começou a morrer. Derrotado, não realizou o sonho de se tomar um constituinte. Seguramente teria sido dos melhores. Não chegou lá, e nas eleições mais recentes sofreu uma nova derrota. Um golpe a mais afrouxou sua resistência à doença. Tomou lassos músculos da sua vontade. Até da vontade de viver. E ele se foi. Mas eu quero lembrá-lo citando, mais uma vez, o genial Jorge Luis Borges: “que importa a nossa covardia, se há na terra um só homem valente?” Freitas Nobre era um homem valente. RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

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ESPECIAL

A CRISE ÉTICA DO NEWS OF THE WORLD DAVID SHANKBONE

A classe jornalística e a opinião pública mundial reagiram com indignação ao fato criminoso envolvendo o tablóide britânico News of the World, que ocupou generoso espaço nos jornais londrinos e na mídia internacional. O semanário foi acusado de grampear ilegalmente telefones de celebridades, de políticos e de milhares de pessoas para obter informações privilegiadas para as suas notícias. O saldo negativo do escândalo dos grampos telefônicos do News of the World, que abalaram a Grã-Bretanha, é grande. A conduta imoral de jornalistas do tablóide para obter notícia veio a público pela primeira vez em 2006. No ano seguinte, o correspondente para assuntos da realeza Clive Goodman foi condenado pela Justiça, juntamente com o detetive particular Glenn Mulcaire, por terem grampeado ilegalmente telefones de membros da Família Real. Conforme citação da imprensa londrina e de agências internacionais, milhares de pessoas foram vítimas das escutas ilegais do News of the World, entre elas atores de tv e cinema, jogadores de futebol e familiares de soldados mortos no Afeganistão e no Iraque, políticos como o ex-Premier Gordon Brown e seu filho Fraser, que tiveram dados privados divulgados em reportagem do jornal. Em janeiro de 2011, pressionada pela repercussão de novas denúncias de grampos, a Scotland Yard (Polícia Metropolitana de Londres) reiniciou as investigações sobre o caso, sem, contudo, chegar a uma conclusão satisfatória sobre a procedência das escutas telefônicas ilegais. Em abril de 2011, o News of the World admitiu publicamente que jornalistas do veículo tinham feito escutas ilegais do telefone de pessoas citadas nas matérias que vinham produzindo. O efeito cascata da imoralidade jornalística do News of the World acabou derrubando a cúpula da Scotland Yard. O Chefe de Polícia, Paul Stephenson, e o Subcomissário, John Yeats, foram demitidos por terem contratado e mantido no cargo de consultor o ex-editor-executivo do tablóide, Neil Wallis, que exerceu a função até setembro de 2010. Wallis foi preso pelas autoridades britânicas sob acusação de pagar propinas à Polícia para obter informações confidenciais oriundas de grampos telefônicos sem autorização. Ao todo, até fim de julho, dez pessoas foram parar na cadeia, entre elas Rebekah Brooks, executiva-chefe da News International, empresa responsável pela edição do News of the World. A jornalista, que até 2003 era diretora de Redação do jornal, foi detida por 12 horas para interrogatório e depois liberada sob pagamento de fiança. Em depoimento ela negou que tivesse conhecimento da prática de escutas telefônicas ilegais. Na sexta-feira 15 de julho, Rebekah Brooks pediu demissão do cargo. Ela vinha sendo preservada dos escândalos por Rupert Murdoch, dono da News Corpo-

ration e da News Internacional, que é o braço do conglomerado midiático do magnata australiano na Grã-Bretanha. Segundo analistas, o empresário desejava mesmo era proteger seu filho James, Presidente da News International, da repercussão negativa dos fatos. O caso esquentou mais ainda com a morte misteriosa do repórter Sean Hoare, na segunda-feira 18 de julho. Ele foi encontrado morto em seu apartamento em Londres. O jornalista foi uma das principais testemunhas a relatar o esquema de grampos ilegais adotado pelo News of the World. Murdoch, enganado?

BANDITISMO NA IMPRENSA

Rupert Murdoch, James e Rebekah tiveram que comparecer ao Parlamento para dar explicações sobre as denúncias de espionagem que acabaram fechando as portas do News of the World. Eles foram intimados pelo Comitê de Mídia, Cultura e Esporte para depor no Parlamento. Murdoch e James a princípio recusaram o convite, mas recuaram depois que receberam a intimação das mãos de um oficial da Câmara dos Comuns. De acordo com as leis britânicas, a recusa seria encarada como um procedimento ilegal, e os dois poderiam ir para a cadeia. Nas declarações que deu ao Comitê do Parlamento britânico, Murdoch negou que tivesse conhecimento das escutas ilegais, alegando que foi enganado pelas pessoas que contratou para trabalhar em suas empresas. Disse que “sentia muito” por aqueles que foram vítimas da espionagem da sua equipe de jornalistas, argumentando que foi ludibriado “pelas pessoas em quem confiava”. O fato de Andy Coulson ter sido portavoz do Primeiro-Ministro David Cameron também serviu para esquentar a polêmica sobre a liberdade com que pessoas ligadas ao News of the World transitavam junto ao Governo. A pressão política da oposição e da opinião pública está se tornando insustentável e com isso Cameron por duas vezes ocupou a tribuna do Parlamento para dar explicações sobre a sua proximidade com o empresário Rupert Murdoch. Numa tentativa de amenizar os efeitos do escândalo para a sua imagem e a do Partido Conservador, o Premier prometeu averiguar as denúncias de grampos ilegais, independentemente das investigações da Scotland Yard.

OS MÉTODOS CRIMINOSOS DO IMPÉRIO RUPERT MURDOCH

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No vale-tudo da busca de crescimento da circulação, o magnata australiano e seus sequazes utilizavam-se de práticas que incluíam o suborno de autoridades, gravações ilegais e coonestação de homicídios. P OR J OSÉ R EINALDO M ARQUES

A morte, aos 168 anos

A repercussão do caso levou ao fechamento do News of the World, depois de 168 anos de circulação, no momento em que desfrutava uma posição de mercado confortável, como o mais vendido semanário dominical londrino, com cerca de 2,8 milhões de exemplares, por edição. O episódio também reacendeu o debate sobre o direito de privacidade e de liberdade de expressão, tendo como centro das discussões a questão da criação e a eficácia de mecanismos de regulação da mídia.


Em entrevista ao ABI Online o diretor de Jornalismo do Reuters Institute, da Universidade de Oxford, John Lloyd, falou sobre o processo de regulação da imprensa, cujas regras na Grã-Bretanha são ditadas pela Comissão de Queixas sobre a Imprensa (PCC, na sigla em inglês). Segundo ele, na verdade o papel exercido pela PCC é mais de mediação do que de regulação: “A PCC foi criada pela Newspapers, que é sustentada com dinheiro das empresas jornalísticas e dominada por seus editores. Até o momento, lidou com as queixas que considerava mais contundentes e não fez nada para acabar com os abusos”, disse John Lloyd. Criada em 1991, a PCC tem como principal missão assegurar que os órgãos de imprensa respeitem o código de ética, apurando denúncias dos leitores ou de autoridades que se sintam afetadas na sua privacidade. Mas há muito tempo o órgão de regulação vem sendo criticado, principalmente pela sua postura diante do escândalo dos grampos ilegais do News of the World, sob a acusação de não ter se empenhado para checar a verdade dos fatos. John Lloyd lembrou um outro escândalo envolvendo a imprensa londrina, mas disse que o caso não teve a mesma repercussão que o episódio que provocou o fechamento do News of the World: “Robert Maxwell, que era dono dos jornais do grupo Mirror, na década de 1980, usou-os para ampliar seu próprio ego, e quando sua empresa começou a declinar, ele pegou o dinheiro do fundo de pensões do grupo para salvá-lo (ele cometeu suicídio). Isso foi um escândalo, mas de um tipo diferente. Deveria ter sido feito um levantamento sobre a maneira pela qual os tablóides britânicos se comportavam muito antes desse escândalo atual, mas não houve”, afirmou Lloyd. Na avaliação do diretor do Reuters Institute, a credibilidade da imprensa londrina ficou um pouco arranhada, mas os grandes veículos não vão ser muito afetados, porque o escândalo aconteceu com um tablóide. Segundo John Lloyd, apesar de os jornais sensacionalistas serem muito poderosos, os diários da chamada grande imprensa, mesmo com uma circulação menor, detêm o poder de opinião: “Nada até agora os afetou (os grandes veículos), embora alguns possam também ter usado detetives particulares e estar envolvidos com uso de grampo de telefone”, ponderou John Lloyd. Ao comentar sobre a abrangência do escândalo, que respingou na Scotland Yard, John Lloyd ressaltou que o órgão de Polícia vai ficar em apuros. Isso já vem acontecendo mesmo depois dos pedidos de desculpas apresentados pelos oficiais da corporação citados no caso, pela suposta negligência na condução das investigações: “Eles foram acusados e são culpados de negligência. E isso tem sido ruim para sua reputação (da Scotland Yard), e pode piorar”, afirmou Lloyd. Pela porta dos fundos

No Brasil, o caso das escutas ilegais do News of the World foi o tema do programa Observatório da Imprensa, que foi ao

ar pela TV Brasil na segundafeira 11 de julho. A história da espionagem do tablóide, que tem um roteiro digno das melhores tramas policiais, foi debatida pelo âncora do programa, Alberto Dines, com a participação do experiente jornalista Silio Boccanera, correspondente em Londres da Globo News, e Rogério Simões, editorexecutivo da revista Época. Rogério Simões comentou sobre o poder e o trânsito que o magnata Rupert Murdoch desfruta entre a elite política londrina, tanto no Partido Conservador quanto entre os trabalhistas. Durante o seu interrogatório no Comitê de Mídia, Cultura e Esportes, o empresário admitiu suas ligações com os políticos e disse que teve vários encontros com o Primeiro-Ministro David Cameron, afirmando inclusive sobre o seu livre acesso ao Gabinete do Premier, ao qual fazia visitas secretas entrando pela porta dos fundos. Para Simões, esse é um fator significativo no desmembramento do caso, pois o poder de Murdoch revelou-se no fato de que nem a Polícia e tampouco a PCC foram fundo na apuração das denúncias de que o News of the World praticava grampos ilegais. Quem na realidade mudou o curso da história foi um jornalista do Guardian, e as suas revelações sobre o caso foram um “golpe fatal” nos negócios da News International, porque os acontecimentos provocaram a debandada de anunciantes do tablóide. “Os anunciantes resolveram tirar os anúncios diante de um caso que causou comoção na opinião pública”, afirmou Simões. Alberto Dines lembrou que o modelo britânico de auto-regulação da mídia foi criado na década de 1990, servindo de exemplo para outros países. Mas criticou a atuação da PCC no caso dos grampos telefônicos do News of the World: “A auto-regulação não conseguiu funcionar. Achava-se que a imprensa teria condições de auto-regular-se e esse caso foi ruim para a PCC, que é formada pelos representantes dos jornais. Ela deveria levar a investigação até o fim, mas não o fez”, argumentou Dines. Um cachorro sem dentes

O editor de Opinião de O Globo, Aluízio Maranhão, alerta que “é preciso cuidado antes de se criticar o princípio da autoregulamentação, o melhor para a imprensa, pois prescinde da atuação sempre castradora do Estado e do poder político”. Maranhão disse que a auto-regulamentação inglesa apresenta grave deficiência, porque é feita por um organismo independente aos veículos. “A Comissão (PCC) é mantida pelas empresas jornalísticas, mas atua distante das Redações. Isso a torna sem poder efetivo”, argumenta o editor. Segundo Maranhão, o melhor caminho é cada veículo montar sua estrutura de auto-regulamentação, com o envolvimento de diretores e editores:

“Só neste caso haverá ações efetivas de acolhimento de denúncia, correção de rumos e punições. O problema não está na auto-regulamentação, mas na forma como a imprensa inglesa a exerce. A PCC é um cachorro sem dentes.” Em seu primeiro discurso no Parlamento sobre o escândalo, o PrimeiroMinistro David Cameron propôs o fim da PCC como autoridade de regulação da mídia britânica. Na opinião de Dines, se a proposta de Cameron entrar em vigor terá uma conseqüência significativa no mercado de mídia londrino. A reclamação do Primeiro-Ministro, endossada pela opinião pública londrina, foi comentada pelo colunista do New York Times Allan Cowell. Em artigo publicado no jornal Estadão, na edição de 14 de julho, Cowell observa que o escândalo da quebra de sigilo telefônico que fechou as portas do News of the World serviu para ativar “uma ampla reavaliação entre liberdade de imprensa e privacidade na Grã-Bretanha”. “Se pessoas menos importantes acharem que seus segredos merecem proteção, como poderão se proteger de jornalistas inescrupulosos que desejem invadir os mais íntimos recados de suas caixas postais?”, indagou Allan Cowell, para em seguida concluir que “a pergunta sublinha o contraste da cultura que fez da Grã-Bretanha um templo das denúncias estridentes”. “O debate chegou ao que parece ser um ponto de virada”, afirmou Cowell. 3 mil sob grampo

As denúncias sobre procedimentos ilegais do News of the World para obter informações são antigas. O NOTW, como era conhecido na Grã-Bretanha, há oito anos vinha sendo acusado de praticar esse tipo de crime. O tablóide foi responsabilizado por ter grampeado o telefone celular da jovem Milly Dowler, que desapareceu e depois foi encontrada morta, em 2002. Além dos grampos, o autor do ato ilegal teria apagado as mensagens da caixa postal do telefone móvel da menina de 13 anos, prejudicando as investigações sobre o seu desaparecimento e dando esperanças à família de que ela poderia estar viva.

Além de celebridades como o ator Hugh Grant — que teve seu telefone grampeado e comemorou o fechamento do News of the World —, os alvos das escutas telefônicas do tablóide, segundo informações da imprensa local, passam de 3 mil pessoas. Entre elas figuram o ex-Primeiro-Ministro Gordon Brown e seu filho Fraser. Parentes de soldados britânicos mortos no Afeganistão e no Iraque e das vítimas do atentado contra o metrô de Londres, em 2005, também fazem parte da lista de cidadãos londrinos que tiveram sua privacidade violada pelos grampos ilegais do tablóide de Murdoch. O fato ganhou maior projeção internacional porque o FBI começou a investigar o caso, pois há suspeita de que parentes das vítimas do atentado do 11 de Setembro também tenham sido espionadas pelos funcionários das empresas de Rupert Murdoch. Não poupam Jean Charles

As notícias sobre a espionagem praticada pelo News of the World já vinham sendo comentadas largamente pela mídia internacional. No Brasil chamou mais atenção principalmente depois que membros da família do brasileiro Jean Charles Menezes — morto por engano pela Scotland Yard no metrô londrino, em 2005 — enviaram uma carta às autoridades britânicas cobrando um esclarecimento sobre a suspeita de que o telefone de Alex Pereira, primo de Jean Charles, também teria sido grampeado. Eles alegam que informações confidenciais da família vieram à tona quando estourou o escândalo dos grampos. O documento, encaminhado ao Primeiro-Ministro, David Cameron, com cópia para o vice Nick Gleeg, admite que os telefones dos advogados que acompanham o caso também podem ter sofrido escutas ilegais: “É uma intromissão flagrante e injustificável da privacidade da nossa família e uma tentativa deliberada de restringir o nosso direito de reparar a morte ilegal de nosso primo”, diz um trecho do texto que está assinado por três primas de Jean Charles. Um negócio frustrado

O imbróglio das escutas telefônicas ilegais do News of the World atrapalhou os negócios de Rupert Murdoch na GrãBretanha, que se viu obrigado a desistir da compra da BSKyB, um dos principais canais por assinatura via satélite do país. Murdoch é dono de 39% das ações e queria abocanhar os restantes 41%. O magnata foi obrigado a desistir do negócio depois que o Primeiro-Ministro David Cameron pediu que o Parlamento aprovasse moção que exigia que ele desistisse da compra da BSKyB. A operação já vinha sendo criticada pela oposição e grande parte da opinião pública, que temiam que a sua conclusão facilitasse o monopólio de Murdoch no setor de mídia

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ESPECIAL A CRISE ÉTICA DO NEWS OF THE WORLD

britânico, acabando com a diversidade dos meios de comunicação na Inglaterra. Pressionado pelos escândalos, que arrastam também o The Sun e o The Sunday Times, também editados pela News International, Murdoch publicou um anúncio nos jornais ingleses no último fim de semana, pedindo desculpas pelo erro do News of the World, que causou danos às pessoas. No texto ele assume que o fiasco do tablóide foi não ter feito o seu papel de fiscalizar a si mesmo quando a sua missão era exatamente de acompanhar o trabalho dos concorrentes: “Sentimos muito. O News of the World se dedicava a pedir contas dos outros e falhou quando se tratava de si mesmo”, diz um trecho do anúncio veiculado no sábado 16 de julho nos jornais Daily Mail, Daily Telegraph, Financial Times, The Guardian, The Independent, The Sun e The Sunday Times. Maranhão: Uma manobra

Na visão de Aluízio Maranhão, o fechamento do jornal foi uma manobra ousada de Murdoch, na tentativa de salvar o negócio que ele mais perseguia no momento na Inglaterra: a compra do controle da BSkyB: “O fechamento não foi o suficiente, e ele teve de retirar a proposta de compra. Pedidos públicos de desculpas e punições com demissão são adequados em situações como esta. Mas o jogo para Murdoch vai além do destino do News of the World. Tanto que agiu com grande rapidez no fechamento de um jornal campeão de vendas. É impossível prever os danos no grupo, pois não está fora de cogitação haver danos na imagem do braço americano do grupo, que inclui a Fox, Dow Jones e o Wall Street Journal, entre outros.” “Um esgoto jornalístico”

Quanto mais se mexe com o assunto, ao contrário do que desejaria Rupert Murdoch, o escândalo das escutas ilegais é uma crise que não se ameniza; pelo contrário, a cada dia revela um fato novo que lança um segmento da imprensa londrina em um buraco que o jornalista Alberto Dines chamou de “esgoto jornalístico”. Silio Boccanera acredita que um dos fatores que tem provocado escândalos entre os tablóides britânicos “é a cultura da fofoca que está avançando e estimulando esse tipo de publicação a cometer esse tipo de erro”. Rogério Simões acha que as dificuldades financeiras enfrentadas pelos tablóides ingleses podem estar por trás dos recentes escândalos envolvendo o News of the World: “A perda de leitores leva a uma situação de crise, por causa da competição exagerada que vem provocando desespero para angariar leitores nas últimas décadas”, disse o editor. “É difícil acreditar que as práticas criminosas cometidas pelo pessoal do News of the World pudessem ter sido feitas sem orientação dos editores”, observou Simões. Aluízio Maranhão vê na suposta inércia dos executivos do tablóide em investigar o caso e punir e apresentar os culpados para se desculpar com a opinião pública um problema de liderança nos veículos de Murdoch: 20

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Políticos tinham medo de Murdoch Em depoimento prestado ao Comitê de Mídia, Cultura e Esportes do Parlamento britânico na terça-feira 19 de julho, o megaempresário das comunicações Rupert Murdoch não negou o seu envolvimento com o Primeiro-Ministro, David Cameron, afirmando que teve vários encontros com o Premier e que o seu acesso ao Gabinete era feito pela porta dos fundos, conforme lhe foi recomendado. Ao comentar para o ABI Online as ligações estreitas de Murdoch com a classe política londrina, o diretor do Reuters Institute, da Universidade de Oxford, John Lloyd, afirmou que a maioria dos políticos no Reino Unido teve o cuidado de manter Murdoch ao seu lado, tanto quanto podiam: “Ele era o empresário da mídia mais poderoso, e ao mesmo tempo o mais político: alternava-se entre conservadores (Margaret Thatcher) e trabalhistas (Tony Blair). O seu apoio foi muito útil”, disse John Lloyd. Na opinião de Lloyd, outro detalhe importante por trás desse jogo de interesses é o fato de que os partidos britânicos, como em toda a Europa, estão em declínio, por isso os políticos precisam da mídia ainda mais do que antes: “Houve, na verdade, uma escolha pouco vantajosa para os políticos, a menos que eles queiram ter uma briga com Murdoch e a imprensa, fato que os levaria a perder, como aconteceu com o líder trabalhista Neil Kinnock, na década de 80”, ponderou Lloyd. “Sinto muito” Durante todo o tempo do depoimento que prestaram ao Comitê, Murdoch e seu filho James, que preside a News International, tentaram minimizar as suas responsabilidades no escândalo dos grampos telefônicos ilegais praticados pelo tablóide

“Esta passividade denuncia um grande problema de governança interna no grupo de Murdoch, pelo menos no seu braço inglês. Quem tem vivência de Redação sabe que práticas como as que foram usadas jamais as seriam sem conhecimento da direção”, disse o editor de Opinião de O Globo. Para Maranhão, o escândalo dos grampos telefônicos é “produto acabado de um jornalismo sem ética, em que o fim (o furo) justifica qualquer meio”. Ele acrescenta que em casos como esse “a instituição da imprensa perde credibilidade, seu grande e único capital, quando passa a usar de meios imorais para a obtenção de notícia”. Modelo duvidoso

Silvio Queiroz, subeditor e colunista da editoria Internacional do jornal Correio Braziliense, afirma que o caso dos grampos telefônicos ilegais do tablóide britânico News of the World revela vários aspectos importantes, entre os quais o fato de que alguns setores da imprensa e

dominical News of the World, conforme noticiaram O Globo Online e agências internacionais. Murdoch disse que o jornal representava apenas 1% dos negócios da News International, braço britânico da News Corporation que é a cabeça do conglomerado midiático do magnata australiano: “Não é uma desculpa, mas o News of the World é menos de 1% da nossa companhia. Eu contrato pessoas em quem confio. Os responsáveis (pelos grampos) foram pessoas em que confiei e que agiram errado”, disse o empresário tentando jogar a culpa nos seus subordinados. O empresário disse que quando soube que o News of the World tinha grampeado o telefone celular da jovem Milly Dowller, morta em 2002, se sentiu “chocado, horrorizado e humilhado” com a informação. Ao depor, James Murdoch disse que “sentia muito” pelo que aconteceu com as vítimas dos grampos ilegais do News of the World, mas sustentou que o procedimento dos jornalistas envolvidos no escândalo não condiz com as normas da News International. Já Rupert Murdoch argumentou que nem ele ou seu filho fizeram vista grossa às denúncias de espionagem que provocaram o fechamento do tablóide, no último domingo,16 de julho, e que até o momento já levaram à prisão dez pessoas, entre as quais a ex-editora-chefe Rebekah Brooks, que também foi interrogada pela Comissão do Parlamento, nesta terça-feira. “Chocada” Rebekah era editora-chefe do News of the World (2003 a 2009) quando estavam em andamento as investigações sobre o desaparecimento e a morte de Milly Dowller. Ela disse no

da mídia de maneira geral acabaram tornando-se reféns de um modelo editorial moralmente duvidoso, sem nenhum critério para avaliar o que é relevante e do interesse público: “A busca por notícias sobre a vida íntima de celebridades passou para os políticos e move todo um trabalho da imprensa, como se o mais importante fosse a privacidade dos outros”, disse o colunista. O segundo ponto que merece destaque, na avaliação de Queiroz, é a perda de limites da imprensa para encontrar um assunto: “Antes esticava-se uma teleobjetiva para ficar monitorando os passos das celebridades, depois passaram (tablóides sensacionalistas) a fazer campana na porta das pessoas e o passo seguinte foi grampear os telefones”, observa o jornalista. Queiroz lembra que existe um histórico de denúncias contra os tablóides britânicos por causa desse tipo de comportamento, que atinge inclusive os membros da Família Real, a exemplo do Príncipe Charles e da Princesa Diana. Na opinião dele, os escândalos recentes mostram que

interrogatório que o jornal entrou na história para forçar o Parlamento a mudar as leis sobre estupro e abuso sexual. Mas quando soube que o tablóide tinha grampeado o celular da menina se sentiu “chocada”. “A história era terrível. E, quando soube do grampo que invadiu a caixa de mensagens de Milly, a minha primeira reação foi ficar chocada. Senti nojo, como todos sentiram. A primeira coisa que fiz foi mandar uma mensagem à mãe de Milly pedindo desculpas e dizendo que ninguém autorizado pelo jornal ou pela corporação faria uma coisa dessas. Prometi que o jornal e a Polícia iriam trabalhar ao máximo para chegar à raiz do caso e punir o responsável”, afirmou Rebekah. Ela insistiu que ninguém da direção do jornal tinha conhecimento de que o detetive particular Glenn Mulcaire tinha invadido a caixa postal do telefone da jovem Milly Dowller, a serviço do jornal: “Estou dizendo que ninguém da direção do NotW (como o tablóide era chamado pelos britânicos) autorizou esse investigador a entrar na caixa de mensagens de Milly. Isso não chegou ao meu conhecimento. Meu próprio celular já foi invadido por Glenn Mulcaire”, declarou Rebekah. Polícia O ex-Chefe da Scotland Yard, Paul Stephenson, que se demitiu do cargo no domingo, também foi ouvido pelo Comitê de Mídia e sustentou que não houve qualquer tipo de irregularidade na contratação do ex-editor do News of the World, Neil Wallis, como consultor da polícia. Wallis, que foi preso na última quarta-feira, 14 de julho, e solto depois de pagar fiança, está sendo investigado por suspeita de espionagem por meio de grampos telefônicos ilegais.

“o descuido editorial” de alguns veículos da imprensa britânica chegou a um nível antiético muito grave: “Eles (tablóides) agora adotaram um procedimento perigoso: ao invés de serem receptadores das gravações, passaram eles mesmos as fazer as escutas telefônicas ilegais em busca de informações, num vôo cego, como se diz no jargão jornalístico, “atrás do que vende jornal”. Isso significa perder o parâmetro aceitável para conseguir uma notícia”, observou Queiroz. Uma distância curta

Desconfiada e cobrando mais transparência na investigação do escândalo, mesmo depois do arrependimento público de Rupert Murdoch, a opinião pública britânica aguarda o desfecho do caso, de olho inclusive nas relações do empresário com o Governo. Apesar de não haver provas de irregularidades nesse relacionamento, o Primeiro-Ministro David Cameron foi obrigado a reconhecer que a distância entre Murdoch e o Governo era curta demais.


VEÍCULOS

STATUS Uma questão de elegância Um dos ícones no gênero de revistas masculinas, Status está de volta mais de duas décadas depois de deixar de circular. Trata-se do mesmo nome para uma outra revista, que nas décadas de 1970 e 1980 publicou a nata do jornalismo brasileiro. POR P AULO C HICO O ato de folhear exemplares antigos da Status equivale a uma viagem no tempo. Como nos versos da canção Todo Sentimento, obra-prima de Chico Buarque, resta ao leitor a sensação de que “depois de te perder, te encontro com certeza. Talvez, num tempo da delicadeza”. Uma das pioneiras no que, anos depois, viria a se tornar o fértil campo das publicações masculinas, a revista mensal era uma ode ao bom gosto. Trazia em suas capas e páginas internas mulheres belíssimas – a maioria delas estrelas de primeira grandeza. Nos ensaios sobrava sensualidade. Status era uma legítima representante de uma visão cândida do nu artístico, algo típico na virada dos anos 1970 para 1980. Eram fotos singelas. Principalmente quando comparadas às poses feitas pelas modelos de hoje, por vezes tão sutis quanto um exame ginecológico. Talvez essa contraditória leveza exacerbada tenha sido a grande qualidade da revista, que chegava às bancas pela Editora Três, e também seu ponto fraco, diante de uma concorrência que nascia naqueles anos – e apostava cada vez mais no explícito. “Não é um exagero imaginar que a Status tenha sucumbido, e chegado ao fim, em 1987, diante do processo de transformação deste segmento do mercado. Ela sofreu com a mercantilização do nu, com a onda dos cachês milionários e com o crescente império da vulgaridade”, afirma Nirlando Beirão, Diretor do projeto da nova Status. Pois é. Mais de duas décadas depois de sair de cena, o título está de volta às bancas. Embora, na verdade, seja uma outra revista. “Três ou quatro décadas são, nesse trepidante mundo da comunicação, tempo suficiente para a gente ter de repensar um produto do zero, do início. A questão do erotismo e da sensualidade, por exemplo. O mundo mudou, a oferta do nu se ampliou, está na internet, até na tv aberta. De mais a mais, há hoje maior convergência entre os universos masculino e feminino – tanto que a atual Status, embora se apresente como revista masculina, não discrimina a mulher. Ao contrário, tem alto índice de leitura entre elas. O que temos em comum com a revista de antes é o bom gosto dos ensaios, o apuro gráfico e o compromisso com o jornalismo. Fato que, aliás, está no próprio dna da Editora Três”, explica Nirlando. A Status foi relançada no final de abril deste ano, com data de capa de maio. Saiu com a tiragem de 100 mil exemplares. As vendas superaram os 60%. O mercado publicitário parece ter recebido bem o re-

Kate Lira se espreguiça na cama, para as lentes do fotógrafo Bubby Costa, na Status de outubro de 1978. Muitas estrelas também foram capa da revista, como Bruna Lombardi e Christiani Torloni.

torno da revista, que na sua reestréia circulou com 55 páginas pagas de anúncios. A editora manteve a tiragem na quarta edição, que chegou às bancas na última semana de julho. E comemora um feito na área de assinaturas, onde a resposta do público foi espantosa: 15 mil pedidos neste curto período de vida. “Numa época em que as pessoas desacreditam do papel, este é um case que já chegou até a Aner, a Associação Nacional dos Editores de Revistas. Vamos participar do painel ‘Qual é o papel do papel’ na próxima reunião, em setembro, narrando a volta da Status”, conta Nirlando. O brilho das estrelas deixou saudades Não é difícil entender a razão pela qual a Status original formou uma legião de leitores. E deixou muitos fãs saudosos. Com bom conteúdo jornalístico, embalado por um projeto gráfico moderno, e não exatamente ousado, a revista tinha como destaque o nu feminino, é lógico. Não por questão de pudor, e muito menos por estética, Status apurava nos ensaios a proposta de sugerir, no lugar de escancarar. Trabalhava com ângulos, cenários, figurinos, sombras e luzes com o objetivo de instigar o olhar. Dava asas à imaginação, aguçava os sentidos dos leitores. E que sentidos! Longe de ser pornográfica, a revista seduzia, principalmente, pelo poder de fogo de suas beldades. Quer ver só? Adele Fátima, Alcione Mazzeo, Ana Maria Nascimento e Silva, Angelina Muniz, Bruna Lombardi, Christiane Torloni, Cláudia Ohana, Denise Bandeira, Denise Dumont, Dina Sfat, Elke Maravilha, Fafá de Belém, Gal Costa, Kate Lyra, Marlene Silva, Nicole Puzzi, Sandra Bréa, Susana Vieira, Sônia Braga, Vera Fischer, Wanderléa, Xuxa e Zezé Motta foram algumas que exibiram suas formas na Status. Muitas delas, e isso é bem verdade, depois protagonizaram ensaios mais ousados em concorrentes como Playboy e Ele&Ela. Outras, no entanto, revela-

ram suas formas apenas para as lentes da publicação da Editora Três. Certamente confiantes no foco não apelativo dos ensaios. O primeiro número da revista foi marcante. Chegou às bancas em agosto de 1974, com o ensaio fotográfico da atriz neerlandesa Sylvia Kristel, protagonista do filme Emmanuelle, obra lançada naquele ano e que ultrapassou as barreiras do comportamento aceitável na época, com suas cenas de sexo, estupro, masturbação e até pompoarismo. Foi um grande sucesso internacional. E é, até hoje, um dos mais bem-sucedidos filmes franceses. Status circulou, apesar de todas as restrições da censura vigente, e causou grande rebuliço. Em relação à censura, uma passagem interessante. A partir de fevereiro de 1980, o controle começou a afrouxar o cerco. Em março do mesmo ano os leitores foram brindados com uma edição especial, chamada de ‘Sem censura’, e repleta de fotos que tinham sido vetadas até então. Um time de primeira qualidade Nirlando não poupa elogios à publicação original. “A Status dos anos 1970 e 1980 foi a melhor revista mensal do Brasil, enquanto existiu. Esse é o desafio! A gente quer voltar a fazer a melhor revista mensal, esquecendo um pouco o passado, esquecendo o projeto anterior, com exceção da permanência de alguns itens, como um empenho no jornalismo. Evidentemente, o mundo mudou desde lá. Nós nos propusemos a fazer uma revista masculina que possa ser lida por mulheres. E o homem de hoje é mais consciente, vaidoso, exigente e, principalmente, tem menos culpa em relação ao prazer. Em geral, ele tem uma visão coletiva do mundo social. Mas, no fundo, continua sendo igual ao homem de sempre – que gosta de mulher. Pelo menos, em sua maioria”, brinca. Segundo o Diretor da nova Status, os saudosistas da revista têm gostado da ver-

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VEÍCULOS STATUS, UMA QUESTÃO DE ELEGÂNCIA

Matérias exibiam grandes ilustrações em página dupla, com trabalhos de desenhistas como Chico Caruso, Negreiros e Agostinho Gisé. O humor também era destaque na Status, com trabalhos do argentino Fontanarrosa (abaixo), Glauco (detalhe na outra página) e muitos outros artistas.

são atualizada da publicação – embora reconheçam que se trata, de fato, de um outro produto editorial. Pelas capas já passaram a modelo Fernanda Tavares e a atriz Christine Fernandes. A preocupação, no entanto, vai além da beleza plástica. “Buscamos manter a excelência dos textos. A Status, em sua primeira fase, tinha um ótimo grupo de escritores e repórteres. E nasceu com o toque de elegância e bom gosto da dupla Luis Carta e Domingo Alzugaray. Acrescente a isso a direção de Arte, soberba, e tínhamos em mãos uma revista insuperável, sem exagero algum.” Embora pareça, sim, um pouco exagerada, a declaração de Nirlando encontra respaldo no expediente da antiga Status. Certo é que, no caso das revistas de três décadas atrás, as estrelas não estavam presentes somente na capa, ou nas fotos sensuais. Mestres do jornalismo davam expediente na publicação, que teve como Diretores de Redação, em diferentes fases, nomes como Múcio Borges da Fonsêca e Gilberto Mansur, além dos já citados Editores Luis Carta e Domingo Alzugaray. Como repórteres especiais, batiam ponto Fernando Morais e José Hamilton Ribeiro. A este singelo time juntavam-se com assídua freqüência nomes como Antônio Callado, Daniel Más, Ibrahim Sued, Fred Sutter, Ignácio de Loyola, Joelmir Betting, Zózimo Barroso do Amaral, Maurício Kubrusly, Moacir Werneck de Castro, Chico Anysio, Luis Fernando Veríssimo, Paulo Mendonça, Luiz Lobo e

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Millôr Fernandes – só para citar alguns dos colaboradores. Você deve estar pensando, se perguntando... Ok, textos de primeira, sem dúvidas. Mas, e as fotos? Responsáveis por elas, Antônio Guerreiro, Bubby Costa, Tripoli, Lew Parrela, Marisa Álvarez de Lima, Vânia Toledo, Guy Weber e David Zingg não deixavam a peteca cair. Pelo contrário, eram capazes de fazê-la subir, subir e subir. Nas ilustrações, pintavam nomes como Henfil, Alberto Garcia, Darcy Penteado, Décio Ambrósio, Giancarlo Mecarelli, Mia, Minervino, Aquino, Zélio, Sandra Abdalla, Miguel Paiva e Chico Caruso. Toda essa turma era capitaneada pelo pessoal da Arte e Diagramação. Setores que, em períodos distintos, contaram com o talento de profissionais como Marcel Richard Raillet, Marcos Antonio Galante, Rui Douglas Cattai, Murilo Rodrigues, Marco Aurélio Sismotto, Paulo Roberto Aloe, Gabriel Hochet e Silvio Luiz D’Angelo Magarian. As entrevistas que abriam cada edição da Status eram um capítulo à parte. Com forte viés político, as páginas – de oito a dez, no total – cediam espaço para nomes representativos, como Orestes Quércia, Mário Lago, Gláuber Rocha, David Nasser, Oscar Niemeyer, Gabriel Gárcia Márquez, Boni, Mino Carta, Juscelino Kubitschek, Anselmo Duarte e Paulo Maluf. Nas reportagens, brotavam temas afeitos ao gosto masculino, como automóveis, o mundo do turfe, as baladas noturnas, a onda dos

iates de luxo, clubes de cigarros, cachimbos e charutos, e até moda, com dicas sobre sapatos para homens. Artigos especiais faziam parte de cada edição, com a assinatura de colaboradores como Carlos Lacerda, Autran Dourado, Ruy Castro, Rubem Fonseca e Osman Lins. E havia até a publicação, em primeira mão, de trechos de obras inéditas de autores estrangeiros, como Gay Talese, escritor que é referência no ‘new journalism’ norte-americano. Outro ponto forte da antiga Status foi o generoso espaço que a publicação abriu para os cartuns e histórias em quadrinhos. Na maioria das vezes com teor erótico e apelativo, como os trabalhos de Pat Mallet e Lassalvy, os cartuns também eram sofisticados, como os dos geniais Sempé e Quino – o pai da Mafalda. Passaram pelas páginas da revista desenhistas de renome como Jaguar, Lauzier, Siné, Fontanarrosa, Reisier, Wolinksky, Nani, Mordillo, Millôr Fernandes e Miguel Paiva com sua obra-prima, As Aventuras de Casanova, entre outros grandes nomes do humor internacional. Essa veia humorística acabou por gerar edições especiais da revista que recebeu o nome de Status Humor, só de quadrinhos e cartuns. Costumes do sexo; liberdade na política O sexo – afinal, a origem de todos – permeava tudo. Embora fosse uma publicação séria, com uma abordagem recatada sobre o tema para os padrões da época e, em especial, diante da falta de modos de hoje, a revista se permitia a gozação, a brincadeira. Contestava costumes, irritando alguns e fazendo rir outros, com entrevistas como a de Darcy Ribeiro, em

que o antropólogo apresentava a forma como os índios encaravam – e praticavam – o sexo. O título da matéria? ‘Aprendendo com os Índios a Sururucar ’, texto feito por Thereza Cesário Alvim. A mesma edição, de número 54, circulou em janeiro de 1979 com outra entrevista, no mínimo, desconcertante: ‘Atenção: Ney Matogrosso vai soltar suas feras’, anunciava o jornalista Tarso de Castro, ele próprio uma ‘fera’ do jornalismo, que muito colaborou com a Status. Na edição número 18, de janeiro de 1976, Marco Antônio de Menezes assinava a matéria ‘Os Fascinantes Recordes do Amor’. A abertura explicava do que tratava a pauta. ‘Um incansável pesquisador resolveu juntar, em um livro, os recordes que o Guiness se esqueceu de contar: os sexuais. Aqui, apresentamos uma lista dos mais curiosos, mais divertidos, mais surpreendentes e mais úteis recordes catalogados na sua obra, o livro Simons de Recordes Sexuais’, esclarecia. O texto curioso trazia respostas exatas para perguntas um tanto quanto genéricas, do tipo ‘Qual Adão exigiu a maior folha de uva?’.


A partir do final da década de 1970, com o lento processo de abertura política dando seus primeiro passos, a revista passou a pisar um pouco mais fundo no tom das críticas sociais. Como no número 71, de junho de 1980, que ostentava na capa a beleza jovial de Bruna Lombardi, apresentada com texto de Caetano Veloso. Nesta edição histórica, Aloysio Biondi escreveu a matéria ‘São Paulo é um País Rico. Já o Brasil...’. Na reportagem, enriquecida com ilustrações de Paulo Caruso, o autor – falecido em 2000, aos 64 anos – afirmava que “é tempo de acabar com certos mitos nacionais. Para começar, devemos admitir que o Brasil, ao contrário do que se diz, não é um País com ‘bolsões de pobreza’. O que existe é um ‘bolsão de riqueza’ – São Paulo”. Incisivo assim. Contundente demais. Opinativo, até. Jornalismo de primeira. Personagem central da política naqueles tempos, João Batista de Oliveira Figueiredo era uma das vítimas preferidas dos ataques mordazes praticados pela Status.

Em outubro de 1978, a edição número 51 trazia – fruto de uma boa idéia e ótima sacada jornalística – a seguinte provocação: ‘O General Figueiredo já disse que medo ele só tem de lobisomem... Em 15 de novembro, o lobisomem pode ser o MDB’, alertava Sebastião Nery, em exemplar reportagem investigativa que computava, Estado por Estado, os votos da Arena e do MDB para a eleição que se aproximava. “A frase é antiga como a sabedoria do povo: de barriga de mulher, cabeça de juiz e boca de urna nunca se sabe o que vai sair. Prever resultado de eleições é difícil como saber do sopro dos ventos. Esta prévia não foi feita nas ruas e muito menos nos institutos especializados. Durante um mês conversei com dirigentes políticos dos dois partidos, jornalistas e líderes de classe de todos os Estados. Cheguei a esses números. (…) Durante outubro e na primeira quinzena de novembro é que o MDB poderá crescer de forma imprevisível. E aí, como em 1974, virar de novo lobisomem...”, escreveu Nery. Em janeiro de 1979, Status voltaria a contestar o General, com a publicação – com chamada de destaque na capa – do quadro do biorritmo do então Presiden-

Dois colaboradores muito especiais: Wainer e Francis Além das personalidades já citadas nesta reportagem, outras duas fazem parte do que poderia ser classificado como ‘reserva especial’. Não só pela quantidade de vezes que estiveram nas páginas da Status, mas também pelo fato de nelas terem aparecido das mais diversas formas. Samuel Wainer e Paulo Francis fizeram de tudo na revista. Escreveram artigos e matérias. Assinaram colunas. Fizeram entrevistas. E mais do que isso: foram entrevistados. Na edição de março de 1975, Wainer concedeu emocionante entrevista a Ignácio de Loyola. “Última Hora trouxe a valorização do aspecto gráfico e visual ao jornalismo. Introduziu a diagramação no Brasil. Antes, o secretário mandava para a oficina matérias de qualquer tamanho, que depois eram cortadas e ajustadas, perdendo-se tempo e dinheiro. Trouxe ainda a valori-

zação da circulação como fator básico do sucesso de um jornal. E a valorização do profissional, não só mediante salários mais dignos, mas também fazendo-o assinar suas matérias, dando chamadas de primeira página, com destaque para o autor”, afirmou em certo trecho da conversa, em que abordava ainda temas controversos, como a sua relação pessoal com Getúlio Vargas e Carlos Lacerda, além das dificuldades enfrentadas pelo jornal. Num dos momentos mais tocantes do papo, o lendário jornalista respondeu à seguinte questão proposta por Ignácio. “Em certa época, você foi um homem famoso, conhecido, requisitado. E hoje?”. A resposta: “Bem, muitos se lembram de mim. Outro dia descobri que estou incluído num currículo de Escola de Comunicações. O mais curioso, porém, aconteceu com um

te ‘eleito’ para 1979. ‘Como estará o humor de Figueiredo no dia da sua posse e em todos os outros dias deste ano que começa? O professor Willi Wirtz, especialista nesta ciência tão em moda, traça aqui o ano de uma pessoa nascida em 15-1-1918, dia em que nasceu o General”, apontava o texto que, de tão provocativo, sequer era assinado. Detalhe: na página dupla, entre figuras de búzios e uma figa, pequenas ilustrações retratavam Figueiredo, ora sorridente, ora carrancudo, de óculos escuros e nada simpático. Puro abuso. Status, o retorno: uma usina de idéias Em seu retorno ao mercado, a Status adotou um conselho editorial, que funciona como usina de idéias para redação. Participam do grupo pessoas de diferentes grupos, mergulhadas no colunismo social, gente viajada, e ligada aos meios empresarial, de entretenimento e à indústria automobilística, por exemplo. Todo esse mix resulta em uma pauta que aborda desde o jornalismo hardnews, até o playground – com matérias e notas so-

grupo de universitárias. Durante três horas, falei de trabalhismo, getulismo e jornalismo no Brasil. No final, perguntei a algumas meninas que tinham ouvido tudo muito atentamente. ‘Vocês sabem quem eu sou? O que eu fiz?’. Olharam umas para as outras, hesitantes, constrangidas. Até que uma tomou a palavra: ‘Olhe, eu sei que o senhor foi marido da Danuza Leão’.” Ainda como ‘depoente’, o homem da Última Hora participou da já citada edição de outubro de 1978 – aquela de número 51 – em relato feito a Hélio Silva, no qual revelava como Getúlio havia ajudado no nascimento do jornal. Do outro lado da bancada – isto é, como entrevistador e não como entrevistado – Samuel Wainer assinou entrevistas impactantes, como a de Rafael de Almeida Magalhães, ex-Vice Governador de Lacerda, e de Cacá Diegues – esta em parceria com Marta Alencar –, na qual o cineasta “faz um balanço do Cinema Novo e grita ‘abaixo a caretice dos Anos 70’.” O mito Paulo Francis assinou um semnúmero de textos na revista. São exemplos de sua profícua colaboração com Status entrevistas como a de Gláuber Rocha, reportagens sobre os escândalo da CIA, prévia de eleições na terra do Tio Sam, mapas e roteiros da metrópole Nova York, o vigor da literatura policial, e um

O marciano erótico de Pat Mallet ganhou público cativo na Status.

bre carros, restaurantes, bares e baladas. “Novo Diretor-Presidente da Editora Três, Caco Alzugaray, filho de Domingo, sempre sonhou com este relançamento, que resgata um passado glorioso da casa e reafirma no presente o compromisso com publicações de alto nível, contemporâneas, arejadas, antenadas. Status é a cara deste novo momento da Três”, afirma Nirlando, que nesta empreitada do relançamento tem como principais parceiros o Diretor de Redação, Carlos Sambrana, e a Diretora de Arte, Renata Zincone. Embora tenha ficado distante das bancas por mais de duas décadas, a nova Status está longe de ser comparada com a revista que marcou época nas décadas de 1970 e 80. Fãs da antiga revista certamente estranharão as mudanças. Mas a nova publicação mostra que o segmento de revistas ainda tem muito a mostrar nas bancas.

perfil de Henry Kissinger, diplomata americano de origem judaica que teve um papel importante na política externa dos Estados Unidos, entre 1968 e 1976. Na edição de número 60, especial de cinco anos da revista, com data de julho de 1979 e que estampava na capa o volume recorde de 236 páginas, Paulo Francis era, ele próprio, personagem da matéria, cujo título pregava: ‘Não há lugar para mim no simplório universo ideológico brasileiro’. Com seu irresistível estilo, brindou os leitores com dezenas de frases de efeito. Uma explosiva mistura de genial rabugice, indisfarçável pedantismo, humor ácido, minuciosa capacidade de observação e ferino poder de síntese. “Há quem ache o meu tom sobre o Brasil ofensivo. Não sou patriota. Amo, o quanto me é dado e possível, pessoas, lugares, poesia, música, o toque de alguns objetos. É um fato que não se modificaria amanhã se eu me naturalizasse outra coisa. (…) Não há tirano que não haja explorado o ‘orgulho nacional’. A maneira de consertar o Brasil não é adulá-lo. É reconhecer o horror que é e daí procurar a saída, se houver. Conhece teu inimigo, avisaram os gregos. E Freud explicou: nosso principal inimigo somos nós.”

A página dupla de abertura com a entrevista de Samuel Wainer (acima) e detalhe da coluna que ele passou a assinar na revista.

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Liberdade de imprensa COPA DO MUNDO 2014

Recomeço de Correa no Equador é com arrocho a jornalistas

Ricardo Teixeira dá show de totalitarismo Mandão da CBF chama a imprensa brasileira de “muito vagabunda” e anuncia discriminação na concessão de credenciais.

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MARCELLOCASAL JR./ABR

A ABI considera manifestação de totalitarismo a decisão do Presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, de adotar critérios discricionários para credenciamento de jornalistas e veículos interessados na cobertura da Copa do Mundo 2014. A ABI considera também que Teixeira não entende de imprensa no Brasil e no mundo quando afirma que “a imprensa brasileira é muito vagabunda”. As opiniões da ABI foram emitidas no dia 12 em entrevista ao jornalista Eliano Jorge, do Portal Terra Magazine, que submeteu um questionário ao Presidente da Casa, Maurício Azêdo, no qual é citado que, entre vários ataques diretos a veículos de comunicação brasileiros, Ricardo Teixeira afirmou: “A imprensa brasileira é muito vagabunda”. Eliano Jorge perguntou ao Presidente Maurício Azêdo como a ABI avaliou as referências aos jornalistas feitas por Ricardo Teixeira. De acordo com Eliano Jorge, o Presidente do Comitê de 2014 também ameaçou claramente retaliar jornalistas na Copa do Mundo: “Em 2014, posso fazer a maldade que for. A maldade mais elástica, mais impensável, mais maquiavélica. Não dar credencial, proibir acesso, mudar horário de jogo. E sabe o que vai acontecer? Nada. Sabe por quê? Porque eu saio em 2015. E aí, acabou”. “O que o senhor pensa dessa afirmação? A ABI se manifestará sobre o assunto ou prepara alguma providência?”, indagou o repórter do Terra. Em resposta ao Terra, disse o Presidente da ABI: “A avaliação do Senhor Ricardo Teixeira em relação ao nível de qualidade da imprensa brasileira, que ele chama de vagabunda, demonstra que ele não entende de imprensa nem aqui nem no resto do mundo. Os jornais e revistas brasileiros figuram entre os mais bem-feitos do mundo, tanto no aspecto editorial, na produção e elaboração de textos e reportagens, como também no que concerne à apresentação gráfica. “Isso fica visível na comparação entre os veículos brasileiros e os dos países mais importantes do Ocidente, como os Estados Unidos, a França, a Itália, a Alemanha, a Espanha, Portugal, e os veículos de países da América do Sul,como a Argentina, o Chile, o Paraguai, a Colômbia, a Venezuela. Vagabunda é a ligeireza com que pessoas sem qualificação técnica e cultural se arvoram em árbitros da qualidade da imprensa brasileira. “A ameaça do Senhor Ricardo Teixeira de não dar credencial e proibir o acesso de jornalistas e veículos a eventos da

Teixeira e a impunidade: Ele acredita que pode fazer o que quiser, pois nada vai acontecer.

Copa do Mundo de 2014 é expressão de seu totalitarismo, de sua crença de que ainda estamos no período ditatorial em que ele cevou seu poder discricionário. “No momento próprio, essas demasias do Senhor Ricardo Teixeira serão derrubadas pelo Poder Judiciário. A Copa do Mundo 2014 não será um evento privativo da CBF, mas uma realização do País, para a qual terá concorrido de maneira decisiva o Poder Público. O Poder Judiciário poderá, por isso, determinar à CBF e ao Senhor Teixeira comportamentos compatíveis com o regime democrático instituído pela Constituição de 5 de outubro de 1988. “A ABI não adotará qualquer medida em relação a essas manifestações do delírio fascistoide do Senhor Ricardo Teixeira, fiel à lição popular de que não se deve gastar vela com mau defunto.” Preocupação de Lance!

Dias antes, em 7 de julho, o jornalista Michel Castellar, do diário esportivo Lance!, solicitou um pronunciamento da ABI sobre declarações do mesmo Ricardo Teixeira à revista Piauí, que “evidenciou a intenção de manipular o credenciamento para a Copa do Mundo e eventos pertinentes a ela. Diz, por exemplo, que isso ocorrerá porque aos veículos de impren-

sa considerados amigos tudo será dado. Já aos inimigos...apenas uma credencial”. Castellar quis saber do Presidente Maurício Azêdo se “por causa de declarações discriminatórias desse tipo, que permeiam a entrevista, gostaria de saber como a ABI se posiciona a respeito e se também existe alguma possibilidade de a associação, juridicamente, fazer algo a respeito.” A resposta do Presidente da ABI: “A Associação Brasileira de Imprensa condena comportamentos como esse anunciado pelo Presidente da CBF à revista Piauí, porque o acesso à informação deve ser aberto a todos os jornalistas e veículos, sem discriminações nem preferências de qualquer espécie. Os veículos não podem ser classificados como amigos ou inimigos dos dirigentes da CBF e dos organismos responsáveis pela organização da Copa do Mundo de 2014, pois todos estão a serviço da sociedade.” Maurício disse também a Michel Castellar que “não cabe à ABI nem a outra instituição de imprensa qualquer iniciativa de caráter judicial em relação a essa discriminação, porque antes de tudo é preciso que se concretize a distinção que o Presidente da CBF pretende fazer em relação aos veículos, tratando uns como amigos; outros, como inimigos”.

O jornalista Emilio Palacio, ex-editor de opinião do jornal El Universo, foi condenado a três anos de prisão e ao pagamento de indenização de US$ 10 milhões em processo movido pelo Presidente do Equador, Rafael Correa, por causa de artigo publicado na edição do dia 6 de fevereiro deste ano intitulado “Não à mentira”. O texto classifica o Presidente Correa como um ditador e o acusa de mandar atirar em um hospital durante revolta policial ocorrida em setembro de 2010. Além de Palacio, a condenação do Juiz Juan Paredes atinge os três diretores e donos do jornal, os irmãos Carlos, César e Nicolás Perez. Por e-mail, o jornalista procurou mobilizar jornalistas e cidadãos para um protesto em Guaiaquil contra o que ele considera uma “tirania que busca colocar os dissidentes na cadeia”. Correa foi empossado agora em julho para um novo mandato. Palacio afirma que não se surpreendeu com a rápida decisão do juiz, tomada em apenas 24 horas, quando havia o prazo estipulado de até quatro dias para a sentença: “De juízes que ditam sentenças por partes, com soldados por todos os lados com fuzis na mão e bombas de gás lacrimogêneo, o que poderíamos esperar?” Organizações como a Sociedade Interamericana de Imprensa-Sip e a Associação Equatoriana de Editores de Jornais-Aedep protestaram contra a sentença do juiz classificada como uma ameaça à liberdade de expressão no país. Em visita ao Equador, o Presidente da Sip, Gonzalo Marroquin, criticou a decisão da Justiça equatoriana: “O Governo continua sua sistemática e intencionada campanha para acabar com a imprensa livre e estabelecer, por via judicial, o patrimônio da verdade sobre o que todos os equatorianos devem consumir”. O Diretor-Executivo da Aedep, Diogo Cornejo, disse que desde o início a entidade reclamou que “a briga entre o Presidente e o El Universo não tem pé nem cabeça, porque o jornal não pode sequer responder pelos artigos escritos por Palacio”. Em um pronunciamento polêmico, o advogado de Correa, Alembert Vera, informou que pretende recorrer da sentença para dobrar o valor das multas a serem pagas: “No Equador se defendeu pela primeira vez na História o direito de igualdade. Já não existe o direito ao insulto; qualquer cidadão é capaz de exigir que sua honra seja restaurada”. Palacio chegou a pedir demissão do jornal no dia 10 de julho, em uma tentativa de eximir de culpa o veículo e salvar a saúde financeira do El Universo, caso a queixa contra o jornal fosse retirada, o que não aconteceu. Em coletiva de imprensa o diretor do jornal, Carlos Pérez, declarou que “o El Universo continuará trabalhando, informando livremente, como tem feito em seus 90 anos”.


Direitos humanos

USTRA: O REI DA TORTURA FOGE DO BANCO DOS RÉUS P OR C LÁUDIA S OUZA Apontado como o principal chefe da tortura no Brasil durante a ditadura militar, como comandante, entre outubro de 1969 e dezembro de 1973, do sinistro Doi-Codi de São Paulo, no qual se estima foram seviciados cerca de 700 presos políticos, 50 dos quais assassinados, o Coronel da reserva do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra fugiu do banco dos réus: ele não compareceu no dia 27 de julho à 20ª Vara Cível de São Paulo para a audiência do processo em que é acusado de torturar e matar o jornalista Luiz Eduardo Merlino, em julho de 1971, nas dependências do Departamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, designação oficial desse órgão da repressão. Assim como Ustra, os advogados Sérgio Luiz Vilela de Toledo e Paulo Alves Esteves, que assinam a sua defesa, também faltaram ao julgamento. Duas advogadas apresentaram-se como representantes do réu, mas não se manifestaram durante a sessão, à qual a imprensa não teve acesso. Em frente ao Fórum João Mendes, no Centro de São Paulo, dezenas de pessoas realizaram uma manifestação com faixas e cartazes, exigindo a criação da Comissão da Verdade e a punição dos torturadores. Ustra já foi condenado em primeira instância e declarado torturador em uma ação movida pela família do jornalista em 2007. No ano seguinte, por dois votos a um, os desembargadores acataram o recurso dos advogados de Ustra e declararam extinto o processo. Esta segunda ação se refere a danos morais, é subscrita pelos advogados Fábio Konder Comparato, Claudineu de Melo e Aníbal Castro de Souza e está sendo movida pela irmã do jornalista, Regina Merlino Dias de Almeida, e pela professora aposentada Ângela Mendes de Almeida, que era companheira de Merlino. “Não é o julgamento que vai tirar a dor. Além disso, esta luta não é só por este morto, mas também pelos mortos de hoje, já que a Polícia continua matando e torturando”, disse Ângela. Integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, Maria Amélia de Almeida Teles, que entrou com a primeira ação declaratória na qual

MUNIR AHMED

Nem ele nem seus advogados compareceram à audiência do processo em que a família do jornalista Luiz Eduardo Merlino o acusa de torturar e assassinar o jovem repórter em 1971.

Ustra foi considerado torturador, ressaltou a importância do processo: “Hoje é um momento histórico. Fico emocionada de saber que chegamos, com tanta dificuldade, mas que vamos colocar pela segunda vez no banco dos réus o Coronel Ustra”.

“USTRA ORDENAVA TUDO”

Merlino trabalhou no Jornal da Tarde e na Folha da Tarde e era militante do Par-

tido Operário Comunista (Poc). Foram convocados para depor seus companheiros no Poc (Otacílio Cecchini, Eleonora Menicucci de Oliveira, Laurindo Junqueira Filho, Leane de Almeida e Ricardo Prata Soares) e ainda o exMinistro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo de Tarso Vanucchi, e o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos. Presa durante três anos e oito meses, Eleonora Menicucci de Oliveira afirmou à juíza Claudia de Lima Menge que esteve presente a uma sessão de tortura ao lado de Merlino. “Eu estava na cadeira do dragão e o Merlino no pau-de-arara. O Ustra entrou e saiu umas duas ou três vezes. Era ele quem ordenava tudo. Era uma engrenagem do Estado brasileiro a que nós, jovens, estávamos completamente submetidos.” Otacílio Cechini contou ter ouvido uma conversa telefônica entre o Coronel Ustra e o agente que acompanhava Merlino no hospital: “Ouvi quando Ustra disse ao telefone que tomaria a decisão final”. Leane de Almeida afirmou ter testemunhado o estado de saúde crítico de Merlino: “Ouvi Merlino gritar durante três dias após as sessões de tortura. Vi o corpo dele, não sei se ainda vivo, sendo colocado no porta-malas de um carro. O Ustra também me torturou no pau-de-arara. Ele comandava, atiçava os outros”.

VANUCCHI: A UM METRO

O ex-Ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi também falou sobre a morte do jornalista: “Vi um rapaz sendo levado em uma escrivaninha até o corredor. Ele ficou a menos de um metro da grade da minha cela. Perguntei o nome e ele precisou repetir porque eu não tinha entendido direito. Ele tinha sido trazido

e foi deitado numa mesa para receber uma massagem de um enfermeiro que usava uma calça oliva e usava um nome boliviano. A massagem estava sendo feita em uma das pernas de Merlino, que tinha um quadro de cor escura, a chamada cianose, com risco de gangrena. Eu e outros 40 presos políticos fizemos greve de fome em 1972, pedindo tratamento digno. Eles me levaram ao Paulo de Tarso Venceslau. O Ustra comandou aquela sessão de tortura cujo objetivo não era falarmos sobre os nossos companheiros, mas nos obrigar a parar a greve de fome”. Vannuchi admite que o julgamento desse processo pode auxiliar a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei da Anistia: “Esta ação de hoje é civil, e uma condenação civil já quebra a impunidade, pode declará-lo torturador e responsável pelas mortes, obrigando o Supremo a refletir se deve manter a decisão do ano passado ou reformá-la”. Joel Rufino dos Santos foi preso algum tempo após a morte de Merlino e, através de torturador que queria intimidá-lo e amedrontá-lo, soube de detalhes da morte do jornalista: “Depois de tortura implacável em pau-de-arara, Merlino foi mandado para o hospital; para salválo, teriam de amputar suas pernas. Os torturadores decidiram, então, deixá-lo morrer. Ustra era o comandante das torturas. Ele me torturou pessoalmente”.

SARNEY ARROLADO

As testemunhas de defesa de Ustra serão ouvidas por meio de carta precatória. Foram arrolados José Sarney, Presidente do Senado, o ex-Ministro Jarbas Passarinho, o Coronel da reserva Gélio Augusto Barbosa Fregapani e os Generais da reserva Paulo Chagas, Valter Bischoff e Raimundo Maximiano Negrão Torres e Ricardo Prata Soares. Não há prazo para a conclusão dessa etapa. Em entrevista à Agência Brasil, o advogado Paulo Alves Esteves afirmou que seu cliente “jamais participou de qualquer ato de agressão ou de violência contra qualquer pessoa tanto em sua vida civil como profissional e nunca determinou nada contra ninguém”. Fontes: JB Online, O Globo, Último Segundo, Rede Brasil Atual e Agência Brasil.

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Direitos humanos

OEA VAI JULGAR O BRASIL PELA MORTE DE HERZOG Após a condenação pelo massacre na Guerrilha do Araguaia, a OEA poderá impor nova punição ao País, desta vez por dois assassinatos: o do jornalista e o de um militante da Aliança Libertadora Nacional.

Julgamentos

A diretora do Cejil, Beatriz Estela de Azevedo Affonso, explicou que nestes dois novos casos, de Herzog e Luiz Cunha, os julgamentos devem ser menos demorados que o caso da Guerrilha do Araguaia, que durou dez anos e terminou somente agora em 2010. Beatriz Affonso disse que a comissão que avalia os casos já compreendeu como funciona a Lei de Anistia no Brasil, que também beneficia os torturadores, e a forma como o Governo da ditadura militar utilizava-se dos órgãos públicos para dar aparência de legitimidade às torturas e outras práticas criminosas cometidas por alguns de seus agentes. A representante do Cejil observa ainda que, em casos como estes de dívida his28

Jornal da ABI 368 Julho de 2011

INSTITUTO VLADIMIR HERZOG

O Governo brasileiro será notificado neste mês de julho pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como réu nos casos dos assassinatos dos jornalistas Vladimir Herzog e Luiz José da Cunha, o Crioulo, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN). As denúncias das mortes foram enviadas à Corte internacional em 2009. Como o trâmite normal é de dois anos, a notificação somente agora vai ser entregue ao Estado brasileiro, para que este apresente sua defesa e o julgamento seja iniciado de fato. Vladimir Herzog e Luiz José da Cunha foram mortos por agentes da ditadura militar (1964-1985), nos anos 70. Ou seja, mais de trinta anos após o ocorrido é que os casos serão analisados pela Corte Interamericana, com a devida atenção para o fato de que à época sequer foram investigados pelo Ministério Público Federal. Segundo as normas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os casos só devem ser apresentados e julgados após esgotarem-se os recursos internos em cada país. No Brasil, o único recurso interno possível aos familiares das vítimas teria que ser encaminhado por meio do Ministério Público Federal, que se recusa a abrir as investigações com base na Lei de Anistia. Para conseguir que os assassinatos sejam julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as famílias das vítimas contaram com a parceria entre o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e dos escritórios do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, no caso de Herzog, e de Pernambuco, que cuida do interesse da família de Luiz Cunha. Por e-mail, a assessoria de imprensa da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal comunicou ao ABI Online que o Governo só se pronunciará após ser notificado oficialmente pela Corte.

A Secretária de Direitos Humanos de Recife e viúva de Luiz José da Cunha, Amparo Araújo, reforçou o sentimento de vergonha mencionado por Cecília: “É constrangedor para qualquer brasileiro ter que recorrer a uma Corte internacional para se fazer justiça, mas é o caminho que se tem que seguir. Aqui se esgotaram todas as instâncias, então tivemos que recorrer à Corte Interamericana.” Farsa

Herzog: O Brasil tem contas a acertar perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

tórica, a Corte costuma ser mais ágil. Para ela, os dois novos casos alcançam alguns pontos além do que o caso do Araguaia, pois tratam de torturas e execuções sumárias, com provas, e não apenas de corpos desaparecidos. Beatriz reprova o comportamento das autoridades brasileiras em relação aos arquivos da ditadura militar: “Em qualquer Estado de bom senso e de boa-fé, depois de um caso como o do Araguaia não seria mais necessário recorrer à Corte Interamericana para se abrir os arquivos da ditadura.” Hoje, segundo Beatriz, a Corte Interamericana não reconhece a Lei de Anistia brasileira, o que abre caminho para que o Brasil seja levado ao banco dos réus por outros crimes do Governo da ditadura, caso não comece a investigar, julgar e responsabilizar os responsáveis, conforme cobra a sentença da Corte no caso do Araguaia. Constrangimento

Representantes de entidades de defesa dos direitos humanos e parentes das vítimas criticaram a posição do Governo que, mesmo no período democrático, tem sido omisso em relação aos crimes cometidos no período do Governo militar. Cecília Coimbra, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janei-

ro relembra a condenação do Brasil pelos assassinatos na Guerrilha do Araguaia (julgamento do qual o Grupo participou) em dezembro do ano passado. Ela critica o comportamento do Governo: “É uma vergonha ter que solicitar a Cortes Internacionais para que o Governo brasileiro cumpra decisões judiciais, como no caso da Guerrilha do Araguaia. Esse caso (de Vladimir Herzog e Luiz José da Cunha) é muito próximo à questão do Araguaia. Cecília Coimbra destacou também a importância dos julgamentos e cobrou da Presidente Dilma, por ser uma ex-militante, o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana sobre o Caso Araguaia, e a abertura dos arquivos da ditadura: “É fundamental (a abertura dos arquivos) para que a nossa História seja conhecida e se conhecer os responsáveis, para que todos possam saber do terrorismo de Estado que aconteceu no Brasil, e acontece até hoje com a criminalização dos movimentos sociais, é a mesma lógica. E o Governo brasileiro é omisso nessa questão, pois não vem cumprindo as decisões internacionais, e os arquivos da ditadura ainda estão guardados a sete chaves.”

A versão oficial para a morte de Vladimir Herzog, ocorrida na sede do DoiCodi do II Exército em São Paulo na manhã de 25 de outubro de 1975, dizia: “Vladimir Herzog foi encontrado morto enforcado dentro da cela e tendo para isso se utilizado de uma tira de pano, na sala onde fora deixado”. A farsa montada pelo Governo foi desmontada, com base inclusive nos testemunhos de pessoas que estiveram presas juntamente com Herzog, como o jornalista e Conselheiro da ABI Rodolfo Konder. Em entrevista à edição especial do Jornal da ABI (Novembro/Dezembro, 2005) Konder conta que estava preso no DoiCodi em uma sala ao lado daquela em que se encontrava Herzog sendo torturado. Ele ouviu os gritos de dor do jornalista. Konder lembra que Herzog negava ser integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o que irritava os agentes que faziam o interrogatório. Uma hora depois, foi obrigado a ajudá-lo a redigir uma confissão em que Vlado dizia ter sido aliciado por ele próprio (Konder) a participar do PCB, e indicando outras pessoas ligadas ao Partido. Em seguida, Konder foi retirado da sala e a tortura de Herzog recomeçou. Após o comunicado da morte, o laudo do IML atestou como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento, na sede do Doi-Codi, em hora ignorada”. Na ocasião da morte de Vladimir Herzog, a ABI foi uma das instituições que apoiaram a denúncia do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Para o Presidente da ABI, Maurício Azêdo, as versões oficiais nunca tiveram credibilidade: “A ABI nunca se deu por satisfeita com as explicações do regime militar sobre o que ocorreu nos porões do DoiCodi de São Paulo no dia 25 de outubro de 1975. A ABI considera que foi uma farsa montada com a participação do médico legista Harry Shibata, que assinou o laudo necroscópico que simulou o que pretendeu se apresentar como suicídio, quando na verdade inclusive outros presos e o jornalista Rodolfo Konder ouviram a tortura e o assassinato do Herzog.”


Sobre os julgamentos a que o Governo será submetido, oPresidente da ABI completou: “Esta será mais uma reprovação que o Brasil pode encontrar, e é auspicioso que o julgamento do crime ocorra na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que poderá estabelecer a verdade sobre os crimes da ditadura militar.” Precedente

Injustiça

Luiz José da Cunha, conhecido como Crioulo, nascido em Pernambuco, era militante da Aliança Libertadora Nacional, e foi assassinado por agentes do Doi-Codi de São Paulo em 13 de julho de 1973. Ele foi vítima de uma emboscada na Avenida Santo Amaro, em São Paulo. Foi fuzilado enquanto tentava fugir, mas foi atingido nas costas, dizem testemunhas. Assim como no caso de Herzog, a versão oficial é diferente e dizia que Luiz Cunha teria sido abordado por sua atitude suspeita, e em seguida reagido a tiros, procurando fugir ao tentar tomar à força um carro onde havia duas moças. A equipe responsável pela execução era chefiada pelo agente conhecido como “Capitão Nei” e pelo Tenente “Lott”. O laudo do IML foi assinado pelo mesmo médico legista responsável pelo de Herzog: Harry Shibata, junto com Orlando Brandão. Os laudos do IML são incompatíveis com as fotos do corpo de Luiz Cunha, que mostram evidências de tortura, um indicativo de que ele teria sido preso e torturado antes de ser morto. Amparo Araújo, viúva de Luiz Cunha, ressalta a sensação de injustiça, comum a muitos parentes de vítimas do regime militar no Brasil: “Nossa pátria falha com os cidadãos. Ele (Luiz Cunha) foi morto há mais de 30 anos na chamada Operação Bandeirantes e ainda não foi feita justiça”, criticou Amparo Araújo.

Primeiro agraciado com o título de Notório Saber da Universidade de Brasília na área de Jornalismo, o jornalista LUIZ CLÁUDIO CUNHA sustenta que a atividade jornalística não pode ser um jogo de perde-ganha, de simpatias e antipatias, amor e ódio, admiração e repulsa. ICHIRO GUERRA

Ivo Herzog, jornalista e filho de Vladimir, espera que o julgamento desses crimes contra os direitos humanos abra o caminho para que outros casos sejam investigados e julgados: “É uma decisão muito importante porque reflete um entendimento da lei sobre os crimes contra a humanidade que vai contra a posição do Governo brasileiro. Isso gera uma jurisprudência importante que abre um precedente para que outros crimes sejam julgados”, afirmou Ivo Herzog. Ele citou a sentença do Supremo Tribunal Federal que no ano passado decidiu que o Governo não estaria obrigado a cumprir as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque tais fatos julgados na Corte já seriam cobertos pela Lei de Anistia: “Quando o STF deu um veredicto contrário no ano passado, aquilo na verdade foi um sinal para que se olhasse mais profundamente a nossa legislação de direitos humanos. As nossas leis não podem ir contra as leis internacionais. Fez-se uma interpretação obscura da Lei de Anistia, que foi de encontro aos interesses da sociedade”, declarou.

“No jornalismo, a indignação é uma obrigação moral” E NTREVISTA A E DGAR LISBOA “O bom jornalismo se faz e se constrói com boas perguntas. O jornalismo de excelência se faz com excelentes perguntas”, disse Luiz Cláudio Cunha ao receber das mãos do Reitor da Universidade de Brasília, José Geraldo de Sousa Júnior o Título de Notório Saber concedido pela UnB na área de Jornalismo pela primeira vez. Caçador implacável de boas histórias e personagens melhores ainda, fez questão de reafirmar seu compromisso profissional. “Todos precisamos lembrar. Eu, como jornalista, tenho o dever de contar”. Em frente a um auditório lotado, Luiz Cláudio criticou redes de tv financiadas por dogmas religiosos, senadores que seqüestram gravadores de repórteres, juízes que permitem o acobertamento da verdade e governos militares que não suportam a liberdade. Lembrou das lutas de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Honestino Guimarães e milhares de jovens que souberam dizer “não” à violência e ao medo. “Jornalista dos mais competentes, Luiz Cláudio Cunha notabilizou-se como um grande militante dos direitos humanos”, disse o professor Luiz Gonzaga Motta. De fato, Luiz Cláudio desafiou a autoridade tacanha de coronéis e generais não só no Brasil, mas também no Uruguai e na Bolívia, com reportagens avassaladoras sobre assuntos que a caserna fazia questão de esconder. “Nossa profissão nunca foi tão desafiada, e a trajetória de Luiz Cláudio aponta um campo fértil para a prática jornalística: apostar nos direitos humanos como um paradigma transdisciplinar e universal”, afirmou Motta. A homenagem foi acompanhada pelos Senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Ana Amélia Lemos (PP-RS); pelos Professores Zélia Leal Adghirni, David Renault, Luiz Martins, Maria Jandyra Cunha e Hélio Doyle; e pelos jornalistas Eliane Cantanhêde, Tales Faria e o autor desta entrevista. Na entrevista ao Blog do Edgar Lisboa, Luiz Cláudio fala de como recebeu esse reconhecimento acadêmico, conta um pouco da História brasileira moderna e dos desafios da profissão de jornalista. A seguir, suas opiniões. Jornal da ABI 368 Julho de 2011

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Direitos humanos EDGAR LISBOA – DEPOIS DE 42 ANOS COMO JORNALISTA, GANHAR OS PRINCIPAIS PRÊMIOS DA IMPRENSA BRASILEIRA. COMO É RECEBER SEU DIPLOMA E SUA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL RECONHECIDA TAMBÉM PELA ACADEMIA? Luiz Cláudio – É um reconhecimento de alto nível que a universidade me concede, de forma espontânea. É fantástico, me deixa muito tocado. Não foi em função de uma prova, um vestibular. Pegaram a minha vida e acharam que aquilo tinha algum valor em termos de experiência. Eu não esperava isso. Na hora em que a UnB se dá a esse trabalho de reconhecer o Notório Saber, pela primeira vez na área de Jornalismo, é para deixar qualquer um bobo, como é o caso agora. De um lado você tem o reconhecimento dos colegas, por meio dos prêmios de jornalismo, do outro o reconhecimento de um centro de reflexão, que discute como fazer, como pensar. Juntando os dois pedaços, dá uma sensação de completude. Fechei o circuito.

dade civilizada. Para virar uma página, é preciso lê-la. Até lá, vou continuar um cara indignado. EDGAR LISBOA – O SENHOR AVALIA QUE TODO ESSE ESFORÇO VALEU A PENA . NA SUA AVALIAÇÃO SUAS VITÓRIAS FORAM MAIORES QUE OS FRACASSOS?

Luiz Cláudio – Eu ficaria muito infeliz se não tivesse feito assim. Como disse Darcy Ribeiro: “Somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que me venceram nessas batalhas”. Tem certas derrotas que nos engrandecem. Se eu não consegui o que quis em termos de revelar a verdade, pelo menos tenho consciência de que fiz o bom combate. Falei tudo o que achei que deveria falar. EDGAR LISBOA – AS TECNOLOGIAS, O MERCADO, A PRÁTICA PROFISSIONAL, FORAM MUDANÇAS MARCANTES NO JORNALISMO NOS ÚLTIMOS

“O BRASIL E SUAS INSTÂNCIAS DO PODER TEMPORAL ASSISTEM DE JOELHOS AO CHOQUE DE CREDOS NUMA ÁREA DE INTERESSE DIRETO DO JORNALISMO E DO DISTINTO PÚBLICO: A MÍDIA ELETRÔNICA. A IGREJA CATÓLICA AGRUPA MAIS DE 200 RÁDIOS E QUASE 50 EMISSORAS DE TV, CONTRA 80 RÁDIOS E QUASE 280 EMISSORAS DE OITO BRAÇOS DO RAMO EVANGÉLICO.”

ANOS. NA SUA OPINIÃO, O QUE AINDA PERMANECE NO JORNALISMO, O QUE NÃO PODE MUDAR?

Luiz Cláudio – O que não pode mudar é a desconfiança da imprensa em relação ao Governo. Nunca podemos confiar no poder. O que faz bem ao Governo é uma imprensa crítica. Não podemos desistir nunca disso. Devemos perguntar, fustigar, incomodar. Segundo, uma coisa que estamos em pleno processo de modificação é essa tecnologia massacrante. O volume de informações traz um sério risco de perdermos a noção do que é importante e do que não é. Acaba sendo meio boboca. É aquela coisa que o Gay Talese (jornalista norte-americano, um dos pais do novo jornalismo) falou: com a facilidade do Google, do Twitter, o jornalista não sai da cadeira. Isso pode levar de roldão o jornalismo de relevância. Essa volúpia tecnológica pode estar sufocando o nosso ponto de reflexão. O mais importante no jornalismo não é a resposta, é a pergunta.

VIMENTO COM AS QUESTÕES POLÍTICAS, DESTACOU O PROFESSOR LUIZ GONZAGA MOTTA EM SEU DISCURSO. COMO O SENHOR ENXERGA ESSA INQUIETAÇÃO QUE GUIOU SEU TRABALHO NÃO SÓ NA TÉCNICA MAS TAMBÉM NA POLÍTICA?

Luiz Cláudio – Em qualquer atividade humana, jornalismo ainda mais, a indignação é uma obrigação moral. Contra a ditadura, contra censura, contra a violência, contra a prepotência. Essa não é uma obrigação só do jornalista, eu acho que todo mundo tem que fazer isso. Uma atitude criativa e crítica em relação ao processo político é brigar para que o mundo seja melhor do que é. Eu não posso concordar com um mundo que tenha meiasverdades, cinismo, hipocrisia. EDGAR LISBOA – O AUTORITARISMO É CRITICADO PELO SENHOR HÁ 30 ANOS, MAS AINDA HOJE TEMOS EXEMPLOS DECEPCIONANTES, COMO A MANUTENÇÃO DA LEI DE ANISTIA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O SENHOR NÃO FICA DESANIMADO ÀS VEZES? Luiz Cláudio – Fico chateado com a inércia e a apatia do Brasil em relação aos direitos humanos. Fico irritado com o discurso de que buscar a verdade é revanchismo. O Uruguai acaba de revogar a lei de anistia promulgada no governo militar. Essas leis foram feitas para anistiar os torturadores. Quando vejo nosso caso, fico envergonhado de ser brasileiro; aqui a gente continua se enganando. Fico espantado que no Congresso, nas ruas, não haja um levante contra isso. É natural que não esperássemos isso na época da ditadura, mas na democracia? Passamos por Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e não acontece nada! Agora a Presidente Dilma Rousseff, que passou pela luta armada, foi presa e torturada, tem o dever moral, na carne e no sangue, de escarafunchar isso. É a única garantia de que não vai se repetir no futuro. Eu não quero botar ninguém na cadeia, mas quero que a Justiça aponte e diga: “O senhor foi torturador, isso vai ficar na sua ficha, na sua biografia”. A Justiça nos deve isso como socie30

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EDGAR LISBOA – Q UAIS AS MUDANÇAS MARCANTES NAS MÍDIAS NO BRASIL, NOS ÚLTIMOS 20 ANOS ? Luiz Cláudio – Sem maiores perguntas, o Brasil e suas instâncias do poder temporal assistem de joelhos ao choque de credos numa área de interesse direto do jornalismo e do distinto público: a mídia eletrônica. A Igreja Católica agrupa mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de tv, contra 80 rádios e quase 280 emissoras de oito braços do ramo evangélico. A postura mais agressiva dos pastores acua padres e fiéis da maior nação católica do mundo. Entre 1940 e 2000, os católicos caíram de 95,2% para 73,8% entre os brasileiros, enquanto os evangélicos saltaram de 2,6% para 15,4%. A explosão de 50% apenas na última década coincide com a compra da Rede Record em 1989 pela Igreja Universal. A overdose de pregadores que já ocupam as manhãs e o horário nobre das tvs abertas deve piorar ainda mais: os quatro maiores grupos evangélicos disputam agora o horário da madrugada em rede nacional do Grupo SBT. O combalido Sílvio Santos topa tudo pelo dinheiro farto dos pastores, que negociam o aluguel mensal

ICHIRO GUERRA

EDGAR LISBOA – SUA VIDA PROFISSIONAL FOI SEMPRE MARCADA TAMBÉM PELO FORTE ENVOL-

10 mil brasileiros exilados ; 4.862 mandatos cassados, com suspensão dos direitos políticos, de presidentes a governadores, de senadores a deputados federais e estaduais, de prefeitos a vereadores; 1.148 funcionários públicos aposentados ou demitidos; 1.312 militares reformados; 1.202 sindicatos sob intervenção; 245 estudantes expulsos das universidades pelo Decreto nº 477 que proibia associação e manifestação; 128 brasileiros e 2 estrangeiros banidos; 4 condenados à morte (sentenças depois comutadas para prisão perpétua); 707 processos políticos instaurados na Justiça Militar; 49 juízes expurgados; 3 ministros do Supremo afastados, o Congresso Nacional fechado por três vezes; 7 Assembléias estaduais postas em recesso; censura prévia à imprensa e às artes; 400 mortos pela repressão; 144 deles desaparecidos até hoje. Conto e lembro porque isso precisa sempre ser recontado e relembrado, para que ninguém duvide que a ditadura não foi branda, nem breve. Todos e cada um desta longa contabilidade de violência encerravam um universo de dor, de frustração, de lamento, de medo e de opressão que se espalhava, que contaminava, que amesquinhava um país e um povo. EDGAR LISBOA – COMO O SENHOR AVALIA A IMPRENSA DURANTE O REGIME MILITAR?

da telinha por R$ 20 milhões. Os usos e abusos dessa invasão nada silente e sempre sonante despertam uma pergunta no repórter mais crédulo: até onde isso vai? EDGAR LISBOA – COMO FOI O BRASIL DA DITADURA NA ÓTICA DO REPÓRTER? Luiz Cláudio – Era um País assustado, acuado, abafado, apequenado. A prepotência não permitia perguntas para números sem resposta: 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança; 200 mil detidos por suspeita de subversão; 50 mil presos só entre março e agosto de 1964; 11 mil acusados nos inquéritos das Auditorias Militares, 5 mil deles condenados, 1.792 dos quais por ‘crimes políticos’ catalogados na Lei de Segurança Nacional; 10 mil torturados apenas na sede paulista do Doi-Codi; 6 mil apelações ao Superior Tribunal Militar-STM, que manteve as condenações em 2 mil casos;

Luiz Cláudio – Lamento que quase ninguém, na imprensa ou no Parlamento, tenha repudiado este desrespeito oficial para com a História recente do País. É justo lembrar que nesse pedaço feio da História os militares não estavam sós. Tinham ao seu lado toda a grande imprensa brasileira, não apenas nos editoriais raivosos, mas na conspiração científica que mobilizou o empresariado nacional nos três anos que antecederam o golpe – como revelou em 1981 o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss (1945-2003), professor da Universidade Federal Fluminense, em seu clássico 1964: A conquista do Estado. EDGAR LISBOA – ATUALMENTE A ANISTIA, A COMISSÃO DA VERDADE SÃO ASSUNTOS EM PAUTA. COMO O SENHOR VÊ ESSA DISCUSSÃO? Luiz Cláudio – O Supremo Tribunal Federal teve, no ano passado, a chance de lavar esta ferida. E, vergonhosamente, abdicou desse dever. Apenas dois dos nove ministros do STF – Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Brito – concordaram com a ação da OAB, que contestava a anistia aos agentes da repressão. “Um torturador não comete crime político”, justificou Ayres Brito. “Um torturador é um monstro. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso sofrimento


alheio perpetrado por ele. Não se pode ter condescendência com o torturador. A humanidade tem o dever de odiar seus ofensores porque o perdão coletivo é falta de memória e de vergonha”. Apesar da veemência de Ayres Brito, o relator da ação contra a anistia, ministro Eros Grau, ele mesmo um ex-comunista preso e torturado no Doi-Codi paulista, manteve sua posição contrária: “A ação proposta pela OAB fere acordo histórico que permeou a luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita”, disse Eros Grau, certamente esquecido ou desinformado, algo imperdoável para quem é juiz da mais alta Corte e também sobrevivente da tortura. A anistia de 1979 não é produto de um consenso nacional. É uma lei gestada pelo regime militar vigente, blindada para proteger seus acólitos e desenhada de cima para baixo para ser aprovada, sem contestações ou ameaças, pela confortável maioria parlamentar que o Governo do General Figueiredo tinha no Congresso: 221 votos da Arena, a legenda da ditadura, contra 186 do MDB, o partido da oposição. EDGAR LISBOA – COMO O SENHOR AVALIA A RELAÇÃO GOVERNO /IMPRENSA ? Luiz Cláudio – O Governo, qualquer Governo, faz mal à imprensa. A imprensa, toda a imprensa, faz bem ao Governo – principalmente quando critica. Governo não precisa do ‘sim’ da imprensa. Governo evolui com o ‘não’ da imprensa. A proximidade da imprensa com o Governo abafa, distorce o jornalismo. A distância entre Governo e imprensa é conveniente para ambos, útil para a sociedade e saudável para a verdade. Jornalismo é tudo aquilo de que o Governo não gosta. Tudo aquilo de que o Governo gosta é propaganda. Certa vez, o segundo Presidente da ditadura, General Costa e Silva, queixou-se das críticas da imprensa. Sua interlocutora, a Condessa Pereira Carneiro, dona do Jornal do Brasil, esclareceu que eram apenas “críticas construtivas”. O General, sempre franco, foi direto ao ponto: “Mas o que eu gosto mesmo é de elogio!…” A transição de poder de Lula para Dilma permite notar, neste campo, uma evidente evolução. A boa novidade surgiu já no primeiro discurso da primeira mulher Presidente, na noite de sua vitória: “Disse e repito que prefiro o barulho da imprensa livre ao silencio das ditaduras. As críticas do jornalismo livre ajudam ao País e são essenciais aos governos democráticos, apontando erros e trazendo o necessário contraditório”, disse Dilma, enunciando algo impensável na cabeça de seu loquaz antecessor. A imprensa, numa definição mais simples, deve ser o fiscal do poder e a voz do povo. Com o estrito cuidado para não inverter esta equação a função primordial da imprensa está acima e além do Governo, de qualquer governo. O leitor vive hoje, no Brasil, um certo momento de desconforto. O debate em torno do Governo separa, reduz e rebaixa a imprensa. Um maniqueísmo feroz divide os meios de comunicação, em suas variadas plataformas, num jogo de perdeganha, de simpatias e antipatias, amor e

Um inventário das violências da ditadura Na entrevista a Edgar Lisboa e em seu discurso na Universidade de Brasília, Luiz Cláudio Cunha apresentou extenso inventário dos crimes da ditadura militar: 500 MIL CIDADÃOS INVESTIGADOS PELOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA 200 MIL DETIDOS POR SUSPEITA DE SUBVERSÃO 50 MIL PRESOS ENTRE MARÇO E AGOSTO DE 1964 11 MIL ACUSADOS NOS JULGAMENTOS DAS AUDITORIAS MILITARES 5 MIL CONDENADOS, 1.792 DELES COM BASE NA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL 10 MIL TORTURADOS NO DOI-CODI DE SÃO PAULO 6 MIL APELAÇÕES AO STM, QUE MANTEVE AS CONDENAÇÕES EM 2 MIL CASOS

territórios nunca dantes devassados das grandes mídias. O cidadão-internauta agora escolhe a mídia, o momento, a forma e o custo que mais lhe convém para receber a notícia, a música, o vídeo, a propaganda. Acabou o jogo unilateral. Agora todos jogam, todo o tempo, em todos os lugares. Qualquer um, hoje, pode ser um cidadão-usuário-internauta-jornalista. A comunicação não é mais um privilégio da grande indústria de mídia, controlada por big-shots ou pelos herdeiros presuntivos de famílias de sobrenomes quase aristocratas da imprensa mais tradicional. O poder não é controlado por ninguém e é moldado por todos.

10 MIL BRASILEIROS EXILADOS 4.882 MANDATOS CASSADOS DE PRESIDENTES, GOVERNADORES, SENADORES, DEPUTADOS FEDERAIS E ESTADUAIS , PREFEITOS E VEREADORES

1.148 FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS APOSENTADOS OU DEMITIDOS 1.312 MILITARES REFORMADOS 1.202 SINDICATOS SOB INTERVENÇÃO 248 ESTUDANTES EXPULSOS DE UNIVERSIDADES COM BASE NO DECRETO Nº 477 128 BRASILEIROS E 2 ESTRANGEIROS BANIDOS 4 CONDENADOS À MORTE (PENA DEPOIS COMUTADA PARA PRISÃO PERPÉTUA) 707 PROCESSOS POLÍTICOS INSTAURADOS NA JUSTIÇA MILITAR 49 JUÍZES EXPURGADOS, SENDO TRÊS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONGRESSO NACIONAL FECHADO TRÊS VEZES 7 ASSEMBLÉIAS LEGISLATIVAS POSTAS EM RECESSO CENSURA PRÉVIA À IMPRENSA 400 MORTOS PELA REPRESSÃO, DOS QUAIS 144 DESAPARECIDOS ATÉ HOJE, PASSADOS 47 ANOS DO GOLPE MILITAR.

ódio, admiração e repulsa, que se retroalimentam e se excluem. Parecem duas torcidas ferozes que vão ao estádio não para exaltar ou vaiar o jogo no campo, mas para brigar na arquibancada. O reducionismo político das últimas eleições divide veículos e profissionais em dois campos aparentemente incompatíveis: PT x PSDB, Lula x FHC, petista x tucano, governista x oposicionista, independente x adesista, golpista x chapa-branca, blog sujo x blog limpo… EDGAR LISBOA – COMO O SENHOR CONVIVE COM AS NOVAS TECNOLOGIAS? Luiz Cláudio – Regimes fechados e controles rigorosos são ultrapassados pela disseminação da tecnologia, que tira a notícia das mãos exclusivas dos repórteres. Simples cidadãos, militantes da oposição ou transeuntes eventuais sacam de suas engenhocas – smartphones poderosos, vídeo-câmeras minúsculas ou netbooks de acesso mundial – e se transformam em repórteres acidentais e testemunhas oculares e virtuais da História, que se desenrola à sua frente, nas praças, nas ruas, diante da varanda de seus apartamentos. A derrubada de Hosni Mubarak no Egito, o cerco a Muammar Kadafi na Líbia e os solavancos da revolução popular que toma as praças das grandes cidades no norte da África são revelados, acompanhados e disseminados em primeira mão pelos cidadãos que vivem na carne os dramas políticos de seus países e seus regimes. Os jornalistas chegam depois, alertados pelas primeiras imagens disseminadas de forma amadora, embri-

onária, pelo povo armado pela tecnologia. E os jornalistas ali chegados continuam se abastecendo dessa rede informal, espontânea, capaz de cobrir tudo, em todos os lugares, com imagens e detalhes que uma equipe reduzida de tv jamais conseguirá reproduzir. É a informação multimídia, multiforme, multifacetada, onipresente, intermitente, onisciente, online, ao vivo, 24 horas por dia, numa overdose de mídias que pode esgotar o público e exaurir o repórter. O jornalista destes novos e frenéticos tempos terá que se reciclar e aprender a conviver com tudo isso, extraindo desses avanços os recursos e as manhas que lhes concedam o exercício desse jornalismo numa realidade febril induzida pelas novas tecnologias. No jornalismo da internet, tudo é rápido, inodoro, insípido, frio. Os contatos são rápidos e telegráficos como os textos produzidos aos borbotões, sobre tudo e todos, nos portais, blogs e sites. Produções sem esmero de texto, sem revisão, sem muita reflexão. O velho ‘furo’ é medido em minutos, às vezes segundos. Nada sobrevive às teclas do CtrlC/Ctrl-V, o batido Copiar/Colar que sustenta tanta produção e tanta pretensão, reproduzindo sem limites erros, estilos e imprecisões que ganham a eternidade na Grande Rede. A internet subverteu tudo isso, fazendo o usuário avançar sobre os

EDGAR LISBOA – A TELEVISÃO COMO ENTRETENIMENTO E EDUCAÇÃO. QUAL SUA AVALIAÇÃO? Luiz Cláudio – A sabedoria das multidões, ainda hoje, pode privilegiar uma sesquipedal burrice. Cerca de 2.200 km separam São Bernardo do Campo, em São Paulo, de Cocal dos Alves, no interior do Piauí. Na cidade paulista mora Maria Helena, de 27 anos. Na cidade piauiense vive Izael Francisco, de 14 anos. Ela é modelo e falante, ele é tímido e mora na roça com o avô analfabeto. Maria acaba de ganhar R$ 1,5 milhão de prêmio, em dinheiro, como vencedora do BBB 11, o Big Brother Brasil, aquele programa da Rede Globo que atrai milhões de pessoas no País para acompanhar durante 11 semanas os diálogos patetas de garotas curvilíneas com garotos musculosos, todos transbordantes de hormônios e carentes de neurônios. O professor de ética jornalística da Faculdade Casper Líbero Eugênio Bucci rotulou o BBB como “o mais deseducativo programa da tv brasileira, onde a fama justifica qualquer humilhação”. Apesar disso, mais de 100 mil jovens brasileiros se inscreveram para o BBB, que pode parar até a maior cidade brasileira: 40% de Ibope, sua audiência média, significam quase dez milhões de telespectadores, metade da população da Grande SP. No programa final, Maria recebeu, pelo telefone, 51 milhões de votos. Se fosse candidata a presidente, teria derrotado José Serra por mais de 7 milhões de votos e teria perdido para Dilma Rousseff por pouco mais de 4,5 milhões de votos. Izael Francisco acaba de ganhar R$ 100 mil (15 vezes menos que Maria) em bolsa-educação como vencedor do Soletrando, quadro do programa Caldeirão do Huck, apresentado por Luciano Huck na mesma Rede Globo. Venceu 500 mil alunos de escolas públicas, selecionados em mini-seletivas que duraram seis meses em todo o País, num concurso empolgante para soletrar as palavras mais difíceis da língua portuguesa — algo impossível de alcançar o parvo paredão do Big Brother Brasil. Além da bolsa, o garoto ganhou um netbook. O terceiro colocado do BBB recebeu R$ 50 mil, dois carros e duas motos.

O AUTOR Edgar Lisboa foi diretor do Jornal do Brasil, do Sistema Globo de Rádio e de Comunicação da Confederação Nacional de Industria. Atualmente mantém o blog www.edgarlisboa.com.br e tem uma coluna política diária no Jornal do Comércio de Porto Alegre, uma página política na Revista Expansão e um programa de entrevistas na Rádio Digital News (radiodigitalnews.com.br), o jeito web de fazer notícia. Sua reportagem sobre a homenagem a Luiz Cláudio Cunha foi divulgada em seu blog em 13 de maio passado.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO/BOITEMPO

AUTOBIOGRAFIA

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resgate da história inigualável de uma figura ímpar. Muitas são as curiosidades da trajetória de Gregório Bezerra – lendário ícone de resistência à ditadura militar no Brasil. Sua atuação política plena e fundamentada, por si só, já seria um feito. Algo de surpreendente. Afinal, nascido em Panelas, no Agreste pernambucano, em 1900, era filho de camponeses pobres. Ficou órfão ainda na infância. Criança, já trabalhava com a enxada na lavoura de canade-açúcar. Permaneceu analfabeto até os 25 anos de idade. Não foi um homem de letras, mas um grande observador e brilhante contador de histórias. Também é impressionante perceber, no relato de amigos e de testemunhas da sua época de militância, como as perseguições e diversas prisões não afetaram a sua personalidade, acima de tudo, pacífica, doce e generosa. Os cerca de 23 anos passados em presídios, em épocas diferentes, não o embruteceram. Não o revoltaram. Gregório lutou como poucos. E, como bem escreveu o jornalista Eurico Andrade, falecido em 2005, ele parece não ter perdido a ternura jamais. É todo esse vasto universo que volta agora às livrarias. Mais de 30 anos após a edição das Memórias de Gregório Bezerra, obra originalmente lançada em 1979, sua autobiografia é relançada pela Boitempo Editorial. No livro, o líder comunista relata, com franqueza e objetividade, sua trajetória de vida e resgata um período rico da História política brasileira. O depoimento abrange desde o seu nascimento – a infância no Agreste e a escassez de recursos nos tempos de estiagem – passa pelas primeiras manifestações trabalhistas – já sob inspiração da Revolução Russa de 1917 – e chega ao ato de sua libertação da prisão, em 1969, em troca do embaixador americano seqüestra-

ma expressão desse povo, no que ele tem de mais autêntico e verdadeiro. É a genuína personificação dos explorados e oprimidos da nossa terra – jamais dos poderosos, dos exploradores. (…) Justamente por isso suportou constantes perseguições policiais, atrozes torturas e um total de 23 anos de cárcere em diversos presídios do Brasil. Teve de suportar a feroz campanha que os meios de comunicação a serviço dos interesses dominantes sempre moveram contra ele e contra os comunistas”, escreveu Anita Leocádia, na apresentação da obra. Desde a primeira edição das Memórias de Gregório Bezerra, lançada no início do processo de reabertura política, muitas reviravoltas ocorreram no Brasil. Porém o maior desejo do autor continua atual e urgente, por não ter ainda se concretizado. É preciso que se construa um País justo, onde os cidadãos tenham direitos iguais, a terra seja de todos, o trabalho dignifique e as crianças sejam alimentadas com pão e liberdade. Era por isso que lutava Gregório. A expectativa é de que o exemplo de vida do pernambucano possa inspirar os jovens de hoje a perseguirem as mesmas metas. Além de correspondência entre Gregório e sua advogada Mércia Albuquerque, o livro traz a reprodução das alegações desta em favor de seu cliente, quando do julgamento por diversos processos políticos contra ele instaurados. E traz, ainda, ao menos dois textos especiais. O primeiro deles é um poema feito por Ferreira Gullar por solicitação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), relatando a prisão de Gregório em abril de 1964. Publicado três anos após esse acontecimento, com o País ainda sob ditadura militar, foi então assinado com o pseudônimo de “José Salgueiro”. O outro é Em louvor a Gregório, escrito pelo político, advogado e líder das Ligas Cam-

Memórias de uma luta sem fim A nova versão do relato do ex-Deputado Gregório Bezerra, um dos mais doces, combativos e coerentes militantes políticos brasileiros, é enriquecida com depoimentos, fotos, cartas, poemas e documentos. do. O enredo termina com a sua chegada à União Soviética, onde permaneceria até a Anistia, em 1979. Foi na temporada do exílio que o livro começou a tomar forma. A nova edição, com 684 páginas e preço sugerido de R$ 74, contou com a contribuição decisiva de Jurandir Bezerra, filho de Gregório, que conservou a memória de seu pai; da historiadora Anita Leocádia Prestes, filha de Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, que assina a apresentação da nova edição; de Ferreira Gullar na quarta capa; e de Roberto Arrais no texto de orelha. Em relação à versão original de 1979 há também a inclusão de depoimentos de Oscar Niemeyer, Ziraldo, da advogada Mércia Albuquerque e do Governador de Pernambuco (e neto de Miguel Arraes), Eduardo Campos, entre outros. A obra vem acrescida de fotografias, artigos, poemas, cartas e documentos diversos. Depoimentos com emoção “Quando penso em Gregório, vejo diante de mim o povo brasileiro, os milhões de homens, mulheres e crianças do nosso País, maltratados e sofridos durante séculos de exploração e opressão. Gregório é a legíti-

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P OR P AULO CHICO

Luiz Carlos Prestes e Gregório Bezerra juntos num comício do PCB em 1945, em Recife. No alto, Bezerra, 34 anos depois, no dia de sua chegada à Capital pernambucana após retornar do exílio, discursa no Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Pernambuco.

ponesas Francisco Julião, em 21 de outubro de 1983, em homenagem a Gregório, por ocasião de sua morte. No artigo Integridade e Grandeza, publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 27 de outubro de 1983, o sociólogo Florestan Fernandes escreveu: “Gregório Bezerra cresceu, ao longo de sua vida, além e acima dos padrões humanos de integridade e grandeza da sociedade brasileira. Não cheguei a conhecê-lo, mas sempre o admirei com respeito: ele fazia parte do pequeno grupo dos que não cedem e não se vergam, sendo ele próprio a mais bela e forte irradiação do ser Povo, do transfigurar a dureza da vida em beleza humana, em ação política consciente contra a miséria e a degradação dos oprimidos. Ele era uma força telúrica e social, sempre pronto para todos os sacrifícios e todas as lutas, no combate sem tréguas para o qual arrastava, pela palavra e pelo exemplo, os deserdados da terra, incendiando mentes e corações com a chama de seu ardor revolucionário.” Do livro, cujo lançamento oficial deverá ocorrer em agosto, fazem parte trechos do pronunciamento do então Deputado Federal por Pernambuco Eduardo


Ao retornar do exílio, Gregório levou flores a Dom Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo, em outubro de 1979. A cena é presenciada pelo jornalista Vanderley Caixe. Ao lado, o desenho de Latuff retrata a barbárie sofrida nas ruas de Recife em 1964.

Campos, na Câmara dos Deputados em Brasília, em 1999. “O centenário de Gregório nos lembra que tudo ainda está por fazer. Que sua memória pese sobre todos os que estão vivos e acreditam que é preciso construir um País mais justo”, disse Campos, hoje Governador do Estado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB).

De Prestes, a Jorge Amado, pura admiração Organizados no final do livro, os depoimentos de diversas personalidades remontam a trajetória de Gregório – e dão a dimensão um pouco mais real de sua importância. “Era um daqueles homens que servem de exemplo para as atuais e futuras gerações, pela sua trajetória revolucionária de coragem, firmeza ideológica e consciência política. Participou de forma ativa contra o arbítrio e as injustiças em toda sua vida. Foi um defensor intransigente dos direitos dos trabalhadores do campo e da cidade. Suas memórias representam um dos mais importantes registros da historiografia das lutas populares no Brasil, em Pernambuco e em Recife”, avaliou João da Costa Bezerra Filho, Prefeito de Recife. Jorge Amado teve resgatado seu depoimento. “Memórias é um desses livros indispensáveis para a compreensão da História Contemporânea do Brasil: seu autor é um dos construtores dessa história e escreveu depoimento de inegável importância. Suas memórias são o retrato de corpo inteiro de um cidadão nascido do povo, em meio à miséria e à opressão, que se levantou contra o atraso, a fome, a colonização, a injustiça, em defesa dos valores que lhe pareceram mais capazes de modificar a fisi-

onomia do Brasil, de possibilitar dias melhores para a nossa gente. Discordar de Gregório Bezerra é direito que cabe a qualquer um; impossível, no entanto, é negar a coerência e a integridade de um homem bom e generoso, intrépido e leal, em cujo coração não cabe o ódio”, disparou o escritor, membro do PCB e morto em 2001. “Nascido com o século, acaba de deixarnos o sertanejo, o lutador, o homem-povo e, para os pernambucanos, o homem-lenda Gregório Bezerra. Falar dele é falar do homem pobre do Nordeste, dos seus sofrimentos, mas é falar também da sua fortaleza, da sua luta contra a desigualdade e a injustiça. A adversidade nunca o dobrou. Tomaram-lhe o mandato, e ele entrou para a clandestinidade para reorganizar o PCB em Pernambuco. Prenderam-no em 1964, amarram-no como gado e espancaram-no como loucos, em praça pública, para humilhá-lo. Só conseguiram fazê-lo mais herói, mais respeitado pelo seu povo, que o viu cambaleando, todo ensanguentado, corda amarrada ao pescoço, mas com uma dignidade inabalável”, disse Fernando Lyra, advogado e político pernambucano, em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, em outubro de 1983. Quando da morte de Gregório, Luiz Carlos Prestes declarou: “Para todo o movimento operário brasileiro, para todos os trabalhadores do País, é uma das perdas mais dolorosas e sentidas. Ele era um homem do povo, filho do povo, particularmente um dos filhos dos trabalhadores do campo e, ele mesmo, com cinco anos de idade, já estava trabalhando de enxada na terra. Foi um defensor permanente dos interesses dos trabalhadores”. Avaliação com a qual o arquiteto Oscar Niemeyer concordou. “O companheiro Gregório Bezerra foi uma das mais importantes figuras da luta política empreendida em defesa do povo brasileiro.” Gregório (ao centro) logo após o término da Revolução de 1932, no quartel de artilharia de Itu, no Estado de São Paulo.

Nas ruas do Recife, em 1964, o episódio mais truculento

Quem seqüestrou as imagens de tv do suplício de Gregório?

Gregório Lourenço Bezerra – seu nome completo – foi Deputado Federal (o mais votado em 1946 em Pernambuco) pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), e ferrenho combatente do regime militar. Por essa razão protagonizou uma das cenas mais brutais da recém-instalada ditadura pós-golpe de 1964: capturado, foi arrastado por seus algozes pelas ruas do Recife. As imagens da bárbarie chegaram a ser veiculadas pela televisão no clássico Repórter Esso. A selvageria causou tamanha comoção que os registros da tortura pública jamais foram encontrados nos arquivos do Exército. Apesar da dura realidade, Gregório jamais cultivou o ódio ou o rancor. Dizia ele: “Não luto contra pessoas, luto contra o sistema que explora e esmaga a maioria do povo”. Este traço marcante é destacado por Roberto Arrais em entrevista ao Jornal da ABI. Secretário do Meio Ambiente de Recife desde 2010, ele foi assessor de Gregório. E assina a orelha do livro. “Um fato significativo da personalidade de Gregório era a sua sensibilidade, até em relação aos adversários. Quando perguntado por um repórter sobre o que faria com o seu algoz de 1964, que comandou o processo de tortura no quartel e nas ruas do Recife, o Coronel Darci Villocq, ele respondeu que não desejava fazer nada contra o militar, pois não tinha raiva pessoal, justamente por se rebelar contra os sistemas, e não contra as pessoas.” Arrais considera que o livro da Boitempo Editorial é um retrato das lutas históricas de um homem que nasceu no início do século XX e que construiu sua trajetória política e pessoal de forma corajosa e coerente com a causa socialista que abraçou de forma extraordinária. “Da sua dura infância no campo e na cidade grande do Recife até o exílio e a anistia de 1979, são relatos de dor, perseguições e muito amor pelo próximo e pela luta. O livro deve contribuir para o fortalecimento dos brasileiros que desejam acessar todas as informações e documentos construídos durante o período ditatorial. O Brasil precisa conhecer profundamente sua história. Memórias de Gregório Bezerra é um desses livros que retratam de forma verdadeira as lutas, os acertos e desarcertos construídos pelos líderes e os movimentos de massas, a sua paixão e participação ativa nos embates sociais do século XX.”

A obra também destaca o golpe militar de 1964, durante o qual Gregório se transformou em um dos maiores símbolos da resistência política, quando sobre ele os militares praticaram atos de violência e selvageria, levando-o pelas ruas do bairro da Casa Forte no Recife, amarrado por cordas, para o que seria o ato final desse cortejo: o enforcamento na praça de mesmo nome. Tal execução somente não ocorreu devido a protestos e solicitações das freiras ao Comandante do IV Exército. “Foram feitas imagens fotográficas e filmagens para as tvs na época. Mas, onde estão esses materiais? Como fica nossa memória histórica sem que tenhamos acesso aos documentos oficiais? O que se diz é que o Comando do Exército foi aos jornais e tvs e recolheu todos os materiais e imagens comprometedoras. Para que o Brasil construa a plena democracia é fundamental que se crie e se fortaleça a ‘Comissão da Verdade’, para que se tenha acesso às informações, aos documentos, depoimentos e relatos de todas as visões e versões. Até para que não tenhamos mais em nossos meios políticos e militares desejos e projetos golpistas e cerceadores das liberdades democráticas, que a muito custo e de muitas vidas, hoje estamos, mesmo que ainda não plenamente, vivenciando”, concluiu Roberto Arrais.

Na capa do livro, Gregório preso em abril de 1964 está sentado no pátio do Quartel de Motomecanização, em Casa Forte, Recife.

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ESPORTE

Do tamanho da paixão Mesmo com o boom experimentado pelo mercado de livros sobre futebol no Brasil, Gigantes do Futebol Brasileiro, de João Máximo e Marcos de Castro, relançado agora com novas biografias, continua imbatível como leitura e como História. P OR M ARCOS S TEFANO O futebol é um esporte que, no Brasil, tem algo de transcendental. Pode ser disputado dentro de quatro linhas, mas nunca se restringe a esses limites. Como uma autêntica função da alma, é capaz de despertar o amor, o ódio, o medo, a bravura, a solidariedade, a frustração mais profunda, o sadismo e tantos outros sentimentos de milhões espalhados por milhares de quilômetros. A cada lance, a cada gol. Ou melhor, a cada ação do grande jogador, este, sim, a materialização de toda essa paixão. Em dezembro de 1965, quando foi lançado pelos jornalistas João Máximo e Marcos de Castro, Gigantes do Futebol Brasileiro foi capaz, talvez pela primeira vez, de colocar um pouco desse universo no papel. Longe de se restringir a números, estatísticas e resultados, tornou-se um clássico justamente por revelar nas biografias de 13 craques que marcaram época no futebol do País flagrantes de todo um povo. Mais do que curiosidades de um esporte, passatempo ou lazer, era a prova de que a máxima “o futebol explica a nação” estava correta. Agora, quatro décadas depois, a obra ganha nova edição pelo selo Civilização

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Brasileira, da Editora Record, mais personagens e belíssimas ilustrações do cartunista Ique. Mesmo em meio à efervescência do mercado editorial sobre livros de futebol, não perdoa os adversários e continua sendo um clássico. Ou, no jargão da pelota, um gol de placa. Da edição original, apenas um “desfalque”: Jair Rosa Pinto, titular da Seleção na Copa do Mundo de 1950, teve de ser excluído por falta de autorização de seus herdeiros. Mas continuaram Friedenreich, Fausto, Domingos da Guia, Tim “El Peón”, Leônidas, Romeu, Danilo, Heleno, Zizinho, Nilton Santos, Garrincha e Pelé. “Antes de mais nada, é bom esclarecer que não listamos os ‘melhores jogadores de todos os tempos’. Um técnico quando convoca a Seleção já é criticado por deixar de fora um ou outro. Seria muita pretensão para dois jornalistas fazerem isso diante de 100 anos de História. Esses são alguns ‘gigantes’, cuja história queríamos contar ”, explica João Máximo. Aliás, foi a ausência de dois atletas a responsável pela substituição dos elogios por críticas, nos anos 60: Didi e Ademir Menezes. “Dois jovens jornalistas acabam de escrever a história dos maiores jogadores de futebol do Brasil. Que pena que não viram Didi jogar”, reclamou João Saldanha, na época. Em parte por causa dessas reclamações, mas muito mais por causa do fracasso da equipe canarinho na Copa da Inglaterra, em 1966, o livro não foi mais reeditado. Logo aquela edição desapareceu das livrarias e, com o passar do tempo, também dos sebos. Tornou-se um mito, como muitos de seus biografados. Seu relançamento agora não somente acabou com o saudosismo dos mais velhos e matou a curiosidade dos mais novos – atiçada pelos comentários que alçaram a obra à categoria de “lenda”. Também acrescentou os dois jogadores que provocaram tanta discussão

Desenhos do caricaturista Ique ilustram a nova edição, que traz também uma correção histórica: a inclusão do craque Didi (acima). Nilton Santos (abaixo) já estava no livro lançado em 1965.

no passado, acompanhados de sete novos “gigantes”: Gérson, Rivelino, Tostão, Falcão, Zico, Romário e Ronaldo. Uma bela Seleção, que privilegia a ofensividade, já que não há goleiros e poucos homens de defesa na relação. “Nossos critérios de escolha sempre foram técnicos. O que não impediu que encontrássemos ótimas histórias. Trabalhamos com muitas entrevistas e pesquisa. Garimpar esse material se transformou numa fascinante aventura”, destaca Marcos de Castro. O novo prefácio da obra, assinado por Luis Fernando Veríssimo, precisa a importância do texto de Castro e Máximo: “Os que vimos jogar foram nossos heróis. Os que não vimos jogar fazem parte de uma História compartilhada, passado comum a toda a irmandade do futebol. São personagens, tratados como personagens, em histórias escritas com acuidade e sensibilidade literária”. Jornalismo esportivo dos bons Aí mora o grande diferencial de Gigantes. Situado na fronteira entre o perfil e a biografia, o livro é caso exemplar de bom jornalismo esportivo. Não se preocupa tanto com dados, números e estatísticas, que podem aborrecer os mais imediatistas. Mas seduz com uma narrativa bem escrita, recheada de paixão, mas sem sensacionalismo. A ponto de flagrar a relação do esporte com a sociedade e mos-

trar a transformação do Brasil por meio do futebol. Envolvidos por termos como “magia” e “encanto”, os autores não deixam de contar casos e citar lendas que cercam a trajetória de cada biografado. Mas alertam os leitores a cada caso sobre o que é fato e o que pode ser fantasia. A única coisa incontestável nessa história é paixão. Algumas das histórias, principalmente as colhidas entre os anos de 1950 a 1970, são cheias dela. E são as mais saborosas da obra. Apesar de as vidas de Friedenreich, Fausto e Heleno apresentarem um tocante conteúdo dramático, lembrando as novas gerações que o glamour e o dinheiro que cerca esse mundo podem ser um tanto quanto ilusórios. Provocações de Ique Em tempos de baixa da seleção nacional e denúncias de corrupção na preparação da Copa de 2014, que será no Brasil, ler Gigantes é um alerta de que apenas talento não é suficiente, mas que mudanças sempre são possíveis e trazem esperança de novas vitórias. Admirando o traço provocativo de Ique, capaz de exagerar alguns atributos de seus caricaturados, como o farto bigode de Rivelino e o longo pescoço de Didi, e deixando a imaginação correr solta na leitura, vale a pena desligar a televisão e deixar de ir ao estádio no domingo para acompanhar este grande clássico do futebol bem jogado.


DIVULGAÇÃO/CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Bate-bola com dois craques do jornalismo Agenda cheia e muita correria. Assim, como acontece nos estádios depois de uma goleada, após o lançamento da nova edição de Gigantes do Futebol Brasileiro, João Máximo e Marcos de Castro experimentaram tempos agitados. Mesmo assim, tiraram um tempinho para conversar com o Jornal da ABI sobre a História e as histórias de sua obra. JORNAL DA ABI – QUANDO LANÇADO PELA PRIMEIRA VEZ, EM 1965, GIGANTES DO FUTEBOL BRASILEIRO DIVIDIU OPINIÕES ENTRE CRÍTICAS E ELOGIOS. APESAR DA QUALIDADE DOS TEXTOS, MUITA GENTE RECLAMOU DA SELEÇÃO. NA ÉPOCA, TODO ESSE DEBATE CAUSOU SURPRESA A VOCÊS? João Máximo – Não foi tanta gente assim, mas alguns poucos que, cheios de razão, lamentaram as ausências de Ademir e, principalmente, Didi. É o que Paulo Mendes Campos chama de “omissões” no prefácio. João Saldanha, de quem os autores ainda não eram amigos, o que só aconteceria mais de dez anos depois, escreveu: “Dois jovens jornalistas acabam de escrever a história dos maiores jogadores de futebol do Brasil. Que pena que não viram Didi jogar!”. Claro, foram omissões imperdoáveis, mas a reação dos críticos não nos surpreendeu. Meses depois do lançamento do livro, Vicente Feola convocou 45 jogadores para a Copa do Mundo na Inglaterra. E houve gente que o criticou pelo esquecimento de fulano ou beltrano. Se os técnicos passam por isso na convocação de jogadores do presente, imagine dois jornalistas fazendo sua escolha sobre 100 anos de História. Nossa defesa é simples: a eliminação do artigo. São gigantes e não “os” gigantes. Marcos de Castro – Não se pode dizer que tenha havido essa divisão entre críticas e elogios. O que houve foi um silêncio quase absoluto em torno da obra, ignorada sumariamente pela imprensa, com raras exceções. Quanto a reclamar dos nomes escolhidos, foi exatamente como disse o João, quando algum técnico convoca a seleção. Conosco, jamais deixou de haver um amigo que dissesse: “Mas, e o Zezinho?”, “E o Joãozinho?”. Isso não nos causou surpresa. Entre nós, a dificuldade da escolha foi terrível. Não incluir, por exemplo, Didi e Ademir na primeira edição cortounos o coração. Mas era preciso sacrificar alguém, a obra tinha limites físicos. JORNAL DA ABI – POR QUE RELANÇAR A OBRA TANTO TEMPO DEPOIS?

Marcos de Castro – É difícil de acreditar, mas tudo começou em certo dia, quando estava saindo de casa, indo para a Editora Record. Tenho um contrato permanente com eles e faço sempre traduções. Bati os olhos numa estante e avistei o Gigantes. Não pensava no assunto, mas, de repente,

resolvi sugerir uma nova edição a Luciana Villas-Boas, diretora-editorial do grupo. Luciana imediatamente se entusiasmou com a idéia. Eis aí a segunda edição, bela, rica em cores, cheia de gravuras. João Máximo – O livro virou raridade depois de esgotado em 1966. Nunca tivemos a iniciativa de relançá-lo, ainda que atualizado. O Marcos, como fizera há 47 anos, me convidou. Uma honra para mim. JORNAL DA ABI – COMO FOI FEITA A SELEÇÃO DAS PERSONAGENS NA PRIMEIRA EDIÇÃO? E O QUE OS LEVOU A ACRESCENTAR ESSES SETE NOMES NA NOVA EDIÇÃO?

João Máximo – Omissões de Didi e Ademir à parte, a escolha foi o menor dos nossos problemas. Não houve sequer um nome que tenha nos levado a uma discussão, um impasse, qualquer coisa assim. Em 1964, quando começamos a trabalhar, Marcos era editor de esportes do Jornal do Brasil e eu, um de seus redatores. Estávamos em dia com o futebol. E é claro que tanto ele como eu já víramos Didi jogar. Eu, desde sua estréia no Fluminense, em 1949, contra o Arsenal de Londres. Marcos de Castro – A seleção foi feita através de papos entre João Máximo e mim. O que posso garantir é que não houve nem sombra de clubismo na escolha. Discutimos apenas a qualidade do jogador. O critério técnico imperou com rigorosa exclusividade. Não houve nada no sentido de escolher aquelas que fossem boas histórias, nada mesmo. O que não impede que algumas tenham sido ótimas, como as dramáticas histórias de Fausto e de Heleno, por exemplo. JORNAL DA ABI – POUCO ANTES DE UMA NOVA COPA DO MUNDO NO BRASIL, O MERCADO LITERÁRIO SOBRE FUTEBOL EXPERIMENTA TEMPOS DE EFERVESCÊNCIA. GIGANTES , NO ENTANTO, É CONSIDERADO POR MUITOS CRÍTICOS UM LIVRO DIFERENCIADO, ATÉ PELA QUALIDADE LITERÁRIA DE SEUS TEXTOS. COM TANTOS LIVROS SOBRE GRANDES JOGADORES DO FUTEBOL NACIONAL, O QUE A OBRA TRAZ DE DIFERENCIAL NA OPINIÃO DE VOCÊS?

João Máximo – Com toda a honestidade, não sei. No máximo, tenho um palpite, que me foi passado pelo Álvaro Costa e Silva, quando nos entrevistou a propósito da reedição. Acredito que o livro – e não foi essa a nossa intenção – acabou contando alguns dos principais capítulos da História do futebol brasileiro por meio de seus personagens. Voltando a citar Paulo Mendes Campos, é aquela verdade: “Há uma História do Brasil e as histórias dos brasileiros”. Estas nos ajudam a contar aquela. Fora isso, eu e o Marcos somos do tempo em que texto sobre futebol merecia o mesmo tratamento de qualquer outro, sobre política, economia, arte e ciência. Era a escola do JB.

João Máximo e Marcos de Castro fizeram uma difícil seleção a partir de 100 anos de História.

Marcos de Castro – Também não sei dizer se há algum diferencial, mas posso garantir que foi feita com imenso carinho e que a preocupação permanente foi com a qualidade. JORNAL DA ABI – GARIMPAR AS HISTÓRIAS PARA FAZER ESSES TEXTOS DEVIA TER SIDO UMA VERDADEIRA AVENTURA. PODE CONTAR ALGUM DOS MOMENTOS MARCANTES E CURIOSOS DESSE TRABALHO? Marcos de Castro – Garimpar esse trabalho foi uma aventura e, devo dizer, uma bela e inesquecível aventura. Já, quanto a momentos curiosos, a aventura não foi rica. Enriqueceram-na as próprias características dos entrevistados, pois fizemos questão de entrevistar pessoalmente cada um dos gigantes – ainda vivos, claro. Uns mais, outros menos, eles próprios davam vida aos respectivos capítulos. Tim, por exemplo, que era um frasista notável, tornou o bate-papo com ele uma experiência muito agradável. Você vai encontrar no texto momentos inesquecíveis dessa verve do grande El Peón. Basta um único exemplo, esta referência dele a Romeu, seu companheiro de ataque no Fluminense: “O Romeu, ah, o Romeu passava meses sem errar um passe!”. João Máximo – Sempre dá trabalho escrever uma biografia, um perfil. Sobretudo partindo de entrevistas com os próprios personagens. Por exemplo, em 1964, Zizinho me deu uma versão sobre sua saída do Flamengo para o Bangu. Em 2000, voando de São Paulo para o Rio, ele me passou outra, a verdadeira, que está na nova edição. Mas nem por isso considero “mentirosa” a versão número um. Era, apenas, a que podia ser publicada na época. JORNAL DA ABI – HÁ PLANOS PARA LANÇAR UM VOLUME DOIS OU UMA CONTINUAÇÃO? QUEM NÃO PODERIA FALTAR E ENTRARIA NESSA SELEÇÃO?

João Máximo – Não, não pensamos

nisso. O novo volume só teria sentido se acrescido de jogadores cujas carreiras já estivessem encerradas, como acontece com esta nova edição. Como acredito que as jovens promessas de hoje – Neymar, Ganso, Tiago Silva, Lucas e por aí vai – ainda vão levar pelo menos dez anos em campo, não consigo me ver aos 86 escrevendo sobre eles. JORNAL DA ABI – QUAL É A OPINIÃO DE VOCÊS SOBRE O ATUAL MOMENTO DO FUTEBOL BRASILEIRO E SOBRE A SELEÇÃO? Marcos de Castro – Não sou saudosista, longe disso, graças a Deus. Mas um dia destes a Seleção Brasileira jogou e eu até esqueci de ligar a tv. Estava espichado no sofá, lendo o meu livrinho e lendo fiquei. No fim da tarde, lembrei-me do jogo, que já tinha acabado. Liguei então para o meu neto, para saber do resultado. E ele: “Não, vovô, eu não sei o resultado. Estava aqui estudando e nem lembrei de ligar a televisão”. Você pode imaginar alguma coisa semelhante acontecendo com a Seleção de 1970, por exemplo, para citar só um exemplo? João Máximo – Bola por bola, o futebol brasileiro vai bem. Como sempre. É diferente dos tempos de Pelé e Garrincha, Didi e Tostão, Zico e Gérson, mas os de outros países também são. A Seleção Brasileira? Também é diferente, na medida que, com tantos jogadores “estrangeiros”, não tem tempo para se organizar. Mas também este não é um problema só nosso. Mas, também como sempre, nosso futebol vai fora do campo. Com tanto prestígio, presença em todas as Copas, cinco delas ganhas, ainda organizamos um campeonato mundial subserviente às vontades da Fifa. É de envergonhar ver um bando de cartolas internacionais, muitos deles cidadãos abaixo de qualquer suspeita, falar mais alto e mais grosso que nossos ministros.

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ESPORTE

Neimar e o Olimpo do futebol O craque do Santos não está com a bola toda de que falavam, antes do fiasco da Seleção Brasileira na Copa América, numerosos segmentos da narração e da crônica esportiva. MUNIR AHMED

P OR M ARCOS DE C ASTRO E SPECIAL PARA O J ORNAL DA ABI

Era o fim do primeiro tempo, jogo do Campeonato Brasileiro deste ano, não me lembra o adversário, mas o Santos jogava em Vila Belmiro. Aí Neimar fez um gol. Um parêntese – Neimar assina o nome com um extemporâneo “y” no meio da palavra, que felizmente não sou obrigado a respeitar, pois o Jornal da ABI segue a velha e boa ortografia de 1943, posta em vigor a partir dos anos 1950, no Governo Café Filho: “...os nomes próprios estão sujeitos às mesmas regras estabelecidas para os nomes comuns”. Neimar fez um gol, eu dizia. Ao marcá-lo, puxou de debaixo da camisa uma horrenda máscara, cujo simbolismo não consegui entender. O juiz, atentíssimo, deu-lhe um cartão amarelo, exatamente o que tinha de ser feito, de acordo com as regras do jogo. Claro, o fato renderia amplos comentários dos repórteres na hora, no pós-jogo e no dia seguinte. A explicação que o risonho jogador do Santos deu na tentativa de justificar aquela atitude sem precedentes no futebol brasileiro (e certamente também no futebol mundial) foi que tinha feito aquilo a pedido de um dirigente do Santos. Ora, é de se perguntar: se um cartola pedisse a Pelé, quando Pelé tinha não 18 ou 19, mas 17 anos, será que ele iria curvar-se ao pedido irresponsável do dirigente dado a fazer gracinhas? A resposta, sabem-na os quase 200 milhões de brasileiros. Não, Pelé nunca obedeceria a solicitação tão boba de um dirigente. Imporia sua personalidade e negar-se-ia a ir além de seu papel de jogador de futebol para transformar-se um pouco em jogral, um pouco em clown – e só uso o termo em inglês aqui porque não quero ser agressivo com Neimar, o jogador e a pessoa. Qualquer usuário (o grande Antônio Houaiss diria utente) da língua portuguesa sabe da dureza da palavra “palhaço”, quando empregada fora do contexto do circo. Talvez por causa dessa evidência do comportamento diferente de Pelé e 36

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Neimar, alguns repórteres que começavam a estabelecer uma absurda comparação entre os dois contiveram seus ânimos. E assim, felizmente, sumiu de nossa imprensa a desastrada comparação. Deixaram de fazê-la a partir desse singular episódio brasileiro do jogador com máscara de tragédia antiga numa partida oficial de campeonato. As coisas são bem claras para quem não tenta confundir (como o velho Chacrinha). Neimar é Neimar, Pelé é Pelé. Há quem continue, entretanto, a situar Neimar no Olimpo do futebol. Estaria mesmo esse jogador em condições de subir a mítica montanha da velha Grécia? Nas chamadas de tv, locutores comerciais, aos gritos, só se referem ao “Santos de Neimar”. Mas os grandes momentos é que fazem os grandes homens, com perdão da frase feita, que, seja lá como for, é verdadeira. O maior acontecimento do futebol do nosso continente, neste 2011 – portanto, um grande momento –, foi a Copa América, disputada na Argentina. Uma oportunidade e tanto para Neimar desabrochar como o craque que pode vir a ser, mas por enquanto não é. Teve desempenho de baixo nível, uma frustração grande, afinal, para os que com uma facilidade surpreendente enchem os altares de novos santos antes de um processo sério de canonização. A estrela em ascensão do Santos e da Seleção Brasileira quase vira estrela cadente depois dessa recente Copa América. Neimar é, sim, um grande jogador. Por enquanto, só isso – o que já não é pouco para um profissional que ainda não completou 20 anos. Nosso mundo, entretanto, cada vez mais pede heróis. Gente anônima, que vive a se sacrificar nos trens de subúrbio superlotados, a perder cada vez mais tempo em filas de ônibus imensas, de manhã na ida para o trabalho e de tarde na volta para casa, essa gente também tem de sonhar. E como o futebol é a grande paixão do brasileiro, muitos desses sonhos começam ou

acabam nesse que o bom Luís Mendes costuma chamar de “o velho e violento esporte bretão”. É, sim, na projeção dos ídolos dos nossos gramados que a imaginação ou a alma do brasileiro levanta vôo, um vôo curto, modesto, embalado por essa paixão quase única: o futebol. Dizia Nélson Rodrigues, certamente o maior criador de frases de efeito da literatura brasileira (num sentido amplo), que “futebol é paixão”. E é, sobretudo para o zé-povinho (denominação tradicional que a avassaladora e insuportável “língua do ão” insiste em mudar para povão). Outro, no entanto, é o caso dos analistas do futebol, que não podem se comportar como um torcedor. Da parte do crítico, a análise tem de ser desapaixonada, embora não haja maneira de ser rigorosamente isenta, jamais. Repetia sempre o grande João Saldanha (uma saudade permanente) que “ninguém é filho de chocadeira”. O jornalista torce como qualquer

pessoa. Torce, sofre ou vibra. Mas na hora de escrever, ou de comentar, tem de ter um limite de sobriedade, não pode abandonar, como andou abandonando, o senso crítico. Não pode falar de Neimar na linha do berro das chamadas de tv anunciando o próximo jogo. Não pode se resumir a tratar o Santos apenas como ”o Santos de Neimar!!!”. (Na tv não surgem as exclamações, se é preciso dizer isso, mas é útil botá-las aqui na tentativa de dar uma pálida imagem da exaltação assumida com que vão ao ar essas chamadas). E assim se ajuda a criar artificialmente um possível craque (e tomara que ele venha a sê-lo de verdade). Devagar com o andor que o santo é de barro, a velha sabedoria portuguesa entra à perfeição no fecho desta história. Sabedoria lusa que aqui podemos combinar com uma das novas criações brasileiras, aplicando-a ao ”caso Neimar”: menos, pessoal, menos...


LIVROS

Uma reportagem em quadrinhos O premiado desenhista e jornalista Joe Sacco conta o que viu em 1991 na Palestina ocupada. P OR F RANCISCO U CHA Uma arte que ainda sofre grande carga de preconceitos por parte não só de ignorantes no assunto, mas também de pessoas com acesso à cultura, é a história em quadrinhos. Não importa que tantos e tão bons artistas tenham criado, desde o final do século 18, obras antológicas. Para menosprezar essa linguagem, que incorpora características do cinema, das artes plásticas e da literatura, alguns afirmam com desdém e puro desconhecimento de causa que “quadrinhos” é coisa de criança ou, no máximo, de adolescente. Como se artistas do nível de Carl Barks, Luiz Sá e Ziraldo – somente para citar três grandes nomes que produziram verdadeiros tesouros para essas faixas etárias – tivessem que comprovar seu imenso talento. Um luxuoso livro recém-lançado pela Conrad ajudará a mudar o conceito que os desavisados e falsos intelectuais de plantão têm sobre as hqs: Palestina – Edição Especial, álbum que faz uma compilação da série de mesmo nome criada por Joe Sacco, um jornalista e quadrinista premiado nascido em Malta e que vive nos Estados Unidos desde os 12 anos de idade. Sacco começou a se apaixonar pela causa palestina no início da década de 1980, depois que se formou em Jornalismo e

percebeu que Israel era retratado pela imprensa norte-americana como “uma inocente e oprimida naçãozinha sitiada por uma horda de árabes loucos” – como ele mesmo conta em artigo publicado no álbum. “Descobri que o tratamento que dispensavam àquele tema não apenas deixava a desejar, como era literalmente vergonhoso”. Ele ficou chocado com a omissão tendenciosa da imprensa e, depois de decidir não seguir a carreira na qual se formou, começou a trabalhar com sua grande paixão, os quadrinhos. A partir desse dia resolveu que deveria usar as hqs para tratar do tema de uma forma bastante criativa ao juntar reportagem com arte seqüencial. Foi assim que no final de 1991 passou dois meses e meio em Israel e nos territórios ocupados fazendo um minucioso trabalho jornalístico, entrevistando pessoas, fazendo anotações, fotografando, desenhando e registrando tudo num diário. Seu objetivo? “Descrever minhas próprias experiências, uma espécie de relato quadrinizado de minha viagem, nos últimos dias da primeira Intifada”, escreveu. Nem parecia o mesmo Joe Sacco que meses antes havia desistido do jornalismo: Palestina consegue unir as duas formas de expressão de maneira pungente e faz um retrato mais real e comovente do que a

grande maioria das reportagens exibidas nas televisões e publicadas nos jornais. De volta aos Estados Unidos, o resultado dessa jornada começou a ser publicado em revistas de quadrinhos lançadas a partir do início de 1993 pela Fantagraphics Books. Joe Sacco achava que seria difícil encontrar uma editora disposta a publicar seu trabalho. Mas os editores da Fantagraphics ficaram entusiasmados com o que viram, pois a obra mostrava o conflito entre israelenses e palestinos através de um olhar inédito até então. É uma grande reportagem desenhada com um traço admirável, que mostra, quadrinho a quadrinho, a dor e a revolta da população palestina. As nove edições publicadas até 1995 se credenciam ao panteão das grandes obras universais da Humanidade pela forma como aliam narrativa literária, ilustração da melhor qualidade, jornalismo e uma visão cinematográfica cujo resultado comprova como os quadrinhos são uma coisa muito séria. Não por acaso um dos mais respeitados e importantes pensadores sobre as questões que envolvem o Oriente Médio, o Professor Edward Said, da Universidade de Columbia, morto em 2003, escreveu que, depois que conheceu esta obra de Joe Sacco apresentada pelo seu filho, foi “imediatamente transposto ao período da primeira grande Intifada (1987-1992) e ao vivaz e revivificante mundo das histórias em quadrinhos do qual não participava há tanto tempo.” Said, que também era palestino, afirmou ainda que quanto mais lia a história-reportagem de

Joe Sacco “mais convencido ficava de que aquela era uma obra estética e política de admirável originalidade”. No mesmo texto, Said faz uma consistente descrição da obra: “Estas seqüências de desenhos e palavras, repletas de convicção e por vezes grotescamente exageradas, enfatizando o absurdo das situações, são um excepcional corretivo para nosso mundo de sobreexposição midiática, no qual a maior parte das imagens e notícias é controlada e difundida por uns poucos indivíduos, a partir de locais como Londres e Nova York. No mundo de Joe Sacco, não falam âncoras e apresentadores de voz macia, não há o afetado louvor à democracia. (...) O que temos em vez disso são as observações de um jovem americano médio, que parece ter caído de pára-quedas em um inóspito mundo de ocupação militar, prisões arbitrárias, comoventes visões de lares destruídos e terras desapropriadas, de tortura e força bruta.” O luxuoso volume que chega agora ao mercado brasileiro tem mais de 320 páginas, é encadernado com capa dura, e é a versão do sofisticado álbum lançado pela Fantagraphics Books em 2007 nos Estados Unidos, que reúne todas as histórias de Palestina e inclui também extras importantes. São textos de Edward Said, do jornalista José Arbex Jr. e um detalhado relato de Joe Sacco mostrando como ele realizou essa reportagem em quadrinhos. O making of contém imagens das páginas de seu diário, desenhos quase prontos que não foram aproveitados, roteiros e fotos que ele tirou com o objetivo de mostrar, em detaJornal da ABI 368 Julho de 2011

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LIVROS

Com vocês o autor: Saturnino Braga O caderno de anotações de Joe Sacco: um minucioso trabalho de reportagem.

universal. Se esse for realmente o seu caso, ler este álbum poderá ser uma grande descoberta: provavelmente você irá querer tirar o atraso e conhecer outros tantos artistas brilhantes e suas obras imortais: Spirit, Asterix, Corto Maltese, Maus, Príncipe Valente, Fradim, Mafalda, Buda, Ken Parker, Metal Hurlant... Prepare-se, pois a lista é grande!

O retorno de Tarzan de Joe Kubert Um álbum que recria a atmosfera selvagem imaginada por Edgar Rice Burroughs. As clássicas aventuras de Tarzan primorosamente ilustradas e adaptadas para os quadrinhos por Joe Kubert, ganham um novo e bem cuidado volume pela Devir Livraria. Trata-se do álbum A Volta do Rei das Selvas e Outras Histórias que traz, em suas 216 páginas, dez histórias publicadas originalmente entre dezembro de 1972 e outubro de 1973. Como no primeiro volume, lançado pela mesma editora há um ano, o texto de introdução também foi escrito por Joe Kubert, uma lenda viva dos comics, que reafirma sua intenção de ter sido “o mais fiel possível às histórias e personagens de Edgar Rice Burroughs”. E o resultado de seu trabalho não deixa dúvidas: Kubert consegue recriar a atmosfera selvagem imaginada pelo escritor. Seu traço vibrante continua a encantar os admiradores do Homem-Macaco quase quatro décadas depois. Neste álbum, o destaque vai para a quadrinização da obra O Retorno de Tarzan, o segundo livro do personagem criado por Burroughs. Uma história de fôlego dividida em cinco partes e que fora adaptada pela primeira vez para os quadrinhos em 1973. Outro destaque da obra é A Mina, aventura originalmente desenhada por

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Hal Foster na década de 1930 sob o título de Tarzan and Rebels of the Mine. Ela foi adaptada para o formato revista por Kubert, que remontou vários quadros e acrescentou novos desenhos para dar a dinâmica que o novo tamanho exigia. Isso seria um sacrilégio, se não fosse o talento de Joe Kubert. Esta não foi a primeira vez que o artista usou deste artifício num clássico de Tarzan. No primeiro volume, a história Terra de Gigantes também misturou a arte de Kubert com os desenhos originais de Burne Hogarth, outro grande autor dos comics. O volume apresenta ainda uma curiosidade desvendada pelo desenhista na introdução: a aventura Os Renegados foi desenhada pelo amigo Frank Thorne e não creditada na época de seu lançamento, em 1973. Foi um período em que Kubert estava com tanto trabalho que não conseguiu dar conta de tudo e teve que pedir ajuda ao consagrado artista gráfico. E o resultado foi primoroso: “Frank Thorne desenhou e eu arte-finalizei. Ficou muito bom”, orgulha-se. Aguardemos, então, o terceiro e último volume, já disponível no mercado norte-americano desde 2006.

Coroando uma vida dedicada à política e à economia, o ex-Senador pode finalmente dedicar-se à sua paixão de jovem: a literatura. P OR M ÁRIO B OECHAT Formado em Engenharia, com vocação política e apaixonado por literatura. Essa pode ser uma síntese da trajetória do ex-Senador da República e ex-Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro Roberto Saturnino Braga, que lançou no dia 21 de julho, pela Editora Record, o livro Cartas do Rio, seu segundo romance – o primeiro foi Quarteto. A noite de autógrafos foi realizada na Livraria Argumento, localizada na Rua Dias Ferreira, no Leblon. Escrito em um ano e meio, a história se passa na segunda metade do século XX, na capital fluminense e, segundo Saturnino, é um elogio ao casamento que supera as suas dificuldades, os graus de intolerância e conflitos existentes. “Mostro o que sinto, que o amor tem vários graus de profundidade. Porém, por trás do matrimônio existe um amor tão complexo e intenso, que acaba merecendo mais”, define Saturnino. “Cartas do Rio é um livro do amor possível e do casamento viável. Falo das rotinas da vida.” Saturnino salienta que originalmente o romance seria escrito em forma de cartas, mas o formato do texto foi sendo alterado ao compasso das novas idéias: “Inicialmente, esse era o escopo. Depois, com o correr do trabalho, fui mudando e introduzi a figura de um narrador, que restabelece – ou deveria restabelecer – a verdade das cartas, e acaba também entrando na história, na narração. Daí o título”. Contudo, apesar de introduzir traços e aspectos de sua vida, como o tempo em que se desenrola a narrativa, o autor esclarece que se trata apenas de uma fantasia: “É uma invenção, como toda a literatura de ficção”. Saturnino Braga iniciou sua carreira como escritor ainda na juventude, quando lançou seus dois primeiros livros, que retratavam a vida carioca através de crônicas. Mas suas atribuições como engenheiro e, posteriormente, como economista no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – que viria a incluir o “S” de Social ao nome em 1982 – e político, impediram que ele mergulhasse de corpo e alma em sua grande paixão: a arte de escrever. Logo o destaque no cenário político aconteceu e em 1974 chegou ao Senado depois de ter sido eleito Deputado federal na década anterior. Mas esse engajamento político não freou completamente sua carreira literária: “Nunca deixei de lado a literatura. A vocação de escritor veio comigo, foi um grande auxílio nas teses e projetos que apresentei ao longo da minha

DIVULGAÇÃO/J.EGBERTO

lhes, um pouco da história de um povo acuado pelo terror – procurou fazer isso da forma mais autêntica possível. Se uma das principais regras do bom jornalismo é a de ouvir sempre todas as partes envolvidas na notícia, então Joe Sacco teria cometido um grave erro ao contar apenas a versão dos derrotados? Segundo ele, não. “A visão do Governo israelense já está bem representada pela grande mídia norte-americana, e é calorosamente defendida por quase todo político eleito para altos cargos nos Estados Unidos”, defende. “Minha intenção na obra não é ser objetivo, mas honesto”, finaliza Joe Sacco. Se você ainda acha que histórias em quadrinhos não devem ser levadas a sério, este livro é um forte candidato a mudar o seu conceito com relação a essa linguagem

Saturnino: Mesmo com a política, a vocação de escritor sempre esteve comigo.

trajetória como político. Ela foi, para mim, o retrato das sociedades no correr dos séculos. No entanto, somente agora estou podendo desenvolvê-la livremente.” A despedida da política ocorreu em 2006, no fim do seu último mandato como parlamentar. Engenharia: muito pouco Para Saturnino não há paradoxo em ser engenheiro, amante da literatura e militante político. “Não há incompatibilidade. Apesar de ser engenheiro, sempre gostei de literatura, lia muito e admirava alguns escritores. Na verdade, fui muito pouco engenheiro. Trabalhei por um ou dois anos na carreira, na construção de uma fábrica em Cabo Frio, em seguida passei a ser economista e, logo depois, político”, esclarece. O lançamento de um livro é o momento mais esperado para um autor que vê coroado um árduo trabalho. Saturnino ressalta a importância de a obra despertar o interesse do leitor. “O escritor, naturalmente, escreve por uma necessidade de comunicação, de certa forma artística, através da arte da palavra, da construção das frases. A literatura é uma arte, mas no fundo está o desejo da comunicação com o semelhante, com os outros seres da sociedade. E espero que essa comunicação suscite o interesse dos leitores, que eles fiquem agraciados com o romance.” Cartas ao Rio é o décimo livro do escritor, que adiantou estar escrevendo outro, ainda sem data para lançamento: “Estou publicando este livro com a intenção de continuar com essa nova profissão”.


DEPOIMENTO FRANCISCO UCHA

Álvaro de Moya segura um quadro com os quadrinhos da sensual Druuna, que o autor, Serpieri, o presenteou. No detalhe ao lado, cavaleiros que aparecem na abertura de Macbeth, que ele desenhou. Abaixo, um dos personagens de A Marcha, de Afonso Schmidt, história publicada pela Ebal na Edição Maravilhosa.

Ele organizou há 60 anos a primeira exposição internacional de quadrinhos realizada no mundo, participou em 1950 do programa de lançamento da televisão no Brasil, fez desenhos, cinema, televisão. Foi um faz-tudo, que conta aqui parte do que realizou.

P OR F RANCISCO U CHA E C ELSO S ABADIN

O

olhar atento às imagens começou ainda quando não sabia escrever. Ficou fascinado com o trabalho de Alex Raymond e começou a desenhar ainda criança. Profissionalmente desenhou as primeiras capas da revista Pato Donald para a Editora Abril, fez charges e ilustrações para o jornal O Tempo, de São Paulo, e para o Notícias de Hoje, jornal do Partido Comunista Brasileiro-PCB , além de participar do início da primeira transmissão da televisão no Brasil, quando fez os desenhos do show da inauguração da TV Tupi. Mas Álvaro de Moya não viveria de sua arte por muito tempo. Logo ele estava dirigindo a TV Excelsior, criando coisas até então inéditas na tv brasileira. Afinal, o pioneirismo sempre foi uma de suas marcas. Como no dia em que ele e mais quatro jovens entusiastas compraram uma briga boa quando organizaram em São Paulo, há 60 anos, a primeira exposição didática sobre histórias em quadrinhos do mundo. A sua turma “inquieta e agitada”, como ele mesmo diz, queria mostrar que essa linguagem era uma forma de arte e, com isso, diminuir o preconceito que existia sobre ela em meados do século XX. Conseguiram muitos inimigos, até que europeus passaram a valorizar o trabalho que foi realizado no Brasil. Moya passou a ser convidado para salões de quadrinhos em todo mundo. O paulista Álvaro de Moya é jornalista, escritor, produtor, ilustrador e diretor de televisão. Além de ser considerado um dos maiores especialistas em histórias em quadrinhos do mundo, foi professor da Usp, programador de cinema, diretor da TV Excelsior, agitador cultural e colaborador de enciclopédias editadas na Europa. Agora, 60 anos depois da Primeira Exposição Internacional de Quadrinhos, ele compartilha um pouco de sua história e experiência com os leitores do Jornal da ABI.

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ SE INICIOU NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?

Moya – Meu pai assinava o Suplemento Juvenil para o meu irmão mais velho, o Raul. Quando saiu aquele álbum grande Flash Gordon no Planeta Mongo, editado pelo Adolfo Aizen na época do suplemento Juvenil, ele encomendou um. Só que demorou muito para chegar, e, impaciente, acabou comprando um exemplar avulso. Assim, ficamos com dois álbuns, quando a encomenda chegou. Quando o Raul ia para a escola, eu entrava escondido no quarto dele e ficava folheando o álbum, maravilhado. Ainda nem sabia ler, mas o visual me impressionava muito, e eu ficava copiando os desenhos do Alex Raymond. Quando o Raul voltava da escola, eu colocava o álbum direitinho no mesmo lugar, para que ele não percebesse que eu mexia nele. Até que um dia, Raul disse para um amigo dele: “Meu irmãozinho desenha muito bem, quer ver?” E me pediu para que eu mostrasse as cópias do Alex Raymond que eu fazia. Fiquei assustado ao perceber que o Raul sabia que eu me-

xia nas coisas dele, mas depois fiquei com isso na cabeça. “Puxa, meu irmão disse que eu desenho bem!”. Isso, de certa forma, me “estragou” pro resto da vida, pois como eu não sabia ler e só prestava atenção nas figuras, fiquei com uma concepção muito exagerada de estética, e tudo o que era eminentemente visual acabou predominando na minha cabeça. Mulheres bonitas, filmes bonitos, fotografias, desenhos... Até hoje quando recebo uma história em quadrinhos eu primeiro olho todo o visual, e só depois leio o texto. No cinema é a mesma coisa, o visual me chama mais a atenção. Blade Runner, por exemplo, para mim é um maravilhoso filme visual. Só depois eu passo a prestar atenção em outras coisas. Por exemplo, nesse filme comecei a perceber que as mortes dos andróides eram visualmente mais caprichadas que as mortes dos humanos. Assim, antes de chegar ao fim do filme cheguei à conclusão de que os andróides não poderiam ser os vilões da história. O impacto visual é o mais importante para mim. Alex Raymond, Príncipe Valente, Hal Foster, Milton Caniff, Will Eisner,

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FOTOS E IMAGENS: ACERVO ÁLVARO DE MOYA

DEPOIMENTO ÁLVARO DE MOYA

tudo isso me influenciou demais, desde sempre.

Uma foto histórica da turma de provocadores: Tito Silveira, Álvaro de Moya, Lindbergh Faria – segurando um desenho de Jayme Cortez, que aparece ao seu lado –, e Miguel Penteado numa visita à Redação do suplemento A Gazeta Juvenil, em São Paulo.

JORNAL DA ABI – SEU IRMÃO RAUL ENTÃO FOI O “ CULPADO ” DE TUDO ?

Moya – Sim. E recentemente acabei encontrando estes desenhos que eu copiava dos álbuns do meu irmão. JORNAL DA ABI – VOCÊ TEM ESSE MATERIAL?

Moya – Tenho sim. Tanto que o pesquisador Pedro Corrêa do Lago, que dirigiu a Biblioteca Nacional, me disse que estes meus desenhos antigos são o que há de mais importante na minha coleção de gibis, pois tudo o que existe ao meu redor partiu daí. E nem dava valor a eles. Eu pensava que os itens mais importantes da minha coleção eram, por exemplo, a primeira página de Terry e os Piratas, de 1934, ou a primeira página de O Príncipe Valente, de 1937. Coisas assim. Essa é a minha cultura. Me lembro bem das coisas que me interessam, e me esqueço das outras. Quando, por exemplo, a Hawaí Cinematográfica me chamava todas as manhãs para ver filmes lá no escritório deles, eu ia, assistia, mas depois não me lembrava deles como eu me lembrava dos quadrinhos. JORNAL DA ABI - POR QUE ELES TE CHAMAVAM TODOS OS DIAS PARA VER FILMES?

Moya – A Hawaí era proprietária do antigo Cine Marachá, na Rua Augusta, que não dava dinheiro. Então os dois proprietários da empresa, os portugueses Manuel Marques Gregório e Hermenegildo Lopes Antunes, me propuseram fazer do Marachá um cinema de arte. JORNAL DA ABI - ELES ERAM PORTUGUESES E DONOS DE CINEMA ?

Moya – Eles tinham uma padaria no bairro da Lapa, junto com um cinema, o Cine Clipper. Depois compraram o Cine Barão, na Barão de Itapetininga, e ganharam muito dinheiro com o Cine Regina. A história deste Cine Regina é muito interessante, porque na época a Metro-GoldwynMayer tinha o imponente Cine Metro, na Avenida São João, que passava um filme diferente por semana. Mas quando aparecia um grande sucesso, Dr. Jivago por exemplo, que ficava muitos meses em cartaz, eles precisavam de uma outra sala, para escoar a produção. E é aí que entra o Cine Regina, que fazia este papel para a Metro, e também faturava muito. Depois a Hawaí arriscou a grande jogada do Cine Gazeta. Ninguém acreditava que desse certo por causa da sua localização, na Avenida Paulista, distante do Centro da Cidade, que era a Cinelândia paulistana, onde se concentravam as melhores salas. Na época, a Avenida Paulista era praticamente vazia, sem pedestres, sem automóveis, vazia. Mas o Gazeta foi um bruta sucesso,

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JORNAL DA ABI – ENTÃO, VOCÊ TAMBÉM FOI UM PRO GRAMADOR DE CINEMA QUE INVENTAVA

MODA!

VOCÊ

LANÇOU MAIS ALGUMA NO VIDADE NESSA ÉPOCA?

que acabou se desdobrando nos Cines Gazetinha e Gazetão, também muito bem-sucedidos. Tudo o que os portugueses faziam, que era tido como “errado”, dava certo. Sem os vícios do mercado de cinema, Gregório e Lopes, que no fundo eram padeiros, tinham idéias consideradas mirabolantes na época, e que acabavam dando certo. E acertaram também comigo, quando me propuseram a transformar o Cine Marachá em cinema de arte. Comecei a pesquisar o mercado. Ficava me perguntando por que, por exemplo, o filme Os Girassóis da Rússia faturava uma fortuna no Cine Metro e não rendia nada no Marachá? Comecei a perceber que o público do Marachá talvez estivesse interessado em outro tipo de filme, num tipo de cinema que não era aquele em cartaz no Centro da Cidade. O Rubem Biáfora deu a idéia então de passar filmes franceses no Marachá, algo do tipo “Cinèma D’Art et D’Essai”, que exibisse não só filmes de arte, como também trabalhos experimentais ou dirigidos por pessoas importantes e interessantes. Decidimos então fazer uma espécie de “Sessão Maldita”, com filmes “malditos”, todas as quartas-feiras. E de quinta a domingo exibir um filme novo, um lançamento, só coisa boa. O Biáfora sugeriu então o japonês As Cínicas, e o Gregório duvidou [imita sotaque português]: “Mas tu vais começar um cinema de arte com filme japonês na Rua Augusta?”. Topamos o desafio e passamos a prestar muita atenção no público. Começamos a perceber que os freqüentadores iam ao Marachá independente do filme que estivesse passando. Nem viam anúncios em jornal, nada. Em pouco tempo, o público percebeu que todo filme exibido ali tinha o seu interesse, seu charme, era diferente do circuitão. Foi também estudando o público que percebemos a importância, para o cinema, do período entre o Natal e o Ano Novo, semana que as distri-

buidoras não lançavam nada importante. Isso foi no começo dos anos 70. Pensei então em lançar Ato Final, de Jerzy Skolimowski, justamente no Natal. Pedi uma cópia para a CIC [antiga joint venture entre Paramount e Universal] e eles me disseram que

"NOS CINEJORNAIS, SE APARECIA A FILHA DO GEISEL, A PLATÉIA GRITAVA "GOSTOSA!"

Moya – Uma outra novidade que fizemos no Marachá foi a “Sessão Insólita”, que exibia somente filmes de terror ou ficção-científica à meia-noite das sextas-feiras. Começou então a acontecer um fenômeno estranhíssimo: esta sessão atraía uma turma de baderneiros ao cinema, gente que ficava se pendurando na tela, correndo pela sala, falando alto e fazendo bagunça. Isso começou logo no primeiro filme que passamos na “Sessão Insólita”, Drácula, quando no momento em que o vampiro ia morder o pescoço de uma de suas vítimas, alguém gritou na platéia: “Chupa!”. E todo mundo riu. Aí todos começaram a gritar e a falar bobagem durante o filme. E isso começou a se repetir todas as sextas-feiras. Vinha até uma caravana de motociclistas de Santos, para entrar na folia. Nos cinejornais, se aparecia a filha do [então Presidente Ernesto] Geisel, a platéia gritava “Gostosa!”. Quando passou a reportagem com a eliminação do Brasil pela Holanda, na Copa do Mundo de 1974, a platéia aplaudiu de pé, como protesto pelo uso que a ditadura militar fazia do futebol. Aconteciam coisas assim

que fugiam ao nosso controle. Passamos então a pedir para o porteiro e para a bilheteira vender o ingresso e permitir a entrada ao cinema somente para aquelas pessoas que já sabiam como era a bagunça, porque o pessoal que não sabia de nada obviamente reclamava. Era o caos, uma loucura maravilhosa! E dava mais dinheiro que muitos filmes comerciais. Até que um dia alguém reclamou, a Polícia apareceu, deu a maior confusão e até prenderam alguns freqüentadores. Depois disso, todas as sextas-feiras ficava alguém na porta do cinema pra avisar se tinha algum camburão se aproximando. Mas nunca mais foi a mesma coisa. Bom, pouco tempo depois [setembro de 1975] é lançado nos Estados Unidos o filme The Rock Horror Picture Show, onde a platéia se comportava exatamente deste jeito. Mas como lá tudo é show, não era um movimento espontâneo, mas sim uma platéia contratada. Não foi como aconteceu, por exemplo, no Cine Paulista, na Rua Augusta, quando, durante uma exibição de Ao Balanço das Horas, o público saiu do cinema e invadiu a rua cantando Rock Around the Clock e parando o trânsito. Eu acredito que a “Sessão Insólita” do Marachá tenha dado origem a todo um comportamento daquela época. JORNAL DA ABI – VOLTANDO À DESCOBERTA

DO SEU TALENTO COMO DESENHISTA, eu era louco, que o filme não iria COMO FOI SEU CAMINHO PROFISSIONAL dar dinheiro nenhum neste époDEPOIS DOS PRIMEIROS DESENHOS? ca. Argumentei que era um cinema menor, de arte, que não iria Moya – Não me lembro muito render muito mesmo. Eles conbem da minha infância, mas eu sultaram a matriz em Nova York, acho que o primeiro filme que eu que autorizou. Programamos envi no cinema foi Frankenstein, tão o filme no Marachá e foi um com Boris Karloff. Eu fiquei apabaita sucesso, porque não havia vorado durante anos! E me lemnenhuma outra opção interesbro também de um filme francês sante em toda a cidade. Ninguém onde um casal se beijava, num tinha coragem de lançar nada nabanco de jardim. E eu percebi que quela semana. Essas coisas vão te ali tinha alguma coisa de diferendeixando com minhocas na cate. Foi o primeiro contato que eu beça. Em 1976 passei por tive com a idéia da existênNova York, onde vi a enorcia do sexo. Me lembro desme campanha de lançamentas duas coisas. E me lemto de King Kong, de Dino de bro, um pouco mais tarde, Laurentiis, anunciado como dos seriados das matinês. a grande estréia do Natal. Cinema e histórias em quaPercebi que a distribuidora drinhos eram o meu munera a Paramount, ou seja, a do. Num dia, numa festa, comesma Paramount que pounheci um rapaz chamado cos anos antes havia autoriPedro que ficou sabendo, zado o lançamento, no Naatravés do meu irmão, que tal, de Ato Final no mercado eu desenhava bem. Ele me brasileiro, com muito sucesrecomendou então que eu so. Era a primeira vez que procurasse o irmão dele, o uma superprodução era lanJoão, que era desenhista çada nessa época do ano. Penprofissional. Fui então cosei, “será que a nossa experinhecê-lo, e fiquei sabendo ência no Marachá chamou a que ele era o João Gitahy, atenção dos executivos para um sujeito que desenhava essa data?”. Atualmente a de tudo, rótulo de cerveja, semana entre o Natal e o mapas, história em quadriAno Novo é de importância nhos, tudo! Passei a ser assisfundamental para o mercatente dele. Através do João do de cinema no mundo inGithay conheci um sujeito teiro, coisa que não acontede uma cultura extraordicia antes da experiência do nária e de um conhecimenFã de cinema e de Brigite Bardot, Moya fez esta to literário incrível chamaMarachá. Teria sido coincipinup em homenagem à atriz francesa. do Syllas Roberg. Nós então dência?


passamos a criar umas histórias em quadrinhos, a discutir muito cinema, literatura, ler críticas nos jornais. Eu matava aula direto para ir ao Marabá, ao Ipiranga [cinemas da Avenida São João]. Em dia de chuva, então, era uma festa. A gente ficava na saída do cinema, esperava abrir as portas, sair aquele monte de gente, e entraávamos sem pagar pela porta da saída, dizendo que tínhamos esquecido o guarda-chuva lá dentro. Era uma molecagem ingênua, sem maldade, que nos permitia ver todos os filmes. Acabamos ficando amigos de críticos de cinema, de jornalistas, começamos a colaborar em jornais e líamos muito. Do nosso grupo de estudantes, o Syllas era o único que já trabalhava. Era bancário e gastava quase todo o salário dele em livros. E a gente lia com ele. Eu, como era o mais metido, tive a idéia de mandar uma carta para o Alex Raymond, pedindo para ele enviar um desenho original pra gente, porque nós queríamos saber qual o tamanho de um desenho original, que a gente não conhecia. Qual papel ele usaria? O que seria lápis e o que seria tinta? A gente não sabia nada disso. O pessoal topou. Escrevi então para o Will Eisner, para o Alex Raymond, pra um monte de gente...

car aquele texto do Brecht onde ele pergunta se existe coisa mais criminosa que a abertura de um banco. Era um tipo de auê de jovem, que fica se metendo em tudo. Era uma vida agitada num período de descobertas. Não por acaso, essa turminha formada pelo Cortez, Miguel Penteado, Syllas Roberg, Reinaldo de Oliveira e eu acabou fazendo a famosa exposição de quadrinhos de 1951. J ORNAL DA ABI – V OCÊS TINHAM, NA ÉPOCA, A NOÇÃO DA IMPORTÂNCIA QUE TEVE OU QUE TERIA ESSA EXPOSIÇÃO ?

Moya – Quando os europeus começaram a fazer as exposições deles, eram exposições lindas, maravilhosas, com projeções de slides, música... E eu pensava: “Puxa, a nossa exposição era tão feia, visualmente, tão pobre, com reproduções feitas a mão...” Eu imitava o Alex Raymond, o Al Capp, eu imitava o estilo de todos. Por isso me chamaram para fazer as capas do Pato Donald, na Editora Abril. Acima, Miguel Penteado e Jayme Cortez ao lado dos painéis da exposição de quadrinhos de 1951. Abaixo, ilustração para o jornal O Tempo, de São Paulo.

Moya – Sim, do Príncipe Valente, da Krazy Cat, por exemplo, entre outros. JORNAL DA ABI – NEM SEMPRE A IMPORTÂNCIA DOS ORIGINAIS FOI RECONHECIDA. O MORT WALKER, POR EXEMPLO, CRIADOR DO RECRUTA ZERO, COLECIONA-

UM AVISO DO CORREIO E FOMOS VER O QUE ERA. ELES TINHAM MANDADO OS DESENHOS! ERAM ORIGINAIS DE FLASH GORDON, PRÍNCIPE VALENTE... QUASE CAÍMOS PARA TRÁS! ERA UMA COISA MARAVILHOSA!” e não ficamos restritos a uma linha ou a um tipo de quadrinhos e nem mesmo a um país ou região. Nesse sentido fomos os pioneiros. A nossa intenção era diminuir o preconceito contra essa forma de arte. A Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos realizada em São Paulo há 60 anos foi a primeira exposição didática do mundo! As duas outras que sempre são citadas não tiveram a abrangência da nossa. A de 1944, nos Estados Unidos, foi apenas uma mostra comemorativa só com os personagens da King Features Syndicate e a de 1948, na França, foi uma exposição ufanista que atacava os comics americanos. Algo totalmente fora de propósito.

VA ORIGINAIS E CHEGOU A MONTAR UM

JORNAL DA ABI – COMO VOCÊ CONSEGUIU OS ENDE REÇOS DESSE PESSOAL ?

Moya – A gente escrevia para o King Features Syndicate. Para dar mais seriedade à coisa, inventamos um nome, Studioart, com logotipo e tudo, para oficializar o pedido, e nos identificamos como um grupo de artistas brasileiros que queria fazer uma exposição de artistas americanos. Um belo dia chega um aviso do correio e fomos ver o que era. Eles tinham mandado os desenhos! Eram originais de Flash Gordon, Príncipe Valente... quase caímos para trás! Era uma coisa maravilhosa! Corremos para o Museu de Arte de São Paulo, que naquela época ficava na Rua 7 de Abril, para propor uma exposição para o [Pietro Maria] Bardi, mas ele não se interessou pelo material. Passamos a nos corresponder muito com os desenhistas, principalmente com o Milton Caniff, criador de Steve Canyon, que sempre foi muito solícito e respondia a todas as nossas dúvidas. Cheguei até a entrevistá-lo anos mais tarde, em 1958, quando fui para os Estados Unidos. Ele estava meio desanimado com as histórias em quadrinhos, cansado de ter de criar uma tira nova a cada dia. E achou que eu fiz bem em ter abandonado a carreira de desenhista de quadrinhos.

J ORNAL DA ABI – MAS NA EXPOSIÇÃO ORIGINAIS ?

HAVIA

“UM BELO DIA CHEGA

JORNAL DA ABI – MAS VOCÊ DESENHOU PROFISSIONALMENTE .ICOMOIFOI ?

Moya – Bom, em 1947, o Syllas Roberg, o João Githay e eu fizemos uma página de quadrinhos e fomos oferecer o trabalho para a Gazeta Juvenil. Mas o Messias de Melo nos disse que não havia espaço para novos desenhistas. Foi quando o Jayme Cortez pediu para ver os desenhos, gostou muito e nos convidou para ir até a casa dele, onde todos os sábados pela manhã se reunia um pessoal da área. Syllas e eu começamos então a freqüentar a casa do Cortez, onde vi uma capa que o Waldemar Cordeiro tinha feito para o Terror Negro. Vi a capa e fiquei puto da vida, xingando o fato de os artistas plásticos, que se diziam contra os quadrinhos, ficarem fazendo capas para quadrinhos. Revoltado, fui mostrar meus desenhos para o Reinaldo de Oliveira, da La Selva, dizendo o Cortez poderia fazer capas de quadrinhos muito melhores que os artistas plásticos. O Reinaldo gostou do trabalho e foi assim

que entramos para a “família” e passamos a comer macarronada e beber vinho italiano na casa dos La Selva. A nossa turma era muito inquieta, muito atuante, um pessoal que gostava de ver filmes do Thomaz Farkas no Foto Cine Clube Bandeirantes, que ia ver filmes no Museu de Arte de São Paulo. Era um grupo que gostava de um bom debate, de discutir cinema, éramos muito metidos nos agitos culturais da cidade. Tanto que conversei com o Hermínio Sachetta e em dezembro de 1950 o Syllas e eu acabamos escrevendo um artigo de página inteira sobre o Al Capp. Deu tanto resultado que logo depois publicamos outra página inteira, aprofundando a obra do Al Capp. Eu fazia charges políticas no jornal O Tempo, que sempre publicava um conto na capa de seu Suplemento Dominical. E eu ilustrava estes contos, que acabavam sendo escolhidos pelo Syllas e por mim. Escolhíamos sempre textos mais radicais de Maximo Gorki, Dorothy Park, Bertold Brecht. Chegamos a publi-

MUSEU DE HISTÓRIA EM QUADRINHOS

JORNAL DA ABI – VOCÊS ENFRENTARAM

QUE NÃO FOI ADIANTE POR FALTA DE RE-

UMA RESISTÊNCIA ENORME PARA MON -

CURSOS.

TAR A EXPOSIÇÃO, PORQUE EM

MAS ELE COMEÇOU ESTA COLE200 MIL ORIGI-

1951

ÇÃO E JUNTOU MAIS DE

GRANDE PARTE DA SOCIEDADE ERA CON -

NAIS PORQUE NÃO AGÜENTAVA VER O

TRA AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS...

SYNDICATE JOGAR ORIGINAIS NO LIXO!

Moya – As escolas, os padres, os pais...

Moya - Sim. E por causa do altíssimo imposto de renda que os artistas pagam nos Estados Unidos, o Mort Walker teve a idéia de leiloar uma tirinha dele. Certo dia, num leilão beneficente, ele colocou uma tira do Recruta Zero a leilão, e combinou que um amigo a arrematasse por 100 dólares. Quando chegou na hora do imposto de renda, ele declarou que doou 100 originais a 100 dólares cada, o que lhe dava direito a dedução. Foi ele quem descobriu que originais de histórias em quadrinhos poderiam ser leiloados como doação e, portanto, passíveis de abatimento no Imposto de renda. A partir disso, as grandes casas de leilão começaram a entrar neste mercado, e os originais passaram a ser muito valorizados. E muita gente começou a fugir do imposto de renda desta forma. JORNAL DA ABI – A EXPOSIÇÃO DE QUADRINHOS DE 1951, EM SÃO PAULO, FOI MESMO A PRIMEIRA DO MUNDO ?

Moya – Com a nossa exposição tentamos provar empiricamente que quadrinhos eram uma forma de arte. Pela primeira vez no mundo uma exposição tratou os quadrinhos como uma linguagem; nós fizemos estudos e comparações com o cinema e a literatura

J ORNAL DA ABI – HAVIAM CAMPANHAS INTENSAS CONTRA OS QUADRINHOS. ATÉ O JORNAL ÚLTIMA HORA PUBLICOU DIVERSOS ARTIGOS CONTRA .

Moya – Mas aí era uma guerra da Última Hora, do Samuel Wainer e da Tribuna da Imprensa, do Carlos Lacerda contra O Globo, de Roberto Marinho, que começou a ganhar muito dinheiro por causa dos quadrinhos que publicava... e nós, no meio disso, ficávamos brigando. Uma vez o Reinaldo de Oliveira nos chamou para participar do programa Desafio aos Catedráticos, feito pelo J. Alves de Assunção, na antiga Rádio Cultura. Ainda não era a Rádio Cultura do Governo do Estado de São Paulo. Fomos para um debate sobre histórias em quadrinhos entre nós e dois professores. Um dos professores foi logo dizendo que nunca havia lido histórias em quadrinhos, ao que o Reinaldo prontamente interrompeu dizendo que, se ele nunca tinha lido, ele não poderia opinar sobre o assunto. E foi assim o programa inteiro: todas as vezes que o tal professor abria a boca, o Reinaldo mandava ele se calar, pois ele não poderia opinar sobre um tema que desconhecia. Ou seja, basicamente

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FOTOS E IMAGENS: ACERVO ÁLVARO DE MOYA

DEPOIMENTO ÁLVARO DE MOYA

nós éramos moleques nos comportando de maneira provocativa. JORNAL DA ABI – COM UM QUADRO DESSES VOCÊS NÃO PODERIAM AGIR DE OUTRA MANEIRA, NÃO ?

Moya – É. Nós ganhávamos muitos inimigos com essa atitude. Os padres e professores tomavam as revistinhas das crianças, durante as aulas, e botavam fogo na hora do recreio. Era o Fahrenheit 451 dos gibis! E era engraçado que havia campanhas que, para falar mal dos quadrinhos, utilizavam a própria linguagem das histórias em quadrinhos. O preconceito era demais! Era uma coisa deletéria para as crianças. Diziam que elas virariam delinqüentes juvenis se lessem histórias em quadrinhos, que não estudariam, que matariam as aulas. Eu, por exemplo, matava aula para ir ao cinema. Quando me tornei professor da Usp, dizia aos meus alunos que lia gibis ao invés de ler os livros que os professores me mandavam ler. E ia ao cinema no lugar de ir às aulas. E estava dando aulas na Usp porque entendo de cinema, histórias em quadrinhos e televisão. Se eu tivesse lido os livros que eles mandaram e tivesse ouvido as besteiras que eles falavam sobre cinema, eu nunca saberia quem era John Ford, Ernst Lubitsch, nada disso. O preconceito era tão grande que o Jayme Cortez acabou indo para a publicidade, o Miguel Penteado foi para a área gráfica, o Reinaldo de Oliveira foi para a produção, o Syllas e eu fomos para a televisão. Quando os europeus descobriram a história em quadrinhos, eu já estava dirigindo a TV Excelsior. E naquela ocasião o Manoel Carlos chegou pra mim e disse que havia saído uma notinha na Folha de S.Paulo dizendo que [o cineasta] Alain Resnais havia criado o pioneiro “Club des Amis de la Bande Dessinée” [Clube dos Amigos das Histórias em Quadrinhos], ou seja, dando validade para aquilo de que a gente já divulgava há tanto tempo. Depois os italianos entraram em contato com os franceses, e de repente nomes como Picasso, Fellini, Damiano Damiani, Alberto Moravia, começaram a dizer que deviam às histórias em quadrinhos tudo o que eles sabiam. Foi um verdadeiro movimento pela valorização dos quadrinhos. JORNAL DA ABI – ADOLFO AIZEN TAMBÉM LUTOU MUITO CONTRA O PRECONCEITO QUE EXISTIA CONTRA OS QUADRINHOS.

VOCÊ CHEGOU A TRABALHAR COM ELE?

Moya – Sim. Um dia fui ao Rio e o visitei na Ebal (Editora BrasilAmérica) e ele me disse: “Vocês de São Paulo só vivem fazendo barulho na imprensa mas não trabalham! Façam histórias em quadrinhos que eu publico!” E eu respondi: “Posso escolher a história?”. Ele falou que sim e eu escolhi adaptar para os quadrinhos A Marcha, de Afonso Schmidt. A

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história foi publicada na prestigiada Edição Maravilhosa, na qual a Ebal publicava clássicos da literatura. Eu ainda tenho essa revista guardada. Quando o Schmidt viu a revista impressa e depois viu meus originais, ele falou: “Você devia tirar todos esses textos! Seus desenhos são bonitos e esses textos da adaptação deixaram a página muito pesada.” As adaptações publicadas pela Ebal eram assim, com muito texto. Fiz o que o Schmidt sugeriu mas essa versão nunca foi publicada!

Havia mais liberdade para experimentar. JORNAL DA ABI – E COMO A TELEVISÃO ENTROU NA SUA VIDA, NA SUA CARREIRA?

JORNAL DA ABI – E A ADAPTAÇÃO DE MACBETH PARA UMA REVISTA DE TERROR ?

Moya - Isso aconteceu quando eu já estava na TV Excelsior. Houve uma festa de lançamento da Editora Outubro, onde o (Jayme) Cortez era o Diretor de Arte e lá eu vi todos os meus amigos produzindo quadrinhos. Nossa turma abriu o caminho para muitos artistas. O Cortez editou muita gente boa nessa editora. Publicou Bidu, a primeira revista do Mauricio de Sousa. Isso me deu uma saudade danada e depois da festa fui para casa e desenhei uma história de terror sobre o Macbeth num fim de semana. O Shakespeare deve ter se revirado no túmulo! [risos] Mas eu desenhava muito devagar e já não tinha tempo. Então, não consegui passar tinta em toda a histó-

"OS EDITORES DIZIAM QUE NÃO ADIANTAVA TENTAR CRIAR PERSONAGENS BRASILEIROS, POIS O PÚBLICO NÃO ACEITAVA. ELES NEGAVAM A POSSIBILIDADE DE SUCESSO DE UM PERSONAGEM BRASILEIRO". ria e o Cortez me ajudou a finalizá-la. Hoje eu vejo a história e sei identificar os traços dele. JORNAL DA ABI – ENTÃO, DE 1951, DATA 1962, TUDO MUDOU...

DA EXPOSIÇÃO, ATÉ

Moya – Foi quando eu parei com as histórias em quadrinhos e fui para a televisão, porque os editores diziam que não adiantava tentar criar personagens brasileiros, pois o público não aceitava. Eles negavam a possibilidade de sucesso de um personagem brasileiro. Tivemos de fazer carreira de outra forma. Quando a Bienal de São Paulo – isso já em 1965 – traz a exposição de quadrinhos de Bordighera, da Itália, eles nos chamaram para ajudar. Foram marcadas então palestras do professor Romano Calisi, da Universidade de Roma, palestras minhas, pediram originais nossos, etc. Assim, quando Romano

Alvaro de Moya finaliza uma página do romance A Marcha, publicado pela Ebal em 1955 na conceituada revista Edição Maravilhosa.

Calisi chegou aqui e ficou sabendo que nós já havíamos organizado uma exposição internacional de quadrinhos em 1951, ele nos convidou para um evento em Lucca. O Jayme Cortez foi, o Mauricio de Sousa, Sérgio Lima – não o desenhista dos quadrinhos, mas o da Cinemateca –, a esposa dele e eu. Mas éramos completamente neófitos. Tanto que o Cortez e o Mauricio de Sousa não puderam embarcar porque sequer levaram passaporte! (risos) Eles embarcaram depois. Eu embarquei no dia certo, mas foram tanto os mal-entendidos que só cheguei a Lucca praticamente no encerramento do evento. Mesmo assim foi uma grande festa, e eu, como representante do Brasil, fui recebido de braços abertos. Quando voltei, os mesmos filhos da mãe preconceituosos que me criticavam porque eu gostava de histórias em quadrinhos vinham me dar parabéns e tapinhas nas costas. Mas independentemente desse tipo de coisa o fato é que minha vivência nos quadrinhos me ajudou muito na televisão. Fazia televisão ao vivo com muito conhecimento de enquadração, cenografia, iluminação, movimento de câmera, conceitos que aprendi vendo muita história em quadrinhos e indo muito ao cinema. Na TV Excelsior buscava fazer travellings iguais aos do Hitchcock, closes em estilo Bergman, enfim, tudo baseado em cinema. Só muitos anos depois o Mauricio de Sousa provou que o público brasileiro aceita, sim, personagens brasileiros. Mas aí já era tarde pra mim: eu já estava na tv, em outro estágio de vida profissional. Ou seja, perdemos o bonde por sermos muito avançados para a época. JORNAL DA ABI – QUANDO O DURST TE CONVIDOU PARA TRABALHAR NA TELEVI-

SÃO, TINHA CONHECIMENTO DOS SEUS TALENTOS EM HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?

Moya – Eu era admirador dele. Eu era discípulo do Jayme Cortez no desenho. O Syllas Roberg era o sujeito que entendia de literatura. O Biáfora era o homem do cinema e o Durst era o homem de televisão. Cada um tinha a sua especialidade, sua área de interesse maior, mesmo porque é difícil, hoje, explicar o que foram os anos 45 ou 50 no Brasil. Tudo era tão difícil, tão diferente! Ver um determinado filme, saber quem era determinado diretor, ter acesso a um livro do Sartre, era tudo muito difícil no Brasil daquela época. Não havia acesso. Quando Durst e eu começamos a ver as peças de televisão do Paddy Chayefsky ou do Reginald Rose, como 12 Homens e Uma Sentença, quando começamos a ver as peças de teatro do Rod Serling, a gente começou a perceber que Nova York e São Paulo tinham um teleteatro diferente do mundo. Quando o Paddy Chayefsky me disse que as transmissões “coastto-coast” tinham baixado o nível da tv americana, nós começamos a perceber que quando a tv brasileira crescesse nós não iríamos mais ter a liberdade de fazer o que a gente fazia. Naquela época, se a gente resolvesse fazer um teleteatro a partir de um texto de Dashiell Hammet, ninguém iria dizer nada em contrário. Mesmo porque ninguém sabia quem era ele. Dorothy Parker? Mesma coisa.

Moya – Bom, nos anos 50, eu fazia as capas da revista O Pato Donald para a Editora Abril, que na época era bem pequena e devia ter dez, no máximo quinze pessoas trabalhando. Havia apenas as revistas Mickey, O Pato Donald e a Capricho, que publicava somente fotonovelas. Estávamos planejando as revistas Cláudia e Zé Carioca. Eu desenhava também algumas propagandas e fazia outras pequenas colaborações. Terminado o dia, eles faziam a conta de quanto eu tinha produzido e me pagavam por produção. Então eu ia para casa e fazia charges políticas e ilustrações para o jornal O Tempo. E, escondido sob o pseudônimo de Ramiro, fazia também as charges para o Notícias de Hoje, que era o órgão do Partido Comunista. Foi nesse período que o cineasta Galileu Garcia, que havia sido assistente de Lima Barreto nas filmagens de O Cangaceiro, recomendou meu trabalho de desenhista para o Lima, que estava planejando filmar A Guerra dos Canudos. Galileu disse que eu poderia fazer para A Guerra dos Canudos o mesmo trabalho que Caribé fez para O Cangaceiro, ou seja, desenhista de produção. Lima Barreto então me entrevistou, gostou do meu trabalho, e disse que me contrataria sob uma condição: que eu me dedicasse ao projeto em tempo integral. Eu, louco por cinema, pedi demissão da Abril e do jornal O Tempo e fui trabalhar com o Lima Barreto. Cheguei a fazer os primeiros desenhos de A Guerra dos Canudos, mas nesse entretempo a Companhia Cinematográfica Vera Cruz encerrou suas atividades, eu fui mandado embora e o filme nunca chegou a ser feito. Desempregado, fui procurado pelo pessoal de tv, que vivia me chamando, mesmo porque eu já tinha feito os desenhos do show da inauguração da TV Tupi, em 18 de setembro de 1950. Após a inauguração, o pessoal da Tupi pediu que eu ficasse trabalhando lá, mas eu não gostava de desenhar letreiros. Como na época eu não quis ficar, eles contrataram o Mário Fanucchi, que era produtor de rádio, mas sabia desenhar muito bem. Foi ele, inclusive, que criou o indiozinho símbolo da Tupi, que muita gente pensa que fui eu que fiz, mas não foi. Eles insistiam, mas eu não queria trabalhar em televisão. De qualquer maneira, naquele momento eu não quis trabalhar na tv porque não me empolgava de jeito nenhum ficar desenhando letrinhas. Pouco tempo depois, quando fizemos a


Moya em três momentos: em 1960, quando era diretor da TV Excelsior, em São Paulo; em 1970, ao lado de duas modelos durante a noite de autógrafos do livro Shazam!, e em 1977, na apresentação da revista Pelezinho, da Editora Abril. Além dele (à esquerda), aparecem Pelé, Mauricio de Sousa e seu irmão, Márcio Araujo.

acertei com a Folha de S.Paulo para fazer entrevistas lá e publicá-las como free-lancer. Na verdade minha intenção maior não era apenas fazer entrevistas, mas ter o respaldo de um nome como a Folha para poder encontrar e entrevistar meus maiores ídolos dos quadrinhos, como o Al Capp, o Will Eisner e tantos outros. JORNAL DA ABI – ESSAS ENTREVISTAS FORAM FEITAS E PUBLICADAS ?

exposição de quadrinhos de 1951, o Túlio de Lemos quis fazer uma entrevista comigo na TV Tupi, e eu me saí tão bem nessa entrevista que eles na hora quiseram me contratar como apresentador, dizendo que eu me dava muito bem diante das câmeras. Eu também não quis. Então o Cassiano Gabus Mendes me ofereceu um emprego de produção e eu sugeri que ele falasse com o Syllas Roberg. O Cassiano então chamou o Syllas, que adaptou um conto do Ben Hecht para teleteatro ao vivo. Eu fiz o desenho de produção, criei as enquadrações, planta-baixa, câmera, lentes, tudo. Sugeri que fosse feito em plano-americano [enquadrando os atores da altura do joelho para cima], pois eu achava muito feio, na televisão, enquadrar o corpo inteiro. Sugeri também uma iluminação em estilo cinematográfico, trabalhando mais com sombras e espaços escuros. Quando o Syllas e eu mostramos o projeto para o Cassiano, ele se encantou e pediu à equipe técnica que tudo fosse feito exatamente como nós havíamos sugerido e planejado. Ficou ótimo, mas eu continuava não querendo trabalhar em televisão. Só queria fazer quadrinhos. Mas chegou num ponto em que o Costa Lima, que era o grande diretor da TV Tupi, que foi contratado pela TV Paulista, me chamou para ser o braço direito dele lá na TV Paulista. Aceitei. Mas o Costa Lima acabou saindo

da Paulista e voltando para a Tupi, e me levou junto. Veja que incrível: ele ficou na Tupi só mais um ou dois dias, e voltou de novo para a TV Paulista. E me levou junto outra vez! JORNAL DA ABI – COMO ASSIM? TUDO ISSO NUM PERÍODO DE UMA SEMANA ?

Moya – Sim, ele era um grande poeta, um sujeito muito sensível, muito levado pelas emoções. Fiquei sendo o braço direito dele na TV Paulista, e comecei fazendo o Teledrama Três Leões, que era uma cópia do TV de Vanguarda do Durst, que era meu amigo. JORNAL DA ABI – TELEDRAMA TRÊS LEÕES ? POR QUE ESSE NOME ?

Moya – Era o nome do patrocinador... Sabe, eu demoro um pouco para perceber as coisas. Demorei para perceber que tinha sido um dos pioneiros da televisão brasileira, quando desenhei os letreiros de inauguração da Tupi. Mesmo porque o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a ter televisão: os primeiros foram os Estados Unidos, em 1947, e a tv no Brasil começou três anos depois, ou seja, também com bastante pioneirismo. Foi neste momento que o Consulado Americano resolveu levar alguns profissionais brasileiros para estagiar nos Estados Unidos e aprender mais sobre televisão. Fui um dos convidados, em 1958, e aproveitando o fato de também ser jornalista

Moya – Sim, foram publicadas. Foram muitas entrevistas! Teve um dia que eu fui entrevistar o Arthur Miller e quem abriu a porta pra mim foi a Marilyn Monroe! Até hoje todo mundo me pergunta como foi esta história de “A Marilyn Monroe abriu a porta pra mim” [risos]. JORNAL DA ABI – ALÉM DO MILTON CANIFF , QUE VOCÊ JÁ CITOU, QUAIS DESE NHISTAS QUE VOCÊ CONHECEU PESSOALMENTE NOS E STADOS U NIDOS?

Moya – Além de uma entrevista longa com Caniff, que eu acabei não publicando, marquei uma entrevista com Al Capp. Lembro que cheguei bem cedinho na casa dele, onde ele me ofereceu um café daqueles bem aguados que os americanos gostam. Educadamente, recusei [risos]. Na ocasião, ele admitiu que os americanos prejudicam os outros países não só no mercado de quadrinhos, como também em outras áreas, porque a mecânica de distribuição americana esmaga as culturas locais. Por meio do André Le Blanc conheci também o Will Eisner, com quem eu me identifiquei muito. E ele comigo. Tomamos um destes “chafés” americanos [risos]. Cheguei a falar para o André Le Blanc que quando eu lia as histórias do Will Eisner prestava mais atenção nos personagens secundários que no Spirit. Que eles me lembravam muito os contos de Anton Chekhov. O André concordou, dizendo que o Will Eisner vivia recomendando a todos no es-

túdio que lessem Chekhov. Eu achava que o Will Eisner era o melhor escritor de todos. Embora o Caniff também fosse um escritor de mão cheia, eu achava o Eisner melhor, mais literário. De qualquer forma, fiquei muito amigo do Will Eisner. A gente se encontrava sempre e conversava muito sobre cinema e quadrinhos, nos identificamos muito. Foi ele que, em Contract with God, inventou a Graphic Novel, que hoje sustenta o mercado dos quadrinhos. JORNAL DA ABI – E SEU APRENDIZADO NA TV AMERICANA?

Moya – Foi estagiando na tv americana que eu tomei contato com o videoteipe, que era novidade, aprendi a mexer com ele, trabalhei com Sidney Lumet, John Frankenheimer, Pad Chayevksy, Rod Serling, todos aqueles cobras. Quando eu voltei ao Brasil, fui para a TV Excelsior para montar a primeira rede, a primeira network brasileira. E implantei lá o famoso “toque de 5 segundos”, que também aprendi nos Estados Unidos e que é fundamental para que as emissoras entrem em rede todas juntas. Também levei para a Excelsior o conceito que aprendi na tv americana de contratar grandes astros apenas por um programa, como Ed Sullivan fazia. Aprendi que não era necessário ter um grande elenco fixo, na folha de pagamento. E assim eu criei o Brasil 60, comandado pela Bibi Ferreira, que todos os domingos apresentava grandes números e entrevistas com grandes astros brasileiros. Foi um grande sucesso! Também criei na Excelsior o Teatro 9, com adaptações de textos exclusivamente de autores brasileiros. Adaptamos Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Walter Negrão, Jorge Andrade... só textos brasileiros. Quando a tecnologia do videoteipe chegou ao Brasil, eu pedia para gravar os programas que eram feitos ao vivo. O pessoal não entendia muito

bem porque eu pedia isso, mas eu usava as fitas para estudar o que estava sendo feito. Pensava: “Acho que aqui o Bergman faria assim, acho que aqui o Hitchkock fazia assado”, e procurava introduzir um estilo cinematográfico internacional na televisão, com conteúdo brasileiro. Passei a dirigir, mesmo ao vivo, como se fosse um filme de cinema. Fazíamos tudo ao vivo, na raça, e com muita qualidade, porque o time do estúdio era de primeira linha, com Walter Avancini, Régis Cardoso, Luís Carlos Miéle e muita gente boa. Eu botava fogo em todo mundo e as imagens ficavam lindíssimas. JORNAL DA ABI – SÃO IMAGENS QUE INFELIZMENTE NÃO EXISTEM MAIS .

Moya – Da Excelsior não sobrou nada, ou muito pouco. Ela ficou no ar de 1960 a 1970. Eu fiquei lá de 1960 a 1964. Com o golpe militar, eu sumi, e a ditadura foi a grande responsável pelo fechamento do Grupo Simonsen, que controlava a PanAir e a Excelsior. J ORNAL DA ABI – QUAIS SÃO OS SEUS TRABALHOS NA TELEVISÃO QUE VOCÊ DESTACARIA? QUAL FOI O MAIS EMOCIONANTE , DE MAIOR IMPACTO?

Moya – O Teledrama Três Leões, da TV Paulista; tudo o que eu fiz na Excelsior, que foi uma experiência maravilhosa; Os Imigrantes, na TV Bandeirantes, onde fui o produtor, planejei cada detalhe da produção dessa novela, acompanhei e fiz a edição final. Mas, sem dúvida, o programa mais emocionante foi TV Verdade, também na TV Bandeirantes... J ORNAL DA ABI – NÃO FOI ALGUM DA TV EXCELSIOR?

Moya – Não. O de maior impacto para mim, o mais emocionante, foi o TV Verdade. Era um programa muito bom mas não chegou a ficar dois meses no ar porque tinha muita gente contra. O programa trazia gente do povo para

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contar suas histórias, muitas vezes dramáticas, na frente das câmeras e os anunciantes começaram a não querer que colocassem seus anúncios nos intervalos. Ele foi mal compreendido na época. Mas era revolucionário, radical. Quando eu fui para a Bandeirantes em 1967 quis fazer um programa inspirado no “Cinema Vérité” francês, porque eu achava que a televisão era o veículo ideal para mostrar a verdade sem ter que editar nada, como no cinema. Chamei o Durst, porque nós sempre priorizamos temas brasileiros nos teleteatros que produzimos, e começamos a produzir o programa. Houve um em que chamamos uma família de anões. Conhecemos a história deles e o Durst fez o roteiro do programa. Enquanto eles contavam sua história na frente das câmeras um locutor em off ia fazendo as perguntas que davam continuidade ao programa. Foi emocionante porque aquela família de anões, com todas as dificuldades que tinha de dinheiro, de ter acesso às coisas, lutava contra todas as adversidades; eram muito felizes, alegrinhos. E nós mostramos isso no programa. Naquele tempo não havia o pensamento de hoje, de acessibilidade e de conscientização. A última cena do programa foi de arrepiar, quando um deles mostrou como ele lavava os pratos: ele pegou uma cadeira e subiu nela para mostrar isso. Nesse momento a câmera se afastou e mostrou um estúdio gigantesco com aquela pequena e humilde família ao centro; no fundo, Aleluia, de Handel. Eles eram gigantes! Foi emocionante mesmo. JORNAL DA ABI – SOMENTE PARA FINALIZAR , M OYA, VOCÊ É AUTOR DE UM DOS MAIS IMPORTANTES LIVROS SOBRE QUA DRINHOS EDITADOS NO BRASIL, S HA ZAM !, UM VERDADEIRO ÍCONE DE NOSSA IMPRENSA QUE FOI LANÇADO EM 1970, É REEDITADO ATÉ HOJE E EM AGOSTO SERÁ HOMENAGEADO NA

USP. COMO SURGIU

A IDÉIA DE LANÇÁ-LO ?

Moya – É mesmo! Já são 41 anos! No final da década de 1960 os quadrinhos eram objeto de estudos acadêmicos na Europa. Então, o Jacob Guinsburg, dono da Editora Perspectiva, que em 1951 era o Diretor do Centro de Cultura e Progresso, local onde aconteceu a nossa Exposição Internacional, me perguntou: “por que você não escreve um livro sobre histórias

ACERVO FAMILIAR

DEPOIMENTO ÁLVARO DE MOYA

em quadrinhos?”, e eu respondi que não me sentiria bem escrevendo sobre o assunto já que, quem sempre escrevia de nosso grupo, era o Syllas Roberg. Mas ele estava doente. Jacob me incentivou e eu aceitei com uma condição: que ele desse uma boa revisada no meu texto. Assim foi feito e o Enrique Lipszyc, fundador da Escola Panamericana de Arte, foi quem sugeriu o nome do livro: Shazam!.

JORNAL DA ABI – POIS É! O JÔ SOARES ESCREVEU UM CAPÍTULO! COMO FOI A ESCOLHA DA PAUTA? FOI UMA DECISÃO SUA OU CADA UM ESCOLHEU UM TEMA?

Moya – Eu defini a pauta, mas cada autor teve liberdade para desenvolver o tema. Pedi para o Jô falar sobre o humor nos quadrinhos e ele escreveu um capítulo bem-humorado envolvendo o Fantasma e o Capitão América, que aliás ainda é muito atual! Também escreveram os jornalistas Luis Gasca e Sérgio Augusto; os psiquiatras Paulo Gaudêncio e José Ângelo Gaiarsa; o Naumim Aizen, filho do Adolfo Aizen, fundador da Ebal; o Reinaldo Oliveira e o Lipszyc. A minha idéia era fazer um livro tão divertido quanto ler histórias em quadrinhos. Não como o Umberto Eco escrevia. Tanto que o livro fez um enorme sucesso. E fez sucesso também porque foi o primeiro que misturou cultura pop com cultura erudita. Imagine: na época Shazam! fez mais sucesso na Fau (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Usp) do que na Eca (Escola de Comunicações e Artes da Usp)! Agora, esse livro será tema de homenagens na Eca num grande evento chamado de 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, que acontece a partir de 23 de agosto. Logo na abertura teremos um grande debate sob o tema Implodindo preconceitos: os pioneiros do estudo de quadrinhos no Brasil, do qual participarei. Vai ser ótimo!

1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos na Usp O evento acontece na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-Usp), de 23 a 26 de agosto, sempre a partir das 14 horas, exceto no primeiro dia, quando acontece a abertura com uma mesa redonda especial sobre o tema Implodindo preconceitos: os pioneiros do estudo de quadrinhos no Brasil com a participação de José Marques de Melo (Umesp), Álvaro de Moya (Eca/Usp), Antonio Luiz Cagnin (Eca/Usp) e Sônia Bibe Luyten (Grupo de Pesquisa de Comunicação Visual/Faculdade Cásper Líbero). A programação e outras informações podem ser obtidas no site jornadasinternacionais.com.br.

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E

JORNAL DA ABI – DE QUEM FOI A IDÉIA DE CONVIDAR TANTA GENTE BOA PARA ESCREVER PARA O LIVRO?

Moya – Eu queria que os quadrinhos fossem analisados sobre diversos ângulos, então convidei diversas pessoas para, cada uma, escrever um capítulo, para ficar plural como a visão de um diamante que tem diversos ângulos. Convidei psiquiatras, arquitetos, jornalistas, um humorista...

stava no Florianópolis Audiovisual Mercosul-FAM quando o cineasta Ari Cândido chegou pra mim e disse, entristecido: “O Bravo Guerreiro se foi”. Devo ter feito cara de interrogação. Ari continuou: “Gustavo Dahl morreu”. Minha reação de espanto foi inevitável, pois eu havia, nas minhas rápidas contas mentais, “acabado de falar com ele” no recente Festival de Recife. “O Bravo Guerreiro” era o apelido carinhoso conquistado por Dahl dentro da comunidade cinematográfica. Não apenas por este ser o nome do primeiro longa dirigido por ele, como também, e principalmente, pela sua trajetória como cineasta e homem de forte atuação política na classe. Só para dar uma idéia, em 1964, quando muitos começam a pensar em sair do Brasil, Gustavo volta de uma enriquecedora temporada na Europa. E fica. Fica para guerrear. Filho de pai argentino e mãe brasileira, Gustavo Dahl nasceu em 8 de outubro de 1938, em Buenos Aires. Cresceu em Montevidéu e aos nove anos de idade mudou-se com a família para São Paulo, onde chegou a cursar Direito no Mackenzie. Sem muita paixão pelas leis, interrompeu o curso e com menos de 20 anos recebeu um convite para colaborar no prestigiado Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo. Um convite feito por ninguém menos que Paulo Emílio Salles Gomes, um dos maiores pensadores do cinema no Brasil. Apaixonado pela Sétima Arte, Dahl logo tornou-se Presidente do Cineclube do Centro Dom Vital e começou a trabalhar na Cinemateca Brasileira. Dahl tinha apenas 22 anos quando recebeu uma bolsa do Governo da Itália e foi estudar Cinema no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. Ali, conheceu o cineasta Paulo César Saraceni e encantou-se pelo Cinema Novo. Transitando entre Roma e Paris (onde fez cursos no Musée de l’Homme), travou amizade com cineastas e pensadores como Marco Bellochio, Bernardo Bertolucci, Gianni Amico e Jean Rouch. Com a bagagem repleta de conhecimentos, de novos amigos, e impregnado pelo pensamento libertário europeu dos anos 60, Dahl volta ao Brasil em 1964, fixando-se agora no Rio de Janeiro. Ali começa sua carreira de cineasta brasileiro como documentarista e montador, e já vê, logo no ano seguinte, seu trabalho ser reconhecido com os prêmios Coruja de Ouro e Saci pela montagem de A Grande Cidade, de Cacá Diegues. O primeiro longa, O Bravo Guerreiro, viria em 1968. Ao lado de O Desafio, de Saraceni, e de Terra em Transe, de Glauber Rocha, o filme formou o que foi chamado de trilogia de filmes políticos da segunda fase do Cinema Novo. Sem abandonar o ofício e a profissão de cineasta, Dahl destacou-se também como um dos mais importantes críticos e ensaístas do cinema brasileiro, colaborando na revista Civilização Brasileira, no emblemático periódico francês Cahiers du Cinéma, no Jornal do Brasil, Correio

Sai de cena Arlindo Silva Caso não tivesse construído relevante carreira profissional, Arlindo Silva já seria merecedor de lugar de destaque na História do jornalismo brasileiro, por um único feito. Ele é o autor da biografia do apresentador e empresário Silvio Santos, reconhecidamente um dos maiores comunicadores do País. E uma personalidade conhecida pelos profissionais de imprensa pela aversão à simples idéia de conceder entrevistas. Pois bem, o jornalista, que morreu no dia 24 de julho, aos 87 anos, de falência múltipla dos órgãos, tanto insistiu que conseguiu. Em 2002, lançou A Fantástica História de Silvio Santos, pela Editora do Brasil. A relação com o ‘homem do Baú’, a bem da verdade, vinha de longe. E, além dos traços profissionais, tinha como base uma sólida amizade. Editorchefe da extinta revista O Cruzeiro, Arlindo foi responsável por implantar o primeiro núcleo de jornalismo do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão), em 1981, na época em que o canal ainda atendia pelo nome de TVS. E se aposentou como assessor de comunicação do próprio Silvio Santos. Logo após retirar-se do mercado, trocou São Paulo por Belo Horizonte. Faleceu na capital mineira, no hospital Mater Dei, onde estava internado desde 24 de junho, devido a uma pneumonia. Arlindo Silva pertenceu a uma geração de grandes repórteres, que marcaram suas carreiras com memoráveis trabalhos para O Cruzeiro, tornando-a a maior revista da América Latina. Trabalhou por 24 anos na publicação, dirigida por David Nasser e Jean Manzon. Neste período, viajou pelos quatro cantos do mundo, de Hong Kong a Lisboa, de Jerusalém a Paris, de Tóquio a Roma, do Cairo a La Paz. Dormiu em redes nas selvas do Xingu e entrevistou fugitivos da Polícia em favelas do Rio. Quando Getúlio Vargas se suicidou, em 1954, Arlindo Silva era o único repórter que se encontrava no Palácio do Catete e chegou a ver o ex-Presidente morto, ainda no seu leito, vestido com o célebre pijama listrado, com a mancha de sangue no lado do coração. Além da biografia de Silvio Santos – obra que jurava ter escrito com total liberdade, isto é, sem sofrer interferências ou vetos do empresário –, Arlindo Silva teve outros dois livros publicados: O Romance de Myriam Bandeira de Mello, de 1949, e Memórias de Tenório Cavalcanti, célebre deputado e pistoleiro do Município de Duque de Caxias, RJ, mais conhecido como ‘o homem capa preta’ e que, mais tarde, ganharia maior notoriedade ao ser interpretado, no cinema, por José Wilker. O corpo de Arlindo Silva foi velado no Funeral House, em Belo Horizonte, e cremado no Cemitério Parque Renascer. (Paulo Chico)


LUCIANA WHITAKER/FOLHAPRESS

Vidas

Gustavo Dahl, o Bravo Guerreiro POR C ELSO S ABADIN

Braziliense, Folha de S.Paulo e nos combativos tablóides Opinião e Movimento. Em 1975, Dahl aceita o convite de Roberto Farias e passa a ocupar a Superintendência de Comercialização da Embrafilme, onde reformula a área de distribuição e consegue fazer que o cinema brasileiro ocupe em torno de 30% de seu próprio mercado, entre 1975 e 79. Como base de comparação, hoje em dia esta taxa está em torno dos 10%. Em 1982 dirige seus dois últimos filmes, o documentário Brasil, a Nova Força e o ficção Tensão no Rio. Após sua gestão vitoriosa na Embrafilme, Dahl passa a se dedicar quase que exclusivamente à política cinematográfica. Foi presidente da Associação Brasileira de Cineastas (1981-1983), Presiden-

te do Conselho Nacional de CinemaConcine (1985-1987) e Presidente do Conselho Nacional de Direitos Autorais. Foi ainda Presidente do Congresso Brasileiro de Cinema-CBC, e em 2000 foi relator do Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica- GEDIC, iniciativa que culminou com a criação da Agência Nacional do Cinema-Ancine, da qual foi o primeiro diretor-presidente, até 2006. Em 20 de junho de 2011, enquanto aproveitava o feriado prolongado em Trancoso, na Bahia, Gustavo Dahl sofreu um infarto fulminante. Aos 72 anos, ainda estava na ativa, como gerente do Centro Técnico Audiovisual-CTAV, do Ministério da Cultura. Gustavo morreu em frente à televisão... vendo um filme. REPRODUÇÃO

César Ladeira, Paulo César Pereio, Mário Lago e Paulo Gracindo no filme de estréia de Dahl.

Na última entrevista, uma análise de Mazzaropi e sua forma de produzir Quando, durante o Festival de Cinema de Recife de 2010, me aproximei de Gustavo Dahl e lhe solicitei uma entrevista, jamais poderia imaginar que aquela seria a última vez que ele falaria com a imprensa. Nos conhecíamos apenas superficialmente, aquele conhecimento raso dos coquetéis, eventos e pré-estréias do mercado de cinema. E embora ele soubesse que eu era jornalista, naquela ocasião eu queria entrevistá-lo não como repórter, mas como documentarista. Com a idéia de produzir um documentário sobre Mazzaropi, ao notar a presença de Gustavo no Festival, percebi que ele poderia ser uma excelente fonte de informações para o filme, mesmo porque ele havia sido Superintendente da Embrafilme no período áureo do famoso comediante caipira. Estava certo. Pego totalmente de surpresa, Gustavo discorreu longamente sobre Mazzaropi e sua época com uma clareza de raciocínio tamanha que até parecia que ele havia preparado uma palestra sobre o assunto. Não só apontou os motivos mercadológicos do grande sucesso do ator e cineasta cômico, como elogiou seu olhar visionário: “O que Mazzaropi fez naquela época, o José

Padilha com seu Tropa de Elite 2 está fazendo só agora”. Gustavo referia-se à verticalização da atividade cinematográfica, através da qual Mazzaropi eliminava a presença da empresa distribuidora, além de fiscalizar os exibidores com marcação cerrada, auferindo assim lucros bem maiores para seus filmes. “Um modelo de negócios inédito para a época, e só repetido recentemente”, afirmou. Gustavo lembrou também, rindo, que naquele período a Embrafilme editava uma revista cuja capa era sempre dedicada ao campeão de bilheteria do período. E que o seu diretor de arte não sabia mais o que fazer para criar capas inventivas, já que quase todas elas, repetidas vezes, eram dedicadas a Mazzaropi. Não bastassem a disposição, a simpatia e a entrega de Gustavo Dahl naquela entrevista solicitada de forma tão repentina, ele ainda fez questão de deixar seus contatos, caso pudesse ajudar de mais alguma outra forma no documentário. Infelizmente não deu tempo, mas o filme, quando ficar pronto em 2012, trará certamente um pouco do conhecimento e do sorriso largo de Gustavo.

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Vidas

Rogério Marinho, o homem cordial

Baffa, o radical Em Ayrton Baffa conviviam duas personalidades distintas e em conflito, ambas com forte traço comum: o radicalismo, a paixão com que cada uma se manifestava. O primeiro radicalismo era o de seu engajamento político, alinhado com o pensamento de direita mais extremado e que gerava suspeitas até sobre o seu idealismo, como no caso de sua forte ligação politica e pessoal com o General Nílton Cerqueira, apontado como o matador do Capitão Carlos Lamarca, um dos integrantes da resistência armada à ditadura militar. Secretário de Segurança Pública do Estado do Rio no Governo Marcello Alencar, Cerqueira mantinha com Baffa uma relação desprimorosa para o conceito do jornalista em segmentos do 46

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meio profissional, que o viam como um aliado da repressão. Na defesa das idéias que o identificavam com Cerqueira e, antes, com políticos de direita, como o jornalista e exGovernador Carlos Lacerda, do qual foi colaborador no jornal Tribuna da Imprensa e, na primeira metade dos anos 60, no Governo do Estado, Baffa era intolerante, agressivo, capaz de ódios, como o que alimentou durante décadas a alguns companheiros de profissão, como o jornalista Mário Cunha, do qual se declarava inimigo mortal. Esse Baffa era irascível, áspero, por vezes intratável. O outro Baffa radical era o torcedor de futebol, o amante do Clube de Regatas do Flamengo, pelo qual tinha um amor tão profundo que o levava em alguns

AGÊNCIA O GLOBO/ANIBAL PHILOT

Euricles de Matos, que exerceu a direção de fato do jornal após a inesperada morte de Irineu Marinho até que o jovem Roberto pudesse assumir o comando; com Mário Filho, repórter e cronista esportivo; com Alves Pinheiro, Secretário de Redação, denominação da época, que foi durante largos anos o responsável pela edição de O Globo, no qual chegava às 3 da manhã já com variada pauta de assuntos a serem levantados ou cobertos pelo jornal; com Evandro Carlos de Andrade, que dirigiu a Redação antes de se transferir para a Rede Globo de Televisão. Após o golpe militar de 1º de abril de 1964, coube a Rogério Marinho a tarefa constrangedora de receber o censor e atender às determinações por este baixadas. “Tínhamos um censor permanente no jornal, o qual chegava e dizia ‘Esta matéria sai, esta matéria não sai’. Ele dominava completamente”, contou Rogério em depoimento ao Projeto Memória do Globo, ao qual narrou também o caso do censor destacado para O Globo logo após o golpe, o qual lhe disse: “Olha, Doutor Rogério, eu vim aqui como enviado. Agora, nós não podemos nos exceder. Tenho certeza de que O Globo não o fará, de maneira que eu entrego em suas mãos a censura, a orientação do jornal.” Rogério Marinho era um dos mais antigos sócios da ABI, na qual ingressou em 19 de dezembro de 1940, meses após completar 21 anos. Veio certamente por influência do irmão Roberto, que entrara na Casa em 1924 e se tornaria o jornalista com mais longa vinculação com a ABI. Tal como o irmão Roberto, Rogério Marinho manteve sempre uma relação de generosa colaboração com a ABI, sobretudo na organização de eventos como as festas de Natal dos filhos dos jornalistas, ao longo dos anos 70 e 80. Ele deixou viúva, Elisabeth, uma filha e netos.

Rogério Marinho (acima, em foto de 1980) começou a trabalhar em O Globo aos 18 anos por insistência do irmão Roberto. Abaixo, os três irmãos, Rogério, Roberto e Ricardo em 1966. AGÊNCIA O GLOBO

Um dos traços marcantes da personalidade do jornalista Rogério Marinho era a cordialidade, emanação natural de sua fina educação. Elegante no terno sempre bem recortado, obra de alfaiate competente, colarinho impecável, ao chegar à Redação onde trabalhou por cerca de 74 anos, o Doutor Rogério, como o chamavam, estendia a mão em cumprimento a quantos encontrava pelo caminho, sem distinguir nem discriminar ninguém, desde um editor qualificado ao mais modesto dos funcionários de O Globo, onde começou a vida profissional sob a liderança e o carinho do irmão Roberto e as atenções do irmão Ricardo, que lhe devotavam cuidados paternais. Quando o pai Irineu Marinho morreu, em 1925, pouco depois de fundar O Globo, o pequeno Rogério tinha apenas seis anos; o primogênito Roberto, 21. Nascido no subúrbio de Riachuelo em 15 de maio de 1919, o jovem Rogério pensava em estudar Direito, curso que chegou a concluir, mas aos 18 anos cedeu aos apelos do irmão Roberto e passou a trabalhar em O Globo, no qual foi repórter de Esportes, redator, diretor e, mais recentemente, Vice-Presidente da Infoglobo, conglomerado que edita os três veículos impressos da empresa – O Globo, Extra e Expresso. Na trajetória profissional de Rogério incluem-se realizações importantes, como a edição, durante a Segunda Guerra Mundial, do Globo Expedicionário, publicação destinada a apoiar as tropas brasileiras que combatiam o nazismo em território italiano, e a criação, pelo desenhista Luiz Sá, do bonequinho que há mais de 70 anos ilustra as críticas cinematográficas do jornal. Em sua prolongada atividade em O Globo, Rogério Marinho conviveu com destacados jornalistas, entre os quais

casos a ignorar ou esquecer divergências com adversários ideológicos. Esse Baffa era capaz de ternuras, derramado em manifestações de carinho, atencioso, solidário. Um Baffa de fina sensibilidade poética, que o fez nos últimos anos de vida mudar-se do Rio de Janeiro para o Distrito de Conservatória, no Município de Valença, interior do Estado, que se tornou famoso nacionalmente pelas serestas que promove. Lá Baffa se sentia à vontade, não lamentava a impossibilidade de acompanhar o seu Flamengo no Maracanã, como fez durante décadas. Este Baffa era doce, fraterno: quando o Flamengo conquistou o Campeonato Carioca de 1972, ele parou a Redação da Sucursal do Jornal da Tarde de São Paulo, que dirigia, para uma celebração que, a seu convite, teve como “orador oficial” um suposto adversário ideológico. Irmão mais velho de dois jornalistas já falecidos, Alcyr e Altair, Baffa traba-

lhou nas Sucursais Rio do Jornal da Tarde de São Paulo, de que foi Secretário de Redação, e de O Estado de S. Paulo, de que foi chefe de Redação, sem abandonar o jornalismo de campo: ganhou o Prêmio Esso de Investigação Econômica de 1983 com a reportagem “O escândalo da Capemi”, sobre o desvio de fundos da Previdência Privada no Governo militar, cujo Presidente era o general João Batista de Figueiredo. Ele publicou sete livros, entre os quais No Porão do SNI e Sol Para os Mortos. Ao conhecer Conservatória, no Sul do Estado do Rio, onde fora fazer uma reportagem, gostou tanto do lugar que resolveu ir morar lá, de onde passou a enviar os seus trabalhos jornalísticos. Internado desde o dia 12 no Hospital Copa D’Or, em Copacabana, após sofrer um enfarte, faleceu no dia 22, aos 77 anos, após um choque cardiogênico. (Maurício Azêdo - José Reinaldo Marques)


A homenagem da ABI ao ex-Presidente. A ABI manifestou no dia 4 de julho seu “forte sentimento de pesar” pelo falecimento do exPresidente Itamar Franco, que foi apontado pela Casa como “um republicano exemplar”, “ pela austeridade com que exerceu o cargo, pela dignidade com que se houve à frente da república e pela sensibilidade política e social que demonstrou ao aprovar e promover a implantação do Plano Real, que retirou o País de grave crise econômico-financeira e o libertou da inflação descontrolada que marcou a segunda metade dos anos 1980”. O pesar da ABI foi exposto em declaração do seguinte teor: “É com forte sentimento de pesar que a Associação Brasileira de Imprensa se associa às manifestações de diferentes setores da vida do País que lamentam o falecimento do exPresidente Itamar Franco, que passa à História como um republicano exemplar, pela austeridade com que exerceu o cargo, pela dignidade com que se houve à frente da república e pela sensibilidade política e social que demonstrou ao aprovar e promover a implantação do Plano Real , que retirou o País de prolongada crise econômicofinanceira e o libertou da inflação descontrolada que marcou a segunda metade dos anos 1980.

Alçado à primeira magistratura da Nação numa das mais graves crises políticoinstitucionais ocorridas no País, Itamar Franco revelou-se à altura do desafio de restabelecer na coisa pública os padrões éticos que o conjunto da cidadania reclamava. Sem arroubos demagógicos, dotou o Poder da dignidade que então escasseava e se impôs ao respeito e à admiração de seus compatriotas. Foi nesse clima que pôde convocar especialistas de grande competência para elaborar e executar um conjunto de políticas que restauraram o controle da moeda e abriram caminho para que nos anos

seguintes o País reencontrasse o caminho de segura gestão financeira. Com esse desempenho, Itamar Franco enriqueceu um currículo de atuação na vida pública que já o impusera à confiança de seus patrícios de Juiz de Fora e de Minas Gerais, que reconheceram seus merecimentos ao lhe conceder mandatos de prefeito, governador e senador da república. É a esse republicano exemplar que a Associação Brasileira de Imprensa rende homenagens no momento em que o País é privado de sua presença na vida pública. Rio de Janeiro, 4 de julho de 2011 (a) Maurício Azêdo, Presidente da ABI.” RICARDO STUCKERT/PR

Na juventude, no Rio de Janeiro, com pouco mais de 20 anos, o alagoano Francisco Ribeiro Mattos pensou em ser advogado e com esse fim chegou a prestar vestibular, na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil e na antiga Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas. Na verdade esse projeto não correspondia a uma vocação ou uma sedução pela atividade de advogado, mas a certo modismo: seus mais fraternos companheiros da União da Juventude Comunista-UJC, a que se vinculara cedo, optavam pelo caminho do Direito e ele não queria afrouxar esses laços de companheirismo. Se a advocacia perdeu um combativo profissional, a publicidade ganhou um quadro criativo e competente. Também muito cedo, Chico, ou Chico Mattos, como era conhecido, mudou-se para Salvador, onde se associou a um conterrâneo, Murilo Vaz, e a outro jovem profissional, para criar uma das primeiras agências de publicidade da Bahia, a GFM, cuja razão social reproduzia as iniciais de seus criadores: Gama, Francisco e Murilo. A sociedade foi boa enquanto durou, até que os três pioneiros se convenceram de que a escassez de capital não lhes permitiria enfrentar as concorrentes economicamente poderosas que descobriam o mercado baiano. Chico voltou então para o Rio de Janeiro, onde mergulhou de cabeça no mundo da publicidade e teve atuação destacada em agências do prestígio, como a Denison Propaganda, de que foi um dos principais profissionais. Certa proximidade entre publicidade e literatura levou Chico a se familiarizar com a última, e especialmente com a criação poética. Aos que o ouviam declamar poemas que selecionava com extremado bom gosto literário ocorria sempre uma interrogação: como podia alguém, como ele fazia, declamar com tanta adequação de tom, pausas e melodia criações poéticas alheias? Em algumas destas, Chico era insuperável, como na recitação dos poemas do cubano Nicolás Guillén, de quem era admirador e cuja obra conhecia como poucos no Brasil. O próprio Guillén se surpreenderia com o acento dramático que, com sua voz gutural, seus dotes de ator, sua capacidade de emocionar e se emocionar, Chico emprestava às suas criações. Engajado politicamente desde a mocidade, Chico Mattos participou ativamente das disputas eleitorais travadas no Estado do Rio de Janeiro a partir de 1978, quando as correntes progressistas do antigo Movimento Democrático BrasileiroMDB elegeram para a Câmara dos Deputados combatentes da expressão de Modesto da Silveira e Marcelo Cerqueira. Filiado a partir de 1982 ao Partido Democrático Trabalhista-PDT de Leonel Brizola, ele foi assessor comunitário do Secretário de Estado de Trabalho Carlos Alberto Caó de Oliveira Santos no primeiro Governo Brizola. Chico Mattos faleceu no dia 25 de junho no Rio de Janeiro, de complicações decorrentes de uma cirurgia cerebral. Deixou um filho e duas filhas, uma das quais lhe proporcionou grande alegria nos últimos anos de vida: foi a primeira colocada na prova de conclusão do curso do Instituto Rio Branco e oradora da turma de novos diplomatas, em solenidade presidida pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (Maurício Azêdo)

Itamar, um republicano exemplar JOSÉ CRUZ/ARQUIVO/ABR

Chico Mattos, um fã de Guillén

Quando foi Embaixador do Brasil na Itália, Itamar Franco visitou a Igreja de San Pietro in Vincoli ao lado do Presidente Lula, onde se deixou fotografar diante da imponente escultura de Moisés, de Michelangelo.

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