Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos

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DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA REALIDADE DA SAÚDE NO BRASIL E OUTROS DIÁLOGOS

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CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VALFREDO DE ANDRADE AGUIAR FILHO Coordenador de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito NÁJILA MEDEIROS BEZERRA E YULGAN TENNO DE FARIAS Coordenadores-Adjuntos de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 12.955.187/0001-66 Acesse: www.abarriguda.org.br

CONSELHO CIENTÍFICO Adriano Marteleto Godinho Adolpho José Ribeiro Alana Ramos Araújo Chirlaine Cristine Gonçalves Gisele Padilha Cadé Gustavo Rabay Guerra José Flôr de Medeiros Júnior João Peixoto Neto Laryssa Mayara Alves de Almeida Luciano do Nascimento Silva Luis Carlos dos Santos Lima Sobrinho Marconi do Ó Catão Maria Cezilene Araújo de Morais Raymundo Juliano Rego Feitosa Renato José Ramalho Alves Rômulo Rhemo Palitot Braga Ronivaldo de Oliveira Bastos Uberlandia Islândia Barbosa Dantas Vinícius Leão de Castro

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EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA E GUSTAVO RABAY GUERRA COORDENADORES

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIRA PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO ORGANIZADORES

DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA REALIDADE DA SAÚDE NO BRASIL E OUTROS DIÁLOGOS

1ª EDIÇÃO

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB

2014

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©Copyright 2014 by Editor-chefe LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E LUCIANO NASCIMENTO SILVA Coordenação do Livro EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA E GUSTAVO RABAY GUERRA Organização do Livro LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA, RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Capa PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA Editoração LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA, RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diagramação LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.

Data de fechamento da edição: 10-12-2014

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D597

Direito e Saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos / Eduardo Sérgio Soares Sousa e Gustavo Rabay Guerra (Coords.); Laryssa Mayara Alves de Almeida, Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva, Renato José Ramalho Alves e Vinícius Leão de Castro (Orgs.).– Campina Grande: AREPB, 2014. 484 p. ISBN 978-85-67494-05-0

1. Direito e Saúde I. Título.

Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. CDU 341.27 Foi feito o depósito legal.

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O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural ―A Barriguda‖, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito.

A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais.

Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural.

Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.

Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br e confira E-Books gratuitos.

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO

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Laryssa Mayara Alves de Almeida, Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva Renato José Ramalho Alves e Vinícius Leão de Castro

1.

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: UM PROBLEMA

INTERINSTITUCIONALIZADO

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Renato José Ramalho Alves e Ingrid Coderceira Costa

2. ACESSO A MEDICAMENTOS E PROPRIEDADE INTELECTUAL: PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA FORMULAÇÃO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

25

Luciana Correia Borges

3. O DEVER DE INFORMAÇÃO E A RESPONSABILIDADE

53

Emanuel Lins Galvão de Albuquerque Bastos

4. PARADIGMAS INSTITUCIONAIS E MATERIAIS PARA A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

68

João Trindade Cavalcante Filho e José Trindade Monteiro Neto

5. (DES)ASSISTÊNCIA À SAÚDE EM UMA PENITENCIÁRIA FEMININA: DIREITOS FUNDAMENTAIS

89

Josilene do Nascimento Rodrigues, Alanny Nunes de Santana e Lívia Cristina da Silva

6. A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ATRAVÉS DO PROTOCOLO DE ENTRADA DE BIOMATERIAIS DO CERTBIO/UFCG

102

Carlos Alberto Oliveira Rodrigues, Geanne Gomes de Moura e Mariana Luz Silveira

7. A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A PROMOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

116

Giovanna Paola Batista de Britto Lyra Moura

8. iA SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS DA JUSTIÇA: APROXIMAÇÕES ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO

130

Igor Diniz da Mota Silveira

9. A TRAJETÓRIA DA PSIQUIATRIA E A SUA RELAÇÃO BÁSICA COM O DIREITO

158

Arthur Cicupira Rodrigues de Assis e Ana Carolina de Souza Pieretti

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10. ATUAÇÃO JUDICIAL E DIREITO À SAÚDE

170

Marianna Cavalcante de Aguiar

11. CONSECUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: ABUSIVIDADES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR E ENTRAVES NO ACESSO À JUSTIÇA

197

Rafael Duarte Lins

12. CUIDADOS PALIATIVOS NA ÉGIDE DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

227

Francisco Bruno Santana da Costa, Eduardo Gomes de Melo, Gabriela Tavares de Oliveira e Jhayme Farias Cartaxo Lopes 13. DA MERA PROMESSA AO CUMPRIMENTO EFETIVO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: A CRISE DE IDENTIDADE DA CONSTITUIÇÃO INSINCERA

237

Paulo Fernando de Mello Franco, João Lopes de Farias da Matta e Tiago Musser dos Santos Braga

14. EUTANÁSIA: A CONJUNTURA ATUAL DIANTE DA REGULAMENTAÇÃO PÁTRIA E UMA PROPEDÊUTICA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA LEGISLATIVA ESTRANGEIRA

251

Ramon Olímpio de Oliveira, Robson Antão de Medeiros e Nayara Toscano de Brito Pereira

15. LEI DO TRATAMENTO DO CÂNCER: ESFORÇOS E OBSTÁCULOS PARA EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE

268

Antônio Alves Pontes Trigueiro da Silva, Manoel Pedro Alexandre Mineiro Simões e Silva e Winicius Faray da Silva 16. O DIREITO À SAÚDE E A QUALIDADE DOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS

285

Anaïs Eulálio Brasileiro, Elis Lucena Formiga e Milena Barbosa de Melo

17. O DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO SUPORTE AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAUDE: O EXEMPLO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA

308

João Ademar de Andrade Lima e Januária Costa dos Santos Lima

18. O ESPORTE NO PROCESSO DE RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO: POSSIBILIDADES, LIMITES E DESAFIOS

328

Adílio Moreira de Moraes, Berla Moreira de Moraes e Márcia Maria Mont‟Alverne Barros

19. OS GRAUS DE VINCULAÇÃO NA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS

345

Mônia Aparecida de Araújo Paiva e Davi Augusto Santana de Lelis

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20. REFLEXÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: A REALIDADE ENTRE OS ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS

362

Rebeka Souto Brandão Pereira e Grasiela Piuvezam

21. REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE TESTAMENTO VITAL

381

Cinthia Caroline Luiz do Nascimento

22. SUICÍDIO ASSISTIDO E A COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À VIDA VERSUS DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

398

Ingrid Coderceira Costa e Lorena Daniely Lima de Castro

23. FERTILIZAÇÃO IN VITRO: UMA ANÁLISE DO PROCEDIMENTO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DAS CORTES INTERAMERICANA E EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

412

Ana Cláudia Ruy Cardia

24. O DESAFIO DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS E A RESPONSABILIDADE DOS DEMAIS ATORES INTERNACIONAIS PARA COM A SUA EFETIVAÇÃO

434

Lucília Napoleão Barros

25. A OBRIGAÇÃO DE MEIOS E RESULTADO NA MEDICINA: UMA OPORTUNIDADE DE QUESTIONAMENTO

456

André Fonseca Guerra

26. A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA COM FINS MEDICINAIS SOBRE O OLHAR DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO

470

Rossana Tavares de Almeida e Edeurlan Albino Duarte

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APRESENTAÇÃO Entre os dias 23 e 24 de maio de 2014, ocorreu, em João Pessoa (PB), a I Conferência Brasileira de Direito e Saúde (I CBDS), uma iniciativa do corpo docente e discente da Universidade Federal da Paraíba, com o apoio de várias outras instituições. A Conferência, realizada sob a coordenação dos professores Dr. Gustavo Rabay Guerra (CCJ-UFPB) e Dr. Eduardo Sérgio Soares Sousa (CCM-UFPB), teve o objetivo proporcionar discussões sobre diversos pontos de comunicação entre as áreas do Direito e da Saúde. Durante os dois dias de evento, profissionais de renome nacional e internacional das duas áreas e de outras afins, representantes de entidades públicas e privadas, acadêmicos e agentes políticos participaram de debates divididos em quatro principais temas: a) judicialização da saúde; b) políticas públicas da saúde; c) desdobramentos jurídicos do exercício dos profissionais da área da saúde, e; d) direito fundamental. O evento também contou com um concurso de artigos, os quais foram defendidos presencialmente por seus autores. Os melhores trabalhos, selecionados por uma seleta Comissão Científica, estão sendo publicados, através deste livro. Nesse sentido, para a seleção e publicação dos trabalhos, o evento contou com a parceria da consolidada Revista Jurídica A Barriguda (ISSN n° 2236-6695). A obra, registrada na Biblioteca Nacionalsob o ISBN n° 978-85-67494-05-0, pode ser acessada virtualmente por meio do website da revista (www.abarriguda.org.br). Assim, com muita satisfação, os organizadores desta obra têm a honra de apresentar os artigos frutos das discussões promovidas pela I CBDS, elaborados por pesquisadores de várias instituições nacionais e internacionais de ensino superior, que apresentam olhares e reflexões inovadoras no âmbito das relações entre as Ciências Jurídicas e da Saúde. João Pessoa, Paraíba.

Laryssa Mayara Alves de Almeida Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva Renato José Ramalho Alves Vinícius Leão de Castro

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A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: UM PROBLEMA INTERINSTITUCIONALIZADO

Ingrid Coderceira Costa1 Renato José Ramalho Alves2 Sumário: 1 Introdução. 2 O Direito à Saúde no Brasil e o Sistema Único de Saúde. 3 A Judicialização da Saúde no Brasil. 4 Alternativas à Judicialização da Saúde. 5. Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisa o tema da judicialização da saúde no Brasil, buscando, sem esgotar o assunto, apontar, com base em mecanismos já existentes, algumas alternativas viáveis à solução do problema. Desde já, delimita-se que o estudo ora exposto tem como enfoque as ações e as políticas públicas de saúde por parte de entes públicos, excluindo-se a análise da questão sob a ótica dos particulares que atuam na prestação de serviços de saúde, tal como os planos de saúde e as cooperativas. Com efeito, no Brasil, atualmente, a necessidade de efetivação do direito constitucionalmente previsto à saúde se contrapõe à dificuldade vivenciada pelo Sistema Único de Saúde brasileiro em prover meios que logrem, de fato, garantir este direito a toda a coletividade. A opção pela esfera judicial, por isso, vem se tornando uma das principais alternativas a garantia do direito à saúde. Principalmente por meio de medidas liminares 3, vem sendo assegurado, por nossos Tribunais, que os indivíduos obtenham suas pretensões. A esse fenômeno convencionou-se chamar de judicialização da saúde. Entretanto, essa garantia – quase irrestrita – que vem sendo proporcionada judicialmente ocasiona diversas implicações econômicas, orçamentárias e estruturais em todas as esferas do setor público. Isto porque a judicialização da saúde tornou-se excessiva,

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Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba; Servidora pública do Município de João Pessoa, com atuação em demandas judiciais sobre a saúde. 2 Pós-graduando em Direito Tributário pela Escola Superior da Advocacia Flósculo da Nóbrega (ESA/OAB-PB); Pesquisador do Projeto de Pesquisa "Justiça e Política: Constitucionalismo, democracia e ativismo jurídico" (UFPB/CNPq); Realizou estágio jurídico na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (2014). 3 Medidas liminares são decisões judiciais concedidas in limine litis, ou seja, no início da lide, em regra, sem que tenha havido ainda a oitiva da parte contrária (cf. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil, vol 2. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 538).

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acarretando uma sobrecarga de processos pelos diversos Tribunais do país, configurando-se como um dos principais assuntos a serem discutidos por todos os entes envolvidos no meio jurídico, administrativo e político. Por isso, o desafio atual é encontrar medidas que tentem amenizar esta problemática. Nesse sentido, a seguir, será analisado o contexto que levou ao surgimento da judicialização da saúde, sendo, posteriormente, apontadas alternativas já existentes que vêm se mostrando bastantes eficazes para atenuar os efeitos do fenômeno ora estudado.

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O DIREITO À SAÚDE NO BRASIL E O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

O quadro crítico vivenciado pela população brasileira no final da década de 1970 e início da década de 1980, resultado de um agravamento das carências da sociedade, e da decadência do regime militar, desencadeou inúmeras reivindicações por parte da população brasileira, a fim de maiores direitos e garantias na área social4. Naquela época, um dos maiores movimentos organizados da sociedade civil foi o Movimento da Reforma Sanitária, que se destacou por sua luta pela democratização da saúde. De acordo com Cohn5, tratou-se de um movimento que buscava o desenvolvimento de instituições e a organização do aparato institucional da saúde. A Reforma Sanitária fez parte do Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que ocorreu em 1986, indicada como um projeto a ser implementado através de um conjunto de ações e políticas da saúde. As ideias discutidas naquela Conferência tiveram forte influência para elaboração da Constituição de 1988 – obviamente, no que se refere às normas sobre o direito à saúde – e da Lei Orgânica da Saúde ou Lei do SUS (Lei nº Lei nº 8.080/90). Com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, o direito à saúde, pela primeira vez em nosso sistema constitucional, foi elevado ao patamar de direito fundamental e universal, previsto no art. 6º do texto constitucional. A saúde, assim, foi inserida no rol dos direitos sociais pertencentes àqueles ligados ao mínimo existencial – reconheceu-se, pois, sua essencialidade à vida humana.

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O direito à saúde, doutrinariamente, é amplamente reconhecido como um dos mais importantes direitos sociais. Nas palavras de Ferreira Filho, ―como as liberdades públicas, os direitos sociais são direitos subjetivos. Entretanto, não são meros poderes de agir- como é típico das liberdades públicas de modo geral – mas sim poderes de exigir. São direitos de ‗crédito‘‖ (in: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 67-68). 5 COHN, Amélia. Saúde e cidadania: análise de uma experiência de gestão local. In: EIBENSCHUTZ, Catalina. (org.). Políticas públicas: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p. 318.

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De acordo com a Constituição de 1988, é competência material comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde pública (art. 23, II). No art. 24 e parágrafos da Carta Magna, há a previsão de que a competência para legislar sobre a defesa da saúde será concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal. Nesse sentido, a União é competente para elaborar normas gerais sobre o tema, devendo ser respeitadas pela legislação dos estados e do Distrito Federal (§1°), os quais, nesse caso, poderão estabelecer normas de caráter suplementar (§2°). Não exercendo a União sua competência de instituir normas gerais, cabe aos estados – e ao Distrito Federal (por analogia) – a competência legislativa plena, até que sobrevenha a norma federal (§3°). A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual – ou distrital –, no que lhe for contrário (§4°)6. Nossa Constituição ainda dispõe, em seu art. 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Acerca do direito à saúde em nossa Constituição, disserta Ingo Sarlet que [...] o direito a saúde pode ser considerado como constituindo simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como – e esta a dimensão mais problemática – impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetivação deste direito para a população, tornando, para, além disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de medicamentos, realização de exames da mais variada natureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização concreta deste direito à saúde7.

Seguindo esse entendimento, Canotilho8 entende que o direito à saúde possui duas vertentes distintas, sendo uma delas de natureza negativa, relacionado ao direito do cidadão de exigir do Estado e de particulares que deixem de praticar atos que prejudiquem sua saúde, por outro lado, positiva, no sentido de ter o povo o direito ao acesso adequado a serviços de saúde prestados sob responsabilidade do Estado. 6

Nas hipóteses de competência concorrente, estabelece-se verdadeira situação de condomínio legislativo entre a União Federal e os Estados-membros (in: HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 366). 7 SARLET. Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição Federal de 1988. Revista diálogo jurídico. n. 10, jan/2002. Salvador: Bahia. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 out. 2014. 8

Apud José Afonso da Silva, Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 188.

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Nesse sentido, o cabe ao Estado brasileiro reger as políticas de saúde, e, especificamente, aos Poderes Executivos – de todas as esferas – desenvolverem e executarem essas políticas de maneira mais abrangente e eficaz possível. Com efeito, o direito à saúde está intimamente ligado ao direito a uma vida digna. Nesse sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, conforme se depreende do seguinte trecho do julgamento do AgR-RE n° 393.175-RS: O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atenção no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

Nesse contexto, após o advento da nova ordem constitucional, outra importante inovação, também influenciada pelo Movimento de Reforma Sanitária, foi a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, regulamentado pela Lei nº 8.080/90. O SUS compreende o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público (art. 1° da Lei nº 8.080/90). Com o advento do SUS, o Brasil se tornou um dos únicos países que asseguram a universalidade do acesso à saúde à sua população. O Estado, assim, deve oferecer ao cidadão, desde o atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e igualitário para toda a população do país, sendo responsável pela formulação da política de medicamentos, equipamentos e outros insumos de relevância para a saúde. Essas inovações proporcionaram uma grande mudança no que tange ao modo de elaboração das políticas da saúde e do regramento do direito à saúde no Brasil, sendo ele hoje reconhecido como um direito relacionado ao mínimo existencial dos indivíduos. Por isso, é dever do Estado a sua garantia, de modo gratuito e igualitário, sem qualquer espécie de discriminação9. Dentre os princípios que fundamentam e norteiam a atuação do Sistema Único de Saúde, encontram-se o da descentralização, universalidade e integralidade no atendimento10. 9

BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília: Ministério da Saúde, 2000, p. 5. 10 O princípio da descentralização acarreta a transferência das políticas de saúde do nível federal, para os estados e municípios. A universalidade garante o acesso às ações e serviços de saúde a todos aqueles que deles necessitam. Já pelo princípio da integralidade, deve-se considerar as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades; para isso, é preciso garantir o acesso às ações de promoção, prevenção de riscos e agravos, assistência e recuperação.

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O princípio da descentralização acarreta a transferência das políticas de saúde do nível federal, para os demais entes federativos. A universalidade garante o acesso às ações e serviços de saúde a todos aqueles que deles necessitam. Já pelo princípio da integralidade, deve-se considerar as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades; para isso, é preciso garantir o acesso às ações de promoção, prevenção de riscos e agravos, assistência e recuperação. Como consequência do princípio da descentralização, o SUS proporcionou o fenômeno denominado de municipalização da saúde, no qual a proteção e a garantia do direito à saúde deve ser iniciada nos municípios, através da criação de políticas públicas que atendam às necessidades específicas das comunidades locais, seja por meio de tratamento ou de prevenção11. Dessa forma, a União e os estados devem executar de forma direta as políticas públicas sanitárias de maneira suplementar, objetivando suprir eventuais ausências por parte dos municípios12. Por outro lado, além de criar um sistema abrangente, buscou-se, com o SUS, elaborar mecanismos que atuassem de modo pluralista e democrático, ouvindo os entes sociais envolvidos. Essa busca por uma maior participação da comunidade remete às lutas do Movimento de Reforma Sanitária, que proporcionaram o impulso inicial para a criação deste sistema13. Assim, percebe-se que, com a nova ordem constitucional e com a regulamentação do SUS, almejou-se tornar mais eficaz as ações e políticas públicas da saúde no Brasil. No entanto, como será analisado a seguir, atualmente, as inúmeras deficiências do setor público nessa área levam, muitas vezes, o cidadão a acionar o Poder Judiciário, a fim de ver satisfeito seu direito a receber o adequado serviço público de saúde por parte do Estado.

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A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL

O fenômeno da judicialização da saúde é recente no Brasil. Antes da Constituição Federal de 1988, as ações envolvendo direito à saúde no Brasil eram, em regra, provenientes 11

Cf. LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988: caracterização e efetividade. Revista de Doutrina da 4º Região. Porto Alegre, n. 01, jun. 2004. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao001/alexandre_lippel.htm.>. Acesso em: 15 out. 2014. 12 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 13 BRASIL. Ministério da Saúde, op. cit, p. 6.

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da atuação do Ministério Público, através da ação civil pública, instrumento processual adequado para proteger os interesses difusos da sociedade, além de ser uma espécie de controle sobre os atos do poder público. Entretanto, a regra começou a mudar, principalmente após o desenvolvimento das atividades da Defensoria Pública, com o advento da nova ordem constitucional. Assim, há quase três décadas, através das defensorias, vêm sendo propostas diversas demandas individuais, com o objetivo de se obter uma tutela jurisdicional que garanta o direito à saúde. Some-se a isto o fato de que as Defensorias Públicas, com a promulgação da Lei nº. 11.448/2007, que alterou a redação do art. 5º, inciso II, da Lei nº. 7.347/85, passaram a figurar como legitimadas ativas da ação civil pública, o que ocasionou um aumento do número de ações coletivas sobre o tema. Por outro lado, a Advocacia (particular) também começou a contribuir para o aumento de ações versando sobre o direito a saúde. Com as novas regras previstas na Constituição e na legislação infraconstitucional, inúmeros advogados começaram a se especializar no tema e iniciaram a prestação de serviços advocatícios voltados para demandas que almejassem a condenação dos entes federativos a uma prestação de serviço de saúde eficiente para seus clientes. Um movimento relevante para a mudança de paradigma quanto às ações judiciais sobre o direito à saúde ocorreu a partir de meados da década de 1990. Naquele período, inúmeros pacientes contaminados pelo vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV) começaram a se unir por meio de Organizações Não Governamentais (ONGs) e outras espécies de associações, para a defesa de seus direitos. Um dos principais objetivos dessas instituições era pleitear, na esfera judicial, o fornecimento, pela Administração Pública, de medicamentos necessários ao tratamento da AIDS. Um marco na luta dessas organizações se deu quando uma liminar, requerida contra o Estado de São Paulo, foi julgada favorável, em 25 de julho de 1996, por meio de uma demanda judicial apresentada por uma associação constituída sob a forma de um grupo de apoio à prevenção à AIDS, determinando o fornecimento gratuito de medicamentos antirretrovirais para HIV/AIDS pelo Poder Público. A decisão abriu precedente para o ajuizamento de várias demandas que viriam a sobrecarregar os tribunais brasileiros nos anos seguintes, proporcionando um expressivo impacto orçamentário para a Administração Pública, sobretudo, na cidade de São Paulo.

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De acordo com Machado14, até o início da década de 1990, praticamente todas as ações ajuizadas no judiciário eram sumariamente negadas. Os magistrados baseavam suas decisões negativas na interpretação do art. 196 da Constituição Federal, considerando-a uma norma programática, não passível de produzir efeitos jurídicos imediatos. Foi graças às inúmeras demandas ajuizadas para a obtenção do fornecimento dos medicamentos aos pacientes portadores do vírus HIV que, em 1996, foi promulgada a Lei Federal n. 9.313/96, que garantiu a distribuição de antirretrovirais de maneira universal e gratuita, instituindo a obrigação solidária dos entes federativos. A promulgação da referida lei é considerada um marco no direito à saúde no Brasil e provocou um aumento dos pleitos acolhidos no âmbito do judiciário. O fenômeno se espalhou pelo país, ocasionando um crescimento alarmante no número de ajuizamento de ações requerendo medicamentos para outras doenças além do HIV, bem como cirurgias, exames e tratamentos dos mais diversos. De outra banda, o crescimento do número das demandas judiciais também fora acentuado em virtude das mudanças do entendimento dos magistrados sobre o tema. A partir das mencionadas inovações legislativas, compreende-se, atualmente, que cabe à Administração Pública, solidariamente, em todas as esferas, implementar políticas públicas e meios eficazes de acesso aos medicamentos e tratamentos de saúde em favor dos cidadãos. Nesse sentido, em 2005, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n° 771.537/RJ, sedimentou seu posicionamento – que permanece hígido até hoje –, no sentido que o funcionamento do SUS é de responsabilidade solidária da União, dos estados (e Distrito Federal) e dos municípios, ―de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros". Mais do que nunca, percebe-se, claramente, o desenvolvimento do fenômeno da judicialização da saúde. Para Barroso15, o termo ―judicialização‖ significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo. [...] Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. 14

MACHADO, Felipe. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v.9, n.2, pp.73-91, 2008, p.78. 15 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [s.d.], [s.l]. Disponível em: < http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ ArtigoBarroso_para _Selecao.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014, p. 3

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Para Vieira, nem só por aspectos negativos é caracterizada a judicialização. Ela poderá estimular, por exemplo, fora do âmbito judiciário, a efetivação de políticas públicas mais adequadas às necessidades da população, além de evitar a negligência do Estado, principalmente em casos mais graves de risco de vida16. A judicialização possui, assim, um viés pedagógico para o Poder Executivo, que buscará, previamente, evitar o problema, sob pena de ter que solucioná-lo no âmbito judicial, arcando com maiores e inesperados custos. No entanto, o fenômeno da judicialização da saúde, no Brasil, é marcado, preponderantemente, pelas dificuldades por ele causadas, gerando inúmeras discussões acerca dos problemas de gestão do Poder Público na área da saúde. É perceptível, por exemplo, sérias complicações orçamentárias, sobrecarregando as finanças públicas. Isto porque, na maior parte das vezes, os custos advindos de uma demanda judicial são arcados de forma não planejada, sendo o ente público obrigado a realocar recursos, a fim de cumprir decisões judiciais que, e. g., determinam o fornecimento de determinado medicamento. Acerca do tema, ressalta Luiz Carlos Romero17: Atualmente, os governos federal, estaduais e municipais – gestores do SUS – sofrem uma avalanche de ordens judiciais determinando a dispensação de medicamentos, o que gera efeitos negativos, especialmente sobre o gerenciamento da assistência farmacêutica nos estados e sobre os seus benefícios diretos, como a interrupção do tratamento de pacientes regulares em razão da transferência de medicamentos em estoque que lhe seriam destinados para pacientes beneficiados por determinação judicial [...]. Essas decisões da Justiça comprometem, assim, a dispensação regular, o atendimento de prioridades definidas e a implementação das políticas de assistência farmacêutica aprovadas, já que os gestores precisam remanejar recursos vultosos para atender situações isoladas.

Por outro lado, Barroso destaca que a judicialização da saúde, embora existente como pretexto de promover os direitos fundamentais à saúde de determinados indivíduos, pode causar graves lesões a direitos da mesma natureza de outros18. Muito se questiona sobre decisões judiciais que impõem ao Poder Público, por exemplo, o fornecimento de determinada cirurgia a um paciente, quando, na verdade, existiam outros cidadãos em posições anteriores na ―fila‖ do SUS, necessitando com mais rapidez de tal procedimento. 16

VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista Saúde Pública, São Paulo, v.41, n.2, pp.214-222, 2007, p.221. 17 ROMERO, Luiz Carlos. Judicialização das políticas de assistência farmacêutica: o caso do distrito federal. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal; 2008. Disponível em <http://www.senado.gov.br/senado/coleg/ textos_discussão>. Acesso em: 19 abr. 2014. 18 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 4.

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Tratar-se-ia de uma preterição em desfavor daqueles que possuem menos condições de recorrer ao Judiciário? Além do mais, o excesso de proposituras de demandas judiciais que buscam tutelas jurisdicionais para a obtenção de determinado medicamento ou tratamento de saúde provocam iniquidades no acesso à justiça, principalmente quando são manifestamente infundadas, eis que tais demandas, quase sempre, têm prioridade sobre os outros processos judiciais19. Segundo Barroso20, tais excessos de demandas podem inviabilizar a implantação de políticas coletivas, direcionadas a promover a saúde pública de uma forma ampla. Isto porque o direito à saúde, assim como os demais direitos sociais, requer, principalmente, uma prestação positiva por parte do Estado: construção de hospitais, fornecimentos de medicamentos, adoção de medidas preventivas etc. Por isso, o direito à saúde encontra-se relacionado diretamente à reserva do possível, isto é, encontra limitação na disponibilidade de recursos públicos para sua implementação21. Noutro giro, conforme já ressaltado, o direito à saúde está no cerne do mínimo existencial a uma vida digna, com base na dignidade da pessoa humana. Trata-se, pois, de um núcleo essencial das garantias constitucionais, devendo os entes federativos promovê-lo na maior extensão possível, seja de forma coletiva ou individual22. Dessa forma, a grande questão gira em torno de como compatibilizar as necessidades na área da saúde da população com os limitados recursos públicos. Nesse sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, na Audiência Pública n.º 04 de 2009, que discutia as principais temáticas envolvendo as ações de prestação da sanitária, no intuito de esclarecer questões técnico-científicas, administrativas, político-econômicas e jurídicas relacionadas ao tema, fez a seguinte análise: O fato é que a judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania e para a realização do direito social à saúde, por outro, as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão perante os elaboradores e 19

Cf. VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis, Rio de Janeiro, v.20, n.1, p.77-100, 2010, p. 79-80. 20 Ibidem. 21 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ano 1, n. 1, p. 217-218. 22 BARROSO, Luis Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Interesse Público. 2007, p. 10. Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/saude/Saude__judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.

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executores das políticas públicas, que se vêm compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelos governos para a área da saúde e além das possibilidades orçamentárias. A ampliação dos benefícios reconhecidos confronta-se continuamente com a higidez do sistema (informação verbal).

Buscando solucionar o problema, caso a caso, a jurisprudência dos tribunais superiores tende a se posicionar no sentido de que há inoponibilidade da reserva do possível ao mínimo existencial, principalmente naqueles casos em que há grave risco à vida e ausência de demonstração de impossibilidade financeira. Nesse sentido, no fim de 2014, quando do julgamento do AgRg no REsp 1107511/RS, que versava sobre uma demanda judicial onde se impôs o fornecimento de medicamentos ao Poder Público, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que os órgãos do Poder Judiciário podem, inclusive, determinar ―a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal‖. Entretanto, por outro lado, é possível encontrar recentes decisões do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, para a imposição, em face do Poder Público, do custeio de uma cirurgia, faz-se necessário, além da demonstração da necessidade do procedimento, a ineficácia de outras alternativas, ou seja, que o jurisdicionado, ao menos, tenha tentado satisfazer sua pretensão na esfera administrativa. Esse foi o entendimento, por exemplo, do Ministro Presidente do Tribunal, Ricardo Lewandoski, na STA n° 748. 4

ALTERNATIVAS À JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

Após o reconhecimento, pelo Judiciário, Executivo Legislativo, dos efeitos negativos causados pela judicialização da saúde, iniciou-se o desenvolvimento de medidas a serem tomadas, de forma cooperativa entre os diversos órgãos públicos, para atenuar o problema. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Resolução nº 31/2010, com base na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, em 27/04/2009, quando foram ouvidos advogados, defensores públicos, promotores, procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos e outros profissionais especialistas na área da saúde. A resolução recomendou aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e os Tribunais Regionais Federais que celebrassem convênios com profissionais da saúde, com

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a finalidade de fornecer apoio técnico-especializado, subsidiando os magistrados e demais operadores do Direito, em relação às demandas envolvendo o direito à saúde. Dessa forma, com base na Recomendação nº 31/2010 do CNJ, alguns Tribunais vêm implementando importantes mecanismos de auxílio aos magistrados no que se refere às demandas envolvendo o direito à saúde. Por meio de mecanismos interinstitucionalizados, busca-se, por exemplo, analisar a real necessidade do medicamento pleiteado, as circunstâncias da patologia alegada pelo autor da demanda e o medicamento ou insumo adequado ser concedido. Nesse aspecto, tem destaque a criação do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT), que entrou em funcionamento em fevereiro de 2009, atuando junto a diversas varas da comarca do Rio de Janeiro. O NAT foi constituído por meio de um convênio firmado entre o TJRJ e a Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro23. É formado por uma equipe é composta por funcionários de várias áreas distintas: funcionários administrativos, farmacêuticos, nutricionistas, enfermeiros e médicos. Possui como função principal a de emissão pareceres técnicos baseados no binômio necessidade/utilidade, isto é, observando-se a real eficácia do tratamento solicitado e o menor custo diante do objeto da ação. Por meio da atuação do NAT, também evita-se interferências externas ligada a interesses particulares, como dos laboratórios ou fabricantes de produtos farmacêuticos. O NAT possui um banco de dados onde os processos sobre o direito à saúde são devidamente cadastrados e, posteriormente, distribuídos aos membros da equipe para análise e posterior parecer técnico. Após emissão do parecer, o documento é enviado à coordenação de revisão e, por último, retorna para o cartório ou secretaria do juízo que o solicitou. Nos casos em que o medicamento exista na lista do SUS e está disponível, sendo oferecido gratuitamente à população, o autor da demanda é orientado a se encaminhar ao local de distribuição e retirá-lo, dando fim ao processo. Dessa forma, o Núcleo ajuda a impedir a compra desnecessária de medicamentos, evitando, até mesmo, fraudes nesse tipo de solicitação e o consequente desperdício de dinheiro público24. Outros estados como o Paraná, Espírito Santo, Pernambuco e Piauí também introduziram seus respectivos NATs, no intuito de reduzir os impactos da judicialização da 23

COSTA, Aline da; FERREIRA, Siddharta. Núcleo de assessoria técnica e judicialização da saúde: constitucionais ou inconstitucionais?SIRJ, Rio de Janeiro, v.20, n. 36, p. 219-240, abr. 2013, p. 221. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/371/345>. Acesso em: 23 out. 2014. 24 CASTRO, Kátia Regina Tinoco Ribeiro de. Os juízes diante da judicialização da saúde: o NAT como instrumento de aperfeiçoamento das decisões judiciais na área da saúde. Dissertação de mestrado – Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2012, p. 41. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9769/K%C3%A1tia%20Regina%20Tinoco%20Ri beiro%20de%20Casatro.pdf?sequence=1>. Acesso em: 23 out. 2014.

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saúde. No que se refere à estrutura e à finalidade do órgão nesses estados mencionados, elas se assemelham ao do TJRJ, isto é, almejam proporcionar um auxílio técnico aos magistrados nas suas tomadas de decisão25. Por sua vez, o Comitê Interinstitucional de Resolução Administrativa de Demandas da Saúde (CIRADS) foi fundado no Rio Grande do Norte, a partir de uma cooperação formalizada em 22 de julho de 2009 entre diversos órgãos que atuam junto ao Poder Judiciário26. A atuação do CIRADS se dá através da utilização da conciliação como meio de reduzir a judicialização, solucionando os conflitos através da via administrativa . Também atua junto à Administração Pública, no intuito de buscar uma melhoria das políticas públicas direcionadas à saúde, assim como o aprimoramento do SUS. Por outro lado, a Câmara Técnica de Saúde (CTS) foi implementada no Município de João Pessoa, na Paraíba, em 2013, constituindo-se como um órgão colegiado consultivo, vinculado ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo do Estado da Paraíba e do Município de João Pessoa. A equipe multidisciplinar que compõe a CTS possui, ao total, oito profissionais, sendo dois médicos, dois nutricionistas e quatro farmacêuticos, tendo como atribuições semelhantes aos NATs, ou seja, o auxilio aos magistrados na tomada de decisões, através da emissão de pareceres técnico-científicos, baseados nas informações e documentos contidos nos autos. Para se garantir uma maior agilidade nos processos da saúde, estipulou-se que o prazo para o envio do parecer pela CTS é, em regra, de até quarenta e oito horas, ou seja, muito menor que o tempo necessário para a realização de uma perícia técnica, como ocorreria em processos sobre outras matérias. Com efeito, a importância da atuação de mecanismos como o NAT, o CIRADS e a CTS ultrapassa o âmbito do Poder Judiciário. Na verdade, tais as atividades desenvolvidas por tais organismos ajudam os gestores públicos a visualizarem as áreas em que se devem alocar maiores recursos públicos, bem como quais políticas públicas tornaram-se necessárias para a sociedade. Através de tais experiências, é possível perceber que, para combater os efeitos negativos da judicialização da saúde, é fundamental constituir um diálogo direto e constante 25

COSTA, Aline da; FERREIRA, Siddharta, op. cit., p. 227. Especificamente: a Procuradoria da União no Estado do Rio Grande do Norte (vinculada à Advocacia Gerald a União); a Defensoria Pública da União no Estado do Rio Grande do Norte; a Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Norte; a Procuradoria Geral do Município de Natal; a Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte e a Secretaria Municipal de Saúde de Natal. Em 2014, a cooperação recebeu a adesão da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte. 26

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entre os diferentes órgãos e as esferas políticas acerca do problema, a fim de se estabelecer, entre eles, uma atuação conjunta e cooperativa.

5

CONCLUSÃO De acordo com o que fora abordado, é possível concluir que é iminente a necessidade

de formulação e de adoção de medidas que visem combater a excessiva judicialização da saúde existente no Brasil, principalmente, quando se percebe a dimensão que este fenômeno vem tomando nos últimos anos. A problemática surgiu, notadamente, após o advento da Constituição de 1988 e da Lei do SUS (Lei nº 8.080/90), que determinam a responsabilidade solidária dos entes federativos para garantir a integralidade, universalidade e descentralização do acesso à saúde no Brasil. Acrescente-se a isto o fato de que o desenvolvimento do princípio da dignidade humana em nosso ordenamento jurídico ocasionou uma acentuada mudança de posicionamento dos tribunais, cada vez mais sensíveis às demandas que versam sobre o direito à saúde. Ocorre

que

são

inúmeras

as

consequências

negativas

ocasionadas

pela

judicialização, dentre elas, destacam-se os impactos orçamentários e a priorização de determinados pacientes em face de outros, o que vai de encontro com as metas e planejamento do próprio SUS. Observa-se, assim, que as medidas que foram implementadas em alguns estados do Brasil, a exemplo do Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Paraíba, mostraram-se como alternativas viáveis para a redução dos altos índices de processos, em face da Administração Pública, envolvendo a prestação de serviços de saúde, fornecimento de produtos ou medicamentos. Nesse sentido, embora não sejam suficientes para a solução completa do problema, mecanismos como o Comitê Interinstitucional de Resolução Administrativa de Demandas da Saúde (CIRADS), os Núcleos de Assessoria Técnica (NATs) e as Câmaras Técnicas (CTs) têm fornecido importante auxílio para o combate aos efeitos da judicialização. É possível perceber que tais instrumentos atuam de forma semelhante, promovendo uma análise de cada caso de uma forma racional e isenta, além de promover a colaboração mútua entre diversos órgãos estatais. Servem, pois, de modelos a serem implementados nos demais estados brasileiros, a fim de expandir a busca por medidas alternativas à judicialização, que efetivem, de fato, o direito à saúde em nosso país.

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Dessa forma, a solução do problema da judicialização da saúde, embora distante, parece se pautar pelo caminho da cooperação interinstitucional, com a atuação conjunta, de forma colaborativa, de diversos órgãos da Administração Pública.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. ______. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Revista Interesse Público. 2007. Disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-deapoio/publicacoes/saude/Saude_-_judicializacao_-_Luis_Roberto_Barroso.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014. ______. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [s.d.], [s.l]. Disponível em: < http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretária Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília: Ministério da Saúde, 2000. CASTRO, Kátia Regina Tinoco Ribeiro de. Os juízes diante da judicialização da saúde: o NAT como instrumento de aperfeiçoamento das decisões judiciais na área da saúde. Dissertação de mestrado – Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/9769/K%C3%A1tia%20Re gina%20Tinoco%20Ribeiro%20de%20Castro.pdf?sequence=1>. Acesso em: 23 out. 2014. COHN, Amélia. Saúde e cidadania: análise de uma experiência de gestão local. In: EIBENSCHUTZ, C. (org.). Políticas públicas: o público e o privado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996. COSTA, Aline da; FERREIRA, Siddharta. Núcleo de assessoria técnica e judicialização da saúde: constitucionais ou inconstitucionais? SIRJ, Rio de Janeiro, v.20, n. 36, p. 219-240, abr. 2013. Disponível em: <http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/371/345>. Acesso em: 23 out. 2014. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil, vol 2. Salvador: Juspodivm, 2013. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2010. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 24


LIPPEL, Alexandre Gonçalves. O direito à saúde na Constituição Federal de 1988: caracterização e efetividade. Revista de Doutrina da 4º Região. Porto Alegre, n. 01, jun. 2004. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao001/alexandre_lippel.htm.>. Acesso em: 15 out. 2014. MACHADO, Felipe. Contribuições ao debate da judicialização da saúde no Brasil. Revista de Direito Sanitário, São Paulo v.9, n.2, pp.73-91, 2008.

ROMERO, Luiz Carlos. Judicialização das políticas de assistência farmacêutica: o caso do distrito federal. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal; 2008. Disponível em <http://www.senado.gov.br/senado/coleg/ textos_discussão>. Acesso em: 19 out. 2014. SARLET. Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na Constituição Federal de 1988. Revista diálogo jurídico. n. 10, jan/2002. Salvador: Bahia. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 out. 2014.

_____; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ano 1, n. 1, jul./dez., pp. 179-234, 2008. SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2012.

VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis, Rio de Janeiro, v.20, n.1, p.77-100, 2010. VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista Saúde Pública, São Paulo, v.41, n.2, pp. 214-222, 2007.

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ACESSO A MEDICAMENTOS E PROPRIEDADE INTELECTUAL: PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL NA FORMULAÇÃODA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Luciana Correia Borges1

Sumário: 1 Introdução.2Regime de Propriedade Intelectual e o Interesse Público. 2.1 Aspectos Gerais. 2.2 AIndústria Farmacêutica e as Doenças Epidêmicas. 3 Os Atores da Sociedade Civil e a Evolução do Assistencialismo Brasileiro nas Questões de Saúde Pública. 3.1 LicençaCompulsória e o Caso HIV/AIDS. 4 A Participação da Sociedade Civil sob a Ótica da Análise de Política Externa. 4.1 OProcesso BottomUp. 4.2 A Utilização do Soft Power na Política Externa BrasileiraAtravés da Diplomacia da Saúde Global e o Papel da Sociedade Civil no Suporte dessa Política. 5 Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar o engajamento da sociedade civil na formulação da política externa brasileira no que tange a saúde pública e o acesso a medicamentos. Para tanto, optou-se por focar na problemática em torno das doenças epidêmicas, principalmente a HIV/AIDS; tratando das discordâncias que permeiam as flexibilidades do sistema internacional de proteção à propriedade intelectual e da participação do Brasil nas discussões e negociações que envolvem direitos de propriedade intelectual e saúde pública,ao longo da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). A batalha sobre o acesso a medicamentos essenciais gira em torno, além de outras questões,da fabricação e exportação de medicamentos, o que esbarra nas normas internacionais de proteção a propriedade intelectual, que regulam a possibilidade dos Estados emitirem licença compulsória e fazerem uso da importação para paralela para ampliar a capacidade de produção de genéricos e ampliar o acesso a fármacos essenciais. Em contrapartida, o Brasil, junto às organizações não governamentais (ONGs) e outros países em desenvolvimento,tem procurado esclarecer interpretações e aplicarnormas que permitam maiores acesso a conhecimento protegido2, por um lado, evitando a produção 1

Graduanda dos cursos de Relações Internacionais (UFPB) e Direito (UNIPÊ). Esse debate e a pressão dos países em desenvolvimento acarretou no avanço para os que defendem a maior flexibilização do TRIPS através da Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaração de Doha) OMC e, posteriormente, da implementação da emenda adotada pelo Conselho-Geral da Organização Mundial do Comércio, em 6 de dezembro de 2005, que consiste em incluir no texto do Acordo TRIPS o teor da Decisão do Conselho-Geral da OMC, adotada em 30 de agosto de 2003 (a qual regulamenta o Parágrafo 6 da Declaração Ministerial de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública), mediante a flexibilização das normas constantes no artigo 31 do TRIPS; e do acréscimo de um anexo ao Acordo TRIPS relativo ao licenciamento compulsório de patentes.O 2

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de normas específicas que aumentem os períodos de proteção; assim como, por outro, através da utilização de prerrogativas existentes no sistema internacional como a emissão de licenças compulsórias, da importação paralela e da fabricação e exportação de medicamentos genéricos. Voltando-se especificamente para o Regime Internacional de Propriedade Intelectual, temos como padrão mínimo de regimento o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS, na sua silha em inglês – acordo da OMC que foi negociado na Rodada Uruguai de negociações, entre 1986-1994, por parte dos membros da OMC. Esse estabelece certas regras relativas aos direitos de propriedade intelectual com o objetivo de estabelecer um conjunto uniforme de regras em todo o mundo, visando certa padronização, previsibilidade e estabilidade nas relações econômicas internacionais. Nesse cenário de padronização das normas, os Direitos de Propriedade Intelectual (DPIs) passaram a ser contestados, posto que o conhecimento é, ao mesmo tempo, uma forma de capital e um bem público, mas as discussões tornaram-se mais agudas desde a entrada do Acordo TRIPS da OMC, em 1995. Desde então, essa estrutura internacional de DPIstem sido quase exclusivamente dominada por interesses privados, especialmente os da indústria farmacêutica, originários, na sua grande maioria, em países desenvolvidos. Isso sugere que a política de propriedade intelectual é mais voltada para os interesses comerciais dos produtores do que para uma concepção imparcial de interesse público(MUZAKA, 2011; SELL, 2007). Entretanto, no que concerne o acesso a medicamentos, as ONGs e os países em desenvolvimento alcançaram um considerável avanço através da Declaração de Doha e Saúde Pública, de novembro de 2001. Por meio dessa, países membros da OMC asseguraram direitos para implementaro TRIPS de forma a proteger a saúde pública e promover o acesso a medicamentos para todos, configurando a Declaração como um importante mecanismo legal que consolidou um valioso policyspace para o governo tratar das questões de interesse público (GALLAGHER, 2005; MUZAKA, 2011; SELL,2007). Historicamente, movimentos sociais e coletivos de ONGs têm lutado para garantir a sustentabilidade de políticas públicas de saúde; o acesso universal a medicamentos utilizados no tratamento de doenças epidêmicas e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A projeção desse engajamento da sociedade civil na conformação do direito à saúde se fez presente, de forma eficaz, na luta pelo acesso universal ao tratamento antirretroviral, marcada Acordo TRIPS e a Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaração de Doha) OMC serão discutidos posteriormente, na seção destinada ao tema.

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pela confluência de esforços das ONGs, as quais apresentaram diversas ações judiciais exigindo o acesso gratuito e universal ao tratamento necessário; e pelos setores do governo, responsivos às exigências de tais organizações. No que se refere especificamente à proteção à propriedade intelectual e a atuação dos movimentos sociais para ―sensibilizar‖ o governo, um caso que reflete essa atuação de ONGs e sociedade civil é alicença compulsória emitida pelo Brasil para o antirretroviral Efavirenz, em 2007. Esse caso se tornou emblemático para a questão, uma vez que contou com um abaixo-assinado em apoio à licença, caracterizando a pressão das ONGse grupos de ativismo domésticos que já advogavampelo licenciamento compulsório de antirretrovirais no Brasil há cerca de dez anos. Desse modo, no que tange a saúde pública, aformulação da política externa brasileira no se aproxima da formulação proposta por Andrew Cooper (2005) como um processo bottomup, tendo em vista que a participação da sociedade tem sido cada vez mais importante para garantir que a promoção e proteção do direito a saúde3 recebesse tratamento prioritário, exigindo, também, que o governo assumisse a responsabilidade pelas decisões e posições adotadas no plano internacional. Assim, podemos inferir que a sociedade civil é importante para criação de uma cultura de accountability na política externa, além de contribuir com o fortalecimento da democracia no nível nacional. É importante ressaltar que, recentemente, a tensão e contradição associadas à proteção da propriedade intelectual e saúde pública se tornaram mais latentes devido ao maior escopo de fóruns e regimes que tratam da questão, expandindo a discussão para além da OMC e por meio de regras TRIPS-plus - que transcendem os ditames do Acordo TRIPS - causando um impacto direto na sustentabilidade do acesso universal ao tratamento retroviral oferecido pelo Brasil. Destarte, a meta desse estudo é deixar particularmente claro que as novas demandas exigem repensar a participação da sociedade civil organizada e a redefinição de suas lutas frente ao contexto e a complexidade que permeiam o atual sistema de proteção de propriedade intelectual e acesso a medicamentos, principalmente por meio da diplomacia da saúde global.

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O direito à saúde é interesse público constitucionalmente protegido e parte do rol dos direitos humanos, através da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que estabelece um vasto campo de dispositivos referentes aos direitos sociais, em especial à saúde. Tendo grande influência desse documento, a Constituição Federal de 1988 designou uma seção exclusiva para tratar dos direitos sociais, sendo esses qualificados como direitos fundamentais, dentre eles à saúde. Em destaque, temos o artigo 5º, 6º, 196 (CF88); que exigem a ação do Estado na prestação e eficácia desse direito, tendo aplicabilidade imediata e eficácia plena, uma vez que se consubstancia como direito subjetivo público.

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2

REGIME DE PROPRIEDADE INTELECTUAL E O INTERESSE PÚBLICO

2.1

ASPECTOS GERAIS

Ao longo das discussões sobre a proteção dos DPIs e saúde pública, duas vertentes merecem destaque. De um lado, há o argumento de que todos os direitos de propriedade intelectual são valiosos para os negócios e beneficiam o público em geral, posto que abrem as portas para o progesso técnico. Argumento normalmente encampado pelos países desenvolvidos. Esses defensores destacam os altos custos de desenvolvimento de novas drogas, a importância dos direitos de propriedade fortes como incentivos para a inovação, e a necessidade de uma compensação substancial para o desenvolvimento de medicamentos que salvam vidas. A indústria farmacêutica global, enquanto instituição privada, juntamente com os Estados Unidos, União Europeia e Japão promovem essa perspectiva. Ela também tem sido influente na OMC e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) (MUZAKA, 2011; SELL, 2007). De outro lado, temos os representantes de países em desenvolvimento 4, impulsionados por determinadas ONGs,os quais advogam que os direitos de propriedade intelectual são susceptíveis de prejudicar o desenvolvimento da indústria local e a tecnologia; além de causarem relevante impacto no acesso a medicamentos. Eles defendem o acesso ao conhecimento, em geral, inclusive por meio do licenciamento compulsório, da indústria de medicamentos genéricos e da importação paralela. Desse modo, esta visão aponta que a forte proteção à propriedade intelectual pode trazer resultados adversos para economias em desenvolvimento e para setores de interesse público. Entretanto,os argumentos utilizados pelos países desenvolvidos não corresponderam à situação concreta após a assinatura do TRIPS, ao passo que, como mostram as evidências, essas promessas de benefícios ao público em geral não estão se materializando. O que ocorre, de fato, por meio das novas disciplinas multilaterais, é o aumento das exportações dos países desenvolvidos, seguidos pelas perdas de bem-estar e visíveis crises no âmbito da saúde pública nos países em desenvolvimento. Como consequência, tivemos o fortalecimento de críticas a respeito dos Direitos de Propriedade Intelectual, por parte das ONGs e países em

4

Faz-se uma ressalva que esses países não são um grupo homogêneo e tem visões diferentes sobre algumas matérias. Entretanto, no que se refere ao acesso a medicamentos, temos forte atuação do Brasil, Índia e África do Sul, representando esse grupo frente às Organizações e Regime que disciplinam a temática.

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desenvolvimento, assim comoa consolidação das cooperações na área de saúde pública (CORREA, 2000). Até a consolidação do acordo TRIPS, em 1995, os acordos internacionais de propriedade intelectual permitiam que os governos nacionais tivessem uma maior liberdade política para projetar suas próprias leis de propriedade intelectual. Entretanto, o TRIPS interferiu abertamente nesse processoatravés da imposição de uma maior proteção da propriedade intelectual, que excluiu a possibilidade das normas jurídicas serem contestadas e desenvolvidas internamente. Em outras palavras, o acordo TRIPS transformou o tradicional paradigma nacional; pautando as políticas em função das obrigações do Acordo ao invés de atender as exigências domésticas. Nesse contexto, a exacerbada proteção dos direitos à propriedade afetaram diretamente as liberdades importantes para que países optassem por definir, de forma autônoma, políticas públicas destinadas a garantir a provisão devida de políticas sociais aos seus cidadãos, principalmente no tocante à saúde pública. Essa questão nos remete ao tema trabalhado por Gallagher (2005), qual seja: a questão concernente ao policyspace. Segundo o referido autor,o que antes eratido como um instrumento majoritariamente de políticanacional, agora se configuracada vez maissujeito adisciplinasinternacionais,ao passo que o mundo se move para uma harmonização no gerenciamento na área de Propriedade Intelectual. Entretanto, o movimento em direçãoà harmonização diverge dealcançar uma harmonização, além de ser essencialter em menteque o primeiroenão o últimodescreve os arranjos contemporâneos. Nesse sentido, a tendência é deuma redução nopolicy space, um recurso que para muitos estudiosos merece relevante preocupação (Gallagher, 2005). A maior forma de limitação do policyspaceno âmbito da saúde pública e acesso a medicamentos é através das peculiaridades contidas no TRIPS.Dentre as normativas do Acordo, podemos destacar que ele estende os direitos de patente por, no mínimo, 20 anos; obriga a concessão de patentes para todos os setores tecnológicos, incluindo os produtos farmacêuticos; e, de grande impacto, circunscreve as liberdades que os Estados possuem ao definir critérios para exaustão de direitos, como a emissão de licenças compulsórias e importação paralela.No geral, o TRIPS reflete e promove os interesses das corporações globais que buscam ampliar seu controle sobre sua propriedade intelectual. Essas empresas, por intermédio do governo dos Estados Unidos (e com o apoio da Europa e Japão), capturaram o processo da OMC e conseguiram fazer com que a lei pública internacional se adequasse aos seus interesses particulares (SELL, 2007; MUZAKA,2011). 30


Como consequência desse cenário, ou seja, do aumento do controle sobre o conhecimento, exercício mais forte do monopólio e aumento dos preços;a aquisição dos medicamentos essenciais se tornou cada vez mais custosa, principalmente para aqueles que mais precisam deles, impactando negativamente na garantia do direito à saúde. Ao passo que as patentes afetam a promoção da saúde pública, principalmente através do impacto no acesso a medicamentos, a concessão de direitos exclusivos aos titulares das mesmas permitea cobrança de preços exacerbadosem relação aos custos marginais de produção, tornando os medicamentos patenteados mais caros e acessíveis a menos clientes; o que seria diferente se tivessem produtos similares produzidos em ambiente competitivo. Um caso específico demonstra claramente a disparidade de preços em um ambiente competitivo – sem proteção patentearia –e não competitivo, a saber: 150 mg do medicamento para HIV fluconazola custa 55 dólares na Índia, onde não é protegido por patente, e 697 dólares na Malásia, 703 dólares na Indonésia e 817 dólares nas Filipinas, onde existe a proteção por patente (NWOBIKE,2006). A proteção ao direito à propriedade intelectual não pode inviabilizar nem comprometer o dever dos Estados de garantir o respeito, a proteção e a implementação do direito ao acesso a medicamentos, pelo fato de ser a propriedade intelectual um produto social que possui uma função social,

Que não pode ser obstada em virtude de uma concepção privatista deste direito que eleja a preponderância incondicional dos direitos do autor em detrimento da implementação dos direitos sociais, como o são, por exemplo, à saúde, à educação e à alimentação(PIOVESAN, 2007, p.22).

Nesse sentido, se consolidou dentre os países em desenvolvimento uma concepção a respeito do Sistema de Propriedade Intelectual e o direito à saúde pautada no fato de que o acesso a medicamentos deve ser o objetivo principal na determinação do regime. Portanto, tais direitos devem ser monitorados de perto, para assegurar que, de fato, promovam objetivos de assistência à saúde e, acima de tudo, não sejam uma barreira na formulação de políticas públicas em prol da efetivação do acesso à saúde. Dessa forma, o Acordo TRIPS e suas limitadas flexibilidades não deveriam mais se configurar como um mecanismo impeditivo do direito à saúde;afetando diretamente as populações pobres dos países em desenvolvimento pelo mero fato de ser um direito constitucionalmente resguardado e, inclusive, parte do rol dos Direitos Humanos.

31


De um modo geral, esse debate trouxe um avanço para os que defendem a maior flexibilização do TRIPS através da Declaração da Rodada Doha (OMC). Em 14 de novembro de 2001, a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio, reunidos em Doha, no Catar, adotou a Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaração de Doha), que ressalta que o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio ―pode e deve ser interpretado e implementado de forma a apoiar o direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, promover o acesso a medicamentos para todos‖.Outro ponto a ser enfatizado é que a Declaração ―reafirma que o Acordo fornece flexibilidade(s) para essa finalidade‖ (ABBOTT, 2005). Os atores da sociedade civil tinham estado ausentes durante as negociações do TRIPS, mas eles surgiram como os principais intervenientes no debate da saúde pública e propriedade intelectual. Na verdade, foram esses que estabeleceram a ligação, em primeiro lugar. A declaração foi uma vitória para os países em desenvolvimento e os atores da sociedade civil, na medida em que, sendo aprovada por todos os membros do regime de comércio, ela reconheceu explicitamente as flexibilidades oferecidas no TRIPS e do direito desses membros para usá-las para resolver problemas de saúde pública, como exposto anteriormente. Entretanto, assim como o TRIPS, a Declaração não foi a última palavra sobre o assunto, permanecendo aberta à interpretação(MUZAKA, 2011; SELL, 2007). De fato, assim como o TRIPS trouxe consigo as sementes para futuras contestações dentro do regime de comércio e fora dele, a declaração continuou a ser contestada, desafiada e negada. A maior forma de negação se dá através da utilização de regras TRIPS-plus, no âmbito de Acordos Preferenciais de Comércio, seja de forma bilateral ou regional; e na utilização de outros fóruns que não o multilateral para negociação de novos compromissos internacionais sobre a matéria.Essa estratégia sugere que os poderes econômicos e políticos se configuram como fator chave nas negociações comerciais (ABBOTT, 2005). Nesse contexto, a margem de manobra que os Estados mais pobres/fracos têm na utilização de abordagens regulatórias que são mais adequadas às suas necessidades individuais e estágios de desenvolvimento é reduzida. Os EUA e a EU perseguem agressivamente os esforços empregados pelos países em desenvolvimento na utilização das flexibilizações do TRIPS por meio da assimetria de poder, através do jogo de governança aplicado aos acordos bilaterais e regionais. Assim, a Declaração de Doha não contestou a ligação da propriedade intelectual com o comércio contida no TRIPS, ao contrário, ela reafirmou o compromisso dos governos, por

32


meio do Acordo, na proteção do papel da propriedade intelectual em pesquisa e inovação; e apenas consolidou uma pequena brecha na utilização de conhecimento protegido. A vitória da rede de atores representantes dos países em desenvolvimento reside apenas no fato de que a Declaração esclareceu as flexibilidades do TRIPS, oferecendo aos governos que enfrentam desafios de saúde pública (licença compulsória e importação paralela), flexibilidades que até então tinham sido ativamente restritas e mal interpretadas.Dada a expansão dos direitos de propriedade intelectual e distribuição desigual de poder político e econômico em todo o mundo, os países em desenvolvimento enfrentam desafios substanciais para guiar o sistema em seu benefício (MUZAKA, 2011; SELL, 2007). Assim, o cenário internacional frente ao caso da HIV/AIDS, edemais problemas de saúde pública que atingem, em especial, os países em desenvolvimento, é permeado por contradições edisputas de interesse econômico em detrimento do interesse público. Desse modo, a resposta global para essas questões continua ineficaz, o que acarreta em bilhões de pessoas sem acesso ao básico necessário no que toca a saúde pública.

2.2

A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA E AS DOENÇAS EPIDÊMICAS

Apesar do inquestionável avanço na prevenção e tratamento em muitas regiões do mundo, doenças como a HIV/AIDS, a tuberculose (TB) e a malária continuam a flagelar os mais pobres e mais vulneráveis da população mundial. É constatado que a grande maioria das pessoas que sofre dessas doenças vive em países menos desenvolvidos, onde prevalecem baixos salários, falta de condições sanitárias e limitado acesso a serviços médicos básicos. Essas condições, atreladas aos altos preços dos medicamentos praticados no mercado, produzem uma grande dificuldade no acesso a muitos dos medicamentos que salvam vidas e que, por sua vez, são normalmente de fácil acesso em países desenvolvidos (PNUD, 2013; PORTALODM, 2014). Dados comprovam que cerca de um terço da população mundial não tem acesso a medicamentos essenciais; e os 80% da população mundial que vive em países em desenvolvimento e menos desenvolvidos consomem menos de 20% de todos os produtos farmacêuticos (PNUD, 2013). No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constataram que 40% dos brasileiros não têm acesso efetivo a medicamentos essenciais. Segundo Basso e Polido (2005), a respeito do balanço das despesas familiares, os gastos com saúde aparecem em quarto lugar, perdendo, apenas, para os gastos com habitação, alimentação e transporte. Nesse cenário, grande parte dos gastos decorre da 33


compra de medicamentos essenciais que, na sua maioria, apresentam preços elevados e desproporcionais à renda efetiva da população brasileira. O problema do acesso a medicamentos essenciais para o mundo em desenvolvimento é pautado em duas razões primordiais. Em primeiro lugar, a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) para produção de novos medicamentos têm sido impulsionados principalmente pelas forças de mercado, em detrimento da necessidade médica. Problemas típicos do mundo industrializado – como impotência sexual, obesidade, calvície e outros problemas estéticos – são

prioridade

nos

esforços

inovadores

dos

grandes

laboratórios

farmacêuticos,

negligenciando doenças que afetam desproporcionalmente os pobres, como a AIDS, a tuberculose e a malária. De fato, 90% da carga de doenças no mundo pertencem a uma população para quem apenas 5% das despesascom P&D sãodirigidas. Um recente estudo, em que foram realizadas entrevistas com dirigente das onze maiores empresas farmacêuticas do mundo, descobriu que dos 1.393 medicamentos introduzidos nos últimos 25 anos, apenas 13 trataram dessas doenças supracitadas (menos de 1%), que são as principais causas de morte no mundo em desenvolvimento (MUZAKA, 2011). Em segundo lugar, os preços elevados das marcas e produtos farmacêuticos patenteados muitas vezes criam uma barreira ao acesso dos países em desenvolvimento. O monopólio da patente de novas drogas oferece tempo mais que suficiente para que a empresa recupere seu custo na P&D do medicamento, custo esse com estimativa bastante controversa. Além disso, investidores, muitas vezes, procuram recompensar o gasto com a patente através de uma série de lacunas existentes. Nesse sentido, os acordos comerciais internacionais tornaram-se uma questão extremamente importante para o acesso a medicamentos essenciais e serviços de saúde. Vale ressaltar que a lógica que move as empresas farmacêuticas é a lógica do mercado, levando à concentração de seus esforços em P&D para setores em que há um mercado potencial que lhes permita recuperar o investimento e obter lucros. O que não coincide necessariamente com as necessidades de saúde humana. Isto posto, na indústria farmacêutica, os investimentos em P&D têm como objetivo primordial ganhos de competitividade face a produtos estabelecidos no mercado. O argumento utilizado pelas empresas farmacêuticas para justificar tal postura é, como coloca a PharmaceuticalResearchandManufacturersofAmerica (PhRMA; Estados Unidos), que o custo médio para o lançamento de um novo medicamento pode atingir 800 milhões de dólares americanos, sendo que todo o processo, desde a descoberta da molécula, a realização de testes pré-clínicos e clínicos à entrada de um medicamento no mercado, pode levar entre 34


10 e 15 anos; somado ao fato de que o índice de perda entre projetos iniciados e medicamentos aprovados para comercialização é alto. Substantivamente, os defensores da PhRMA são contra qualquer enfraquecimento da proteção da propriedade intelectual por meio de exceções à saúde pública. Eles rejeitam a licença compulsória como instrumento de política para reduzir os custos de medicamentos essenciais e rejeitam a importação paralela, através da qual Estados podem tirar proveito de políticas de preços diferenciados e importar a versão mais barata da marca de produtos farmacêuticos patenteados (SELL, 2007). Do outro lado do debate, temos a aliança de governos de PEDscom o forte auxílio das ONGs e sociedade civil organizada, que luta pelo acesso a medicamentos essenciais. Eles argumentam que a proteção de patentes é uma barreira para o acesso e que as exceções voltadas a resguardar a saúde pública seriam essenciais para garantir direitos fundamentais e até mesmo evitar mortes desnecessárias. Eles defendem o licenciamento compulsório, a concorrência dos genéricos, a importação paralela e as taxas fixas de compensação para as empresas farmacêuticas. Dentre os PEDs, Brasil, Índia e África do Sul formam o grupo de países líderes nos esforços intergovernamentais para enfrentar suas emergências de saúde pública. Tais países, com o apoio das ONGs, estabeleceram um intercâmbio de informações e, assim, aumentaram o poder de barganha dos três governos. Inclusive, o trabalho conjunto das ONGs dos referidos países, que lutam pelos direitos de pessoas portadoras do HIV e doenças negligenciadas, rendeu uma impactante mobilização que, junto com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), colocou em pauta a discussão em busca da melhor maneira para cooperar no desenvolver de medicamentos destinados ao combate dessas doenças. A importância da relação PEDs e ONGs está exatamente na crescente problemática entre os DPIs e monopólio farmacêutico; e o acesso a medicamentos, uma vez que surge a necessidade da criação de soluções em comum entre os PEDs para enfrentar as questões advindas, também, das disparidades econômicas que permeiam as nações. O lucro demasiado das companhias farmacêuticas, assim como o foco voltado para doenças mais rentáveis, que comercializa a saúde pública e assola as comunidades mais carentes; e as rigorosas leis de propriedade intelectual que se sobrepõem aos interesses públicos, atingem ferreamente países onde a população ainda sofre com doenças epidêmicas. Desse modo, a atuação desses atores é cabal para a implementação de políticas que se enquadrem nesse cenário, assim como para maior esclarecimento quanto às flexibilidades parte do Acordo TRIPS, principalmente no que tange a quebra de patentes de medicamentos essenciais.

35


3

OS

ATORES

DA

SOCIEDADE

CIVIL

E

A

EVOLUÇÃO

DOASSISTENCIALISMO BRASILEIRO NAS QUESTÕES DE SAÚDE PÚBLICA

Por meio de um amplo movimento pela reforma do sistema de saúde e pela redemocratização, conhecido como movimento sanitarista, princípios como o acesso universal, equitativo e integral a serviços de saúde passaram a fazer parte do regulamento maior da legislação brasileira. Esse movimento foi liderado essencialmente por organizações da sociedade civil, movimentos sociais e ONGs. Com tais conquistas, esses princípios passaram a ser resguardados pela Constituição Federal de 1988, no seu Art. 196, a qual estabeleceu ainda o novo Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado por meio das Leis 8.080/90 e 8.142/90. Ressalta-se que entre os campos de atuação do SUS está a assistência terapêutica integral, incluindo a farmacêutica, o que implica a obrigação de o Estado fornecer medicamentos para todos aqueles que deles necessitem. Cumpre ressaltar que o conceito de sociedade civil utilizado para fins desse artigo se insere na formulação proposta por Habermas (1997), o qual a considera como uma composição de movimentos, organizações e associações às quais captam os ecos dos problemas sociais que, por sua vez, ressoam nas esferas privadas, e os transmitem para a esfera pública política. ―O núcleo da Sociedade Civil forma uma espécie de associação que institucionaliza os discursos capazes de solucionar problemas, transformando-os em questões de interesse geral no quadro de esferas públicas‖ (HABERMAS, 1997, p. 99). Ao considerarmos tal formulação, é possível depreender a relevância exercida pela sociedade civil ao pressionar as entidades públicas internacionais e instituições domésticas responsáveis por formular propostas e metas que, de fato, atendam as demandas e anseios da sociedade. A participação da sociedade civil no âmbito da saúde publica, especificamente, foi intensificada pela ascensão das ONGs principalmente na década de 90. Essas são entidades privadas sem fins lucrativos, que contam comparticipação voluntária e são identificados com a sociedade civil – distintas do Estado ougoverno, e também do mercado ou empresas (SCHERER; WARREN, 1994). Diante do processo deredemocratização, as ONGs passaram a reivindicar diretamente os seus interesses, modificando o seu caráter tão somente acessório, assumindo um papel mais proativo. Nesse novo contexto de reabertura democrática, as unidades subnacionais e as antigas e novas formas de organização da sociedade civil encontram espaço para fortalecer a si e às instituições democráticas; promovendo a descentralização e criando novos canais de interrelação entre os entes federados e os atores sociais. 36


Voltando-se para a questão do assistencialismo no que concernem as doenças epidêmicas, no Brasil, dois casos retratam bem essa dinâmica entre a sociedade civil e os entes

federados,

inicialmente

movidos

pelos

movimentos

sociais

e,

posteriormente,fortalecidos pelo engajamento das ONGs, quais sejam: as políticas em torno da TB e a política pública de acesso universal aos medicamentos antirretrovirais (HIV/AIDS). Para melhor ilustrar o caráter conceitual da questão, temos que uma política pública é uma ação gerencial que se desenvolve por meio da interação negociada entre o setor público e a sociedade civil. Tal negociação é mediada por grupos de interesse, tendo em vista a impossibilidade de o Estado negociar com cada um dos cidadãos interessados, de forma individual (TENÓRIO, F. G. & ROZENBERG, 1997). De acordo com os dados fornecidos pelo Relatório das atividades de Pesquisa do Instituto do Milênio Rede TB (2005), o surgimento de iniciativas compostas por organizações comunitárias concernentes à TB é bastante recente. Até 2003, a presença da sociedade civil na luta contra a TB era pautada, basicamente, pelas iniciativas de pesquisadores, profissionais de saúde e estudantes de medicina, respectivamente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, da Rede TB, e da Liga Científica contra a Tuberculose. Nesse caso, tais entidades são compostas por pessoas comprometidas com o controle da TB, todavia, carecem de um escopo comunitário, principalmente das pessoas afetadas e vivendo com a doença. Nesse diapasão, três aspectos contribuíram para que diferentes níveis de governo tomassem a decisão de fomentar a inclusão da sociedade civil nos esforços para o controle da TB, em particular de caráter comunitário. O primeiro aspecto é a legitimidade e o amparo legal dessa participação. O segundo aspecto que coadunou com tal postura foi o acordo firmado por vários países, incluindo o Brasil, na Declaração de Amsterdã para Combater a Tuberculose, em 2000. Nesse acordo, os governos se comprometeram a ―monitorar e avaliar seus programas nacionais de TB de acordo com os padrões estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e a apoiar as parcerias com as ONGs e a comunidade‖ (The Amsterdam DeclarationtoStop TBO, 2000). Por fim, o terceiro e mais significativo aspecto para essa iniciativa foi a conscientização dos gestores estaduais de que a ausência de monitoramento das políticas públicas em TB, advindas da sociedade civil,resultavam na morosidade, falta de transparência e ineficiência das ações e políticas governamentais (SANTOS, 2006). Considerando as características da população afetada pela TB atualmente, em grande parte, de baixa renda; que enfrentam estigma pela doença e acesso restrito à assistência em saúde, não se pode esperar reações espontâneas e politicamente articuladas como as vistas no 37


caso daAIDS, desde o início. A epidemia de HIV/AIDS acometeu em grande número pessoas de classe média; com bom nível educacional e habilitada a articular com diversos setores da sociedade. Assim, o avanço das políticas voltadas para o controle da TB é mais restrito, devido à limitada pressão por parte da sociedade civil, divergindo do que ocorreu na luta contra a AIDS (SANTOS, 2006). Fazendo um sucinto apanhado sobre o processo que resultou na política pública de acesso universal aos medicamentos antirretrovirais (HIV/AIDS); que fornece terapias contra a AIDS gratuitamente para todos os pacientes para os quais tais terapias foram receitadas, destaca-se, de início, o surgimento dos movimentos homossexuais, pioneiros na reivindicação de respostas governamentais voltadas ao enfretamento da epidemia. Os movimentos homossexuais atuavam de forma a aumentar a visibilidade do problema, utilizando-se de ferramentas como a publicação de manuais explicativos sobre as peculiaridades da doença. Outras formas de organização se pautaram no assistencialismo às vítimas, através do fornecimento de moradias às pessoas que sofriam violência e preconceito decorrentes do fato de serem portadoras do vírus. Fortificando a luta contra o preconceito e enfrentamento da AIDS, diante do cenário mais democrático que resultou na abertura de espaços de participação da sociedade, tivemos a ascensão das ONGs. Dentre elas, destacam-se quatro que apresentaram importante inserção política na luta nacional contra a AIDS: o Grupo de apoio à Prevenção da AIDS (GAPA); Associação BrasileiraInterdisciplinar de AIDS (ABIA); o Grupo Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS (Pela Vidda) e o Apoio Religioso Contra AIDS/Instituto de Estudos da Religião (ARCA/ISER). Até a década de 90, principalmente pelo fato da política brasileira ser pautada pela conjuntura neoliberal, a experiência brasileira na questão da AIDS se limitava à lógica defendida e financiada pelo Banco Mundial, unicamente baseada nos aspectos preventivos, voltados à população carente.

Ao invés de fornecer o tratamento antirretroviral, era

recomendado que os países em desenvolvimento concentrassem seus recursos escassos em estratégias de prevenção que, para essa instituição, era supostamente mais custo-efetivas. Entretanto, mesmo contrariando tais premissas do Banco Mundial, o PN DST/AIDS (Programa Nacional de DST/AIDS), articulado com os demais atores interessados pela causa, pressionaram para, em 1996, conquistarem a distribuição gratuita e universal da medicação necessária ao tratamento da doença, através da política pública de acesso universal a antirretrovirais. Desse modo, o Brasil provou que o tratamento antirretroviral seria não apenas viável, mas também altamente bem sucedido, mesmo em países em desenvolvimento. 38


O Brasil foi o primeiro país a fornecer terapias contra a AIDS gratuitamente para todos os pacientes para os quais tais terapias foram receitadas. Em 2010, cerca de 200 mil pacientes se beneficiaram delas no país. No entanto, o tratamento da AIDS no Brasil tem sido desafiado pelos altos custos dos medicamentos antirretrovirais patenteados e pela falta de capacitação tecnológica na produção desses medicamentos, em especial dos seus princípios ativos(MELLO e SOUZA, 2007).

3.1

LICENÇA COMPULSÓRIA E O CASO HIV/AIDS

Segundo dados do Ministério da Saúde - MS, entre 1996 e 2002, com a introdução da política deacesso universal do tratamento antirretroviral combinando drogas de diferentes formas deação, houve redução de 50% na mortalidade, 70% na morbidade, redução das internações em80%, bem como aumento de cinco anos na sobrevida dos pacientes que vivem com AIDS (BRASIL, 2005a). Assim, mais de 60.000 novos casos de AIDS; 90.000 mortes e 633.200 admissões hospitalares relacionadas com a doença foram evitados, o que resultou em economia para o governo de mais de US$ 1,8 bilhão entre 1997 e 2003. Ao somarmos a esse montante o adicional de US$ 1,2 bilhão proveniente da economia com atendimento ambulatorial e procedimentos terapêuticos evitados; incluindo medicamentos para infecções oportunistas, o total aumenta para mais de US$ 2 bilhões (TEIXEIRA; VITORIA; BARCAROLO,2004). Desse modo, o caso brasileiro comprova que o tratamento antirretroviral é viável em locais com poucos recursos, abrindo o caminho para um novo consenso de políticas de saúde. Assim sendo, a estratégia de prevenção impulsionada pelo Branco Mundial; e o tratamento da AIDS, que tem o Brasil como pioneiro no acesso universal aos antirretrovirais, podem ser ambas implementadas e se reforçam mutuamente. Um dos fatores que ajudam a explicar o sucesso do programa brasileiro é a capacidade que o país possui na produção de medicamentos, seja através de empresas e laboratórios governamentais, mas também por empresas privadas do setor de fármacos genéricos. Vale destacar que a maior parte dos medicamentos que compõem o coquetel é formada por drogas patenteadas, de alta efetividade, produzidas por laboratórios transnacionais e com preços extremamente altos5. Desta feita, em termos de custo, as drogas patenteadas representam o

5

O orçamento total do Ministério da Saúde p ara a compra de medicamentos antirretrovirais em 2007 foi de R$ 984.000.000,00. Estima-se que mais de 80% desse valor é utilizado para a aquisição de 11 medicamentos patenteados e 20% para a compra de 7 medicamentos fabricados por laboratórios nacionais (BRASIL, 2009).

39


maior peso orçamentário do coquetel. Para que haja atendimento à lei de distribuição gratuita dos antirretrovirais, uma das estratégias do governo foi investir nos laboratórios e recursos humanos nacionais, almejando a produção de versões genéricas de medicamentos cujas patentes já expiraram. Entretanto, com a necessidade de introdução crescente de antirretrovirais patenteados no programa; somado ao fato de a Índia ter deixado de ser fonte de genéricos de medicamentosnovos ou de segunda escolha, em 20056 - momento em que o país passou a reconhecer patentes farmacêuticas, o que impactou fortemente na produção de genéricos - a política de acesso universal e gratuito dos antirretrovirais poderia estar fortemente comprometida. Desse modo, tivemos o fim da possibilidade de importar insumos baratos da Índia para a produção de genéricos e, por conseguinte, tanto o Brasil quanto os demais países em desenvolvimento ficaram altamente dependentesdas empresas farmacêuticas; assim como da licença compulsória, como medida de exceção. A licença compulsória é um mecanismo de defesa contra possíveis abusos cometidos pelo detentor de uma patente. Consiste na autorização concedida pelo Estado para o uso da invenção patenteada sem o consentimento do detentor da patente (CHAVES, 2006). O Brasil utilizou da ameaça de decretar o licenciamento compulsório algumas vezes e, na última, efetivou o decreto. Em 2001, o processo de licenciamento foi interrompido pelo governo brasileiro, pois o laboratório Roche aceitou reduzir o preço do nelfinavir em 40%, desde que o governo brasileiro não emitisse uma licença compulsória. No ano de 2005, na segunda negociação para a redução de preço do lopinavir/r, o governo brasileiro aceitou o preço fixo de US$ 1.380,00 por paciente/ano até 2011, se comprometendo em não emitir uma licença compulsória para esse medicamento7(CHAVES; VIEIRA; REIS, 2008). Nesse contexto,tivemos a pressão de grupos da sociedadecivil, sobretudo os grupos ligados à saúde e aos direitos humanos, ao passo que esses entraram na Justiça Federalpara obrigar o Poder Executivo a licenciar compulsoriamente o medicamento Kaletra®(CORIAT; ORSI; ALMEIDA, 2006). Entretanto, o Estado só se posicionou diante da intransigência do laboratório Merck, nas várias negociações iniciadas pelo governo brasileiro na tentativa de redução do preço do medicamentoefavirenz. No dia 25 de abril de 2007, foi publicada a Portaria 886 de 6

A Tailândia mudou a sua legislação em 1994-1995, o Brasil no início de 1996, mas a lei só entrou em vigor em 1997; e a Índia somente no final de 2005, o que lhe garantiu exercer um papel importante como fornecedor de medicamentos genéricos a custos baixos. 7 Em 2005, quatro medicamentos importados nelfinavir, efavirenz, lopinavir/r e tenofovir foram responsáveis por mais de 50% do orçamento do PN DST Aids.

40


24/04/2007 (BRASIL, 2007) que declarou o efavirenz de interesse público para fins de concessão de licença compulsória. A Merck foi notificada em 24 deabril de 2007 e teve um prazo de sete dias paraque apresentasse uma proposta que atendesse tal interesse.Em 27 de abril, a Merck Sharp &Dohme (MSD) ofereceu desconto de 30% sobre o preço de US$ 1,5920/comprimido, mas a proposta mostrou-se insatisfatória, já que o Brasil pleiteava o mesmo preço cobrado pela Merck na Tailândia, de US$ 0,65 (BRASIL, 2008). Em maio de2007, o governo decretou a licença compulsória do antirretroviral efavirenz, começando a produção nacional em 20098. A versão genérica chegou ao Brasil em julho de 2007, entregue pelos laboratórios indianos via organismos internacionais a um custo de US$[0,4270 - 0,4430] para o comprimido de efavirenz 600 mg, um terço do preço cobrado pela MSD (BRASIL, 2008; BRASIL, 2009). A produção nacional do efavirenz se deu através da Farmanguinhos (Fiocruz)/MS e Lafepe. O consórcio formado pelas empresas privadas Cristália (SP), Nortec (RJ) e Globequímica (SP) ficou responsável pelo fornecimento da matéria-prima ou insumo farmacêutico ativo (IFA) para os laboratórios públicos. O primeiro lote do medicamento nacional foi produzido em fevereiro de 2009. Pelo contrato firmado com a Fiocruz, o Ministério da Saúde pagará R$ 1,35 (US$ 0,675) por comprimido de 600 mg produzido localmente (BRASIL, 2009). Dados comprovam que a produção local impactou positivamente nos custos com o programa. Segundo os especialistas que tratam da questão, a licença compulsória é inevitável para a sustentabilidade do Programa DST/AIDS, devendo o Brasil defender a autonomia nacional e a ampliação do acesso à prevenção e ao tratamento no país. Vale destacar que um importante componente impulsionador para a utilização desse mecanismo no Brasil foi a mobilização da sociedade civil, inclusive através de denuncias na esfera judicial e abaixoassinados, visando superar ameaças à sustentabilidade do acesso universal pelo fato dos altos custos dos medicamentos. Prepondera o entendimento que a decisão do governo brasileiro em proceder com a licença compulsória do efavirenz, bem como de outros medicamentos antirretrovirais, tem perfeita base legal e não contraria o direito à propriedade intelectual. Todavia, não obstante o amparo normativo e respectivo pagamento de royalties ao laboratório detentor da patente, o Brasil não está livre de enfrentar novas polêmicas. As discussões e embates levantados no âmbito da OMC, principalmente pelos EUA, na defesa dos seus 8

Nos anos de 2005 e 2006, os gastos somente com a compra de efavirenz 600mg representaram cerca de 11% dos gastos totais do ministério com medicamentos antirretrovirais (BRASIL, 2009).

41


interesses econômicos, podem levar o Brasil a sofrer retaliações da indústria farmacêutica, em especial do laboratório Merck. Desse modo, as novas demandas exigem repensar a participação da sociedade civil organizada e a redefinição das suas lutas frente ao complexo contexto que regula a propriedade intelectual atualmente.

4

A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL SOB A ÓTICA DA ANÁLISE DE

POLÍTICA EXTERNA

4.1

O PROCESSO BOTTOM UP

Os movimentos retratados nos tópicos antecedentes, principalmente os referentes ao acesso universal a medicamentos antirretrovirais, tiveram repercussão nacional e internacional graças à pressão social e conquistas no âmbito da saúde pública. Desse modo, podemos inferir, de logo, que questões primordialmente à margem das prioridades do Estado podem configurar-se como mandatórias, desde que tenham como força propulsora uma relevante legitimidade e credibilidade por parte da sociedade civil.Assim, o alcance e sucesso que o programa de acesso a antirretrovirais obteve, em especial no cenário internacional, retrata o quão eficiente é uma política pública munida da credibilidade e legitimidade interna; o que, nesse caminho, pode ter cominado na projeção restringida da política referente à TB que, como tratado anteriormente, não compartilhava do mesmo engajamento por parte da sociedade civil, primordialmente por carência de articulação política dos diretamente afetados. A teoria democrática apresenta dois modelos que avaliam o impacto dos atores sociais nos processos políticos: o modelo bottomup, originário da tradição pluralista; e o modelo top down. O caso em análise, sobre o processo de participação da sociedade civil na formulação e implementação das políticas públicas de saúde pública, que o conferiu maior legitimidade e credibilidade no trato de doenças marginalizadas, se enquadra como um caso típico de processo bottomup. Desse modo, temos a hipótese de que a sociedade brasileira e o Estado, na questão da politica externa; desde o seu processo de redemocratização e descentralização política, passaram por um momento de transição de uma relação inteiramente top down para uma bottomup. Segundo Cooper (2005), a dinâmica bottomup se caracteriza por ser uma abordagem diplomática ―voluntária, com atores mistos‖; divergindo da primeira que, por sua vez, é pautada no modelo centrado no Estado, de forma estratégica ―coercitiva e oportunista‖. 42


Tendo em conta os obstáculos impostos pelas novas regras patentearias e a necessidade da manutenção de políticas públicas como a de acesso universal a tratamentos antirretrovirais, o engajamento da sociedade civil se dividiu, de forma estratégica, em três etapas: o arrebatamento do apoio interno; a parceria com as ONGs (nacionais e internacionais) e, por fim, o desenvolvimento do processo de negociação entre os governos através do soft power diplomático. Desse modo, é viável o enquadramento da participação da sociedade civil no processo acima disposto, ao passo que sua projeção se deu, inicialmente, nos grupos de interesses envolvidos na causa, e, no seu ápice, na pauta das demandas governamentais no âmbito interno e internacional. Para melhor visualização dessas etapas, vale apresentar algumas características peculiares de cada momento, no intuito de deixar claro como eles se interligam e, mais que isso, coadunam para a inserção do tema na agenda central da política externa do governo. No que tange o arrebatamento do apoio interno, a luta contra o HIV/AIDS teve início com a mobilização dos movimentos homossexuais e, em sequencia, de todos os atingidos diretamente pela epidemia que, através de programas de conscientização da população a respeito do preconceito e assistencialismo às vítimas foram, aos poucos, chamando a atenção da sociedade em geral para o caso; ganhando a amplitude necessária para liderar as pautas das discussões sobre políticas públicas.Desse modo, a luta contra o preconceito e enfrentamento da AIDS resultou na abertura de espaços de participação da sociedade, o que proporcionou a ascensão das ONGs. Em seguida, já partindo para a segunda etapa do processo, tais grupos da sociedade civil, juntamente com as primeiras ONGs que surgiram, uniram esforços no enfrentamento do tema. Como consequência, diante da crescente discussão sobre propriedade intelectual no âmbito internacional e o impacto causado pelos acordos internacionais no âmbito nacional, surgiu, em 2001, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/REBRIP). A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS – ABIA - coordena o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (REBRIP)9. O GTPI reúne entidades da sociedade civil que buscam discutir temas e propor ações sobre recursos genéticos e, sobretudo, buscam alternativas para minimizar o impacto das patentes farmacêuticas no acesso aos medicamentos essenciais.

9

Para mais informações ver <www.rebrip.org.br>.

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A REBRIP, por sua vez, reúne organizações da sociedade civil brasileira para acompanhar e monitorar os acordos comerciais nos quais o governo brasileiro está envolvido, com o propósito de discutir e delimitar o seu impacto direto na sociedade (ABIA, 2009). Um dos temas em destaque é a questão das patentes e acesso a medicamentos, o que justifica a REBRIP criar um grupo de trabalho para encaminhar as reivindicações da sociedade civil sobre essa questão (GTPI). De acordo com as informações dispostas no site da ABIA (2009), o GTPI atua com o objetivo de minimizar o evidente impacto negativo do sistema de patentes no Brasil em algumas frentes, principalmente: 1) Identificação de alternativas que permitam ampliar o acesso a medicamentos; 2) Fortalecimento da cooperação Sul-Sul para a troca de experiências no tema e possível ação conjunta entre organizações da sociedade civil; 3) Formação e mobilização da opinião pública quanto ao impacto social dos acordos comerciais de propriedade intelectual; 4) Acompanhamento de fóruns internacionais que discutam o tema da propriedade intelectual e acesso a medicamentos. Ademais, o GTPI promove ações positivas com relação à manutenção do acesso universal ao tratamento antirretroviral, através da redação de cartilhas que explanam a legislação internacional e nacional; e também de fatos importantes, como a emissão da licença compulsória no Brasil10. Outro ponto que demostra a importante participação do grupo é a organização de oficinas e exercícios temáticos que visam conscientizar a população em geral de como a propriedade intelectual afeta suas vidas e os seus trabalhos.A atuação desse grupo foi de extrema importância para a efetivação do programa universal de antirretrovirais e a magnitude da sua projeção internacional. Em um terceiro momento, a conjuntura entre esses grupos e as ONGs internacionais proporcionou uma repercussão internacional da demanda, o que resultou em uma aliança entre governos munidos dos mesmos interesses em prol da flexibilização do Acordo TRIPS e sobreposição do interesse público em detrimento dos fatores econômicos que permeiam o Regime Internacional de Propriedade Intelectual. A atuação desses grupos junto às ONGs é pautadano fortalecimento da sociedade civil e do aprofundamento de suas redes para que possa ser aprimorada a troca de experiências, o apoio aos problemas nacionais, e a busca por alternativas conjuntas contra os impactos negativos causados pelas patentes no acesso à saúde. Dessa maneira, o Brasil, como outros países em desenvolvimento, passou a utilizar a via da Diplomacia da Saúde Global nas suas ações internacionais, tendo as questões de saúde pública como um mecanismo de soft powerna seara internacional. Desse modo, podemos 10

ABIA, Patentes farmacêuticas: por que dificultam o acesso a medicamentos?, 2006. Disponível em: <http://www.abiaids.org.br/_img/media/cartilha_patentes.pdf>. Acessado em: 17/02/14.

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destacar dois aspectos inter-relacionados, como ressalta Lopes (2013; p.8): ―a participação de atores não estatais em fóruns e instituições internacionais e uma relação mais dinâmica entre política internacional e doméstica, conhecida como interméstica”. A mesma autoria ainda ressalta que teorias como a dos jogos de dois níveis, de Putnam(1988),permitiramvisualizar o impacto do âmbito doméstico na política externa do Estado, além de mostrar os jogos de coalizão, alinhamentos e alianças.

4.2

A UTILIZAÇÃO DO SOFT POWER NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRAS

ATRAVÉS DA DIPLOMACIA DA SAÚDE GLOBAL E O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL NO SUPORTE DESSA POLÍTICA

Nas relações internacionais, os estudos sobre opinião pública e política externa remetem à correlação entre questões domésticas e internacionais, tratando do impacto dos atores domésticos na formulação da política externa. De acordo com o pressuposto liberal, as instituições; ideias e interesses influenciam a postura do Estado. Assim, as demandas sociais passam a figurar no sistema político, e, por conseguinte, influenciam nas ações de política externa. Nesse viés, a política externa não se restringe aos estímulos internacionais, sendo, também, reflexo das demandas domésticas advindas de forças sociais que direcionam o comportamento do Estado (ROSENAU, 1967). Como descrito nos tópicos anteriores, são perceptíveis as mudanças da participação da sociedade civil na produção da política externa brasileira, principalmente no que toca a questão de políticas públicas na área da saúde. O engajamento da sociedade civil no combate à HIV/AIDS, em especial, elevou a questão da saúde para o centro da política externa brasileira. Vale ressaltar que essa ascensão da participação da sociedade civil, primeiramente no âmbito interno e, posteriormente, na formulação da política externa brasileira; junto à fática participação do governo na cooperação Sul-Sul,legitimou e deu o suporte necessário para que o governo tivesse força pra manter uma política controversa, ao passo que essa era contra interesses privados muito fortes. Outra questão que pode ter coadunado para obtenção desse resultado foi a reação do Itamaraty às pressões e demandas que partiram principalmente da sociedade civil, visando a superação do seu tradicional insulamento, como apontam Faria e Mesquita (2012). Ambos ressaltam que a partir do governo FHC, que proporcionou uma maior abertura para entidades da sociedade civil, tivemos o aceleramento da aproximação do Itamaraty com a sociedade civil organizada, o que acabou por trazer credibilidade para a diplomacia brasileira, em 45


especial no relacionamento com a ONU. Nesse cenário, configurou-se o que foi classificado como diplomacia pública que, segundo Lima (2009) tinha o ponto central na inclusão dos diversos atores da sociedade civil no processo de formulação da política externa nacional. Ponto crucial no tocante ao maior alcance das questões de saúde na política externa diz respeito à correlação entre saúde e desenvolvimento. Até recentemente, as melhorias em saúde eram vistas como algo positivo apenas para o crescimento econômico. Entretanto, à medida que esse tema passou a vigorar como parte das prioridades em questões de política externa, evidências mostram que melhorias na saúde (e outros determinantes sociais da saúde, tais como educação, saneamento e capacitação de gênero)estão associados com o desenvolvimento, posto que o custo com a saúde é mais um investimento do que puramente um gasto, sendo um bem público intrínseco. Focando diretamente na política externa no âmbito da saúde pública, entre as economias emergentes, o Brasil tem sido particularmente hábil em utilizar o que é descrito como soft power11, principalmente através do alcance internacional que a política a favor do acesso aos medicamentos antirretrovirais proporcionou; como, também, na busca pela execução dos Objetivos do Milênio ODM12. É perceptível que o Brasil tem desempenhado um papel central nos debates concernentes à política pública do HIV/AIDS, posto que seu programa nacional de HIV/AIDS, amplamente reconhecido pela ONU como o melhor de seu tipo no mundo em desenvolvimento, funciona como modelo para os demais países em desenvolvimento, assim como para a política global de HIV/AIDS adotada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2003. Assim, o Brasil vem fazendo uma combinação eficaz de poder econômico e perspicácia diplomática em questões de saúde pública, servindo de modelo para outros países em busca de desempenhar um papel de liderança mais proeminente na ordem mundial emergente. É o que vem sendo caracterizado como soft powerdiplomático, ou seja, a utilização de recursos que não militares ou políticos clássicos nas relações internacionais (NYE, 2008).O principal viés utilizado pelo governo brasileiro de soft power diplomático é a 11

Apresentado por NYE (2008), o conceito de soft power contrasta com o hard power pelo qual a coerção (sustentada por poderio militar e econômico) é usada para influenciar os outros a agir de maneiras pelas quais eles não fariam normalmente. Desse modo, o soft power é definido pelo autor como a capacidade de persuadir ou atrair os outros a fazerem o que se quer através da força de ideias, conhecimentos e valores. 12 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio - ODM (UN, 2000) constituem um pacto global entre as nações do mundo para diminuir a pobreza e as barreiras relacionadas com a saúde para o desenvolvimento, com metas e objetivos definidos. Enquanto todas as ODM têm influência importante sobre a saúde, vários são consideradas como específicas da saúde. O Brasil se engajou consideravelmente com os ODM, atingindo, antes mesmo no prazo preestabelecido, as metas almejadas, inclusive nas questões de saúde e combate à AIDS. Entretanto, é primordial que se estabeleça um laço mais sólido de diálogo com a sociedade civil nacional e internacional, de forma que a relevância da participação social no cumprimento de tais metas se consolide (LOPES, 2013).

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diplomacia da saúde global, que parte da premissa de que a saúde da população precisa ser o centro das atenções da diplomacia. Como exposto anteriormente, um dos melhores exemplos da estreita cooperação entre o Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Saúde no Brasil é política global contra a HIV/AIDS, em particular, o acesso aos antirretrovirais, ilustrando que a boa governação da saúde global começa no nível nacional. Alguns defensores da saúde global como Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P (2007) têm argumentado que as implicações políticas, sociais e econômicas dos problemas de saúde estão acima da hierarquia de interesses da política externa tradicional, por conseguinte, questões como âmbito doméstico e internacionalelowand high politics, não se aplicam mais, ao passo que melhorar a saúde global se tornou objetivo mais importante da política externa, por si só; sendo a diplomacia de saúde uma forma de gerenciar o ambiente de política global para a saúde. A conjuntura de atores na luta contra a HIV/AIDS é bastante heterogênea, com diferentes atores, não só no que diz respeito ao seu caráter (público, privado), a sua estrutura institucional (formalizada, informal) ou o seu nível de atividade (global, nacional, local); mas também no que diz respeito aos seus interesses, a sua lógica de ação e seus recursos de poder. Segundo Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P (2007) a diplomacia da saúde global tem como objetivo capturar esses processos multi- nível e multi- ator de negociação e gerenciar o ambiente de política global para a saúde. O Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM (2013)13, mencionado anteriormente, retrata esse processo multi - nível e multi - ator de forma clara, ao mostrar que as ações conjuntas dos governos nacionais, da comunidade internacional, da sociedade civil e do setor privado estão tornando realidade o cumprimento dos ODM. Um relatório da Organização Panamericana de Saúde (OPAS) (2013)14 indica que os países da América Latina e do Caribe devem reforçar o sistema de saúde para avançar no acesso universal ao tratamento antirretroviral (TAR) contra o HIV/AIDS. De acordo com o texto intitulado ―Tratamento antirretroviral sobre a Lupa: uma Análise da Saúde Pública‖, que estuda as vulnerabilidades existentes, a América Latina e o Caribe têm os índices mais altos de cobertura de tratamentos antirretrovirais, mas o desabastecimento de medicamentos pode impedir a sustentabilidade do programa. 13

Relatório disponível em: http://www.unric.org/html/portuguese/mdg/MDG-PT-2013.pdf Acesso em 22/02/2014. 14 Relatório disponível em: http://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=23710&Itemid= Acesso em 22/02/2014.

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Como exposto no decorrer do artigo, a sociedade civil tem desempenhado um papel fundamental na luta pela sustentabilidade do programa de acesso universal aos antirretrovirais. De acordo com o relatório da OPAS supracitado, na reunião de Tratamento 2.0 na América Latina, realizada em Buenos Aires, em 2012, a sociedade civil definiu a sua função em três áreas fundamentais: (a) o protesto social, (b) a supervisão e (c) aconselhamento voluntário, especialmente no que diz respeito à adesão do tratamento e o alcance das comunidades mais expostas. Determinou-se que essas funções devem ser colocadas dentro de um quadro de cooperação que inclui a coordenação e sustentabilidade financeira. Outro ponto importante destacado no relatório é que vários países já estabeleceram normas que incluem a participação da comunidade na prestação de cuidados de saúde e serviços de tratamento. No entanto, merece destaque o fato de que quando existem esses serviços, a cobertura é limitada, ao passo que o financiamento vem principalmente de fundos externos (principalmente o Fundo Global para a AIDS, tuberculose e malária). Entretanto, a saída de recursos internacionais e o enfraquecimento da relação entre o governo e a sociedade civil têm colocado a eficácia e a sustentabilidade desse trabalho em risco. Como exposto nesse artigo, o programa de AIDS brasileiro se consolidou da conexão forte com as ONGs. Desse modo, as mesmas não podem ficar sem recursos e motivação. Apesar do evidente interesse e capacidade das ONGs e dos movimentos da sociedade civildo Brasil para assegurar a manutenção das políticas públicas de saúde, o diálogo com o governo ainda parece insuficiente. É primordial destacar que o engajamento das organizações e dos movimentos dasociedade civil do Brasil com temas de políticainternacional, dentre eles a questão das patentes e saúde pública - e seus impactos sobre a realidade nacional – é um tanto peculiar, por ser um campo carente de regulamentação e apoio nopaís. Ademais, o marco regulatório das Organizações daSociedade Civil, parte das demandas da sociedadecivil organizada, aindanão se consolidou, o que dificulta o acesso arecursos e a prestação de contas transparente (LOPES, 2013). Ponto crucial na sustentabilidade e sucesso do programa e que torna clara a participação da sociedade civil são as denúncias a respeito da falta de médicos, leitos e exames para os pacientes; de medicamentos para tratar doenças causadas pelos antirretrovirais; bem como episódios de desabastecimento do coquetel em postos de saúde, obrigando os pacientes a interromper o tratamento. Ao passo que o tratamento com antirretrovirais acabam acarretando no surgimento de outras doenças, a defasagem da saúde pública do Brasil compromete diretamente os resultados. De acordo com O Ministério da 48


Saúde, 250 mil brasileiros são portadores do vírus sem que saibam, o que torna relevante a ampliação dos diagnósticos e monitoramento da eficácia do programa. O fato de o programa ter sido descentralizado em 2003, dependendo dos estados e municípios para a devida execução, acaba dificultando ainda mais sua consecução, inclusive na questão do repasse do investimento direcionado pela união às ONGs. É de extrema relevância destacar que outro desafio para prosseguimento do programa é o custo dos novos medicamentos adotados pelo consenso terapêutico, assim como as crescentes barreiras patentearias para o acesso dos mesmos. Nesse sentido, tivemos um grande avanço, de acordo com o Portal Fiocruz (2014)15. Segundo o Portal, o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) será o responsável pela produção do medicamento Sulfato de Atazanavir, nas concentrações 150 mg, 200 mg e 300mg. Assim, o Brasil terá a garantia do abastecimento para o Sistema Único de Saúde (SUS). A produção nacional do antirretroviral partiu da Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDP) firmada entre o Ministério da Saúde – por meio de Farmanguinhos – e o laboratório internacional Bristol-Myers Squibb. A produção será realizada em território nacional, e terá início em 2015. A parceria prevê ainda a transferência da tecnologia do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) a uma indústria farmoquímica privada nacional, garantindo toda a cadeia produtiva do medicamento em território brasileiro. Segundo o site do Farmaguinhos (2014)16, O Ministério da Saúde disponibiliza gratuitamente 20 antirretrovirais, que representam investimentos de R$ 850 milhões por ano na aquisição dos medicamentos. Desses 20, oito são objeto de PDP. Além do Atazanavir, o país terá Tenofovir, Raltegravir, Ritonavir Termoestável, Lopinavir + Ritonavir, Ritonavir Cápsula Gel. Mole, Tenofovir + Lamivudina (2 em 1) e Tenofovir + Lamivudina + Efavirenz (3 em 1), anunciados em 2012, o que comprova o relevante avanço no desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional. Tendo em vista que o Brasil está cada vez mais presente na esfera internacional e na cooperação Sul-Sul em saúde, por desenvolver um modelo de cooperação participativo, democrático, inclusivo e amplo; capaz de abrigar não apenas a dimensão da saúde, mas também seus determinantes sociais e políticas intersetoriais(MRE, 2008; ALMEIDA, 2009)o desenvolvimento da indústria farmacêutica nacional irá refletir de forma positiva nos países 15

Saiba mais em: https://portal.fiocruz.br/pt-br/content/instituto-de-tencologia-em-farmacos-produzira-sulfatode-atazanavir Acessado em 23/02/2014. 16 Saiba mais em: http://www2.far.fiocruz.br/farmanguinhos/index.php?option=com_content&view=article&id=742&catid=53&Ite mid=94 Acessado em 23/02/2014.

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parceiros. Já é fato que o país se configurou como um dos maiores doadores através do envolvimento em diplomacia da saúde global. A ajuda bilateral tem sido menos focada em assistência financeira, sendo pautada na transferência de ideias, técnicas e conhecimento científico. Nesse sentido, o Programa Nacional de AIDS, especificamente o Centro de Cooperação Técnica em HIV/AIDS (CICT), enviou equipes de médicos e especialistas de laboratório farmacêutico para treinar funcionários em Moçambique, Nigéria e Angola. Ademais, o CICT convidou as autoridades de saúde da África para receberem o conhecimento técnico e treinamento na construção e manutenção da capacidade de produção doméstica (CEPIK; SOUSA, 2011) No geral, essa exportação de políticas de saúde pública, especialização técnica e capacitação aumentaram ainda mais a capacidade do país para alavancar influência por meio do soft powerdiplomático. Entretanto, devido à assimetria entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento a respeito da capacidade tecnológica e domínio de conhecimento necessário para competir na esfera das patentes farmacêuticas; o que implica diretamente na aptidão da população ter acesso a medicamentos essenciais, a cooperação entre países do sul, seja no âmbito da sociedade civil organizada, seja no campo governamental, é fator essencial para a projeção do trabalho da sociedade civil brasileira. Por meio dessa cooperação, foram alcançadas inúmeras parcerias que, por sua vez, ampliaram a colaboração e troca de informações e tecnologias; e, de forma a ser destacada, legitimou a participação efetiva da sociedade civil nacional e internacional na concretude dos acordos entre os governos dos seus países.

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CONCLUSÃO

Foi o suporte doméstico, resultado da sinergia entre governo e sociedade civil; e o soft power diplomático do Brasil, junto aos demais países em desenvolvimento, que assegurou que a pressão para maior flexibilização do acordo TRIPS viesse como resultado das negociações que levaram à Declaração de Doha e Saúde Pública. O que emergiu foi uma coesão de governos com interesses comuns; ONGs e organizações da sociedade civil chaves, através das quais houve uma atuação efetiva na arena doméstica e internacional, na busca pela garantia do acesso a medicamentos e proteção do direito fundamental a saúde. Mesmo diante desse avanço, a problemática que envolve a sustentabilidade de políticas públicas na área da saúde tem, como cerne, o contexto em que se inserem os Direitos de Propriedade Intelectual, seja pelo maior escopo atingido através dos diversos fóruns que, agora, discutem a temática; pela inquestionável disparidade de poder político e 50


econômicopresente entre os Estados membros da OMC; ou, ainda, pelo latente monopólio da indústria farmacêutica que tanto assola os países em desenvolvimento, com maior presença das doenças epidêmicas. Por conseguinte, os PEDs enfrentam desafios substanciais para guiar o sistema em seu benefício, sendo primordial a cooperação entre eles, agindo em conjunto na defesa de políticas públicas favoráveis às suas necessidades, que sobreponham o interesse público ao lucro privado. A respeito da sustentabilidade do acesso aos antirretrovirais, ponto chave desse artigo, tanto os PEDs quanto as ONGs precisam atuar no sentido de alcançar um maior esclarecimento quanto às flexibilidades parte do Acordo TRIPS, principalmente no que tange a quebra de patentes de medicamentos essenciais. Concomitantemente, torna-se cabal pensar em políticas públicas na área de ciência e tecnologia que facilitem a P&D de novos produtos, inclusive através de pesquisas financiadas com recursos públicos no âmbito das universidades. A sociedade civil tem que pressionar de maneira a desenvolver capacidade de produção, gerando maior competência para a indústria local e maior concorrência de mercado. Essa medida é aplicável justamente pelo fato do Brasil possuir uma indústria farmacêutica nacional com relativa capacidade de produção, sendo um dos poucos países em desenvolvimento, ao lado de Índia e China, com capacidade de produzir diversos medicamentos que atualmente estão protegidos por patentes. O resultado desse investimento será positivo tanto no âmbito interno, quanto no cenário internacional, visto que o Brasil poderá contribuir para solucionar problemas de saúde pública que são comuns em países mais pobres, principalmente através da continuidade do viés de cooperação Sul-Sul.

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O DEVER DE INFORMAÇÃO E A RESPONSABILIDADE MÉDICA DUTY OF INFORMATION AND MEDICAL LIABILITY Emanuel Lins Galvão de Albuquerque Bastos1 Sumário: 1 Introdução. 2 Evolução histórica. 3 Do dever profissional. 4 O consentimento informado. 5 A teoria dos riscos significativos. 6 A iatrogenia. 7 O cuidado na prestação da informação - protocolo spikes. 8 Aplicação do código de defesa do consumidor na relação médico-paciente. 9 A falta de informações e o dever de reparação. 10 As teorias limitadoras da responsabilidade médica. 10.1 Teoria do âmbito de proteção da norma. 10.2 Teoria doconsentimento hipotético. 10.3 Teoria dacausalidade hipotética. 11 O dever do sigilo. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO A atividade médica é marcada pelo risco:as intervenções clínicas apresentam perigo potencial de causar danos ao paciente.Com ser assim, o médico devecientificaro enfermo do procedimento e de suas consequências, dando condições para esse avaliar se lhe convém realizar o tratamento. O dever de esclarecimentos assume notável importância diante da responsabilização pelos riscos da terapia. Haveria o médico de indenizar o paciente por falta com seu dever de informação? Nesse esteio, impende se analisar a extensão do dever de informação, quais os riscos a serem levados a lume do paciente e a responsabilidade do médico em face da obrigação de prestar esclarecimentos.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA Na antiguidade clássica, inexistia o dever de esclarecimento sobre os riscos da intervenção clínica. Sustentava-se caber somente ao médico o cuidado e escolha de tratamentos a realizar no corpo do enfermo, considerando ser ele o profissional e detentor dos conhecimentos específicos à cura. Imperava a ética hipocrática do paternalismo clínico (BEIER, 2010). A análise etimológica do termo ―paternalismo‖, oriundo do latim pater, traduz a existência de um poder subjugando outro, calcado na premissa de lhe fazer o bem.Consoante ensinamento de Rui Stoco (2007, p. 552), o ato médico se resumia no liame entre uma confiança - a do paciente - e uma consciência - a do galeno. 1

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Intervenções abusivas e a valorização do homem como sujeito de direitos deram azo a uma mudança de paradigma(BEIER, 2010).O império da vontade médica na tomada de decisões, a perdurar até meados do início do Século XX, foi suplantado pelo princípio da autonomia do paciente(PEREIRA, 2005). Em 1914, quando tribunais americanos despertaram para o reconhecimento da autodeterminação do enfermo, o Juiz Benjamin Cardozo aduziu que ―todo ser humano de idade adulta e mente sã tem o direito de determinar o que deve ser feito com o seu próprio corpo2‖. Em 1957, foi criada a expressão informedconsent (consentimento informado) por um Tribunal da Califórnia e houve proliferação de decisões reconhecendo o dever de informação, o qual também passou a ser assentido pelos ordenamentos de países anglo-saxônicos e da Europa Ocidental (PEREIRA, 2005). No Brasil, os Códigos de Deontologia Médica de 1929, 1931 e 1945 prescindiam do agir médico a aquiescência do paciente, estipulando apenas dever de notificação nos casos de moléstia grave ou desenlace fatal (no código de 29) e autorização dos pais ou responsáveis para realização de operações em menores e incapazes (no códex de 31). O dever de esclarecimento médico e a necessidade de consentimento do paciente para realização de procedimentos só foram incorporados ao ordenamento com o advento do Código de Ética Médica de 1953, em seus arts. 313 e 494. Atualmente, o consentimento informado encontra esteio no Código de Ética de 2009, instituído através da Resolução n.º 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina, a vaticinar no seu art. 24 ser vedado ao médico ―deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo‖.

3 DO DEVER PROFISSIONAL Conforme alhures mencionado, a ética médica de não se esclarecer os perigos do procedimento foi superada pelo amplo esclarecimento das consequências de uma intervenção, em apanágio à autonomia do paciente.

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No processoSchloendorff contra a Society of New York Hospitals. Tradução pelo Autor. ―Artigo 31º- O médico tem o dever da veracidade para com o seu doente, devendo informá-lo do diagnóstico, salvo se essas informações puderem causar-lhe dano, caso em que serão prestadas à família.‖ 4 ―Artigo 49º- O médico salvo caso de ‗iminente perigo de vida‘, não praticará intervenção cirúrgica sem o prévio consentimento, tácito ou explicito, do paciente ou do seu representante legal, se se tratar de menor ou de incapaz de consentir.‖ 3

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Não mais se concebe o médico oferecer ao enfermo informações incompletas ou ser omisso quanto aos riscos do ato clínico. A obrigação de esclarecimento assumiu natureza de dever profissional(PEREIRA, 2005). O encargo de esclarecimentos é corolário da boa-fé objetiva, do dever de cooperação, lealdade, transparência, probidade e de confiança a imperar na relação médica (CAVALIERI, 2014).Nesse sentido, o art. 34 do Código de Ética Médica dispõe que o médico deve informar ao paciente o diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos do tratamento. No escólio de José de Aguiar Dias (2011, p. 285), o dever de conselhos é obrigaçãoimplícita no contrato clínico: cabe ao médicoinstruir o paciente sobre as precauções indispensáveis diante de seu estado de saúde e lhe alumiar os riscos do tratamento, sem nada lhe ocultar. Trata-se do que a doutrina alemã denomina de Aufklärungsppflicht - dever de informar e esclarecer dos médicos (STOCO, 2007). Visto que esteja a lidar com a saúde do paciente, havendo a possibilidade inclusive de morte em certos casos, faz-se mister o médico cientificá-lo de todas as complicações que podem advir da intervenção. Afirma André Gonçalo Pereira (2005, p. 72) que ―só o consentimento devidamente esclarecido permite transferir para o paciente os referidos riscos que de outro modo deverão ser suportados pelo médico‖. O direito do paciente de dispor sobre o próprio corpo figura como a justificativa jurídica da obrigação de informar, conforme doutrina de Catherine Paley-Vincent (2002, apud STOCO, 2007). O esclarecimento visa permitir ao paciente poder se autodeterminar, valorando se é vantajoso consentir na feitura da terapia médica.

4 O CONSENTIMENTO INFORMADO

Para além do dever de informação, é indispensável ao médico colher o consentimento do paciente, o qual precisa estar ciente dos riscos da intervenção. A decisão de anuência à feitura do procedimento é do enfermo (ou de sua família, no caso deste quedar impossibilitado de manifestar sua vontade), o qual precisa estar suficientementeesclarecido de seus riscos. Segundo André Gonçalo Pereira (2005, p. 104), há riscos os quais o Direito pretendia recaírem sobre a esfera do paciente e outros a incidir na esfera médica. Estes últimos devem ser sempre informados ao enfermo, ―para que este em liberdade e em consciência decida 56


sobre se autoriza a intervenção, autocolocando-se em perigo...‖. Os riscos a orbitar na esfera do paciente, pela extrema raridade, imprevisibilidade e conhecimento comum, não precisariam ser transmitidos. Kfouri Neto (2009, p. 40) aduz consistir o consentimento do paciente em prérequisito essencial a todo atoclínico, visto o médico ser responsabilizado pelos riscos não divulgados e, por conseguinte, não assentidos pelo enfermo. O profissional só se exime da responsabilidade quando esclarece os riscos e o paciente os assume, em aquiescência livre e clara. O Código de Ética da Medicina, ao versar sobre a anuência esclarecida, giza no art. 22 ser defeso ao médico deixar de obter o consentimento do paciente após esclarecê-lo sobre a intervenção. No art. 24, dispõe ser direito do paciente decidir livremente sobre sua pessoa ou bem-estar. O consentimento informado recebe tutela jurídica em virtude de seu aspecto dúplice: é condição indispensável para a formação do contrato entre médico e paciente e é expressão de uma liberdade fundamental do indivíduo de recusar sofrer danos à sua integridade física(PENNEAU, 1977, apudKFOURI NETO, 2009). A obtenção da anuência esclarecida, importa frisar,não é apenasum dever legal. Constitui-se em meio propulsor do vínculo de confiança a imperar na relação médicopaciente.

Consentimento informado representa mais do que uma mera faculdade de escolha do médico, da recusa (ou dissenso) sobre uma terapia, ou mero requisito para afastar o espectro da negligência médica. A obtenção do consentimento representará o corolário do ‗processo dialógico e de recíprocas informações‘ entre médico e paciente [...] (KFOURI NETO, 2002).

Tal consentimento deve ser dado com conhecimento de causa, e não pelo doente mal informado. Nesse diapasão, são requisitos do consentimento: a) ser voluntário, b) dado por quem seja capaz, c) após esclarecimento substancial (KFOURI NETO, 2002). Significa dizer que só será válido se for oferecido por livre vontade daquele a se encontrar em plenas faculdades mentais, após ter sido devidamente informado dos riscos da intervenção. Desta feita, se o paciente estiver em estado de excitação para realização de procedimento meramente estético, verbi gratia, aconselhável será o cancelamento ou adiamento da intervenção, visto essa situação comprometer o livre-arbítrio do cliente e invalidar a anuência à intervenção médica(DIAS, 2011). 57


Em se tratando de cirurgia, especialmente a estética, assevera STOCO (2007, p. 553) dever o esclarecimento ser completo e exaustivo,destituído de coação, influência ou indução, cabendoao médico alertar o paciente sobre os resultados do procedimento em termos compreensíveis. Do contrário, não será alcançado o consentimento informado. Embora não se exijam formalidades ao ato de consentir, Kfouri Neto (2002, p. 300),com o escopo de resguardar o médico, aduz que o consentimento deverá ser expresso de forma escrita; quando verbal, deverá ser testemunhado. Assim, o médico contará com lastro probatório a lhe eximir de responsabilidade. Porém, nem sempre será indispensável a aquiescência do paciente. Até então se defendeu a necessidade de o médico obter o consentimento informado do enfermo.Todavia,é preciso destacar algumas situações que fazem prescindir a autorização do enfermo.José de Aguiar Dias (2011, 289) exemplificao que seriam circunstâncias excepcionais: nos casos de emergência (e não sendo possível contatar parentes da pessoa) e em face de propósito suicida do paciente.No primeiro caso, porque há iminente perigo à vida. No segundo, porque a perturbação mental impede a manifestação livre e clara de vontade. Há de se acrescentar as situações de tratamento compulsório, a exemplo de campanhas de vacinação obrigatórias, porquanto se mitigue o direito de autodeterminação do paciente em prol do direito à saúde a nível coletivo. Também é forçoso o tratamento do preso, por se encontrar em proteção do Estado. Ademais, impende pontuar que, para os casos de enfermo menor ou alienado, a anuência ao tratamento precisará ser advinda de seus responsáveis(DIAS, 2011).

5 A TEORIA DOS RISCOS SIGNIFICATIVOS

A doutrina portuguesa tradicional sustentava o dever de informação albergar apenas os riscos ―normais e previsíveis‖, sérios, os quais se apresentassem com certa frequência, excluindo-se os graves, particulares, hipotéticos e anormais. O objetivo era não atemorizar o paciente com riscos longínquos, que fugissem à álea da contumácia(PEREIRA, 2005). Posteriormente, alguns pensadores passaram a defender a teoria dos riscos significativos, reconhecendo a obrigação de se esclarecer o paciente dos riscos ―que o médico sabe ou devia saber que são importantes e pertinentes‖(PEREIRA, 2005, p. 75).

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Para os sequazes dessa teoria, são quatro os critérios a permitir a aferição do risco significativo: a) sua frequência; b) sua gravidade; c) a necessidade terapêutica da intervenção; e d) o comportamento do paciente (PEREIRA, 2005). Em face da frequência, defende-se relação de direta proporcionalidade entre ela e o dever de informar: quanto mais recorrentes os perigos, maior será a obrigação de esclarecimento. Os riscos frequentes, ainda que de pequena gravidade, devem ser sempre esclarecidos. André Gonçalo Pereira (2005, p. 79) pontua a frequência do risco não dever ser analisada in abstrato, porquanto seja preciso atentar para os ―riscos especializados‖, levandose em conta, exempli gratia, o estado do paciente, o grau de instrução do médico e a estrutura do centro hospitalar. No que pertine à gravidade dos riscos, ao liame entre essa e o dever de informar também se aplica proporção direta: se maior for a gravidade, mais detalhados serão os esclarecimentos. Lógica diferente rege a obrigação de esclarecer em face do grau de necessidade da intervenção: quanto maior for a necessidade, menos detalhado poderá ser o esclarecimento dos riscos. Permite-se uma flexibilização do dever de informação em razão da cogência da medida. Deve-se ressaltar, não obstante, que nesses casos haverá mitigação do dever de informar, e não sua extinção. Noutra toada, procedimentos menos necessários como os meramente estéticos, doação de órgãos e cirurgias voluntárias (como vasectomia, rinoplastia), deveriam ser precedidos de farto esclarecimento dos riscos(PEREIRA, 2005). Ademais, os partidários da corrente do risco significativo defendem os hábitos, personalidade e grau de instrução do paciente poderem fazer variar a extensão do dever de esclarecimento. Ao paciente com formação médica, por exemplo, a obrigação de informar restaria atenuada.

6 A IATROGENIA

Já se afirmou o risco ser inerente à atividade médica. Mesmo os procedimentos clínicos eficientes podem implicar em complicações à saúde do paciente.Às alterações patológicas provocadas ao paciente pelo médicodá-se o nome de danos iatrogênicos(STOCO, 2007). 59


Rui Stoco(2007, p. 588), forte em lição de Paulo Jatene, aduz existirem três tipos de iatrogenia: a) lesões previsíveis e esperadas do tratamento, b) lesões previsíveis, mas inesperadas, inerentes à técnica e c) lesões decorrentes de falha humana. (...) a ‗iatrogenia‘ representa um dano causado ao paciente pelo médico, em razão de sua ação ou omissão no exercício de sua atividade ou especialização, e que iatrogenia é um fato natural que poderá qualificar-se como ato jurídico, e, portanto, lícito, ou ato sem respaldo na lei, e, portanto, ilícito, como, aliás, todos os demais atos, praticados no mundo fenomênico (STOCO, 2007, p. 590).

O insigne doutrinadorcontinua sua exposição aduzindoexistirem procedimentos em que a lesão se constitui como única forma de se ministrar o tratamento, exemplificando com a impossibilidade de retirada de apêndice sem o corte no tecido que recobre os órgãos. Desta forma, atuaria o médico em exercício regular de direito, sendo as lesões previsíveis e aceitas em prol do benefício à saúde. O exercício normal da atividade médica ou cirúrgica justifica-se formalmente porque consiste no exercício regular de uma faculdade legítima e materialmente porque constitui meio justo para um justo fim ou meio adequado para um fim reconhecido pela ordem estatal(STOCO, 2007, p. 589).

André Gonçalo Pereira (2005, p. 72) leciona suceder com frequência o dano iatrogênico, independentemente de falha médica ou da instituição hospitalar. Para fins do galeno se eximir da responsabilidade pela iatrogenia, deveráesclarecer todos os riscos ao paciente, sob pena de dever suportar aqueles que se concretizarem.

7 O CUIDADO NA PRESTAÇÃO DA INFORMAÇÃO- PROTOCOLO SPIKES Embora exista dever de esclarecimento em face dos riscos da intervenção, há a necessidade de se manter esperançoso o paciente, para este não se angustiar ou desesperar. Em casos graves, com vultosa possibilidade de óbito, a informação deve ser prestada ao responsável. Ao paciente, será compreensível a informação ser dissimulada, de modo a amenizar seu sofrimento (STOCO, 2007). O prognóstico grave pode ser compreensivelmente dissimulado; o fatal, revelado com circunspecção ao responsável. Em se tratando de risco terapêutico, o médico pode advertir os riscos previsíveis e comuns, os excepcionais podem ficar na sombra (STOCO, 2007, p. 553).

Nos casos de pacientes acometidos com quadros clínicos de acentuada gravidade, a literatura médicaapontaum método estratégico para a transmissão de más notícias:o Protocolo 60


SPIKES

-

Setting

up,

Perception,

Invitation,

Knowledge,Emotions,

Strategyandsummary(MEDEIROS, 2013). De acordo com o método, há seis passos para a prestação dos esclarecimentos. Num primeiro momento, o médico precisa se preparar para o encontro com o paciente, conhecendo seu histórico, identificando o que este já conhece sobre a doença e como ele se comporta diante da notícia (setting up); após, identifica os sentimentos do paciente, como está se sentindo e se se dispõe a falar sobre o assunto (perception); depois disso, o convida ao diálogo, permitindo a presença de um ente querido quando necessário (invitation). Criado um ambiente favorável à conversação, transmite-lhe as informações necessárias, explicando a doença, propondo tratamentos e alertando aos seus riscos (knowledge); nesse momento deverá se mostrar solidário frente às angústias do paciente, permitindo que este expresse suas emoções (emotions); alfim, precisará resumir quais serão as estratégias para fins de tratar a doença, traçando planos de cuidado em integração com os familiares do paciente (strategyandsummary). Conforme bastante profundido neste trabalho, o médico deverá ser diligente na prestação das informações, deixando o paciente a par dos riscos da intervenção. Porém, considerando o abalo psicológico a se encontrar o enfermo, caberá ao médico cautela no atendimento, para que o paciente se sinta confortado e não perca a esperança de cura.

8 APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE José de Aguiar Dias (2011, p. 277) ensina não restar dúvidas hoje sobre a natureza contratual da responsabilidade médica.A tendência da substituição da responsabilidade aquiliana pela contratual, profetizada por Josserand, firmou-se na jurisprudência francesa desde a década de 40. No Brasil, a responsabilidade do médico encontra previsão legal no capítulo II do Título IX do Código Civil, atinente à responsabilidade delitual. Tal fato, porém, não afasta nem nega a existência de uma relação contratual: o dever médico de reparação pode exsurgir por falta de execução do contrato (responsabilidade contratual) ou pelo cometimento de ato ilícito (responsabilidade aquiliana)(DIAS, 2011). Considerando tratar-se de relação contratual, na qual o médico presta serviços ao paciente (pessoa física a utilizar dos serviços como destinatário final), e existindo manifesta

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desproporção de forças (vulnerabilidade do enfermo),na prática da medicina incide a Lei Federal n.º 8.078/90, o Código de Defesa do consumidor. Atentando ao regramento pertinente à relação médico-enfermo, tem-se que o microcosmo consumerista confere ao hipossuficiente tratamento especial (art. 4º, I5), facilitando-lhe os meios de defesa. Além disso, obriga o médico a prestar informação adequada e clara sobre o serviço (art. 6º, III6). Descumprindo o dever de esclarecimentos, o clínicoresponderá pela reparação dos danos causados por informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos do serviço (art. 147). O codex ressalva no art. 14, §4º8, ser subjetiva a responsabilidade do profissional liberal, é dizer, apurada mediante a verificação de culpa. Nesta senda, observa-se que o paciente pode utilizar as regras do Código de Defesa do Consumidor com o escopo de garantir a reparação de danos causados pela falta médica de informação. 9 A FALTA DE INFORMAÇÕES E O DEVER DE REPARAÇÃO

Kfouri Neto (2009, p. 41) destaca normalmente ser irrelevante a discussão sobre a qualidade da informação nos casos em que há dano por culpa médica; se há dano e nexo de causalidade, a responsabilidade é inconteste. Porém, na hipótese de intervenção médica correta, exsurge a problemática de dever ou não o médico responder pela falta de esclarecimentos. Lorenzetti (1997, apud KFOURI NETO, 2009) vaticina a inexistência de consentimento informado poder constituir lesão autônoma, por si só capaz de ensejar o dever de reparação- a culpa surgiria pela falta de informação, independentemente de negligência no 5

―Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (...).‖ 6 ―Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) II - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (...).‖ 7 ―Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (...).‖ 8 ―Art. 14 (...). § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.‖

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tratamento.Rui Stoco (2007, p. 554)asseveraser possível a responsabilização médica antes mesmo de intervenções ou tratamentos em decorrência dafalta de informação. 9 Emboraab initio pareça coerente sustentar-se o dever de indenizarem decorrência única da falta de esclarecimentos(em virtude de lesão ao bem jurídico da autodeterminação do paciente), não se pode concluir pela responsabilização automática do médico, porquanto nessa hipótese parece o dano, acaso existente, ser deveras longínquo.A angústia do paciente em saber que poderia ter sofrido lesões com o tratamento, quando no mundo dos fatos nada aconteceu, não se afigura merecedora de compensação. Sérgio Cavalieri (2014, p. 92) afirma não bastar o risco de dano: ―sem uma consequência concreta, lesiva ao patrimônio econômico ou moral, não se impõe o dever de reparar‖. Inclusive porque é função da responsabilidade civil a reparação integral do dano, a saber, repor-se a vítima ao status quo ante.É de se considerar que o tratamento só trouxe benefícios ao paciente. Tendo em vista ele se encontrar em situação melhor, o que seria indenizado? Decerto que nada. Jean Penneau (1990, apud STOCO, 2007) leciona a falta de informação não redundar obrigatoriamente em responsabilidade, porquanto nem sempre exista dano. Outrossim, se assim não fosse, criar-se-ia ambiente propício àmedicina defensiva, burocratizando a relação médico-paciente, fazendo com que o profissional, antes de proceder a intervenções clínicas, tivesse de se munir de extensos formulários e de todos os examesao seu alcance (até os desnecessários) para fins de se resguardar de eventuais processos judiciais. Ocorre que em muitos casos não há tempo para tamanha investigação preliminar, visto lidar o médico com a saúde e vida do enfermo. Ademais, a medicina defensiva criaria embaraços e desconfiança na relaçãomédico-paciente, os quais se deseja sejam parceiros na atividade terapêutica (PEREIRA, 2005). Assim, persiste maior coerência à doutrina que sustenta só haver ônus de reparação caso a falta de informações dê azoa danos concretos ao paciente.

10 AS TEORIAS LIMITADORAS DA RESPONSABILIDADE MÉDICA

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E continua o doutrinador: ―ora, a falta de informação acerca das consequências do tratamento ou da intervenção cirúrgica poderá conduzir à realização do procedimento, com o surgimento de sequelas ou incômodos ou outras intercorrências que poderiam não ser assumidas pelo paciente se tivesse a informação prévia e adequada‖ (STOCO, 2007, p. 554).

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No Direito Europeu, surgiram teorias a minorar o largo espectro de responsabilidade médica, poisanalisando o dever de informar de forma não acurada, poder-se-ia concluir que qualquer omissão de informação daria ensejo a um ilícito civil, fato a impedir inclusive o regular exercício da medicina. Intencionando evitar uma ―objetivação‖ da responsabilidade, as teorias do âmbito de proteção da norma, do consentimento hipotético e da causalidade hipotética exsurgiram como defesas médicas. 10.1 TEORIA DO ÂMBITO DE PROTEÇÃO DA NORMA A teoria do âmbito de proteção da norma foi consagrada nas doutrinas austríaca e alemã ese relaciona com a violação de uma disposição legal de proteção. É considerada como uma superação da teoria da causalidade adequada, discernindo quais os danos que teria o legislador razoavelmente pretendido impedir através da expedição da norma (PEREIRA, 2005). Para esta teoria, apenas se justifica a responsabilidade médica quando o dano se insere dentro do âmbito de proteção da norma; a saber, só há dever de reparar se o dano estiver dentro dos limites razoáveis do que era pretensão do legislador combater. Deve existir, portanto, nexo de imputação da ilicitude entre a conduta e o dano. Em sendo assim, afirma André Gonçalo Pereira (2009, pag. 93) que ―no caso de informação insuficiente sobre os riscos da intervenção, deve-se delimitar a responsabilidade na medida da concretização dos riscos que ilicitamente não foram informados, isto é, aqueles que deveriam ter sido informados e não o foram‖. AJurisprudência do Tribunal de Justiça Federal da Alemanha (BGH) consagra a proteção do paciente exigirque ele esteja sempre informado das consequências positivas e negativas do tratamento, para que tenha uma informação base (Grundaufklärung) a lhe permitir compreender, ao menos genericamente, o vulto da gravidade do procedimento e os tipos de danos passíveis de ocorrer,devendo ser cientificado do risco mais grave da intervenção. Se o médico não ofertar ao paciente este mínimo de esclarecimentos que estejam dentro do âmbito de proteção da norma, responderá por todos os danos causados, ainda que sejam longínquos(PEREIRA, 2005). 10.2TEORIA DOCONSENTIMENTO HIPOTÉTICO

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Através do consentimento hipotético, se sustenta uma limitação da responsabilidade médica por omissão de informações, pautando-se na seguinte premissa: ainda que sabedor fosse dos riscos, o paciente optaria pela realização do procedimento. Também denominada de comportamento lícito alternativo, a tese imputa ao médico o ônus de provar que o paciente anuiria ao tratamento mesmo se tivesse sido informado sobre os riscos da intervenção(PEREIRA, 200). Noutro flanco, caso o paciente alegue que recusaria a intervenção se houvesse recebido os esclarecimentos necessários, deverá provar a possibilidade de que passaria por um conflito de decisão,mostrando a plausibilidade de eventual recusa. Não precisará comprovar como se determinaria, mas apenas a viabilidade da dúvida na feitura do procedimento médico (PEREIRA, 2005). Eisner (1992, apud PEREIRA, 2005) professa serem condições à defesa fundada no consentimento hipotético: a) que ao paciente se tivesse ofertado informação base, b) com fundada presunção de que não negaria se submeter ao tratamento, c) sendo a intervenção medicamente indicada, conduzindo melhoria na saúde do paciente e visando afastar perigo grave. STOCO (2007, p. 595) entende o consentimento hipotético ser causa excludente de responsabilidade. 10.3 TEORIA DACAUSALIDADE HIPOTÉTICA Por meio da causalidade hipotética,sustenta-seos resultados da intervenção médica, relativamente à qual houve falta de informações, serem menos nefastos que as consequências a advir da ausência de intervenção clínica.(PEREIRA, 2005). É dizer, defende-se a inexistência de danos: se a omissão médica causaria maiores gravames ao paciente, significa o procedimento clínico ter trazido apenas benefícios ao enfermo. Poder-se-ia sustentar a causalidade hipotética levando em conta ateoria da diferença, no que pertine a danos patrimoniais, analisando-se a diferença entre a situação real a se encontrar a vítima e a condiçãona qual se encontraria acaso não havido o ilícito. Se o paciente auferir melhoras com a intervenção médica, não haverá dever de indenização pelo médico.

11 O DEVER DE SIGILO

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Não devem existir segredos na relação médico-paciente. Todavia,perante terceiros o raciocínio é diverso, havendo obrigação médica denão divulgar as informações relativas ao estado de seus pacientes. O Código de Ética Médica de 1988 proclama nos seus artigos 102 a 109 regras alusivas ao segredo médico, determinando, dentre outras normas, ser vedado ao profissional revelar fatos conhecidos em decorrência de seu múnus, ressalvadas as situações de justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente.A violação de segredo profissional é considerada ainda ilícito penal, entabulado no art. 15410 do Código Penal Brasileiro. O segredo médico, segundo Kfouri Neto (2002, pag. 382),não subsiste como fim em si mesmo, e sim como instrumento a serviço do respeito à vida privada, à intimidade, perdurando inclusive se extinta a relação médico-paciente.Não é apenas dever médico; é direito do paciente. Tem-se enfatizado a importância da confidencialidade, especialmente a partir da constituição de 1988, a Constituição-cidadã, e a introdução, no art. 5º, da tutela específica do patrimônio moral (art. 5º, X: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação) (KFOURI NETO, 2009, p. 194).

Com ser assim, se o profissional revelar segredo a ele confiado, causando danos ao paciente, dará azo ao dever de indenizar. Há duas correntes doutrinárias tratando da extensão do dever de sigilo: a primeira, a teoria relativista, apregoa ser permitida a mitigação diante de certos valores jurídicos, éticos, morais e sociais de relevo. Já para a teoria absolutista, considera-se o dever de sigilo como questão de ordem pública, cuja revelação não se admite(KFOURI NETO, 2009). José de Aguiar Dias (2011, pag. 293) admite apenas em situações excepcionais ser possível a mitigação do dever de sigilo, a exemplo de acidentes coletivos e hospitalização de pessoa pública. Porém, faz a ressalva de se prestarem apenas informações genéricas. A exemplificar o dever de sigilo, o STJ, em julgamento no Recurso Especial 159.527/RJ, decidiu que ―viola a ética médica a entrega de prontuário de paciente internado à companhia seguradora responsável pelo reembolso das despesas‖.

CONCLUSÃO 10

―Art. 154 - Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. (...).‖

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A obrigação médica de esclarecer os riscos do tratamento ao paciente alçou patamar de dever profissional. O enfermo precisa estar ciente dos riscos da intervenção, afinal, somente quando devidamente informado será capaz de manifestar seu consentimento livre e consciente. Em atenção à teoria dos riscos significativos, caberá ao galenoanunciar todos os riscos importantes e pertinentes, analisando a gravidade, frequência, necessidade da intervenção e comportamento do paciente. Se o médico não informar os perigos da terapia, deverá responder pelos riscos que se concretizarem. Tal responsabilidade, todavia, apenas exsurgirá se existirem danos ao paciente. Nesse esteio, nem sempre existirá obrigação de indenizar pelo simples fato de se faltar com o dever de informação. Sem lesão concreta, dissipa-se qualquer ônus de reparação. Importa destacar, também, que, se ao paciente é imperativa a prestação de esclarecimentos, aos terceiros se faz iniludível o dever de sigilo, resguardando-se as informações obtidas em virtude do múnus médico.

REFERÊNCIAS BEIER, Mônica. Algumas considerações sobre o Paternalismo Hipocrático. Revista Médica de Minas Gerais, Minas Gerais, v. 20, n. 3, p. 246-254, 2010.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11. ed. rev. e ampli.São Paulo: ATLAS, 2014.

DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade Civil. 12. ed.São Paulo: Lumen Juris, 2011.

KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria e responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. ______. Responsabilidade Civil do Médico.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

MEDEIROS, Luciana Fernandes de. Comunicação na Saúde: como comunicar más notícias? 2013. Digitado.

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PEREIRA, André Gonçalo Dias. O dever de esclarecimento e a responsabilidade médica. Revista dos Tribunais, v. 839, n. 94, pag. 69-109, set. 2005. STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. 7ª ed., rev., atual e ampli. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

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PARADIGMAS INSTITUCIONAIS E MATERIAIS PARA A CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE João Trindade Cavalcante Filho1 José Trindade Monteiro Neto2 Sumário: 1 Introdução. 2 Modernidade periférica: consequências na formação do sistema social e nas relações entre Direito, Política e Saúde. 2.1 Coesão do sistema social: o acoplamento estrutural. 2.2 Degeneração do sistema social: as interferências destrutivas. 2.3 Modernidade periférica e predominância da alopoiese. 3Protagonismo Judicial no Brasil: ativismo judicial ou judicialização? 4 Direito à saúde: características, classificação e natureza. 4.1 Eficácia mediata ou imediata dos direitos sociais? 4.2 Direito à saúde e caráter relativo dos direitos fundamentais. 5 Direito à saúde e a relação entre os sistemas sociais. 5.1 Reserva do possível: outra simplificação indevida. 5.2 Políticas públicas para a Saúde e reserva do possível: interferência entre Direito e Política. 5.3 Isolamento do judiciário em decisões relativas à saúde: fechamento (excessivo) do sistema jurídico. 6Caminhos institucionais para a efetivação do Direito à Saúde. 6.1 Diálogos entre o sistema jurídico, profissionais de saúde e sociedade civil. 6.2 Diálogos entre Judiciário e Executivo.

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INTRODUÇÃO

A atual conjuntura de protagonismo do Poder Judiciário Brasileiro não é tema meramente teórico. É eivado de causas e consequências práticas, que se desdobram por diversos âmbitos da sociedade. Um dos setores sociais em que mais se verifica o referido fenômeno é o campo do direito fundamental à saúde, tradicionalmente definido como direito fundamental de segunda geração, classificação associada aos direitos sociais ou prestacionais, categoria segundo a qual o Estado deve condutas comissivas (prestações) aos indivíduos, tendo em vista, primordialmente, a igualdade material entre estes. A maior complexidade para a implementação de ações que promovam o bem-estar, em comparação com as condutas omissivas do Estado em relação aos direitos de primeira geração (vida, liberdade, etc.), aliada à resistência da administração pública em executar tais ações – resistência muitas vezes alicerçada na ideia de ―reserva do possível‖ – criam um cenário favorável à judicialização da saúde, em que o indivíduo, necessitando da prestação, por parte do poder público, de políticas de preservação e reparação de suas condições físicas, fisiológicas e psíquicas, e esbarrando na não execução de tais atos, busca, no poder judiciário, o amparo necessário para conseguir seu ensejo. 1 2

Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

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Outro aspecto, relativo à judicialização da saúde, que merece destaque, é o fato de que direitos sociais são, por natureza, implementados por meio de políticas públicas. E políticas públicas são, segundo firme entendimento jurisprudencial e doutrinário, com base no que afirma a Constituição da República Federativa do Brasil, de competência privativa do Poder Executivo. Desse modo, um papel mais ativo do Judiciário nessa seara enseja discussões institucionais, acerca do princípio fundamental da separação dos poderes e dos limites da legitimidade e adequação da atuação judicial nesse campo. Por fim, mesmo após resolvidos tais imbróglios, deve-se lidar com mais um obstáculo relativo à temática: uma vez delimitado o campo de atuação dos Juízes e Tribunais no que concerne à saúde pública, como deve ser processada tal atuação? Em que medida é útil e necessária, para tanto, a associação dos sistemas jurídico e político? Qual o papel dos profissionais de saúde nesse processo, e como deve acontecer a interação entre eles e os intérpretes/aplicadores/criadores do Direito? Buscando solucionar tais obstáculos e questionamentos, o presente artigo se vale de discussões relativas à definição do direito fundamental à saúde, em vista das consequências práticas diferenciadas que pode assumir cada uma das classificações teóricas a ser adotadas. São abordados também aspectos importantes do cenário de protagonismo do Poder Judiciário, e suas consequências para a separação dos poderes, para a eficácia dos direitos fundamentais e para a implementação de políticas públicas para a saúde. Por fim, tratar-se-á, aqui, de aspectos associados à interseção entre os operadores da saúde e as instâncias de criação do Direito – esferas legislativa e judiciária, mais precisamente. Para tanto, será usada como referencial teórico a teoria dos Sistemas Sociais (especialmente na formulação do sociólogo Niklas Luhman), aplicada à realidade de modernidade periférica e de pouca maturidade institucional na qual se insere o Brasil. Considerar-se-á a Saúde Pública, para fins explicativos, como um subsistema social, no mesmo patamar dos subsistemas jurídico e político.

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MODERNIDADE PERIFÉRICA: CONSEQUÊNCIAS NA FORMAÇÃO DO

SISTEMA SOCIAL E NAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO, POLÍTICA E SAÚDE

2.1 Coesão do sistema social: o acoplamento estrutural

O fenômeno da positivação do Direito, pautado, sobretudo, na autonomização do âmbito jurídico (e não mais subordinação) em relação a outras fontes normativas e no 70


monopólio estatal da produção normativa, aparece como consequência direta da crescente complexidade social – para atender a demandas cada vez mais diversificadas, o sistema social se desmembra em subsistemas, em certa medida autônomos e mais especializados, divisão que confere ao sistema global maior dinâmica e funcionalidade (ADEODATO, 2002, pp. 205 e ss.). Seguindo esses parâmetros, cada subsistema é dotado de códigos próprios, exatamente com o intuito de assegurar-lhe autonomia em relação aos demais e permitir que se resolvam com mais eficiência os conflitos que surgirem no seu interior. Por outro lado, não se pode negligenciar o fato de que as partes compõem um todo que deve ser dotado de coerência e coesão, uma vez que a especialização tem em vista, acima de tudo, conferir dinâmica ao sistema social dito ―global‖. Assim, surge uma tensão entre a especialização das partes e a coesão do todo. Evitando que de tal conflito resulte a supremacia de um dos extremos – fechamento absoluto das partes ou rigidez estática do todo, o que, sob qualquer aspecto, seria prejudicial ao conjunto social –, aparece um mecanismo que permite o equilíbrio na antítese relatada: a abertura cognitiva. Constituída como uma interseção entre os subsistemas sociais, a abertura cognitiva constitui-se numa margem de similaridade entre os subsistemas, a partir da qual se permite que elementos de uma parte entrem em contato com elementos de outra. Nesses termos, a referida abertura funciona, metaforicamente, como uma verdadeira cola – acoplamento estrutural, mecanismo de conjunção entre os subsistemas sociais que confere coesão ao sistema social global (ADEODATO, 1995, pp. 215 e ss.). Tal panorama é uma explicação bastante adequada para o fenômeno, historicamente verificado, de positivação do Direito (formação do Direito moderno), cuja principal característica, como já citado anteriormente, é a emancipação do Direito como subsistema autônomo, dotado do próprio código (lícito/ilícito), mas mantendo relações com outros subsistemas (econômico, político, etc.). Seguindo esse raciocínio, o acoplamento estrutural entre o subsistema Jurídico e o Político, por exemplo, é a Constituição, ao mesmo tempo decisão política fundamental (por parte do Poder Constituinte Originário) e norma máxima do ordenamento jurídico interno (CAVALCANTE FILHO, 2014, p. 14). No presente trabalho, considerando-se, como já exposto, para fins de clareza argumentativa, a Saúde como um subsistema autônomo, dotado, também, de códigos próprios (ao nosso ver, bem-estar/mal-estar, seguindo definição ampla da Organização Mundial de Saúde – OMS), a interseção, em primeiro plano, entre Saúde e 71


Direito poderia também ser considerada a Constituição, uma vez que a Carta Magna estabelece, muito além de regras, também princípios, diretrizes e objetivos relacionados ao sistema de Saúde. Constitui o estatuto jurídico dos prestadores de assistência à saúde e os objetivos dos aplicadores do direito quando da efetivação desse direito.

2.2 Degeneração do sistema social: as interferências destrutivas

Entretanto, uma relação excessivamente intrincada entre os subsistemas pode levar à desordem social, de modo que o agente de coesão do sistema global – o acoplamento estrutural por meio da abertura cognitiva entre as partes – pode se revelar, se em exagero, um elemento tão destrutivo quanto o excesso de especialização e consequente fechamento entre os subsistemas: os chamados ―intrincamentos‖ bloqueantes e destrutivos (NEVES, 1995, p. 331). Se a abertura cognitiva pressupõe influências construtivas entre os subsistemas sociais, o ―intrincamento‖ seria mecanismo de interferência destrutiva, mesmo de corrupção entre os referidos âmbitos. No caso do acoplamento estrutural, garante-se a coesão entre as esferas do social por meio de processo de assimilação, sem que um subsistema corrompa o código do outro: ocorre a autopoiese (para utilizar a nomenclatura de Luhman), processo no qual um subsistema assimila as influências dos demais, ―traduzindo-as‖ para o próprio código, incorporando-as, portanto, ao próprio ―patrimônio‖. (CAVALCANTE FILHO, 2014, p. 16) Por outro lado, quando se trata dos referidos intrincamentos, ocorre a degeneração da coesão do sistema global por meio da interferência destrutiva de um código sobre outro (alopoiese, na nomenclatura proposta por Marcelo Neves). Assim, quando a interseção entre sistemas ocorre de forma excessiva, um sistema coloniza o outro, corrompendo seu código e minorando-lhe perigosamente a autonomia. Em nossa abordagem da Saúde como um subsistema social, haveria uma corrupção do direito pelo subsistema de assistência à saúde, quando a implementação de direitos se subordinasse unicamente à opinião dos profissionais de saúde. Por outro lado, há uma corrupção do sistema de proteção à saúde pelo direito quando decisões de aplicadores jurídicos substituem a análise técnica de profissionais de saúde.

2.3 Modernidade periférica e predominância da alopoiese

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Como dito, é com o aumento da complexidade que o sistema social passa a se desmembrar em subsistemas, e foi nesse contexto que o subsistema jurídico assumiu a atual forma de Direito Positivado, autônomo em relação a outros âmbitos da sociedade – em especial, em relação a outras esferas normativas, como moral e religião –, deles não deixando de receber influências, mas assimilando estas por meio da sua ―tradução‖ ao código jurídico do lícito/ilícito. Tal ocorrência é mais clara nas sociedades que tiveram seu sistema jurídico desenvolvendo-se de acordo com a evolução do todo. É o caso da Europa, em que o surgimento do Direito Moderno é marcado pela passagem de um panorama de ausência de fontes oficiais do Direito para um ordenamento codificado, acompanhado da emancipação da política em relação à religião e à moral. Todavia, nas sociedades periféricas, de desenvolvimento tardio de instituições próprias, o que se verificou, predominantemente, foi a imposição de um modelo externo de ordenamento jurídico, geralmente já na fase póscodificação. Desse modo, nessas regiões, o Direito já aflorou sob sua forma ―moderna‖, sem haver a coincidência com o processo de autonomização dos demais âmbitos sociais. (ADEODATO, 2002, p. 113 e ss.) Logo, era de se esperar que, em sistemas sociais florescidos sob essas condições, a coesão social, ao menos no âmbito institucional, restasse prejudicada. É o que se verifica, efetivamente, no Brasil, cujo Direito já ―nasceu moderno‖, imposto pelo colonizador português. A consequência de toda essa conjuntura é a maior dificuldade de se efetivar a estrutura coerente e coesa dos subsistemas acoplados estruturalmente. Em vez de autopoiese, têm-se, aqui, ocorrências comuns de processo alopoiéticos, em grau extremo e profundo, caracterizando um quadro generalizado de interferências destrutivas e corrupções sistêmicas – uma verdadeira miscelânea social. (NEVES, 1995, p. 321). É nesse contexto que emerge a problemática da relação entre o Poder Judiciário (âmbito jurídico, guiado primordialmente pelo código lícito/ilícito), os Poderes Executivo e Legislativo (guiados, predominantemente, pelo código político de poder/não-poder e pelo mérito administrativo) e o Sistema de Saúde (especialmente o público, guiado pelo código bem-estar/mal-estar), sendo que este último polo reside em verdadeiro ―fogo cruzado‖ entre os dois outros vértices do triângulo.

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PROTAGONISMO JUDICIAL NO BRASIL: ATIVISMO JUDICIAL OU

JUDICIALIZAÇÃO? No referido contexto de ―miscelânea alopoiética‖ em que o Brasil se encontra, regularmente podem-se verificar interferências mais ou menos destrutivas entre os subsistemas sociais. Dentre elas, a que mais vem recebendo destaque é a contínua corrupção sistêmica (às vezes, recíproca) entre Direito e Política, tendo como pano de fundo as também frequentes interferências entre os Poderes da República. Se, na década de 1990, a maior quantidade de ―intrincamentos‖ era verificada entre os poderes Executivo e Legislativo, tendo como principal instrumento de corrupção sistêmica a figura das Medidas Provisórias, nos últimos anos (inclusive devido a significativas mudanças nas disposições jurídicas relativas às MP‘s) o foco foi deslocado para a relação entre o Judiciário e os demais poderes. Seja por modificações estruturais que permitiram um maior acesso da população à Justiça, seja por ineficiência administrativa e legislativa que alçaram o recurso ao Judiciário como última tentativa de efetivação de prestações do Estado frente aos indivíduos, ou ainda por postura deliberadamente ativa dos juízes e tribunais, constata-se a presença de fatos e disputas que remetem à ocorrência do chamado Protagonismo Judicial. Muito tem sido escrito sobre o tema, mas preponderam visões ideológicas, além de críticas mais morais que políticas e jurídicas sobre o tema. Entretanto, para compreender melhor o problema que ora levantamos, mais útil que juízos de valor acerca do protagonismo judicial é uma análise metódica, mais detalhada e aprofundada acerca do fenômeno. Síntese dessa posição analítica encontra-se no agrupamento da realidade fática da atuação do Judiciário brasileiro em dois ramos, seguidos da diferenciação entre estes: de um lado, o ativismo judicial, em que, como o próprio nome já indica, a Justiça toma a iniciativa de expansão, adentrando, muitas vezes de forma excessiva ou imprudente, ao nosso ver, em esferas outras da estrutura social, utilizando-se de estratégias de protagonismo que serão detalhadas mais à frente, neste artigo, e muitas vezes sobrepondo o código do lícito/ilícito ao código do subsistema social ―invadido‖. Sob outro ângulo, o protagonismo judiciário pode se expressar sob a forma da judicialização da política, em que se pode falar, também, em interferência (destrutiva, por vezes), do âmbito jurídico sobre outras esferas sociais, mas desta feita sem caráter necessariamente ativo por parte do Judiciário. Em outras palavras, o fenômeno da judicialização é contextual, contingente, e ocorre devido a uma conjuntura que

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pede ação mais firme do Poder Judiciário, seja por inércia dos demais poderes, seja por outro fator mais associado a um maior acesso à Justiça por parte da população (BARROSO, 2012). Dito isso, conclui-se que se referir a qualquer situação de protagonismo judicial no Brasil por meio do termo ―judicialização‖ constitui reducionismo, imperfeição teórica que pode gerar consequências práticas em relação ao trato com a matéria e com as medidas a serem tomadas. O mesmo deve ser dito em relação à Saúde. Obviamente, o maior número de casos observados em que pendências e conflitos relativos à prestação do serviço de saúde são levados ao âmbito do poder judiciário enquadra-se no conceito de judicialização, por ser geralmente fruto da inércia dos demais Poderes da República em cumprir as determinações constitucionais e legais. Se o Legislativo é ineficaz em editar normas que concretizem os princípios, diretrizes e regras gerais estabelecidos na Constituição acerca do Direito Social à Saúde, ou o Executivo não implementa políticas públicas para eficiência e universalização da garantia do direito à saúde, e os prejudicados (pessoas que deveriam ser destinatárias dos serviços de Saúde, mas não o recebem com qualidade ou sequer o recebem minimamente) recorrem ao Judiciário como meio de obter, do Estado, a prestação a que têm direito, pode-se, seguramente, falar em judicialização da Saúde. Todavia, situações há em que o Judiciário, além de conferir ele mesmo impulso às demandas, apresenta soluções que invadem o mérito administrativo (prerrogativa da administração pública), contrariam outras leis (leis orçamentárias, por exemplo) e até mesmo a própria Constituição Federal. Ora, há de se entender que os direitos sociais (prestacionais) têm custos que impedem a implementação de todas as políticas públicas necessárias à consecução de todos os aspectos de cada um deles, simultaneamente, e a vinculação de recursos para o cumprimento de mais uma prestação pode comprometer a execução, por parte da Administração Pública, de políticas de implementação de outros direitos. Percebe-se, assim, que há dois fenômenos associados ao protagonismo judicial na efetivação do direito constitucional à saúde. Um, ligado a uma necessidade de atuação para suprir lacunas de efetivação atribuíveis a outros poderes. Outro, relativo a um ativismo judicial que pode prejudicar inclusive a própria assistência à saúde, por interferir negativamente na autonomia do Sistema de Saúde. Portanto, ainda que seja maioria dos casos, seria prejudicial denominar ―judicialização da saúde‖ todo e qualquer fenômeno relativo à interferência do sistema jurídico sobre o sistema de Saúde, sob pena do equívoco de incluir, no mesmo âmbito, o ativismo judicial, 75


com consequências diretas sobre a maneira de lidar com o fenômeno (prescrições acerca dessa maneira de tratar o protagonismo judicial no âmbito da prestação dos serviços de saúde serão elencadas ao fim deste artigo).

4. DIREITO À SAÚDE: CARACTERÍSTICAS, CLASSIFICAÇÃO E NATUREZA

4.1 Eficácia mediata ou imediata dos direitos sociais?

Com a positivação do Direito, os Direitos Humanos, antes considerados uma ordem supra-normativa de direitos (direito natural, seja qual for sua corrente), passaram a ser inscritos expressamente em ordenamentos jurídicos. Entretanto, tal ocorrência se deu paulatinamente, acompanhando a própria evolução, em gerações ou dimensões, dos direitos fundamentais (direitos humanos positivados). Sendo assim, quando atingida a segunda geração dos direitos fundamentais, tomou parte uma realidade peculiar. Positivados os direitos fundamentais de primeira dimensão, relativos à proteção do indivíduo frente ao Estado, com vistas à limitação do poder deste (liberdade, segurança jurídica, igualdade formal, propriedade, entre outros, além dos direitos políticos), verificou-se uma rápida aplicação, denotando grau elevado de efetividade dos referidos postulados. Ora, para serem seguidos, tais direitos fundamentais exigiam predominantemente do Estado as chamadas ―prestações negativas‖, ou seja, abstenção, condutas omissivas em relação aos cidadãos (não matar, não violar a propriedade, não proceder a julgamentos arbitrários). (SCHÄFER, 2013) Todavia, quando atingido o segundo patamar da evolução dos direitos fundamentais, ligado aos direitos sociais, que estabeleciam, ao Estado, obrigação de ―prestações positivas‖ frente aos cidadãos, com vistas à qualidade de vida, ao bem-estar e à busca da igualdade material (não mais meramente formal) entre os indivíduos, constatou-se dificuldade muito mais premente na efetivação dessas premissas, pelo simples fato de que a imposição ao Estado, pelo ordenamento jurídico, de prestações, condutas comissivas, a serem implantadas por meio de políticas públicas, implicava maior complexidade nas ações a ser realizadas e em maior mobilização da estrutura estatal. Diante desse cenário, surgiam tentativas teóricas de limitar ou amenizar a imposição que os direitos fundamentais de segunda geração faziam à administração pública, capitaneadas pela corrente defensora da eficácia mediata dos direitos sociais (em oposição à citada eficácia imediata dos direitos de primeira dimensão). Aliado a isso, há o argumento de 76


suporte fático de que a efetivação dos direitos sociais depende da quantidade de recursos materiais disponíveis para que o poder público ponha em prática as políticas necessárias à sua consecução. Todavia, a igualdade formal, isolada no ordenamento e proporcionada pela efetivação dos direitos de primeira dimensão, sem a ―companhia‖ da igualdade material, não se fazia justa; os desníveis sociais entre as diversas classes comprometia o exercício dos próprios direitos negativos. Que liberdade poderia exercer um indivíduo preso a condições degradantes de vida? De que segurança jurídica poderia se valer, ou que participação política poderia exercer um cidadão que não visse respeitada, em mínima escala, sua dignidade como pessoa? Como podia-se afirmar que o Estado garantia o direito à vida, se morria-se de fome por conta da má distribuição, muitas vezes de responsabilidade do próprio Estado, dos recursos materiais da sociedade? Percebeu-se, então, que a ideia de eficácia mediata dos direitos sociais comprometia a própria e tão propalada eficácia imediata dos direitos de primeira geração. Criou-se, então, o arcabouço para a atualmente mais aceita visão acerca dos direitos de segunda dimensão – possuem eficácia imediata, devendo situar-se em equilíbrio perante duas fronteiras: não devem ser tão negligenciados a ponto de permitir que os indivíduos sucumbam perante condições materiais degradantes e que comprometam a dignidade da pessoa humana (teoria do mínimo existencial), mas também não podem ser exigidos de maneira a não observar as condições materiais disponíveis para que o poder público realize a implementação de políticas a eles voltadas (teoria da reserva do possível). Embora se possa dizer que tal posição procedeu a uma importante síntese acerca do tema, deve-se atentar para as apenas aparentes simplificação e resolução da discussão. Ocorre que a definição de mínimo existencial para todos é complexa e de difícil concretização, pois, historicamente, o que se considera ―mínimo‖ segue padrões variáveis, contingentes. Além disso, muitas vezes o mínimo existencial pode ser garantido de maneira geral, mas não universal. Há, também, o óbice de que pode haver situações concretas em que os recursos necessários para se garantir mesmo o mínimo existencial a todos estejam além de qualquer disponibilidade de recursos, o que dificulta por demais a garantia de tal patamar aos indivíduos, por mais disposta que esteja a administração pública a concretizá-la. Por fim, deve-se levar em consideração que o outro extremo (reserva do possível) vem sendo frequentemente utilizada como mero meio de escape à responsabilidade do Estado em realizar prestações aos cidadãos, tornando-se, muitas vezes, um instrumento de volta à 77


posição original de eficácia mediata dos direitos sociais (KRELL, 1999). É necessário ponderar, além disso, se argumentos de ordem fática (mundo do ser) podem obstaculizar, a tal ponto, a concretização de preceitos jurídicos, a obediência de mandamentos do ordenamento jurídico, o respeito a direitos (mundo do dever-ser). Nesse embate, vem ganhando bastante notoriedade a posição do Direito Fundamental à Saúde – nitidamente de segunda geração (prestacional), leva a patamares elevados a tensão entre eficácia imediata e reserva do possível, além de estar clara e intimamente ligado à composição do mínimo existencial para uma vida digna dos indivíduos que compõem o Estado.

4.2 Direito à saúde e caráter relativo dos direitos fundamentais

Assentada a ideia de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, não se pode ceder à fácil tentação de simplificação, anunciando-se que todos eles devem ser concretizados de uma só vez, e que a não concretização por completo gera responsabilização judicial do administrador. Ora, além das limitações fáticas da reserva do possível que, embora não vinculem a aplicação, a condicionam, e embora também as normas constitucionais não devam se submeter, por completo, à dependência de normas legislativas infraconstitucionais para se verem respeitadas, tem-se por óbvio a situação de dependência de alguns instrumentos instituidores de direitos sociais em relação a condições exteriores ao texto constitucional. Nesse sentido, BRANCO (2013, p. 154), afirma que ―Essa característica [aplicabilidade imediata] indicada pela própria constituição, entretanto, não significa que, sempre, de forma automática, os direitos fundamentais geram direitos subjetivos, concretos e definitivos (...) Há normas constitucionais, relativas a direitos fundamentais, que, evidentemente, não são autoaplicáveis. Carecem de interposição do legislador para que produzam todos os seus efeitos. As normas que dispõem sobre direitos fundamentais de índole social, usualmente, têm a sua plena eficácia condicionada a uma complementação pelo legislador.‖

Seguindo esse raciocínio, percebe-se que, quanto ao direito à saúde, todos o detêm, imediatamente. Entretanto, não se pode exagerar essa afirmação, assegurando que todos os aspectos, mesmo os mais específicos, relativos a esse direito fundamental, devam ser garantidos e concretizados imediatamente. Em outras palavras, há dois tipos de pretensão em relação ao direito à saúde: pretensões gerais, que encontram embasamento e legitimação diretamente no texto 78


constitucional (pretensões gerais de atendimento e de acesso à dispensação de medicamentos no Sistema Único de Saúde, por exemplo, uma vez que o próprio mandamento constitucional assegura, diretamente, a universalidade), e pretensões específicas, que não se podem legitimar diretamente a partir da incidência das normas constitucionais (na mesma linha semântica dos exemplos anteriores, pretensão de obtenção, por meio do SUS, da dispensação de medicamentos de alto custo para doenças crônicas raras, ou, como ocorrido recentemente no estado da Paraíba, pretensão de que o Poder Executivo forneça recursos para a transferência de pacientes para outras unidades da federação, dotadas de equipamentos e pessoal mais preparados para o tratamento de determinado problema de saúde). Perceba-se, a partir da própria exemplificação, o desnível de complexidade das situações. Obviamente, em casos concretos, pode-se ter uma situação limítrofe, em que resta impossível ou de alto grau de dificuldade a delimitação da fronteira entre pretensões gerais e pretensões específicas. Tem-se consciência, também, do risco de se fazer uma classificação, vez que toda ela implica em segregação e em simplificação que muitas vezes comprometem a formulação de preceitos de ordem prática. Mas o que se deseja aqui é mais alertar para o fato de que nem todas as pretensões de prestação, por parte do Poder Público, em relação ao direito à saúde, são dotadas de aplicabilidade imediata, somente por se considerar tal direito como fundamental. Nesse contexto, é útil recorrer à lição de Canotilho (apud CIARLINI, 2013, pp. 3637), para quem é preciso atentar aos ―pressupostos de direitos fundamentais‖, uma vez que ―os direitos econômicos, sociais e culturais e respectiva proteção andam estreitamente associados a um conjunto de condições – econômicas, sociais e culturais (...). Considera-se pressupostos de direitos fundamentais a multiplicidade de fatores – capacidade econômica do Estado, clima espiritual da sociedade, estilo de vida, distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento econômico (...) – que condicionam, de forma positiva e negativa, a existência e proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esses pressupostos são pressupostos de todos os direitos fundamentais. Alguns deles, porém, como os da distribuição dos bens e da riqueza, o desenvolvimento econômico e o nível de ensino, têm aqui particular relevância.‖

Resta mais do que claro o caráter simplório da mera afirmação de ―aplicabilidade imediata‖ do direito à saúde, sem se analisar as complexidades das situações concretas a ele associadas. Outro aspecto a ser destacado em relação à discussão aqui tratada é o argumento do caráter absoluto do direito à saúde. Afinal, ―direito absoluto é uma contradição em termos‖ (CAVALCANTE FILHO, 2011), pois tal caráter conferiria a determinado direito o condão de

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se sobrepor a qualquer outro, de modo a se criar rígida hierarquia entre direitos fundamentais (em violação ao pressuposto hermenêutico da unidade da Constituição). Em situações concretas, surgirá a necessidade de afirmação de um direito sobre outro, a ser regida pelo juízo de proporcionalidade, mas disso criar-se uma regra rígida, aplicável a todas as demais colisões entre direitos, é negar a essência do conceito de ―direitos fundamentais‖ (ALEXY, 2012, p. 94). Além do mais, se o próprio direito à vida, ao qual está intimamente ligado o direito à saúde, é alvo de limitação (art. 5º, XLVII, a), por que não haveria de sê-lo este? É necessária, aqui, a ressalva de que as limitações dos direitos fundamentais devem, necessariamente, ter base no enfrentamento com outros valores de ordem constitucional, ou no juízo de proporcionalidade associado a esses valores, sob pena de, caso contrário, ter-se a limitação de direitos ditos fundamentais por outros fatores que o ordenamento jurídico não elegeu como essenciais à sociedade (ALEXY, 2012, p. 98). Por outro lado, além do seu caráter relativo, a efetivação do direito à saúde torna-se mais complexa pelo fato de que, nem sempre, os impedimentos à sua execução advém do conflito com outros direitos. Em vasta gama de situações concretas, mandamentos judiciais de prestações do Estado perante alguns indivíduos constituem prejuízo a prestações do Estado perante outros indivíduos, no âmbito do mesmo direito. É o caso de determinação judicial para subvenção total de medicamentos de alto custo para tratamento de doenças crônicas raras, que não raramente desloca recursos de outras áreas da saúde, acarretando prejuízos, por exemplo, na dispensação de medicamentos de uso corrente ou na aquisição de materiais essenciais à realização de procedimentos na área. Mais uma vez, restam rebatidas, ao nosso ver, as teses de aplicabilidade imediata do direito à saúde em todos as possibilidades e do caráter absoluto do direito à saúde perante outros direitos.

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DIREITO À SAÚDE E A RELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS SOCIAIS

5.1 Reserva do possível: outra simplificação indevida

Além da análise simplista rebatida anteriormente, o outro lado da discussão também traz simplificações constitucional e metodologicamente inadequadas. O argumento, largamente utilizado pela administração pública, para negar prestações à sociedade no âmbito

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do serviço público de saúde, de ausência de recursos materiais, é, se usado em exagero, além de cientificamente inadequado, juridicamente falso e moralmente reprovável. Cientificamente inadequado porque não se pode conceber a utilização inaudita de situações fáticas como argumento para a não implantação de mandamentos e prescrições que visam modificar a realidade fática. Em outros termos, não se pode utilizar de proposições da ordem do ―ser‖ – realidade concreta – para negar a aplicação de preceitos da ordem do ―dever-ser‖ – normas – que visem, exatamente, a modificar a própria realidade concreta, que se está usando como ―escudo‖. Se faltam recursos para concretização de direitos fundamentais, que a administração pública trate de encontrar meios administrativos (aumento da captação de recursos, transferência de recursos de áreas menos essenciais, melhor planejamento orçamentário) de sanar o problema, de modo a cumprir os mandamentos constitucionais e legais. Derivada disso, tem-se a falsidade jurídica do argumento, visto que, recordando-se a diferença entre a aplicação do princípio a particulares e à administração, há de se relembrar que, enquanto ao particular é dada a prerrogativa de exercer o que é expressamente permitido e o que não é proibido pelas normas do ordenamento jurídico, à administração não é conferida tal liberdade, devendo ela limitar-se a exercer o que está previsto em norma. É o que se costuma chamar de estrita legalidade da administração pública. Logo, tem-se, por óbvio, que, se não se pode cobrar da administração a concretização imediata e simultânea de todos os aspectos inerentes aos direitos fundamentais, também não é coerente afirmar que a administração poderá se eximir de suas obrigações prestacionais, resumindo tudo à mera reserva do possível. Portanto, conclui-se que o argumento da reserva do possível pode mesmo limitar a aplicação imediata de direitos fundamentais, em alguns aspectos e de maneira parcial, mas jamais impedir (totalmente, portanto) a concretização desses mandamentos (KRELL, 1999). Por fim, a questão moral, premente nos discursos políticos e do senso comum da sociedade, nos leva a questionar a má distribuição dos recursos entre os âmbitos das políticas públicas. Se o poder constituinte elegeu determinadas áreas como fundamentais, elas devem ter prioridade na captação dos recursos, em relação a áreas menos relevantes do ponto de vista constitucional e legal. Entretanto, como será aprofundado adiante, tal questionamento localiza-se mais na esfera do planejamento orçamentário, exigindo mais atenção sobre planos e leis a ele inerentes, do que propriamente na seara do questionamento judicial de aspectos relativos ao serviço público de saúde.

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5.2 Políticas públicas para a Saúde e reserva do possível: interferência entre Direito e Política

Desse modo, pode-se inferir que o argumento político da reserva do possível, incorporado ao código jurídico por meio da doutrina e da jurisprudência, em especial do Direito Constitucional, se usado em excesso, além de transpor a fronteira do sistema do Direito, constituindo-se como essencialmente político, corre o risco de tornar-se antijurídico, nos termos do tópico anterior deste artigo. Especificamente na análise das relações entre Direito e Política, é possível estabelecer indicadores qualitativos e empíricos de interferência sistêmica alopoiética da política sobre a construção da argumentação no âmbito do judiciário CAVALCANTE FILHO (2014, p. 40 e seguintes). Dois dos indicadores enquadram-se perfeitamente ao caso aqui em estudo: transformação de argumentos políticos em argumentos jurídicos e utilização direta de argumentos políticos para conclusões jurídicas. Isso porque ―Logicamente, é impossível distinguir totalmente argumentos políticos de argumentos jurídicos. Contudo, ao se reconhecer (algo que aqui se pressupõe) o caráter autopoiético dos sistemas jurídico e político (aqui, especialmente do sistema jurídico), é possível analisar os códigos binários predominantes em cada argumento, de modo a classifica-lo como eminentemente político ou eminentemente jurídico. Além disso, o conteúdo da argumentação – inclusive quanto às fontes utilizadas – pode servir para identificar a natureza do argumento. (...)Mais um indicador de influência política é a utilização direta de argumentos políticos para fundamentar a decisão jurídica. Aqui se tem um indicador ainda mais forte que a mera transmutação de argumentos jurídicos em argumentos políticos. Realmente, a transformação de um argumento em outro significa que o julgador, a partir de um juízo político-moral, constrói um argumento jurídico.‖

Portanto, infere-se que o uso de um argumento fático, de natureza política, para justificar negativas reiteradas a prestações constitucionalmente estabelecidas constitui-se indicador forte corrupção sistêmica entre a política e o Direito, e deve ser combatido. A má distribuição de recursos orçamentários ou a não disponibilidade de previsão orçamentária para determinadas prestações relativas ao serviço público de saúde estão, muitas vezes, mais ligadas a uma medição política de forças entre Parlamento e Executivo, ou mesmo entre membros do próprio Poder Legislativo. E disso não pode resultar negação a mandamentos jurídicos, sobremaneira em se tratando de mandamentos acerca de direitos fundamentais. Não se diga que o Direito brasileiro não reconhece as limitações da reserva do possível, mas tal argumento somente será coerente com o sistema jurídico se não passam a 82


impedir, de maneira plena, como dito anteriormente, a execução de aspectos relativos ao Direito à Saúde. Por outro lado, há de se destacar que, se a reserva do possível não poderá limitar, de maneira total, a concretização desse direito, também é impossível negar a observância, em situações concretas, de impossibilidade fática de execução de determinadas prestações (limitação parcial, não caracterizada como global nem impeditiva) com base exatamente no argumento da limitação de recursos materiais. E nada há de antijurídico nisso; reitere-se que a corrupção sistêmica somente se verifica quando a negação com base na reserva do possível passa a ser agente impeditivo, negação sistemática à concretização do direito à saúde. Mas no presente cenário não é apenas a Política que invade o código jurídico: o Direito, muitas vezes, vem, por meio do Poder Judiciário, inerferindo de maneira prejudicial em âmbitos inerentes ao sistema político. Um exemplo já clássico é a invasão do mérito administrativo – juízo de conveniência e oportunidade – com a substituição do juízo de valor administrativo pela opinião pessoal do julgador. Situações há em que o Judiciário toma as vezes de verdadeiro administrador e impõe, diante de limitação de recursos, de que forma o capital disponível será investido – escolha que deve fazer parte do mérito administrativo, privativo da Administração Pública. Também prejudicial, essa corrupção sistêmica vem gerando situações de garantias de prestações a determinadas pessoas em detrimento da garantia de prestações, relativas ao mesmo direito fundamental, a outros indivíduos – obrigatoriedade de subvenção de medicamentos que deslocam recursos e impedem a dispensação, que já vinha sendo realizada, de outros medicamentos, por exemplo. Ora, tal decisão não cabe ao judiciário, visto que ele não detém os meios necessários à análise completa da situação como o administrador possui. Cabe a este decidir, entre alternativas, aquela mais conveniente e oportuna, de modo a satisfazer, da maneira mais próxima à plenitude, o interesse público. No pensamento de CIARLINI (2013, p. 29), a busca desmesurada pela universalidade na prestação do serviço de saúde acaba por acarretar em mais restrições ao seu acesso: ―Em que pese a importância do estabelecimento de critérios de acesso universal à saúde, no marco do Estado de Bem-Estar Social, tais diretrizes jurídicas e políticas, quando transpostas para o mundo vivido e arrostadas por suas contingências econômicas, financeiras, políticas e sociais, bem como pelas peculiaridades burocráticas próprias da organização de tais processos de inclusão, acabam gerando, não raras vezes, justamente o efeito contrário, potencializando e levando ao extremo essas mesmas políticas como forma de exclusão social‖.

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Essa situação de possível corrupção sistêmica decorrente da atuação excessiva do Judiciário é agravada quando se percebe que o sistema judicial brasileiro não dispõe, muitas vezes, de instrumentos adequados à solução de controvérsias supraindividuais. Com efeito, todo o sistema processual brasileiro é calcado na resolução de conflitos individuais. Tudo se baseia, quase sempre, na busca individual do acesso á justiça, e da resolução do tema de forma atomística. A busca pela solução de controvérsias de forma supraindividual ou coletiva tem aplicação apenas marginal. Especificamente no que tange ao direito à saúde, essa peculiaridade do sistema processual brasileiro potencializa um problema: a priorização das soluções individuais em detrimento da análise da efetivação dos direitos sociais (saúde, especificamente) de forma holística. Portanto, no quadro de miscelânea social descrito no início deste trabalho, o direito à saúde encontra-se em primeiro plano, por ser palco para interferências sistêmicas destrutivas e, muitas vezes, indevidas, não só de um sistema sobre o outro, mas de maneira recíproca, entre os sistemas jurídico e político.

5.3 Isolamento do judiciário em decisões relativas à saúde: fechamento (excessivo) do sistema jurídico

Entretanto, além da excessiva abertura dos sistemas, proporcionando corrupção sistêmica e problemas estruturais, como relatado no tópico anterior, o direito à saúde presencia também outro obstáculo à sua concretização: o fechamento absoluto ou excessivo do Poder Judiciário (do sistema jurídico, em termos mais amplos) em relação a outros sistemas sociais importantes à consecução de tal direito. Muitas vezes, não é apenas o conhecimento das condições materiais de orçamento que falta aos órgãos julgadores; falta o conhecimento prático acerca de questões inerentes à prestação dos serviços de saúde, de detalhes procedimentais e estruturais do sistema público de saúde e de questões substanciais relativas à saúde pública. Como um julgador pode definir o melhor investimento a ser feito entre dois medicamentos se, além de não ter sob seu domínio conhecimento dos recursos a serem aplicados, ainda não dispõe de informações consistentes acerca da eficácia de cada um dos produtos, urgência de tratamentos, necessidade maior ou menor de determinado material, outros materiais pressupostos para a aplicação do procedimento imposto? Um dilema muito comum é a ordenação de subvenção medicamentos de poucas chances de eficiência (seja por gravidade da doença a ser tratada, seja por parco desenvolvimento científico relativo àquele tema) que obriga o poder público a retirar recursos 84


da subvenção de outros medicamentos essenciais e que apresentam maior índice de eficácia no tratamento. Conclui-se, portanto, que tão ou mais prejudicial que as interferências excessivas entre os sistemas é o fechamento estrutural do sistema jurídico em relação às peculiaridades e conhecimentos técnicos e científicos do sistema da saúde, e em relação à própria sociedade civil. Ademais, ressalte-se que há disposição legal que determina a participação da sociedade na construção do Sistema único de Saúde, que, segundo a mesma disposição, darse-á ―por intermédio das conferências e dos conselhos de saúde, sem prejuízo da criação de outros mecanismos de participação da sociedade civil na gestão do sistema‖ (BRASIL, 1990). Nos dizeres de CIARLINI (2013, p. 31), ―a participação social, nesse contexto, é de primordial importância, pois fundamenta a ideia de pluralismo, em um ambiente democrático participativo‖. Ora, se a abertura à sociedade é pressuposto para o pluralismo democrático, conclui-se que o fechamento do judiciário na formulação e decisão de questões relativas à saúde, além de ilegal, é antidemocrático.

6

CAMINHOS INSTITUCIONAIS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À

SAÚDE

6.1 Diálogos entre o sistema jurídico, profissionais de saúde e sociedade civil

Nos termos da legislação acerca de saúde no Brasil (leis 8080/90 e 8142/90), a construção, gestão e manutenção do sistema público de saúde no Brasil têm, como um dos fundamentos, tão premente quanto a ideia de universalização, a abertura do diálogo com a sociedade civil. Nessa seara, foi passo fundamental a Recomendação nº 31, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A partir da constatação do grande número de ações judiciais relativas à assistência à saúde, da ―relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população brasileira‖ e da carência de informações clínicas e estruturais prestadas aos magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos autores das demandas, a referida recomendação instou os tribunais brasileiros a adotarem medidas de subsídio aos juízes, de modo a assegurar maior

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eficiência na solução das demandas judiciais relacionadas à saúde, a exemplo do ―apoio técnico de médicos e farmacêuticos às decisões dos magistrados‖ (BRASIL, 2010). Entretanto, muito ainda há de ser feito. A efetiva implantação do referido apoio técnico às decisões do Poder Judiciário deve vir acompanhada da efetiva implantação dos demais mecanismos de diálogo com a sociedade civil, já previstos na legislação do início da década de 1990 (legislação a qual, inclusive, destaca que o rol de institutos que visem a esse diálogo não é, nem deve ser, ao nosso ver, taxativo). Vale ressaltar que, numa atmosfera de protagonismo judicial, fala-se somente em diálogo entre Judiciário e sociedade civil. Todavia, ressalte-se que esse diálogo deve referir-se a todos os âmbitos do sistema público de saúde, abrangendo criação de institutos e gestão do sistema, vinculando, portanto, também os Poderes Legislativo e Executivo – a necessidade de abertura cognitiva em relação ao campo da saúde se estende a todo o sistema jurídico. Esse diálogo, além de contribuir para a autonomização dos sistemas sociais envolvidos na efetivação do direito à saúde, pode representar uma saída para o problema, já comentado, da insuficiência do arcabouço jurídico-processual brasileiro para o tratamento de questões supraindividuais ou coletivas. Realmente, a maior interação do Judiciário com profissionais de saúde pode permitir ao julgador ter uma visão macro dos problemas, distanciando-se um pouco da tendência a enxergar os pleitos judiciais de efetivação do direito à saúde apenas por uma perspectiva individual-atomística.

6.2 Diálogos entre Judiciário e Executivo

A própria recomendação 31/2010 do CNJ reconhece, expressamente, que o problema não está somente na relação entre Direito e sociedade. As relação entre âmbitos internos do sistema jurídico também estão presentes quando tratamos de decisões judiciais acerca da assistência à saúde. Tal relação fica suficientemente clara, em um de seus aspectos, pelo trecho da recomendação: ―CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da concessão de provimentos judiciais de urgência e a necessidade de prestigiar sua capacidade gerencial, as políticas públicas existentes e a organização do sistema público de saúde‖ (BRASIL, 2010).

Resta clara a preocupação do eminente órgão de controle do Judiciário com o problema anunciado no tópico 5.2 deste trabalho.

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Entretanto, invadir a esfera do mérito administrativo não engloba o fato de o Poder Judiciário se contrapor à também aqui relatada prática da administração pública de tudo simplificar em nome da reserva do possível. Desse modo, somos do posicionamento que, quando negada, pelo poder público, assistência à saúde nos termos das anteriormente definidas pretensões gerais, o Judiciário deve intervir e impor a prestação estatal, visto que, do contrário, verificar-se-ia limitação excessiva a um direito basilar do nosso ordenamento, justificada por mera situaçãoo fática decorrente de imbróglios políticos – evita-se, assim, a interferência danosa de questões extrajurídicas sobre enunciados jurídicos. Ainda ao nosso ver, mesmo quando deparando-se com demandas judiciais acerca de pretensões específicas, a negação deve ser fundamentada pelo poder público, visto, ainda assim, a negativa de direitos com base em argumentos fáticos (mesmo os inerentes à reserva do possível) deverem constituir situação excepcional. Obviamente, para que todo esse cenário se concretize, é imprescindível que, consoante à preocupação demonstrada pelo CNJ, na recomendação aqui apresentada, o Executivo seja ouvido antes de serem emitidas decisões impositivas de prestações relativas à assistência à saúde. Vale salientar, em adendo, que a posição aqui adotada pode ser verificada na jurisprudência do próprio STF, no sentido de que decisões em sede de Mandado de Injunção (instrumento de controle difuso de constitucionalidade, que visa a combater a não concretização de prestações, sobretudo associadas aos direitos sociais, a que o Estado estaria obrigado), se não têm natureza de mera recomendação, também não possuem caráter absoluto e instantâneo de sanar a ausência da prestação requerida, pois, se assim o fosse, o judiciário, mais uma vez, estaria tomando prerrogativas inerentes ao Poder Executivo.

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CONCLUSÃO

Diante do dilema em que se encontra a assistência à saúde, atualmente, no Brasil, é necessária uma postura analítica. Não se deve ceder à tentação de recorrer a simplificações, que, muitas vezes, trazem consequências maléficas ao panorama institucional e, sobretudo, à prestação do serviço de saúde – a delicadeza e gravidade do tema reforçam a necessidade do cuidado analítico no seu trato. Dessa forma, não é recomendado pender, sem discussão e reflexão aprofundados, a qualquer um dos extremos que se abrem na discussão atual sobre a temática: nem o exagero

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de considerar o direito à saúde como absoluto, nem o uso banalizado e irrefletido de argumentos fundados na reserva do possível. Considerar um direito absoluto é abrir precedente para a redução irrefletida do âmbito de aplicação dos demais direitos, enquanto a relativização do conjunto de direitos fundamentais, por mais paradoxal que pareça, leva a maior ponderação e aplicação mais coerente com a realidade dos preceitos ordenamento jurídico. Além disso, muitas vezes, as demandas em sede da assistência à saúde geram conflitos não entre direitos fundamentais, mas entre aspectos internos ao próprio direito à saúde, situação que reforça o caráter simplista da afirmação da natureza absoluta do direito fundamental à saúde. Por outro lado, negar, sistematicamente, prestações de assistência à saúde da população com base na ausência de recursos materiais para sua execução é uma afronta a preceitos jurídicos, relativos à obrigação do Estado de caminhar no sentido da efetivação por completo dos direitos sociais, morais, derivados do mau planejamento e da má distribuição de recursos orçamentários, e filosóficos, segundo os quais enunciados fáticos, pertencentes ao mundo do ser, não devem ser deliberadamente usados para negar enunciados prescritivos, integrantes do mundo do dever ser. Para tal postura analítica, é necessário buscar, na teoria dos sistemas sociais e na formação do Direito brasileiro num contexto de modernidade periférica, explicações para aformação do aludido quadro institucional e social. É lá que encontraremos formas de combater as interferências destrutivas entre os sistemas sociais, potencializadas quando se trata concretização do direito à saúde, e o fechamento institucional do sistema jurídico quando de decisões relativas à assistência à saúde – outra chaga a ser combatida, que compromete a eficiência da atuação das diversas esferas sociais no sentido da concretização máxima do direito social à prestação de assistência à saúde dos cidadãos: base de sustentação da dignidade humana, do direito à vida e de tantos outros preceitos essenciais para o alcance de uma sociedade mais justa e formalmente mais igual.

REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2012.

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BARROSO, Luís Roberto. Direito e Política: a tênue fronteira. Disponível em www.osconstitucionalistas.com.br. Acesso em 20/04/2014. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação 31/2010, de 30 de março de 2010. Disponível em: www.cnj.jus.br. Acesso em 02/05/2014. _____. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8080, de 19 de setembro de 1990. _____. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei 8142, de 28 de dezembro de 1990. CAVALCANTE FILHO, João Trindade. O Discurso do ódio na jurisprudência alemã, americana e brasileira: uma análise à luz da filosofia política. Brasília: Instituto Brasiliense de Direito Público, 2014. _____. Roteiro de Direito Constitucional. Brasília: Grancursos, 2011. CIARLINI, Alvaro Luis de Araújo Sales. Direito à Saúde: Paradigmas procedimentais e substanciais da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2013. KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. NEVES, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina. In: Revista Direito e Debate, volume 4, 1995. Disponível em: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/885. Acesso em 28/04/2014. SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário – uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

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(DES) ASSISTÊNCIA À SAÚDE EM UMA PENITENCIÁRIA FEMININA: DIREITOS FUNDAMENTAIS

Josilene do Nascimento Rodrigues1 Alanny Nunes de Santana2 Lívia Cristina da Silva3 Sumário: 1 Introdução. 2 Método. 3 Resultados e Discussões. 3.1 A Assistência à Saúde da Mulher Presa. 3.2 A Assistência à Saúde na Penitenciaria Regional Feminina de Campina Grande-PB. 4 Conclusões. Referências.

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INTRODUÇÃO O sistema carcerário no Brasil é marcado historicamente por carências que vem

acumulando-se ao longo dos tempos, como os desgastes físicos e emocionais que são agravados, ainda mais, pela precariedade estrutural (tais como superlotação, insalubridade), além dos abusos de poder, violência, falta de assistência jurídica, negação de direitos, precariedades que atingem a todos os corpos sociais presentes no ambiente prisional. Todos esses elementos além de denegrirem a imagem/representação do sistema penitenciário brasileiro também afetam o bem-estar dos apenados. Assim, a prisão acaba sendo um espaço esquecido pelas políticas públicas, o que se torna evidenciado até mesmo no que diz respeito a localização, pois as penitenciárias são construídas nos bairros mais marginalizados, onde a presença do Estado é quase inexistente. Desse modo, o Estado aparece quase que exclusivamente como fonte de punição, comumente de forma desmedida, com exercício de uma violência exacerbada e sem o aval da lei. Como expressa Wacquant (2001), os espaços prisionais revelam a verdade do Estado neoliberal que se propõe a uma menor participação nos âmbitos econômicos e sociais, mas em contra partida, uma maior investida na segurança direcionada apenas aos aspectos criminais, de forma a tentar conter e ‗reparar‘ as consequências dessa menor participação do Estado na vida da população. Onde o Estado- providência se ausenta e dá lugar ao Estado Penal. Nesse sentido, o apenado sofre por viver em um "mundo" regido pelo esquecimento tanto da sociedade como do Estado, destarte, diante desta questão Xavier (2010, p. 72) afirma: "É possível dizer que o apenado no Brasil é punido duplamente: a primeira punição quando 1

Graduanda em Psicologia pela UFCG. Graduanda em Psicologia pela UFCG. 3 Graduanda em Psicologia pela UFCG. 2

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sua sentença é selada nos Tribunais extramuros, [...] e a segunda e mais cruel lhe aguarda nos intramuros dos famigerados cárceres de todo o País‖. Conforme os dados do DEPEN do Ministério da Justiça os índices de encarceramento no país aumentaram, onde de 2010 a junho de 2013, houve uma elevação de mais de 15% da população prisional brasileira, passando de um total de 496.251 em 2010 para um total de574.027 em 2013 (BRASIL, 2012). O aumento expressivo da população carcerária também representa prejuízos e agravamentos na condição de vida dos apenados, causando danos que vão para além da saúde física atingindo também a psicossocial. Como é sabido, a prisão além de fragilizar o sujeito em todos os âmbitos (psíquico, biológico, social, entre outros) negligência, muitas vezes, a própria assistência à saúde, propiciando a negação de seus direitos, direitos esses assegurados pelas legislações dos Direitos Humanos, pela Lei de Execução Penal (LEP), pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), bem como, pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Assim, o acesso dos apenados a assistência à saúde está assegurado por leis especificas, onde deve-se cumprir os preceitos constitucionais : ―a saúde é um direito de todos e um dever do Estado.‖ Desse modo, é obrigação do Estado oferecer assistência material, jurídica, à saúde, educacional, social, bem como religiosa (BRASIL, 1988). Sendo firmado ainda nos artigos 10 e 14 da LEP, a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, visando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade; e a assistência à saúde do preso e do internado deve ser de caráter preventivo e curativo, compreendendo também o atendimento médico, farmacêutico e odontológico (BRASIL, 1984). Não obstante, caso o estabelecimento penal não esteja aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. Levando em consideração a mulher encarcerada, percebe-se que em relação à assistência a saúde, há maior atenção apenas no tocante ao acompanhamento médico no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido. Além disso, o PNSSP pauta a inserção da população penitenciaria no Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo a efetivação do direito a assistência à saúde do apenado. Percebese a importância dada aos apenados, contudo não é realmente o que se efetiva, visto que paira a negação, o preconceito e o descaso da sociedade e do Estado frente a essa população, negligenciando os direitos dos mesmos.

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Um fenômeno bastante expressivo nos últimos tempos é o também crescente número da população carcerária feminina. Na Paraíba, por exemplo, entre 2004 e 2012, o número de mulheres encarceradas aumentou de 96 apenadas para 252, representando uma elevação de mais de 38 % nessa população (BRASIL, 2012). Diante disso, segundo Jesus e Lermen (2013, p. 02) o aumento da população feminina, expressa que a mulher "vem fazendo parte no cenário atual marcado pela exclusão social e das relações sociais mediadas pela violência". No tocante a esses dilemas, a mulher também inserida nessa realidade sofre bem mais, visto que essa está colocada em um segmento historicamente descriminado, pautados pela dominação masculina, afetando a sua saúde. Segundo Howard (2006), as mulheres sofrem mais do que os homens, visto que elas além de terem uma assistência mais precária, frequentemente adoecem mais. Desse modo, e sendo a mulher um sujeito visto pela sociedade como mais vulnerável como então é manejada sua saúde no âmbito prisional? Portanto, o presente trabalho visa evidenciar e discutir como e em que medida a assistência à saúde está sendo prestada às mulheres que se encontram em regime fechado na Penitenciaria Feminina de Campina Grande localizada no Estado da Paraíba, realizando uma comparação com os preceitos assegurados pelo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP). Além disso, buscou-se destacar quais as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no cotidiano da prisão no que se refere à saúde. Vale ressaltar que esta pesquisa é um fragmento retirado do Projeto de Iniciação Científica que ainda encontra-se em desenvolvimento, intitulado Trajetórias e experiências de mulheres presas: etnografia de uma Unidade Penal Feminina4. Inicialmente, apresentaremos um breve panorama sobre a assistência à saúde da mulher-presa, elencando alguns direitos concernentes a estas, bem como discutiremos os aspectos mais importantes sobre a assistência à saúde na realidade da Penitenciaria Feminina de Campina Grande-PB, concomitantemente uma comparação com os direitos oferecidos pelo PNSSP. Por fim, apresentaremos também algumas falas das mulheres referente ao sofrimento e as fragilidades proporcionado pela realidade prisional em sua saúde. 2

MÉTODO

4

Orientador: professor doutor Eduardo Henrique Araújo de Gusmão; bolsista: Lívia Cristina da Silva, e; colaboradoras voluntárias: Josilene do Nascimento Rodrigues e Alanny Nunes de Santana.

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Este trabalho consiste na realização de um estudo descritivo de cunho qualitativo, realizado através das experiências vivenciadas pelos pesquisadores na Penitenciaria Feminina de Campina Grande-PB. Para a investigação da temática utilizamos da técnica de entrevista do tipo focalizada, na modalidade de grupos focais, de abordagem Etnográfica, com 18 mulheres (entre 20 e 70 anos) que cumprem pena privativa de liberdade na Penitenciária Feminina de Campina Grande/PB. Vale ressaltar, que a coleta de dados iniciou-se após aprovação pelo comitê de ética do Hospital Universitário Alcides Carneiro que envolvendo seres humanos. Geertz (1989) afirma que através da abordagem Etnográfica é possível a maior valorização das falas das participantes edas observações efetuadas em campo, valorizando assim a maneira pela qualos indivíduosapreendemasimesmos, acondiçãoemquevivem, bem como suas atuações dentro desse campo. De acordo com Backes et al. (2001), o Grupo Focal é uma técnica de pesquisa qualitativa que apresenta-se como uma fonte que amplia o acesso às informações acerca de uma temática, além de possibilitar problematizações, trocas de ideias e construções de novas concepções entre os participantes. Assim, a partir das falas foi possível obter informações diversas que envolvem a assistência à saúde e as fragilidades decorrentes da realidade presentificada. No estudo também nos utilizamos do diário de campo a fim de destacar as informações advindas da coleta. Segundo Minayo et al. (2007), o diário de campo é um instrumento de apoio onde o pesquisador coloca suas percepções, questionamentos, problemáticas e informações obtidas no cenário vivenciado. Na pesquisa realizamos também observações espontâneas do local, que segundo Gil (1991), acontece quanto o pesquisador observa o local de forma espontânea sem que haja uma relação de aproximação do pesquisador com o cenário. Além disso, para melhor organização e familiaridade com a temática, realizamos uma pesquisa bibliográfica. Vale salientar, que nessa pesquisa a finalidade é a de perceber as mulheres como agentes sociais, logo, nos propomos a dar voz as mulheres para conhecermos mais acerca dos seus sentimentos e experiências frente a situação vivenciada. 3

RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1

A ASSISTÊNCIA À SAÚDE DA MULHER PRESA

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Uma das problemáticas mais marcantes no sistema penitenciário diz respeito à questão da saúde, que se configura no espaço prisional como uma das questões mais dramáticas. Nesse ínterim, as condições das unidades penais além de maltratarem o apenado em vias de privação de liberdade, o ferem e o desrespeitam em relação aos seus direitos já assegurados. Causando assim a negligência aos direitos humanos, tanto por parte do Estado como por parte da sociedade, por tratar-se de um cenário que é compreendido pelo meio social como sendo lugar de "marginais", que concomitantemente não devem ter direitos efetivados. O acesso da população prisional a ações e serviços de saúde é regularmente determinado pela "Constituição Federal de 1988, pela Lei nº 8.080, de 1990, que regulamenta o Sistema Único de Saúde, pela Lei nº 8.142, de 1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde, e pela Lei de Execução Penal nº 7.210, de 1984" (BRASIL 2005, p. 11). Neste sentido, todos devem ter garantida a efetivação de assistência à saúde, não importando o fato de estarem encarcerados em uma penitenciária, visto que é um direito constitucional o acesso à saúde. Reconhecendo sua responsabilidade frente a essa necessidade e garantia de assistência à saúde da presa, o Ministério da Saúde, em ação integrada com o Ministério da Justiça, elaborou em setembro de 2003, o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), através da portaria 1777, que foi desenvolvido dentro de uma lógica de atenção à saúde fundamentada nos Princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), atendendo aos preceitos da cidadania conforme os Direitos Humanos (BRASIL, 2005). Direcionando o olhar a situação das penitenciárias femininas Costa (2008, apud Oliveira et al., 2009, p. 05), afirma que há agravantes, visto que não existe uma política específica na prestação de assistência ao público feminino preso, nada que a "considere como sujeito de direitos inerentes a sua condição de pessoa humana, e muito particularmente, ás suas especificidades advindas das questões de gênero". Não obstante, conforme Oliveira et al. (2009, p. 05), o que persiste no meio prisional feminino é a omissão dos poderes públicos em prestar assistência à saúde, evidenciando a ausência de políticas públicas que busquem suprir as carências nesse âmbito, tendo como "justificadas pela falta de recursos materiais e humanos". Além disso, neste cenário também se impera as diferenças de gênero, propiciando mais sofrimento para a mulher presa, principalmente fragilizando a sua saúde. Segundo Jesus e Lermen (2013), as mulheres presas estão em espaços de maior vulnerabilidade que os homens presos. Assim, cerca de 25% das mulheres presas no Brasil estão em custodia em locais inapropriados, onde em relação aos homens presos esta porcentagem cai para 13%, 94


enfatizando a "urgência da garantia de dignidade no tratamento penal" (BRASIL, 2007, p. 32). Nesse sentido, as péssimas condições do estabelecimento, como a superlotação, espaços inadequados, falta de higiene, de lazer, violência, má alimentação, afetam a saúde das mulheres, se configurando assim com um descaso da sociedade e do Estado. Muitas mulheres adentram saudáveis no sistema penitenciário, de onde não saem sem serem afetadas por alguma doença ou com sua saúde fragilizada (BRASIL, 2007). A mulher presa, muitas vezes, adoece devido à situação de discriminação na sociedade, até mesmo discriminação advinda do próprio seio familiar, tornando assim a mulher carente de assistência em todo o âmbito biopsicossocial.

No tocante a isso, é

fundamental a efetivação do acesso das mulheres presas à assistência a saúde, visto que elas carecem de atendimentos que envolvem o âmbito da saúde mental. Porém a realidade prisional é precária, atualmente os presídios brasileiros são "bolsões" de infectocontagiosas, como tuberculose, bem como doenças como pneumonia, DST/AIDS, hepatite, dermatose, hipertensão e diabetes (BRASIL, 2007). Diante disso, essas doenças não só afetam as mulheres presas como também a sociedade em geral, visto que estas podem ser adquiridas pelos funcionários penitenciários, familiares, entre outros. São garantidos alguns direitos à mulher apenada: receber visita do cônjuge, companheiro, parentes e amigos, em dias específicos, assegurado pela LEP (art. 41, inciso X); direito ao pré-natal, assim que descoberta a gravidez, a presa deve ser transferida para uma unidade prisional que possua assistência, equipe médica e estrutura qualificada para acompanhamento dos 9 (noves) meses de gestação (pré-natal), na qual em parte deve acontecer em uma unidade hospitalar do sistema penitenciário ou da rede de saúde pública (Sistema Único de Saúde e conveniados); em 2009 de acordo com os artigos 83, par. 2º e 89 da LEP, os estabelecimentos prisionais destinados a mulheres devem possuir berçário e creche para que os filhos possam permanecer com a mãe, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade (BRASIL, 1984; BRASIL, 2009). Desse modo, percebe-se que muitos direitos, são oferecidos e assegurados por leis especificas, porém a realidade, como a presenciada na Penitenciária Feminina de Campina Grande-PB, mostra que o que se encontra na teoria nem sempre se efetiva na prática.

3.2.

A ASSISTÊNCIA À SAÚDE NA PENITENCIARIA REGIONAL FEMININA DE

CAMPINA GRANDE-PB

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No tocante a assistência à saúde, nota-se que existe uma gama de leis específicas que asseguram o direito à assistência à saúde no sistema penitenciário. Contudo, a prisão, por si só, é um cenário que favorece a violação de direitos. Conforme Espinoza (2004, p. 78), ―o cárcere é uma instituição totalizante e despersonalizadora‖, onde o sujeito que nela presentifica-se sofre rupturas e perdas não somente na liberdade, mas também na autonomia, causando bastante sofrimento o que afeta o bem-estar físico e psíquico. No Complexo Penitenciário do Serrotão de Campina Grande-PB, onde há a Penitenciaria de Segurança Máxima: capacidade 150, lotação 454; a Penitenciaria Regional Masculino: capacidade 300, lotação 685; e a Penitenciaria Regional Feminino: capacidade 32, lotação 81. Este conta com uma equipe composta por: um médico, um enfermeiro, dois assistentes sociais, um dentista e uma psicóloga. E é contemplado com PNSSP, embora em condições de precariedade. A pesquisa ocorreu, especificamente, na Penitenciaria Regional Feminino de Campina Grande-PB, e a partir dos resultados apresentados pela pesquisa, foi possível notar que o acesso aos serviços de saúde é ainda precária, porém a assistência à saúde melhorou, devido à implantação da Unidade Básica de Saúde, assegurada pelo PNSSP. Nesse sentido, o atendimento e os serviços à saúde das reeducandas ainda é falha e precária, sendo um dos fatores à superlotação da prisão, visto que a Unidade Básica de Saúde que está situada dentro do Complexo atende todos os presidiários, havendo insuficiência nos atendimentos, devido o elevado número de detentos, à escassez de profissionais de saúde, de medicamentos e insumos. Uma das reeducandas afirmou: “o cuidado com a saúde da gente aqui é mais ou menos, recebemos visitas de ginecologista, mastologistas, só não ainda de dentistas e existem poucos materiais para melhor cuidar da gente” (L). Por isto, é preciso que estes profissionais da saúde não fiquem no comodismo de nada fazer, porque nada tem, visto que podem realizar um trabalho em Rede, como preconiza o PNSSP, que essa equipe deve trabalhar articulada a redes assistenciais de saúde, onde têm como atribuições fundamentais: Planejamento das ações; Saúde, promoção e vigilância; e Trabalho interdisciplinar em equipe (BRASIL, 2005). Uma fala bastante expressiva foi: "ainda é precário o atendimento a saúde, porque ainda tem muito preconceito e estigmas dos profissionais da saúde e da sociedade” (M). Tambémfalaram que ao ficarem doentes são encaminhadas para alguma Unidade Básica de Saúde fora da prisão, visto que não há atendimento todos os dias na Unidade Básica de Saúde que existe dentro do Complexo, onde percebem que a comunidade fica com medo e os profissionais da saúde não querem atender. 96


É notório, que o preconceito e o estigma inabilitam uma possível ressocialização, bem como propicia o adoecimento e o sofrimento das mulheres presas, visto que elas precisam sentir aceitas na sociedade, para superarem a situação vivenciada e buscarem caminhos futuros melhores. Nesse ínterim, Goffman (1980, p.07) afirma que o estigma é "atributo profundamente depreciativo", onde este inabilita o sujeito para a aceitação social integral. As mulheres presas carregam o estigma por serem mulheres fora dos preceitos sociais, na qual acabam sendo excluídas por toda a sociedade. Segundo Garcia (1998 apud Castilho, 2007, p. 38): ...a prisão para a mulher é um espaço discriminador e opressivo, que se expressa na aberta desigualdade do tratamento que recebe, no sentido diferente que a prisão tem para ela, nas consequências para sua família, na forma como o Judiciário reage em face do desvio feminino e na concepção que a sociedade atribui ao desvio.

Além disso, percebe-se que a privação de liberdade adoece a mulher presa, visto que ela tem suas peculiaridades e necessidades. De acordo com Howard (2006), as mulheres sofrem um efeito desproporcional em relação à desassistência a saúde, além do mais, elas geralmente são acometidas por mais problemas de saúde, precisando mais de assistência médica que os homens. Vale considerar também, os Estudos das Nações Unidas, de 2004 (apud Howard 2006, p. 71) afirma que: As presas mulheres tendem a sofrer física e mentalmente em graus e com severidade que excedem, de longe, os presos ou as mulheres da população em geral. Parte disso pode estar relacionada às razões pelas quais elas foram encarceradas; por exemplo, dependência de drogas e problemas decorrentes de saúde. Outro fator é a maior prevalência de abuso sexual e exploração das mulheres antes e durante o encarceramento – problemas ginecológicos, HIV e outras doenças transmitidas sexualmente, gravidez e parto ou aborto.

Contudo, a prisão é um mal necessário, como afirma Foucault (2006, p. 261) ―[...] ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão‖. A situação carcerária é precária para todos os reeducandos, entretanto a mulher sofre mais, estando em maior vulnerabilidade, porque o sistema prisional não foi construído considerando as especificidades de gênero (Brasil, 2007). Entretanto, deve-se refletir sobre essa problemática, percebendo que é indispensável uma assistência à saúde especifica e especializada para atender a mulher-presa. Uma detenta falou que: "a sociedade pensa que somos vagabundas, mas não tem trabalhos para todos nós aqui, no artesanato só tem 12 de 70 mulheres, o resto fica dentro de um quadrado, isto estressa” (J). Uma detenta concordou com a outra detenta dizendo que: 97


“ficar dentro deste quadrado estressa” (A). Assim, é importante notar que as condições de confinamento são essenciais para garantir o bem-estar da presa, visto que o está preso "estressa", sendo o ócio um fator que também prejudica a sua saúde. De acordo com Brasil (2005), as condições de confinamento são determinantes para o bem-estar físico e psíquico, onde muitas detentas ao serem custodiadas para os estabelecimentos prisionais trazem problemas de saúde, vícios e possíveis transtornos mentais, que são pouco a pouco agravados pela precariedade do estabelecimento, em relação à alimentação, a assistência á saúde e a moradia. No que se refere a isto, o PNSSP, preconiza em uma de suas diretrizes que deve-se "prestar assistência integral resolutiva, contínua e de boa qualidade às necessidades de saúde da população penitenciária", bem como, assegura como ação complementar a atenção em saúde mental "ações de prevenção dos agravos psicossociais decorrentes do confinamento" (BRASIL, 2005, p. 15, 33). Dito isso, percebe-se a desassistência que elas sobre no âmbito da saúde mental que mesmo preconizado no PNSSP, não é efetivado na penitenciária. Assim, é fundamental refletir e questionar sobre a ociosidade que estas mulheres são submissas, buscando manejar essa situação. Bem como, é necessário perceber o sujeito para além da doença, percebendo-o como um todo, integralmente, visto que o adoecer não é somente em âmbito biológico, mas também psicológico. De acordo com Colombaroli (2012, p. 04) "as políticas penitenciárias foram pensadas pelos homens e para os homens", desse modo, as mulheres encontram-se situadas na (in) visibilidade, na qual, muitas vezes, suas necessidades não são atendidas, havendo a violação constante de sua dignidade. Em relação à situação de mulheres que padecem de problemas psiquiátricos, é evidente a carência de serviços médicos na penitenciaria e a falta de articulação com o sistema de saúde o que resulta em diagnósticos inexistentes ou equivocados, prejudicando o quadro de saúde mental já agravado pelas condições da prisão. Presas provisórias com problemas mentais já identificados permanecem no regime destinado às outras presas, enquanto aguardam a realização da perícia médica, que costuma levar bastante tempo para ocorrer. Segundo Brasil (2007), mesmo havendo a determinação da medida de segurança na modalidade de internação, muitas mulheres com problemas psiquiátricos são mantidas em unidades prisionais diante da ausência de vagas nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico.

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Assim, perceber-se nessa realidade que não existe uma assistência especifica para reeducandas que precisam ser assistidas devido problemas psiquiátricos, não tendo assim um tratamento diferenciado. Desse modo, evidencia-se que a assistência médica e o acesso aos cuidados que envolvem a saúde mental também são precários, onde a equipe de saúde não é preparada para lidar com situações que abranjam problemas de âmbito mental. Outro fato marcante que se evidencia nas falas das reeducandas relacionado à saúde é a questão das drogas. Uma reeducanda afirma: “to nessa vida louca não quero mais não, mas pela droga não saiu não, agente sente o vicio é danado, eu sinto saudade dos meus filhos, da minha mãe, mas sinto saudade da droga, quando você fuma Deus sai de perto de você” (G). Enquanto outra afirma: "O crack é tão peso, pesado que mesmo que digam que sua mãe morreu você não quer saber, não quer sair da droga” (K). Além disso, as falas das apenadas também evidenciam o efeito da abstinência gerada pelo não consumo de drogas devido à privação de liberdade. Uma reeducanda afirma: "agente ver coisas que não existe, tudo é o diabo que faz isso” (B). Uma delas afirma: "Você que não usa droga não sabe o que corre nas veias não, a droga ainda me domina, tenho a vontade, sonho com ela, me acordo com o cheiro dela” (T). Outra apenada expressa: "Se você não for mais forte que ela, ela lhe derruba, no meu psicológico, eu penso assim eu tenho que ser mais forte que ela” (S). Nos discursos, percebe-se que não existe uma atenção sobre os efeitos da abstinência, porém isto acomete a saúde das mesmas. Contudo, esse cuidado é assegurado pelo PNSSP, como uma ação complementar da atenção em saúde mental, garantindo: "atenção às situações de grave prejuízo à saúde decorrente do uso de álcool e drogas, na perspectiva da redução de danos" (BRASIL, 2005). Outra problemática que é verificada nos discursos diz respeito aos agravos psicossociais que fragilizam a saúde, isso se mostra em relação às visitas familiares, visto que a falta destas abalam psicologicamente as apenadas, sendo assim um efeito propiciado pelo confinamento. Uma detenta relata: "não recebi minha visita... Castigo... Isso me deixa muito triste...” (G). Nota-se o sofrimento expresso em seus rostos ao falarem do não recebimento das visitas, a saudade que as consome e as deixam revoltadas e indignadas com a realidade a que estão submetidas. Também evidencia-se agravos à saúde em relação ao cotidiano do confinamento, ficando expresso em uma fala de uma reeducanda: "a pior hora do dia é pela manhã porque nos acordam... já acordo estressada” (J). Diante disso, o PNSSP vem assegurar assistência à atenção em saúde mental, garantindo: "ações de prevenção dos agravos psicossociais 99


decorrentes do confinamento" (BRASIL, 2005, p. 33). Contudo não é efetivado, evidenciando novamente o descaso com problemas relacionados ao âmbito psicossocial e a saúde mental. Notar-se em seus discursos que o fato de encontrarem-se em um quadrado já é algo alarmante, onde o fato de ver-se privada é algo destruidor do ser, que aniquila o eu, logo, fragiliza sua saúde. Nas observações do espaço, percebeu-se a construção do berçário, sendo um avanço para este espaço prisional feminino. Onde, acaba sendo efetivado o preceito dito pela LEP em seu artigo 83, inciso 2o: "serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade" (BRASIL, 1984).

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CONCLUSÕES

Com a efetivação de uma Unidade Básica de Saúde dentro da penitenciária, assegurada pelo PNSSP, apesar das dificuldades como: superlotação, ausência de matérias, medicamentos e falta de profissionais de saúde, o acesso à saúde melhorou bastante. Percebese, assim que com a implantação do PNSSP, ocorreram alguns avanços frente à assistência a saúde das apenadas. Entretanto, ainda mostra-se necessário um olhar reflexivo frente ao estado das mulheres presas, em relação a problemas atrelados a condição de confinamento, ao preconceito e estigma, ao descaso com a saúde mental que estas sofrem, sendo um dos fatores propulsores do adoecimento. Além disso, é necessária a ampliação de ações que possibilitem à melhora das condições do encarceramento, promovendo estratégias de atenção à saúde, de promoção de atividades, de lazer, e de inserção no mercado de trabalho. Nota-se que algumas mudanças vêm ocorrendo no meio prisional em relação à assistência a mulher presa grávida, contudo, todas as mulheres necessitam de assistência à saúde, visto que todas tem a possibilidade de adoecer. Assim é necessária uma assistência à saúde não somente priorizando o tratamento, mais também a prevenção. Por fim, pode-se afirmar que a ausência de políticas públicas e de um sistema penitenciário que leve em consideração as particularidades das mulheres presas e que não reconheça que estas são sujeitos de direitos, compromete a qualidade de vida das mesmas, transformando as instituições penais em depositários de pessoas, que está ali aguardando o cumprimento de sua pena.

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REFERÊNCIAS

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A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ATRAVÉS DO PROTOCOLO DE ENTRADA DE BIOMATERIAIS DO CERTBIO/UFCG

A EFFECTIVE RIGHT TO HEALTH THROUGH THE PROTOCOL OF BIOMATERIALS CERTBIO INPUT / UFCG 1

Carlos Alberto Oliveira Rodrigues 2 Geanne Gomes de Moura 3 Mariana Luz Silveira Sumário: 1 Introdução. 2 Direito fundamental à saúde. 3 CERTBIO. 4 Norma de entrada de biomaterial. 5 A efetivação do direito à saúde. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Efetivar um direito é possível através da entrega de algo, da realização ou não de alguma coisa. Ao se falar em Direito à saúde, inicialmente pensa-se em ações públicas que possam garantir essa tal efetivação, contudo, a concretização especialmente desse direito fundamental, depende também das ações de cidadãos e de entidades privadas trabalhando em consonância com o Estado. Essas ações têm reflexo direto no completo bem–estar físico, mental e social das pessoas, em outras palavras, repercute diretamente na saúde de cada pessoa. O presente artigo objetiva apontar que as reponsabilidades que possam efetivar o Direito à Saúde não são apenas do Estado mas também de particulares como por exemplo as ações do Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste – CERTBIO ao instituir um rígido protocolo de entrada de biomatérias para análises em suas dependências. O artigo foi fruto de pesquisa bibliográfica utilizando o método dialético e amoldurado pelas condutas éticas – jurídicas dos integrantes do Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais (CERTBIO), na Unidade Acadêmica de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de Campina Grande (UAEMa/UFCG).

1

Especialista em Marketing pela UEPB; Engenheiro Eletricista pela UFPB; Bacharelando em Ciências Jurídicas pela FACISA. 2 Bacharel em Ciências Jurídicas pela UEPB. 3 Bacharelanda em Ciências Jurídicas pela FACISA.

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2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

O direito à saúde foi colocado na posição atual, direito fundamental, devido a Constituição de 1988. Os textos constitucionais anteriores abordavam o tema de forma dispersa, como por exemplo, a garantia de ―socorros públicos‖ no art. 179 XXXI da Constituição de 1824 ou da garantia da inviolabilidade do direito à subsistência exposto no art. 113 caput da Constituição de 1934 (Sarlet,2008 p.127). Tal consagração foi fruto da incorporação dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que dispõe: Artigo XXII Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

Além da incorporação dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, outros dispositivos protetivos à saúde influenciaram para alçar o direito à saúde no Brasil como direito fundamental, dentre eles destacamos a Carta Social Europeia de 1965 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966(Mendes, 2013 pp.22-39). Observa-se que o saúde torna-se o principal direito social elencado no art. 6º da constituição de 1988 que assim dispõe: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

A constituição federal reserva a seção II do capítulo II do título VIII só para abordar o direito à saúde que assim dispõe:

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Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. § 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) Regulamento I - os percentuais de que trata o § 2º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) 105


IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) § 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação. .(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006) § 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 63, de 2010)Regulamento § 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006) Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. § 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos. § 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei. § 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização. Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;

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VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. Somando-se à previsão constitucional acima referida, encontramos a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, chamada Lei Orgânica da Saúde, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Dessa Lei destacamos os seguintes artigos:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. § 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. Art. 3o Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais. (Redação dada pela Lei nº 12.864, de 2013)

A vida é de fato o maior bem tutelado seja por normas constitucionais ou infraconstitucionais acima citados, pois ao se garantir direito à saúde garante-se manutenção à vida, vida com qualidade, vida com dignidade. Vê-se também que existe interdependência dos direitos fundamentais de forma que o direito à saúde se dá também pela proteção a outros direitos fundamentais. É cediço que o maior responsável pela eficácia vertical dos direitos e garantias fundamentais é o Estado. Contudo a efetivação plena do direito à saúde se dá também com a sua eficácia horizontal, que implica na repercussão desses direitos nas relações de Direito Privado. Para corroborar com o acima exposto, analisemos a definição de saúde posta pela Organização Mundial da Saúde – OMS durante a Introdução da Constituição da Organização Mundial da Saúde e adotada pela Conferência Internacional de Saúde, realizada entre 19 a 22

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de junho de 1946 em New York, que diz:"Healthis a stateof complete physical, mental and social well-beingandnotmerelytheabsenceofdiseaseorinfirmity." Ora, se saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social e não só a ausência de doença. O bem estar social implica em perceber que saúde para o homem requer viver bem em comunidade, significa que o ser humano integra uma comunidade e encontra-se socialmente vinculado ao cumprimento de certos deveres, não podendo exclusivamente só ser responsável pela sua própria saúde (AITH,2013 p.270). Assim, não só o Estado é o único responsável pela efetivação do direito à saúde, o cidadão também o é. O exposto no art. 197 da Constituição Federal reforça a ideia que o cidadão também é responsável pela promoção à saúde ao conclamar que pessoa física ou jurídica de direito privado deve executar ações de serviço à saúde (LIMA, 2011 p. 183). Tal pensamento é ratificado claramente no segundo parágrafo do artigo segundo da Lei 8.080 de 1990, ao afirmar que o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. O professor Ingo Wolfgang Sarlet pontua muito bem que os deveres fundamentais no que concerne à Constituição pátria são esquecidos, tendo em vista a concepção neo-liberal de um Estado de Direito. Ele fala em ―hipertrofia dos direitos‖ ao se referir a valorização exacerbada dos direito em detrimento aos deveres que acaba forjando um cidadão individualista sem o comprometimento com a sociedade e seus semelhantes (SARLET, 2012 p.227). O que abordamos aqui ao nos referirmos aos deveres fundamentais é em especial ao dever do cidadão em proteger a saúde, respeitando as suas especificidades e limitações,não esquecendo que existem outros deveres como o de votar; dever de pagar impostos;dever de família por exemplo. A efetivação do direito à saúde vai além do que afirmou o Ministro Gilmar Mendes (MENDES, 2012 p. 698) ao dizer que são necessárias ações específicas e políticas públicas para a redução do risco de doença. É necessário, além do que foi dito, a ação do cidadão com medidas e comportamentos que visem a proteção e promoção à saúde, deixando de ser apenas espectador e tornando-se ator juntamente com o grande protagonista o Estado. Nesse interim aduz o Dr. Fernando Aith A sociedade, por meio dos atores sociais mencionados, tem uma importância muito grande na proteção da saúde das pessoas em geral. De um lado, a sociedade deve dosar bem a forma como impõe certas condutas: na empresa, o trabalho excessivo; na família, a alimentação inadequada; na sociedade como um todo, definições de padrões estéticos e comportamentos nocivos à saúde, etc. (AITH,2013, p.273).

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É amparado nessa linha de pensamento que o professor Ingo Wolfgang Sarlet nos alerta quanto a limitação da dimensão subjetiva de direitos e ressalta a importância e por vezes a obrigatoriedade de se aplicar o princípio da proporcionalidade para assegurar que todos os direitos fundamentais constitucionais estejam devidamente resguardados (SARLET, 2012, p. 231-232). 3 CERTBIO O Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste – CERTBIO – é entidade sem fins lucrativos, situada no município de Campina Grande, Paraíba, e vinculada à Unidade Acadêmica de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de Campina Grande UAEMa/UFCG. Atua no desenvolvimento e avaliação de biomateriais, como também na formação científica de acadêmicos da graduação e pósgraduação, tanto em mestrado acadêmico, como em níveis doutorais e pós-doutorais. O CERTBIO é um laboratório de caracterização de biomateriais, designado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA – para realização dos ensaios e das análises laboratoriais, especialmente de natureza fiscal, estudos e pesquisas para avaliar a qualidade dos produtos de uso em saúde, além de abranger atividades de pesquisas e desenvolvimento de projetos em biomateriais. Criado em 2006, o CERTBIO vem atuando, de forma destacada, na introdução de conhecimentos em gestão da qualidade, desenvolvimento de produtos e avaliação tecnológica de biomateriais, bem como no estimulo ao empreendedorismo, com direção prontamente apontado para a política de saúde pública do país, tornando o acesso cada vez mais ampliado da sociedade através do Sistema Único de Saúde – SUS – e contribuindo à dotação do país às condições científicas e tecnológicas condizentes à competição global. No seu primeiro triênio, o CERTBIO estabeleceu um marco em suas atividades, com a chegada dos primeiros equipamentos obtidos pelo apoio do Ministério da Saúde/Fundo Nacional de Saúde, passando a ser dotado de uma sólida infraestrutura capaz de realizar ensaios de avaliação e caracterização de materiais e de produtos para uso em saúde, tendo como público assistido toda a comunidade científica, órgãos governamentais, a exemplo da Agência Nacional de Vigilância sanitária - ANVISA e do Ministério da Saúde -MS, ede empresas privadas, bem como, firmando parcerias com empresas e instituições de abrangência nacional e internacional. Nessa progressão, o CERTBIO adentra seu terceiro triênio com notória solidez e maturidade, elementos que, somados aos resultados acadêmicos, científicos e inovadores, 109


consubstanciados por seus inúmeros procedimentos de pesquisas laboratoriais realizadas, suas defesas de dissertação de mestrado e de teses doutorais, além da acolhida de vários pesquisadores em níveis doutorais e pós-doutorais,além da implantação de políticas de prospecção tecnológica e proteção à propriedade intelectual. Nesse norte, consoante exposto abaixo, o CERTIBIO abarca, em sua nova e mais visível

expansão,

quatro

dimensões:

ensino

e

pesquisa,

extensão

universitária,

desenvolvimento de produtos e residência médica, conforme descrições: •

Ensino e Pesquisa, como vocação principal, em níveis de Graduação e Pós-

Graduação (lato e stricto sensu), incluindo mestrados, doutorados e pesquisas pós-doutorais; •

Extensão Universitária, como agente de desdobramento social das atividades

ora ofertadas, expandindo, à comunidade, os benefícios resultantes das atividades acadêmicas desempenhadas, por meio de instrução científica (cursos de extensão) e transferência tecnológica; •

Desenvolvimento de Produto, como resultado de uma política gerencial que

visa a conversão da pesquisa pura em pesquisa aplicada, suportada por políticas de prospecção, ainda nas fases iniciais de P&D, e proteção à propriedade intelectual em nível patentário; •

Residência Médica, como mais uma porta de acesso ao incremento da missão

social de agregar base científica diferenciada, especialmente no que tange aos biomateriais, para formação de médicos-cientístas, agentes propagadores dos avanços técnico-científicos correlatos, com apontamento notório a toda a população de uma geral.

4 NORMA DE ENTRADA DE BIOMATERIAL

Para estabelecer e manter procedimentos que assegurem que as atividades de planejamento e o controle do processo sejam realizados de forma imune à de quaisquer pressões ou influências indevidas, foi elaborado o procedimento gerencial PG03 Análise Crítica de pedidos, propostas e contratos. Nele, o laboratório identifica e planeja as atividades que influenciam na realização da análise crítica de pedidos, propostas e contratos. Desde o primeiro contato do cliente com o laboratório até a emissão do laudo técnico acerca do biomaterial. As solicitações de serviços pelos clientes podem ser realizadas via endereço eletrônicowww.certbio.org ou na recepção do laboratório.

110


Os dados dos clientes bem como as referências científicas dos biomatérias correspondentes ficam armazenados em uma planilha de acesso restrito, chamada controle de protocolo de amostras, sendo gerado número que identifica cada cliente, mantendo de forma sigilosa os dados pessoais do mesmo. O técnico responsável pela análise técnica de cada biomaterial não tem conhecimento da propriedade dessebiomaterial, restringindo-se apenas aos aspecto técnicos e científicos da amostras avaliada. Dessa forma o CERTBIO aplica políticas e procedimentos que asseguram a confiança na sua competência, enquanto agente certificador autorizado pela ANVISA e pelo INMETRO.De forma que as informações confidenciais são protegidas e, que os membros do laboratório estejam livres de quaisquer pressões ou influências indevidas sejam elas comerciais ou não. Essa proteção se estende desde o primeiro contato do cliente com a instituição, passando pela entrada das amostras nos laboratórios até o envio dos resultados aos clientes. Todo o procedimento é realizado por pessoal técnico capacitado autorizado e responsável.

5 A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

O CERTBIO ao estabelecer procedimento normativo de entrada de biomatérias para aferição em seus laboratórios está resguardando de forma preventiva a saúde, objetivando que o biomaterial por ele certificado não venha a vilipendiar a saúde de qualquer pessoa, visto que essa pessoa se servirá um produto, seja órtese ou prótese, criado a partir desse biomaterial. Essa ação preventiva se dá através, como visto, de imposições de condutas e normas proibitivas, materializando nitidamente o que apontou o professor Ingo Wolfgang Sarlet ao falar sobre a limitação da dimensão subjetiva de direitos (SARLET, 2012 p. 231). Agindo assim o CERTBIO resguarda preventivamente o direito à saúde de um futuro usuário que utilizará peça com biomaterial certificado por ele. Materializando o que dispõe o artigo 196 da Constituição Federal, tomando para si uma conduta que visa reduzir o risco de doenças, disponibilizando serviço de proteção à saúde. Assim não se está praticando um ilícito omissivo. Garantindo que ocorra o exercício da cidadania através da saúde. De sorte que através desse procedimento de entrada de materiais o CERTBIO atua como vetor da garantia do Direito à Saúde. Além da proteção do Direito à Saúde, o CERTBIO ao normatizar a entrada de biomateriais também protege ao mesmo tempo à produção científica e os direitos de

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propriedade intelectual ao resguardar a privacidade do proprietário do biomaterial bem como os resultados obtidos com esses.

CONCLUSÃO

O CERTBIO, ao inserir a referida norma em suas atividades e análises, afunilando o processo de admissão de matérias e assegurando, assim, a efetivação do direito à saúde no que lhe concerne, inovou ao criar novo instrumento normativo que regula a qualidade e a maneira que tais materiais são incorporados aos laboratórios. O que se pode inferir do exposto, consoante se lê acima, é que a atuação do CERTBIO na análise, aprovação e entrada de biomateriais em seus laboratórios, através da norma, acaba atuando de maneira preventiva na qualidade dos materiais e que estes iriam interferir na saúde daqueles que os utilizassem, sendo possível àqueles que se valem de tais materiais, depositar confiança e certeza na qualidade do produto com o qual irão trabalhar. Assim, tendo em mente os aspectos analisados pelo laboratório, explorados neste trabalho, e a norma reguladora criada para o próprio CERTBIO, conforme se extrai do estudado, o CERTBIO já é referência no desenvolvimento e avaliação de biomateriais, obtendo cada vez mais destaque na introdução de conhecimentos e desenvolvimento de produtos, certificando-os e atendendo a uma parcela que tem seamplificado, já sendo possível perceber a solidez que atingiu o referido trabalho realizado pelo CERTBIO. Entrementes, a atividade realizada pelo CERTBIO é dotada de notória seriedade e reconhecida como certificadora do INMETRO e da ANVISA, o que mostra a qualidade e a importância adquiridas pelo laboratório em tão pouco tempo de existência. Nessa seara, em suma, por todo o exposto depreende-se que a norma reguladora, muito bem elaborada, foi parte essencial para que se atingisse tal qualidade, para que fosse possível dar maior efetividade aos direitos inseridos no âmbito da saúde, no que se refere às atividades desenvolvidas no CERTBIO, que buscam, em todos os seus procedimentos, garantir qualidade dos produtos certificados e anular os riscos inerentes à saúde de seus utilizadores, além de salvaguardar os direitos à propriedade intelectual, uma vez que é interesse do laboratório, previsto na norma, manter em sigilo todas as etapas do procedimento realizado fazendo valer, assim, a ideia e uma análise justa e desvinculada de qualquer interferência externa.

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REFERÊNCIAS

AITH, Fernando. Direito à saúde e suas garantias no Brasil: Desafios para efetivação de um Direito Social. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais Diálogos Contemporâneos. Salvador:JusPODIVM, 2013.

LIMA. Andréia Maura Bertolina Rezende de Lima. O direito fundamental e social à saúde e à dignidade da pessoa humana na sociedade de risco. Revista de direito do consumidor.n. 47, jul./set., 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais.

MENDES, Karyna Rocha. Curso de direito da saúde. São Paulo: Saraiva, 2013.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito constitucional. 7 ed. rev. e atual.São Paulo: Saraiva 2012. SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde aos 20 anos da Constituição Federal de 1988. Revista de direito do consumidor. n. 17 – jul./set., 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais.

______. A eficácia dos Direitos Fundamentais uma teoria dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11 ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em 06 de mar. De 2014.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm, Acesso em: 06 de mar. De 2104.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 06 de março 2014.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE1948 Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm Acesso em 06 de março 2014.

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htmacesso em 06/03/2014Lei Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.

Preamble to the Constitution of the World Health Organization as adopted by the International Health Conference, New York, 19-22 June, 1946; signed on 22 July 1946 by the representatives of 61 States (Official Records of the World Health Organization, no. 2, p. 100) and entered into force on 7 April 1948 emhttp://www.who.int/library/collections/historical/en/index3.htmlacessoem 06/03/2014.

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ANEXO I4 CÓDIGO: F25 REVISÃO: 01 PÁGINA:1/1

PROTOCOLO DE ANÁLISES

SERVIÇO SOLICITADO  ENSAIOS E ANÁLISES LABORATORIAIS

Nº PEDIDO: DESENVOLVIMENTO DE BIOMATERIAIS

DADOS COMPLEMENTARES QUANTO AOS ITENS DE ENSAIO NATUREZA DOS ITENS DE ENSAIOS:

 POLIMÉRICO

 CERÂMICO

 METÁLICO COMPÓSITO

 OUTROS

DESCRIÇÃO DAS AMOSTRAS: ENSAIOS E ANÁLISES NECESSÁRIAS CONTAMINAÇÃO POR PARTÍCULAS  CITOTOXICIDADE  ABSORÇÃO DO GEL

 CONTAMINAÇÃO POR METAIS DETERMINAÇÃO DA MATÉRIA VOLÁTIL  FRX

 ENSAIOS MECÂNICOS  COESIVIDADE DO GEL DETERMINAÇÃO DE MATERIAL SOL. EM HEXANO  OUTROS ENSAIOS______________________________________________________________________________________________

PARÂMETROS DO ENSAIO

Nº DO LOTE

QTD AMOSTRAS

OBSERVAÇÕES

DATA DA SOLICITAÇÃO: ___/____/_____ DATA PREVISTA P/ ENTREGA DOS RESULTADOS: ____/____/_____ ____________________________________________________________________________ Em, ______/______/__________ RESPONSÁVEL PELO RECEBIMENTO DA SOLICITAÇÃO E AMOSTRAS ANÁLISE DE VIABILIDADE TÉCNICA (APENAS CLIENTES INTERNOS)  VIÁVEL

 NÃO VIÁVEL

_____________________________________________________________________ RESPONSÁVEL PELA PREPARAÇÃO DAS AMOSTRAS

Em,______/______/__________

_____________________________________________________________________ RESPONSÁVEL PELA ANÁLISE DE BIOMATERIAIS

Em,______/______/__________

____________________________________________________________________ ASSINATURA DO GERENTE TÉCNICO

Em,______/______/__________

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------IDENTIFICAÇÃO DO CLIENTE

Nº PEDIDO:

RAZÃO SOCIAL / NOME:: NOME FANTASIA (quando houver): CNPJ / CPF: RAMO DE ATIVIDADE:

SITE :

ENDEREÇO:

BAIRRO:

CIDADE: UF:

CEP:

E-MAIL:

TELEFONE / CELULAR:

CIENTE: ORIENTADOR / EMPRESA:  -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------COMPROVANTE DE RECEBIMENTO

Nº PEDIDO:

RAZÃO SOCIAL / NOME: DATA PREVISTA PARA ENTREGA DOS RESULTADOS:__________________________________________ DOCUMENTAÇÃO ACADÊMICA NECESSÁRIA: PROTOCOLO PREENCHIDO E ASSINADO / AMOSTRA PARA CADA ENSAIO / CD PARA CADA ENSAIO / PEDIDO DIA DE ATENDIMENTO: QUARTAS DAS 14 ÀS 17 HORASCONTATO: 2101 1843 PARA RECOLHIMENTO DO RESULTADO/AMOSTRAS APRESENTAR ESSE COMPROVANTE OBS: O PRAZO LIMITE PARA RETIRADA DOS RESULTADOS E AMOSTRAS SERÁ DE ATÉ 30 DIAS CORRIDOS APÓS A DATA PREVISTA PARA ENTREGA. 4

Protocolo extraído do SGQC em setembro/2013

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O NÃO RECOLHIMENTO NO PRAZO ESTIPULADO ACARRETARÁ: MULTA NO VALOR COMERCIAL COBRADO PELO ENSAIO, A AMOSTRA SERÁ CONSIDERADA “COISA ABANDONADA” SENDO AUTOMATICAMENTE INCINERADA. ALÉM DO IMPEDIMENTO DE REALIZAÇÃO DE ANÁLISES NO CERTBIO PELO PRAZO DE 1 ANO.

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A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A PROMOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO Giovanna Paola Batista de Britto Lyra Moura 1

Sumário: 1 Introdução. 2 O Desenvolvimento Sustentável Enquanto Diminuição das Desigualdades Sociais. 3 A Judicialização da Saúde. 4 A Judicialização da Saúde no Município de São Paulo. 5. Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO

Hodiernamente, a ideia de desenvolvimento sustentável supera a concepção de preservação do meio ambiente, para abraçar, também, um aspecto social. É inegável que, na sua concepção nascedoura, a expressão possuía uma abordagem ecológica, de preservação do meio-ambiente, frente à exploração desenfreada dos recursos naturais não-renováveis pela ação antropocêntrica. Hoje em dia, a sustentabilidade adquire uma nova nuance, para englibar, além da conservação do meio ambiente visando à satisfação das necessidades das gerações atuais sem se esquecer das gerações futuras (COUTINHO e BARACHO, 2013), um processo contínuo que deve incorporar aos programas de combate à pobreza e de melhoria na distribuição da renda, outros fatores igualmente tão importantes quanto como a dotação do indivíduo de dotações de capital humano adequadas, aliados a criação e constituição de um elevado capital social (SEN, 2000). Neste sentido, Xavier e Lanzillo (2013) caracterizam a terceira acepção do desenvolvimento como aquele que integra todos os fatores da sociedade. Para os autores, ―além do crescimento da riqueza, representante do aspecto quantitativo do desenvolvimento, tem-se o aspecto qualitativo, representado pela melhoria dos indicadores sociais (saúde, educação, acesso a bens essenciais, entre outros)‖. No contexto moderno, pensar o desenvolvimento sustentável é analisar a relação entre desenvolvimento econômico e meio ambiente e buscar mecanismos de equilíbrio entre ambos para que o homem, com liberdades mínimas, isto é, com condições suficientes para sobrevivência, construa a sua autonomia, sua cidadania e sua liberdade frente ao 1

Graduada em Direito pelo UNIPÊ; Mestranda em Direito e Desenvolvimento Sustentável – UNIPÊ; Advogada.

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desenvolvimento econômico, sem desprezo ao meio ambiente e identificar, na ecologia de restauração, a fundamentação cidadã do desenvolvimento sustentável (JARDIM, 2005). Deste modo, o acesso ao direito à saúde seria verdadeiro promotor da ampliação das liberdades dos cidadãos e, por conseguinte, do desenvolvimento sustentável, porque garantiria um maior equilíbrio entre as fatias da população brasileira, tão assolada pela má distribuição de renda e marginalização das camadas mais pobres. Assim, daria sua contribuição, de maneira efetiva, para uma maior autonomia destas pessoas, em um claro processo de aumento da cidadania e redução das desigualdades sociais. Uma das maneiras mais atuais de acesso à saúde, não reside, incrivelmente, no incremento das políticas públicas voltadas ao melhoramento da rede pública de saúde, mormente o Sistema Único de Saúde (SUS), por uma quase que completa inércia dos poderes Legislativo e Executivo no que tange ao fomento desta área tão importante da vida de qualquer ser humano. Para suprir esta carência, o Judiciário vem sendo cada vez mais acionado, para garantir aos cidadãos o acesso, principalmente, a medicamentos e ao custeio de tratamentos de enfermidades. Trata-se de ação do Poder Judiciário em razão da vulneração de direitos fundamentais pela maioria política (BARROSO, 2007). É claro que a consecução das políticas públicas de saúde dependem, essencialmente, da atividade dos poderes Legislativo e Executivo, mas, na prática, o que se vê é um arcabouço legislativo inexpressivo, complexo e inoperante (burocrático), o que dificulta a ação do Poder Executivo em seu dever constitucional de garantir o direito à saúde. Soma-se a isso o próprio fato de o Poder Executivo não destinar os recursos necessários à saúde, além de não zelar pela correta aplicação de tal numerário, o que por diversas vezes resulta na realização de gastos desnecessários (como a compra de medicamentos em patamar muito superior ao necessário, aparelhos ultrapassados, etc.) ou mesmo no desvio de tais valores (através de atos de corrupção) (FRANCO, 2013). A interferência do poder Judiciário em questões que, outrora, eram consideradas da alçada dos outros dois poderes que compõem o Estado Democrático de Direito brasileiro representa, conforme já dito anteriormente, uma mudança no paradigma de interpretação e efetivação dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Outrossim, demonstra que aquele poder está empenhando-se em rever seus papéis, passando de mero expectador a ator, na busca pela implementação prática dos ditames da Carta Política, em uma verdadeira fuga de sua zona de conforto, posto que supera o histórico de decisões despidas de coragem e força, para desafiar a prevalência dos interesses dos poderes Executivo e Legislativo.

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Entretanto, discute-se se o crescimento no número de demandas judiciais visando ao fornecimento de medicamentos e de tratamentos de saúde parte das camadas mais vunleráveis da população, e se promove, na realidade, desenvolvimento sustentável. Cuida-se de verificar se a judicialização da saúde contribui para a ampliação do acesso à saúde, direito fundamental constitucionalmente garantido, ou se, ao invés disso, maximiza ainda mais o abismo existente entre as camadas mais ricas e mais pobres da população.

2

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ENQUANTO DIMINUIÇÃO DAS

DESIGUALDADES SOCIAIS

Antigamente, o desenvolvimento de um país era medido de maneira simplistas, pois levava em consideração apenas os termos monetários como parâmetro para caracterizá-lo como desenvolvido ou subdesenvolvido (SILVA, 2013). Assim foi até o advento da literatura do economista indiano Amartya Sen, que representou uma verdadeira guinada na maneira de pensar o desenvolvimento das nações. Para o criador do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano e vencedor do Prêmio Nobel de Economia, a qualidade de vida das pessoas é requisito indispensável ao desenvolvimento dos países, de modo que não somente a renda individual deve ser considerada como instrumento de aumento das liberdades das pessoas, mas depende, também, de outras determinantes, tais como as disposições sociais e econômicas, como, por exemplo, o acesso aos serviços de educação e saúde (SEN, 2000). Para Maria Camila Florêncio da Silva (2013), este câmbio no modo de pensar o desenvolvimento mudou seu significado: agora, desenvolvimento não é mais o mesmo que crescimento econômico, e nem é mais um problema exclusivo dos países subdesenvolvidos, senão de todas as nações. Cita, para justificar sua ideia, não só as palavras de Amartya Sen, mas também a obra de Martha Nussbaum (2011), segundo a qual o desenvolvimento supera o aumento de capital e renda, para abordar as capacidades humanas. Portanto, pensar o desenvolvimento sustentável enquanto proteção apenas do meioambiente, preservando-o de acordo com as necessidades das atuais gerações, sem, contudo, esquecer-se das gerações futuras, é uma ideia, no mínimo, incompleta. A ecologização do desenvolvimento sustentável deve ser entendida como apenas uma das faces deste pensamento. É que, conforme preleciona Juarez Freitas (2011), o conceito de sustentabilidade tem natureza multidisciplinar. No que nos interessa, sustentabilidade, em sua concepção mais moderna, está intrinsecamente relacionada aos direitos humanos, e ultrapassa a ideia de 119


ecodesenvolvimento para abordar, também, os direitos sociais dos cidadãos, e a maneira como esses direitos estão sendo (ou não) atendidos, como forma de reduzir as desigualdades sociais e possibilitar o exercício da liberdade real tão defendida por Amartya Sen. Significa dizer, então, que o desenvolvimento sustentável é um conceito multifacetado, que supera a ideia preliminar de preservação do meio-ambiente – ecologização – face à exploração desmedida dos recursos naturais não-renováveis pelo homem, para alçar vôos ainda maiores. Ultrapassa, também, a concepção de crescimento econômico (aumento de capital e renda), para abordar, ainda, a maneira como a divisão desses recursos está sendo feita, se há aumento das liberdades e capacidades dos indivíduos, e se há maior garantia de seus direitos sociais. Neste sentido, Ana Paula Basso e Sérgio Cabral dos Reis (2013): A concretização dos direitos sociais deve se circunscrever à garantia das condições necessárias ao desenvolvimento do cidadão, não apenas quanto ao mínimo existencial, mas em relação a fatores que permitam a participação de todos quanto à realização de um projeto razoável de vida (autonomia privada) e à formação da vontade coletiva (autonomia pública). Ao Estado, em matéria de políticas públicas, não incumbe apenas concretizar o mínimo inerente à vida digna, especialmente quando se trata de educação emancipatória, mas sim, considerando as limitações fático-jurídicas porventura existentes, estabelecer progressivamente a melhoria de condições de desenvolvimento do ser humano, sendo essa a função do Estado pósmoderno.

Ainda sobre o assunto, Ana Luisa Celino Coutinho e Manoel Alexandre Cavalcante Belo (2013) observam que ―la pobreza extrema es mucho más que la definición de ingresos muy bajos. Se trata de la privación de las capacidades básicas‖. Urge lembrar-nos que vivemos em um Estado Democrático de Direito, como definido pela Carta Política de 1988, e este é pautado no princípio da dignidade da pessoa humana, devendo garantir a sustentabilidade mínima das pessoas que o integram (LIMA, 2013). Desta forma, cumpre ao Estado desenvolver mecanismos de garantia dos direitos sociais àqueles que a ele se submetem. A garantia dos direitos sociais aos cidadãos brasileiros aparece como uma das muitas maneiras de promoção do desenvolvimento sustentável. Para garantir os direitos sociais aos cidadãos brasileiros, é preciso uma cooperação entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Através da elaboração de políticas públicas, encargo inerente à atividade dos dois primeiros, é que se atinge tal objetivo, conforme ensinamento de Luiza Rosa Barbosa de Lima (2013), já que estas políticas são ―destinadas a dar cumplimiento al Estado Constitucional de Derecho, democrático, pues tiene como contenido de su dimensión material los valores de la libertad, la seguridad, la igualdad y 120


la solidaridad‖. O Poder Judiciário só interferiria em casos de exceção, quando houvesse a necessidade de interpretação da norma jurídica. Entretanto, o que vemos no cenário político de nosso país, atualmente, é a inoperância dos dois primeiros poderes supramencionados, incapazes de elaborar políticas públicas que atendam à necessidade da maioria dos integrantes do Estado brasileiro. Face à inércia daqueles a quem pertence o encargo da criação de políticas públicas destinadas à implementar, na prática, os direitos sociais dos cidadãos, a atuação do poder Judiciário vem crescendo substancialmente, haja vista que ―los derechos sociales que conforman el mínimo existencial no pueden ser negados porque no existen suficientes recursos para su realización‖ (LIMA, 2013). Tais demandas versam, principalmente, sobre o fornecimento de medicamentos e o acesso à saúde, direito este constitucionalmente garantido e tão urgente para aqueles que dele necessitam. Experimentamos, assim, o que os doutrinadores denominam ―judicialização da saúde‖. 3

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

O fenômeno da judicialização da saúde é recente, e sua ocorrência vem causando muita polêmica entre os estudiosos do Direito no Brasil. Isso se deve à discussão travada, principalmente nos âmbitos acadêmico e jurisprudencial, acerca da possibilidade ou não de interferência do poder Judiciário no que concerne à gestão da saúde, matéria classicamente da alçada dos poderes Legislativo e Executivo. Este tipo de demanda judicial teve seu início na década de noventa, motivada pelo avanço da contaminação pelo vírus da AIDS, e da consequente necessidade dos cidadãos de fornecimento de medicamentos antiretrovirais, naquela época tão raros e caros, por parte do Sistema Único de Saúde (SUS). (PEPE, FIGUEIREDO, SIMAS, OSÓRIO-DE-CASTRO e VENTURA, 2010). Entretanto, nos últimos anos, o Judiciário brasileiro vem recebendo uma enxurrada de processos versando sobre o direito à saúde, mormente ações individuais visando à entrega de medicamentos, sejam estes componentes ou não da assistência farmacêutica do SUS, alguns sem registro no país ou em indicação terapêutica não constante do registro sanitário (FIGUEIREDO, 2010). Assim, não é somente a AIDS que leva o cidadão, atualmente, a entrar no judiciário brasileiro; outros problemas como diabetes, cânceres e doenças degenerativas ou não; têm

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sido objetos de ação na esfera jurídica. O Conselho Nacional de Justiça divulgou que tramitam, atualmente, no judiciário brasileiro 240.980 processos judiciais envolvendo questões de saúde, sendo que na maioria é pedido para medicamentos, seguido de pedidos de procedimentos médicos pelo SUS (CASTRO, 2012). Em sendo a saúde um componente importante da classe dos direitos sociais, necessário se faz analisarmos esta intervenção judicial no tocante à implementação de direitos cuja competência pertenceria, inicialmente, aos poderes Executivo e Legislativo. É preciso entender até que ponto a interferência do poder Judiciário no âmbito dos direitos sociais é saudável e promove sustentabilidade em sua forma mais moderna – ampliação das liberdades das partes mais marginalizadas da sociedade, melhor distribuição de renda, entre outros fatores. Toda a celeuma é oriunda da mudança de paradigma quanto à eficácia das normas programáticas constitucionais, entre as quais se enquadram os direitos sociais e, por sua vez, o direito à saúde. Inicialmente, na década de 90, o STJ começou a embasar suas decisões na premissa de que as normas programáticas não tinham poder normativo e, por isso, não se poderia exigir do Estado prestações com base em normas não dotadas de eficácia plena. Vejamos a ementa do RMS 6564 RS, Relator Ministro Demócrito Reinaldo, julgado em 23/05/1996, versando sobre o tema:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LIQUIDO E CERTO. INEXISTENCIA. DIREITO LIQUIDO E CERTO, PARA EFEITO DE CONCESSÃO DE SEGURANÇA, E AQUELE RECONHECIVEL DE PLANO E DECORRENTE DE LEI EXPRESSA OU DE PRECEITO CONSTITUCIONAL, QUE ATRIBUA, AO IMPETRANTE, UM DIREITO SUBJETIVO PROPRIO. NORMAS CONSTITUCIONAIS MERAMENTE PROGRAMATICAS - AD EXEMPLUM, O DIREITO A SAÚDE PROTEGEM UM INTERESSE GERAL, TODAVIA, NÃO CONFEREM, AOS BENEFICIARIOS DESSE INTERESSE, O PODER DE EXIGIR SUA SATISFAÇÃO - PELA VIA DO MANDAMUS - EIS QUE NÃO DELIMITADO O SEU OBJETO, NEM FIXADA A SUA EXTENSÃO, ANTES QUE O LEGISLADOR EXERÇA O MUNUS DE COMPLETA-LAS ATRAVES DA LEGISLAÇÃO INTEGRATIVA. ESSAS NORMAS (ARTS. 195, 196, 204 E227 DA CF) SÃO DE EFICACIA LIMITADA, OU, EM OUTRAS PALAVRAS, NÃO TEM FORÇA SUFICIENTE PARA DESENVOLVER-SE INTEGRALMENTE, "OU NÃO DISPÕEM DE EFICACIA PLENA", POSTO QUE DEPENDEM, PARA TER INCIDENCIA SOBRE OS INTERESSES TUTELADOS, DE LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR. NA REGRA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL QUE DISPÕE "TODOS TEM DIREITO E O ESTADO O DEVER" - DEVER DE SAÚDE - COMO AFIANÇAM OS CONSTITUCIONALISTAS, "NA REALIDADE TODOS NÃO TEM DIREITO, PORQUE A RELAÇÃO JURIDICA ENTRE O CIDADÃO E O ESTADO

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DEVEDOR NÃO SE FUNDAMENTA EM VINCULUM JURIS GERADOR DE OBRIGAÇÕES, PELO QUE FALTA AO CIDADÃO O DIREITO SUBJETIVO PÚBLICO, OPONIVEL AO ESTADO, DE EXIGIR EM JUÍZO, AS PRESTAÇÕES PROMETIDAS A QUE O ESTADO SE OBRIGA POR PROPOSIÇÃO INEFICAZ DOS CONSTITUINTES". NO SISTEMA JURÍDICO PATRIO, A NENHUM ORGÃO OU AUTORIDADE E PERMITIDO REALIZAR DESPESAS SEM A DEVIDA PREVISÃO ORÇAMENTARIA, SOB PENA DE INCORRER NO DESVIO DE VERBAS. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. DECISÃO INDISCREPANTE.

Assim, naquela década, o entendimento daquela Égrégia Corte era da impossibilidade de geração de direitos subjetivos individuais para os cidadãos brasileiros com base nas normas constitucionais ditas programáticas. Face ao caos da saúde, só restaria à população esperar, pacientemente, a tomada de alguma atitude pelo Estado. Hoje em dia, já não se pensa mais assim. A inércia dos poderes Executivo e Legislativo na formulação de políticas públicas tendentes a implementar, de maneira efetiva, o direito à saúde levou o poder Judiciário a mudar seu entendimento acerca dos programas constitucionais, em uma verdadeira ruptura do papel antes passivo daquele poder frente à falta de efetividade dos outros dois poderes em cumprir com seus papéis. Nesse momento, as normas constitucionais referentes aos direitos sociais não são mais programas, senão normas jurídicas cuja obediência não comporta uma atitude discricionária por parte do legislador. Os programas, antes encarados como conselhos, agora tem sua eficácia imediata reconhecida, de modo que não estamos mais diante de ―compromissos dilatórios‖ (SCHMITT, 1992), Diante disto, o Judiciário está sendo cada vez mais acionado, para conferir efetividade aos direitos fundamentais. É que esses direitos, se não garantidos no momento em que deles há necessidade, não comportam ressarcimento ou reparação posterior, e as agressões resultantes do atingimento destes lesam todo o sistema jurídico, colocando abaixo a própria jurisdição como um direito (ROCHA, 2014). Alguns estudiosos apontam riscos negativos do efeito da judicialização da saúde. O jurista francês Antoine Garapon entende que a judicialização torna o judiciário um verdadeiro ator político, que diretamente interfere nas decisões de políticas públicas e sendo visto como um último refúgio para uma democracia idealizada, diminuindo, assim, a confiança e o interesse na política (CASTRO, 2012). Quanto ao caso específico do Brasil, o principal aspecto negativo da judicialização da saúde seria o agravamento das desigualdades já existentes no tocante ao acesso ao sistema público de saúde, uma vez que as decisões judiciais deferindo o fornecimento de medicamentos beneficiaria àqueles que possuem maiores condições financeiras de veicular 123


suas demandas na esfera judicial, em detrimento daquelas camadas marginalizadas da sociedade, cujo poder aquisitivo não permite essa fácil provocação da Justiça (VIEIRA e ZUCCHI, 2007). Neste sentido, Luís Roberto Barroso (2007): As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres.

Neste sentido, a análise de dados concretos se faz especialmente importante para entender se a judicialização da saúde, enquanto fenômeno cuja existência não se pode olvidar ou ignorar, contribui de maneira direta para a promoção do desenvolvimento sustentável em sua concepção moderna, qual seja, de diminuição das desigualdades sociais e maior acesso das camadas marginalizadas da população aos direitos constitucionalmente garantidos a todos os cidadãos, seja qual for sua situação financeira. Existe uma desconfiança de que o aspecto negativo anteriormente mencionado impede que a judicialização da saúde funcione como mecanismo de promoção de sustentabilidade e, para desfazer a dúvida, tomemos como exemplo dados obtidos no âmbito da Justiça Estadual da cidade de São Paulo.

4

A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO

Estudos conduzidos no âmbito do município de São Paulo, mormente pelos autores Octávio Motta Ferraz (2011) e Sônia Rocha (2009), revelou que a maior parte das ações interpostas contra a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) daquele município, versando sobre pedido de remédios com base na necessidade de implementação do direito à saúde partiu dos bairros mais nobres daquela cidade. Vejamos, primeiramente, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pelos bairros da capital paulista:

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Figura 1 – Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pelos bairros de São Paulo

O mapa abaixo, de autoria do primeiro pesquisador supracitado, é uma cópia fidedigna do mapa acima, e mostra as regiões de onde advém as demandas judiciais concernentes ao direito à saúde, no ano de 2005:

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Figura 2 – Ações contra a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo/SP, distribuídas por bairros

De acordo com a análise de ambos os mapas, bem como da interpretação dos dados (FERRAZ, 2011), as pessoas que vão à justiça em busca de medicamentos e outros direitos concernentes à saúde são residentes nas partes dotadas dos menores índices de vulnerabilidade social, representadas pela parte central do mapa. A maior parte dos autores dos ditos processos judiciais estão concentrados em bairros nobres como Santa Cecília, Higienópolis, Jardins, Tatuapé e Vila Mariana, localizados na parte central – norte do mapa. Tais bairros estão representados, no mapa acima, pelas cores azul escuro e azul claro, mostrando, claramente, que aqueles que provocam o poder Judiciário em busca do fornecimento de medicamentos e outros produtos relacionados ao direito à saúde advém dos bairros com maior IDH no município de São Paulo. Aquelas regiões mais afastadas do centro, onde estão, obviamente, os indivíduos mais pobres e marginalizados da sociedade, tais como Marsilac, Parelheiros e Grajaú (parte sul), Tremembé e Jaçanã (nordeste), conforme podemos ver, não geraram nenhuma demanda judicial atinente à saúde naquele ano. A análise superficial dos dados acima dispostos revela que o acesso à saúde via poder Judiciário ainda está restrito àqueles que se encontram em situação mais privilegiada no que tange à disponibilidade de recursos. Isso se deve, provavelmente, à ineficiência das Defensorias Públicas enquanto órgãos garantidores do acesso à justiça aos mais carentes, à 126


inércia do Ministério Público, à falta de informação dos menos favorecidos acerca de seus direitos e, principalmente, na descrença da maioria da população na efetividade do poder Judiciário para aqueles que mais necessitam. Sobre este último tema, ainda paira a concepção de que a Justiça só funciona para os mais ricos, e que é inútil dispender os já parcos recursos na busca pela tutela jurisdicional. A análise da experiência do município de São Paulo, o mais rico da federação, revela o quadro da maioria das outras cidades e estados brasileiros. É certo que faltam pesquisas no sentido de coletar dados semelhantes em outras localidades, mormente na Paraíba, mas é de corrente sabença que os bairros mais afastados da capital paraibana sofrem com a prestação jurisdicional. O exemplo de São Paulo é perfeitamente transferível para a nossa realidade, porquanto a ineficiência das Defensorias Públicas, que contam com efetivo insuficiente à demanda populacional, face ao seu crescimento nos últimos anos, verificada naquele município, acontece da mesma forma em nossa capital.

5

CONCLUSÃO

Para que se pense a sustentabilidade em seu conceito moderno, é necessário abandonarmos o anterior sentido ecológico da palavra, para nela incluirmos, também, a ampliação das capacidades e liberdades humanas, o acesso das camadas mais marginalizadas da sociedade aos direitos constitucionalmente previstos, tais como o direito à saúde. Face à inércia dos poderes Executivo e Legislativo na elaboração de políticas públicas que visem a melhorar as condições do Sistema Único de Saúde (SUS) e a situação da saúde pública como um todo no Brasil, o Judiciário muda o seu papel, antes passivo, para interferir de maneira direta na consecução dos ditames constitucionais atinentes à matéria. Muito embora se discuta se essa atuação é ou não positiva, não se pode olvidar que aqueles que buscam a tutela jurisdicional referente ao direito à saúde encontram-se, quando o fazem, em situação de necessidade, doentes e, por isso, tem pressa. A eles não lhes é facultado esperar pela boa vontade dos poderes a quem cabe a consecução de políticas públicas, pois precisam com urgência do fornecimento de determinado medicamento ou tratamento de saúde, cuja falta pode, inclusive, acarretar-lhes a morte. Assim, ainda que haja fatores negativos a respeito da judicialização da saúde, sua existência é necessária, para garantir aos indivíduos que recorrem ao poder Judiciário em

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busca da implementação desses direitos não padeçam face à falta de ação dos demais poderes no que tange à melhoria da qualidade do sistema público a que temos, todos nós, acesso. Com base em todas as digressões acima carreadas, mormente nos dados coletados no município de São Paulo, cuja experiência podemos expandir para todo o país, podemos concluir que a judicialização da saúde, ainda que conte com a melhor das intenções, ainda não é instrumento de promoção de desenvolvimento sustentável. É que o acesso à justiça, ainda que garantido em sua forma gratuita pela Constituição Federal, encontra sérios entraves no que tange aos instrumentos de acesso dos indivíduos mais vulneráveis à prestação jurisdicional. É necessário que haja uma reformulação dos mecanismos de acesso da população ao judiciário, como a melhoria das Defensorias Públicas e a conscientização dos indivíduos acerca de seus direitos. No entanto, não podemos nos esquecer que a alternativa mais viável à solução desses conflitos seria um maior engajamento dos poderes Legislativo e Executivo na consecução de políticas públicas de melhoria da saúde em nosso país.

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A SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS DE JUSTIÇA: APROXIMAÇÕES ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO Igor Diniz da Mota Silveira1 Sumário: 1 Introdução. 2 O Entrelaçamento entre os Direitos Socioeconômicos e as Teorias de Justiça em Jeremy Waldron. 2.1 Intuições sobre Justiça e Autoevidência do Direito à Saúde. 2.2 Os Direitos Socioeconômicos entre a Crítica e a Exaltação. 2.3 A Rejeição Moderna às Teorias Alocativas. 2.4 Mundo Ideal x Mundo Real: o surgimento dos direitos socioeconômicos a partir das Teorias de Justiça. 3 A Teoria de Justiça de Rawls. 3.1 O desenvolvimento da Teoria Rawlsiana. 3.2 Viabilidade da Leitura dos Direitos Socioeconômicos sob a Perspectiva da Posição Original. 3.3 Saúde como Justiça: a vaguez da Teoria de Justiça de Rawls. 4 Teoria de Justiça de Daniels: a extensão da teoria rawlsiana aplicada à saúde. 4.1 A Importância Moral da Saúde para Preservação das Oportunidades. 4.2 A incorporação da saúde na lista de bens primários de Rawls. 4.3 Determinantes Sociais, Desigualdades e Escassez de Recursos. 5. Justiça e Saúde na visão de Ronald Dworkin. 5.1 A Concepção Liberal Existencialista em Ronald Dworkin: o ponto intermediário entre bem-estar social e laissez-faire. 5.2 A Moeda da Igualdade em Dworkin: igualdade de recursos. 5.3 O Leilão Hipotético. 5.4 Justiça e Saúde: princípio do seguro prudente. 5.5 Críticas ao Seguro Hipotético. 6. Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO Estabelecer conexões entre as teorias de justiça e a questão da saúde é fundamental

para que, a partir de uma abordagem ideal e abstrata, possam-se solucionar as demandas e necessidades práticas na área da saúde, visto que as teorias de direitos não consideram de tal forma o impacto desses direitos na estrutura da sociedade e perspectiva de vida dos indivíduos. A primeira parte do artigo dedica-se, primordialmente, à análise das considerações de Jeremy Waldron sobre a necessidade de entrelaçamento entre os direitos socioeconômicos e as teorias de justiça. Posteriormente, o artigo divide-se na abordagem da questão da assistência médica em teorias de justiça de três importantes filósofos: Rawls, Daniels e Dworkin. Assim, discute-se a vagueza da teoria rawlsiana no tocante à saúde, a extensão de sua teoria por Daniels, ao incluir à lista de bens primários a saúde, e a hipótese do seguro hipotético e aplicação no mundo prático do princípio do seguro prudente por Ronald Dworkin.

2

O ENTRELAÇAMENTO ENTRE OS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS E AS

TEORIAS DE JUSTIÇA EM JEREMY WALDRON

1

Graduando de Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

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Em artigo intitulado ―Socioeconomic Rights and Theories of Justice‖, Waldron busca encontrar a relação entre os direitos socioeconômicos e as teorias da justiça, escolhendo como paradigma de análise a teoria rawlsiana, que possibilita inúmeros pontos de acesso para argumentos sobre esses direitos, em virtude de sua complexidade. Dessa forma, procura um encaixe necessário entre, por exemplo, o direito à saúde, defendido sempre num esquema ―line-item way‖, ou seja, de forma isolada, peremptória, autoevidente, e as teorias de justiça, que operam num nível de abstração muito mais elevado, estabelecendo princípios gerais que estruturam a base da sociedade, permitindo um estudo das demandas e princípios com os quais esse direito compete. (WALDRON, 2010). Portanto, é através de uma teoria de justiça que se deve promover a alocação dos recursos escassos, demandados pelos direitos socioeconômicos, e daqueles recursos que já estão designados para outras finalidades, através de uma justificação que não é possível apenas com uma teoria de direitos. Esta, por sua vez, é importante para explicar o porquê cada direito é importante, mas insuficiente para tratar sobre conflitos entre direitos ou entre demandas que aspiram serem tratadas como direito num contexto distributivo. (WALDRON, 2010). As teorias de justiça pecam por deixar a elaboração de julgamentos mais aprofundados sobre políticas públicas para um estágio sempre subsequente, presos à estrutura principal da teoria e justificados, muitas vezes, de forma superficial. Como se verá adiante, no tópico referente à Rawls, isso se torna evidente nos comentários do filósofo acerca das provisões estatais de bem-estar e o que ele chama de ―social minimum‖. Assim, fundamental é o entrelaçamento entre os dois campos, a fim de se obter respostas para os conflitos que vivemos em sociedade, elaboradas dentro num espectro amplo de abordagem.

2.1

INTUIÇÕES SOBRE JUSTIÇA E AUTOEVIDÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE

As teorias de justiça são motivadas, dirigidas e até mesmo delimitadas por nossas intuições sobre justiça, ou, de forma mais precisa e técnica, juízos pré-teóricos sobre assuntos que a justiça lida. Waldron (2010, p.6) preconiza: ―(…) we may find a given theoretical position plausible or implausible (intuitively plausible or implausible as we say) because of its consonance or dissonance with one or more of these considered judgments.‖ Tais juízos podem ter o status de ―preceitos de justiça‖, ou seja, verdades do senso comum enraizadas na cultura de dada sociedade, e até mesmo entre os filósofos. Assim, os direitos socioeconômicos também encontram apoio em vários desses juízos e preceitos. 133


(WALDRON, 2010, p.7). Muitos acreditam, por exemplo, que uma criança em situação clínica emergencial, numa sociedade economicamente próspera, cujos pais não dispõem de recursos financeiros para tratá-la, deve receber algum tipo de auxílio estatal, que detém a responsabilidade de providenciar essa ajuda. No mesmo diapasão, muitos rejeitariam quaisquer teorias de justiça que negassem essa providência estatal nesses casos de necessidade. Esses juízos ponderados sobre provisões para custear necessidades devem ser reconciliadas com outros juízos ponderados que parecem apontar para uma direção oposta. Como exemplo, muitos mantêm a visão, pré-teórica, que cada pessoa é dona dos frutos do seu labor, e não iriam encarar com bons olhos uma teoria da justiça que sustentasse que esses frutos fossem postos à disposição, contra sua vontade, para satisfazer as necessidades de outras pessoas. (WALDRON, 2010, p.7). Assim, nossas convicções sobre a saúde são vistas por nós como óbvias, de forma que não exige uma elaboração filosófica mais requintada. Pelo fato de os direitos socioeconômicos clamarem por necessidades diretas e urgentes, não é difícil realizar uma retórica capaz de apoiá-los. (WALDRON, 2010, p.3). No campo doutrinário e jurisprudencial, a defesa do direito à saúde é permeada por um senso comum teórico, pois se tornou mecânico classificá-lo como corolário do direito à vida, sendo, portando, prioritário e o bem máximo a ser protegido. Esse absolutismo a priori pode ser visto na postura de Sarlet (2007): Não há duvida alguma de que a saúde é um direito humano fundamental, aliás fundamentalíssimo, tão fundamental que mesmo em países nos quais não está previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da saúde como um direito fundamental não escrito (implícito), tal como ocorreu na Alemanha e em outros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção prevista para a vida e integridade física (SARLET, 2007, p.3).

É dessa forma que, na lição de Warat (1982, p. 49), aliena-se o conhecimento científico em sua expressão material, reduzindo as significações a conceitos, colocando fora de dúvidas e fora da política, a fala da ciência. Canotilho (2004, p.100), por sua vez, afirma que: ―paira sobre a dogmática e a teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais a carga metodológica da vaguidez, indeterminação e impressionismo que a teoria da ciência vem apelidando, em termos caricaturais, sob a designação de ‗fuzzismo‘ ou ‗metodologia fuzzy.‖ Complementa, ainda, afirmando que os juristas não sabem do que estão a falar quando 134


abordam os problemas complexos dos direitos econômicos, sociais e culturais, razão pela qual essa problemática foi deslocada para as teorias de justiça, argumentação e econômicas do direito. (CANOTILHO, 2004, p.98). Assim, ao relacionar esse direito com a justiça, torna-se aparente que nem tudo aquilo que parece autoevidente para um indivíduo ou sociedade pode permanecer conciso, ou ao menos de forma inalterada.

2.2

OS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS ENTRE A CRÍTICA E A EXALTAÇÃO

Aqueles que atacam os direitos socioeconômicos clamam prioridade para estrutura de mercado e direitos de propriedade, pela responsabilidade sobre as próprias decisões e pelo merecimento, rejeitando o privilégio promovido pelas provisões de bem-estar aos ―preguiçosos‖. Segundo Waldron (2010):

These attacks cannot be dismissed; they require (and, in my view, they can be given) an answer. But they are not adequately answered just by saying that the case for welfare provision is urgent and should command a very high place in the order of moral priorities. Even if one can defend the claim that socioeconomic rights are important, the nature of their priority over other concerns is not self-evident. There are all sorts of priorities in this area of moral and political life, and we need to develop an articulate account of what kind of priority we are talking about (WALDRON, 2010, p.3).

Além disso, afirmam que eles devem ser rejeitados por violarem o princípio lógico ―ought implies can‖. Ou seja, se os Estados não possuem recursos suficientes para promover assistência médica para toda a massa de cidadãos, por exemplo, não faz sentido atribuir às provisões econômicas uma questão de direitos humanos universais. (WALDRON, 2010, p.9). A escassez de recursos indica que deve haver um balanceamento e delimitação de prioridades com relação a essas demandas, não a rejeição imediatista dos direitos socioeconômicos. ―There is no reason to suppose that there are not enough resources in the world to feed or house or provide basic medical care to everybody in it, as (for example) Articles 11 and 12 of ICESCR require.‖(WALDRON, 2010, p.9). Por outro lado, os direitos socioeconômicos são defendidos contra as críticas mais óbvias, e seus defensores ou minimizam a questão da propriedade, merecimento e outras prioridades fiscais, ou tentam demonstrar que esses aspectos são bem menos importantes do que os direitos pelos quais clamam. (WALDRON, 2010, p.9).

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Nozick, autor do livro Anarquia, Estado e Utopia, acredita que as demandas baseadas em necessidade ocupam um papel superficial numa teoria de justiça. Assim, os direitos socioeconômicos (se existirem) existem apenas nos interstícios da propriedade. Segundo o autor (NOZICK, 1999, p.160): ‗Things come into the world already attached to people having entitlements over them. The trouble with socioeconomic rights, on this account, is that they ‗treat objects as if they appeared from nowhere, out of nothing‘. Entretanto, afirma Waldron (2010, p.11) que Nozick, assim como John Locke, acredita que a aquisição inicial de direitos de propriedade não deve ser conduzida de modo a ser indiferente à situação dos indivíduos necessitados que podem ser prejudicados pelos direitos em questão. Segundo Nozick (1999, p.178): ―A process normally giving rise to a permanent bequeathable property right in a particular thing will not do so if the position of others no longer at liberty to use the thing is thereby worsened.‖

2.3

A REJEIÇÃO MODERNA ÀS TEORIAS ALOCATIVAS As teorias alocativas são aquelas que aspiram produzir princípios tais como: ―para

cada um de acordo com suas necessidades‖ ou ―para cada um de acordo com seu merecimento‖. Entretanto, os teóricos modernos, como Rawls e Nozick, cada vez mais rejeitam esse posicionamento. (WALDRON, 2010, p.13). Para este, as teorias alocativas tratam os bens como se eles simplesmente estivessem ali, aguardando distribuição, como se o processo pelo qual foram produzidos não fosse relevante. De acordo com o filósofo (NOZICK, 1999): To think that the task of distributive justice is to fill in the blank in ―to each according to his ____‖ is to be predisposed to search for a pattern; and the separate treatment of ―from each according to his ___‖ treats production and distribution as two separate and independent issues. On an entitlement view these are not two separate questions. (NOZICK, 1999, p.159-160) .

Segundo Waldron (2010, p.13), faz parte da rejeição ao que ele chama de ―princípios padronizados‖, ou seja, princípios que tentam padrão na distribuição de bens em decorrência de necessidade ou merecimento. Para entendermos sua crítica, faz-se importante explicar que, para Nozick (1999, p.160), quem quer que crie algo, é o legítimo dono. Rawls (2008, p.94) também entende que uma teoria da justiça não deve ser limitada à questão da alocação de recursos distributivos, ou seja, quem ganha o que, quando e como.

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Esse posicionamento, entretanto, parece ser o defendido pelo STF (SL 47-AgR/PE)na concretização do artigo 196 da Constituição:

Em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‗escolhas trágicas‘, pautadas por critérios de macrojustiça.

De acordo com o liberal igualitário (RAWLS, 2008, p.94): ―Se perguntarmos de forma abstrata se u distribuição de um dado estoque de coisas para indivíduos concretos com desejos e preferências conhecidas é melhor que uma outra, simplesmente não haverá resposta para essa pergunta.‖Como será analisado no tópico relativo a Rawls, seu princípio da diferença não deve ser interpretado como se ao grupo menos favorecido fosse entregue uma certa parcela dos recursos. O que ele impõe é que, quando se está avaliando e reformando a estrutura de regras que compõem a estrutura institucional de uma economia, devemos nos orientar de modo a privilegiar o grupo menos favorecido. Waldron observa no princípio da diferença uma razão de fundo semelhante às provisões de bem-estar, mas que, em razão de sua abstração, é incapaz de gerá-las por si só:

The Difference Principle certainly reveals a spirit congenial to something like welfare provision inasmuch as it requires particular attention to the plight of the worst-off members of society. On the other hand, it also suggests that it might be possible to justify great inequalities, which on some accounts it is the task of socioeconomic rights to mitigate. In general the Difference Principle is too abstract to generate, by itself, any particular case for welfare provision. It is a principle governing the most abstract distributive implications of the basic structure, and it deals with them holistically, without regard to particular institutional arrangements or sources of advantage or disadvantage. If the Difference Principle provides the basis of a case for socioeconomic rights, it does so in the context of its further detailed elaboration.(WALDRON, 2010, p.14)

2.4

MUNDO IDEAL X MUNDO REAL: O SURGIMENTO DOS DIREITOS

SOCIOECONÔMICOS A PARTIR DAS TEORIAS DE JUSTIÇA

Relacionando Hayek e Rawls, Waldron (2010, p.15) imagina uma situação em as instituições da economia produzem uma distribuição de riqueza D1, que, entretanto, é julgada 137


inferior a uma distribuição D2, nos termos do princípio da diferença. Deve-se, então, imediatamente interferir e realocar a riqueza a fim de transformar D1 em D2? Segundo Waldron, a resposta em ambos seria ―não‖. Entretanto, enquanto para Hayek o assunto termina aí, Rawls abordaria uma outra questão: podemos alterar a estrutura institucional, de modo a torná-la mais suscetível a render distribuições, no futuro, como D2 ao invés de D1? A resposta para isso também pode ser "não", porque a mudança proposta pode ser incompatível com as virtudes institucionais, como a publicidade, estabilidade e do Estado de Direito. Ainda assim - e é isso que Hayek passa desapercebido - a resposta não é necessariamente "não." Se a mudança é possível e se a estrutura institucional resultante for viável, somos obrigados por uma questão de justiça a implementá-lo, pois o princípio da diferença obriga-nos a organizar (e , se necessário, reorganizar ) nossas instituições para que as desigualdades sociais e econômicas sejam direcionadas para o maior benefício dos menos favorecidos; O propósito de tal digressão é de demonstrar que, em uma teoria de justiça como a de Rawls, não há garantia de que os direitos socioeconômicos irão emergir de forma familiar, como uma garantia legal ou constitucional.

As an abstract matter we can say, with the drafters of Article 25 of the UDHR, that everyone has ‗the right to a standard of living adequate for the health and wellbeing of himself and his family.‘ But that may not necessarily emerge as a specific legal or constitutional guarantee: a just society may not have a rule to that effect, nor even any particular agency charged with administering this standard. There may be a variety of provisions and arrangements, ranging from tax-breaks to educational opportunities to rent control (or its abolition) to unemployment insurance schemes— all of which taken together may represent the best (and genuinely the best) that can be done in an institutional framework to honor the underlying claim for the individuals in whose behalf it can be made.(WALDRON, 2010, p.16)

A teoria de justiça de Rawls pode ser descrita como irrealista, visto que nenhum de nós foi posto na posição original sob um véu de ignorância para decidirmos sobre quais princípios escolheríamos para governar as estruturas básicas de nossa sociedade. Reforçando a ideia de transcendentalismo das teorias de justiça, nenhum de nós também recebeu uma distribuição igualitária de recursos, nem a maioria de nós teve a oportunidade de fazer um seguro num mercado justo contra a falta de talento, habilidade ou quaisquer formas de azar (seguro hipotético de Dworkin). Estamos presos no mundo real, e é esse mundo em que as pessoas sofrem desemprego, privações e insegurança, nas quais as crianças tem fome e não tem a livre opção de decidir Segundo o autor (WALDRON, 2010, p.24): ―In general, theories of justice do not seem to be 138


designed for the real world. But the socioeconomic rights that people talk about are. They are designed exactly to operate in a real world that does not answer to ideal models of the philosophers. O direito à assistência médica, por exemplo, garantido no artigo 25, I da Declaração de Direitos Humanos foi positivado no intuito de ser aplicado nas situações do mundo real, independentemente se essas situações são ou não adequadamente governadas pelas estruturas da melhor teoria de justiça. Embora seja verdade que algumas demandas dos direitos socioeconômicos possam ser utópicas, assumindo-se que o que esses direitos requerem pode ser feito, a consequência lógica é que eles devem ser realizados, sem a necessidade de espera por uma teoria de justiça para subsidiar sua aplicação. Por outro lado,a ideia de que os direitos socioeconômicos deve ter esta aplicação imediata no mundo real não significa que eles podem ser totalmente considerados sem levar em conta as teorias da justiça. A maioria dos teóricos da justiça defende sua ênfase na teoria ideal por acreditar que ela ilumina e proporciona a melhor base para abordar questões práticas, de uma teoria não-ideal, uma vez que os direitos socioeconômicos não possuem a capacidade que uma teoria de justiça tem de avaliar o impacto na rede da estrutura básica ao compreender a totalidade dos aspectos referentes às perspectivas de vida dos indivíduos. (WALDRON, 2010, p.25). Para o autor, não está claro que os tribunais de justiça são o lugar correto para resolver as demandas entre esses direitos, que possuem, além da dimensão interpretativa, uma dimensão orçamentária. Assim, seria uma pena se as cortes fossem vistas como o único meio de reivindicá-las.Caso assumíssemos que é importante que essas demandas sejam também perseguidas num contexto político, então a justificativa para a elaboração de demandas socioeconômicas no contexto de uma teoria de justiçaé evidente. (WALDRON, 2010, p.28). A linguagem dos direitos sociais e econômicos se expressa exigindo reivindicações morais, apresentando o caso de cada indivíduo peremptoriamente, como se não se admitisse recusa, equilíbrio, compromisso. Uma teoria geral de justiça, por outro lado, leva em consideração demandas urgentes de todos os tipos. Gera, portanto, suas conclusões com base em tal consideração, passando a tratá-las como absolutas. Teorias de direitos, por outro lado, apresentam esse absolutismo de forma precipitada, num estágio anterior às considerações sobre as demais demandas concorrentes. Para Waldron (2010, p.29), é melhor adiar os debates sobre os direitos socioeconômicos até que consideremos como as diversas demandas socioeconômicas se saem numa teoria de justiça. Assim, não nega que o direito à assistência médica, por exemplo, 139


possa ser justificado. O que ele enfatiza é que pode ser elaborado um caso mais forte e convincente sobre esses direitos caso sejam validados a partir de uma teoria que permita que outras reivindicações, demandas e considerações morais façam seus melhores ataques contra eles.Assim, assume sua posição (WALDRON, 2010, p.30): ―Theorizing about justice offers just such a context. For that reason, I think it is better to let socioeconomic rights emerge from a theory of justice than to try to defend them, line by line, on their own merits.‖

3

A TEORIA DE JUSTIÇA DE RAWLS

3.1

O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA RAWLSIANA

A teoria de justiça de Rawls foi construída com base num modelo teórico de ideias, como a posição original e o véu de ignorância, abrangendo concepções meta-éticas como o equilíbrio reflexivo, e relacionando nossos juízos ponderados sobre justiça a partir de uma construção filosófica. Seu conceito pode ser definido por aquilo que expõe e defende princípios gerais que governam a estrutura básica da sociedade tendo em vista os impactos sob as perspectivas de vida e o gozo de bens primários pelos indivíduos. (RAWLS, 2008). Tais princípios, escolhidos por pessoas racionais e livres na posição original, encobertas pelo véu de ignorância que as impedem de terem conhecimento sobre suas próprias características, habilidades, renda, são dois: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.(RAWLS, 2008, p.64)

Segundo Vita (2008b, p.XXIII), a concepção de justiça dada por esses princípios é justificada através da articulação de três componentes: ao primeiro princípio, conjuga-se o componente das liberdades e direitos fundamentais; ao segundo, conjugam-se o de igualdade equitativa de oportunidades e o do princípio de diferença ou critério maximin de justiça social, para o qual somente deve-se admitir a desigualdade econômica que favorecer ao terço mais pobre da sociedade.

140


Há entre esses princípios uma ordenação serial, ou seja, uma complementaridade circular entre os direitos, impedindo-os de se tornarem mutuamente substituíveis. (RAWLS, 2008, p.65).Desta feita, o primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo – as liberdades fundamentais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser violadas em favorecimento, justificadas ou compensadas por maiores vantagens sociais e econômicas – e a parte (b) do segundo princípio tem prioridade sobre a parte (a), garantindo que condições de igualdade equitativa de oportunidades sejam asseguradas a todos. Segundo Rawls (2005), esse primeiro princípio de justiça só pode ser precedido por outro que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, desde que tais necessidade sejam essenciais para que os cidadãos entendam e exerçam seus direitos e liberdades.

3.2

VIABILIDADE DA LEITURA DOS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS SOB A

PERSPECTIVA DA POSIÇÃO ORIGINAL Analisando a teoria de Rawls, Waldron entende que ela não é hostil à ideia de ―welfare provision‖, mas que os princípios decorrentes dos direitos socioeconômicos, a primeira vista, não se fundamentam diretamente dosdois princípios básicos de justiça como equidade, levantando a seguinte hipótese:

Why is this? The most plausible explanation is that socioeconomic rights or principles embodying socioeconomic rights are usually formulated at the wrong level of generality or abstraction to be included among the most fundamental principles of a theory such as Rawls‘s. But then we should ask: what is the relationship between abstract principles of justice and these somewhat less abstract principles requiring welfare provision?‖(WALDRON, 2010, p.1)

Seria, entretanto, viável uma leitura dos princípios que emergem dos direitos socioeconômicos, e em especial, do direito à saúde, sob a perspectiva da posição original de Rawls a partir de um aprofundamento? Como já dito, essa perspectiva imagina pessoas tomando decisões sobre importantes aspectos estruturais de sua sociedade sob um véu de ignorância, através do qual eles desconhecem seus interesses particulares que poderiam direcionar suas decisões para promover seu próprio bem-estar. One might imagine a Rawlsian response to the effect that a non-allocative theory simply doesn‘t generate principles of that sort in this direct way. Rawls might say

141


that if justice requires welfare payments, for example, then that will emerge in the course of the detailed elaboration of what is implied as a matter of public policy by the very abstract propositions that are the subject-matter of decision in the original position.(WALDRON, 2010, p.17)

Entretanto, o autor argumenta que sob a forma que a teoria de justiça rawlsiana foi concebida, essa resposta não está correta. (WALDRON, 2010, p.17). O primeiro princípio da concepção de justiça como equidade de Ralws contém o componente das liberdades e direitos fundamentais, como já explanado. De acordo com Ralws, esses princípios são extraídos diretamente da ideia da posição originária. Então, questiona-se: se é um meio apropriado para argumentar a favor de direitos como liberdade religiosa, por que não seria para argumentar a favor dos direitos socioeconômicos, e, portanto, do direito à saúde? A teoria de Rawls apresenta o que geralmente as teorias de direitos contém, o que Waldron chama de ―list-like aspects‖: ―É essencial observar que é possível determinar uma lista dessas liberdades.‖.(RAWLS, 2008, p.65).Em Political Liberalism, o autor afirma (RAWLS, 2005, p.292): ―Note, however, that if we can find a list of liberties which (…) leads the parties in the original position to agree to these principles rather than to the other principles available to them, then what we may call ‗the initial aim‘ of justice as fairness is achieved.‖ Prossegue, ainda, afirmando que a lista pode ser elaborada considerando quais liberdades são condições sociais essenciais para um desenvolvimento adequado e para o completo exercício da personalidade moral sobre uma vida completa. Assim, se o igualitário liberal incluiu na sua teoria de justiça uma lista de direitos civis e políticos, o que impede que se faça o mesmo com os direitos socioeconômicos?

Those who believe in such rights defend them by arguing that they indeed represent ‗essential social conditions for the adequate development and full exercise … of moral personality.‘ And, as we shall see in a moment, there might well be a direct original-position argument to be made in their favor. If all this is true, then the listness of socioeconomic rights—the fact that they are not theorized holistically in the way that theories of justice normally theorize things— need not be an obstacle, at least if we accept the general outlines of Rawls‘s methodology in this regard and buy into his rejection of the criticism (which is more or less a version of the criticism with which I began this chapter) that the use of such a list of rights in a theory of justice is a disreputable ‗makeshift‘. (WALDRON, 2010, p.18)

Por outro lado, Waldron assevera que é possível que haja razões específicas para não tratar os direitos socioeconômicos dessa forma. Haja vista, como exemplo, a negativa de Rawls em incluir o valor da liberdade sob o manto do primeiro princípio.

142


A incapacidade de beneficiar-se dos próprios direitos e oportunidades, como consequência da pobreza e da ignorância, e da falta de meios em geral, é às vezes incluída entre as restrições que definem a liberdade. Essa, porém, não será minha posição; em vez disso, quero pensar que essas coisas afetam o valor da liberdade. (RAWLS, 2008, p.221)

Rawls não acreditava que uma sociedade poderia orgulhar-se em oferecer aos seus cidadãos mais pobres direitos civis e políticos, neste sentido restrito, sem prestar atenção à sua condição material.O princípio da diferença (difference principle) expressa a opinião de Rawls de que qualquer indivíduo coberto pelo véu da ignorância, ao escolher princípios para governar a estrutura básica da sociedade em que ele vive, insistiria num princípio que assegurasse que desigualdades sociais e econômicas fossem reguladas em proveito, a priori, do grupo menos favorecido. (RAWLS, 2008, p.89-96).

3.3

SAÚDE COMO JUSTIÇA: A VAGUEZ DA TEORIA DE JUSTIÇA DE RAWLS

Não constitui objeto de estudo de Rawls uma teoria sobre a saúde em uma sociedade justa. Temas como esse devem ser tratados apenas em estágios posteriores, quando os indivíduos que deles participam já possuem informações precisas e explícitas sobre questões sociais e econômicas de sua sociedade. Portanto, não é algo que deva ser abordado no âmbito da posição original. Além disso, nem a saúde, nem outros bens considerados fundamentais, tanto pelo nosso ordenamento jurídico, quanto pela Declaração de Direitos Humanos, comoalimentação, educação, moradias figuram, explicitamente, na lista de bens sociais primários do autor. Estes constituem um meio objetivo de julgamentos sobre justiça; são a base das expectativas das pessoas, que dependem de fatos gerais sobre necessidades e aptidões humanas, suas fases e requisitos normais de cuidados, relações de interdependência social e uma concepção normativa de pessoa). Segundo Rawls (2008, p.66): ―Outros bens primários como a saúde (...) são bens naturais; embora a sua posse seja influenciada pela estrutura básica, eles não estão sob seu controle de forma tão direta.‖ De acordo com De Mario (2013, p.35-39): ―Autores como Amartya Sem (1992;2009) e Martha Nussbaum (2006) focam-se na saúde, dentre outros bens sociais, para mostrar que o acordo ralwsiano e a métrica de bens primários são insuficientes por não garantir às pessoas a realização de suas necessidades.‖ Como Rawls considera como participantes da posição original apenas aqueles mental e fisicamente aptos, as pessoas acometidas por deficiências

143


e/ou doenças que lhes impeçam de agir socialmente como os demais da sociedade por requererem atenção especial estariam excluídas. Ainda segundo a autora (DE MARIO, 2013, p.35): ―Por outro lado, Norman Daniels (2008) afirma pensar a saúde dentro da perspectiva de justiça como equidade é possível, desde que não seja feito a partir da lista de bens primários, pois esse bem estaria contido nas exigências dos princípios de justiça celebrados na posição original.‖ Sendo a estrutura básica o objeto primário da justiça como equidade, por exercer influência sobre a vida das pessoas, inevitavelmente a sociedade terá que se apoiar em algumas desigualdades para ser bem ordenada e planejada. Tais desigualdades tratadas pela justiça como equidade são aquelas que afetam as perspectivas de vida dos cidadãos, determinadas pelo índice de bens primários. Três tipos de contingência são capazes de afetálas:: classe social de origem; talentos e as oportunidades que têm de desenvolvê-los; (3) sua boa ou má sorte ao longo da vida. (RAWLS, 2003, p.78). Os problemas provenientes de questões sociais e de desigualdades serão decididos tomando o segundo princípio – o princípio de diferença e o da igualdade equitativa de oportunidades – como referência. A saúde, portanto, pode ser reconhecida como um fator de contingência, ao possibilitar a afetação das expectativas de vida e, portanto ser desencadeador de desigualdade. Entretanto, os menos favorecidos não devem ser definidos pela sua ausência, pois esta não é um bem primário.

4

TEORIA DE JUSTIÇA DE DANIELS: A EXTENSÃO DA TEORIA

RAWLSIANA APLICADA À SAÚDE

4.1

A IMPORTÂNCIA MORAL DA SAÚDE PARA PRESERVAÇÃO DAS

OPORTUNIDADES

Daniels assume que a importância moral que a assistência médica possui, para os propósitos da justiça, ao prevenir e tratar doenças e deficiências com efetivos serviços assistenciais, deriva da forma com a qual a proteção da organização funcional normal do organismo contribui para proteção das oportunidades. Mantendo nas pessoas o funcionamento normal, a assistência médica preserva nelas a possibilidade de participar na vida política, social e econômica da sociedade.

144


By maintaining normal functioning, health care protects and individual‘s fair share of the normal range of opportunities reasonable people would choose in a given society. (…) Individual‘s fair shares of that societal normal opportunity range are the plans of life it would be reasonable for them to choose were they not ill or disabled and were their talents and skills suitably protected against mis- or underdevelopment as a result of unfair social practices and the consequences of socio-economic inequalities.‖(DANIELS, 2001, p.2)

Essa ideia de proteção do leque normal de oportunidades, ou seja, planos de vida que seriam razoáveis que as pessoas desejassem para si, também depende das características de uma dada sociedade, de sua história, das condições materiais de bem estar, de seu desenvolvimento tecnológico e sua cultura, sendo essencial na construção da sua teoria. Sua relação com a assistência médica sugere que o princípio de justiça distributiva apropriado para regular o sistema de atendimento medico é um princípio que protege a igualdade de oportunidades.Assim, afirma (DANIELS, 2001, p.2): ―Disease and disability, by impairing normal functioning, restrict the range of opportunities open to individuals.‖ Dessa forma, De Mario (2013, p.59) afirma que para Daniels, a saúde é uma questão de justiça porque―uma sociedade que não garante aos seus cidadãos condições de saúde, mais precisamente, de uma vida saudável, será invariavelmente injusta, pois não assegurará a todos as mesmas condições e oportunidades para realizarem de suas vidas algo valoroso (...).‖ A assistência médica se distingue de outras necessidades básicas do ser humano que também preservam o funcionamento normal do organismo, como alimentação, moradia, justamente pelo fato de que necessidades médicas são mais desigualmente distribuídas e podem ser catastroficamente caras, sendo objeto de seguro privado ou social. (DANIELS, 2001, p.3-4). Nesse sentido, a perspectiva de Danielsapoia a previsão de assistência médica universal, a fim de respeitar o princípio da igualdade equitativa de oportunidades. The account supports the provision of universal access to appropriate health care – including traditional public health and preventive measures – through public or mixed public and private insurance schemes. Health care aimed at protecting fair equality of opportunity should not be distributed according to ability to pay and the burden of payment should not fall disproportionately on the ill. (DANIELS, 2001, p.4)

Ao justificar a importância moral especial da saúde, busca contextualizá-la dentro teoria de justiça de Rawls, evitando aquilo que Waldron constata na argumentação em prol dos direitos socioeconômicos: sua autoevidência, cuja importância moral é presumida a priori, sem levar em consideração outras demandas e direitos.

145


4.2

A INCORPORAÇÃO DA SAÚDE NA LISTA DE BENS PRIMÁRIOS DE RAWLS Segundo Daniels (2001, p.2): ―Any theory of justice that supports a principle assuring

equal opportunity (or giving priority to improving the opportunities of those who have the least opportunity) could thus be extended to health care.‖ Essa afirmação já estabelece os contornos para uma extensão da teoria de Rawls. Esta, já discutida, determina que devemos medir nossos níveis de bem-estar através de medidas de acesso público, ou seja, uma lista de bens primários que incluem direitos e liberdade, poder, oportunidade, renda, riqueza e as bases sociais de respeito. Sua extensão da teoria de Rawls recai sobre o princípio de Igualdade Equitativa de Oportunidades, através da incorporação do status de saúde ao índice de bens primários, em virtude dos seus efeitos sobre a oportunidade, já que pessoas com índices iguais não terão as mesmas chances de desenvolver suas vidas com a mesma qualidade se tiverem necessidades em saúde diferenciadas. ―Since opportunity is included in the index of primary social goods, the effects of health inequalities are thereby included as well.‖ (DANIELS, 2008, p. 94). Modifica, portanto, o conceito de oportunidade de Rawls. Para Daniels a extensão da lista de bens primários não significa uma violência à teoria de Rawls, desde que movamos nosso foco da posição original para os estágios constitucional e legislativo, momentos nos quais os bens primários podem ser debatidos e estendidos de diversas formas. Assim, incluir instituições que garantam serviços de saúde dentre as instituições básicas responsáveis por garantir iguais oportunidades satisfaria integralmente a principal preocupação de Rawls: reduzir arbitrariedades em virtude do nascimento e pela posição de cada um na sociedade, moralmente inaceitáveis (loteria natural e social). (DE MARIO, 2013, p.62).

Para adequar a abordagem da saúde como um bem primário à justiça como equidade, o autor assinala que, para decidir sobre os princípios e normas dos sistemas de saúde, é preciso que tenhamos conhecimento sobre fatos acerca da sociedade e dos indivíduos, ou seja, é preciso que o véu da ignorância presente no primário estágio da justiça seja retirado. Essas decisões precisam ser tomadas não considerando os gostos e as preferências das pessoas, mas sim, como pontua Rawls, levando em conta que o que se tem são pessoas livres para elaborar e revisar seus planos de vida. Consequentemente, essas pessoas têm interesse em que as condições para tal sejam garantidas e mantidas ao longo de suas vidas. (DE MARIO, 2013, p.63)

146


A justa parcela dos indivíduos do leque normal de oportunidades é definida com relação aos talentos e habilidades que estes teriam de acordo com um funcionamento normal. Além disso, essa parcela inclui tudo aquilo que os indivíduos selecionariam de maneira razoável, não somente o que eles de fato podem selecionar. Manter o funcionamento normal através do acesso a bens e serviços de saúde tem um efeito particular e limitado sobre as parcelas individuais do leque normal. Isso permite aos indivíduos desfrutarem da parcela a que têm acesso, através de seus talentos e habilidades, neste leque considerando que esse acesso não é restringido por outras desvantagens sociais. Esse fato não sugere que devemos eliminar ou nivelar diferenças naturais que funcionam como um delimitador da porção do leque normal ao qual os diferentes indivíduos terão acesso. Entretanto, quando diferenças entre talento e habilidades são resultado de patologias, e não de uma variação normal, devemos empreender, de acordo com nossos recursos, esforços para corrigir os efeitos da loteria natural‟.‖ (DANIELS, 2011, p.45)

4.3

DETERMINANTES SOCIAIS, DESIGUALDADES E ESCASSEZ DE RECURSOS

A fim de se assegurar justiça no campo da saúde, é necessário mais do que o simples tratamento médico, visto que ela é concretizada não apenas com a prevenção e tratamento, mas com também com uma extensão maior de ações, através da experiência acumulada nas condições sociais ao curso da vida de cada indivíduo. Segundo Daniels, os princípios de justiça de Rawls regulam os determinantes sociais da saúde: Rawls‘s principles of justice thus turn out to regulate the key social determinants of health. One principle assures equal basic liberties, and specifically provides for guaranteeing effective rights of political participation. The fair equality opportunity principle assures access to high quality public education, early childhood interventions, including day care, aimed at eliminating class or race disadvantages, and universal coverage for appropriate health care. Rawls ―Difference Principle‖ permits inequalities in income only if the inequalities work (e.g., through incentives) to make those who are worst off as well off as possible. (…) It would therefore flatten socioeconomic inequalities in a robust way, assuring far more than a ‗decent minimum‘ (Cohen 1989).‖ (…) The implication is that we should view health inequalities that derive from social determinants as unjust unless the determinants are distributed in conformity with these robust principles.(DANIELS, 2001, p.9)

Afirma, além disso, que, por mais que a assistência médica seja importante, não é o único bem social relevante. Assim, as sociedades devem decidir quais necessidades devem ter prioridade e quando os recursos são bem gastos.

Would be much simpler if people could agree on principles of distributive justice that would determine how to set fair limits to health care. (…) I shall develop the

147


following argument: 1) We have no consensus on principled solutions to a family of morally controversial rationing problems, and general principles of justice for health and health care fail to give specific guidance about them; 2) In the absence of such a consensus, we should rely on a fair process for arriving at solutions to these problem and for establishing the legitimacy of such decisions; 3) A fair process that addresses issues of legitimacy will have to meet several constraints that I shall refer to as ‗accountability for reasonableness‘. (DANIELS, 2001, p.10)

5. JUSTIÇA E SAÚDE NA VISÃO DE RONALD DWORKIN

5.1

A CONCEPÇÃO LIBERAL EXISTENCIALISTA EM RONALD DWORKIN: O

PONTO INTERMEDIÁRIO ENTRE BEM-ESTAR SOCIAL E LAISSEZ-FAIRE

Dworkin não adere à concepção estrita do conceito de igualdade distributiva, ou seja, a igualdade absoluta na distribuição das riquezas sociais, visto que tal atitude relevaria a responsabilidade que as pessoas têm sobre suas próprias decisões livres. Como ilustração, Ferraz (2007, p.1) cita a fábula da formiga trabalhadora, que, em virtude do seu empenho, conserva mantimentos para sobreviver ao inverno, e da cigarra indolente, que opta por cantarolar durante o verão, morrendo de fome no inverno. Seria justa a transferência dos recursos da formiga para a cigarra que optara livremente por não trabalhar?

The person who worked or saved in order that he would have enough resources for a rainy day is not treated with equal dignity if he is required to subsidize the person who did not work or save despite being conscious of what the consequences of that would be and despite having had the opportunity to do so.(WALDRON, 2010, p.23)

No mesmo diapasão, para Dworkin, imunizar as pessoas das consequências de suas próprias escolhas livres seria contrário ao princípio da igual consideração e respeito. Este princípio, ao contrário do que possa parecer, não requer que o governo garanta que todos tenham igual riqueza, ou oportunidades iguais, ou o suficiente para satisfação das necessidades mínimas. Como consequência da aplicação do princípio ético da responsabilidade, as desigualdades materiais não atribuíveis às escolhas dos indivíduos, por estarem relacionadas a circunstâncias fora de seu controle, não são justificadas. São, portanto, moralmente arbitrárias, requisitando alguma forma de correção. A distinção entre escolha e circunstância é não só familiar,mas fundamentalem ética de primeira pessoa.[…] Não podemos planejar ou julgar nossasvidas senão pela distinção entre aquilo sobre o que devemos assumirresponsabilidade, porque o escolhemos, e aquilo sobre o que não devemosporque estava além de nosso controle. (DWORKIN, 2010, p. 455)

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Em sua obra, o filósofo ouriço busca, através da síntese de duas teorias adversárias (bem-estar social e laissez-faire), introduzir uma teoria da igualdade liberal. Segundo Montarroyos (2013, p.90), o livro ―A virtude soberana‖ traz como solução uma releitura liberal existencialista sobre a teoria econômica da igualdade distributiva, maximizando a constitucionalidade no dia a dia dos indivíduos, fugindo das vicissitudes do bem-estar social e do laissez-faire. O objetivo do autor, portanto, é o aperfeiçoamento do processo de inclusão comunitária, apartir da criação de um ambiente ético-liberal motivador e atraente. Promove, por conseguinte, a combinação do princípio da igualdade com o princípio da liberdade, mediados pelo princípio da responsabilidade existencialista, público e privada, além da inclusão de valores como democracia, fraternidade, tolerância e comunidade. Há, portanto, no autor, uma espécie de ―dosimetria‖ entre o bem estar social da política (máximo de intervenção) e o laissez-faire do mercado (com zero-grau de intervenção da comunidade). (MONTARROYOS, 2013, p. 116). Por um lado, Dworkin encontra no primeiro modelo alguns pontos que devem ser rechaçados: O modelo do bem-estar social produziria injustiça no decorrer da metodologia distributiva, uma vez que não deixaria livre os beneficiários para formularem seus desejos utilitaristas, ou seja, desestimularia o desejo de maximizar o existencialismo individual, pois as pessoas seriam enquadradas nos padrões de felicidade e de justiça social projetados pelo distribuidor paternalista, que consideraria nessa perspectiva que o estilo de vida de um beneficiário pode ser inferior ou superior ao de outro cidadão, usando para isso uma métrica burocrática, tecnicista, matemática, metafísica ou materialista, que não coincide com a filosofia existencialistahumanista reinvidicada pelo autor Ronald Dworkin. (MONTARROYOS, 2013, p.115-116)

Por outro lado, Dworkin critica os defensores do modelo do laissez-faire, pois os igualitários partidários de tal corrente argumentam que o respeito ao princípio da igual consideração e respeito estaria satisfeito quando não houvesse interferência na vida de ninguém, a fim de que o destino das pessoas dependesse de forma exclusiva de suas próprias habilidades, iniciativas e sortes. Nesse caso, há uma defesa da autonomia pessoal máxima fundada no extremo da liberdade, desprezando, no entanto, a responsabilidade coletiva, a comunidade e a igualdade formal. (MONTARROYOS, 2013, p.101) A pretensão de Dworkin, portanto, é autor criar é uma terceira argumentação ou alternativa epistemológica que seja capaz de entrelaçar esses dois modelos teóricos, que, apesar da popularidade, são extremistas. 149


5.2

A MOEDA DA IGUALDADE EM DWORKIN: IGUALDADE DE RECURSOS Qual seria, então, a dimensão em que a concepção de igualdade liberal-existencialista

em Dworkin é concebida?

Como bem aponta Sen, todas as teorias políticas que passaram pelo teste do tempo defendem (ainda que não de modo explícito) a igualdade em algum ‗espaço‘ específico (‗the space of equality‘), e isso implica necessariamente desigualdade em outros espaços. Proponentes do igualitarismo não podem portanto simplesmente se dizer igualitários, devem apontar em que dimensão (isto é, espaço) uma sociedade de iguais busca a igualdade entre as pessoas, ou seja, devem indicar qual a ‗moeda da justiça igualitária‘, na expressão de Cohen, e justificar as desigualdades que necessariamente resultarão dessa escolha, em outros espaços.(FERRAZ, 2007, p.246)

Para Dworkin, há dois espaços em que a igualdade pode ser concretizada: igualdade de bem-estar e igualdade de recursos. A primeira sugere que o nível de bem-estar que cada indivíduo alcança com a mesma quantidade de recursos materiais pode variar em virtude das capacidades que cada um possui para convertê-los em bem-estar (capabilities para Amartya Sen). Portanto, variando-se a capacidade de cada um na conversão dos recursos (em virtude de enfermidades, deficiências físicas e mentais), o nível de bem-estar que os indivíduos alcançam com a mesma quantidade dos mesmos também varia significativamente. Segundo Ferraz (2007, p.247): ―A teoria da igualdade de bem-estar parece captar a intuição de que a sociedade deve conferir recursos adicionais a essas pessoas para compensar as deficiências.‖ Dworkin rejeita essa primeira ―moeda de igualdade‖ em virtude de vários fatores: indefinição de um nível máximo de compensação, haja vista que certas deficiências nunca permitirão uma igualdade de bem-estar, por mais recursos transferidos pela sociedade; o problema dos gostos dispendiosos; subjetividade do conceito; dificuldade de comparação dos níveis de bem-estar entre pessoas para efeito de equalização. (FERRAZ, 2007, p.247). Dessa forma, para o filósofo, a ‗moeda da justiça igualitária‘ deve ser os recursos com os quais as pessoas alcançam o bem estar: a igualdade de recursos. Não se trata, evidentemente, ao contrário do que a denominação parece sugerir, de uma divisão igualitária estrita de recursos. Essa é a teoria da igualdade da ―velha esquerda‖ que Dworkin repudia, pois viola a ideia central do igualitarismo liberal (...). Além disso, ignoraria por completo a intuição de que certas pessoas, por conta de deficiências e enfermidades, tenham direito a mais recursos para compensar seu déficit na capacidade de atingir o bem-estar (capability), A igualdade de recursos

150


requer uma distribuição sensível às escolhas que as pessoas realizam, porém insensível às circunstâncias.Ou seja, parte-se da posição fundamental de que, ausentes as diferenças imputáveis às escolhas das pessoas,a distribuição de recursos em uma sociedade em princípio deve ser igual. (FERRAZ, 2007, p.247-248)

Assim como Rawls utiliza o artifício da posição original para deliberar sobre princípios que devem reger a estrutura básica da sociedade, Dworkin, para demonstrar a adoção da igualdade de recursos, utiliza-se de uma situação hipotética na qual os indivíduos devem decidir, como se fosse a primeira vez, regras justas de convivência social: o leilão hipotético.

5.3

O LEILÃO HIPOTÉTICO

Dworkin supõe a seguinte situação: um grupo de náufragos, numa ilha deserta, deve decidir sobre a divisão dos recursos encontrados no território, respeitando o princípio da igualdade. Ao invés de conferir uma parte igual de cada recurso existente na ilha a cada indivíduo, o autor afirma que a forma mais igualitária de distribuição dos recursos seria a realização de um leilão (mercado em condições ideais), em que todos os náufragos participariam com poder paritário de aquisição (na situação hipotética, o mesmo número de conchas), sendo cada recurso entregue a quem oferecesse o melhor lance. Ao fim, os náufragos possuirão um conjunto de recursos diferentes uns dos outros, adequado às preferências de cada um. Dworkin considerou que a oferta dos produtos a serem leiloados não pode ser viciada a fim de atender um ou outro tipo social ou étnico de pessoa. O responsável pela divisão dos produtos disputados no leilão deve atacar dois focos distintos: a arbitrariedade e a possível injustiça. O chamado ―envy teste‖, ou teste da cobiça, determina, finalmente, se a distribuição pode ser considerada igualitária: ninguém pode preferir a cesta de recursos de outro ao final do leilão. (DWORKIN, 2005, p. 82). Assim, a aplicação desse mecanismo possibilita a manutenção do respeito ao princípio da escolha, sensível às preferências entre as pessoas, e da responsabilidade, permitindo que cada um arque com os custos de suas decisões. Entretanto, Dworkin (2005, p.454) ressalta o chamado ―problema estratégico‖, ou seja, a dificuldade de atribuição das desigualdades materiais à escolha ou à circunstância.

O desafio do igualitarismo liberal é, desse modo, encontrar ummecanismo que permita a aplicação de sua idéia central sem a necessidadede verificar, pessoa a

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pessoa, que parte de suas riquezas materiaisé decorrente de escolhas e que parte é decorrente de circunstâncias.Tal mecanismo deve ser capaz também de estabelecer quecompensação é adequada quando há impossibilidade de eliminartodas as diferenças de bem-estar decorrentes das circunstâncias,como no caso das incapacidades físicas graves. (FERRAZ, 2007, p. 454)

Aplicar o princípio da diferença rawlsiano para solucionar o dilema seria violar o critério escolha-circunstância, visto que não há distinção se os ocupantes da posição menos favorecida da sociedade estão lá em virtude de circunstâncias ou escolhas. Nesse sentido, Waldron (2010, p.22): ―(...) neither the argument for the Difference Principle nor the Rawlsian social minimum argument (...) seems to pay any attention to the question of a person‘s own responsibility for his or her membership in the worst-off group.‖ Não é possível, portanto, equalizar todas as desigualdades materiais atribuíveis às circunstâncias. Todavia, é possível equalizar as oportunidades que as pessoas têm para se proteger dos riscos de possuir menos recursos por razões circunstanciais, imaginando-se que proteção contra esse risco, na forma de seguro, pessoas de prudência normal teriam provavelmente adquirido se tivessem tido a oportunidade de fazê-lo em igualdade de condições: a ideia do seguro hipotético. (DWORKIN, 2005, p.108). Para o filósofo, o momento adequado para a satisfação do teste de cobiça, de acordo com o princípio de igual consideração e respeito, seria ex ante: antes do impacto das transações e da sorte. Um governo comprometido com a igualdade ex post aproximaria os cidadãos que carecem de habilidades de mercado para o mesmo nível econômico daqueles com maiores habilidades, e recuperaria aqueles que ficaram doentes ou sofreram desvantagens com a posição que teriam ocupado. Por outro lado, um governo comprometido com a igualdade ex ante, responde diferentemente a essas problemáticas: impõe que os cidadãos respondam essas contingências na mesma posição, ou seja, que eles tenham a mesma oportunidade de comprar seguro contra falta de talento produtivo ou má sorte. (DWORKIN, 2011, p.358). A igualdade inicial do leilão permanece enquanto durar o acontecimento do próprio leilão. Após o seu fim, prevalece entre os indivíduos o livre comércio, sendo a igualdade de recursos rompida. É em virtude disso que Dworkin idealiza o seguro hipotético, a medida para redistribuir na sociedade os recursos entre os que ganham e os que perdem no jogo desigual do mercado. O filósofo recomenda, portanto, um modelo de impostos e benefícios na estrutura desse mercado hipotético de seguros: o prêmio dá a medida do que deve ser

152


arrecadado por meio de impostos, enquanto a cobertura é o limite que deve ser gasto com a redistribuição na forma de benefícios. (FERRAZ, 2007, p.250).

5.4

JUSTIÇA E SAÚDE: PRINCÍPIO DO SEGURO PRUDENTE

Em Justice for Hedgehogs, Dworkin afirma, categoricamente, que as teorias de justiça distributiva são artificiais, baseando-se em fantasias: contratos fictícios, negociações entre pessoas com amnésia, citando como exemplos a posição original de Rawls e sua própria hipótese de leilão hipotético numa ilha deserta. Entretanto, afirma que esse tipo de artificialidade é inevitável caso se queira afastar a política como árbitro final da justiça. Em virtude da complexa e profunda injustiça na economia, é difícil definir o que a justiça demanda sem tais exercícios contrafactuais. (DWORKIN, 2011, p.352). O autor acredita na interdependência entre teoria política e a controvérsia prática, visto que acredita ser essencial que a filosofia política responda à política, pois só assim haveria a probabilidade

de

alcançar

a

forma

(MONTARROYOS, 2013, p. 102).

correta

para

ajudar

a

sociedade

de

fato.

Portanto, de um lado tem-se a igualdade, valor

transcendente da comunidade política; do outro, encontra-se a realidade do cotidiano que se perde no pragmatismo, na cobiça e no oportunismo derivados da liberdade dos governos, pessoas, mercados. A partir da conciliação entre essas duas dimensões, ideal e real, através da igualdade liberal, encara a relação entre justiça e saúde, discutida no capítulo 8 do livro ―A virtude soberana‖. A sua abordagem teórica de justiça em saúde integra a assistência médica na competição com os outros bens escassos a serem redistribuídos, ao invés de conceder-lhe um status moral especial, isolando a saúde e a assistência médica, como Daniels o faz. Questiona o autor quanto se deve gastar, coletivamente, a fim de proporcionar serviços de saúde a todos que respeitem o princípio da igualdade. (DWORKIN, 2005). Para responder ao questionamento, há duas respostas possíveis, sendo necessário, primeiramente, retomar a noção da igualdade de bem-estar, aplicada no contexto da saúde: deve-se gastar o que for necessário para restabelecer a saúde das pessoas, custe o que custar? Trata-se do que Dworkin chama de ―princípio do resgate‖, considerado pelo filósofo como inverossímil e capaz de levar a sociedade à falência, se levado ao extremo. É composto por duas partes: a primeira sustenta que a vida e a saúde são bens primeiros e não devem ser sacrificados em função de outros; a segunda impede que se negue atendimento médico a

153


qualquer pessoa, por uma questão de igualdade. (DWORKIN, 2005, p. 335). A assistência médica, portanto, deveria ser distribuída de acordo com a necessidade do paciente. Esse princípio é o adotado pelo STF (SL 47-AgR/PE) na concretização do direito à saúde no Brasil: ―Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, (...) no caso de um direito social como a saúde, (...) deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão.‖

Críticas podem ser dirigidas ao princípio do resgate por ele não discutir quanto se deve gastar com outros setores sociais concorrentes com a saúde. É uma ―caixa preta‖, um mistério sobre

quanto

a

comunidade

realmente

(MONTARROYOS, 2013, p.106).

gastaria

com

outros

serviços

públicos.

A defesa do igualitarismo, nesses termos, deve ser

repensada cuidadosamente, pois temos hoje formas caríssimas de assistência.Por isso, a saúde e a vida não podem mais ser discutidas sem se levar em conta os seus verdadeiros custos econômicos. A fim de se debater a justiça ideal, há que se buscar uma contribuição até certo ponto do princípio do resgate. (DWORKIN, 2005). A mensagem idealista desse princípio é importante, pois afirma que não podemos racionar a saúde usando a lógica do dinheiro. (MONTARROYOS, 2013, p.106) Como antítese à realização plena de tal princípio, custosa e paternalista, surgiram os defensores da liberdade plena do mercado de assistência médica, de forma a eliminar qualquer vantagem e subsídio para o cidadão, que deveria, nesse caso, usufruir do plano que ele viesse a escolher: o laissez-faire. Dworkin faz ressalvas a esse posicionamento citando o exemplo dos Estados Unidos, em que nem todos tem salário suficiente para entrar nesse mercado e nem sabem calcular ou avaliar o valor de um tratamento médico ou os riscos de saúde específicos. (DWORKIN, 2005). Dessa forma, o filósofo toma proveito de uma ideia contida no cerne do laissez-faire: a distribuição justa seria aquela em que as pessoas criam para si mediante suas escolhas individuais. Entretanto, é fundamental para o filósofo que essas pessoas sejam bem informadas e que, primordialmente, o sistema econômico e a distribuição da riqueza da comunidade na qual tais escolhas são feitas sejam justos. Assim, ao definir o princípio do seguro prudente, supõe que a distribuição de recursos foi a mais equitativa possível. Em segundo lugar, supõe que os indivíduos têm conhecimento 154


sobre toda a informação mais recente sobre o custo e os efeitos secundários dos procedimentos médicos particulares. Por fim, supõe que ninguém, inclusive as companhias de seguro, obteve informações disponíveis sobre a probabilidade de que um indivíduo contraia algum tipo de enfermidade específica ou sofra um determinado tipo de acidente. (DWORKIN, 2005, p.338). Portanto, enquanto o princípio do resgate direciona para o máximo estatal, o princípio do seguro prudente aponta para zero-estatal, desde que, frize-se, esteja-se diante de um contexto justo e bem ordenado, supostamente existente nesse modelo fictício. Se é certo que a maioria das pessoas estaria dispostas a comprar certo nível de cobertura médica em um mercado livre e justo, então, é a desigualdade de nossa sociedade a razão pela qual muitos dos indivíduos não possuem seguros. (DWORKIN, 2005, p.342). Assim, aplicado o princípio do seguro prudente na prática, tem-se que uma comunidade deve gastar coletivamente em saúde a cobertura que pessoas médias da comunidade em questão, de prudência normal, teriam contratado num mercado de seguros competitivo em igualdade de condições. O mecanismo do seguro hipotético justifica a redistribuição de recursos sem a necessidade de presunções questionáveis sobre as causas das desigualdades materiais entre as pessoas, como ocorre com o ―princípio da diferença‖ de Rawls. Caso o seguro estivesse disponível em condições de igualdade, todos o teriam adquirido para a cobertura dos riscos de não possuir recursos para levar uma boa vida. Qual seria, portanto, o limite mínimo justo de redistribuição nos casos de desigualdades materiais decorrentes de circunstâncias, em que é impossível eliminar as diferenças sem levar a sociedade à falência? Para o filósofo ouriço, o mecanismo do seguro não elimina as tais desigualdades, mas minimiza-as, proporcionando uma resposta realista e justa à questão, pois torna as pessoas iguais em face do risco.

Dworkin propôs claramente que juntássemos o principio do resgate com o princípio do seguro prudente, e, nesse momento, ao entrar no domínio da discussão socioológica, sua proposta experimenta enormes turbulências ambientais, causando críticas decepcionantes, como aquela apontada brilhantemente pelo professor Ferraz e outros analistas. Conforme notamos anteriormente, a solução da igualdade de recursos implicaria uma série de características mistas que, no final, deixariam estranhamente uma grande faixa de pessoas em estado subótimo do ponto de vista não só econômico, ou político, mas também no aspecto existencialista, pois, efetivamente, muitos cidadãos não teriam recursos econômicos para maximizar as suas preferências e suas responsabilidades existenciais no plano da saúde individual. (MONTARROYOS, 2013, p.111)

155


5.5

CRÍTICAS AO SEGURO HIPOTÉTICO

Qual seria, no modelo de seguro hipotético proposto por Dworkin, a situação daqueles que escolhessem não adquiri-lo caso fosse disponível no mundo real? Seria moralmente justificável negar-lhes cuidados de emergência na hipótese do risco se concretizar? Para o filósofo, mesmo que a disponibilidade de tal seguro em condições justas no mercado ideal seja improvável, caso ele existisse, haveria bons motivos para impor o seguro como obrigatório, a fim de proteger tanto o indivíduo de escolhas equivocadas, quanto a sociedade dos custos com os quais teria de arcar em decorrência dessas escolhas. (DWORKIN, 2005, p.114-115). Entretanto, para Ferraz (2007): Ou Dworkin admite que o ideal da igualdade não é ‗soberano‘ em todas as situações, ou tem que aceitar a crítica de que sua teoria, levada às últimas consequências, de fato recusaria qualquer compensação para aqueles que não tivessem adquirido o seguro mesmo tendo a oportunidade de fazê-lo. Na primeira hipótese, que entendo mais adequada, estaria abdicando porém de sua autodefinição como pensadorouriço, na famosa classificação de Isaiah Berlin. (FERRAZ, 2007, p.253)

A afimação de que o filósofo recusaria qualquer compensação àqueles que não tivessem adquirido o seguro não se coaduna com a totalidade da teoria propugnada por Dworkin: Na verdade, deve ser garantido o mínimo existencial da parte do Estado; e nesse contexto, ainda, o monitoramento de um órgão democrático especializado no tema da saúde seria fundamental para estabelecer padrões legítimos de serviços públicos na comunidade. Além disso, a maioria e as minorias deveriam participar na definição de prioridades de atendimento; também a liberdade de escolha estaria disponível para quem desejasse comprar planos complementares além do básico que teria sido estipulado pelo Governo, via Conselho Nacional de Saúde; e esse complemento não seria subsidiado pelo poder público. Além do mais, no dia a dia da igualdade de recursos, seria totalmente aceitável, segundo ele, que a intervenção do governo, às vezes, acontecesse com a intenção de garantir as circunstancias nas quais deveriam ocorrer as escolhas individuais, ao mesmo tempo, incentivando o cidadão a assumir a responsabilidade direta sobre o destino de sua própria vida pessoal. (MONTARROYOS, 2013, p.111)

Dessa forma, para que a comunidade assegure a igualdade de recursos, deve oferecer o mínimo existencial, propiciando a mesma quantidade de recursos assistenciais públicos na base, que pode ser, ou não, maximizado pela liberdade de escolha e responsabilidade de cada um na sociedade, uma vez que o filósofo admite a possibilidade de que aquelas pessoas dispostas a gastar mais em atendimento especial realizem o pagamento através de um seguro complementar. 156


6

CONCLUSÃO

As lições trazidas por Jeromy Waldron são de extrema valia para o esclarecimento da importância das teorias de justiça para a análise dos direitos socioeconômicos. A partir de sua análise, verifica-se a insuficiência das teorias de direitos para a justificação moral desses direitos, e no tocante a decisões sobre conflitos que envolvam outras reivindicações. Além disso, demonstra que a urgência de tais demandas é óbvia por vivermos em um mundo real e desigual, entretanto, os impactos trazidos por sua efetivação nas perspectivas de vida dos indivíduos, e também da sociedade como um todo, só são considerados a partir de um mundo ideal, abstrato. A teoria de Rawls é importante para definir os princípios básicos de justiça que regem a estrutura da sociedade, mas insuficiente, de forma proposital, para questões como políticas públicas. Assim, verifica-se a importância da teoria de Daniels, ao ampliar o conceito de oportunidades de Rawls, e assim, incluir a saúde na lista de bens primários, elaborando uma justificativa moral plausível para a assistência médica universal. Entretanto, apesar de tentar fornecer uma distinção, não fica claro o porquê de outras demandas não serem inclusas nessa lista, como a alimentação, que também é distribuída desigualmente e, num contexto mais amplo, também pode ser extremamente custosa para quem recebe salários mínimos. Por fim, a teoria de Ronald Dworkin é a que parece melhor se adequar às exigências da igualdade, por também dar relevante importância à responsabilidade decorrente de escolhas livres. Através de sua teoria, é possível uma alternativa à aplicação extremada do princípio do resgate, pois seu liberalismo existencialista não busca a satisfação das necessidades dos indivíduos e, por conseguinte, de uma igualdade ex post, que ignora os gostos dispendiosos, mas sim, proporciona a ideia de uma igualdade ex ante, através da hipótese do leilão hipotético. Como não vivemos nesse mercado ideal, não existe uma distribuição justa dos recursos, motivo pelo qual existem tantas desigualdades. Por conseguinte, defende a hipótese do seguro hipotético no campo da saúde: a comunidade deve gastar coletivamente em saúde a cobertura que pessoas médias da comunidade em questão, de prudência normal, teriam contratado num mercado de seguros competitivo em igualdade de condições, assegurando àqueles que desejarem um seguro complementar. Garante, assim, a proteção do ideal de igualdade e da liberdade, uma posição intermediária entre o laissez-faire e o ―welfare state‖ e do individualismo e comunitarismo.

157


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159


A TRAJETÓRIA DA PSIQUIATRIA E SUA RELAÇÃO BÁSICA COM O DIREITO 1

Arthur Cicupira Rodrigues de Assis 2 Ana Carolina de Souza Pieretti Sumário: 1 Introdução. 2 A Psiquiatria e a sua Relação com o Direito ao Longo da História. 3 Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo perquirir sobre a trajetória da psiquiatria e da sua relação básica com o Direito, especialmente no que se refere ao direito à saúde. Por meio de um método descritivo e de uma análise histórica, busca-se compreender as diversas etapas das interações entre a psiquiatria e o direito ao longo da evolução da sociedade humana.

2

A PSQUIATRIA E A SUA RELAÇÃO COM O DIREITO AO LONGO DA

HISTÓRIA

A curiosidade do ser humano a respeito dos fenômenos e processos mentais que implicavam em mudanças no comportamento das pessoas está presente desde o período antes de Cristo (SHORTER, 1997). A psiquiatria e a medicina, nesse tempo supracitado, possuíam um viés mágico, fantasioso, intuitivo, em que as doenças eram vistas como consequências das possessões de espíritos malignos ou, segundo Hipócrates (um dos ícones da medicina antiga), da relação desequilibrada entre os quatro humores corporais (SHANSIS, 2007) – sangue (coração), fleuma (sistema respiratório), bílis amarela (fígado) e bílis negra (baço). Os processos psicopatológicos não se resumem apenas ao orgânico, social ou histórico clínico do indivíduo; o aspecto psicológico possui uma fração relevante na história natural das doenças mentais, e, portanto, o entendimento desses mecanismos recebeu teorias importantes de filósofos como Aristóteles, Sócrates e Platão, que estudaram os juízos, o raciocínio e a memória, ideias utilizadas até hoje em ciências como a antropologia, que possui relação interdisciplinar com a psiquiatria. 1

Graduando em Medicina pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Mestre em Saúde da Família, médica professora auxiliar pela Universidade Federal de Campina Grande UFCG. 2

160


Com o advento do Cristianismo, a ideia de que os transtornos da mente eram resultados predestinados da ira divina foi bastante difundida, o que dificultou a observação, análise e compilação de casos psiquiátricos, especialmente na Idade Média (entre os séculos V e XV), período em que o sobrenatural estava intensamente presente nas crenças das pessoas. A primeira abordagem mais concreta com relação aos pacientes psiquiátricos surgiu na Europa, no século IX. Foram criados locais para assistência, reclusão e subsequente afastamento desses indivíduos da sociedade, pois eram considerados de alta periculosidade para os outros sujeitos – o início da institucionalização da loucura. Juntamente com os considerados loucos estavam criminosos, desempregados e indigentes, os quais recebiam o mesmo tratamento de isolamento e até a utilização de grilhetas e privação alimentar (SHORTER, 1997). Essas instituições, portanto, não serviam para o tratamento dos doentes, mas apenas para contribuírem com a ocultação da miséria social na época. A Revolução Francesa (1789 – 1799) foi um marco para a psiquiatria. Os lemas humanistas desse período (liberdade, igualdade e fraternidade) sensibilizaram parte da população, que reivindicou mudanças na abordagem aos pacientes com distúrbios mentais. O ícone desse período foi o médico francês Philippe Pinel, o primeiro a tentar sistematizar as alterações psíquicas em entidades clínicas. Pinel considerou o doente psiquiátrico como um alienado, não sujeito às leis, e que deveria receber um tratamento institucionalizado, mas não caracterizado com aspectos desumanos. O enfermo deveria receber um tratamento moral, baseado no seu isolamento social para reorganização da sua mente. A pressão da população diante das condições dos doentes mentais, a superlotação do Hospital Geral de Paris (Hôpital de la Salpêtrière)e as ideias de Pinel resultaram na instauração da Lei de 1838, que legitimou – em termos administrativos e jurídicos – a psiquiatria e o manicômio, bem como a tutela médica sobre o doente mental (DESVIAT, 1999). Além disso, o alienado já não poderia mais ser enclausurado sem respaldo jurídico, de acordo com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nessa época, as dificuldades para impor fronteiras ou definir a interseção entre psiquiatria e o Direito já estavam presentes. O homicida Pierre Rivière (acusado de matar a mãe, o irmão e a irmã com golpes de foice) foi a primeira pessoa inocentada por possuir doença mental, em 1835 (DESVIAT, 1999). Todavia, o otimismo do movimento alienista foi logo dilacerado devido à massificação dos hospitais psiquiátricos – cerca de quatrocentos a quinhentos pacientes para cada médico – e à vitória do organicismo, isto é, dos danos biológicos no doente, cujo tratamento moral não surtia o efeito esperado. 161


Outro período marcante para a psiquiatria foi o pós-Segunda Guerra Mundial. O conflito militar durou de 1939 a 1945, e após seu fim, as pessoas mais uma vez foram sensibilizadas diante da crueldade vivida naquele período e passaram, novamente, a reivindicar melhorias nas condições de terapias aos doentes mentais. Foi nesse contexto que surgiram as primeiras reformas psiquiátricas (DESVIAT, 1999). Com essas primeiras tentativas de discutir alternativas ao tratamento institucional tradicional, também foram descobertos os medicamentos psicotrópicos e a incorporação da psicanálise e saúde pública à psiquiatria. Como opções a uma reforma manicomial ou ao seu fim, foram discutidas: a transformação do hospital psiquiátrico em uma instituição terapêutica (Psicoterapia Institucional, na França; Comunidade Terapêutica, no Reino Unido) ou o fechamento do manicômio (Psiquiatria Anti-institucional, na Itália; Desinstitucionalização, nos Estados Unidos da América – EUA). A Psicoterapia Institucional e a Política de Setor ocorreram na França e foram a tentativa mais rigorosa de salvar o manicômio, inclusive com a prerrogativa de que não são os muros do hospital que fazem dele um manicômio, mas sim, as pessoas que o compõem (DESVIAT, 1999). A Psicoterapia Institucional, como o próprio nome já explicita, é o tratamento psiquiátrico dentro das instituições, mas de uma forma humanizada, com forte presença da psicanálise – método desenvolvido por Sigmund Freud, que consiste em manobras para externalização de pensamentos represados no subconsciente para fins psicoterapêuticos (COSTA, 2009) e da alteração das formas de relacionamento entre os profissionais e os doentes – horizontalização do contato em detrimento da antiga verticalização, em que o vínculo do profissional com o paciente era mecânico e ordenado, sem flexibilização alguma. O seu fundador, Tosquelles, acreditava na aplicação de uma verbalização dentro da instituição, que permitisse uma escuta analítica coletiva, denominada escuta polifônica (DESVIAT, 1999) – a qual possui diversos atores divididos entre pacientes, profissionais e voluntários com a adoção da psicanálise. Os procedimentos para a internação do paciente deveriam ser aplicados com maleabilidade e o máximo de iniciativa médica. A Política de Setor foi mais que parte da reforma psiquiátrica, mas uma medida para a saúde pública da França, em que buscou dinamizar e revolucionar permanentemente o estabelecimento psiquiátrico acompanhado de uma setorização do território e da criação de instituições extra-hospitalares para assistência e reabilitação. Os três princípios fundamentais da reforma psiquiátrica francesa foram: o zoneamento para facilitação da realização e acompanhamento das alterações terapêuticas – delimitaram-se áreas com cerca de 50.000 a 100.000 habitantes; a continuidade do tratamento - uma mesma equipe, no conjunto de cada 162


setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços ofertados, desde a prevenção até a cura e reabilitação (pós-cura); o eixo da assistência deslocou-se do hospital para o espaço extra-hospitalar. O paciente deveria ser atendido, na medida do possível, na própria comunidade para evitar o efeito cronicizador do hospital (DESVIAT, 1999). Essas medidas encontraram dificuldades a partir do surgimento das especificidades de cada doença psiquiátrica, o que promoveu uma cisão na prática do tratamento. O hospital continuou como centro da terapia. A Comunidade Terapêutica ocorreu no Reino Unido, iniciada pelo psiquiatra Maxwell Jones, e foi um processo similar à reforma psiquiátrica francesa, com uma diferença fundamental: os ingleses não adotaram a psicanálise como esteio, mas optaram por atividades coletivas e recreações, como festas, reuniões em grupo diárias, bailes e excursões. Para salientar a importância dessa alternativa ao manicômio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tornou público um relatório, em 1953, que recomendou a mudança de todos os hospitais psiquiátricos vigentes para comunidades terapêuticas em sua totalidade (DESVIAT, 1999). A liberdade de comunicação, análise recorrente de tudo o que acontece na instituição (reuniões diárias dos pacientes e dos recursos humanos, psicoterapias de grupo), tendência a destruir as relações de autoridade tradicionais em um ambiente de extrema tolerância e a presença de toda a comunidade nas decisões administrativas do serviço são outras características dessa importante reforma. Em 1954, houve também um avanço jurídico com relação ao tratamento psiquiátrico no Reino Unido: a Lei da Saúde Mental, com o intuito de proporcionar um atendimento adequado às pessoas com distúrbios mentais, sem restrições de liberdade, a qual provocou sensível diminuição nas internações psiquiátricas (DESVIAT, 1999). Não era objetivo do governo inglês fechar os manicômios, em si, mas atribuir aos hospitais gerais e hospitais-dia um papel mais assistencial, humanizado e coletivo ao doente mental, além de permitir um tratamento mais local. O pilar dessa reforma seria o médico com função semelhante ao médico de família e comunidade no Brasil, que garantiria o atendimento longitudinal, contínuo, de um determinado paciente. A Antipsiquiatria (surgiu na Inglaterra) foi mais um movimento alternativo ao manicômio tradicional, mas que, didaticamente, não se enquadra no grupo das reformas psiquiátricas. Foi uma ideologia contracultural às reformas, a qual questionava a existência da psiquiatria e da própria doença mental. Segundo esse processo, os estados esquizoides resultariam de uma insegurança ontológica do indivíduo, isto é, uma incapacidade de descobrir seu próprio papel na sociedade ou o medo disfuncional de adaptar-se a esse dever (DESVIAT, 1999). Essa 163


contestação foi importante no conceito da subjetividade social – como a vivência em sociedade pode contribuir para o aparecimento de distúrbios mentais – e nas relações institucionais e familiares. A Psiquiatria Anti-institucional ocorreu na Itália e foi idealizada por Franco Basaglia – médico psiquiatra em uma clínica universitária por treze anos, quando assumiu um hospício na província de Gorizia (DESVIAT, 1999). Basaglia, a priori, transformou o manicômio em uma comunidade terapêutica, até resolver reinserir o paciente para o local a que todos pertencemos: a sociedade. Essa proposta resultaria na desarticulação do hospital psiquiátrico, já que seria o início de um longo processo de desinstitucionalização do indivíduo com distúrbios mentais. O maior propósito da atitude de Basaglia e colaboradores era extinguir a reificação (―coisificação‖) do homem com transtornos psiquiátricos, isto é, fazer com que esses enfermos sejam tratados como seres humanos, e não como uma classe marginal, perigosa, à parte da sociedade. A tríade indicada por esse movimento que nega a instituição psiquiátrica seria iniciada pela humanização do tratamento, seguida da conversão do manicômio em comunidade terapêutica e a subsequente reinserção do indivíduo à sociedade com todo o suporte de centros para assistência e reabilitação. A Psiquiatria Anti-institucional inspirou um movimento denominado Psiquiatria Democrática, com o intuito de estender a prática Basagliana a todo o país; essa atuação resultou na criação da Lei 180, de 1973 – aprovada em 1978, que afirmava: não poderia haver novas internações psiquiátricas e tornouse proibida a construção de hospitais psiquiátricos na Itália; implementação do atendimento contínuo; aboliu-se o estatuto da periculosidade social do doente mental; nos casos de tratamento obrigatório, estabeleceu-se que um juiz deveria resguardar os direitos civis do paciente (DESVIAT, 1999). Com a instauração da lei, houve um processo gradual de desaparecimento dos manicômios pré-existentes; os hospícios já existentes deveriam ser complementares aos serviços comunitários e não o inverso; a interdisciplinaridade deveria estar presente em todo e qualquer tratamento psiquiátrico (equipe mínima com psicólogo, assistente social, enfermeiro, técnico em enfermagem, terapeuta ocupacional, médico e odontólogo). Os Estados Unidos possuem uma peculiaridade negativa: país que destina a maior porcentagem do seu Produto Interno Bruto (PIB) à população, mas que não consegue adquirir um sistema público seguro. É preciso ter mais de 65 anos de idade ou reconhecidamente indigente ou veterano das Forças Aramadas para possuir um atendimento médico medíocre. Não há um sistema universal de saúde. A política de saúde pública nos EUA restringe-se a ações em populações específicas ou proteção contra riscos ambientais (DESVIAT, 1999). 164


O presidente John F. Kennedy (liderou o país de 1961 até ser assassinado em 1963) elaborou um projeto denominado Projeto Kennedy no ano de sua morte, o qual reunia serviços para prevenção ou diagnóstico precoce da doença mental, para a assistência e tratamento dos indivíduos com transtornos mentais e para a reabilitação dessas pessoas. O projeto previu a construção e capacitação de 2.000 centros para realização desses serviços, mas apenas cerca de 600 foram fundados (DESVIAT, 1999). Muitos dos que chegaram a funcionar, não corresponderam à altura do otimismo, pois logo constatou-se a incapacidade de cobertura assistencial sem a presença de um sistema nacional de saúde. Ademais, a falta de respostas técnicas para pacientes crônicos também colaborou para o insucesso desse projeto. A Psiquiatria Preventiva de Gerald Caplan foi uma tentativa de diminuir as internações psiquiátricas e consequentemente contribuir com a desinstitucionalização. Como o próprio nome sugere, Caplan propôs o estudo e intervenção em populações de risco para reduzir a frequência do aparecimento da doença (prevenção primária); o diagnóstico precoce e tratamento adequado para diminuição da duração do acometimento (prevenção secundária) e a capacidade estrutural e de recursos humanos para provimento da cura e de uma reabilitação completa ao paciente, a evitar uma maior deterioração provocada pelo quadro (prevenção terciária). No Brasil, a reforma psiquiátrica foi iniciada no fim da década de 80, alguns anos após as mudanças pioneiras na Europa e nos Estados Unidos. Impulsionados pelo clima da discussão e sanção da Lei Orgânica da Saúde em 1990, que regula as ações e serviços de saúde em todo o território nacional e estabelece os princípios, as diretrizes e os objetivos do Sistema Único de Saúde (SUS), além de todas as denúncias referentes às condições de vida deploráveis nos manicômios, os profissionais da saúde mental e a população se organizaram em prol de melhorias para o tratamento psiquiátrico no país. Em 1989, entrou em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado, que propõe a extinção gradual dos manicômios e sua substituição por recursos comunitários no país e a regulamentação dos direitos da pessoa com problemas psíquicos e da internação involuntária. A lei só foi sancionada no ano de 2001 (Lei Federal 10.216), pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (BRASIL, 2001), mas com alterações importantes em seu projeto original, as quais resultaram em certa obscuridade no processo progressivo de extinção dos hospícios. Em 1986, foi realizada a VIIIConferência Nacional de Saúde, indiscutivelmente um avanço histórico na luta pelaconstrução do Sistema Único de Saúde. Em 1987, realizou-se a IConferência Nacional de Saúde Mental, no Rio de Janeiro, cujo relatório foi referendado nos pontos que nãocontradizem as decisões da Conferência posterior. Ainda no ano de 1987, em 165


Bauru, o II EncontroNacional de Trabalhadores em Saúde Mental propôs a mudança das premissas teóricas e éticas da assistência psiquiátrica vigente naquele momento. Em 1990, realizou-se a Conferência de Caracas, a qual transformou-se em referência fundamental para o processo de reforma do modelo de atenção à saúde mental que se desenvolve no país. Em agosto de 1992, a IX Conferência Nacional de Saúde aprovou o fortalecimento da luta pela vida, ética e municipalização da saúde, com ênfase na participação social. A II Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu em Brasília, no período de 01 a 04 de dezembro de 1992 e foi um marco para os avanços na atenção psiquiátrica comunitária, pois confirmou a união de líderes governamentais e população em prol de profundas alterações no tratamento psiquiátrico associadas ao gradual processo de desinstitucionalização. Em 1993, foram estabelecidos critérios para o funcionamento dos hospitais psiquiátricos em busca da humanização no tratamento do transtorno mental, como a proibição das celas de isolamento e permissão da visita de familiares; obrigação da permanência de médicos 24 horas e presença e participação de uma equipe multidisciplinar mínima. O Grupo de Assistência Psiquiátrica Hospitalar (GAPH), criado também em 1993, possuía autonomia para descredenciar aquelas instituições que transgredissem as normas pré-estabelecidas. Os estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Ceará foram os primeiros a criarem leis progressistas nessa temática (DESVIAT, 1999). Alguns desses projetos legislativos objetivaram: a mudança de leis que paradoxalmente não asseguram ou resguardam os direitos fundamentais dos pacientes; a inversão do hospitalocentrismo; rede de recursos para atenção à pessoa com doença mental; regulamentação das internações involuntárias; estímulo à articulação dos programas assistenciais que não são nutridos por recursos sanitários (cooperativas de trabalho, associações de usuários, familiares e as iniciativas de lazer). Vale salientar que a sensibilização das autoridades e do povo foi muito mais rápida no Brasil do que nos outros países. Mais de cinquenta anos após o início das reformas psiquiátricas no mundo, houve o surgimento de correntes que contestam essas mudanças devido aos resultados não terem atingido o esperado. Essas correntes formam a chamada Contra-Reforma, que defendem a volta do foco a um viés neuropsiquiátrico, orgânico, a separar psiquiatria de saúde mental, a centralizar o papel do médico e relegar funções importantes de outros profissionais, como enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Desde o início das reivindicações e diálogos por melhorias no tratamento psiquiátrico, muitos hospícios fecharam as portas, a ceder espaço para as redes alternativas comunitárias e centros de reabilitação. Entretanto, dois motivos acarretaram um resultado muito aquém das 166


expectativas dos protagonistas desses processos: a crise no seu esteio principal – o sistema sanitário, social e comunitário, em que a rede de saúde pública de muitos locais não estava preparada para o projeto. A intolerância e desconhecimento de grande parte da sociedade também colaboraram para a falta de uma bilateralidade concreta entre comunidade e centros de assistência à saúde mental. Em todos os processos de reforma, os voluntários foram muito importantes no início, mas atualmente, muitos deles voltaram-se contra os protagonistas dos movimentos, por não viverem os resultados otimistamente imaginados; além disso, a psiquiatria biológica sempre se fez presente, acompanhada da evolução dos fármacos e das promessas em torno desses medicamentos. O ensino da psiquiatria permanece, em quase todas as escolas médicas, voltada apenas para o organicismo, à neuropsiquiatria, a esquecer toda a relevância da vivência social com relação às manifestações da doença e prevaricar a assistência pública à saúde mental.

3

CONCLUSÃO

A história da psiquiatria, a obscuridade da fisiopatologia e a complexidade do diagnóstico e tratamento corroboraram com o preconceito formado há muitos anos com relação ao doente mental e que permanece atualmente. Ter algum familiar com distúrbios psiquiátricos é considerado motivo de vergonha por muitas famílias, que tentam ocultá-lo com a prerrogativa de que está o protegendo – embora esteja se protegendo do devastador preconceito da sociedade. Outro fato da sociedade moderna que exemplifica esse preconceito são os termos pejorativos atribuídos aos doentes mentais, alguns deles, que inclusive, culminaram com a progressiva extinção dos seus usos na medicina – as palavras imbecilidade e idiotia eram classificações médicas utilizadas no retardo mental: a imbecilidade adequava-se em pacientes com retardo de moderado a grave, enquanto que a idiotia era utilizada para pacientes com retardo mental profundo (SANCHES, 2010). Diante da disseminação negativa desses adjetivos, os médicos passaram a não mais os utilizarem. A trajetória psiquiátrica sempre foi marcada por mais dilemas que certezas, que resultou no surgimento de tabus e mitos históricos difíceis de serem superados. Até hoje, algumas pessoas ainda creem na predestinação e castigo divino sobre os pacientes psiquiátricos, influenciados pelas culturas passadas. A intensa e emaranhada atividade do sistema nervoso central, além do seu difícil acesso para estudos in vivo contribuem para o não aparecimento de certezas científicas e a compensação dessa incapacidade de resposta com a apresentação de explicações místicas e sobrenaturais. 167


Muitas doenças psiquiátricas já foram desvendadas, embora não de forma completa. Hoje, algumas afecções como a doença de Parkinson (degeneração da substância negra mesencefálica, rica em neurônios dopaminérgicos, que dificulta a inibição do corpo neoestriado – rico em neurônios GABAérgicos e colinérgicos –, a promover, então, a bradicinesia, instabilidade postural, hipertonia e tremores característicos da doença) e a doença de Alzheimer (deposição de placas protéicas beta-amiloides no interstício da região encefálica e de novelos neurofibrilares no citoplasma de neurônios, que promovem, entre outros efeitos, uma depleção da acetilcolina, especialmente quando afetam o núcleo basal de Meynert) tiveram boa parte de suas fisiopatologias descobertas, mas permanecem incuráveis com um tratamento apenas estabilizador e, muitas vezes, com efeitos colaterais agravantes do quadro. O estudo da fisiopatologia é importante para a busca pelo melhor tratamento farmacológico, mas suas informações não são garantias de um resultado satisfatório, pois o tratamento médico nunca pode ser pontual e voltado apenas ao orgânico. A psiquiatria possui um diagnóstico que muitas vezes depende do olhar subjetivo do médico, já que muitos sintomas podem ser sutis ou várias vezes omitidos pelo próprio paciente. O histórico familiar é importante, especialmente em doenças psicóticas, como a esquizofrenia. O diagnóstico precoce acompanhado de uma intervenção em fases iniciais ou subclínicas tornam-se raros pela dificuldade de confirmar a patologia e da relutância do paciente em procurar um especialista. Medidas de prevenção e promoção à saúde, semelhantes às ações voltadas para outras afecções (doenças sexualmente transmissíveis, hipertensão arterial sistêmica, diabetes), como palestras e panfletagem para conscientização popular e capacitação profissional para um atendimento qualificado podem e devem ser realizadas em todos os locais, especialmente naqueles notadamente com populações de risco – por isso, a importância da coleta de dados estatísticos também em saúde mental. Com relação ao Direito, a psiquiatria e a loucura encontram-se como fortes pretextos para incapacidade, limitação ou perda da autonomia na vida de muitas pessoas (BARROS, 2009), mesmo que, orgânica ou funcionalmente, a doença não imponha essas desabilidades. No Brasil, já em tempos de Getúlio Vargas, o intenso viés disciplinador, marginalizador, e, assim, mascarador, embasado em uma psiquiatria violenta e sem alternativas para, aliada a uma certa passividade ou não aprofundamento do Direito, ser uma importante ferramenta para o controle ditatorial, ocultação da miséria e silenciamento de contra-argumentos (OLIVEIRA, 2011). Muitos dos considerados loucos em épocas de lideranças mais rígidas e antidemocráticas eram simplesmente opositores mais convictos de ideias governamentais (muitos deles, artistas) ou desempregados, pobres e indigentes. Até os dias atuais, o doente mental 168


ainda é ligado à periculosidade e ao convívio impossível pela sociedade e até alguns profissionais do Direito e da saúde, que julgam a internação psiquiátrica o melhor caminho – não por ser o correto, mas por ser a escolha mais fácil. Para uma reinserção social dos loucos, daqueles que são vistos sem razão e utilidade por não seguirem os padrões sociais, não basta a abertura dos manicômios e a retirada de todos os pacientes de lá, mas sim, a abertura das nossas mentes e conceitos, para a conscientização de todo o preconceito excludente que envolve esses pacientes a fim de uma mudança não apenas estrutural do tratamento, mas ideológica da sociedade (WICKERT, 1998). Uma das pautas mais discutíveis que mescla o Direito com a psiquiatria é a da internação involuntária e compulsória. Há três tipos de internação amparados pela lei 10.216/2001: voluntária (com o consentimento do indivíduo); involuntária (sem o consentimento do indivíduo e a pedido de terceiro) e a compulsória (por determinação da Justiça). Em todas elas, o papel do médico é imprescindível, mas a atuação dos juízes de Direito e de terceiros – geralmente, da família – também ganham relevância, especialmente nos casos em que há perda da autonomia ou incapacidade de discernir no paciente. Cabe a todos os envolvidos, o conhecimento de toda a trajetória da psiquiatria e das formas alternativas de terapêutica, para que a facilidade não se sobreponha ao certo. É notória a evolução que o tratamento psiquiátrico conseguiu após muitas manifestações disseminadas em diversos países, em prol de melhorias não apenas nas relações interpessoais, mas na própria raiz da terapêutica: os manicômios. O tratamento institucional foi pivô de vários crimes contra a espécie humana, atos de terror e marginalização em pessoas que já se sentiam aterrorizadas e marginalizadas (VIZEU, 2005). O manicômio de Barbacena, Minas Gerais, talvez seja o maior exemplo da malignidade institucional vivida no Brasil. Comparado aos campos de concentração nazistas – não proporcionalmente, obviamente, mas teratogenicamente – os pacientes também eram encaminhados para Barbacena através de vagões de carga, passavam por um ―banho de desinfecção‖, tinham as cabeças raspadas, eram uniformizados e confiscavam sua humanidade. Diálogos sobre as formas que o Estado pode intervir e jurisdicionar casos psiquiátricos devem sempre existir diante de tamanha complexidade e possibilidades, mas há a necessidade de transformar palavras em atitudes, leis em práticas. A lei 10.216, sancionada no dia 6 de abril de 2001, foi um avanço importante para a saúde mental no Brasil, mas não pode ser vista como o fim de uma batalha que, pelo contrário, não tem previsão para término. Uma luta contra a institucionalização, o preconceito e a desassistência aos portadores de distúrbios mentais em todos os sentidos – da rede de saúde desarticulada ao profissional despreparado. A 169


articulação do sistema sanitário pode ser feita a partir de estruturas intermediárias que promovam a assistência ao paciente, como centros para realização de atividades diárias – alimentação e higiene –, unidades de recreação para atividades de lazer, ampliação do importante Centro de Apoio Psicossocial (CAPS) – para cuidados intensivos, semi-intensivos ou não intensivos aos pacientes com sofrimento psíquico ou dependência química –, em diversos locais no país, acompanhada da capacitação profissional e voluntária, e da parceria com os programas inerentes à Estratégia Saúde da Família (ESF). O ensino das escolas de saúde também representa uma fatia relevante nesse processo, pois muitos profissionais são formados sem o conhecimento da trajetória psiquiátrica e de todas as experiências – positivas ou negativas – já vivenciadas. Torna-se imprescindível a transmissão dos fatos históricos e uma preparação não voltada apenas aos grandes laboratórios e efeitos medicamentosos – um caminho bastante sedutor para os futuros profissionais, por ser mais fácil do que o manejo integral (orgânico, psicológico e social). É importante um equilíbrio e ação sempre somatória do laboratório neuro-endócrino-fisiológico, da semiologia psiquiátrica e do conhecimento antropológico para a continuidade das reformas. O desconhecimento das formas de tratamento em manicômios e também dos possíveis modos mais humanizados e não excludentes dos pacientes com transtornos mentais favorece para a passividade de grande parte da sociedade com relação a esse tema. Logo, quanto mais produções científicas forem realizadas a respeito desses processos e mecanismos que envolvem a psiquiatria, melhor compreendido será todo o seguimento de uma das ciências mais complexas e fascinantes da humanidade, que permitirá uma maior aceitação e participação popular aos processos de transição entre a psiquiatria tradicional, que exclui e limita, e a ―nova psiquiatria‖ (VENANCIO, 1993), que reinsere e possibilita.

REFERÊNCIAS

BARROS, D. M.; SERAFIM, A. P. Parâmetros legais para a internação involuntária no Brasil. Revista de Psiquiatria Clínica,São Paulo, v. 36, n. 4, 2009. BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 25 abr. 2014.

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COSTA, A. C. Psicanálise e saúde mental: a análise do sujeito psicótico na instituição psiquiátrica. São Luís: EDUFMA, 2009. DESVIAT, M. A reforma psiquiátrica. 1 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. OLIVEIRA, W. V. A fabricação da loucura: contracultura e antipsiquiatria. História, Ciência, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2011. SANCHES, D. R.; BERLINCK, M. T. Debilidade mental: o patinho feio da clínica psicanalítica. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, Dez. 2010. SHANSIS, F. Resgatando a história da psiquiatria. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 29, n. 2, mai./ago. 2007. SHORTER, E. A History of Psychiatry: From the Era of the Asylum to the Age of Prozac.Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1997. VENANCIO, A. T. A. A construção social da pessoa e a psiquiatria: do alienismo à "nova psiquiatria". Physis:Revista de Saúde Coletiva,Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 1993. VIZEU, F. A. instituição psiquiátrica moderna sob a perspectiva organizacional. História, Ciência, Saúde-Manguinhos,Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, jan./abr. 2005. WICKERT, L. F. Loucura e direito a alteridade. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, v. 18, n. 1, 1998.

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ATUAÇÃO JUDICIAL E O DIREITO À SAÚDE JUDICIAL PERFORMANCE AND THE RIGHT TO HEALTH Marianna Cavalcante de Aguiar1 Sumário: 1 Introdução. 2 A saúde como direito humano fundamental. 3 Os direitos sociais. 4 A saúde na Constituição de 1988. 5 Sistema único de saúde. 6 Entraves na concretização do direito à saúde. 7 Condutas estatais lesivas ao direito à saúde. 8 Princípio da separação dos poderes e discricionariedade administrativa. 9. Reserva do possível e restrição orçamentária. 10 Responsabilidade estatal. 11 Atuação judicial na concretização do direito à saúde. 12 Efeitos positivos. 13 Efeitos negativos. 14 Atuação judicial na Paraíba. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca analisar os efeitos da intervenção judicial na proteção do direito à saúde. Trata-se de tema abordado pelo Direito da Seguridade Social e pelo Direito Constitucional, tendo em vista que o direito à saúde e a sua efetividade é um assunto bastante discutido nos dias de hoje. O prestígio do tema se deve ao impacto das decisões judiciais no Estado e suas finanças, bem como na sociedade em geral. Tal direito encontra-se no grupo de direitos fundamentais de 2ª geração, os também chamados de direitos sociais. Nossa Constituição Federal de 1988 deu destaque a esses direitos quando os colocou em seu Título II, ―Dos Direitos e Garantias Fundamentais‖. Essa classificação torna-se essencial a luz do art. 5º, §1º da CF que dispõe: ―as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata‖. Entretanto, nosso Poder Público parece não admitir ainda a força normativa da Constituição Federal, já que muitas vezes ignora o preceito constitucional, afirmando que a norma do art. 196 da CF é programática, ou seja, para ter efetividade depende de norma infraconstitucional. Diante dessa situação, na qual muitas vezes as pessoas ficam à mercê da negativa do Estado em fornecer o tratamento adequado de saúde, busca-se analisar qual o papel do Judiciário em relação à proteção do direito à saúde e quais os efeitos das decisões judiciais para as partes envolvidas nos processos, bem como para a sociedade e o próprio Estado. Desse jeito, a primeira parte do trabalho se dedica a estudar os direitos fundamentais, em especial, os da 2ª geração, no qual se enquadra o direito à saúde. Ademais, analisa os dispositivos constitucionais que tratam do direito à saúde e discorre sobre as principais características do Sistema Único de Saúde (SUS). 1

Graduada em Direito pela UFPB; Graduanda em Administração pelo IFPB.

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Em seguida, são abordados os principais obstáculos à efetivação do direito à saúde. Na parte final, busca-se analisar a atuação judicial na efetivação do direito à saúde, além de expor decisões judiciais referentes a este tema, em particular, as do Tribunal de Justiça da Paraíba. Menciona-se também quais os efeitos positivos da interferência do Judiciário na saúde pública, assim como os problemas decorrentes dessa intervenção. Por fim, defende-se a relevância e utilidade desse tema, já que visa garantir o direito a uma vida digna e plena, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

2 A SAÚDE COMO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL

A Constituição Federal de 1988 abre espaço privilegiado para os direitos humanos fundamentais, enaltecendo dessa forma o ser humano e transformando-o no principal objetivo do Estado. Como ensinou Kant apud Salazar e Grou2, o homem deve ser considerado um fim em si mesmo, e é essa perspectiva que nossa Constituição abraça. Dessa maneira, em seu art. 1º coloca como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil: a dignidade da pessoa humana, ratificando a importância dada ao ser humano por nosso ordenamento jurídico. O direito à saúde é considerado um direito social, classificado ao lado do direito à educação, moradia, lazer etc. Enquanto que os direitos de 1ª geração são considerados negativos, os de 2ª geração são denominados positivos, porque dependem diretamente de ações do Estado para sua concretização. Assim, [...] o que distingue os direitos sociais dos direitos de defesa é, basicamente, o seu objeto: enquanto o objeto dos direitos de defesa é uma abstenção do Estado, ou seja, um non facere [...]; os direitos sociais têm por objeto um atuar permanente do Estado, ou seja, um facere, consistente numa prestação positiva de natureza material ou fática em benefício do indivíduo, para garantir-lhe o mínimo existencial [...]. (grifos do autor).3

É evidente que para analisar a temática da saúde, faz-se necessário estudar a dimensão na qual esse direito é agrupado, bem como sua condição de direito fundamental e efetividade. Lembre-se também do elo existente entre o direito à vida, a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde, sendo inconcebível estudar este último, sem fazer referência aos primeiros.

2

SALAZAR, Andrea Lazzarini; GROU, Karina Bozola. A defesa da saúde em juízo. São Paulo: Verbatim, 2009, p. 35. 3 CUNHA JÚNIOR, Dirleyda.Curso de direito constitucional. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 720.

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3 OS DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais surgem com o objetivo maior de reduzir as desigualdades sociais, tendo como postulados a justiça social, o princípio da solidariedade humana e o princípio da dignidade humana. A Revolução Industrial, em meados do século XIX, tinha como cenário um capitalismo sem limites, no qual o Estado estava totalmente alheio às desigualdades sociais. Nesse período, os trabalhadores sofriam grande opressão, trabalho esgotante e condições de vida subumanas, sendo submetidos a jornadas diárias de até 16 horas e ambientes sem nenhuma segurança ou higiene.4 Decididos a mudar essa realidade penosa, a classe operária passou a se organizar e lutar por melhores condições. Era necessário que o Estado garantisse outros direitos, além das liberdades públicas, nascendo assim o Estado Social.5 No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira a consagrar os direitos sociais, influenciada pela Constituição Mexicana de 1917, mas principalmente pela Constituição de Weimar de 1919. A partir de então, todas as Constituições Brasileiras abordaram os direitos sociais, sendo consagrados definitivamente como direitos fundamentais na Constituição de 1988. Desde já, ressalte-se o nobre papel da nossa atual CF que garantiu formalmente a fundamentalidade dos direitos sociais. Pode-se afirmar que ―[...] os direitos sociais são verdadeiros direitos fundamentais, com força normativa e vinculante, que investem os seus titulares de prerrogativas de exigir do Estado as prestações positivas indispensáveis à garantia do mínimo existencial” (grifo do autor).6 A doutrina alemã acredita que o mínimo existencial garante que o indivíduo possa levar uma vida de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o princípio do Estado Social de Direito. Assim, registre-se a ideia de Heinrich Schollerapud Ingo Wolfgang Sarlet: a dignidade da pessoa humana estará assegurada ―quando for possível uma existência que permita a plena fruição de direitos fundamentais, de modo especial, quando seja possível o pleno desenvolvimento da personalidade‖7. 4

ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a história: história geral e história do Brasil. 12. ed. São Paulo: Ática, 2003. 5 LIMA, George Marmelstein. Efetivação do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário. Brasília, 2003. Disponível em: http://www.georgemlima.xpg.com.br/monografia.pdf. Acesso em: 10 ago 2013. 6 CUNHA, op. cit., nota 2, p.722. 7 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais, o direito a uma vida digna (mínimo existencial) e o direito privado: apontamentos sobre a possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz; MELGARÉ, Plínio (orgs.). Dignidade da Pessoa Humana: fundamentos e critérios interpretativos. Malheiros Editores, 2010, p. 389.

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Portanto, chega-se à conclusão que o mínimo existencial deve ser garantido, independentemente de previsão constitucional, visto que esse direito deriva do próprio princípio da dignidade da pessoa humana (sendo inconcebível uma vida digna sem recursos mínimos para mantê-la).8 Para Luís Roberto Barroso o mínimo existencial pode ser definido como ―às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público‖.9 Conclui-se então que o fundamento para os direitos sociais é a vida em sociedade, além da cooperação e ajuda mútua, com a intervenção do Estado para minimizar as desigualdades e garantir a efetividade de tais direitos, através de prestações positivas.

4 A SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição da Organização Mundial da Saúde afirma que a ―saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.‖10É, portanto, um bem fundamental. A Constituição de 1988 foi a primeira a declarar a importância do direito à saúde, porquanto o colocou no Título II, denominado: Dos Direitos e Garantias Fundamentais, no qual o art. 6º declara expressamente: ―são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação (...)‖ (grifo nosso). Além disso, vem disposto no art. 7º, incisos IV e XXII que o saláriomínimo deve atender as necessidades básicas de uma família, inclusive a saúde e é direito do trabalhador redução de riscos no trabalho que possam prejudicar sua saúde. Conforme o art. 23, inciso II é competência de todos os entes federativos cuidar da saúde. Desse artigo já podemos destacar o caráter solidário existente entre os entes, quando o assunto é direito à saúde. Também estes possuem competência para legislar sobre a saúde, preceito retirado do art. 24, XII c/c art. 30 I e VII.

8

Idem ibidem. BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. 2008. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI52582,81042-Da+falta+de+efetividade+a+judicializacao+ excessiva+Direito+a+saude>. Acesso em: 27 ago 2013. 10 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição Da Organização Mundial Da Saúde. Disponível em: <http://www.direitos humanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-daSa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 02 jan 2014. 9

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Outro ponto a ser ressaltado na nossa Constituição a respeito desse tema, encontra-se no art. 34, VII que permite a intervenção federal para assegurar ―aplicação do mínimo exigido de receita resultante de impostos estaduais, [...] nas ações e serviços públicos de saúde‖. O Título VIII trata da Ordem Social, a qual possui como objetivo o bem-estar e a justiça social. O art. 194 caput traz a seguinte redação: ―a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social‖ (grifo nosso). Apenas no art. 196 da Constituição, encontra-se quatro princípios do direito à saúde. O primeiro deles, a universalidade, quando afirma que a saúde é direito de todos. Em seguida, a gratuidade, já que é dever do Estado garantir a proteção do direito à saúde, através de políticas públicas. Logo após, o acesso universal e igualitário.E por fim, a integralidade, porque a assistência dada pelo Estado deve ser integral/completa, assim, prevenção, tratamento e recuperação fazem parte do dever do Estado com o intuito de proteger o bem fundamental, a saúde. O art. 197 dispõe que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, e cabe ao Poder Público, através de lei, regulamentar, fiscalizar e controlar as atividades relacionadas à saúde por pessoa física ou jurídica de direito privado. No art. 199 a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, atuando de forma complementar ao Sistema Único de Saúde. Observa-se que o caráter da iniciativa privada nesse caso é residual/subsidiária, ressaltando as unidades públicas de atendimento, seguidas, apenas se necessário, da iniciativa privada. Outrossim, o gestor do SUS não possui poder discricionário ao escolher as instituições privadas que irão complementar a atividade dos SUS, visto que a norma constitucional afirma ter preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. Ainda sobre o mesmo artigo, o §3º veda a participação direta e até mesmo a indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no Brasil, salvo em casos previstos na lei. O art. 227 determina que é dever da sociedade e do Estado garantir à criança, ao adolescente e ao jovem, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros. Além disso, o art. 230 determina ser dever do Estado, sociedade e família amparar as pessoas idosas, assegurando sua dignidade, bem-estar e direito à vida. Essas normas constitucionais apenas confirmam a importância dada pelo Constituinte ao direito à saúde, consequentemente ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Tal

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direito não possui relevância apenas nacional, mas tem caráter supranacional, pois se trata de direito humano fundamental. As prestações não satisfeitas pelo Estado, faz com que seus destinatários recorram ao Judiciário a fim de concretizar seus direitos por meio da demanda judicial, de acordo com o art. 5º, XXXV da CF ―a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito‖. O grande desafio do Judiciário é proteger o direito à saúde e garantir sua efetividade, obedecendo às normas constitucionais e infraconstitucionais, sem ultrapassar os limites impostos à sua atividade jurisdicional.

5 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

A Constituição Federal faz referência ao Sistema Único de Saúde (SUS) em seus artigos 198 e 200, além de ser regulamentado por leis infraconstitucionais: Lei Orgânica da Saúde nº 8080/90 – trata da promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços de saúde – e Lei nº 8142/90, trata da participação da comunidade na gestão do SUS, bem como dos recursos financeiros nessa área. Ao longo do tempo, os direitos sociais, dentre eles o direito à saúde, sofreram resistência quanto à sua eficácia e efetividade. Tal problema foi uma preocupação para o constituinte, que por sua vez, procurou dar concretude às normas de direito à saúde, estabelecendo algumas disposições para atender esse objetivo, dentre elas, a criação do SUS. O art. 4º da Lei n° 8080/90 traz que o SUS é composto por ―ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público[...]‖. Então, quais são os objetivos desse sistema (SUS)? Identificar e divulgar os fatores condicionantes e determinantes da saúde; formular políticas de saúde destinadas a promover, nos campos econômico e social, a redução de doenças e outros agravos; assistir às pessoas por meio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, através de ações assistenciais e atividades preventivas11. Além disso, suas atribuições podem ser encontradas no art. 200 da CF e no art. 6º da Lei Orgânica da Saúde, as quais destacamos: controle e fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde; execução das ações de vigilância sanitária,

11

Art. 5º da Lei 8080/90.

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epidemiológica e as de saúde do trabalhador; ordenação da formação de recursos humanos na área de saúde; execução de políticas de saneamento básico; vigilância nutricional e orientação alimentar; entre outras. Lembre-se ainda que o art. 198 caput da CF traz a seguinte redação: ―as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único[...]‖ (grifo nosso). ―A regionalização, [...], é entendida como a distribuição espacial de serviços de saúde, organizados para atender à população de uma região‖. 12 Como exemplo, o Hospital Estadual de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, localizado na cidade de João Pessoa-PB, que atende na área de traumatologia, queimados e outros serviços de urgência e emergência a população dessa cidade e das microrregiões da Zona da Mata e do Brejo. No caso narrado, observa-se a organização da saúde por circunscrição territorial, sendo esta unidade de saúde referência para população das regiões já citadas. A expressão ―hierarquizada‖não indica uma ordem funcional, apenas supõe níveis distintos de complexidade de atenção integral à saúde, a fim de otimizar os recursos. São três os níveis de atenção: primário, pequena complexidade; secundário, complexidade intermediária; terciário, alta complexidade. A descentralização com direção única em cada esfera de governo permite que cada ente tenha um órgão responsável pela gestão da saúde. Na União, o Ministério da Saúde; nos Estados, Distrito Federal e Municípios, as Secretarias de Saúde ou órgão equivalente. Com relação a essa diretriz, defende-se muitas vezes o processo de municipalização, onde o Município teria como responsabilidade gerir os serviços de saúde, mesmo em relação a equipamentos e instituições de outros entes federados e da iniciativa privada. Pressupõe que o Município conheça de perto a realidade da sua população, o que facilitaria o atendimento às suas necessidades. Entretanto, cabe dizer que permanece a responsabilidade solidária de todos os entes públicos, pois o dever de assistência à saúde é competência comum. Outra diretriz do SUS é a assistência integral, ou seja, o sistema envolve todas as ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde das pessoas, porém traz como prioridade as atividades preventivas. Por fim, o art. 198, III da CF estabelece a participação da comunidade na gestão do SUS. A Lei nº 8142/90 regulamenta essa participação, permitindo a criação das instâncias colegiadas: Conferência de Saúde e Conselho de Saúde, em cada esfera de governo.

12

SALAZAR e GROU, op. cit., nota 1, p.46.

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O Sistema Único de Saúde foi criado pela Constituição de 1988 com a finalidade de assegurar o direto à saúde a todos os indivíduos, facilitando a operacionalização dos serviços de saúde. Essa foi uma excelente proposta do Constituinte que permitiu o acesso universal e igualitário a todos os cidadãos e dessa maneira garantiu também melhores condições de vida. Resta saber, o SUS está cumprindo sua missão? Ademais, os governantes estão colocando em prática políticas públicas que dão efetividade à saúde?

6 ENTRAVES NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Apesar de ser um direito fundamental constitucionalmente garantido, o direito à saúde enfrenta alguns obstáculos para sua efetivação. Esse tópico se dedica ao estudo desses obstáculos, trazendo exemplos de casos concretos, além de decisões judiciais e suas construções argumentativas.

7 CONDUTAS ESTATAIS LESIVAS AO DIREITO À SAÚDE.

Assegurar o direito à saúde ao povo brasileiro foi um importante passo dado pela nossa Constituição de 1988. No entanto, apesar de sua constitucionalização, existem ainda diversas formas do Estado violar tal direito, e por isso a crescente judicialização da saúde, a fim de corrigir determinados atos ou omissões do Executivo ou Legislativo que possam obstar a concretização desse direito. Se o Poder Público adota uma conduta que prejudique a saúde de uma coletividade, o depósito de resíduos sólidos, por exemplo, em local inapropriado, deve o Judiciário intervir caso seja acionado. Assim, pode-se citar o antigo lixão do Roger – hoje já desativado – na cidade de João Pessoa-PB como clara ofensa por parte do Poder Público ao direito à saúde. Antes de 2003, os resíduos sólidos da Grande João Pessoa eram jogados nesse espaço de 17 hectares, onde inclusive viviam várias famílias. Sobre os riscos à saúde nessa área, afirma o professor Gilson Barbosa Athayde Júnior: ―detectamos uma concentração intensa de metais pesados nessa área, como alumínio, chumbo e mercúrio. Os riscos podem provocar diversas doenças, desde problemas neurológicos, passando pelo câncer e outros problemas de saúde‖.13

13

MAGALHÃES, Marina. Resquícios do lixão. Jornal da Paraíba.Disponível em: <http://www.espacoecologiconoar.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=8813&Itemid=1>. Acesso em: 25 jan 2014.

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Outrossim, o exemplo acima citado configurava uma conduta ativa do Estado, resultando em uma violação ao direito à saúde e à vida daqueles moradores. Neste norte, o próprio Poder Público reconheceu sua falha e determinou a cessação do depósito de resíduos sólidos naquele local. Além disso, o Estado pode violar o direito à saúde através da edição de normas que dificultem o exercício desse direito ou mesmo que o protejam insuficientemente. Ocorreu isso quando Collor decidiu bloquear as cadernetas de poupanças dos cidadãos, fazendo com que muitos fossem ao Judiciário para conseguir a liberação dessas contas e assim utilizá-las em tratamentos de saúde.14 Quando as violações do Poder Público ao direito à saúde são decorrentes de condutas positivas, a resposta dada pelo Judiciário para correição destas é relativamente simples: determina a abstenção do Estado, isto é, que ele deixe de praticar o ato que está dificultando o exercício do direito à saúde. Todavia, pode-se dizer que o Judiciário enfrenta maior dificuldade quando constatado que a ofensa ao direito à saúde decorre de uma omissão estatal. A atuação judicial nesse caso é conflitante, pois o juiz enfrenta diversos desafios para dar uma resposta satisfatória ao caso, sem ultrapassar seus limites jurisdicionais. Assim, o Poder Judiciário exige uma prestação positiva por parte do Estado. Quanto à inércia estatal, destaca-se a omissão de editar normas que regulamentem o exercício do direito à saúde. Dessa forma os entes públicos utilizam em suas defesas o argumento de que a norma constitucional do art. 196 é programática, necessitando de regulamentação infraconstitucional para torná-la eficaz. Porém, tal norma tem aplicação imediata por se tratar de direito fundamental. Então, sua regulamentação apenas iria facilitar seu emprego e adequação à sociedade, isto é, não configura assim requisito essencial para sua aplicabilidade. A maioria dos Tribunais decide em favor das partes que pleiteiam algum tipo de prestação positiva em relação à saúde contra o Estado. A postura adotada pelos julgadores é digna de aplausos, mas observa-se que muitas decisões limitam-se a afirmar a fundamentalidade do direito à saúde e não enfrentam os obstáculos fáticos para a concretização de tal direito. Logo, defende-se uma maior consistência nas decisões, principalmente porque estão atreladas as finanças do Poder Público.15

14

LIMA, op. cit., nota 4, p. 55. LIMA, George Marmelstein. Efetivação do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário. Brasília, 2003. Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/monografia.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013 15

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Finalmente, ressalte-se que em determinadas ocasiões em vez do Estado agir em prol dos cidadãos, fornecendo a eles mecanismos de proteção, acaba por lesionar determinados direitos, assim ocorre com o direito à saúde.

8 PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

A separação de poderes e a discricionariedade administrativa aparecem muitas vezes como argumentos contrários a atuação do Poder Judiciário em demandas judiciais que exigem determinados comportamentos do Executivo ou do Legislativo. Quando o indivíduo não consegue certo medicamento ou procedimento médico na rede pública de saúde, recorre ao Judiciário para que este possa garantir seu tratamento o mais rápido possível. Ocorre que o ente público ao fazer sua defesa no processo afirma que o Poder Judiciário não pode intervir no âmbito de atuação do Executivo ou Legislativo, em respeito ao princípio da separação e harmonia entre os poderes e a discricionariedade administrativa. O princípio da separação de poderes foi consagrado em todas as Constituições brasileiras, a começar pela do Império de 1824, que adotava uma separação quadripartida. Já a Constituição de 1891 seguiu os ditames de Montesquieu, propondo uma divisão tríplice. A Constituição de 1934 estabeleceu a independência entre os poderes e previu em seu art. 3º, § 2º ―o cidadão investido na função de um deles não poderá exercer a de outro‖. A Constituição autoritária de 1937 não trouxe de forma expressa o dogma da separação de poderes. A Constituição de 1946, de 1967 e a de 1988 estabeleceram que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independes e harmônicos entre si.16 Vale ressaltar, que a melhor nomenclatura a ser utilizada é a de tripartição de funções, visto que o poder é uno e indivisível. Outrossim, cada órgão do Estado é responsável, predominantemente, por uma função, podendo ainda exercer de forma subsidiária a função de outro órgão. Assim, nossa Constituição de 1988 estabelece em seu art. 2º a independência e harmonia entre os poderes, ditando um sistema de ―freios e contrapesos‖, no qual ficou estabelecido a competência e os limites de cada poder. Todavia, os governantes defendem a ilegalidade do controle judicial das políticas públicas, cabendo aos administradores públicos a análise da conveniência e oportunidade de determinada conduta. Esse argumento é construído sobre o prisma da separação e harmonia

16

CUNHA, op. cit., nota 2.

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entre os poderes. Entretanto, o Judiciário não pode deixar de apreciar atos do Executivo ou mesmo do Legislativo que venham violar direitos fundamentais, e consequentemente nossa Constituição. A atuação do Poder Judiciário torna-se essencial a fim de conferir consistência aos dispositivos constitucionais que abrigam os direitos humanos. Outrossim, age como poder subsidiário, última alternativa para correição das falhas administrativas e legislativas relacionadas ao direito à vida e à saúde. A discricionariedade administrativa anda ao lado da separação de poderes, por isso são tratadas no mesmo tópico. Os atos discricionários são aqueles que o administrador analisa a conveniência e oportunidade de determinadas ações, estabelecendo qual a melhor forma, tempo e local para agir. Assim, alguns autores acreditam que o aspecto político desses atos não devem ser analisados pelo Judiciário, apenas seu aspecto legal.Contudo, o administrador não é livre para concretizar ou não direito fundamental, a omissão não é tolerada. Não cabe aqui o total desprezo pelas escolhas administrativas, o que se defende é a execução de políticas públicas eficientes, com capacidade de garantir o mínimo vital para seus indivíduos. A separação de poderes e a discricionariedade administrativa não podem ser barreiras à concretização dos direitos sociais. Ao contrário, a separação de poderes visa coibir o excesso de poder nas mãos de um só órgão, fazendo com que cada poder possa fiscalizar o outro e assim estabelecer um equilíbrio de forças. Além disso, a discricionariedade administrativa proporciona ao administrador certa maleabilidade na tomada de decisão, já que o ―engessamento‖ completo da atuação do Poder Público não permitiria que este se adaptasse rapidamente as mudanças sociais. Dessa maneira, tais argumentos são trazidos pela Constituição como instrumentos de proteção a determinados direitos, e por isso não devem ser usados para impedir a atuação judicial frente à inércia estatal que viole o direito à saúde, ou os demais direitos humanos.

9 RESERVA DO POSSÍVEL E RESTRIÇÃO ORÇAMENTÁRIA

O direito à saúde, por se enquadrar nos direitos prestacionais, tem sua efetividade condicionada a ações do Estado e a uma situação econômica relevante. Daí a reserva do

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possível ser entendida como a disponibilidade de recursos econômicos para as prestações do Estado. O conceito de reserva do possível foi criado em meados de 1970 pela doutrina e jurisprudência alemã, entendendo essas que a efetividade dos direitos sociais está condicionada à real presença de recursos públicos nos cofres do Estado. Tal teoria foi ―importada‖ pelo nosso país, utilizada pelos entes públicos para justificar suas omissões em relação à população e a garantia dos direitos sociais. Sabe-se que ao trazer teorias de outros países para nossa realidade, deve haver ao menos uma adaptação, pois estas vêm de bases culturais, econômicas e jurídicas totalmente diferentes das do Brasil. A Alemanha é um país desenvolvido, onde existe um padrão mínimo vital para sua população, realidade incompatível com a do Brasil, país em desenvolvimento. Por conseguinte, em um país que ainda não é capaz de garantir o mínimo vital para seu povo, privando-o muitas vezes de uma vida digna, não deve utilizar de maneira irrestrita a reserva do possível como óbice à concretude dos direitos sociais. A reserva do possível apresenta duas espécies: a fática e a jurídica. A fática se refere à inexistência de fato de recursos financeiros nos cofres públicos, enquanto que a jurídica corresponde a não autorização das despesas relacionadas à saúde no orçamento público.17 A falta de previsão orçamentária para despesas com a saúde, em meio à demanda judicial, é um dos principais argumentos utilizados pelos entes públicos, com a finalidade de se eximirem da responsabilidade descrita pela própria Constituição. Cabe falar que os princípios orçamentários são diretrizes para que o Estado desempenhe uma administração pública planejada e transparente, alocando seus recursos da melhor forma possível. Logo, deve o Estado fazer a previsão orçamentária dos gastos com os serviços de saúde, educação, moradia, etc. Ocorre que nem sempre o Estado faz essa previsão orçamentária, não podendo os indivíduos serem prejudicados pela inércia estatal, principalmente quando se trata de saúde. Outrossim, afirma o Supremo Tribunal Federal, por meio do Min. Celso de Mello: Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, "caput" e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas.18 17

SALAZAR e GROU, op. cit., nota 1. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo STF. Disponível <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/ informativo414.htm>. Acesso em: 07 jan de 2014. 18

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em:


Em relação à reserva do possível fática, sabe-se que não basta a mera afirmação do ente público sem que exista qualquer comprovação da falta de recursos econômicos nos cofres públicos. Vale salientar, o que ocorre no Brasil não é simplesmente a falta de recursos, mas o descompromisso dos governantes e a má gestão.Em 2008, o Banco Mundial (Bird) fez um estudo sobre o desempenho hospitalar brasileiro e concluiu que o sistema é ineficiente, gasta mal os recursos, encarecendo assim os custos hospitalares.19 Diante dessa situação, observa-se que um ponto essencial a ser enfrentado pelo Estado é a decisão sobre suas prioridades orçamentárias, isto é, em que investir? Lembre-se que o direito à vida e à saúde devem ser encarados como áreas prioritárias, pois se estas não forem inicialmente garantidas, como poderão as pessoas usufruírem dos demais direitos trazidos pela Constituição? Nessa direção, já houve julgados em que frente ao caso de omissão do Estado em garantir o direito à saúde do indivíduo, o juiz a quo determinou que os gastos com determinadas áreas fossem suspensos e aplicados prioritariamente na área de saúde. Um exemplo a ser citado é o do juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior da Vara Cível da Comarca de Currais Novos-RN que bloqueou os recursos do Rio Grande do Norte destinados à publicidade, e determinou que o dinheiro fosse usado na Saúde Pública, nesse caso a autora da ação precisava realizar um tratamento de câncer. O magistrado ainda determinou multa pessoal para governadora no valor de R$ 1 milhão, em caso de descumprimento da decisão – prazo de cinco dias para determinar a data e o local do tratamento – a ser depositado no Fundo Estadual de Saúde.20 Entretanto, os julgadores ainda divergem sobre esse tema. Observa-se abaixo parte da decisão do Agravo de Instrumento nº 2013.017525-9, sob a relatoria do Des. Cláudio Santos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Aliás, a decisão de 1º grau agravada assemelha-se a anteriormente aqui narrada. No que concerne à suspensão da publicidade do Governo, em cognição sumária, vislumbro ter havido excesso na decisão combatida [...]. O Poder Judiciário não pode – por impedimento em balizas constitucionais – se arvorar do poder-dever de melhorar a gestão dos serviços públicos essenciais,

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BANCO Mundial reprova hospitais brasileiros por ineficiência e má gestão. O Globo. Disponível em: <http://www.inovarh.ufba.br/noticias/121>. Acesso em: 07 jan 2014. 20 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Juiz suspende imediatamente todos os serviços de propaganda/publicidade do Estado. Disponível em: <http://www.tjrn.jus.br/ comunicacao/noticias/3492-juiz-suspende-imediatamente-todos-os-servicos-de-propagandapublicidade-doestado>. Acesso em: 10 jan 2014.

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assumindo a administração e o exercício de atribuições alheias, mas apenas corrigir eventuais ilegalidades ou desvios, repondo a paz social, na medida do possível. 21

Por fim, o Desembargador determinou que o Secretário de Saúde Estadual, no prazo de 15 (quinze) dias adotasse as medidas necessárias para realização da cirurgia pretendida pela parte. Porém, revogou a suspensão de todas as propagandas pagas pelo Estado do Rio Grande do Norte, bem como a multa pessoal cominada em caso de descumprimento.22 Ocorre que muitas vezes o Estado deixa de cumprir seu papel, e cabe ao Judiciário, quando procurado, assumir uma postura ativa a fim de assegurar os direitos fundamentais.

10 RESPONSABILIDADE ESTATAL

Ainda usada como alegação no meio judicial, a questão da responsabilidade estatal, ou seja, da competência dos entes federados gera confusão na concretização do direito à saúde. A Federação(art. 1º da CF) nada mais é que a divisão do poder político por mais de uma organização política, onde cada uma possui autonomia para se auto-organizar, autoadministrar, e competências distintas bem definidas na Carta Magna. Ademais, a característica principal a ser discutida nesse tópico é a repartição de competência, cujo princípio norteador é o da predominância de interesses. Destarte, cabe a União matérias de predominante interesse geral; aos Estados, assuntos de predominante interesse regional; e aos Municípios, matérias de interesse local. Aliás, competências ―são faculdades ou poderes de agir dos quais se servem as entidades federadas para tratar de temas que lhe dizem respeito e orientados para realização do bem comum‖23. Ainda, se dividem em competência legislativa – capacidade de elaborar suas próprias leis – e competência material, atribuição administrativa. Vale acrescentar, quando determinada competência material é estipulada para todos os entes federados, trata-se de competência comum (art. 23 da CF), a qual se aplica a responsabilidade solidária para seu cumprimento. Já em relação às competências legislativas simultâneas aos entes federados, essas são denominadas de concorrentes (art. 24 da CF). O tema saúde aparece em nossa Constituição quando se faz referência às competências materiais, mas também nas competências legislativas. O art. 23 afirma ser competência 21

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Agravo de instrumento n° 2013.017525-9. Relator: Des. Cláudio Santos. Natal, 2013. Disponível em: < http://www.tjrn.jus.br/comunicacao/ noticias/4324decisao-determina-realizacao-de-cirurgia-e-restabelece-propaganda-do-governo>. Acesso em: 11 jan 2014. 22 Idem ibidem. 23 CUNHA, op. cit., nota 2, p.862.

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comum dos entes federativos ―cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência‖ (II); e o art. 24 dispõe que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre ―previdência social, proteção e defesa da saúde‖ (XII). Os comandos constitucionais são claros ao admitir à responsabilidade conjunta dos entes federativos quando se trata da saúde. Desse jeito, o cidadão ao demandar judicialmente poderá acionar qualquer dos entes, já que são responsáveis solidários pela prestação da saúde. Apesar da jurisprudência pacífica a respeito da responsabilidade solidária entre os entes federativos na promoção da saúde, a justificativa da irresponsabilidade estatal é bastante usada na contestação dos processos judiciais sobre saúde. Destarte, os entes públicos acabam por passar a responsabilidade uns para os outros, na tentativa de evadir-se. Muito embora todos os entes federativos sejam responsáveis pela saúde, o sistema nacional segue uma lógica. Enquanto a União teria suas atividades mais voltadas aos aspectos normativos, os Estados e principalmente os Municípios seriam prioritariamente responsáveis pelas funções de execução e implementação dos serviços de saúde. Isso ocorre devido ao maior conhecimento obtido pelos governos locais a respeito das reais necessidades de sua população. À vista disso, um ente federativo pode até cobrar do outro uma compensação por determinada prestação de saúde que ultrapasse os limites de sua esfera. No entanto, nunca deverá alegar irresponsabilidade quando se trata de saúde.

11 ATUAÇÃO JUDICIAL NA CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

O processo de judicialização da saúde é a possibilidade de buscar a efetividade do direito à saúde por meio do Poder Judiciário. Observa-se um alto número de demandas em relação à saúde, sendo constatado que sua prioridade é muitas vezes ―esquecida‖ pelos entes públicos. Desse modo, o acesso ao Judiciário passa a ser um caminho eficiente para a concretização do direito à saúde. A crescente nas demandas de saúde ocorre devido às falhas administrativas existentes que impedem a efetivação de tal direito. Então, quando as prestações deixam de ser satisfeitas pelo Estado, cabe ao Judiciário, quando procurado, intervir para dar efetividade aos preceitos fundamentais da Constituição Federal. Dessa maneira,os tribunais estão conseguindo impor uma série de obrigações ao Poder Público.

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Cabe aos três Poderes realizar da melhor forma possível o direito à saúde e à vida, contudo é papel do Judiciário resolver os conflitos decorrentes da má aplicação dos direitos sociais, interpretando as leis conforme as normas constitucionais. Infelizmente, os que mais precisam do acesso ao Judiciário são os que menos o procuram, devido à falta de consciência de seus direitos, de fé na instituição, e por fim, à falta de recursos financeiros. Sem Judiciário não há concretização de direitos fundamentais, ficando estabelecido o seguinte dilema: quem procura o Judiciário, não necessita tanto de sua ajuda, enquanto que quem mais necessita não tem oportunidade de acioná-lo.24 Vale lembrar que apesar da importância que a justiça tem na concretização dos direitos fundamentais, o excesso de judicialização torna ineficiente a melhoria das prestações sociais, visto que atendem apenas as necessidades individuais, isto é, o Judiciário socorre quem o procura. Em suma, na sociedade atual, para que o direito à saúde seja efetivado exige-se a ampla participação do legislador, administrador, juiz e cidadão para juntos desenvolverem políticas suficientes com objetivo de preservar, manter e recuperar a saúde.

12 EFEITOS POSITIVOS

O efeito positivo da intervenção judicial em demandas envolvendo o direito à saúde é a sua própria concretização. O caso emblemático que evidencia a importância da participação do Judiciário na proteção do direito à saúde refere-se ao coquetel da AIDS. As políticas públicas brasileiras ligadas ao combate e prevenção do vírus HIV são reconhecidas e premiadas em nível internacional. Entretanto, o que muitos não sabem é que o desenvolvimento desse programa ocorreu devido ao Poder Judiciário e a sua atuação.25 Na década de 90, os juízes de 1º grau começaram a reconhecer o direito dos portadores do vírus HIV de receberem a medicação para tratamento da doença pelos órgãos públicos. Após a consolidação da jurisprudência a respeito desse tema, em 1996 foi publicada a lei nº 9313 que dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos para o combate da AIDS.26 Além disso, o mesmo fundamento utilizado para a concessão do tratamento a aidéticos está sendo usado para o tratamento de outras doenças. Dessa forma, pessoas com tuberculose, 24

LIMA, George M. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005. Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013. 25 LIMA, George M. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005. Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013. 26 Idem ibidem.

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malária, câncer, hipertensão, diabetes etc. quando não assistidas de forma correta pelo Poder Público podem e devem procurar o Judiciário a fim de garantir um tratamento digno a sua mazela. Outrossim, caso recente ocorrido já neste ano de 2014 refere-se ao decreto de calamidade pública na saúde dado pelo município de Natal-RN. As unidades de saúde encontravam-se superlotadas e com poucos profissionais da área para realizar atendimento dos pacientes, inclusive algumas foram fechadas por falta de estrutura.27 Para piorar a situação, foram suspensas cirurgias cardiológicas no único hospital do estado que fazia atendimento às crianças. Em meio ao desespero, a Associação Amigos do Coração da Criança pediu a intervenção do Judiciário e conseguiu uma resposta positiva a fim de resguardar a vida das crianças cardiopatas. Assim afirmou Madson Vidal, presidente da associação: Os recém-nascidos que estavam dentro dos hospitais públicos, eles não estavam conseguindo tratamento fora do Rio Grande do Norte. Então, através de medidas judiciais, a gente tem encaminhado essas crianças para São Paulo, com todo o custo de responsabilidade do estado.28

O que seria dessas crianças sem a atuação judicial? Certamente nem todas teriam chances de buscar tratamento fora do estado do Rio Grande do Norte. Ademais, daqui que o hospital voltasse a realizar as cirurgias (suspensas devido a uma dívida de mais de um milhão de reais do município), muitas não sobreviveriam à espera. Em razão disso, é notório que o Judiciário tornou-se a última alternativa para que pessoas carentes e doentes pudessem fazer seu tratamento de saúde, podendo ter sua vida prorrogada em razão deste, com qualidade, bem como assegurada a sua dignidade.

13 EFEITOS NEGATIVOS

Como visto no item anterior, um Judiciário atuante é essencial em um Estado Democrático de Direito, pois permite que os cidadãos possam usufruir plenamente de seus direitos garantidos constitucionalmente. Contudo, o excesso de judicialização das questões 27

DECRETO de calamidade chega ao fim, mas caos na saúde de Natal continua. Bom Dia Brasil. 2014. Disponível em: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2014/01/decreto-de-calamidade-chega-ao-fim-mascaos-na-saude-de-natal-continua.html>. Acesso em: 04 fev 2014. 28 Idem ibidem.

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sociais e à procura desenfreada pelas soluções impostas pelo Judiciário nem sempre trazem saldos positivos à coletividade. Um problema enfrentado pelos juízes tem relação com o caráter de urgência dessas decisões. A prestação muitas vezes precisa ser imediata, devido à condição que se encontra o demandante, o que obriga o magistrado julgar em sede de liminar. A pressa se torna uma grande inimiga da melhor decisão, inclusive porque o magistrado não possui conhecimento técnico na área de saúde. Isso pode prejudicar o paciente ou mesmo a coletividade. Um exemplo real refere-se às liminares concedidas por juízes e tribunais para o tratamento da retinose pigmentar realizado em Cuba às custas do Poder Público brasileiro. Entretanto, depois de certo tempo o Superior Tribunal de Justiça não permitiu mais que o procedimento médico fosse realizado em Cuba, alegando: (I) não haver certeza na eficácia do tratamento, o qual trazia inclusive riscos à visão dos pacientes; (II) e existir tratamento para doença aqui mesmo no Brasil, o que reduzia os custos para Administração Pública.29 Note-se que caso a concessão de liminares deferindo a realização do procedimento médico em Cuba tivesse continuado, haveria maiores prejuízos tanto para os pacientes – devido aos riscos existentes em tratamentos experimentais – quanto para coletividade que estaria sacrificada, devido aos altos custos arcados pelo Poder Público. Outro problema a ser considerado é o risco da ―discriminação judicial‖, isto é, a exclusão dos que mais precisam da intervenção judicial. Ocorre que a população de maior poder aquisitivo é, em sua maioria, que está sendo beneficiada pelo Poder Judiciário, com o chamado tratamento privilegiado. Dessa forma, ―[...] decisões judiciais acabam por se transformar, involuntariamente, em veículos de uma distribuição de renda muito pouco equitativa no âmbito da sociedade brasileira [...]‖30. A priori, com base no princípio da isonomia, o Judiciário deveria ter mais atenção com os que não possuem poder econômico para realizar o tratamento médico pleiteado. Assim, o que se quer dar ênfase é que como a prestação de saúde pública é limitada, por insuficiência de recursos e profissionais da área, é injusto que pessoas que possam pagar perfeitamente por um bom tratamento de saúde particular, sem interferir na subsistência de sua família, ocupe o lugar de outra que não possui os mesmos recursos nem as mesmas oportunidades. Outro efeito negativo da judicialização da saúde é o estabelecimento de uma falsa crença, no qual as pessoas acreditam que a única forma de conseguir alguma prestação na área 29

LIMA, George M. Efetivação judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais. Fortaleza, 2005. Disponível em: <http://www.georgemlima.xpg.com.br/dissertacao.pdf>. Acesso em: 10 ago 2013. 30 BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2008, p. 307.

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da saúde pública é através do Judiciário. Fica estabelecido um ciclo vicioso, onde a autoridade pública deixa de cumprir espontaneamente seu dever, à espera da ordem do magistrado. Ademais, o excesso de judicialização dá brecha para formação de conluios criminosos entre laboratórios, médicos e advogados. Então, a indicação de certo medicamento no processo pode ser apenas para favorecer financeiramente determinada indústria farmacêutica, usando a demanda para burlar leis e procedimentos administrativos, como a licitação. Indiretamente, estas demandas individuais fomentam um conjunto de agentes interessados, como a indústria farmacêutica, fornecedores, distribuidores e vendedores de medicamentos e material médico, profissionais da área da saúde, e outros. É visivelmente comum a prescrição sazonal de determinados medicamentos, em detrimento de outros que, contendo os mesmos princípios ativos, seriam suficientes ao tratamento de determinadas enfermidades.31

Ainda, diversos aspectos negativos do ativismo judicial podem ser destacados, tais como: as dificuldades operacionais para execução das ordens judiciais (licitação, planejamento, etc.); transferência de poderes decisórios do eixo Legislativo-Executivo para o Poder judiciário (enfraquecimento dos poderes eleitos); anulações frequentes pelo Judiciário de ações de outros poderes (decisões políticas via tribunais); e exclusivismo moral do Judiciário. Ao analisar todos os aspectos apresentados, deve-se refletir: a atuação judicial no direito à saúde traz mais vantagens ou desvantagens? A resposta não é simples, nem mesmo única, por isso cabe ao magistrado diante do caso concreto julgar observando quais os efeitos de determinada decisão para as partes e para coletividade, para que com prudência e clareza possa resolver o conflito que lhe foi apresentado.

14 ATUAÇÃO JUDICIAL NA PARAÍBA

A realidade da Paraíba não diverge muito da realidade dos demais estados brasileiros, isto é, diversos paraibanos sofrem com a má prestação do serviço público de saúde e com a incerteza de que suas pretensões serão de fato atendidas. Dessa forma, este tópico faz uma 31

CARVALHO, Leonardo Arquimimo de; CARVALHO, Luciana Jordão da Motta Amiliato de. Riscos da superlitigação no direito à saúde: custos sociais e soluções cooperativas. In Revista da Defensoria do Estado de São Paulo. Vol1. 2008, p. 240. Disponível em: < http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=3&sqi=2&ved=0CDcQFjAC &url=http%3A%2F%2Fwww.defensoria.sp.gov.br%2Fdpesp%2Frepositorio%2F20%2Fdocumentos%2Foutros %2FRevista%2520n%25C2%25BA%25201%2520Volume%25201.pdf&ei=CvKUrPGE5C_kQeTtIDACQ&usg=AFQjCNFkdj0-sjbVpg-iPUzfnSmmswltPQ>. Acesso em: 04 fev 2014.

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análise das decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça da Paraíba nos casos em quem os demandantes buscam a proteção do seu direito à saúde. Na pesquisa realizada, verifica-se que nessas demandas, as partes vêm ao juízo requerer medicamentos, realização de exames médicos; procedimentos cirúrgicos; internações; fraldas descartáveis; suplementos alimentares, sendo que entre estes a maioria dos processos referem-se ao requerimento de medicamentos. Além disso, observa-se que não só o Estado da Paraíba é acionado para executar políticas públicas na área da saúde, mas também os municípios são colocados como legitimados passivos dessas demandas. Ocorre que nenhum ente quer de fato assumir essa responsabilidade e dentre as principais preliminares de defesas levantadas por eles estão: a ilegitimidade passiva ad causame o chamamento ao processo dos demais entes, sendo sempre rejeitadas pelo Tribunal diante da responsabilidade solidária dos entes federados. Em outras palavras, a parte pode exigir de qualquer um deles o cumprimento da prestação de saúde. PRELIMINARES. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO. CHAMAMENTO AO PROCESSO DA UNIÃO E DO MUNICÍPIO DE CAMPINA GRANDE. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL PARA A ANÁLISE DA INCLUSÃO DO ENTE FEDERAL NA DEMANDA. SERVIÇO DE SAÚDE. DIREITO FUNDAMENTAL. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA. IMPOSIÇÃO CONSTITUCIONAL A TODOS OS ENTES FEDERATIVOS. POSSIBILIDADE DE INDICAÇÃO DE QUALQUER UM DELES. REJEIÇÃO DAS QUESTÕES PREAMBULARES. - As ações e serviços públicos de saúde competem, de forma solidária, à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Logo, não há que se falar em ilegitimidade passiva da Unidade da Federação[...]. Tratando-se de responsabilidade solidária, a parte necessitada não é obrigada a dirigir seu pleito a todos os entes da federação, podendo direcioná-lo àquele que lhe convier. - Sendo o Estado parte legítima para figurar, sozinho, no pólo passivo da demanda, não há que se falar no chamamento dos outros entes federados. [...] (grifos nossos).32

Outro ponto relevante a ser mencionado referente às decisões do TJPB é a possibilidade do ente federado, condenado a fornecer algum medicamento ou procedimento médico à parte autora, substituir o remédio por similar (genérico) ou por outro procedimento menos oneroso ao Estado, desde que não prejudique a saúde do (a) paciente e tenha a mesma eficácia daquele que foi pedido na petição. Isso já demostra que o Judiciário está preocupado com as consequências das suas decisões no orçamento do Estado, e de forma coerente busca solucionar esse conflito sem sobrecarregar financeiramente o legitimado passivo da demanda. Contudo, ainda é possível

32

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÌBA. Processo 00120110162227001. Relator: Des. José Ricardo Porto. Órgão julgador: Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível em: <http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200824&p=direito e saúde e e chamamento e processo e união>. Acesso em: 10 fev 2014.

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identificar algumas divergências em relação à substituição dos medicamentos. Lembre-se que em casos mais graves, devido à fragilidade do paciente, é desaconselhável a substituição dos medicamentos ou qualquer outro procedimento. Observe-se a ementa: AGRAVO INTERNO MANDADO DE SEGURANÇA FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO IRRESIGNAÇÃO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE SUBSTITUIÇÃO DO MEDICAMENTO PLEITEADO POR GENÉRICO OU SIMILAR QUE PRODUZA 0 MESMO EFEITO POSSIBILIDADE PROVIMENTO PARCIAL AO AGRAVO. _Assim, ao Estado deve ser garantida a possibilidade de substituir o medicamento por genérico, de mesmo princípio ativo; ou por outro que o Estado já forneça, desde que autorizado pelo médico e não comprometa o tratamento da autora. (grifos nossos).33

Ainda, é comum nos processos o pedido, feito pelo ente público, de realização de perícia por médico conveniado ao SUS no (a) paciente, para que determine com exatidão qual pretensão deverá ser fornecida pelo Estado. Entretanto, esse requerimento vem sempre sendo negado, pois o julgador acha desnecessária a perícia, já que a parte acosta aos autos laudos médicos que comprovam sua situação. ―A declaração firmada por médico particular constitui prova suficiente para atestar a enfermidade e o tratamento adequado para o paciente, mostrando-se desnecessária a realização de perícia para averiguar a condição clínica da promovente.‖34 Outrossim, devido a essa negativa o ente público recorre da decisão, alegando violação aos princípios da ampla defesa e do devido processo legal. Porém, o Tribunal não conhece essa violação, e afirma a autoridade do juiz a quo de julgar antecipadamente a lide quando não há necessidade da produção de provas na audiência (art. 330 CPC), já que a parte acosta o laudo médico à petição inicial. Ademais, há decisões e acórdãos no TJPB que determinam o bloqueio de valores para a realização da ordem judicial que assegura o direito à vida e à saúde do (a) demandante, frente à desídia do Estado. Nota-se que esse tipo de ordem é dada nos casos mais graves e mesmo assim o Poder Público permanece indiferente. Dessa forma, o julgador determina que se oficie o Banco para que efetue o bloqueio do valor correspondente ao tratamento médico requerido na conta do promovido, e após a confirmação do bloqueio realize a transferência 33

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Processo 00120120003056001. Relator: Des. Saulo Henriques de Sá e Benevides. Órgão Julgador: 2ª Seção Especializada Cível. João Pessoa, 2013. Disponível em: <http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=145023&p=direito e saúde e substituição e medicamento>. Acesso em: 10 fev 2014. 34 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA PARAÍBA. Processo 00120120077050001. Relator: Des. João Alves da Silva. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Disponível em: <http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200934&p=direito e saúde e medicamento e perícia>. Acesso em: 10 fev 2014.

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dos valores para a conta informada pelo (a) demandante. Após o prazo estabelecido pelo julgador, o autor (a) da demanda deve comprovar através de notas fiscais e recibos que àquele dinheiro foi destinado ao cumprimento da decisão judicial. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONCESSÃO DE LIMINAR. REALIZAÇÃO DE CIRURGIA PELO ESTADO DA PARAÍBA. DESCUMPRIMENTO DA DECISÃO JUDICIAL. BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS PARA A EFETIVAÇÃO DO PROCEDIMENTO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E DESTA CORTE. MANUTENÇÃO DA MEDIDA DE URGÊNCIA. NEGATIVA DE SEGUIMENTO À IRRESIGNAÇÃO. [...] (grifos nossos). 35

É evidente que as decisões do TJPB são semelhantes às dos demais tribunais do país, já que sobre esse tema existem algumas questões pacificadas. Pode-se citar: a responsabilidade solidária de todos os entes da federação (legitimidade passiva concorrente); medicamentos fornecidos devem ter registro na ANVISA (excluindo, de início, os experimentais); obrigação do Poder Público de implementar políticas públicas já regulamentadas; entre outras. Por fim, vale salientar que o apresentado nesse tópico refere-se às questões gerais, encontradas na maior parte dos processos que envolvem o direito à saúde, por isso os apontamentos não se esgotam aqui, sendo distintos a depender do caso concreto em análise.

CONCLUSÃO

Nosso Constituinte destacou a importância dos direitos sociais quando os posicionou no Título II da CF que trata especificamente dos direitos fundamentais. Com tais direitos, as normas constitucionais buscam melhorar a qualidade de vida dos cidadãos brasileiros, além de garantir o pleno desenvolvimento humano. Dentre os direitos sociais, destaca-se em especial o direito à saúde intimamente ligado ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. O constituinte se preocupou de tal forma com o direito à saúde que criou o SUS com a intenção de dar efetividade a esse direito. Porém, nota-se que esse sistema não está sendo capaz de suprir as necessidades da população no que diz respeito às prestações sociais de saúde; assim, somos ―reféns‖ do

35

Idem. Processo 20020120902693002. Relator: Des. José Ricardo Porto. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Disponível em: < http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia/ Detalhe.aspx?id=200801&p=direito e saúde e bloqueio e valores e medicamentos>. Acesso em: 10 fev 2014.

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descaso dos governantes que não implementam as políticas públicas de saúde necessárias ao bom funcionamento do SUS. Neste cenário, no qual é possível detectar falhas do Poder Público na materialização do direito à saúde, o Judiciário vem como Poder subsidiário garantir o cumprimento dos preceitos constitucionais, velando assim pela supremacia de nossa Carta Magna. O direito à saúde para ser materializado precisa vencer obstáculos, alguns destes utilizados nas demandas judiciais como argumentos contrários a concretização desse direito. O primeiro que podemos citar, refere-se às ações e omissões lesivas do Estado que prejudicam a efetivação de tal direito. O Poder Público pode através de uma ação violar o direito à saúde, intervindo o Judiciário para que determine a cessação da conduta lesiva. Contudo, encontra o julgador maior dificuldade quando frente a uma omissão estatal precisa determinar que o Poder Público adote alguma medida para tornar ―concreto‖ aquele direito discutido nos autos, pois a prestação positiva requer recursos financeiros para sua realização. Frente a esse problema, os entes federados argumentam não ser razoável a realização de algum procedimento médico ou mesmo o fornecimento de certo medicamento, visto que a soma de dinheiro utilizado num tratamento individual (no do demandante) poderia ajudar toda a coletividade em outros procedimentos médicos. Além disso, alegam que deve existir previsão orçamentária para essa nova despesa. Ocorre que a reserva do possível deve ser cuidadosamente aplicada à realidade brasileira, visto que não pode o Estado negar um direito fundamental ao cidadão por considerá-lo custoso. Aliás, a meu ver, o direito à saúde deve ser garantido prioritariamente já que não existe possibilidade do ser humano usufruir de outros direitos se perder o seus bens mais essenciais, quais sejam, a saúde e a vida. Outrossim, acho válido, se o sistema de saúde não está sendo perfeitamente atendido e é mal administrado por falta de recursos financeiros, que o juiz ordene a aplicação de recursos de outras áreas de menor importância (ex.: festas populares) para a saúde. Já o princípio da separação de poderessurge com a intenção de equilibrar os três poderes sendo ferramenta para assegurar a aplicação das normas constitucionais e dessa forma garantir também a aplicação dos direitos fundamentais. Não pode tal princípio trabalhar contra sua própria essência, qual seja a de colaborar com a concretização dos direitos fundamentais. Ademais, a discricionariedade administrativa não pode ser um óbice à concretização de tal direito, o Judiciário não deve ―fechar os olhos‖ para as más escolhas dos administradores públicos.

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Observa-se ainda que nenhum ente federado invoca para si a responsabilidade de implementar políticas públicas relacionadas à saúde. Ao contrário, quando acionados judicialmente buscam ―empurrar‖ uns para os outros essa responsabilidade. Bem fez o constituinte que devido à importância do tema determinou que a responsabilidade de proteger o direito à saúde é solidária de todos os entes, não havendodesculpas para as omissões do Poder Público. Sabe-se que a atuação judicial traz efeitos positivos para coletividade, porém essa intervenção não se dá de forma perfeita, trazendo também efeitos negativos. O que deve ser feito é maximizar os efeitos positivos dessas decisões, bem como arranjar mecanismos para anular os efeitos negativos decorrentes delas. Dessa forma, pode-se afirmar que o efeito positivo da atuação judicial é a própria materialização do direito à saúde, colocando o bem-estar do ser humano como principal objetivo do Estado. Ocorre que não há simplicidade quando nos referimos a esse tema. Inúmeros desafios devem ser enfrentados pelos juízes, que atentos à situação escolhem a melhor maneira de se garantir tal direito sem onerar excessivamente o Poder Público. Assim, defende-se aqui a criação de comissões técnicas formadas por profissionais de saúde para auxiliar a tomada de decisão do julgador, que por não ter conhecimento especializado na área de saúde acaba, muitas vezes, se ―curvando‖ a vontade das partes e de seus advogados sem saber se a ordem judicial proferida foi a melhor solução ao caso concreto. Lembre-se, o Judiciário só deve ser procurado como última alternativa para garantir um direito fundamental, logo, acredita-se que uma parceria entre as Defensorias Públicas e as Secretarias de Saúde reduziria ajudicialização da saúde resolvendo os conflitos extrajudicialmente, sem reduzir, no entanto, a garantia desse direito social. Ressalte-se também que por existir limitações financeiras para executar certas ações de saúde, deve-se priorizar algumas – as preventivas, por exemplo – no sentido de alcançar toda população e nos casos das prestações de saúde excessivamente onerosas, deve o juiz com cautela determinar que a parte apresente a sua impossibilidade de arcar com o tratamento de saúde. Na verdade, o correto seria que o Poder Público atendesse as necessidades de todos quando o assunto é saúde, entretanto não é o que acontece nos dias de hoje. Se o Estado muitas vezes se furta de fornecer os mais básicos serviços de saúde a uma população, alegando falta de recursos financeiros e de profissionais na área, o que falar então das 195


prestações mais caras? Não se defende aqui a negativa da concretização do direito à saúde, porém devido às limitações que hoje enfrentamos, deve o Estado priorizar a atenção aos mais necessitados, àqueles que não possuem nenhuma outra alternativa ou esperança que não seja apelar para boa vontade dos governantes. Dessa forma, busca-se aplicar a igualdade material, isto é, igualar desigualando, fornecendo oportunidades àqueles que jamais as tiveram. Conclui-se que a judicialização é instrumento essencial para concretização do direito à saúde frente às omissões do Poder Público, sendo o Poder Judiciário órgão de proteção à Constituição Federal. Em outras palavras, a intervenção do Judiciário gera externalidade positiva na proteção do direito à saúde, tendo em vista que torna-se muitas vezes última alternativa para revitalizar tal direito.

REFERÊNCIAS

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______. Processo 00120120003056001. Relator: Des. Saulo Henriques de Sá e Benevides. Órgão Julgador: 2ª Seção Especializada Cível. João Pessoa, 2013. Disponível em: < http://jurisprudencia.tjpb.jus.br/jurisprudencia /Detalhe.aspx?id=145023&p=direito e saúde e substituição e medicamento>. Acesso em: 10 fev 2014. ______. Processo 00120120077050001. Relator: Des. João Alves da Silva. Órgão julgador: Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível em: <http://jurisprudencia .tjpb.jus.br/jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200934&p=direito e saúde e medicamento e perícia>. Acesso em: 10 fev 2014. ______. Processo 20020120902693002. Relator: Des. José Ricardo Porto. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. João Pessoa, 2013. Disponível em: < http://jurisprudencia. tjpb.jus.br/ jurisprudencia/Detalhe.aspx?id=200801&p=direito e saúde e bloqueio e valores e medicamentos>. Acesso em: 10 fev 2014. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO NORTE. Agravo de instrumento n° 2013.017525-9. Relator: Des. Cláudio Santos. Natal, 2013. Disponível em: < http://www.tjrn.jus.br/comunicacao/noticias/4324-decisao-determina-realizacao-decirurgia-e-restabelece-propaganda-do-governo >. Acesso em: 11 jan 2014. ______. Juiz suspende imediatamente todos os serviços de propaganda/publicidade do Estado. Disponível em: <http://www.tjrn.jus.br/ comunicacao/noticias/3492-juiz-suspendeimediatamente-todos-os-servicos-de-propagandapublicidade-do-estado>. Acesso em: 10 jan 2014.

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CONSECUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: ABUSIVIDADES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR E ENTRAVES NO ACESSO À JUSTIÇA Rafael Duarte Lins

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Sumário: 1 Introdução. 2 O direito do consumidor como paradigma. 3 Serviços públicos. 3.1 Serviços públicos essenciais: continuidade. 4 Responsabilidade civil dos médicos e das empresas de saúde suplementar. 5 Responsabilidade estatal relativamente ao acesso à justiça. 6 Abusividades nos serviços de saúde suplementar. 7 Contratos de consumo. 7.1 Cláusulas abusivas. 8 A ANS e sua competência. 9 Algumas práticas abusivas nos contratos de planos de saúde. 10 Algumas cláusulas abusivas nos contratos de planos de saúde. 11 Implicações das abusividades e proteção do consumidor. 12 O problema da morosidade jurisdicional. 13 O problema da assistência jurídica gratuira. 14 O uso da liminar na defesa do direito à vida e à saúde. 15 A "indústria de liminares". Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO Mesmo sob aégide da Constituição Federal de 1988, a qual reflete seus efeitos normativos e principiológicos defronte a todas as demais normas infraconstitucionais, bem como ainda diante da vigência do Código de Defesa do Consumidor, houvera tempos em que os planos de saúde não eram regulados de forma cristalina e justa, perpetuando, então, imbróglios de todas as ordens àqueles que desses serviços necessitassem. Com o advento de legislação especial regulando a questão, a saber, a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, denominada de Lei dos Planos de Saúde, houve certos avanços, contudo, ainda pairavam dúvidas quanto a sua aplicabilidade nos contratos anteriores a sua publicação e vigência, o que acabou por gerais ainda mais problemas para os consumidores desses serviços.Atualmente, alguns desses problemas são menos predominantes. Por outro lado, restam outras adversidades pelas quais os consumidores têm de enfrentar, os quais são abordados do decurso do presente estudo. Nessa senda, a presente análise científica estuda as implicações jurídicas decorrentes das práticas e cláusulas abusivas nos contratos de saúde suplementar, tais como, a não cobertura de procedimentos considerados essenciais, a limitação ao tempo de internação do paciente, a dificuldade da prestação eficiente do serviço em caso de urgência, dentre outros atos que infringem os direitos básicos do consumidor.No viés especificamente constitucional, o tema averigua os direitos fundamentais à saúde e à vidadigna diante dos problemas enfrentados pelos consumidores de serviços de saúde suplementar. 1

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

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Desta feita, há a necessidade de se saber em que medida e de que forma os direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor bem como os referidos direitos fundamentais, expressos na nossa Constituição Federal, são atacados diante das práticas e das cláusulas abusivas apresentadas nos serviços de saúde suplementar; e, por conseguinte, cumpre voltar olhares para a compreensão das responsabilidades dos prestadores desses serviços e do Estado como fiscalizador e detentor do poder de prestação jurisdicional. Assim, a busca das principais causas e consequências das práticas abusivas e das cláusulas abusivas nos contratos de planos de saúde é importante para se identificar os pontos em que a legislação pode estar sendo falha, caso seja problema de ausência ou insuficiência de norma, bem como para se definir políticas de enfrentamento desses problemas de forma mais efetiva e numa proporção mais forte, de forma a cessar ou minimizar os prejuízos sofridos pelos consumidores desses serviços. Destarte, é imprescindível a apuração das causas e consequências advindas dos problemas enfrentados pelos consumidores de planos de saúde, em razão sobremaneira da essencialidade do serviço, sendo, o presente, um tema inteiramente de utilidade pública. Após a presente introdução, começa-se a analisar, basicamente, os conceitos jurídicos iniciais do Direito do Consumidor, em razão de ser a relação, entre os usuários de planos de saúde e suas operadoras, uma relação de consumo. Em seguida, encontram-se as hipóteses de práticas e cláusulas abusivas mais relevantes para o estudo dos contratos de prestação de serviços de saúde suplementar, bem como se faz a análise alguns conceitos e princípios jurídicos acerca dos contratos de consumo, todos aplicáveis aos contratos de planos de saúde. Ademais, tem-se o estudo dos institutos jurídicos acerca dos contratos de saúde suplementar, bem como analisa as competências da Agência Nacional de Saúde Suplementar, traçando alguns exemplos de práticas e cláusulas abusivas encontradas nesses tipos de contratos, tendo em vista o descumprimento das normas constitucionais, infraconstitucionais e regulamentadoras. Por derradeiro, analisam-se as principais questões acerca das consequências das práticas e cláusulas abusivas apresentadas nas contratações de empresas mantenedoras de planos de saúde, visualizando-se também a questão da judicialização da saúde e a criação de uma indústria de requerimentos de concessão de liminares perante a Justiça, demonstrando os percalços pelos quais o consumidor tem de passar para obter um exame ou tratamento negados, tendo que por ainda mais em risco sua saúde e sua vida frente à morosidade jurisdicional.

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2 O DIREITO DO CONSUMIDOR COMO PARADIGMA As relações de consumo são constituídas por um polo denominado consumidor, amplamente protegido pelas normas insculpidas no Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº 8.078, de setembro de 1990, e outro denominado fornecedor, o qual pode ser produtor, importador, comerciante, prestador de serviços, etc. O presente trabalho aborta a referida temática por entender imprescindível o estudo dos conceitos de Direito do Consumidor, tendo em vista que as relações entre os usuários de planos de saúde e as empresas prestadoras de serviços de saúde suplementar são relações de consumo. O conceito de consumidor está basicamente previsto no caput e no parágrafo único do artigo 2º2 da Lei 8.078/90 (CDC), e também nos artigos 17 e 29. O Código de Defesa do Consumidor, como sua própria denominação já indica, consiste numa conjuntura de normas protetivas daquele o qual considera hipossuficiente nas relações de consumo regidas primordialmente por este Código. Desta feita, o consumidor é o protagonista da Lei nº 8.078/90, a qual proporciona inúmeros meios de defesa e assistência àquele, detentor de menor conhecimento sobre os objetos das relações jurídicas das quais faz parte conjuntamente com o fornecedor. Preleciona Rizzatto3 que ―apesar de algumas dificuldades, a definição de consumidor tem grande virtude de colocar o sentido querido maior parte dos casos‖. Imperioso notar que, muito embora não seja a melhor técnica legislativa a conceituação de institutos jurídicos, teve êxito aquele que elaborou as definições do CDC.4 O parágrafo único do art. 2º traz o conceito de consumidor considerado como coletividade, ao dizer, ipsis litteris, que ―equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.‖ Neste caso, conforme se verá adiante, este é o principal dispositivo que legitima o ajuizamento de ações civis públicas na defesa dos consumidores. No art. 17, tem-se que são consumidores também as vítimas de acidentes de consumo, embora não tenham participado de forma direta na relação de consumo

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BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.‖ 3 NUNES, Luiz AntonioRizzato. Curso de direito do consumidor. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 116. 4 Idem, ibidem.

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preexistente. Assim, por exemplo, mesmo que alguma pessoa não tenhase utilizado, em determinado momento,de um serviço de transporte público, aquele será consumidor ―por equiparação‖, caso seja vítima de algum acidente advindo da relação de consumo entre o fornecedor de transporte público e os demais passageiros usuários do serviço. Por fim, concluindo a delimitaçãoda temática acerca da definição de consumidor, o art. 29 traz à baila mais um conceito de consumidor ―por equiparação‖, mas desta vez relacionado àquelas pessoas que são expostas às práticas comercias. Já o conceito de fornecedor encontra-se transcrito no caput do art. 3º do CDC.5Da leitura literal do dispositivo é possível constatar que o conceito abrange todas as pessoas capazes, tanto físicas quanto jurídicas, além dos entes desprovidos de personalidade.6 O CDC nada mais fez do que, na constante tentativa de proteção do consumidor, enumerar o maior número de formas pelas quais apresenta-se o fornecedor, com o fito de não abrir brechas para que haja injusta escusa de responsabilidades e, por conseguinte, afronta aos direitos básicos do consumidor (art. 6 do CDC). Outra interessante e essencial constatação é a de que a denominação ―fornecedor‖ é gênero de várias espécies, tais como, comerciante, produtor, importador. 7 Tal aspecto tem a finalidade de, quando o legislador quiser que haja a responsabilização de todas as espécies de fornecedores, utilizar a terminologia geral, e, quando não, especificará o tipo de fornecedor responsável por determinada conduta. O produto e o serviço são advindos do mercado de consumo. O primeiro é o resultado deste mercado, e o segundorepresenta quaisquer atividades prestadas por ele. Na verdade, ambos os conceitos são o objeto jurídico das relações de consumo, e podem apresentar-se de forma conjunta. Nesse sentido, pode-se considerar, de maneira simplória, que não há produto sem serviço, haja vista que o produto é fruto de uma atividade humana que teve a finalidade de produzi-lo e lança-lo no mercado. Ou seja, o produto sempre será adquirido por fruto de um serviço, podendo este ser a propaganda utilizada pelo fornecedor para a atração de clientela, a manutenção do produto após a sua venda, determinado manual de uso do produto ora adquirido etc. 5

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.‖ 6 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 131. 7 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 135.

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O contrário não é verdadeiro.8 Há serviços que não fornecem ao consumidor qualquer produto, como, por exemplo, alguma palestra, consulta médica, mesmo que para realização daquele serviço o fornecedor utilize-se de meios de produção pelos quais em outras perspectivas sejam considerados produtos. O conceito de produto é estampado no texto do § 1º do art. 3º do CDC, o qual estipula que ―produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial‖. Dessa forma, é cristalina a vontade legislativa de abarcar o maior número de tipos de produto, a fim de assegurar o maior número de direitos ao consumidor. Por outro lado, a conceituação de serviço é prevista no mesmo artigo, sendo que no seu § 2º, o qual aduz o seguinte: ―serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.‖ A utilização do termo ―qualquer‖ ressalta a característica exemplificativa do dispositivo normativo ao enumerar os serviços de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária.9 Sabendo-se que os serviços tanto podem ser privados como também públicos10, passar-se-á ao estudo destes últimos.

3 SERVIÇOS PÚBLICOS Ao se falar de serviço como objeto das relações de consumo, necessário se faz analisar mais especificamente os conceitos acerca da temática dos serviços públicos, haja vista que o presente trabalho consiste no estudo das relações de consumo existentes nos planos de saúde suplementar, e que, por isso, muitas vezes far-se-á, ao longo dele, referências aos serviços públicos de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, pode-se dizer que, mesmo sendo as operadoras de planos de saúde prestadoras de serviços tidos como privados, estes tem caráter eminentemente público. Dessa forma, no esteio de se definir, de forma pragmática e cristalina, os serviços prestados, direta ou indiretamente, pelo Poder Público, o notável professor Fernando 8

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 146. Idem, ibidem, p. 140. 10 Idem, ibidem, p. 147. 9

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Antônio de Vasconcelos, consegue trazer concisamente o que entende-se por serviços públicos: Serviço público é aquele serviço prestado pela Administração Pública. São os serviços de saúde, educação, transporte coletivo, água, luz, esgoto, limpeza pública, asfalto, etc. Quem controla as regras desses serviços, que são prestados para satisfazer às necessidades das pessoas, é o governo. Os serviços públicos são prestados pelos próprios agentes públicos ou por empresas particulares contratadas por órgãos públicos. Ambos são obrigados a prestar serviços adequados, eficientes, 11 seguros e contínuos, se forem essenciais.

Consoante o texto do parágrafo único do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor, ―nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código‖. Nesse contexto, preleciona Carlos Roberto Gonçalves12:

[...] A responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público não se limita à reparação do dano sob a forma de indenização, como previsto na Constituição Federal (art. 37, § 6º), pois nas ações movidas em defesa dos interesses e direitos dos consumidores pode já ser obtida a tutela pleiteada, determinando o juiz providências que assegurem o resultado prático equivalente ao cumprimento da obrigação, conforme estabelecido no art. 84 do Código de Defesa do Consumidor.

Nos dizeres de João Batista de Almeida, ―o CDC não discrimina os serviços públicos sob tutela, quer para dizer expressamente quais estão incluídos e quais não estão, se é que pretendeu o legislador afastar da incidência legal algum tipo de serviço público.‖13 Acerca desse tema, na doutrina, podem-se identificar duas correntes. Há quem defenda que não são protegidos pelo CDC os serviços públicos próprios (aqueles que são prestados diretamente pelo Estado, como a defesa nacional e a segurança pública), mas tão somente os serviços públicos impróprios (aqueles prestados diretamente pelo Estado ou indiretamente, por meio de concessão, permissão ou autorização). Outros afirmam que o CDC abrange todos os serviços públicos. Nessa senda, tem-se que existem correlações muito íntimas entre os recursos e estruturas do sistema público de saúde, por meio do SUS, e da saúde suplementar, sobremaneirapelo fatodestacomplementar aquele. Dessa forma, ensina Gabriel Schulman que ―a prestação da saúde no Brasil é estruturada mediante um sistema público (SUS) o qual é 11

VASCONCELOS, Fernando Antônio de; BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. Direito do consumidor e responsabilidade civil: perguntas & respostas. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 21. 12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 4 v.4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 267. 13 ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor.7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 105.

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complementado pela prestação particular (saúde suplementar e clínicas e hospitais privados).‖14 No mesmo sentido, relata Renato Azevedo Júnior que ―apesar da divisão, a prestação é estruturada sobre o que a doutrina da seara da saúde tem denominado mix público privado, havendo significativa presença de recursos públicos no âmbito da prestação suplementar.‖15 Schulman, em consonância, afirma que ―igualmente, há intensos influxos entre o Sistema Único de Saúde e o sistema de prestação privada, havendo compartilhamento de infra-estrutura, materiais e, sob variadas formas, de recursos.‖16 Assim, conforme se pode denotar da leitura atenta do art. 3º do CDC, as pessoas jurídicas de direito público podem ser consideradas fornecedoras, e, por conseguinte, serem consideradas sujeito nas relações de consumo. Além disso, são fornecedores também todos aqueles que direta ou indiretamente prestam serviços públicos, pois o art. 22 do mesmo Diploma reza que os órgãos públicos, por si, por suas empresas ou por qualquer outra forma de empreendimento são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quando essenciais, contínuos.17 No art. 22, a lei consumerista regrou especificamente os serviços públicos essenciais e sua existência, por si só, foi de fundamental importância para impedir que os prestadores de serviços públicos pudessem construir ―teorias‖ para tentar dizer que 18 não estariam submetidos às normas do CDC.

3.1 SERVIÇOS PÚBLICOS ESSENCIAIS: CONTINUIDADE No art. 22 do CDC, in fine, fala-se que o serviço público, quando essencial, deve ser contínuo. Tal assertiva advém da vontade legislativa de assegurar ainda mais os direitos do consumidor em momentos que sua hipossuficiência se ressalta. A advertência que ora se faz para a parte final do dispositivo em comento, constitui-se necessária pela mesma razão de se falar em serviço público, ou seja, pelo fato de que a presente pesquisa detém de assuntos acerca dos contratos de planos de saúde, e que, por 14

SCHULMAN, Gabriel. Planos de Saúde: saúde e contrato na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 308. 15 AZEVEDO Júnior, Renato. apudSCHULMAN, Gabriel. op cit., nota 13, p. 308. 16 SCHULMAN, Gabriel. op cit., nota 13, p. 309. 17 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.‖ 18 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 148.

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isso mesmo, há de fazerreferências por várias vezes, direta ou indiretamente, aos assuntos de relacionados ao serviço de saúde prestado diretamente pelo Poder Público. Pode-se dizer que, de certa forma, todo serviço público é essencial, e que, por esta razão, poder-se-ia afirmar que, por conseguinte, todos gozam de condições para serem contínuos. Todavia, na verdade, há alguns serviços que tem um caráter de urgência exponencialmente maior, independentemente do que seja. Nessa toada, mesmo o simples serviço de emissão de um documento pode se revestir de essencialidade, como, p. ex., no caso da necessidade de certo documento com o primordial fito de requerer a soltura de alguém preso ilegalmente. Assim, ―é o caso concreto, então, nessas hipóteses, que designará a essencialidade do serviço requerido.‖19 De forma indireta, a Lei de Greve, Lei nº 7.783/89, definiu o que se entende por serviço essencial, ao explanar as hipóteses em que os serviços e atividades são considerados como tais. Vejamos os incisos de seu art. 10: Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais: I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II - assistência médica e hospitalar; III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV - funerários; V - transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII - telecomunicações; VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a serviços essenciais; X - controle de tráfego aéreo; 20 XI - compensação bancária. (grifo nosso)

Dessa forma, faz-se necessário compreender a importância do estudo dos serviços públicos no anseio de proteção dos consumidores de planos de saúde privados, haja vista, como dito, a intrínseca correlação das disciplinas de ambos os serviços, os quais mais do que se complementam, fazem parte de um todo, fazem parte dos direitos constitucionais à vida digna e à saúde de qualidade. Quase inviável trazer à baila palavras mais cristalinas e esclarecedoras que as do ilustre professor Rizzatto21, o qual explica em breves linhas a correlação dos serviços essenciais com os princípios constitucionais:

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NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 152. BRASIL. Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l7783.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. 21 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 154. 20

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[...] A legislação consumerista deve obediência aos vários princípios constitucionais que dirigem suas determinações. Entre esses princípios encontram-se os da intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da garantia à segurança e à vida (caput do art. 5º), que tem de ser sadia e de qualidade, em função da garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225) e da qual decorre o direito necessário à saúde (caput do art. 6º) etc. Ora, vê-se aí a inteligência da lei. Não é possível garantir segurança, vida sadia, num meio equilibrado, tudo a respeitar a dignidade humana, se os serviços públicos essências urgentes não forem contínuos.

Nesse sentido, o respeito à característica de continuidade dos serviços públicos assegura a efetivação dos direitos fundamentais estampados na constituição de forma singular. Assim, os referidos direitos envolvidos, do consumidor em si e os expressamente previstos na Constituição, estão em constante correlação, em razão, sobremaneira, da própria estrutura do ordenamento jurídico brasileiro, onde a Carta Magna traz os parâmetros essenciais que devem ser seguidos por todos os ramos do Direito.

4 RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MÉDICOS E DAS EMPRESAS DE SAÚDE SUPLEMENTAR Tendo em vista a correlação entre a prestação dos serviços de planos de saúde por meio das cooperativas médicas e as feitas diretamente pelo médico, por intermédio das consultas denominadas de ―particulares‖, considera-se por bem trazer à discussão, de forma concisa e direta, o entendimento jurídico acerca da responsabilidade civil dos profissionais liberais bem como das empresas prestadoras de serviços de saúde suplementar. De pronto, pode-se informar que, em relação aos profissionais liberais, a responsabilidade civil é subjetiva, consoante se vê da leitura no § 4º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. Como bem afirmaram Stolze e Pamplona22, no que se refere mais especificamente à prestação de serviços na atividade médica –um dos cernes da temática do presente trabalho –, a concepção da responsabilidade civil subjetiva pelos danos causados na atividade médica latu sensu já encontrava guarida no Código Civil de 1916, quando prescrevia em seu art. 1.545 o seguinte: ―os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência e imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento‖. 22

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil. v. 3, 11 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 267.

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No entanto, se, por um lado, afirmar-se com segurança que a responsabilidade civil do médico, em relação ao contrato prestado entre ele e seu paciente, é por meio de apuração da sua culpabilidade (ou seja, é subjetiva), o mesmo não se pode dizer em relação aos serviços prestados pelos hospitais e clínicas médicas ou pelas empresas de saúde suplementar ou mantenedoras de planos de saúde e seguros de assistência à saúde, os quais são apurados pela responsabilidade civil objetiva.23 A responsabilidade civil dos hospitais ou clínicas médicas é prevista na norma sobre a responsabilização objetiva por ato de terceiro, insculpida no art. 932, inciso III, do Código Civil de 2002, in verbis: Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: [...] III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; [...]

Por outro norte, no que diz respeito aos planos de saúde, estes tem singular regulamentação, a Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, abordada de forma mais profunda e didáticaa posteriori.

5 RESPONSABILIDADE ESTATAL RELATIVAMENTE AO ACESSO À JUSTIÇA Além do dever de fiscalizar a atuação das operadoras de saúde no Brasil, através, por exemplo, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e do Poder Judiciário, cabe ao Poder Público garantir, sobretudo, o acesso à Justiça, consagrado pelo inciso LXXXIV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, como direito essencial e de significativa relevância para a efetividade dos demais direitos que possam ser questionados pelo consumidor de serviços de saúde suplementar. Nesse prisma, ―o Estado é responsável pelos danos a que, por meio de seus agentes, der causa, bem como pelos danos que tinha o dever de evitar‖24. Pode-se apresentar de várias formas os danos advindos do exercício da prestação jurisdicional. Assim, tais danos podem advir da atuação dolosa ou culposa dos agentes judiciários, de falhas impessoais do serviço ou até mesmo de condutas que, embora

23

Idem, ibidem, pp. 279 a 281. BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. Assistência jurídica: direito do consumidor e responsabilidade do Estado, aspectos teóricos, práticos e processuais. João Pessoa: Fotograf, 2009, p. 171. 24

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lícitas, causem dano injusto, grave e especial, em face do princípio da igualdade dos encargos públicos.25 Destarte, quando o Poder Público causa danos aos consumidores, em razão de omissão, ou mesmo por atuação contrária às normas constitucionais que permitem o acesso à Justiça por meio da assistência judiciária integral e gratuita, pode ele ser obrigado a indenizar os referidos consumidores. Para tanto, diversos são os meios judiciais que podem se valer os consumidores de saúde suplementar que são desprovidos de recursos financeiros para custear qualquer assistência jurídica particular ou eventuais custas processuais. Quanto à assistência jurídica gratuita e ao acesso à Justiça sob a ótica do problema da morosidade jurisdicional, falar-se-á, profundamente, mais a frente.

6 ABUSIVIDADES NOS SERVIÇOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR

As relações de consumo, muitas vezes, e principalmente as relativas às contratações de serviços prestados pelas empresas de saúde suplementar, são cercadas de práticas e cláusulas abusivas, as quais geram danos aos consumidores desses tipos de serviços. Antes de adentrar, o presente trabalho, nos estudos acerca das cláusulas abusivas advindas dos contratos firmados pelos consumidores dos serviços de saúde suplementar, necessário se faz perpassar os olhares pelo instituto jurídico das práticas abusivas dos fornecedores, em vista, sobremaneira, de serem estas fortes fontes de danos aos referidos consumidores e, por outro lado, fomentadoras de empecilhos aos consumidores em busca da efetivação de seus direitos e garantias. Além disso, interesse é tratar primeiro das práticas abusivas antes das cláusulas abusivas, tendo em vista poderem ser aquelas pré-contratuais, contratuais ou pós-contratuais.26 O Diploma Protetivo dispõe sobre as práticas abusivas em seu art. 39 e incisos, localizado na Seção IV do Capitulo IV. É importante notar que as práticas comerciais são aquelas de natureza contratual ou não que intermedeiam o fluxo de produtos e serviços dos fornecedores aos consumidores, ou seja, as práticas que levam ao escoamento da produção.27 Tais práticas são

25

SERRANO JÚNIOR, Odoné. apudBRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 172. NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. op .cit., nota 2, p. 588. 27 BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. Práticas abusivas e cláusulas abusivas. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da (Coord.) Responsabilidade civil: responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 219-263. 26

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consideradas ilícitas quando abusam da boa-fé do consumidor, explorando suas fraquezas de ordem técnica ou econômica, por vezes acarretando-lhe dano moral ou material. Pelas palavras de Antônio Herman Vasconcelos28 compreende-se que a prática abusiva goza de presunção absoluta de ilicitude, ou seja, mesmo na hipótese onde haja conduta abusiva que não gere dano ao consumidor, ainda sim tal comportamento fere a legislação e deve ser rechaçado. Tal entendimento parece acertado, pelo fato de que o ordenamento jurídico nacional determina que, na esfera das relações privadas, nas quais se incluem as relações consumeristas, a boa-fé impere no comportamento de todos os polos. As práticas comerciais são identificadas temporalmente nas fases précontratuais, durante o contrato, como também pós-contratualmente. Isto se deve ao caráter intermediário a elas inerente, o que acarreta a inclusão, nesta classificação de conduta, de uma grande variedade de atividades. O art. 39 do CDC apresenta hall, ainda que não exaustivo, de condutas comerciais abusivas, previstas em seus incisos. Passar-se-á a analisar em seguidaaquelas que detêmde certa relevância para a temáticageral do estudo em tela, principalmente no âmbito das atividades comerciais das empresas de planos de saúde. Apesar de parecer injusta, esta disposição do CDC (inciso II do art. 39 do CDC) carrega maiores detalhes a serem analisados. O não atendimento de demanda consumerista como prática comercial abusiva só se consubstancia quando o fornecedor tem em sua posse e propriedade estoque do produto, ou mesmo disponibilidade para satisfazer o serviço. Tal dispositivo vem, em verdade, a fixar uma isonomia entre os consumidores solventes, posto que a forma legítima de segregação pelo fornecedor é nos casos onde o consumidor é manifestamente ―mal pagador‖, como, por exemplo, aquele que se encontra com nome em cadastro de inadimplentes. A recusa do fornecedor também é legal quando este observa que o intuito do consumidor é causar dano. Desta forma, para prevenir dano a si ou a outrem, pode o fornecedor se negar a contratar, sendo este um motivo justo que afastaria o abuso. No entanto, ressalte-se que para configuração dessa hipótese é imprescindível a análise do caso concreto.

28

BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. apudBDINE JÚNIOR, HamidCharaf. op. cit., nota 26, p. 220.

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Pela utilização dos termos de forma genérica, com pouca especificação, podemos observar prontamente que o inciso IV do art. 39 trata-se de uma cláusula geral, técnica comum do legislador ao tentar conferir maior flexibilidade interpretativa da norma. Dessa forma, uma cláusula geral tem o fito de conferir maior liberdade ao Poder Jurisdicional, implicando à legislação uma característica de atualização constante pela jurisprudência, desde que este arcabouço decisório pátrio observe o ordenamento jurídico como um todo, o qual sempre deve servir de norte para o julgamento das lides. Nesse diapasão, não se deve confundir, no entanto, a fraqueza e ignorância aqui mencionadas com a hipossuficiência. Aquelas circunstâncias todo consumidor possui, não importando classe social ou formação educacional. Já a hipossuficiência deve ser analisada no caso concreto, consubstanciando-se como causa para alguns privilégios processuais, como acontece na decisão judicial de concessão da inversão do ônus da prova (art. 6º, inciso VIII, do CDC). Já a majoração de preço injustificada (inciso X), ou seja, com base única em conceitos econômicos, como, por exemplo, a ―mão invisível do mercado‖, que relaciona necessidade do mercado e existência do bem necessário, também é vedada, pois fere princípios e garantias fundamentais, em especial a solidariedade social. Para haver majoração de preço de forma legal, esta deve ser fundamentada em motivo justo, o qual, obviamente, por ser termo genérico,suplica pela observância no caso concreto. No que diz respeito aos reajustes que faz menção o inciso XIII, deve-se ter em mente o cuidado aos ditames do ordenamento jurídico quando da sua fixação. Depois de fixado, por lei entre as partes, segue o reajuste acordado até o exaurimento contratual. Quando o contrato for de adesão, o que já marca um desequilíbrio entre os polos contratantes, e houver mais de um índice para reajuste, será considerado o menos oneroso para o consumidor. O art. 41 vem a tratar dos produtos e serviços com tabelamento ou controle de preços, caracterizando como abusiva a atitude do fornecedor que, ignorando os limites, cobra em demasia. Há, in casu, faculdade do consumidor em receber a diferença, ou, se assim desejar, desfazer o negócio. Há disposto no inciso VIII do art. 39 vedação à comercialização de produtos ou serviços que estejam em desacordo com as normas técnicas de controle dos órgãos oficiais competentes.

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Desta forma há, em verdade, controle Estatal sobre a produção e a prestação, de forma a garantir produtos e serviços de qualidade, comercializados com a devida segurança, a fim de que possam ser fornecidos à população. Nesse desiderato, ter-se-á uma apreciação mais específica a posteriori em relação aos serviços de saúde suplementar quando da abordagemdas atribuições normativas e fiscalizadoras da Agência Nacional da Saúde Suplementar.

7 CONTRATOS DE CONSUMO Os contratos nas relações de consumo são tratados sob o prisma protetivo do Código de Defesa do Consumidor. Destarte, o art. 47 da lei consumerista estipula que ―as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor‖. Nesse sentido, Gonçalves29 afirma que tal dispositivo deve ser aplicado a todos os contratos de consumo e harmoniza-se com o espírito do CDC, que visa à proteção do hipossuficiente, do consumidor, visto que a grande maioria das regras que ditam tais relações advém da vontade do fornecedor. Nessa senda, importante colacionarmos o texto do art. 46 do CDC, o qual dispõe, ipsis litteris: Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

O artigo 46 decorre do princípio insculpido pelo art. 4º do CDC, qual seja, o princípio da transparência. Dessa forma, não há lógica jurídica30é obrigar o consumidor a cumprir um contrato onde não tem teve o mínimo de oportunidade de conhecer das cláusulas, principalmente por terem estas sido criadas unilateralmente pelo fornecedor. Dessa forma, o art. 46 traz uma proteção ao consumidor de características preventivas, haja vista que inibe de certa forma o fornecedor em proceder com má-fé na elaboração do contrato de consumo.

29

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. v. 3, 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 68. 30 NUNES, Luiz AntonioRizzato. op. cit., nota 2, p. 688.

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O ilustre professor Rizzatto Nunes31 enumera os princípios basilares dos contratos de consumo, a fim de entender-se a forma com que tais contratos devem ser interpretados, princípios estes corolários dos princípios constitucionais. Assim, pode-se citar a não aplicação do princípio do pacta sunt servanda às relações consumeristas, tendo em vista a ausência de vontade do consumidor ao aderir aos contratos elaborados unilateralmente pelo fornecedor. Ademais, impende entender a existência aplicação do princípio da conservação dos contratos nas relações de consumo, sobremaneira nos contratos de planos de saúde, a fim de se evitar prejuízos ainda maiores aos consumidores (art. 6º, V, e art. 51, § 2º, ambos do CDC). O princípio da boa-fé é encontrado também nas relações contratuais regidas pelo Código Civil de 2002. Não é diferente nas relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, muito pelo contrário, é, na verdade, ainda mais presente e essencial à consecução dos direitos básicos do polo hipossuficiente (art. 4º, III, e art. 51, IV, todos do CDC). O princípio da equivalência, por sua vez, visa o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (inciso III, in fine, do art. 4º do CDC). Já o princípio da igualdade está estampado no art. 6ª, inciso II, in fine, do CDC, o qual estipula que é direito básico do consumidor ―a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações‖. A igualdade prevista no CDC advém da máxima constitucional prevista no caput do art. 5º da Carta Magna. Ao lado do dever de informar32, concebe-se o princípio da transparência no anseio de assegurar que o consumidor tenha condições de contratar com o mínimo de conhecimento sobre o objeto da relação jurídica. Talvez o mais famoso princípio seja o da vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor frente ao fornecedor em suas relações de consumo, tendo em vista ser o nome dado ao Código cristalinamente sugestivo, consoante já fora dito no presente trabalho.

31

NUNES, Luiz AntonioRizzato. op.cit., nota 2, p. 654. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; [...].‖ 32

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7.1 CLÁUSULAS ABUSIVAS Além dos exemplos de práticas abusivas acima abordados, nos serviços de saúde suplementar são frequentes as constatações de cláusulas abusivas. No entanto, os efeitos das cláusulas abusivas, elencadas nos incisos do art. 51 do CDC, em regra, somente são constatados efetivamente após a celebração do contrato, pois constituem-sede aspectospotenciais e em abstrato, sobretudo em razão da imprevisibilidade que muitas vezes norteia os contratos nas relações jurídicas ditadas pelo Direito do Consumidor. A análise superficial e com poucas discussões sobre o contrato, antes de celebrado, especialmente em relação aos contratos de adesão,não noticiam nenhum problema substancial a priori, dificultando que o consumidor possa prever quais consequências negativas poderá enfrentar futuramente diante de determinadas condutas ou circunstâncias. Nessa senda, a proteção contra essas cláusulas é prevista no art. 6º, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, configurando-se como um direito básico do consumidor a vedação dessas disposições ilegais. O código consumerista enuncia exemplos de cláusulas abusivas que podem encontradas nos contratos de consumo, sendo o rol apresentado numerusapertus, exemplificativo, podendo ser identificadas tais cláusulas, previstas expressamente ou não, sob a análise subjetiva do intérprete da norma no caso real. No entanto,impende ressaltar que,quando as cláusulas contratuais em uma relação de consumo são tidas como abusivas, antes mesmo de serem declaradas nulas de pleno direito, consoante determinado em norma (art. 51 do CDC), é necessária uma interpretação sistemática do CDC para aplicaçãodo princípio da continuidade contratual, o qual revela maior preocupação em não acarretar ainda mais prejuízos ao consumidor. Nesse sentido, o § 2º do art. 51 do CDC preza pela minoração dos danos, efetivos ou potenciais, causados ao consumidor vítima de um contrato com tais cláusulas. Assim, por exemplo, nos contratos de adesão de planos de saúde, a nulidade do contrato pode acarretar problemas de ordens ainda maiores, devendo-se assim zelar pela permanência da vigência do contrato. Assim como se fez anteriormente quanto às práticas abusivas, passar-se-á ao estudo um pouco mais profundo daqueles incisos do art. 51 do CDC dos quais representem os tipos de cláusulas abusivas mais relevantes aos contratos de consumo de serviços de saúde suplementar. 214


Seguindo esse viés, insta mencionar os ensinamentos de Gonçalves33 em relação à cláusula contratual que exonera o fornecedor quanto aos vícios e os fatos do produto e do serviço, objeto de estudo mais profundo posteriormente: O art. 51, I, do Código de Defesa do Consumidor considera abusiva e, portanto, nula a cláusula contratual que impossibilitar, exonerar ou atenuar a responsabilidade civil do fornecedor por vícios de qualquer natureza, incluídos aqui os acidentes de consumo e os vícios redibitórios. Não vale, portanto, ―cláusula de não indenizar‖.

Nesse diapasão, não pode admitir-se a existência nos contratos de consumo de cláusula exonerativa sobre vícios e fatos, sob pena de sua plena nulidade. Por outro lado, o próprio dispositivo (art. 51, I, do CDC), disciplina uma exceção, que se consubstancia no momento em que há a mera limitação da indenização, o que é diferente de se pregar a integral exoneração da responsabilidade civil. Finalmente, insta reiterar que o rol estipulado no art. 51 do CDC não é taxativo. Isso implica na possibilidade de se examinar o caso concreto e encontrar uma cláusula abusiva que não esteja exatamente prevista, ipsis litteris, nos incisos do referido artigo.

8 A ANS E SUA COMPETÊNCIA A Agência Nacional de Saúde Suplementar fora criada pela Lei nº 9.961, de 28 de janeiro do ano de 2000, constituindo-a como autarquia sob o regime especial, agência reguladora, vinculada ao Ministério da Saúde. No parágrafo único do art. 1º da referida norma, preleciona-se que a natureza de autarquia especial dada à ANS é caracterizada por sua autonomia administrativa, financeira, patrimonial, gestão de recursos humanos, bem como por sua autonomia nas suas decisões técnicas e mandato fixo de seus dirigentes. Já em seu art. 4º, apresentam-se vários incisos, definindo a competência da ANS, dentre os quais, citam-se alguns: propor políticas e diretrizes gerais ao Conselho Nacional de Saúde Suplementar (Consu) para a regulação do setor de saúde suplementar (I); elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei 9.656/98, e suas excepcionalidades (III); fiscalizar as atividades das operadoras de planos privados de assistência à saúde e zelar pelo cumprimento das normas 33

GONÇALVES, Carlos Roberto. op. cit., nota 28, p. 269.

215


atinentes ao seu funcionamento (XXIII); aplicar as penalidades pelo descumprimento da Lei no 9.656, de 1998, e de sua regulamentação (XXX); etc. Por sua vez, o § 2º do art. 1º da Resolução Normativa nº 197, de 16 de junho de 2009, a qual instituiu Regimento Interno da Agência Nacional de Saúde Suplementar, relata que a ANS tem por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as operadoras setoriais. O site institucional da Agência Nacional de Saúde Suplementar na internet relata que esta agência reguladora acompanha o cumprimento, por parte das operadoras de planos de saúde, dos prazos máximos de atendimento para consultas, exames e cirurgias. Este monitoramento é permanente e contínuo e a divulgação dos dados apurados é feita pela própria ANS a cada três meses.34

9 ALGUMAS PRÁTICAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE PLANOS DE SAÚDE Pode-se de imediato citar, sinteticamente, algumas práticas comerciais tidas como abusivas nos serviços de saúde suplementar, principalmente encontradas após a assinatura do contrato em questão, previstas nos incisos do art. 39. Inicialmente, pode ser considerada prática abusiva a atitude das operadoras de planos de saúde deprevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços (inciso IV). Assim, por exemplo, um idoso que vai assinar um contrato de adesão de serviços de saúde suplementar, não pode ser levado a contratar aquilo que não é de seu interesse, sendo abusiva a prática da empresa de se aproveitar da idade avançada e ―embutir‖ cláusulas não sabidas, indesejadas ou exageradamente desvantajosas. Nesse sentido, leciona Cláudia Lima Marques35:

34

AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR. Planos de saúde com comercialização suspensa para novos beneficiários e Planos de saúde com comercialização reativada. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/contratacao-e-troca-de-plano/planos-de-saude-comcomercializacao-suspensa>. Acesso em: 10 jan. 2014. 35 MARQUES, Cláudia Lima apud SCHMITT, Cristiano Heineck. Indenização por dano moral do consumidor idoso no âmbito dos contratos de planos e de seguros privados de assistência à saúde. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2219>. Acesso em 10 jan. 2014.

216


Tratando-se de consumidor ―idoso‖ (assim considerado indistintamente aquele cuja idade está acima de 60 anos) é, porém, um consumidor de vulnerabilidade potencializada. Potencializada pela vulnerabilidade fática e técnica, pois é um leigo frente a um especialista organizado em cadeia de fornecimento de serviços, um leigo que necessita de forma premente dos serviços, frente à doença ou à morte iminente, um leigo que não entende a complexa técnica atual dos contratos cativos de longa duração denominados de ―planos‖ de serviços de assistência à saúde ou assistência funerária.

O inciso VIII do art. 39 do CDC estipula que o descumprimento de normas técnicas por parte dos prestadores de serviços, constitui-se como prática abusiva. Destarte, não é diferente para as empresas mantenedoras de planos de saúde. Por vezes, vê-se que tais empresas têm a comercialização dos seus serviços e, consequentemente, a autorização para a contratação de novos planos suspensa36, tendo em vista as irregularidades no cumprimento das normas técnicas emanadas da Agência Nacional de Saúde Suplementar, sobremaneira quanto aos prazos para marcação de consultas, exames e cirurgias, combinado com negação de coberturas. Pode-se citar ainda elevação injusta dos preços dos serviços (inciso X), tanto em relação às mudanças de preços anuais como as decorrentes das mudanças de faixa etária dos usuários; ou a aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido (inciso XIII).

10 ALGUMAS CLÁUSULAS ABUSIVAS NOS CONTRATOS DE PLANOS DE SAÚDE Conforme foi estudado mais acima, entende-se que pode se constatar determinada cláusula abusiva sem que ela necessariamente se subsumaperfeitamente às hipóteses descritas no rol dos incisos do art. 51 do CDC37. Dessa forma, essas cláusulas são entendidas como abusivas por estarem em confronto, na verdade, com os princípios de defesa do consumidor, tendo em vista que o termo ―entre outras‖, escrito no caput do referido artigo, deixar a entender que se trata de rol não taxativo, ou numerusapertus.

36

ANS SUSPENDE 246 planos de saúde; veja a lista completa. Revista Exame. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/noticias/ans-suspende-246-planos-de-saude-de-26-operadoras/>. Acesso em: 10 jan. 2014. 37 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor (1990). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: [...]‖

217


Nesse diapasão, um exemplo disso é o julgamento do Recurso Especial nº 668.216, o qual, em seu acórdão, foi considerada abusiva a cláusula que impedia o consumidor-paciente de ser tratado de uma doença por métodos mais sofisticados e modernos. Seguro saúde. Cobertura. Câncer de pulmão. Tratamento com quimioterapia. Cláusula abusiva. 1. O plano de saúde pode estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, mas não que tipo de tratamento está alcançado para a respectiva cura. Se a patologia está coberta, no caso, o câncer, é inviável vedar a quimioterapia pelo simples fato de ser esta uma das alternativas possíveis para a cura da doença. A abusividade da cláusula reside exatamente nesse preciso aspecto, qual seja, não pode o paciente, em razão de cláusula limitativa, ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno disponível no momento em que instalada a doença coberta. 38 2. Recurso especial conhecido e provido.

No mesmo sentido, há julgamento mais recente do mesmo Egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ): ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO. TÉCNICA MODERNA. CIRURGIA. NEGATIVA DE COBERTURA. CLÁUSULA ABUSIVA. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. 1. [...] 2. Tratamento experimental é aquele em que não há comprovação médica-científica de sua eficácia, e não o procedimento que, a despeito de efetivado com a utilização equipamentos modernos, é reconhecido pela ciência e escolhido pelo médico como o método mais adequado à preservação da integridade física e ao completo restabelecimento do paciente. 3. Delineado pelas instâncias de origem que o contrato celebrado entre as partes previa a cobertura para a doença que acometia o autor, é abusiva a negativa da operadora do plano de saúde de utilização da técnica mais moderna disponível no hospital credenciado pelo convênio e indicada pelo médico que assiste o paciente. Precedentes. 39 4. Recurso especial provido. (grifo nosso)

Dessa forma, é impossível negar que há inúmeras possibilidades de se constatar as cláusulas abusivas nesses tipos de contratação, sendo necessário, para tanto, a apuração minuciosa dos fatos no caso concreto, a fim de se verificar o cumprimento às normas protetivas por parte dos planos de saúde ao elaborarem os contratos a serem comercializados. Já, por outro lado, trazendo-se à baila um exemplo de subsunção direta ao rol de cláusulas abusivas disposto nos incisos do art. 51, têm-se precedentes dos nossos tribunais pátrios superiores no sentido de considerarem abusivas as cláusulas que limitem o tempo de internação do paciente, inserindo-se no conceito de ―desvantagem exagerada‖ do inciso IV do

38

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 668216 SP 2004/0099909-0, 3ª Turma, Rel. Carlos Alberto Menezes Direito, Publicação: DJe 02 abr. 2007, p. 265. 39 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 1320805 SP 2012/0086320-3, 4ª Turma, Rel. Maria Isabel Gallotti, Publicação: DJe17 dez. 2013.

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art. 51, o qual dispõe que são nulas as cláusulas abusivas que ―estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade‖. Além disso, há disciplinamento nesse sentido na própria Lei 9.656/98, em sua art. 12, inciso II, alíneas ―a‖ e ―b‖. O entendimento de que a cláusula limitativa do tempo de internação do consumidor de serviços de saúde suplementar é abusivatambém é consolidado pelo Egrégio STJ, através da Súmula 302, publicada no DJ de 22/11/2004, que aduz: ―é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado‖.

11 IMPLICAÇÕES DAS ABUSIVIDADES E PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Conforme já é cediço, os contratos firmados perante as empresas operadoras de planos de saúde, frequentemente, são constituído por algumas ou várias cláusulas abusivas e juntam-se às práticas comerciais abusivas. Esses comportamentos das empresas fora dos padrões estabelecidos pelos órgãos reguladores, e em desacordo com as normas de diversas fontes legislativas, acabam por cercear os direitos dos consumidores desses serviços, bem como tornam-se obstáculos para a efetivação de outros direitos. As implicações jurídicas nada mais são do que as reiteradas afrontas aos direitos dos consumidores, tanto aos previstos no CDC, como também aos previstos em normas constitucionais. Como o CDC é constituído nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e do art. 48 de suas Disposições Transitórias (art. 1º do CDC), as afrontas às normas consumeristas, ao menos de forma indireta, também ferem direitos e garantias constitucionais. Os direitos fundamentais à saúde e à vida digna são diretamente atacados pelas reiteradas práticas abusivas e pelas constantes utilizações de cláusulas abusivas nos contratos de planos de saúde, razão pela qual deve responsabilizar-se o Estado por estas circunstâncias, em razão de ser um seu dever prestar o serviço de saúde pública de forma eficiente. Nesse sentido, a afronta aos princípios constitucionais pode ser vista também quando observa-se, por exemplo, o não atendimento a norma que disciplina que os serviços públicos essenciais, ressalte-se, prestados tanto diretamente pelo Poder Público, como

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também pelas empresas privadas prestadoras de tais serviços, conforme já estudado em linhas anteriores, sejam contínuos. Uma das principais implicações da abusividade nos contratos de planos de saúde é a constituição de uma barreira para a efetivação dospróprios direitos básicos do consumidor, insculpidos nos célebres termos do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, especialmente nos previstos nos incisos I (proteção da vida, saúde e segurança), VII (o acesso aos órgãos judiciários) e VIII (a facilitação da defesa de seus direitos). Explana-se. O consumidor de planos de saúde adere a um contrato de adesão que é cercado de abusividades, tanto entre as suas cláusulas quanto em relação às atividades comerciais abusivas (como visto, estas podem serpré-contratuais, contratuais ou póscontratuais), por exemplo, ao ocorrer recusa injustificada no atendimento de emergência. Esse conjunto de abusividades torna o consumidor, que já é presumidamente vulnerável, ainda mais desprotegida ou, melhor dizendo, torna seus direitos mais complicados de serem buscados e, consequentemente, efetivados.

12 O PROBLEMA DA MOROSIDADE JURISDICIONAL Por outro norte, as abusividades juntam-se a um imbróglio que é fato notório perante a sociedade, qual seja, a (re)conhecida morosidade jurisdicional. Imagine-se um cidadão que precisa urgentemente de uma cirurgia ou de um transplante ou de uma quimioterapia, e tais procedimentos lhes são negados indevidamente. Essa questão é de extrema relevância, de forma especial para os consumidores de planos de saúde, os quais, também por vezes, são necessitados. Ver-se em não poucos casos que ―as sentenças dos magistrados são proferidas quando o interesse da parte já não é mais importante, ou até quando o autor da ação já tem falecido‖40. O problema ora abordado pode ensejar até mesmo a responsabilidade civil do Estado41, que é o maior garantidor do pleno acesso à Justiça, a qual, acima de tudo, deve ser muitas vezes célere para alcançar um outro princípio do cidadão, qual seja, o da eficiência dos serviços públicos. O consumidor ver-se então desamparado. O direito poderá até existir in abstracto, mas a sua efetivação, a sua consecução, o seu direito in concreto está altamente 40 41

BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 137. Idem, ibidem.

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comprometido, tendo em vista a barreira burocrática formada perante sua vontade de ver preservada sua integridade física e a sua vida.

13 O PROBLEMA DA ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA

O imbróglio da morosidade jurisdicional junta-se ao problema da própria assistência jurídica gratuita apresentada pelos Núcleos das Defensorias Públicas, as quais também são conhecidas pela falta de estrutura e investimentos comprometidos com a justiça social. Não obstante os inegável esforços dos Defensores Públicos em cumprir suas atribuições (art. 1º da Lei Complementar 80/9442), resta inviável sua consecução sem os devidos investimentos públicos nesse órgão, que é essencial para a defesa dos consumidores, sobremaneira daqueles mais necessitados. Isso porque, conforme é cediço, a partir da Lex Mater de 1988 é que os aquelas pessoas mais carentes de recursos financeiros passaram a estar dispensadas do pagamento das custas processuais e a ter, de forma integral e gratuita, a prestação de serviços de assistência jurídica.43 Assim, não há pensamento diverso daquele que entende ser a assistência jurídica como sendo um instrumento para a execução da política nacional das relações de consumo (art. 4º do CDC), sobremaneira em razão dos direitos básicos do consumidor previstos no art. 6º do Diploma Protetivo, conforma já visto anteriormente. Nesse sentido, é de bom alvitre lembrar os ensinamentos de João Batista de Almeida44: Cremos que o legislador, ao utilizar a expressão ―assistência jurídica‖, quis abranger tanto a orientação jurídica prestada ao consumidor em suas consultas perante os órgãos administrativos e até o Ministério Público, como também a assistência judiciária propriamente dita, prevista na Lei nº1.060, de 5 de fevereiro de 1950, que coexiste perfeitamente com as disposições do Código do Consumidor, e que dispensa o consumidor carente do pagamento de honorários advocatícios de seu patrono (que será ou o defensor público, onde existir, ou advogado credenciado ou 42

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/ leis/lcp/Lcp80.htm>. Acesso em: 10 jan. 2014. Cf.: ―Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).‖ 43 BRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 67. 44 ALMEIDA. João Batista. apudBRANDÃO, Fernanda Holanda de Vasconcelos. op. cit., nota 23, p. 121.

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nomeado pelo juiz para o mister), de honorários de perito, além de isentá-lo do pagamento de custas processuais. No Juizado Especial Cível está expressamente prevista assistência jurídica, se uma das partes comparecer assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual (Lei nº 9.099, art. 9º).

Dessa forma, ainda mais difícil se torna a efetivação dos direitos do consumidor, o qual se vê desamparado, principalmente quando tenta algum atendimento médico-hospitalar, tanto em planos de saúde, quanto na rede pública de saúde, através do Sistema Único de Saúde.

14 O USO DA LIMINAR NA DEFESA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE Ao se ver com seu direito fundamental à vida e à saúde, previstos na Constituição Federal de 1988, ameaçado, por exemplo, em caso em urgência, o consumidor poderá se valer do instituto jurídico da antecipação dos efeitos da tutela, a fim de salvaguardar este direito que está ameaçado, para, no fim da demanda judicial, ser ele confirmado. Preleciona sabiamente o ilustre professor e doutrinador Fredie Didier Jr. 45, em obra conjunta com Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, que: ―[...] para que não fique comprometida a efetividade da tutela definitiva satisfativa (padrão), percebeu-se a necessidade de criação de mecanismos de preservação dos direitos contra os males do tempo‖. E para se requerer tal antecipação faz-se necessário o cumprimento de alguns pressupostos, quais sejam, a prova inequívoca que conduza a um juízo de verossimilhança sobre as alegações (caput do art. 273, do CPC) – probabilidade das alegações – e, cumulativamente, a reversibilidade dos efeitos do provimento (§ 2º do art. 273), que é a possibilidade de, após a concessão da antecipação, retornar-se ao status quo ante, sem prejuízo para a parte adversária. Aduz ainda o autor, ao falar sobre a concessão liminar da antecipação dos efeitos da tutela frente à suposta violação ao princípio do contraditório, o seguinte: É bom que se ressalte que não há violação da garantia do contraditório na concessão, justificada pelo perigo, de providências jurisdicionais antes de ouvida a outra parte (inaudita altera parte). O contraditório, neste caso, é deslocado para o 46 momento posterior à concessão da providência de urgência. [...] A antecipação de tutela poderá ser concedida liminarmente quando o perigo de dano se der antes ou durante o ajuizamento da demanda. Acaso não haja risco de ocorrência do dano antes da citação do réu, não há que se concedê-la em caráter 45

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarnos; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. v. 2., 5. ed. Bahia: JusPodivm, 2010, p. 457. 46 Idem, ibidem, p. 479.

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liminar, pois não haverá justificativa razoável para a postergação do exercício do contraditório por parte do demandado. Seria uma restrição ilegítima e desproporcional ao seu direito de manifestação e defesa. Somente o perigo justifica 47 a restrição ao contraditório. (grifo nosso)

Preenchidos os pressupostos cumulativos supracitados, deve-se, de acordo com o art. 273 do CPC, analisar se há fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (inciso I) ou se fica caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu (inciso II). Dessa forma, primeiramente, deve-se proteger o direito do consumidor à vida e à saúde, em caso de comprovada urgência e, após análise sumária, comprovada obediência aos requisitos da concessão da medida liminar, acima expostos, atuando o Magistrado competente em prol de deferi-la, para que, somente posteriormente, possa julgar o mérito da referida demanda judicial, algo que, via de regra, requer mais tempo para uma análise minuciosa do caso. Conforme se verá adiante, o uso indiscriminado ou, melhor dizendo, exagerado e reiterado de tal instituto jurídico é consequência da excessiva percepção, da verdadeira proliferação de práticas e cláusulas abusivas nos contratos de prestação de serviços de saúde suplementar.

15 A “INDÚSTRIA DE LIMINARES” Nesse desiderato, quando negado o acesso ao direito fundamental à saúde, sobretudo quando este se encontra também lastreado em legislação específica vigente, em razão de práticas e cláusulas contratuais flagrantemente abusivas e incompatíveis com a boafé e equidade (inciso IV, do art. 42, do CDC), outro resultado não há que a violação imediata e direta aos significados maiores da cidadania, derrogando os fundamentos que sustentam os alicerces republicanos, ou seja, afrontando veementemente os direitos e garantias constitucionais. Essa atuação ilegal dos prestadores de serviços na seara da saúde suplementar, ou seja, das empresas mantenedoras de planos de saúde e assistência médico-hospitalar proporciona também uma massificação das ações judiciais, bem como uma reiteração de pedidos de concessão de liminares para realização de procedimentos médico-ambulatoriais de urgência.

47

Idem, ibidem, p. 509.

223


Destarte, pode-se constatar a formação de uma verdadeira ―indústria de liminares‖, com o único fito de ver os direitos estipulados cristalinamente na norma de proteção ao consumidor, realmente, efetivados. O citado problema da morosidade jurisdicional se juntaà necessidade crescente de busca pela proteção do consumidor perante o Poder Judiciário. Dessa forma, abarrota-se ainda mais o sistema jurisdicional, em virtude principalmente das práticas e cláusulas abusivas frequentemente encontradas nos contratos firmados entre os consumidores e as empresas mantenedoras de planos de saúde e assistência médico-hospitalar e de saúde em geral, sendo o único prejudicado o consumidor, o qual fica refém da vontade procrastinatória dessas empresas e da dificuldade do Poder Judiciário em respeitar de forma eficiente o princípio constitucional da celeridade processual. Consoante se afere do acima exposto, a legislação revela certa segurança na prestação dos serviços desta natureza, o que impede, em alguns casos, que os consumidores restem a reboque do desrespeito e da excessiva burocratização de atividades que, por sua natureza, pressupõe a obtenção de lucros. No entanto, na maioria dos casos, tal burocratização dificulta, em razão de uma pretensão preponderantemente econômico-financeira, todos os dias, o acesso à saúde e, por conseguinte, a vida digna. Tudo isso, somado ao problema do acesso à Justiça, formam o ―papel de parede‖ da situação dos consumidores dos serviços de saúde suplementar.

CONCLUSÃO A maior contribuição do presente estudo é a simples e fácil percepção de que o consumidor tem colecionado entraves na consecução de seus direitos tanto na órbita administrativa quanto na esfera judicial, sendo, sobremaneira esta última, complementando o percalço do consumidor, detentora de imbróglios no que diz respeito à celeridade na entrega da prestação jurisdicional, contribuindo assim, de forma exponencial, com a ineficácia de normas regulamentadoras, consumeristas e constitucionais de proteção ao usuário de planos de saúde. Nessa senda, o que se constata é a afronta veemente e violenta aos direitos e garantias constitucionalmente assegurados, aos direitos à vida e à saúde, em face dareiterada omissão Estatal, tendo em vista a sua insuficiente e ineficiente fiscalização das empresas privadas que prestam serviços públicos e, in casu, essenciais.

224


A omissão Estatal, portanto, encontra apoio na aparente falta de interesse das empresas de saúde suplementar em prestar seus serviços de forma exemplar e a garantir os direitos básicos de seus usuários. Ao contrário, a constatação da repetitiva violação aos regulamentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar e das normas emanadas do Código de Defesa do Consumidor demonstram, basicamente,o interesse eminentemente financeiro dessas empresas, as quais não se esforçam em demonstrar comprometimento com a vida e a saúde de seus consumidores. Por outro norte,a saúde pública detém estrutura de atendimento deficitária e desorganizada, propagando uma exorbitante demora na prestação efetiva e eficiente do serviço essencial de saúde, o qual muitas vezes é de péssima qualidade, constando-se também frequentes afrontas aos direitos fundamentais à saúde e à vida das pessoas que têm, no Sistema Único de Saúde, a única esperança. Destarte, por conseguinte, aqueles que podem, se socorrem nos planos de saúde, numa expectativa comum de melhor qualidade na prestação do serviço, haja vista que tais planos têm características de algo ―privado‖, por obviamente serem pagos, o que pressupõe uma preocupação maior do fornecedor em agradar seus ―clientes‖ – o que, de certa maneira, como já dito, não acontece. A saúde suplementar surge como uma suposta válvula de escape para haver um descente atendimento médico-hospitalar. Mas, consoante perceptível, esse entendimento é mera suposição. A carência, na verdade, atinge também os serviços prestados pelos planos de saúde, os quais estão sendo reiteradamente punidos por não cumprirem normas regulamentadoras que prezam pela saúde dos cidadãos que utilizam o referido serviço ―privado‖. Adeplorável situação em que os serviços de saúde prestados tanto direta como indiretamente pelo Poder Públicoenfrentam hoje é um problema advindo, sobretudo,de uma má gestão da coisa pública, dos recursos públicos, latu sensu, desembocando na ineficiente atuação dos serviços de saúde suplementar, os quais encontram significativa dificuldade em cumprir as normas e regulamentos. Essa

conjuntura

acaba

por

desrespeitar

os

direitos

e

garantias

constitucionalmente previstos aos consumidores desses tipos de serviços ―privados‖, bem como os direitos especificados no Código de Defesa do Consumidor, na Lei dos Planos de Saúde, e nas demais normas infraconstitucionais. Em meio a esse contexto, no entanto, resta ao consumidor, por sua vez, se valer de diversos meios judiciais para a consecução e efetivação dos seus direitos básicos, tanto na 225


esfera judicial individual, quanto na esfera coletiva, por meio dos órgãos legitimados, como o Ministério Público e a própria Defensoria Pública. O que não pode haver é a acomodação dos consumidores no sentido de cobrar junto aos órgãos legitimados a propor a Ação Civil Pública ou à agência reguladora desses serviços, devendo-se denunciar e buscar a tomadade medidas cabíveis, a fim de sanar ou mesmo minimizar os efeitos devastadores das práticas e cláusulas abusivas espalhados nos contratos de serviços de saúde suplementar.

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CUIDADOS PALIATIVOS NA ÉGIDE DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA Francisco Bruno Santana da Costa1 Gabriela Tavares de Oliveira2 Jhayme Farias Cartaxo Lopes3 4 Eduardo Gomes de Melo Sumário:1 Introdução. 2 Desenvolvimento. Considerações finais. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Apesar do avanço científico e técnico atual na área da saúde e do atendimento especializado, em que se tem conseguido prolongar a vida humana em todo o mundo, observa-se que, nos países desenvolvidos, a maioria das mortes seja precedida por uma enfermidade ou uma condição que tornam como sensata a escolha de preparar-se para a morte num período de tempo previsível (EMANUEL, 2013). As neoplasias, por exemplo, têm servido de paradigma do cuidado terminal, entretanto não é o único tipo de afecção com fase terminal reconhecida e esperada. Como a insuficiência cardíaca, as nefropatias com insuficiência renal avançada, a síndrome da imunodeficiência adquirida, a demência, a esclerose lateral amiotrófica, a insuficiência hepática crônica, a doença pulmonar obstrutiva crônica e muitas outras patologias têm fases terminais reconhecíveis (PORTO, 2011). Uma abordagem sistemática do cuidado terminal deve integrar diversos saberes, cuidados e áreas do conhecimento multiprofissional. O cuidado paliativo deve ser considerado ―parte integrante do cuidado global de todos os pacientes, posto que a assistência paliativa pode minorar significativamente o sofrimento produzido pela doença‖ (EMANUEL, 2013). Recentemente, revisões de literatura expuseram pujantes evidências de que o cuidado paliativo pode ser maximizado por meio da coordenação entre cuidadores, médicos e pacientes para a ideal maturação e planejamento do cuidado, assim como equipes humanizadas e dedicadas de médicos, enfermeiros e demais colaboradores. O rápido aumento da expectativa de vida no último século traz consigo novas 1

Graduando em Medicina pela UFCG. Graduanda em Medicina pela UFPB. 3 Graduando em Medicina pela UFPB. 4 Médico Geriatra; Professor da UFPB. 2

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dificuldades que indivíduos, famílias e a sociedade como um todo enfrentam para atender as necessidades de uma população envelhecida. Estes desafios agregam tanto situações mais complicadas como tecnologias, para lidar com elas no final da vida. O desenvolvimento de tecnologias que podem prolongar a vida sem restaurar a saúde integral contraria o princípio hipocrático ―primum non nocere‖- primeiramente não prejudicar- e o vigésimo segundo princípio fundamental do Código de Ética Médica (CEM) brasileiro que reza: ―Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados‖. Dessa maneira, evidencia-se que a inserção dos cuidados paliativos na saúde brasileira ainda é uma realidade pouco desenvolvida. Com isso, objetivou-se, a partir de uma revisão literária, ressaltar a inadequada utilização da ética médica no atendimento e na relação médico-paciente-familiar nas situações em que os tratamentos farmacológicos ou de intervenção direta à doença não são mais cabíveis. (BRUGUGNOLLI et al., 2013).

2 DESENVOLVIMENTO

Em senso estrito, paciente terminal ou sem possibilidade terapêutica, como tem sido a nomenclatura preferencialmente adotada, nos tempos presentes, é aquele que sofre de uma doença incurável em estágio adiantado e para o qual não há recursos médicos capazes de alterar o prognóstico do indivíduo em curto prazo (PORTO, 2011). Não se deve confundir o conceito de paciente em estado grave com paciente terminal. Por mais críticas que sejam as condições de um paciente, quando existe a possibilidade de reversão do quadro clínico, as reações psicológicas e os mecanismos psicodinâmicos do binômio médico-paciente são diferentes dos que ocorrem quando não existe expectativa de recuperação. De acordo com Porto (2011),a relação médico-paciente nos casos terminais costuma ser crítica e causar perturbação emocional para o médico, fato que comprova isso é que muitos deles têm grande dificuldade de se relacionarem com tais pacientes. Os cuidados dedicados aos pacientes terminais remontam ao século IV da era cristã,devido à criação de instituições de caridade e, posteriormente, de hospedarias que aliavam hospitalidade das casas de repouso com os cuidados necessários de um hospital. Em 1967, a fundação do St. Chistopher Hospice, uma instituição criada em Londres a partir de um novo modelo de assistência aos doentes terminais, por CicelySaunders, impulsionou a criação do Movimento Hospice Moderno. As propostas para a criação deste modelo de instituição 230


ressaltam os princípios dos Cuidados Paliativos, os quais consistem―em minorar o máximo possível a dor e demais sintomas dos doentes e, simultaneamente, possibilitar maior autonomia e independência dos mesmos‖ (MENEZES, 2011). O ideário dos Cuidados Paliativos valoriza a expressão dos desejos dos doentes e de seus familiares, ―veiculando a ideia de que o acompanhamento de uma pessoa em processo de morte propicia um desenvolvimento pessoal‖ (BRUGUGNOLLI et al., 2013). A partir de 1970, houve o crescimento do movimentoHospiceModernonos Estados Unidos, devido ao encontro de CicelySaunders com a psiquiatra suíça Elizabeth Klüber-Ross (1926-2004). Elizabeth contribuiu significativamente nesta área após conviver com centenas de pacientes terminais (OLIVEIRA et al., 2013). Para conferir a qualidade do cuidado paliativo e terminal, é indispensável manter a atenção em quatro domínios gerais: sintomas físicos; sintomas psicológicos; necessidades sociais, incluindo as relações interpessoais, a prestação de cuidados e as preocupações financeiras; e necessidades existenciais ou espirituais-religiosas (EMANUEL, 2013). Uma análise completa deve pesquisar e avaliar as necessidades em cada um desses quatro domínios. Os objetivos da assistência devem ser propostos e estabelecidos em diálogos com o paciente e/ou com os familiares, de acordo com a avaliação em cada um dos quatro domínios. As intervenções deverão, então, serem propostas de forma a melhorar ou controlar os sintomas e as necessidades a fim de garantir a autonomia e o bem-estar do paciente. Neste âmbito, o novo CEM, publicado em abril de 2010, após mais de 20 anos de vigência do Código anterior,consolida-se como um indutor de transformações no campo da política, sem, contudo, abdicar de sua principal contribuição para a sociedade: o reforço à autonomia do paciente (BRASIL, 2010). Ou seja, aquele que recebe atenção e cuidado passa a ter o direito de recusar ou aceitar seu tratamento. Tal aperfeiçoamento corrige a falha histórica – proveniente da filosofia hipocrática desde a fundamentação da medicina - que deu ao médico um papel paternalista e autoritário nessa relação, fazendo-o progredir em direção ao compartilhamento de informações e opiniões– abordagem sempre preocupada em assegurar a beneficência das ações profissionais de acordo com o interesse e o bem-estar do paciente (SIQUEIRA, 2008). É nessa problemática que se apresenta o artigo 41 do Código de Ética Médica, encontrado no Capítulo V, (Relação com Pacientes e Familiares), expondo que é vedado ao médico: Abreviar a vida do paciente, ainda que à pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou

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terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal (RESOLUÇÃO CFM nº 1.931, 2009, p. 39).

Esses textos resultam de um pensamento ativo e voltado a quebrar barreiras até outrora vigentes, posto que denotam repulsa ao encarniçamento terapêutico, à obstinação e à futilidade (MENEZES, 2011). Conforme mencionado acima, o CEM efetua uma orientação terapêutica: os cuidados paliativos. Isso, através da indicação de uma especialidade médica voltada para moléstias crônicas incuráveis. Diante do significativo aumento dos portadores de doenças crônicas de prognóstico reservado, os desenvolvimentos tecnológicos observados, sobretudo, na última década, tornaram possível prolongar a vida de pessoas doentes. Contudo, tais recursos terapêuticos podem ser desnecessários diante de pacientes em estágio terminal de vida. Atualmente, as Unidades de Terapia Intensiva (UTI) recebem muitos enfermos portadores de doenças crônicas incuráveis, cujas intercorrências clínicas envolvem o uso exacerbado de tecnologias, as quais permitem uma sustentação artificial da vida, como a ventilação mecânica, oferecendo, desta maneira, não mais que uma condição vegetativa ao paciente. Em muitos casos, a incessante busca pela cura e a rejeição da morte a todo custo, por profissionais médicos, superam os possíveis benefícios das suas ações oferecidas aos pacientes, fato este que ilustra o modo como a morte é encarada pelos médicos: ―como fracasso de sua atuação, fazendo com que determinadas condutas se tornem, em alguns casos, maléficos para os enfermos‖ (HERZLICH, 1993, p.6). Tais ações vão de encontro aos procedimentos sustentadores de vida em Cuidados Paliativos, os quais consistem ―nos princípios éticos da beneficência, da não-maleficência, da autonomia e da justiça‖ (SIQUEIRA, 2008). Contudo, apesar da limitação terapêutica encontrada na UTI em relação aos pacientes em estágio terminal, as discussões que envolvem os cuidados paliativos trazem à tona grandes conflitos bioéticos, não apenas entre os integrantes das equipes médicas e assistenciais, mas, sobretudo, dentro das relações familiares. A execução da filosofia dos cuidados paliativos existe há tempos no Brasil, apesar de ser um conhecimento de pequena amplitude na classe médica brasileira. Levando em consideração que as doenças crônico-degenerativas vêm crescendo acentuadamente no país, a prática e o debate acerca da temática dos cuidados paliativos crescem no mesmo ritmo. Não só por tal necessidade imposta, como também pela adoção e propagação de novos métodos e 232


processos terapêuticos no campo da oncologia, o cuidado paliativo começa a se inserir nos tratamentos das mais diversas enfermidades. Contudo, é importante salientar que o profissional deve antes ter certeza das condições reais do paciente e do prognóstico de sua doença a fim de optar de maneira correta pelos cuidados paliativos, priorizando, sempre, o seu bem-estar. Diante disso, é vedado ao médico, pelo Artigo 32 do Código de Ética Médica: ―Deixar de usar todos os meios disponíveis dediagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos ea seu alcance, em favor do paciente‖. Segundo as diretrizes da OMS (Organização Mundial de Saúde), Cuidado Paliativo é a abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através de prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual. (OMS, 2002, p.).

É notável, contudo, que há consideráveis falhas nas políticas de saúde brasileira, dificultando o acesso dos usuários aos serviços de saúde, bem como uma significativa falta de acesso à informação tanto pelos profissionais de saúde, quanto pelos pacientes acerca do cerne do cuidado paliativo, sendo este uma abordagem terapêutica contínua e integral, incorporando o conceito de cuidar e não somente curar. A OMS preconiza alguns princípios dos cuidados paliativos:  Promover o alívio da dor e de outros sintomas desagradáveis;  Não acelerar nem adiar a morte;  Afirmar a vida e considerar a morte um processo normal da vida;  Integrar os aspectos psicológicos e espirituais no cuidado ao paciente;  Oferecer um sistema de suporte que possibilite ao paciente viver tão ativamente quanto possível até o momento de sua morte;  Ofertar suporte para auxiliar os familiares durante a doença e durante o período do luto;  Disponibilizar abordagem multiprofissional para focar as necessidades do paciente e dos familiares;  Melhorar a qualidade de vida e influenciar positivamente o curso da doença;  Iniciar o mais precocemente possível o cuidado paliativo, juntamente com outras medidas de prolongamento da vida, como quimioterapia e radioterapia, e incluir todas as investigações necessárias para melhor compreender e controlar situações clínicas estressantes (OMS, 2002, p.).

No artigo XXII, dos Princípios Fundamentais do Código De Ética Médica do Brasil diz que: ―XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização 233


de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.‖ Nesse trecho do Código de Ética, o cuidado paliativo parece ser necessário somente na situação terminal e irreversível. Tal interpretação vai de encontro ao princípio da OMS listado acima e desconsidera o cuidado paliativo como um tratamento que pode ser realizado logo após o diagnóstico da doença. O cuidado paliativo deve ser embutido como terapêutica juntamente com as intervenções farmacológicas e outras medidas de prolongamento da vida logo quando se diagnostica a enfermidade. Todavia, tal cuidado paliativo vai aumentando na medida em que a possibilidade de cura através da intervenção da doença vai se exaurindo.

Figura 1: Evolução dos cuidados paliativos Fonte: http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa70_hivaids.htm

No Brasil, a ausência de uma legislação clara e objetiva associada à insegurança dos profissionais de saúde em decorrência da falta de informação explicam, por exemplo, a não existência de protocolos hospitalares associados à não-ressuscitação, mesmo sendo esta uma prática adotada com frequência, apesar de não ser formalmente registrada em prontuário. A falta dos registros formais vai de encontro à Resolução nº 1805/2006, a qual relata que: Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal (D.O.U., 2006, pg. 169).

Estudos epidemiológicos recentes na cidade de Catanduva/SP, que incluíram médicos habilitados e inscritos no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 234


(CREMESP), objetivaram conhecer e transparecer o estado atual da prática do cuidado paliativo, focalizando os preceitos éticos inerentes no exercício deste. Segundo Brugugnolli, os resultados esclareceram e evidenciaram uma grande deficiência no conhecimento sobre os deveres éticos dos médicos brasileiros. O CEM explicita que deve haver o respeito na autonomia do paciente em decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas. Baseando-se nessa definição, posta no Código de Ética, o estudo mostrou que muitos dos médicos não mencionaram em suas respostas o respeito necessário à autonomia do paciente, visto que não consideraram informálos sobre os diagnósticos e os prognósticos da sua enfermidade. Diante disso,infere-se que no Brasil há uma estratégia familiar e cultural de esconder o diagnóstico do próprio paciente, como uma maneira de mascarar a dor e o sofrimento que esse tipo de informação pode causar (BRUGUGNOLLI et al., 2013). O que torna ainda mais preocupante na análise destes dados é que 13,2% dos entrevistados responderam a questão de maneira totalmente inadequada, corroborando a necessidade de melhorias no âmbito educacional visando um maior debate em torno da temática do tratamento paliativo. (BRUGUGNOLLI et al., 2013). Por isso, a aceitação do cuidado paliativo como especialidade médica pode ser um caminho para a melhoria do atendimento, como também proporcionar a expansão no que se refere ao debate e a prática de tal cuidado. O Sistema Único de Saúde (SUS) ainda avança nessa temática que se mostra cada vez mais necessária e fundamental para um atendimento integral e de qualidade para o usuário da rede. A própria formação médica no Brasil mostra-se precária nesse sentido, não abordando a importância do cuidado paliativo e priorizando, na maioria das vezes, o tratamento biológico, farmacológico e ambulatorial, tendo como enfoque principal a cura e esquecendo o processo simples e trivial do cuidar do próximo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É perceptível que os dilemas referentes aos limites e à manutenção da vida, estão em clara evidência devido à produção contínua de aparelhos e tecnologias sofisticados e aumento da expectativa de vida. Todavia, um aspecto é central na tomada de decisões relativas aos processos vida – morte: os valores éticos e morais em evidência nas avaliações dos envolvidos. Logo, no exame de cada caso, é necessário levar em consideração a complexidade dos vieses presentes entre os atores sociais e a semântica das informações por eles produzidas e partilhadas. 235


Em suma, percebe-se que as resoluções de dilemas éticos são revestidas de verdades transitórias e sempre devem mostrar respeito incondicional à dignidade do ser humano enfermo. Além disso, que a aquisição de domínios para as tomadas de decisões deve ser construída com tolerância, humildade e respeito ao pluralismo moral embutido na sociedade. É nessa aura que se deve constituir o exercício da medicina do século XXI, sendo capaz de responder com maior acuidade os novos e velhos dilemas que permeiam o dia-a-dia da profissão, assegurando o paciente e transmitindo confiança ao profissional. A adoção de medidas como a implantação da disciplina do cuidado paliativo na grade curricular e na formação médica das universidades brasileiras é imprescindível. O seu reconhecimento como especialidade médica também se mostra de fundamental importância para que se alcancem melhorias concretas, não só no atendimento e na relação médico/paciente, mas também, para que haja uma plena adesão aos preceitos éticos que o CEM preconiza. Portanto, a realização de uma prática médica que alie os princípios bioéticos, a capacidade de relacionamento interpessoal com o paciente e o cultivo de qualidades humanas essenciais – integridade, respeito e compaixão - são fundamentais para o exercício de uma medicina de excelência onde a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal, são imprescindíveis na tomada de decisões que culminam na mais digna forma de viver os últimos dias.

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238


DA MERA PROMESSA AO EFETIVO CUMPRIMENTO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: A CRISE DE IDENTIDADE DA CONSTITUIÇÃO INSINCERA Paulo Fernando de Mello Franco1 João Lopes de Farias da Matta2 Tiago Musser dos Santos Braga3 Sumário: 1 Introdução. 2 Pluralismo Constitucional e o Desafio de Conferir Amplitude ao Direito Fundamental à Saúde. 3 Modernidade Periférica e Constituição Simbólica: o abuso do direito de Constituição. 4 Direito Fundamental à Saúde e Compromissos Dilatórios: a crise de identidade da Constituição insincera. 5Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO

Como se costuma dizer, em dupla paráfrase, nunca antes na história deste país os direitos fundamentais foram tão levados a sério. Cada vez mais e com maior ênfase, renovamse as esperanças por uma sociedade verdadeiramente plural e um mundo menos desigual. Da sinceridade dos anseios, não há quem duvide. Todavia, o mesmo não se pode dizer em relação às promessas. O que fazer? Abdicar da maravilhosa capacidade de ingenuamente acreditar 4 ou prescrever resiliência e propor soluções? O direito fundamental à saúde, enquanto direito nomeadamente de todos, é, de fato, tão amplo quanto anunciado? Ou, simplesmente, enunciação constitucional descompromissada com a realidade? O sentimento constitucional5 e a convicção interna da bondade intrínseca da constituição6 mostram-se, em tempos de insinceridade normativa, desacreditados e a fé 1

Pós-Graduado em Direito Público pela UCAM; Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Pesquisador Assistente no Centro de Pesquisa em Direito e Economia – CPDE da Fundação Getúlio Vargas – FGV; Professor convidado de Direito Civil Constitucional e Administrativo Econômico dos cursos de Pós-Graduação em Direito da FGV no Rio de Janeiro. 2 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);Pós-graduado em Direito Público pela Universidade Veiga de Almeida (UVA); Mestre em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); Auditor Fiscal do Estado do Rio de Janeiro. 3 Graduado em Direito pela Universidade Candido Mendes (UCAM); Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET); Mestre em Direito na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 4 "Chega de ação. Queremos promessas". BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. In Themis: Revista da ESMEC, Fortaleza, v. 4, n. 2, p. 13-100, jul./dez. 2006. 5 Cf., acerca do desenvolvimento da teoria do(s) sentimento(s) constitucional(is), bem como a definição de seus contornos teóricos como modo de integração política, VERDÚ, Pablo Lucas. El sentimiento constitucional. Ed Reus, Madrid. 1985.

239


constitucional7, citada por José Adércio Leite Sampaio, abalada. Enfim, a efetividade se enfraquece e, em determinadas situações, se anula8. E é justamente o desejo de corrigi-la e amenizar o ceticismo jurídico em matéria de direito à saúde que motiva o presente trabalho. Seguem os nossos argumentos e redarguições.

2

PLURALISMO

CONSTITUCIONAL

E

O

DESAFIO

DE

CONFERIR

AMPLITUDE AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Sabiamente aquilatado, o festejado Texto cunhado em 88, com as merecidas pirotecnias democráticas, fez, do singular, plural e transladou o patriarcalismo e o individualismo de outrora ao relento, aluindo-os sob a emersão dos princípios da solidariedade e da redundante – porém necessária – dignidade da pessoa humana. O preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, conquanto destituído de força normativa9, é, indiscutivelmente, vetor hermenêutico condicionante à interpretação das regras e princípios constitucionais que se lhe seguem. Como tal, transparecendo o acervo ideológico do constituinte originário, apregoou a construção de uma sociedade vernaculamente fraterna, pluralista e, pois,sem preconceitos, cujo Estado Democrático que ali se instituía asseguraria o exercício dos direitos individuais e sociais, dentre os quais decerto se destaca o direito à saúde como instrumentalização fundamental de concretização da dignidade humana que, além de encontrar fundamento ascético, tem assento constitucional.

6 V. VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 7 A fim de aprofundar a apreciação da esperança constitucional cuja crença emana do Texto, cf. SAMPAIO, José Adércio Leite. Democracia, constituição e realidade. In: Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1, p. 741-823. 8 BACELAR, Jeferson Antonio Fernandes. A lei de combate à poluição sonora de Belém: estudo de efetividade e federalismo sob uma perspectiva histórico-jurídica. Dissertação apresentada ao programa de Mestrado da Universidade da Amazônia – UNAMA Belém, 2009. 9 “O preâmbulo (…) não se situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do constituinte. É claro que uma Constituição que consagra princípios democráticos, liberais, não poderia conter preâmbulo que proclamasse princípios diversos. Não contém o preâmbulo, portanto, relevância jurídica. O preâmbulo não constitui norma central da Constituição, de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro. O que acontece é que o preâmbulo contém, de regra, proclamação ou exortação no sentido dos princípios inscritos na Carta: princípio do Estado Democrático de Direito, princípio republicano, princípio dos direitos e garantias, etc. Esses princípios, sim, inscritos na Constituição, constituem normas centrais de reprodução obrigatória, ou que não pode a Constituição do Estado-membro dispor de forma contrária, dado que, reproduzidos, ou não, na Constituição estadual, incidirão na ordem local”.ADI 2.076, voto do Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15-8-2002, Plenário, DJ de 8-8-2003.

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Imbuída deste ideal, enquanto pacto político que expressa a aludida pluralidade, a Carta materializa forma de poder que se legitima, justamente, pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas10. O pluralismo preambularmente proclamado imprime,principiologicamente, a noção de respeito à diferença e de reconhecimento às peculiaridades.E, neste contexto, insere-se o fenômeno globalizante e põe-se à prova seus desafios universalizantes. Como compatibilizar a lógica plural, de salvaguarda das particularidades sociais, com o cariz expansionista da globalização? Como proteger a individualidade se, em tempos de efervescência multitudinária, o que se apregoa é a formação comunitária una? Seria possível assegurar, irrestritamente, a salvaguarda do direito à saúde e, por conseguinte, do mínimo existencial na perspectiva micro se, em proporções globais, prestigia-se o todo pela parte? O discernimento da modernidade periférica11, à luz da qual se tem a formação novas periferias, de espectro dilargado, não mais restritas ao âmbito interno de cada Estado-nação, compostas, agora, por todos aqueles que escapam às elites políticas centrais, seja em razão de destaque econômico, tecnológico e, até mesmo ideológico, responsável por justificar a alteraçãoda configuração estrutural do mundo globalizado, cujo processo criacionalé, consoante percucientemente ilustrado por Jessé Souza, o que se segue:

A partir de 1808 temos no Brasil um exemplo típico do que venho chamando de processo modernizador da 'nova periferia', ou seja, sociedades que são formadas, pelo menos enquanto sociedades complexas, precisamente pelo influxo do crescimento – não da mera expansão do capitalismo comercial como no período colonial, que deixa intocadas estruturas tradicionais e personalistas – do capitalismo industrial europeu a partir da transferência de suas práticas institucionais impessoais enquanto 'artefatos prontos', como diria Max Weber 12.

Mostra-se oportuno o alarde porque a aludida modernidade periférica, enquanto fruto da recente intensificação globalizante, na medida em que acentua a desigualdade econômica entre Estados-nação centrais e aqueles que, adjacentes, se encontram às suas margens, acaba por estimular a constitucionalização simbólica13, sobre a qual a seguir falaremos, típica de realidades circunvizinhas, cuja faceta de resposta imediata às demandas sociais eclodidas, 10

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2010. p. 143. 11 No que pertine a modernidade periférica, v. NEVES, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der peripherenModerne.EinetheoretischeBetrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien, Berlin, 1992. 12 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003, p. 143-144. 13 A expressão constitucionalização simbólica remete à obra assim intitulada NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3a.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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cada vez mais urgentes e numerosas, tem como contrapartida a ausência do devido comprometimento, por parte destas constitucionalizações, com a concretibilidadee factibilidade das promessas irrealizáveis, também mencionadas por Pablo Lucas Verdú. Cala-se o povo, mas não se cumprem as vontades constitucionais. Alimenta-se o faminto, mas não se erradica a fome. Cuida-se da saúde de alguns, mas não da de todos. Será esta simulação constitucional, quando ocorrente, suficientemente caracterizadora, a teor do artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 178914, do conceito de Constituição? Será está dissimulação constitucional, além de socialmente inaceitável, judicialmente sindicável? A sociedade contemporânea é, como dito preambularmente15, verdadeiramente plural ou elitizada, como sempre?Será esta a Constituição vista como expressão viva de um povo16? Qual a abrangência do direito fundamental à saúde por nós desejada, como detentores do poder constituinte originário?

3

MODERNIDADE PERIFÉRICA E CONSTITUIÇÃO SIMBÓLICA: O ABUSO

DO DIREITO DE CONSTITUIÇÃO

A modernidade periférica, conforme observado por Marcelo Neves à luz da teoria NiklasLuhmann, afeta a estruturação das expectativas normativas e, se lhe atribuindo baixo ou nenhum grau de concretização possível, desacredita a Constituição e decepciona os verdadeiros titulares do poder constituinte:

Tendo como referencial o modelo luhmanniano, é possível uma releitura no sentido de afirmar que, na modernidade periférica, à hipercomplexificação social e à superação do ―moralismo‖ fundamentador da diferenciação hierárquica não se seguiu a construção de sistemas sociais que, embora interpenetráveis e mesmo interferentes, construam-se autonomamente no seu topos específico. Isto nos põe diante de uma complexidade desestruturada e desestruturante. [...]Portanto a modernidade não se constrói positivamente, como superação da tradição através do

14

Art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789:“Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. 15 A construtibilidadeproemial da pluralidade social pretendida encontra-se insculpida no preâmbulo da CRFB de 1988 que, a despeito da prevalência da tese de sua irrelevância jurídica, merece menção porquanto pertinente: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. 16 VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como ciencia cultural.Madrid: Dykinson, 1998, p. 40.

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surgimento de sistemas autônomos de ação, mas apenas negativamente, como hipercomplexificação desagregadora do moralismo hierárquico tradicional 17.

A verborragia lacônica da Constituição, decorrente da modernidade globalizada periférica, denota a incompatibilidade entre Texto e realidade e; a desconexão entre intenção e ação, remetendo-se ao debate concernente à ideia de constitucionalização simbólica, desenvolvida, com maestria, também pelo ilustríssimo constitucionalista Marcelo Neves, para quem caracteriza-sepela percepção da discrepância entre a função hipertroficamente simbólica e a insuficiente concretização jurídica de diplomas constitucionais18, conjuntura marcante da modernidade periférica. A relevância da tese se justifica porquanto o alerta para uma constitucionalização meramente simbólica pretende exacerbar a discussão acerca da (in)eficácia constitucional. Mais do que isto, vislumbra ir além para, perquirindo descobrir os efeitos sociais da função simbólica19 das emanações constitucionais normativamente ineficazes, identificar as hipóteses em que o constituinte pretende, de fato, concretizar ulteriormente as vontades constitucionais e; aquelas em que, porém, simplesmente estabelece compromissos dilatórios. Vale dizer, desloca-se a análise do lócus de produção ou não de resultados para, em corte epistemológico pretérito, vislumbrar a (in)existência de boa-fé constitucional por parte do plantel constituinte. A propagação insincera de regras e princípios constitucionais, a que se pode configurar, nalguma medida, como hipótese de abuso do direito de Constituição, intenta, exclusivamente, adiar conflitos sociais emergentes e frustrar as legítimas expectativas constitucionais que ansiava o povo, enquanto senhorio do poder constituinte e, com isto, estabelecer compromissos dilatórios. O

descomprometimento

político

postergatório

e

a

irresponsabilidade

constitucionalizante com a concretização fático-jurídica das positivações constitucionais incrementam, como dito anteriormente, o descrédito social e jurídicodo Texto, pois que mitiga sua efetividade e eficácia e culmina em uma crise de identidade da Constituição sem precedentes. Afinal, embora se disponha a, textualmente, tudo fazer; acaba por, porque eminentemente pródiga e necessariamente interditável, nada fazer.

17

NEVES, Marcelo. Luhmann, Habermas e o Estado de Direito. In: Lua Nova – Revista de Cultura Política, n. 37, p. 93-106, 1996. 18 NEVES, Marcelo. Op. Cit., 2011. p. 1. 19 NEVES, Marcelo. Idem. p.1.

243


Diante disto, poder-se-ia arguir, à luz do cenário brasileiro de modernidade periférica, recém atingida a maioridade constitucional, o porquê de instarem desrespeitados os objetivos fundamentais, conforme dicção do art. 3º, I e III, de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, cujo mister perfaz-se na diminuição das desigualdades sociais e regionais. Há, conquanto dificultosa, salvação? A (des)indentificação constitucional que se instaura diante de constitucionalizações abrangentes e irresponsáveis, a despeito das boas intenções potencialmente presentes, enseja até mesmo o questionamento, ante a lamentável insinceridade constitucional que, há muito, segue vigendo, quanto a verificação da (im)possiblidade de falar-se, efetivamente, em (in)eficácia horizontal dos direitos fundamentais, uma vez que, antes de pretender sê-la horizontal ou vertical – ou, como defendemos exaustivamente, côncava20 –, deve, primeiro, ser eficaz, o que, não raro, é inverossímil.A Constituição brasileira ainda está longe de ser plenamente efetiva21. Não há quaisquer resquícios eficaciaisperceptíveis quando, ao sairmos às ruas em um dia chuvoso de inverno, deparamo-nos com crianças e idosos ao relento, abandonados à margem da sociedade, agonizando de frio – majorado pela fome, a eles corriqueira. Da mesma forma, sequer destes mesmos indícios de eficácia e efetividade da Constituição cogitamos ao defrontarmo-nos com gravemente enfermos que amargam longas e intermináveis filas em hospitais públicos, porquanto destituídos de possibilidade aquisitiva para custear planos de saúde privada – e aqui, tão somente existentes porque imperito o Estado em proceder às políticas publicas efetivas e necessárias a sua satisfação –, restritos a uma minoria dominante. Eisquão insincera é a Constituição. Eis como, de forma alguma, poderia sê-la. Em redarguição ao eminente desejo de candidez constitucional de concretização materializável dos interesses socialmente relevantes que impulsionam a vontade de Constituição e propulsionaram sua constitucionalização, surge o debate contemporâneo do constitucionalismo na América Latina, dentre os quais se destaca, por todos, a importância da tese prospectiva de constitucionalismo de futuro22, aquilatada por José Roberto Dromi. O constitucionalismo de futuro, comprometido com o dever de eficácia constitucional, visa a tutelar a legítima expectativa constitucional, instaurada no âmago daqueles que, 20

FRANCO, Paulo Fernando de Mello. Estado de Direito ou Estado de Direitos? Evolucionismos Constitucionais e a Nova Eficácia dos Direitos Fundamentais. Trabalho apresentado no XXIII Congresso do Conselho Nacional de Pesquisa Pós-Graduação em Direito – CONPEDI, realizado entre os dias 30 de abril e 03 de maio de 2014, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. 21 SARMENTO, Daniel. In: RDE Revista de Direito do Estado. Ano 1, nº 2, abr/jun 2006, p. 84-85. 22 DROMI, José Roberto. La reforma constitucional: el constitucionalismo del “por venir” In: El derecho publico de finales de siglo: una perspectiva iberoamericana. Madrid: Fundación BBV, 1997.

244


confiantes, acreditam no potencial transformador da Constituição.Para a perspectiva de futuro do constitucionalismo, as miragens constitucionais, i.e., as proposições const itucionais que pouco ou nada têm de eficazes, não mais se justificam. E, é justamente no cerne do neoconstitucionalismo, em que a jurisdição constitucional se afirma capaz de concretizar as vontades constitucionais, e; no constitucionalismo de futuro, máxime porquanto vinculado a uma constituição verdadeiramente sincera e que preserva os méritos dos modelos anteriores, sem ater-se, exclusivamente, a eles, que encontramos os fundamentos necessários para desenvolver não apenas a funcionalização dos direitos subjetivos em prol da concretização da eficácia horizontal dos direitos fundamentais23,como também a afirmação de sua eficácia imediata e, tendo em vista a abordagem desenvolvida no presente trabalho acerca da globalização, uma verdadeira eficácia horizontal internacional24, a que se vinculam os particulares, mutuamente, ainda que a lume de Estados pluriétnicos diversos. Em plena era da internet, cuja intensificação é relativamente recente, cada vez mais se colocam em discussão a tutela de direitos fundamentais internos na esfera internacional – os quais, para fins acadêmico-doutrinários, adquirem a nomenclatura de direitos humanos – e, por conseguinte, seus respectivos limites. Fez-se, do real, virtual e, superando Julio Verne, em um segundo, dá-se a volta ao mundo, sem que se saia de casa e, a par desta agilidade com que se transmitem informações – o que, aliás, é umas das facetas típicas da globalização abrangente –, surge um sem-número de questionamentos jurídicos. Neste aspecto sobressaem os riscos da constitucionalização simbólica e das miragens constitucionais que lhe são peculiares. O dinamismo inerente à globalização e o interesse público, cambiante por essência, desafiam, de maneira perene, a ordem constitucional a adequar-se ao direito global e, sem prejuízo deste ou daquela, a concretizar ambas, o que, salvo utopicamente, nem sempre é possível, principalmente às luzes de constituições compromissórias – i.e., que congregam ideologias aparentemente paradoxais e porventura divergentes em um mesmo Texto – como, por exemplo, a brasileira. Para responder, pronta e rapidamente, às demandas sociais, o Estado se vale do que Marcelo Neves denominou de legislação-álibi, a qual, congênere à constitucionalização

23

Cf., no que pertine à teorização da eficácia horizontal, FRANCO, Paulo Fernando de Mello Franco. A Funcionalização dos Direitos Subjetivos como Paradigma Concretizador da Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Monografia de conclusão de curso apresentada em 2010 à Universidade Candido Mendes – Centro, como requisito essencial à obtenção do grau de bacharel em Direito. 24 Como desenvolvimento da perspectiva internacional da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, cf. FRANCO, Paulo Fernando de Mello. A Eficácia Horizontal Internacional dos Direitos Fundamentais, no prelo.

245


simbólica, diante de certa insatisfação da sociedade, ainda que como modalidade de disfarce à realidade, cria:

[...] a imagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normatizadas de maneira consequente conforme o respectivo texto legal. Nesse sentido, pode-se afirmar que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de ilusão que imuniza o sistemapolítico contra outras alternativas, desempenhando uma função ideológica25.

A superação da sistemática inclusão de redarguições constitucionais lacônicas ou megalômanas, todas irrealizáveis, remonta ao substrato teórico do constitucionalismo de futuro e seu peculiar discurso denotativo que notadamente se sobrepõe ao conotativo de outrora, de modo que as ilusões constitucionais, ao menos aquelas que não se compatibilizam com os anseios constitucionais,são extirpadas da ordem constitucional.Como exemplo disto, em que o bem-estar ficto dá assento constitucional ao bem-estar real e plenamente factível, pode-se citar, novamente, a Constituição do Equador. Não é a toa que, ilustrando essa nova fase do constitucionalismo, de cariz pós neoconstitucional, que, logo a partida, a Carta equatoriana já afirma o respeito às raízes milenares, forjadas por distintos povos, o pertencimento à natureza, vital para a existência e a invocação das diferentes formas de religiosidade e espiritualidade, corporificando, à Constituição, viés pluralista. A dignidade da pessoa humana é por ela tratada como, também, dignidade das coletividades, pelo que invocaa sabedoria de todas as culturas que nos enriquecem como sociedade, como herdeiros das lutas sociais de libertação diante de todas as formas de dominação e colonialismo, e com um profundo compromisso com o presente e o futuro26. A tutela das nacionalidades, pois, se dá em prol doalcance do bem viver, osumakkawsay27, citado ao longo de todos os artigos da Constituição do Equador.

25

NEVES, Op. Cit., 2011, p. 34. Cf. o preâmbulo da Constituição da República do Equador: “NOSOTRAS Y NOSOTROS, el pueblo soberano del Ecuador RECONOCIENDO nuestras raíces milenarias, forjadas por mujeres y hombres de distintos pueblos, CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existencia, INVOCANDO el nombre de Dios y reconociendo nuestras diversas formas de religiosidad y espiritualidad, APELANDO a la sabiduría de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad, COMO HEREDEROS de las luchas sociales de liberación frente a todas las formas de dominación y colonialismo, Y con un profundo compromiso con el presente y el futuro [...]”. 27 O sumakkawsay,ou bem viver emquíchua, uma das duas línguas indígenascujosusá-lo agoratornaoficialjuntamente com o espanhol, é citado do início ao fim do Texto nos artigos. 14; 26; 32; 74; 83/1; 97; 250; 258; 275; 277; 278; 283; 290/2; 319 e; 387; todos do capítulo primeiro e, 8 e; 9, do capítulo segundo. 26

246


Se de fato a vida boa será possível a todos os equatorianos ou se se trata meramente de compromisso constitucional dilatório, só o tempo vida dirá. O fato é que, atenta para o risco da constitucionalização simbólica de pouco ou nenhum efeito na realidade prática, o Texto equatoriano mostrou-se sensível e, mais do que simplesmente tratar o reconhecimento multiétnico apenas e tão somente em seu preâmbulo – como o fez a Carta brasileira de 1988 – , bem andou a Constituição do Equador no que pertineas problemáticas culturais, sociais e étnicas, dentre as quais se destacam as que circunscrevem a questão da correlação entre direito fundamental à saúde e bem viver como vontade de Constituição.

4

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E COMPROMISSOS DILATÓRIOS: A

CRISE DE IDENTIDADE DA CONSTITUIÇÃO INSINCERA

As escolhas públicas se justificam diante da impossibilidade de cobertura universal, de fato e não meramente de direito, que se traduz na imprescindibilidade de que sejam alocados valores e distribuídos recursos para que se atenda ao maior número de administrados. Em um mundo ideal, longe, infelizmente, de nossa realidade, se pudessem, os administradores públicos fariam tudo que estivesse a seu alcance para que se garantisse a todos, sem exceção, uma existência digna e minimamente feliz. Até mesmo o mais pessimista dentre os pessimistas antropológicos não duvidaria disto. Todavia, em um cenário fático de necessidades infinitas e recursos limitados, não o fazem não porque não querem, mas porque não podem28. Como se costuma dizer, o dinheiro não nasce em árvores29 e não há almoços grátis. O cobertor é curto, as pernas são compridas e o frio é intenso. É bem verdade que, ainda assim, ao menos em teoria, a conjuntura pátria, no que tange ao direito fundamental à saúde, trilhou o caminho do êxito. Há críticas, sem dúvidas. Todavia, há também conquistas cujos louros merecem enaltecimento. O Sistema Único de Saúde (SUS), edificado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como medida densificadora da saúde como viés da seguridade social é, reconhecidamente30, um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, máxime em virtude de sê-lo integral, universal e gratuito – ao contrário de outros Estados em que a saúde ostenta caráter particularista e 28

V. HOLMES, Stephen and SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. W.W.. Norton, 2000. 29 GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. 30 “In 1988, half of Brazil's population had no health coverage. Two decades after establishing its Unified Health System (Sistema Único de Saúde), more than 75% of the country's estimated 190 million people rely exclusively on it for their health care coverage”. Disponível em: <http://www.who.int/bulletin/volumes/88/9/10020910/en/>. Acesso em: 04/05/14.

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contributivo – pelo que, vale dizer, o acesso ao direito sanitário público se restringe àqueles que contribuem para tanto, relegando-se os demais a, no mais das vezes, espécies de Santas Casa31. No entanto, como já anunciamos, há sérios, graves e atuais problemas que demandam enfrentamento enérgico e energético, sob pena de que as projeções constitucionais, imbuídas de pretensão construtiva, remanesçam no campo da mera conjectura e poesia utópica. A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde32 caminha justamente neste salutar sentido. Assegura-se a seus destinatários que todo cidadão tenha direito a atendimento que respeite a sua pessoa seus valores e seus direitos e; dentre outras medidas garantidoras, que todos tenham, igualmente, direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação. O direito fundamental à saúde, preconizado pela Constituição, ensimesma-se no cumprimento destes vetores axiológicos? Ou, a fim de conferir-lhe máxima efetividade hermenêutico-concretizadora, seria preciso qualificar a saúde enquanto posição jurídica fundamental? Preocupa-se, quando da concretização do direito fundamental à saúde, com a concretização do direito fundamental à boa saúde, como especificação daquele. As congratulações pelos louváveis avanços concernentes à construtibilidade do direito sanitário e sua imprescindível otimização não pode significar estagnação por parte do Estado. É preciso ir além e, mais do que perquirir a saúde constitucionalmente preconizada pelo Texto, garantir sê-la boa. É dizer, ao náufrago, a sobrevivência; à pessoa humana, a existência digna. Recentemente vivenciamos a implementação de polêmica política pública de incremento dos recursos humanos médicos, através do programa ―Mais Médicos‖ do Governo Federal, cujo espanto inicial se deve mais por desconhecimento generalizado do que por aspectos negativos propriamente ditos33. De todo modo, evidencia-se que, a despeito de não terem os administradores públicos pretéritos conseguido sanar todas as vicissitudes em matéria de saúde pública – até porque, à boa Administração, a inquietude e perene transformação se lhe são imprescindíveis –, o Estado desvelou-se de postura inercial e demonstrou vontade política de, tanto quanto possível, agir – e convencer, mediante resultados.

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Apenas a título exemplificativo, v. "Americanos sem seguro de saúde vivem um drama diário nos EUA”. Disponível em: <oglobo.globo.com/mundo/americanos-sem-seguro-de-saude-vivem-um-drama-diario-nos-eua5792309>. Acesso em: 16/03/2014. 32 Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_direito_usuarios_2ed2007.pdf>. Acesso em: 04/04/14. 33 Para uma leitura crítica acerca do programa, inclusive em defesa da constitucionalidade do projeto, v. VASCONCELOS, Douglas Borges de. Programa Mais Médicos: Exegese Constitucional da Política Pública. Artigo apresentado no XXII Congresso Nacional do CONPEDI em Florianópolis, UFSC, 2014.

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Percebe-se, com isto, além da insuficiência da alegação de reserva do possível – a ser substituída, pois, pelo arcabouço argumentativo da teoria da aproximação –, presente na quase totalidade das exceções protocoladas pela Fazenda Pública demandada para fins de cumprimento forçado dos mandamentos constitucionais sanitários, a corroboração da hipótese por nós esposada: há graus de concretização do direito fundamental à boa Administração e, pois, em relação de proporcionalidade direta, graus de atuação ótima, possível ou desejável do Poder Judiciário, a depender, esta, da maior ou menor intensidade com que aquela se desenvolva. Há, por conseguinte, níveis de concretização do direito fundamental à saúde e, até que se instaure sinceridade constitucional que confira aos destinatários primevos das emanações do Texto acesso verdadeiramente amplo, irrestrito e gratuito, não disporá o Estado da qualificação de boa Administração Pública.

5

CONCLUSÃO

Eficácia, na mais ampla acepção da palavra, é o que se espera da Constituição. É claro que é fundamental que se tenha nuances simbólicas na Constituição, como forma de mecanismo inoculador, no âmago dos destinatários dos ditames constitucionais, força criativa propulsora de vontade constitucional. Todavia, não a ponto de torná-la calenda grega. A constitucionalização simbólica, peculiar aos Estados de modernidade periférica, deságua na constatação de que, ainda que houvesse alterações estruturais em suas concretizações, seu processo político decisório intenta, certamente, que o mundo evolua e se renove para que, parafraseando, em ações, a célebre citação atribuída aoPríncipe de Falconeri, tudo continuasse do mesmo modo em que antes se encontrava. E, como dito, não é esta a vocação de frustração das legítimas expectativas constitucionais que dela se espera.

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EUTANÁSIA: A CONJUNTURA ATUAL DIANTE DA REGULAMENTAÇÃO PÁTRIA E UMA PROPEDÊUTICA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA LEGISLATIVA ESTRANGEIRA Ramon Olímpio de Oliveira1 Nayara Toscano de Brito Pereira2 Robson Antão de Medeiros3 Sumário: 1 Introdução. 2 Pluralidade conceitual. 3 Construção dos argumentos favoráveis e contrários. 4 A análise da eutanásia à luz da legislação estrangeira. 5 A análise da eutanásia no direito brasileiro. 5.1 A eutanásia à luz da constituição. 5.2 PL 125/96 e o anteprojeto do novo Código Penal. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO É de evidente percepção o fato de que a vida é um direito fundamental, natural, inerente ao ser humano, garantido pela Constituição e abordado em vários tratados e convenções internacionais. O direito à vida é inquestionável, indisponível e inato, cabendo ao Estado garantir que esse direito não seja violado. No entanto, no que tange ao direito à vida, surgem vários questionamentos que merecem nossa atenção. Levando em consideração a autonomia que o ser humano tem sobre o próprio corpo, poderia ele dispor desse direito? Em casos de pacientes terminais, até que ponto o indivíduo deixa de ser detentor do direito à vida e este passa a ser o ―dever de viver‖? Acerca da possibilidade de dispor do direito à vida, surge uma matéria bastante polêmica: a eutanásia. Este instituto surgiu para dar fim ao sofrimento de pacientes em estado terminal, sendo conhecida como uma forma piedosa de proporcionar a morte, mas, muitas vezes, tratada com homicídio. Os avanços na tecnologia e na medicina proporcionam um aumento substancial na expectativa de vida das pessoas. No entanto, para pacientes com doenças em estado terminal, esse aumento de expectativa pode, muitas vezes, representar apenas um prolongamento de seu sofrimento. Levando em conta que o Estado não pode deixar de cumprir seu papel de garantidor, estaria ele forçando um estado de distanásia e, dessa forma, ferindo a dignidade da pessoa humana? 1

Graduado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ; Pós-Graduando em Direito Tributário e Processo Tributário pela Escola Superior de Advocacia Flósculo da Nóbrega – ESA/PB; Advogado. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba; Bolsista de Iniciação Científica do CNPq/; Integrante do grupo de pesquisa Justiça & Política – JusPol. 3 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra; Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba; Vice-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba.

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A eutanásia é matéria geradora de diversas discussões e de várias correntes de pensamento. A pluralidade de opiniões se dá, muitas vezes, pela dificuldade de afastar da análise a carga ético-religiosa do indivíduo, para que esta não pese em seu entendimento e ele se dedique a observar cada caso isoladamente. Assim, dificilmente o indivíduo conseguirá chegar a uma conclusão lógica de forma imparcial ou sem juízo de valores. De modo geral, o presente texto tem como escopo promover uma sucinta análise da eutanásia, desde a abordagem que está imiscuída no contexto do panorama ético que perpassa o tema, até a concretude vivenciada no Brasil e externamente, nos dias atuais, observando como a legislação vem avançando nessa seara. Tomando por base o método indutivo, visa-se a analisar, quando do estudo ainda precípuo da grande influência bioética na discussão acerca da eutanásia, documentos trazidos mormente em revistas on-line e códigos penais. O primeiro é a Declaration on Euthanasia, fazendo um recorte temporal do início da década de 1980, no contexto do Vaticano, o qual na prática ainda exerce influência nos dias hodiernos, embora seja necessário um Estado realmente laico. Ademais, busca-se a perfilar as características da legislação vigente na Holanda, a qual é datada de 2001, sendo um documento muito relevante para o mundo inteiro, devido às inovações da área. Além disso, se verá como está configurada a legislação vigente atualmente na Bélgica, fortemente influenciada pela Holanda, a qual foi elaborada em 2002, bem como a conjuntura do suicídio assistido suíça, que vem influenciando países outros. Analisar-se-á, por fim, o Código Penal do Uruguai, datado de 1934, mas que ainda vigora hoje em dia. Assim, buscou-se perceber como se apresenta a temática da eutanásia num país mais próximo do Brasil e que acaba por influenciá-lo mais diretamente, para que, num último momento, possa-se mostrar em que medida o Código Penal brasileiro, de 1940, se aproxima do tema, bem como, em sede do Anteprojeto do Novo Código Penal, é abordada a questão. Para finalizar, foi elaborada a proposta dos autores deste artigo para uma possível previsão mais detalhada da eutanásia na legislação brasileira. 2 PLURALIDADE CONCEITUAL Há uma grande variação de sentidos do termo eutanásia, consequência de inúmeros equívocos, explicados em grande parte por estar sujeito a variações culturais. Não é incomum as pessoas atribuírem à eutanásia a idéia de homicídio, suicídio influenciado ou genocídio, como conseqüência da herança nazista, posto que o século XX trouxe uma conotação negativa 254


por meio de políticas públicas do Terceiro Reich, que se utilizaram do termo para práticas diametralmente opostas às defendidas pela boa morte. Em consonância com a atualidade, podemos entendê-la como antecipação voluntária da morte, perpassando por uma preocupação humanitária principalmente sobre o enfermo, mas também com a coletividade sobre um sofrimento insuportável, através do emprego ou abstenção de procedimentos que permitiriam o prolongamento da vida do enfermo incurável. Há uma corrente norte-americana que defende a eutanásia, mas vai além dessa idéia humanitária, preocupando-se com a utilidade da pessoa para a sociedade. Dessa forma, pessoas com doenças que afetem a sua capacidade de trabalho e produção poderiam também recorrer à eutanásia para por fim às suas vidas. A idéia defendida por essa corrente não é muito difundida, pois poderia abrir margem para uma prática eugênica, o que de longe não é o interesse dos defensores da boa morte. Antes de tudo, é necessário expor a definição de eutanásia que será utilizada nessa pesquisa, qual seja a do professor Luciano de Freitas Santoro ao dizer que ―eutanásia pode ser entendida como o ato de privar a vida de outra pessoa acometida por uma afecção incurável, por piedade e em seu interesse [...]‖. (SANTORO, 2010, p. 117). O estudo sobre a eutanásia torna indispensável a compreensão dos conceitos de suicídio assistido e diretivas antecipadas de vontade. A assistência ou auxílio ao suicídio, bem como sua instigação e induzimento, são condutas tipificadas no Código Penal (BRASIL, 1940), em seu artigo 122, e punidas com pena de reclusão. Muitos países utilizam-se do suicídio assistido como alternativa à eutanásia, já que no momento final caberá ao paciente acabar ou não com a própria vida, excluindo a hipótese de homicídio, ainda que piedoso. Diversos autores consideram a eutanásia como uma forma de suicídio assistido, já que, muitas vezes, o paciente não realiza o procedimento sozinho porque não tem mais forças para tanto. Sobre a eutanásia como forma de suicídio assistido, Hurbert Lepargneur fala que:

A eutanásia é também muito vizinha do suicídio (muito pouco condenado no Antigo Testamento, se tanto), sendo no fundo um suicídio assistido. O uso preferível do termo "eutanásia" visa a situação em que o interessado quer livremente morrer, mas não consegue realizar seu ‗desejo amadurecido, por motivos físicos. (LEPARGNEUR, 2009)

As diretivas antecipadas de vontade surgiram em 1991 nos Estados Unidos, funcionando como um testamento, já que consistiam nas últimas vontades daquele que as escreveu. Nela, o indivíduo pode declarar o que deve ser feito caso perca sua consciência e não possa explicitar sua vontade. 255


No Brasil, essas diretivas estão previstas na Resolução 1995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Assim como nos Estados Unidos, elas têm por objetivo expor a vontade do paciente sobre os procedimentos a serem tomados caso não possa exprimir sua vontade. Frise-se, no entanto, que, ao contrário do que acontece no citado país, as diretivas não podem ir de encontro ao Código de Ética Médica. Com isso, as diretivas perdem muitas vezes seu efeito, já que podem ensejar um desejo de eutanásia ou pedidos de assistência ao suicídio, por exemplo, que não poderão ser atendidos pelos médicos. Insta destacar, para que não se confunda mais a eutanásia com o homicídio, por exemplo, que ela se baseia no ato em si e no consentimento do enfermo. Assim, temos distinções quanto ao ato: eutanásia ativa é ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento de paciente por fins humanitários, por exemplo com a aplicação de injeção letal; já a eutanásia passiva é a omissão proposital de ação que poderia perpetuar a sobrevida; a seu turno, a eutanásia de duplo efeito é a que se configura em casos em que a morte é acelerada como consequência de ações médicas que visam ao alívio do sofrimento do paciente, tal qual a administração de morfina pra controlar a dor, que acaba por ter como resultado a morte por falência respiratória. Ademais, há distinções quanto ao consentimento. Assim, vemos que: A eutanásia voluntária é aquela onde o ato é praticado por conseqüência de um pedido por parte do enfermo. Não menos polêmica que as demais espécies, a eutanásia voluntária encontra diversos posicionamentos contrários a sua prática, haja vista, que o discernimento do enfermo encontra-se alterado em decorrência do grande sofrimento a que está exposto (CAMPOS; MEDEIROS, 2011).

Podemos concluir que a eutanásia involuntária se dá quando o ato é praticado contra a vontade do individuo e a não voluntária ocorre quando o ato é praticado sem conhecimento da vontade do paciente. À luz da bioética, diferentes argumentos são construídos de acordo com as diferentes categorias de eutanásia relativas ao ato em si, havendo quem condene a eutanásia ativa, mas aceite a passiva ou, ainda, a de duplo efeito. Todavia, no que se refere ao consentimento do enfermo, não há qualquer justificativa moral para a eutanásia involuntária, pois é, de fato, um ato criminoso, na medida em que representa um desrespeito à vontade do paciente. Contudo, há discussões acerca da eutanásia voluntária e da não voluntária. 3 CONSTRUÇÃO DOS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS E CONTRÁRIOS 256


Alguns dos argumentos mais importantes contrários à eutanásia centram-se no princípio da sacralidade da vida e do slippery slope. Em se tratando da dita proibição, avulta ressaltar a importância que o posicionamento da Igreja Católica Apostólica Romana possui frente à questão, haja vista que, embora inúmeros Estados sejam laicos, resta evidente a influência que a religião ainda exerce no tocante aos debates sobre a relativização da vida. Diante do debate travado em várias Conferências Episcopais, foi redigido o documento intitulado Declaration on Euthanasia, preparado pela Sacred Congregation for the Doctrine of the Faith. Dentre outras coisas, a Sagrada Congregação dispôs que: Ora, é necessário declarar uma vez mais, com toda a firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerereste gesto homicida para si ou para um outro confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra ahumanidade (VATICANO, 1980).

Em contraposição à sacralidade da vida, há a dignidade da pessoa humana e sua autonomia, pois, quando o ―estar vivo‖ se torna um tormento, não há que se falar no bem da vida com fim nele próprio. O slippery slope, ainda contrário à eutanásia, defende que não podemos abrir concessões aparentemente inocentes em temas tão controversos, pois, desse modo, poderíamos cair em práticas inequivocamente maléficas. Já os argumentos a favor se alicerçam em dois principais postulados: o princípio da qualidade de vida e o da autonomia pessoal. A vida, defendida no artigo 5° de nossa Constituição como direito fundamental, assim como em Tratados e Convenções Internacionais, é definida, segundo José Afonso da Silva, da seguinte maneira:

[...] integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). A ‗vida é intimidade conosco mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesma, um assistir a si mesma e um tomar posição de si mesma‘. Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais – como igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar -, se não erigisse a vida humana num desses direitos. (SILVA, 2009, p. 66)

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Uma das questões mais delicadas em relação à qualidade de vida é determinar qual o real significado de uma vida que vale a pena e para quem deve ser dado o direito de decidir sobre tal significação. Com base na teoria de Kant (1989, p. 195), o ato genuinamente moral deve ser concebido no pleno exercício do sujeito ético. Dessa forma, cabe apenas ao principal interessado decidir sobre sua vida ou morte, já adentrando no princípio da autonomia. A autonomia pessoal defende que a liberdade de escolha do homem que está doente seja respeitada, ou seja, é de competência do individuo a escolha do que é importante para si, inclusive o processo de morrer de acordo com seus interesses e valores legítimos. O instituto da autonomia garante que o indivíduo que se encontra em estado terminal tenha a liberdade de escolher o caminho que desejar, é a desistência do direito à vida (ainda que indisponível diante da Constituição) para garantir a morte digna. Mesmo sendo matéria intimamente ligada ao Direito à vida, a eutanásia, como dito anteriormente, não pode deixar de ser citada sem a dignidade da pessoa humana, uma vez que a extensão involuntária da expectativa de vida do indivíduo acaba por gerar uma sobrevida indigna e miserável, violando esse princípio tão importante. Em meio a toda a discussão, é palpável a dificuldade para uma solução jurídica justa, pela subjetividade própria do debate, por isso é imprescindível um estudo trans-disciplinar entre as ciências médicas, jurídicas e sociais, para chegar a uma resposta satisfatória aos anseios da sociedade contemporânea.

4 A ANÁLISE DA EUTANÁSIA À LUZ DA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA

Pautando-nos na discussão ética, corolário da temática da eutanásia, há que se avaliar como se configura, em concreto, essa abreviação da vida em países outros que não o Brasil, para que, fazendo uso desse direito comparado, tenhamos o alicerce para a compreensão de nossa própria realidade nacional. A nível global, tem-se versado sobre o tema nas mais diversas legislações. Todavia, em geral, visa-se máxime a proibir, ou ao menos restringir, a prática. Para isso, é feita a observância a critérios específicos, a depender do local. Não obstante a proibição da eutanásia ser fortemente adotada, deve-se atentar ao fato de que há países que permitem a exclusão de ilicitude se atendidos certos critérios no cometimento da eutanásia e quem praticar tal conduta não será, pois, punido. Aqui, falar-se-á da Holanda, Bélgica e Uruguai, observadas as devidas peculiaridades. 258


Corriqueiramente, diz-se que a Holanda foi o primeiro país a legalizar a eutanásia, fato ocorrido no ano de 2001, através de legislação específica, que recebeu o nome de “Wet van 12 april 2001, houdende toetsing van levensbeëindiging op verzoek en hulp bij zelfdoding en wijziging van het Wetboek van Strafrecht en van de Wet op de lijkbezorging”. Embora a denominação tenha uma difícil tradução para o português, percebe-se que versa sobre o término da vida sob solicitação e suicídio assistido, bem como a alteração do Código Penal e da Lei de Entrega do Corpo. No entanto, deve-se perceber que não há a total descriminalização da eutanásia. Ao contrário, ela continuou sendo crime nos Países Baixos, haja vista que o Código Penal permaneceu punindo-a. Porém, com esta inovação no ordenamento jurídico holandês, foi inserida no artigo 293 do Código a exclusão da ilicitude nas condutas praticadas pelos médicos que estivessem em conformidade com a referida lei, caso contrário haveria a imputação normal. Fortemente assentada na jurisprudência da Hoge Road, Suprema Corte da Holanda, a referida lei sobre o término da vida traz em seu bojo reflexos de duas principais decisões da Corte, quais sejam a NJ 1985, 106 e a NJ 1989, 391. Aquela dispõe que um médico que pratique eutanásia pode beneficiar-se da exclusão de ilicitude do estado de necessidade e esta versa que o fato de um médico não ter solicitado a opinião de outro para recorrer à eutanásia não descaracteriza a exclusão de ilicitude, fazendo-se mister apenas a solicitação do paciente. É o médico a pessoa legitimada para praticar a eutanásia nos pacientes. Segundo o artigo 2º da Lei:

§ 1º As exigências de cuidado, mencionadas no artigo 293, § 2º, do Código Penal determinam que o médico: a- deve ter sentido estar convencido de haver uma solicitação voluntária e bem refletida por parte do paciente; b- deve ter sentido estar convencido de que o paciente sofria devido a dores sem solução e insuportáveis; cdeve ter aclarado ao paciente a situação em que ele se encontrava e sobre suas perspectivas; d- deve ter ficado convencido junto com o paciente de não haver outra solução razoável para o caso em que se via; e- deve ter consultado pelo menos um outro médico independente que tenha visto o paciente e escrito um parecer sobre as exigências de cuidado, mencionadas da alínea ―a‖ até a ―d‖; e f) deve ter executado o término da vida ou suicídio assistido com cuidado, sob a perspectiva médica (HOLANDA, 2001).

Ademais, há forte influência da faixa etária para a realização da eutanásia: pacientes entre dezesseis e dezoito necessitam que seus pais ou tutores tenham feito parte da decisão. Entre dezesseis e doze precisam que os pais ou tutores tenham concordado com a eutanásia. Por fim, aqueles que têm dezesseis anos ou mais e não podem manifestar sua vontade precisariam ter deixado autorização prévia.

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Com raízes ancoradas na sentença autorizadora do primeiro caso holandês (Dra. Geertrud Postma Leeuwarden), datada de 1973, a Bélgica inicia a discussão acerca do tema, que acaba por realmente intensificar-se apenas na década de 1990. O Parlamento da Bélgica aprovou a Lei da Eutanásia em 16 de maio de 2002, com 86 votos favoráveis, 51 contrários e 10 abstenções, passando a vigorar a partir de 22 de setembro. Analisando-a, vê-se que o conceito de eutanásia remete ao ato intencionado de acabar com a vida de uma pessoa a pedido desta. Tal pedido pode ser feito diretamente ao médico ou com a manifestação antecipada da vontade. Deve-se atentar ao fato de que os casos de eutanásia necessitam ser notificados pelos médicos, que, por sua vez, precisam atender a um procedimento estipulado por uma comissão federal, que irá revisar as notificações em quatro dias úteis. Metade da citada comissão é composta por médicos e a outra metade subdivide-se em parcelas iguais entre juristas e representantes de organizações cidadãs de voluntariado envolvidas com a problemática de pacientes terminais. Assim, percebe-se que tenta haver transparência e inibição às possíveis irregularidades, embora nem sempre seja possível. Na América na Latina, o Uruguai é um país onde, atendidas certas condições, possibilita que uma pessoa pratique homicídio se estiver movido por piedade. Como dito, não se trata de permitir a prática da eutanásia em quaisquer ocasiões, como se poderia pensar, mas, ao contrário, deve haver a observância a critérios específicos. O Código Penal de laRepública Oriental Del Uruguay, (1934, Título II, capítulo II), dispõe que: ―Artículo 37. (Del homicidio piadoso)Los Jueces tiene la facultad de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas reiteradas de la víctima‖. Percebe-se, pois, que o juiz só terá a prerrogativa de exonerar do castigo aquele sujeito que atende aos requisitos elencados no supracitado artigo. Ainda mantendo relação com o supracitado artigo, o Código prevê, em seu artigo 127, a faculdade que o juiz tem de conceder o perdão judicial quando da ocorrência de alguns crimes, como o homicídio piedoso. No entanto, não devemos confundir com a hipótese de determinação ou ajuda ao suicídio, a qual engendra realmente uma punição e não há a possibilidade de ocorrer perdão judicial. Destarte: Artículo 315. (Determinación o ayuda al suicidio) El que determinare a otro al suicidio o le ayudare a cometerlo, si ocurriere la muerte, será castigado con seis meses de prisión a seis años de penitenciaría. Este máximo puede ser sobrepujado hasta el límite de doce años, cuando el delito se cometiere respecto de un menor de dieciocho años, o de un sujeto de inteligencia o de voluntad

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deprimidas por enfermedad mental o por el abuso del alcohol o el uso de estupefacientes (URUGUAI, 1934).

O Reino Unido, por sua vez, adota postura diferente, não possui lei específica sobre suicídio assistido e eutanásia, sendo estas práticas vedadas e puníveis por lei. No entanto, o Diretor do Ministério Público do Reino Unido, Keir Starmer, publicou um documento contendo a Política que o MP e a Procuradoria da Coroa devem adotar nos casos de suicídio assistido e encorajamento ao suicídio. Trata-se da Policy for Prosecutors in Respect of Cases of Encouraging or Assisting Suicide (UNITED KINGDOM, 2010). A citada política, publicada em setembro de 2009 e revisada em fevereiro de 2010, dá aos Promotores a autonomia de investigar e analisar os casos de suicídio assistido e encorajamento ao suicídio, decidindo se o Estado deve ou não processar o responsável pela morte ou pela sua indução. Casos de repercussão nacional em que o Ministério decidiu não processar os envolvidos são publicados e atualizados a cada seis meses no site da Procuradoria da Coroa. Há que se falar também nas Diretrizes Avançadas de Medicina, documentos equivalentes a pequenos testamentos contendo as orientações a serem seguidas no que diz respeito a decisões de vida ou morte que não possam ser decididas pelo paciente. Para terem efeito civil, devem ser elaboradas enquanto o paciente ainda tem total capacidade de reconhecer seus atos e preencher um formulário com as instruções a serem seguidas. As diretrizes podem apontar uma pessoa para decidir o que deverá ser feito caso o paciente perca sua capacidade civil e esteja em caso de vida ou morte, ou pode simplesmente conter orientações sobre como proceder, caso isso venha a acontecer. Instruções como não proceder com ressurreição cardíaca em casos de parada, não utilização de aparelho para sobrevivência artificial, entre outros. O suicídio assistido, na Suíça, é prática livre, desde que comprovado motivo nobre por parte do assistente. Não é permitida a eutanásia, mas já se permitia o suicídio assistido desde 1942, em seu Código Criminal:

Art. 115: Qualquer pessoa que, por motives egoístas, incite, instigue ou dê assistência para que outrem cometa ou tente cometer suicídio é, se aquela pessoa influenciada tentar ou suceder no suicídio, passível de sentença condenatória não superior a cinco anos ou multa. (SUÍÇA, 1937)

A característica marcante da Suíça diz respeito ao fato que não é necessário ter nascido no país para que a lei tenha efeito sobre o indivíduo, bem como não é necessária a presença de 261


um médico de qualquer natureza. Qualquer que tiver acesso a medicação letal poderá entregála àquele que tenha desejo de usá-la. O interessado também não precisa estar doente em estado terminal para que a assistência seja válida. No entanto, para que fique caracterizado o suicídio assistido, o motivo do auxílio não pode ser motivos egoístas ou torpes, e a medicação deve ser administrada pelo interessado em dar fim a própria vida. Prática comum é a gravação dos suicídios assistidos para posterior investigação por parte da polícia. Após investigação, serão apurados os motivos da assistência, que só incidirão em processo penal caso sejam egoístas. Há ainda a formação de grupos, não necessariamente de médicos, especializados em prover assistência ao suicídio. A organização Dignitas, presente na Suíça, é um dos maiores e mais conhecidos desses grupos. O bordão da organização é ―Viver com dignidade – morrer com dignidade.‖. Eles têm por objetivo atender aos pedidos de pessoas que estão pensando em suicídio, orientando-as para que elas cheguem a conclusão se este é ou não o caminho que querem seguir. Caso seja, eles acompanham o interessado até o fim. Caso de repercussão mundial vivenciado pelo grupo foi o de Edward Downes e sua esposa Joan Downes, que praticaram juntos o suicídio assistido na clínica do Dignitas. Edward não estava doente em fase terminal, mas estava com sua visão e audição diminuindo aos poucos e sua esposa tinha desenvolvido câncer no pâncreas. (THE GUARDIAN, 2009). A Procuradoria Geral da Coroa (Reino Unido, país de origem de Edward), seguindo a orientação publicada pelo diretor Keir Starmer, não deu início a um processo penal em face os filhos do casal.

5 A ANÁLISE DA EUTANÁSIA NO DIREITO BRASILEIRO Para o Direito Brasileiro, a Eutanásia se configura enquanto uma ação ilícita, sujeita a pena por crime de homicídio, podendo, no entanto, ter sua sanção diminuída de um sexto a um terço, segundo o art. 121, §1º do Código Penal. No tocante à tipificação de um fato como ilícito, ou seja, como crime, se faz mister a presença de três requisitos: i) ser o fato típico, em outras palavras, o fato deve ser previsto em lei; ii) ilícito, por o fato se enquadrar em uma norma incriminadora; e iii) culpável, fato reprovável pelo âmbito jurídico decorrente dos dois requisitos anteriores. É daí também o entendimento, nos tribunais brasileiros, de que o crime em tela se enquadra na espécie de 262


homicídio privilegiado, mesmo que o paciente implore pela subtração da sua própria vida (DODGE, 1999). Por sua vez, o entendimento dos doutrinadores do Direito Penal é largo no sentido da aplicação da lei vigente para diminuição de pena, baseado no art. 121, §1º, do CP. Assim, leciona com maestria o Professor Bitencourt: (...) é o auxílio piedoso para que alguém que esteja sofrendo encontre a morte desejada. Um intenso sentimento de piedade leva alguém bom e caridoso à violência de suprimir a vida de um semelhante, para minorar-lhe ou abreviar-lhe um sofrimento insuportável. Esse é um autêntico motivo de relevante valor moral que justifica o abrandamento da pena no homicídio dito privilegiado (BITENCOURT, 2012).

No entanto, quando se discute a problematização da legalização, temos uma celeuma doutrinária. Para Noronha (1983, p.29), ―Não há, primeiramente, direito de matar. A vida, ainda que dolorosa ou sofredora, há de ser sempre respeitada. O homem é coisa sagrada para outro homem, como dizia Sêneca: ‗Homo res homini sacra‘‖. Lecionando sobre o tema, o saudoso penalista nos remete a uma reflexão sobre seu posicionamento: se faria referência a um seguimento ideológico, social, humanitário ou ético-religioso, haja vista que, para uma complexidade de situações, não dá mais para admitir a supressão do caso em foco por crer que se trata de uma situação antológica e divinamente indiscutível. Em um entendimento diferente dentro da seara jurídica atual, o saudoso doutrinador Damásio de Jesus (2008, p. 683) dá uma solução: ―o perdão judicial é o instituto pelo qual o juiz, não obstante comprovada a prática da infração penal pelo sujeito culpado, deixa de aplicar a pena em face de justificadas circunstâncias‖, assim, acontecendo a Eutanásia, pode o juiz entender pelo perdão judicial pela justificativa da típica situação em que o agente comete o ato impelido por motivo de relevante valor social e moral. Sendo a situação do perdão judicial prevista no art. 107, inc. IX do CP. Em 2007 houve a publicação, por parte do Conselho Federal de Medicina, da Resolução 1.805/06, que previa a possiblidade de limitação ou suspensão de tratamentos de pacientes em estado terminal. Consta no citado documento que:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

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Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar

Resolução suspensa por decisão liminar do M. Juiz Dr. Roberto Luis Luchi Demo, nos autos da Ação Civil Pública n. 2007.34.00.014809-3, da 14ª Vara Federal, movida pelo Ministério Público Federal. Apesar de sentirmos um encaminhamento da sociedade brasileira para um avanço, também é verdade que a população é de grande número religiosa, com grande predominância da ala católica e cada vez mais crescente na ala protestante. Em meio a esse panorama, é de fácil constatação a influência exercida no âmbito jurídico para as orientações doutrinárias, as interpretações legislativas e até mesmo na formação acadêmica, preparando o futuro aplicador do Direito com certos valores que se consubstanciam mais em valores religiosos implícitos do que científicos e sócio-históricos. 5.1 A EUTANÁSIA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO Uma discussão propriamente jurídica, a qual não poderíamos nos furtar de aqui trazer, diz respeito ao fato de a Eutanásia não ser permitida, de forma alguma, pelo fato de estar prevista a proteção à vida no art. 5º de nossa Constituição Federal, o qual reza: ―Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...) ‖ (BRASIL, 1988). O argumento a ser levantado é no sentido de que o art. 5º é o que se chama de cláusula pétrea, ou seja, faz parte de um rol da Constituição que não pode ser alterado, salvo para ampliar o que já está garantido, nunca diminuindo. Com isso, o direito à vida, garantido pela segunda parte do artigo, seria posto como inviolável, destarte, não havendo possibilidade de qualquer tipo de legalização da Eutanásia ou outra situação que permita que se ponha fim à própria vida ou à vida de outrem. Para este tipo de entendimento, o maior bem que o sistema jurídico deve proteger é a vida, sendo esta inviolável e só podendo ser confrontada se de outro lado estiver outra vida. Ousamos dissentir da referida análise.Pelo fato de a ―vida‖ vir em primeiro na ordem das palavras no artigo, não significa necessariamente que seja absolutamente a primeira sempre. Concordamos que a vida humana deva estar em primeiro lugar entre todos os demais bens protegidos pelo Direito, todavia não podemos nos restringir a interpretações rasas e 264


simplistas. O que deve decidir necessariamente sua aplicação ou não deve ser o caso concreto e quando este não atingir limites maiores que a própria esfera de poder do indivíduo protagonista. Comungamos com a corrente que defende que a liberdade de autonomia e a dignidade – quando somados – devam estar acima do bem vida, até mesmo porque a própria liberdade também é direito fundamental imperativo elencado na Constituição. 5.2 P.L 125/96 E O ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL Em meados de 1996, houve o que seria o único Projeto de Lei que viria a disciplinar a Eutanásia no Brasil. De autoria do senador Gilvam Borges, do PMDB do Amapá, o Projeto de Lei 125/96 permitia a prática da Eutanásia frente a problemas de contorno físico e psíquico, todavia com algumas condições, quais sejam: i) aprovação pela junta de cinco médicos, sendo pelo menos dois deles especializados na área de transtorno do paciente; e ii) solicitação do próprio paciente ou, em sua incapacidade, um familiar ou amigo com requerimento à Justiça e esta aceitando. O projeto enfrentou duras críticas, tanto de cunho conservador, quanto tecnicamente jurídico, por se analisar como vagas suas disposições disciplinares, podendo-se citar o tempo que o paciente teria para refletir acerca da decisão e quem seria o médico responsável pela realização do ato. Como era previsto até mesmo pelo autor do Projeto de Lei, "essa lei não tem nenhuma chance de ser aprovada". O projeto foi arquivado e sem nem sequer uma perspectiva de, ao menos, uma rediscussão sobre o caso, pois, como claramente afirmava o então Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, "ninguém quer discutir a eutanásia, porque isso traz prejuízos eleitorais". Contudo, a oportunidade surgiu, mas não de forma plena. Foi o que trouxe o anteprojeto para o novo Código Penal Brasileiro. Nele, há uma diminuição da pena se praticada a Eutanásia, com possibilidade de exclusão de pena frente à valoração feita pelo magistrado. Já a Ortotanásia passaria a ser legalizada, como vemos na íntegra: Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave. Pena – prisão, de dois a quatro anos. § 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

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Exclusão de ilicitude § 2º Não hácrime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa (BRASIL, 2012).

CONCLUSÃO

Diante da discussão de cunho ético-religioso, mas também jurídico, obtida como resultado da pesquisa aqui trazida, traçando o perfil da legislação internacional e da repercussão que passa a ter sobre o Brasil, pudemos ter nosso cabedal de informações sobre a eutanásia em muito alargado. À guisa de considerações finais, há que se destacar o atual panorama brasileiro, que ainda precisa avançar significativamente a fim de se desvencilhar de discussões que não promovam a real ponderação de direitos, mas uma visão unívoca que se afasta do Estado laico. Límpido se faz notar que: tanto a proposta de lei quanto a colocação em plenário para ser votada e, por fim, sua aprovação, recaem num legislativo representativo que tem sua legitimidade na tradição de um povo influenciado por doutrinas que inibem uma real reflexão. Trazida à tona essa discussão basilar e fomentando o debate, a legislação pode ser verdadeiramente alterada de modo benéfico e plural.

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LEI DO TRATAMENTO DO CÂNCER: ESFORÇOS E OBSTÁCULOS PARA EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE Antônio Alves Pontes Trigueiro da Silva1 Manoel Pedro Alexandre Mineiro Simões e Silva 2 3 Winicius Faray da Silva

1 INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde define positivamente a saúde humana como não sendo apenas a ausência de doenças ou enfermidades, ―mas o completo bem-estar físico, mental e social‖. Tal definição, por ser tão extensa, pode fazer-nos entender a saúde comouma utopia, trazendo algumas consequências lógicas: partindo deste ponto de vista, a saúde seria, simplesmente, inatingível por tal estado de bem-estar ideal ser impossível; por outro lado, colocar a saúde como algo ideal e não-restritivo concede a liberdade para que os governos tomem maiores medidas a fim de aprimorar a proteção às pessoas nos grandes aspectos da vida humana: o físico, o mental e o social; isto um leque maior de possíveis medidas para tal, também estimulando a priorização de ações políticas e sociais. Para isso não se pode, porém, adotar uma visão pessimista de, por ser a saúde ideal, pensá-la como impossível. Ainda que, dado o estado científico-tecnológico e socio-político em que a humanidade se encontra, não esteja a vista no horizonte a realização da saúde universal (considerando que seja possível), os esforços por atingi-la devem ser os mais fortes por estar intrinsicamente relacionados à manutenção da própria vida humana, sendo o direito à vida humana digna substantivo, uma vez que este é condição necessária para o gozo de todos os outros direitos. Levando em conta o objetivo da garantia do direito à saúde como básica à dignidade humana e o alto índice de cidadãos acometidos por neoplasias malignas, bem como os altos custos de tratamento da enfermidade, entendeu-se necessária a regulamentação de uma lei garantidora do acesso da população ao tratamento de tão avassaladora patologia, que abala não só os pacientes, mas também seus familiares e pessoas próximas, física, psicológica e financeiramente. 1

Graduando em Direito pela UFPB. Graduando em Direito pela UFPB. 3 Graduando em Direito pela UFPB. 2

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Sendo direito de todos e dever do Estado, a saúde figura como o condão de propiciar uma vida digna ao ser humano. Originando-se da palavra latim, salus, que significa conservação da vida, é de se estranhar que apenas agora esse bem tão extraordinário é elevado à categoria de direito fundamental do homem. O Direito Constitucional brasileiro já aludia sobre o direito à saúde, contudo, como demonstra José Afonso da Silva (2012, p. 308-309), a nossa Lei Maior dava poder à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde. Porém, o sentido que aqui fora aplicado diz respeito ao combate às endemias e epidemias. Era uma organização administrativa, mas não um direito do homem.Desse modo, o presente artigo busca uma análise do direito fundamental à saúde, dando enfoque para a Lei 12.732/12, a partir de uma análise da legislação pertinente, jurisprudencial e doutrinária.

2 BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS SOCIAIS E DO DIREITO SOCIAL À SAÚDE

A avançada legislação brasileira atual, garantidora dos direitos sociais, é precedida por uma tradição constitucional de previsão de direitos sociais. Nas Constituições do México (1917) e Weimar (1919), temos o berço do constitucionalismo social moderno. O surgimento dos estados liberais modernos foram a base para a instituição dos chamados direitos fundamentais de primeira dimensão, aqueles que exigem uma ação negativa do Estado, a fim de evitar ingerências estatais que venham a prejudicar os indivíduos, sendo referentes às liberdades públicas. Da evolução social e das mudanças acarretadas pela Revolução Industrial, bem como com a mudança do perfil do mercado de trabalho, seguiu-se um sentimento de que o constitucionalismo clássico apresentava-se ineficiente em atender a novas demandas sociais que requeriam a intervenção positiva do Estado. Some-se a isso o advento da União Soviética e sua influência nas demandas das classes trabalhadoras ao redor do mundo, tivemos o abalo do constitucionalismo liberal. Em tal sentido, afirma Herkenhoff: A afirmação dos ―direitos sociais‖ derivou da constatação da fragilidade dos ―direitos liberais‖, quando o homem, a favor do qual se proclamam liberdades, não satisfez ainda necessidades primárias: alimentar-se, vestir-se, morar, ter condições de saúde, ter segurança diante da doença, da velhice, do desemprego e dos outros percalços da vida.‖ (HERKENHOFF, 2002, p.51-52)

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Foi neste contexto que surgiram as constituições que viriam a ser o marco histórico da ascensão do constitucionalismo social: as de Weimar e do México. Não é difícil perceber que os direitos sociais são mais intensamente visados em épocas de mal-estar social e que, se antes visavam apenas proteger a classe trabalhadora, seguindo uma tradição que podemos chamar de marxista, tais direitos hoje se estendem à população no geral. Cabe, porém, frisar que não se deve entender como ―constituição social‖ ou ―socialista‖ aquela que traz dispositivos esparsos garantidores de direitos sociais, mas aquelas fundadas na tradição de reconhecê-los, com princípios fundantes condizentes com tal, o que coloca estes textos constitucionais no caminho de reconhecer, através de inúmeros dispositivos com tal índole, os direitos sociais dos indivíduos de forma sistematizada, geralmente estando fundados nos controversos conceitos de ―justiça social‖ e de ―igualdade material‖. A Constituição do México de 1917, neste sentido, além dos direitos concernentes às liberdades públicas, também trouxe a previsão de inúmeros direitos sociais, cabendo-nos destacar aqui a previsão do direito à saúde, de incumbência da Federação e das entidades federativas (art. 4º, § 2º). Também estabeleceu a Constituição Mexicana de 1917, através do art. 123, as jornadas de trabalho que vigorariam no país a partir de sua promulgação, que estão diretamente relacionadas ao bem-estar físico e mental dos trabalhadores e, portanto, à sua saúde. Também preocupou-se com o direito social à saúde a Constituição de Weimar, de 1919, em diversos itens. O inciso 8 do seu sétimo artigo institui que é responsabilidade do Reich legislar sobre temas de saúde. Também o artigo 155 fixa que a distribuição e o uso da propriedade imobiliária deve ser supervisionada pelo estado a fim de garantir ―moradia saudável‖ às famílias alemãs, referindo-se ainda à importância da relação da propriedade privada do solo com o plantio de gêneros alimentícios, mostrando explícita preocupação com a alimentação saudável da população. O artigo 161, por sua vez, invoca a relação entre a habilidade de trabalhar e a saúde dos trabalhadores, bem como a maternidade e o advento da idade, que traz uma situação de fraqueza perante os outros, sendo dever do Estado resguardar a população alemã contra abusos através de um sistema de seguridade social. O artigo seguinte ainda institui a necessidade de regulação das condições de trabalho, procurando evitar abusos que comprometam a saúde da classe laboral. Lembrando ainda que não apenas o texto promulgado em uma Constituição é responsável por instituir num país um sistema jurídico de cunho social, mas também as condições jurisprudenciais e doutrinárias, ações políticas, bem como que as normas 271


infraconstitucionais também podem embasar de direitos sociais, temos que diversos países seguem atualmente a tradição da garantia dos direitos sociais em seu ordenamento jurídico, entre eles: os já referidos México e Alemanha, Brasil, França, Portugal, Peru, Cuba, Canadá entre diversos outros.

3DIREITO SOCIAL À SAÚDE NO BRASIL

O Direito à saúde é um dos direitos sociais listados pelo caput do art. 6º da Carta Magna de 1988. É, portanto, um direito constitucional de todos e um dever do Estado entendido como Poder Público amplamente. A garantia de tal direito encontra-se no artigo 196 da mesma Constituição e consiste na adoção, por parte do ente estatal, de políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doenças e de outros agravos, bem como ao acesso universal igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, o que abrange não só tratamentos médicos para aqueles acometidos por doenças, mas também a prevenção das mesmas, o que, inclusive, é vantajoso para os potenciais pacientes de enfermidades como para o erário, dado que os gastos com prevenção de doenças são em muito inferiores aos de tratamento das mesmas. Ainda estabelece, no mesmo sentido, o artigo 2º da Lei 8.080/90 que ―a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício‖ Ainda que o direito social fundamental à saúde não exclua o dever dos particulares de zelar pela mesma. É, porém, dever do Estado adotar medidas que garantam a possibilidade de que os particulares possam fazê-lo: prestar acesso a boa alimentação, moradia, saneamento básico, bem como demais aspectos da vida cotidiana, como transporte, educação formal e cívica, trabalho, renda; e, mais diretamente, assegurar o acesso a postos de saúde, hospitais, programas de prevenção, medicamentos e tratamentos com a urgência e atenção que cada doença específica requer. A infinidade de fatores dos quais depende a saúde (tanto a do particular como a pública) mostra a vastidão e a relação deste com os demais direitos fundamentais e com o próprio estado de desenvolvimento de uma nação, sendo o art. 3°, através de Redação dada pela Lei 12.864 de 2013, evidência disto, quando admite: Os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País, tendo a saúde como determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais.

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As inúmeras menções ao direito à saúde na CF dão uma boa ideia de sua importância, sendo citado nos artigos 5 º, 6 º, 7 º, 21, 22, 23, 24, 30, 127, 129, 133, 134, 170, 182, 184, 194, 195, 197, 198, 199, 200, 216, 218, 220, 225, 227 e 230. No Brasil, a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, constituído pelas ―ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público‖, segundo o art. 4º da lei 8.080/90, está diretamente relacionada ao esforço estatal de oferecer acesso a meios de prevenção e tentativa de cura de doenças, o que inclui acesso a consultas, exames, internações e tratamentos. Identificando as falhas do sistema, pode a população cobrar remédios também para os problemas que o assolam. Tal forma de participação política democrática da comunidade é o que incentiva projetos de lei como o da 12.732, que hora estudamos, evidenciando o que é programado na Constituição e através de demais leis, mas que ainda não foi cumprido. O Sistema de Saúde pátrio é, portanto, universal (por ter o dever de atender a todos, sem distinção), integral (dado que a saúde da pessoa deve ser tratada em sua totalidade, voltando as ações tanto para os indivíduos quanto à comunidade, seja nas fases de prevenção ou de tratamento), descentralizado e regionalizado (o que objetiva sempre ampliar o acesso ao sistema em todo o território nacional, com gestores únicos em cada esfera governamental: seja municipal, estadual ou federal), bem como hierarquizado (significando que questões de saúde menos complexas são tratadas em hospitais gerais, aumentando o grau de especialização da unidade de tratamento à medida em que cresce o grau de complexidade do problema de saúde). Ainda é dever da direção nacional do SUS, segundo o art. 41 da lei 8.080/90, supervisionar as ações do Instituto Nacional do Câncer, permanecendo estas como referencial de prestação de serviços, formação de recursos humanos e transferência de tecnologias. Com promulgação da Constituição da República do Brasil de 1988, percebe-se uma evolução no tratamento da vida digna do ser humana. Nesse sentido, o direito à saúde, agora direito fundamental, presente como direito social do artigo 6, possui uma maior prospecção, com uma formação baseada no artigo 64 da Constituição de Portugal que a deu uma formulação universal mais precisa. Assim, nos tópicos subsequentes, será feito uma análise do direito à saúde na legislação brasileira antes da promulgação da Lei n° 12.732/12, além de uma explanação de como acontece os pedidos judiciais de tratamentos de saúde, mais especificadamente no que tange ao tratamento da neoplasia maligna. 273


4 A LEGISLAÇÃO SOBRE DIREITO À SAÚDE E A TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL

O desenvolvimento do Direito Constitucional brasileiro trouxe um interessante aparato, no que tange ao direito fundamental da saúde, constante no Título II e, também, no que toca as disposições sobre a ordem social, no Título VIII. Ambas da Constituição da República de 1988. Ademais, a legislação infraconstitucional sobre a temática é bastante expressiva, com destaque para as leis que dispõe sobre a organização e benefícios do SUS, o fornecimento de medicamentos e a lei, foco do estudo, que instituiu o tratamento de pessoas diagnosticadas com neoplasia maligna em até 60 dias. Após uma leitura dos arts. 196 a 200, constatamos uma norma definidora de direito subjetivo à saúde, com titularidade universal, como também normas de caráter impositivo de deveres e tarefas para o Estado. O artigo 196, da supracitada Lei Maior, tratou do tema, in verbis: ―A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação‖. (BRASIL, 1988). Ao nos depararmos dos efeitos do dispositivo constitucional trazido a lume, e trazendo para o estudo da Lei 12.732/12, interessante questão surge: Sendo a saúde um dever do Estado, então ele deve garanti-lo em sua plenitude ou apenas no tocante ao padrão mínimo de prestação do serviço? Para responder tal indagação, mesmo que de forma breve por conta dos limites espaciais de um artigo, vamos tomar por base os doutrinadores José Afonso da Silva e Ingo Wolfgang Sarlet, que trazem à baila uma instigante discussão do tema. Para que o direito à saúde seja concretizado, como bem alude o art. 196 supracitado, o Estado possui o dever de agir segundo uma vertente de natureza positiva, ou seja, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, citados por José Afonso da Silva, o cidadão tem ―direito às medidas e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas.‖ (2012, p. 309). Com efeito, a jurisprudência das Cortes Pós Segunda Guerra, mais precisamente o Tribunal Constitucional Federal Alemão, já defende a obrigatoriedade da comunidade estatal em assegurar, pelo menos, as condições mínimas para uma existência digna. O que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet (em artigo para o Tribunal Regional Federal da 4° Região), fincou o statusconstitucional da garantia estatal do mínimo existencial. 274


Assim, a Corte alemã, mediante interpretação sistemática e ontológica do princípio do Estado Social de Direito, adotou a garantia das condições mínimas de uma existência digna como integrante do referido princípio. Desse modo e seguindo a doutrina de Ricardo Torres, o mínimo existencial consiste em ―um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas‖ (TORRES, 1999, p. 141). Contudo, o mínimo existencial não é usufruído boa parte da população brasileira por conta de posições econômicas, ou seja, o Estado não tem condições de dar a elas uma vida digna e elas, por si mesmas, não podem arcar com tais ônus. Ao comentar sobre a garantia constitucional dos direitos sociais, José Joaquim Gomes Canotilho assim alude: Quais são, no fundo, os argumentos para reduzir os direitos sociais a uma garantia constitucional platônica? Em primeiro lugar, os custos dos direitos sociais. Os direitos de liberdade não custam, em geral, muito dinheiro, podendo ser garantidos a todos os cidadãos sem se sobrecarregarem os cofres públicos. Os direitos sociais, pelo contrário, pressupõem grandes disponibilidades financeiras por parte do Estado. Por isso, rapidamente se aderiu à construção dogmática da reserva do possível (VorbehaltdesMoglichen) para traduzir a idéia de que os direitos só podem existir se existir dinheiro nos cofres públicos. Um direito social sob ‗reserva dos cofres cheios‘ equivale, na prática, a nenhuma vinculação jurídica (CANOTILHO, 1998, p. 477).

Como bem aponta Gomes Canotilho, e trazendo para nosso estudo da Lei 12.732/12, se o Estado se utilizar da justificativa da reserva do possível para eximir-se de cumprir funções expressar em nossa Carta Magna, transformaria o direito à saúde em um direito relativo, pois dependeria de fatos socioeconômicos para ser concretizado. Sobre o tema, a Ministra Ellen Gracie assim alude: O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. (AI 734.487AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE de 208-2010.) Vide: RE 436.996-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-112005, Segunda Turma, DJ de 3-2-2006; RE 271.286-AgR, Rel. Min.Celso de Mello, julgamento em 12-9-2000, Segunda Turma, DJ de 24-11-2000.

Retratando, também, da obrigatoriedade do Poder Pública em prestar serviços de saúde em sua plenitude e eficácia, com enfoque naqueles portadores do vírus HIV, o Min. Celso de Mello assim aduz:

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O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...) O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/Aids, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9- 2000, Segunda Turma, DJ de 24-11-2000.) No mesmo sentido: STA 175-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2010, Plenário, DJE de 30-4-2010. Vide: AI 734.487-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-8-2010, Segunda Turma, DJE de 20-8-2010

Logo, a lei infraconstitucional em estudo, representa um avanço específico que, como será demonstrado mais a frente, já encontra seus muitos obstáculos. Entre esses obstáculos, destacamos, antecipadamente, o contrapondo entre a dotação orçamentária para o tratamento da doença e o disposto no art.2° da supramencionada lei, que impõe a submissão do paciente ao Sistema Único de Saúde (SUS) em até 60 dias, o qual será detalhado mais a frente. Sendo um bem de extraordinária relevância para a vida humana, haja vista a impossibilidade de vida digna sem saúde, ressaltamos que:

[...] pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. (SILVA, 2012, p. 308)

5BRASIL: CONSEQUÊNCIASDA IMPLANTAÇÃO DA LEI 12.732/2012

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Em novembro de 2012, com o advento da Lei do Câncer, que dispõe acerca do primeiro tratamento de paciente com câncer maligno comprovado e estabelece um prazo para o início daquele, observa-se uma preocupação do Estado brasileiro em garantir o acesso aos tratamentos necessários aos pacientes acometidos por neoplasias malignas, visando à manutenção do bem da vida, aqui contemplado não somente de forma objetiva, mas o acesso a uma vida digna, estando neste escopo, o acesso à saúde de qualidade, protetiva e preventiva. Segundo o Art. 1° da Lei 12.732/12, deverá o Sistema Único de Saúde (SUS) fornecer todos os tratamentos necessários, de forma gratuita, àqueles pacientes. Cumpre ressaltar que em consonância com o Art. 196 da Constituição Federal, tal lei busca, também, acesso igualitário e universal aos tratamentos e ações concernentes ao combate do câncer. Segundo dados do Inca (Instituto Nacional do Câncer), no ano de 2014, há uma previsão de que surgirão cerca de 576.580 novos casos (somados os valores brutos de homens e mulheres) de habitantes acometidos por pelo câncer. Desta forma, os altos índices denotam a importância de tal legislação, haja vista que tais métodos de tratamento - medicamentos, intervenções, cirurgias, entre outros – apresentam custos elevados, ou seja, muitos cidadãos ficam impossibilitados de se quer iniciar os procedimentos necessários à cura. Ainda neste diapasão, cumpre ressaltar que há jurisprudências que responsabilizam o Estado a custear diretamente ou regressivamente - cidadãos que sofreram com o câncer e recorreram àquele em busca de um aporte para que tivessem o direito à saúde assegurado, como exemplo:

AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSUAL CIVIL. TRATAMENTO DECORRENTE DE CÂNCER DE PELE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. LEGITIMIDADE DO ESTADO. DIREITO À VIDA. DEVER DO ESTADO. 1. O Estado, na qualidade de integrante do Sistema Único de Saúde SUS, pode ser responsabilizado pelo custeio do medicamento. O art. 198, § 1º, da CF, dispõe que "o sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes". 2. O direito à saúde é garantido pela Constituição, de forma individual e coletiva (art. 196 da CF). Não podendo, o hipossuficiente, custear o medicamento necessário, sem prejuízo do próprio sustento, bem como estando ele correndo sério risco de agravamento de sua saúde, acertada a decisão de primeiro grau ao reconhecer presentes os requisitos de concessão da antecipação de tutela (art. 273, CPC). Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. TRF-1 - AGA: 74182 PI 007418274.2009.4.01.0000, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, Data de Julgamento: 06/08/2010, SEXTA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.42 de 23/08/2010.

Notória se consubstancia a proteção do direito à saúde a partir da elaboração de tal norma. Em seu Art. 2°, estipula-se que o prazo máximo para início do tratamento é de sessenta dias contados a partir da comprovação de que o paciente é acometido pela neoplasia 277


maligna. Antes da promulgação da Lei, no ano de 2009, a média para início de tratamentos por radioterapia, por exemplo, era de 91,3 dias, conforme dados do Tribunal de Contas da União. A mesma pesquisa revela que no Canadá – Província de Nova Escócia - a mediana fora de 21 dias. Destarte as diferenças socioeconômicas entre os países, cumpre evidenciar que o Brasil ainda tem muito a caminhar em termos de tratamentos oncológicos. Deve-se destacar que nos casos de maior complexidade do tumor e localização do paciente, o prazo para início dos tratamentos facilmente será aumentado. Mesmo com a apresentação de dados pelo Ministério da Saúde em 2013, cujos afirmavam que 78% dos casos em estágio inicial da doença tinham o início do tratamento em tempo inferior a sessenta dias, deve-se destacar que a Lei encontra certa dificuldade para ser implementada em várias regiões do país. Nos casos dos Estados de Amapá e Roraima, se quer há o serviço de radioterapia. No Estado de Minas Gerais, especificamente em Juiz de Fora, há registros de sobrecarga nos centros e unidades de assistência de alta complexidade em oncologia, dificultando a cumprimento da lei. Já no Estado da Paraíba, em abril de 2014, o Ministério Público Federal entrou com recurso no Tribunal Regional Federal da 5° região, para que pacientes com câncer de pulmão tivessem seus tratamentos garantidos, e que o prazo já teria sido extrapolado, em clara afronta ao que determina a legislação supracitada. Assim, mesmo com os investimentos do Estado Brasileiro almejando a execução de tal norma, diversas dificuldades encontradas - distância dos grandes centros, falta de equipamentos e profissionais habilitados para manuseio destas, médicos especializados - colocam em cheque a eficácia da Lei do Câncer. Outra questão a ser discutida é a contida no Art.4° da Lei 12.732/2012. Segundo este, ―os Estados que apresentarem grandes espaços territoriais sem serviços especializados em oncologia deverão produzir planos regionais de instalação deles, para superar essa situação‖. Assim, ficaria ao encargo de cada Estado que possuam espaçamentos territoriais consideráveis, desenvolver projetos específicos para, por meio destes, vencerem as dificuldades encontradas, visando assim garantir maior aplicabilidade da lei. Os principais instrumentos para tal planejamento seriam o Plano Diretor de Regionalização (PDR), Plano

Diretor de Investimento (PDI) e Programação Pactuada e Integrada da Atenção à Saúde (PPI). Contudo, tal artigo, buscando nitidamente uma determinação de cunho geral, acaba por falhar ao não estipular quais as formas, os projetos e os prazos para verificação da realização de tais planos, denotando, portanto, espaço para que as instituições não apresentem em tempo hábil o planejamento necessário para consecução dos fins da lei.

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Outro instrumento de apoio à Lei do Câncer, o SISCAN, Sistema de Informações do Câncer, refere-se a um sistema online que busca a facilitação na troca de informações e gerenciamento dos dados dos pacientes aos Estados e Municípios, tendo, também, a possibilidade de acompanhamento dos quadros de cada cidadão acometido pela patologia oncológica. Tal sistema é interligado com o Cadastramento de Usuários do SUS e cada ente federativo fora obrigado a implementá-lo, sob pena de terem os repasses para tratamentos oncológicos suspensos. Contudo, tal tutela traz consigo um questionamento: qual o custo aos cofres públicos destes tratamentos? Segundo pesquisas, entre 2008 e 2011, os gastos públicos com tratamentos de câncer aumentaram por volta de 51,4%, superando a marca de 2,2 bilhões de reais. Tais valores são anteriores à vigência da Lei 12.732/2013. Para o ano de 2013, a previsão dos gastos com cirurgias oncológicas seria de 380,3 milhões de reais. Em 2012, o custo com internações chegou à casa dos 806 milhões de reais. Segundo o INCA, em 2007, o Brasil gastava cerca de 1,2 bilhão por ano com tratamentos oncológicos. Tais custos não são sentidos somente no Brasil. Segundo o jornal O Estadão, o custo do câncer se torna cada vez mais insustentável nos países de maior poder econômico. Os valores atingem a marca de 286 bilhões de dólares por ano, sendo, a maior parte, gastos com os custos médicos, afetando também a produtividade destes países. Destarte os altos custos com os tratamentos, os valores mencionados anteriormente não vêm sendo suficientes em face aos inúmeros casos encontrados no Estado Brasileiro. De acordo com o Diretor-Geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, Paulo Hoff, ao ser questionado acerca da importância da lei, apontou-se que era necessário um aumento substancial no aporte financeiro, em termos de investimento, para que os tratamentos sejam de fato iniciados dentro do prazo legal. Enquanto nos Estados Unidos da América se investe 19,8% do Produto Interno Bruto em saúde, no país do futebol, o Brasil, tal marca atinge o valor impressionante de 8,7%. A lei, que foi impulsionada pela bancada feminina da Câmara dos Deputados e sancionada pela Presidente da República em novembro de 2012, representa um avanço urgente e de extrema necessidade para, primeiramente, cidadãos de classe econômica baixa e que não podiam arcar com o ônus de um tratamento adequado da rede hospitalar particular. Tal situação levava os cidadãos, mais necessitados de recursos públicos para subsistência de direitos básicos, a uma fila que, na maioria dos casos, não chegava a receber o tratamento adequado e vinha a falecer. Contudo, apesar dos avanços que a referida lei apregoa, devem ser feitas algumas considerações quanto aos obstáculos encontrados pela mesma. 279


6 DEMAIS OBSTÁCULOS ENFRENTADOS PELA LEI N° 12.732/12

De acordo com o artigo 2°, da referida lei em estudo, o prazo para início do tratamento da neoplasia maligna será de até 60 dias contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor. Entretanto, o Ministério da Saúde emitiu a Portaria n° 876/13 alegando que a data começa a contar a partir do registro do diagnóstico no prontuário do paciente. Entrando em desacordo com o que dispõe a Lei 12.732/12. A sutil mudança representa uma diferença gigantesca para o paciente. Isso porque, via de regra, o registro do diagnóstico do prontuário ocorre no momento da consulta com o médico, que pode ocorrer muitos dias depois de o paciente já estar com o laudo patológico em mãos. Até mesmo para fazer os exames, e ter em mãos o laudo patológico, pode levar semanas, meses, quiçá anos. Então quem diria para marcar uma consulta com o médico para, enfim, ter o registro do diagnóstico no prontuário e a partir daí começar a contar o prazo para tratamento da neoplasia maligna. Tal portaria é uma afronta à dignidade e um desrespeito contra o ser humano. Nesse diapasão, a Bancada Feminina da Câmera dos Deputados efetuou um requerimento de informações, no dia seis de março de dois mil e catorze, questionando a portaria do Ministério da Saúde e o seu desacordo com os ditames da lei 12.732/12. Outra dificuldade a ser enfrentada pela Lei 12.732/12, é no tocante a estrutura dos hospitais para receber esse tratamento. Atualmente, segundo dados do Instituo Nacional do Câncer (INCA), o Brasil dispõe de 277 hospitais, centros e institutos habilitados a realizar os procedimentos de oncologia pela rede pública. Há, entretanto, estados em que apenas existe um local para tratamento, são eles: Acre, Amapá, Amazonas, Roraima e Piauí. Logo, a questão que se coloca é no tocante à situação daqueles cidadãos que não possuem um hospital, centro ou instituição perto de sua localidade ou, ainda pior, se esses locais de tratamento na cidade ou estados vizinhos, por exemplo, estão superlotados. Isso tudo fazendo com que pessoas viajem milhares de quilômetros em busca de atendimento especializado. Segundo o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em entrevista para a Globo News, em maio de 2013, afirmou que os investimentos estão sendo feitos, contudo, é mais do que necessário uma organização estatal e municipal dos hospitais.

280


Nesse tocante, o art. 4° já impõe à Administração Pública a necessidade de um plano de instalação dos serviços especializados em oncologia. Isso, se não cumprido, incorrerá em uma penalidade administrativa dos gestores. Entretanto, aqui defendemos uma sanção penal, pois, mesmo tendo em vista o princípio penal da intervenção mínima, além de que o Estado deve ser visto como ultima ratio. acreditamos que, por se tratar de direito fundamental à saúde, deve ser colocado em primeiro plano, até mesmo em relação a dotações orçamentárias para entretenimento, como, por exemplo, a Copa do Mundo. Deve-se ressaltar que, tendo entrado em vigor em 22 de maio de 2013, a lei em estudo já teve, no dia 15 do mesmo mês e ano, uma apreciação do Ministério Público Federal. Atento ao cumprimento da lei, o ParquetFederal oficiou ao Ministério da Saúde e as Secretárias de Saúde de todos os estados brasileiros para saber quais as providências que o Poder Público estaria adotando para se adequar a Lei 12.732/12. Além disso, questionou a média do prazo para obtenção do diagnóstico de neoplasia maligna no SUS, tendo em vista que o tempo entre o aparecimento dos sintomas e o diagnóstico pode ser deveras acentuado.

7

CONTRAPONTO

ENTRE

ENTRETENIMENTO

E

OS

ENTRAVES

ORÇAMENTÁRIOS PARA GASTOS COM O TRATAMENTO DA NEOPLASIA MALIGNA

Em face de outro direito social, o lazer, o Poder Público se vale de gastos em massa com entretenimento para a população, realizando eventos musicais expressivos, como as festas de carnaval, e eventos esportivos, como a Copa do Mundo. Os gastos, na grande maioria das vezes, absurdos com atrações musicais em época de festas, mais precisamente as carnavalescas, destoa como contrassenso ao argumento da impossibilidade de um planejamento adequado de assistência médica por conta da falta de recursos. Ora, gasta-se milhões com shows e publicidade, mas não há receita para despesas com a saúde? Com efeito, o Juiz Antônio Carneiro de Paiva Júnior, titular da 4ª Vara da Fazenda Pública de João Pessoa, e após receber uma ação civil movida pelo Ministério Público,impôs a imediata suspensão do pagamento de qualquer despesa relativa à propaganda e publicidade oficial da prefeitura de João Pessoa. Por conseguinte, ordenou a suspensão de pagamento de despesas relativas a eventos festivos de qualquer natureza. Tal fato se deu em 14 de fevereiro de 2014, por conta da não aquisição de medicamentos para os portadores de câncer.

281


As pessoas acometidas pela doença estavam indo até o Judiciário requerer medidas contra o Poder Público para que o mesmo tome providências para que eles continuem vivos. É uma situação a qual desrespeita não só todo o ordenamento jurídico, mas, sobretudo, a moralidade pública e a dignidade humana. No tocante a Copa do Mundo, temos uma situação na qual os investimentos foram em pouco mais de catorze bilhões de reais, com previsão de chegar até quase vinte e seis bilhões de reais. Contudo, a grande pergunta está no legado que tanto investimento irá trazer para o Brasil. É bem verdade que boa parte dos gastos foram realizados a partir de financiamentos do BNDS, o qual há a previsão de serem pagos. Entretanto, o que se está a questionar é o momento de realizar-se a Copa e se há, efetivamente, o real interesse público na realização da mesma. Tomemos como exemplo o caso dos estádios. Segundo dados do portal da transparência da Copa, gastou-se próximo a oito bilhões de reais só na criação, reformulação e reestruturação. Ora, mesmo que em até vinte anos parte do dinheiro retorne, o recurso que de imediato se necessita para se estruturar estados e municípios, principalmente da região Norte para que se adequem à Lei 12.732/12, é algo que não tem e lastimavelmente deixa o cidadão ―à própria sorte‖. Ademais, as reivindicações públicas do ano de 2013 já demonstraram a reprovação do povo brasileiro em vários aspectos, entre eles o da realização de megaeventos, como a Copa do Mundo.

CONCLUSÃO

Ao longo do estudo, destacou-se o caráter fundamental da saúde e sua correlação com a vida digna, o qual necessita de prestações de natureza positiva para sua devida concreção. Ademais, verificou-se que os avanços trazidos pela Lei 12.732/12 ainda encontram alguns obstáculos para sua plena eficácia. Com efeito, a lei inova ao impor o tratamento da doença em até 60 dias, contudo, mesmo levando-se em consideração o disposto na lei (contagem do prazo a partir do laudo patológico) e não o disposto na portaria ministerial (contagem do prazo a partir do diagnóstico do prontuário), percebe-se que a dificuldade em simplesmente marcar uma consulta, é algo que pode levar dias, semanas, meses ou mais. Ou seja, o cidadão que já possui a doença, mas que ainda não foi de fato detectada, incorrerá em sérios riscos de não conseguir acompanhar o tratamento, se este não for iniciado a tempo. Tal constatação não é uma falha da referida legislação em si, mas de todo sistema de saúde que ainda é bastante precário em atender a demanda. Isso nos leva a questionar a atuação dos 282


representantes da Administração Pública e seus desempenhos na forma de executar os gastos públicos que, mesmo tendo os respectivos padrões legais mínimos a serem seguidos, ainda possuem uma alta discricionariedade em investir em setores de interesse público. Nesse escopo, o debate mencionado em tópico anterior, sobre gastos com entretenimento e o tratamento da neoplasia maligna, nos remonta a noção de que o montante de recursos utilizados para os referidos eventos, até mesmo os superfaturados de que se tem notícia, afrontam com o interesse público. Ora, no tocante a Copa do Mundo, é melhor termos estádios ou um sistema de saúde que possa atender, não só os debilitados pela patologia em estudo, mas toda e qualquer necessidade já assegurada pela nossa Lei Maior e, por via de corolário, as outras leis infraconstitucionais? Essa pergunta pode ser respondida a partir de uma maior participação popular nas tomadas de decisões, entretanto, uma reforma política se faz necessária e, desde já, os cidadãos podem opinar e acompanhar o projeto de lei sobre o tema a partir de buscas na plataforma digital da Câmara dos Deputados. Apesar de tudo, a Lei 12.732/12 é uma decisão cautelosa e útil que, conforme demonstrado, possui a atenção da Bancada Feminina da Câmera dos Deputados e do Parquet Federal em buscar uma eficácia do dispositivo legal e, por consequência, do respaldo do direito à saúde para todos.

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O DIREITO À SAÚDE E A QUALIDADE DOS MEDICAMENTOS GENÉRICOS 1

Anaïs Eulálio Brasileiro 2 Elis Lucena Formiga 3 Milena Barbosa de Melo Sumário: 1 Introdução. 2 Declaração de Doha e o direito à saúde. 3 A produção e a proteção de medicamentos como parte do acesso à saúde. 4 Direito aos medicamentos de qualidade como parte da garantia do direito à saúde. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

O direito à saúde integra o conceito de qualidade de vida, porque as pessoas em bom estado de saúde não são as que recebem bons cuidados médicos, mas sim aquelas que moram em casas salubres, comem uma comida sadia, em um meio que lhes permite dar à luz, crescer, trabalhar e morrer.Conforme o artigo 25º da Declaração Universal de Direitos do Homem, o acesso à saúde se torna garantia essencial para o indíviduo, como condição indispensável da existência humana. Restando, portanto, ao poder estatal assegurar de todas as formas, o bemestar social. A história demonstra que as doenças sempre afligiram o homem. Na atualidade, há, dentre outras, a HIV/SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) e o câncer. São doenças que desafiam a ciência, em virtude de sua complexidade e, até o momento, da incapacidade de demonstrar resultados que favoreçam encontrar a cura de tais doenças, por isso, os tratamentos são muitas vezes ineficazes além de extremamente onerosos. A relação entre propriedade intelectual e saúde pública tem atraído controvérsias tanto nos países desenvolvidos, como nos países em desenvolvimento. Todavia, insta ressaltar que a grande problemática pode ser identificada, em grande parte, nos países em desenvolvimento, nomeadamente aqueles situados na África, em virtude das grandes epidemias que ocorrem nos países e que, acabam acarretando milhares de vítimas, já que os estados não possuem recursos financeiros suficientes capazes de combater as enfermidades e ainda, a população de tão

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Graduanda em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas. Mestranda em Desenvolvimento Regional pela Universidade Estadual da Paraíba; Especialista em Processo Civil pela UNINTER; Pós-graduanda em Direitos Fundamentais e Democracia pela UEPB. 3 Doutoranda em Direito Internacional pela Universidade de Coimbra, Portugal; Mestra em Direito Comunitário pela Universidade de Coimbra; Especialista em Direito Processual e em Direito Comunitário; Professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA); Orientadora do Núcleo de Estudos de Direito Internacional e Direitos Humanos da FACISA; Consultora Jurídica. 2

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carente, não dispõe de recursos financeiros para suprir as necessidades que surgem com as enfermidades. Sendo assim, pode ser confirmado que a inovação farmacêutica é parte essencial dos esforços para melhorar a qualidade de vida e salvar seres humanos em todo o mundo. Nesse aspecto convém observar que o processo de produção de medicamentos envolvem elementos importantes da economia, pois compreendem o desenvolvimento do medicamento em si e ainda, tanto produção como a comercialização. Discute-se incansavelmente que o acesso aos medicamentos é desrespeitado em virtude das arbitrariedades das empresas farmacêuticas e isso ocorre justamente em virtude da falta de políticas públicas proativas, progressivas e preventivas por partes dos Estados na área de medicamentos. Por isso, podem ser identificados problemas mais no âmbito nacional dos países, no que tange às políticas públicas, para atingir o anseio da coletividade, do que no âmbito internacional, já que não existem mecanismos impositivos para o país fazer ou deixar de fazer determinada atividade. Nesse contexto, se desenvolveu fortemente o mercado de medicamentos genéricos no mundo, de forma a gerar competitividade asseverada com os medicamentos de referência. O problema dos genéricos não se resume apenas na permissão ou proibição de sua produção, vai um pouco além, mais precisamente, no que tange à qualidade dos medicamentos, já que a imitação de tecnologia para atender às necessidades locais é muitas vezes a base de um setor da investigação e desenvolvimento local independente. Atualmente tem se discutido essa questão nos medicamentos fabricados na Índia, na China e ainda, no Brasil, quando se trata de medicamento similar. Sendo assim, os países emergentes se destacam no mercado de medicamentos no mundo, mas, contudo, existem indícios sobre má qualidade dos medicamentos colocados no mercado. Com o intuito de reduzir os custos dos medicamentos e, consequentemente, o valor final (preço trabalho pelas empresas para o acesso pelo consumidor), as empresas acabam por investir pouco, de forma a não aplicar boas práticas de fabricação de genéricos, já que irá substituir por ingredientes mais baratos. Desta maneira, emerge a situação-problema: A fabricação de medicamentos genéricos em países da periferia global é um obstáculo para o direito à saúde? Tendo em vista a problemática apresentada, este trabalho tem como objetivo geral: Analisar se a fabricação dos medicamentos genéricos é um obstáculo para o direito à saúde e, como objetivos específicos: Identificar se os medicamentos genéricos são obstáculos para o direito à saúde; Verificar se há existência de casos de medicamentos de má-qualidade no cenário internacional e Averiguar o 286


posicionamento das organizações internacionais acerca da entrada de medicamentos sem qualidade no mercado. Deste modo, a pesquisa que se encaminha tem como pano de fundo doutrina no campo do Direito Internacional do Desenvolvimento, base de dados e os documentos das entidades que compõem o sistema onusiano e demais associações vinculados ao tema, a exemplo do OMS, OMPI, OMC, notícias jornalísticas, bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Acordo TRIPS OMC, Declaração de Doha sobre acesso à saúde.

2 DECLARAÇÃO DE DOHA E O DIREITO À SAÚDE

Segundo Duarte (1994), o direito à saúde integra o conceito de qualidade de vida, porque as pessoas em bom estado de saúde não são as que recebem bons cuidados médicos, mas sim aquelas que moram em casas salubres, comem uma comida sadia, em um meio que lhes permite dar à luz, crescer, trabalhar e morrer. Sendo assim, saúde de qualidade é uma meta que os países, em escala global e ainda, no âmbito do desenvolvimento sustentável, desejam alcançar.Um alto nível de saúde constitui um elemento fundamental para o bem-estar, pois, como defendem Machado e Raposo (2010), é a partir da boa saúde que os indivíduos têm condições de efetivar os demais direitos humanos, nomedamente, habitação, nutrição, dignidade, educação. De maneira geral, os aspectos da saúde nos países desenvolvidos são bem melhores do que nos países em desenvolvimento. Analisando os dados sobre as causas da mortalidade, obervou-se que as causas de desnutrição concorrem com as doenças infecciosas, como por exemplo: a tubercolose, AIDS/HIV e malária. Dessa maneira, pode ser observado que o direito à saúde reveste características de enquadramento nos direitos humanos, que remontam à própria carta das Nações Unidas, nomeadamente em seus artigos 55º e 56º e ainda, na Declaração Universal de Direitos do Homem, estabelecendo critérios de bem-estar social, respeito aos direitos humanos, progresso econômico, social, enfatizando, portanto, nos elementos de direito à saúde. Nesse sentido, Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo (2010) observam que: ―No rescaldo da II Guerra Mundial, e da miséria humana que dela resultou, as sementes do direito à saúde foram lançadas na Carta das Nações Unidas, com a sua ênfase, inscrita nos artigos 55º e 56º, no bem estar dos povos, no respeito pelos direitos humanos, no progreso econòmico e social e na reoslução de problemas econômicos e sociais, incluindo a saúde. Ele foi desde o início consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 25º, integrando a matriz

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originária do direito internacional dos direitos humanos no século XX‖ (Machado e Raposo 2010. P. 11)

Conforme o artigo 25º da Declaração Universal de Direitos do Homem, o acesso à saúde se torna garantia essencial para o indíviduo, como condição essencial da existência humana digna. Restando, portanto, ao poder estatal assegurar de todas as formas, o bem-estar social. Nessa mesma linha de proteção à saúde identifica-se o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, mais especificamente em seu artigo 12º as seguintes diretrizes: ―Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. 2. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança; b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene industrial; c) A profilaxia, tratamento e controlo das doenças epidémicas, endémicas, profissionais e outras; d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença‖. No cenário internacional dispomos de outros instrumentos normativos que se preocupam com o direito à saúde, nomeadamente: Convenção para eliminação de todas as formas de discriminação Racial de 1965, Convenção de Discriminação contra as Mulheres de 1979, Convenção dos Direitos da Criança de 1989, Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos no domínio dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultutrais de 1988.como instrumento internacional que se preocupa com o direito à saúde‖.

Nesse aspecto, torna-se interessante observar que, no momento em que se amplia o conceito de direito à saúde, estão sendo esclarecidos alguns aspectos essenciais do direito ao desenvolvimento, já que se observa que saúde pública também faz parte do setor de interesse do Estado, por se tratar de Direitos Humanos (CARVALHO, 2011). Dessa maneira. Winslow observa que: A ciência e a arte de prevenir as enfermidades, prolongar a vida e promover a saúde e a eficiência, mediante o esforço organizado da comunidade, para a) saneamento do meio ambiente; b) controle das doenças transmissíveis; c) educação dos indivíduos na higiene pessoal; d) organização dos serviços médicos e de enfermagem para o diagnóstico precoce e o tratamento preventivo de enfermidades; e) desenvolvimento de um mecanismo social que assegure a cada um nível de vida adequado para a conservação da saúde, organizando estes benefícios de tal modo que cada cidadão se encontre em condições de gozar de seu direito natural à saúde e à longevidade. (WINSLOW apud ACOSTA, R.T.K 1993 p 7-8)

A história demonstra que as doenças sempre afligiram o homem. Na atualidade, há, dentre outras, a HIV/SIDA (Síndrome de Imunodeficiência Adquirida) e o câncer. São doenças que desafiam a ciência, em virtude de sua complexidade e, até o momento, da

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incapacidade de demonstrar resultados que favoreçam encontrar a cura de tais doenças, por isso, os tratamentos são muitas vezes ineficazes além de extremamente onerosos. A característica internacional do Direito à saúde é possível quando se visualiza o elemento extraterritorial que contamina o indivíduo, ou seja, quando o indivíduo ultrapassa as fronteiras de seu território, levando consigo o risco de pandemia, que gera consequentemente, a preocupação por partes das organizções internacionais em conter esse problema, para que não saia do controle. Nesse aspecto se identifica a relação da saúde com o direito sustentável, pois o papel precípuo do desenvolvimento sustentável é melhorar a qualidade de vida da população sem, no entanto, aumentar o uso dos recursos ambientais. No entanto, para que essa ligação ocorra é necessário que haja ação equilibrada para o crescimento econômico dos recursos naturais, do meio ambiente e o desenvolvimento social, de forma que se não há renovação para o caminho do desenvolvimento, logo não será possível falar em desenvolvimento sustentável (WHO, 2001). A questão em comum que gera afinidade entre propriedade intelectual e saúde pública, vem sendo discutidas não apenas nos países desenvolvidos, como também nos países em desenvolvimento. Nos países da África, especificamente, a grande problemática pode ser identificada em virtude das grandes epidemias que ocorrem, afetando milhares de vítimas. Não existem recursos suficientes para combater esta situação e, a população não dispõe também de condições para suprir as necessidades que surgem com as enfermidades. Nessa perspectiva Dutfield observa que: High-profile pandemics likes HIV/AIDS understandable attract considerable attention.Millions of peple have died of this terrible diseade-2.6 million in 2003 and 2,8 million in 2005, of which sub-saharan Africa contributed 1.9 million and 2,0 million respectively (DUTFIELD, 2008, P. 312).

Diante desse contexto, o direito à saúde corresponde não apenas ao atendimento médico e hospitalar (mão de obra humana especializada), mas também o acesso a medicamentos, por isso deve ser aprimorado de acordo com o desenvolvimento social, tecnológico e científico. Os medicamentos constituem um dos instrumentos mais eficazes do arsenal terapêutico disponível para prevenir, curar ou atenuar diversas enfermidades. Por tudo isso representa um elemento bastante importante da política sanitária e administrativa. São hoje considerados produtos de primeira necessidade, pois transcendem os direitos civis para alcançar o patamar da coisa pública (MARQUES, 2013). 289


Nesse sentido, o acesso a medicamentos corresponde a um dos elementos para a completude do direito à saúde e como tal deve ser respeitado e colocado à disposição da sociedade, principalmente de modo preventivo, evitando-se, desta forma, problemas de difícil ou prolongada solução (CARVALHO, 2011). Por isso, pode-se afirmar que o direito ao acesso a medicamentos difere dos demais direitos relacionados à saúde, pois nesse, envolve interesses públicos e privados, já que se trata de uma concessão de serviço que deve ser feita pela administração pública, pois é enquadrada como elemento legal fundamental para o indivíduo e para que sua função de mantenedor das necessidades da população seja alcançada e ainda, na seara privada, envolverse-ão nomeadamente, pesquisa, investimento e desenvolvimento na fabricação de produtos farmacêuticos. Sendo assim, pode ser confirmado que a inovação farmacêutica é parte essencial dos esforços para melhorar a qualidade de vida e salvar seres humanos em todo o mundo. Essa inovação não só beneficia os doentes, como também previne novas doenças. Além disso, é muito importante para o sistema de saúde de um país, por trazer soluções para diferentes problemas de saúde pública. Consequentemente, permite uma utilização mais eficiente dos recursos, resultando em enormes economias para o setor (MARQUES, 2013).

3 A PRODUÇÃO E A PROTEÇÃO DE MEDICAMENTOS COMO PARTE DO ACESSO À SAÚDE

O processo de produção de medicamentos envolve aspectos extremamente importantes da economia, pois compreendem o desenvolvimento do medicamento em si e ainda, produção e comercialização do medicamento. Nessa perspectiva Huveneers observa que:

Le développement comporte d´abord la phase de la recherché thérapeutique: la synthèse de nouvelles molécules, c`esta-à-dire la production d´une substance ou d´une composition chimique à l´échelle du laboratoire. La synthèse est suivie d´une analyse de la pureté et de la stabilité des nouvelles molécules, puis de leur screening, c´est-à-dire de l´étude de leur comportement à l´aide de tests pharmacologiques et biologiques.Au niveau de la production, il faut distinguer la production du principe actif de sa mise eu forme galénique. Le stade du lancement et la commercialisation sont la promotion auprès du corps medical par les equips de délégués médicaux des firmes pharmaceutiques.Ces activités de promotion sont fort coúteuses. (HUVENEERS, 2000. P. 17-18)

Diante do exposto, as questões relacionadas com a entrada de medicamentos no mercado se tornam bem complexas, em virtude dos interesses que surgem na relação:

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empresa-estado-indivíduo. Há quem defenda a irrelevância da proteção patentária dos medicamentos no âmbito do direito ao desenvolvimento, visto que os custos de investimentos são altos, situação que reduz o acesso aos medicamentos.Nessesentido, observa-se o estabelecidoporKrishna:

Patents are irrelevant for the development of the products needed to address the diseases prevailing in developing nations…. The extension of pharmaceutical patent protection to developing nations, mandated by TRIPS Agreement, can do very little to prompt the development of such products, while it generates costs in terms of reduced access to the outputs of innovation.(Krishna, 2006, p.10)

Todavia, as questões relacionadas com o acesso aos medicamentos são agravadas pela presença dos laboratórios farmacêuticos, pois, de certa forma, acabam monopolizando as atividades de produção dos medicamentos e por isso, as empresas farmacêuticas são constantemente criticadas, já que o foco acaba se voltando mais para acumulação de capital e menos para as questões humanitárias. As críticas que giram em torno das patentes de medicamentos estão baseadas numa política excludente, pois haverá indisponibilidade dos fármacos de maneira equitativa (países desenvolvidos e países em desenvolvimento). Dessa maneira, resta analisar se existe uma forma de conciliar o apelo do bem estar da sociedade com a idéia geral de propriedade. A situação da patente de medicamentos se torna mais complexa quando alargamos o campo de visualização para o cenário internacional, pois se encontram em jogo, os interesses distintos de países diversos. Assim, como forma de consolidar as questões referentes às patentes de maneira uniforme no cenário internacional, alguns acordos e tratados foram estabelecidos entre vários países com o intuito tanto de facilitar os processos de patenteabilidade no âmbito interno de cada país, quanto de reestabeleceras políticas e relações internacionais entre os países. O acordo TRIPS, segundo Carvalho (2011), representa uma proteção mínima e que por isso deve ser complementada por atividades desenvolvidas pelos Estados-membros, pois deve existir a contrapartida do estado para a consecução das necessidades essenciais da população através do princípio da progressividade. Nesse sentido, Carvalho observa que: Reitere-se a importância da compreensão e da atuação voltadas para a realização de políticas públicas que proporcionem desenvolvimento progressivo e sustentável, por meio do respeito ao direito humano e fundamental que é o acesso a medicamentos, mesmo porque as maiores necessidades e gastos orçamentários, referentes à política sanitária, relacionam-se ao fornecimento de medicamentos. (CARVALHO, 2011, p.45)

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Portanto, os estados-membros irão utilizar as flexibilidades disponibilizadas no cenário jurídico internacional, mas deverão cumprir com uma contrapartida, ou seja, deverão contribuir com atividades positivas por parte do Estado. É importante levar em consideração que os Estados, em especial, os em vias de desenvolvimento não detém conhecimento técnico-científico suficiente para iniciar um processo de produção de medicamentos, situação que prejudica o país no tocante ao acesso à saúde através ao acesso de medicamentos. Dessa maneira, a única alternativa viável para a consecução dos objetivos do Estado de direito é recorrer a alternativas oferecidas pela a ordem jurídica internacional, que irão sedimentar o sistema de cooperação internacional, em especial, as licenças compulsórias. Pela própria essência, as patentes exigem um reembolso financeiro para que exista o retorno devido sobre os valores pecuniários investidos nas descobertas dos medicamentos. Nesse sentido, os medicamentos estão no patamar mais alto das discussões sobre propriedade intelectual e desenvolvimento, no âmbito internacional. Os preços trabalhados pelas empresas farmacêuticas chegam de certa forma a serem abusivas e, em virtude da necessidade da própria população, existe a necessidade da interrupção desse monopólio, para que ocorra a socialização desse medicamento. Nesse sentido, Correa observa a problemática da necessidade ao acesso aos medicamentos por parte da população, em diversificadas regiões do mundo:

With more than 30 million people living with HIV, most of them in the poorest regions of the world, the need toaddress the problem of access to patented medicines has emerged as a global priority. While it is true, as argued by the pharmaceutical industry, that other factors such as infrastructure and professional support play an important role in determining access to drugs, it is also true that the prices resulting from the existence of patents ultimately determine how many will die from AIDS and other diseases in the years to come.(CORREA, 2005, p57)

A crise da AIDS/SIDA, em todo mundo, trouxe essa necessidade de bloqueio das atividades das empresas de medicamentos e começou a ser discutido sobre a real necessidade de existir proteção jurídica aos produtos farmacêuticos, visto que a população, independente da sua localização geográfica, necessita de medicamentos para sobrevivência e que, a patente iria apenas limitar esse acesso. Nesse contexto sobre as estatísticas da incidência do HIV no mundo, observa-se que: ―More than 35 million people now live with HIV/AIDS; 3.3 million of them are under the age of 15; In 2012, an estimated 2.3 million people were newly infected with HIV; 260,000 were under the age of 15; Every day nearly 6,300 people contract

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HIV—nearly 262 every hour; In 2012, 1.6 million people died from AIDS; 210,000 of them were under the age of 15; Since the beginning of the epidemic, more than 75 million people have contracted HIV and nearly 36 million have died of HIV-related causes‖ (AMFAR FOUNDATION, 2013)

Diante desse panorama de combate à AIDS/SIDA, o Brasil foi o precursor, quando se utilizou da edição de uma legislação interna para comercializar o medicamento Efavirenz antirretroviral produzido pelo Laboratório Merck Sharp &Dohme, detentor da patente, usado no combate ao vírus SIDA/AIDS. Com a incorporação do acordo TRIPS no ordenamento jurídico brasileiro, o Brasil passou a conceder patentes para medicamentos e, com isso, não foi mais possível fabricar os medicamentos genéricos sem o pagamento dos royalties aos titulares das patentes, situação que sobrecarregou os cofres públicos brasileiros. Sendo assim, tendo por base o interesse coletivo e a emergência no que tange a população portadora do HIV/SIDA, o Brasil decidiu requerer a licença compulsória com base no interesse público e ainda, no abuso de poder econômico Berg (2007). Contudo, apenas com a ameaça do pedido de licença compulsória houve redução em 64% do valor do medicamento de referência, pois a empresa em pauta sabia que o Brasil dispunha de tecnologia suficiente para produzir medicamentos genéricos. Posteriormente, a empresa de medicamentos voltou a operar o produto com altos preços, de forma que o Brasil anunciou a intenção de comprar os medicamentos destinados ao combate da enfermidade, no formato genérico, da Índia. Apesar de ter havido contraproposta da empresa interessada, para uma redução de 30%, o Brasil observou que não atendia aos interesses públicos do país. Dessa forma a partir do decreto 6108 foi anunciada a permissão do instrumento jurídico e, desde então o país iniciou o processo de importação paralela da empresa de medicamentos genéricos, situada na Índia e os royalties do grupo Merck, em relação a importação do produto similar indiano, ficou em 1,5% do valor do medicamento na Índia. No mês de março do ano de 2012, a Índia concedeu a primeira licença compulsória para um medicamento produzido pela Natco Pharma, visto que no sistema jurídico Indiano permitia solicitar licenças compulsórias independentemente do controle patentário. (BECKETT; POUNTNEY 2013). Importa ressaltar ainda que, apesar de outros fatores existirem para a dificuldade de acesso aos medicamentos por países em desenvolvimento e com menor desenvolvimento relativo, o preço dos medicamentos se torna a pedra angular do problema. Nessesentido Bergobservaque: 293


For example, at the time that a year‘s supply of a combination of AIDS drugs cost more than $10,000 in the United States under patent, Indian generic producers offered a similar combination for around $300. Although other factors have contributed to the unavailability of essential medicines, for some medicines prices have clearly been part of the problem.(BERG, 2013)

O desafio central desse problema foi tentar conciliar os interesses econômicos e o direito fundamental à saúde, pois existe um vínculo direto com os custos da pesquisa e desenvolvimento e as perspectivas de mercado. Assim, sendo o medicamento um bem essencial, de saúde pública, deve-se, portanto, ser tratado com prioridade e, assim, estabelecer políticas que garantem o acesso aos medicamentos para a população (HERINGER 2007). Diante do exposto, a princípio pode ser observado um conflito de direitos fundamentais, nomeadamente o direito à propriedade e o direito à saúde, representado pelo acesso aos medicamentos. Todavia, ao estabelecer uma equação entre os dois elementos jurídicos, logo se verificam as vantagens e desvantagens que surgem com a licença compulsória, que segundo André Ramos seria uma valoração comparativa dos direitos em conflito: consiste na valoração comparativa entre, de um lado, as vantagens de uma medida e, de outro, o sacrifício exigido a um direito fundamental. A análise do custo e benefício tem que ser feita para evitar medidas desequilibradas, que geram mais transtornos aos titulares dos direitos restringidos que benefício geral‖. (RAMOS 2005, p.19)

E ainda, em relação ao equilíbrio entre os direitos, o mesmo autor pontua que: Resta a análise da proporcionalidade entre a restrição de um direito (meio) e o benefício de outro (finalidade), utilizando-se os três elementos do juízo de proporcionalidade (idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Logo, na colisão entre direitos, deve-se impedir que um direito seja sacrificado inutilmente, além do necessário ou de forma desequilibrada. (RAMOS, 2005, p.47)

Sendo assim, ao verificar os quesitos da proporcionalidade, pode ser observado que o acesso à medicamentos, se enquadra na questão da coletividade, ou seja, da necessidade de uma parcela da população que não dispõe de recursos financeiros suficientes para adquirir determinados medicamentos, identificando-se, portanto a relevância social do direito. Em contrapartida, o direito de propriedade inerente a patente farmacêutica, está voltado para uma questão individual, excluindo, portanto, uma grande parcela da população, já que os benefícios serão restritos a uma pequena parcela. Por isso, ao estabelecer essa balança, em busca do equilíbrio dos interesses, se verifica que, o direito à saúde se torna, de

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fato, um elemento de destaque, pois não deve ter condicionante e por isso, mesmo sendo uma norma programática na maioria das constituições, ainda deve ter prioridade em detrimento de outros direitos elencados nas constituições dos países. Observa-se também, que o próprio acordo TRIPS estabelece em seu texto a possibilidade de utilização de medidas diversas (incluindo a licença compulsória) para que o País possa promover a saúde pública através do acesso à medicamentos. E, apesar da Declaração de Doha estabelecer questões sobre o Direito à saúde, não houve em seu texto, a colocação clarificada da possibilidade de se utilizar das licenças compulsórias para que o país pudesse promover a saúde pública. A Declaração de Doha afirmou apenas, que os países signatários cumprissem as determinações expostas no Acordo TRIPS, situação que gerou um enrijecimento das normas protetivas das patentes de medicamentos, dificultando assim, o estabelecimento de um mercado de consumo tanto interno, como em âmbito internacional. Assim, em 2003, o conselho ministerial da OMC aprova a exportação de medicamentos através da utilização da licença compulsória, para os países mais necessitados, ou seja, aqueles países que possuem graves problemas de saúde pública. É conveniente ressaltar ainda que o acesso aos medicamentos, como parte do direito à saúde, exige qualidade na prestação de bens e serviços destinados à consecução do direito à saúde. Dessa forma, não é apenas o direito de gozar de uma vida saudável, mas engloba também, o direito a gozar de um alto padrão nos cuidados de saúde e, por isso, deve haver um forte controle por parte dos países, no que tange a liberalização da entrada de medicamentos genéricos e similares no mercado, quando da utilização da licença obrigatória. Contudo, a falta de proteção de patentes adequada reduzir-se-á numa estrutura de incentivos desfavorável à investigação e desenvolvimento de medicamentos tecnologicamente mais avançados, com perdas significativas para a saúde pública nacional e global. Tanto mais quanto é certo que o desenvolvimento de resistência aos antibióticos por parte de muitos vírus exige um esforço continuado de investigação, que só uma proteção patentária adequada consegue garantir (CANOTILHOet al. 2008).

4 DIREITO AOS MEDICAMENTOS DE QUALIDADE COMO PARTE DA GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE

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No âmbito do acesso à medicamentos de qualidade, Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo (2010) observam que a acessibilidade dos medicamentos pode causar um conflito entre duas dimensões do acesso à saúde, pois uma privilegia a acessibilidade dos medicamentos, ao passo que outra coloca a ênfase na investigação e no desenvolvimento de novos medicamentos e na garantia da respectiva qualidade, segurança e eficácia, em ordem a fazer face às carências e emergências sanitárias à escala global.E, sem a entrada no mercado de novos medicamentos, existirá uma grande dificuldade de suprir as deficiências que surgirão com inexistência de produtos farmacêuticos adequados. Por isso, as autoridades sanitárias responsáveis pela entrada de medicamentos no mercado têm uma grande responsabilidade na fiscalização de maneira adequada, dos medicamentos, para que não se enquadre num dos elementos de violação do direito à saúde nomeadamente, os medicamentos sem qualidade. Nesse sentido, pode ser afirmado que, de fato, o Estado tem o dever de fiscalizar os medicamentos que serão introduzidos no mercado Dessa maneira, a proliferação de medicamentos sem qualidade, no mundo, constitui um problema de saúde pública internacional, das maiores proporções, por isso a grande importância dos órgãos fiscalizadores para permissão de entrada de medicamentos no país (MACHADO; RAPOSO, 2010). Convém observar ainda que, apesar de emergencial, a licença compulsória não pode ser utilizada de maneira arbitrária, pois o princípio da livre iniciativa e ainda, da propriedade ficarão sem sentido. Nessaperspectiva, BERG observaque:

The defenders of intellectual property rights— both corporations benefiting from patents and copyrights and governments of the IP-generating developed nations, especially the United States—counter that strong IP protection benefits developing nations and the poor. In the words of a U.S. State Department undersecretary, strong IP protection ―will not only encourage innovation, it will provide the level of confidence in an economy needed to attract foreign investment and spur technology transfer.‖ These arguments were among the justifications presented in the 1990s for including intellectual property in general international trade agreements for the first time.(BERG, 2007, p28.)

Assim, o país deve buscar mecanismos de efetivação do direito à saúde e à vida, através de instrumentos consistentes de motivação da pesquisa e do desenvolvimento, pois caso contrário, o ônus da ineficiência do estado recairá, apenas, para as empresas privadas produtoras de medicamentos. Nesse sentido Roberta Remédio Marques, observa que:

A rigidez desse controle corresponde à importância do em que está em jogo, que é a saúde pública e a saúde individual de cada cidadão. Assim, só depois de superar esse rigoroso exame, no qual é verificado se as propriedades do produto

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ou do processo não possuem nenhum efeito nocivo ao ser humano e que de fato são eficazes para o objetivo a que se propõe, poderá ser lançado o medicamento no mercado. (MARQUES, 2013, p.57)

Observa-se ainda que, o monopólio temporário inerente à concessão de uma patente, nada mais é do que o obstáculo que a população enfrenta para ter acesso aos medicamentos, que até então lhe é desconhecido. Reconhece-se que a proteção da propriedade intelectual e industrial desempenha uma importante função social, na medida em que propicia o desenvolvimento intelectual, cultural e científico dos Estados. No domínio da indústria farmacêutica, essa proteção é condição essencial a promoção sustentada da saúde pública (MARQUES, 2013). Como elucidado anteriormente, nos últimos anos têm existido problemas que envolvem as patentes farmacêuticas, nomeadamente a diminuição de incentivos para inovação na área, em virtude da vulnerabilidade à imitação do sistema. Nesse sentido, Roberta Remédio Marques observa que grande parte dos medicamentos atuais lançados no mercado contém poucos elementos inovadores,situação que não colabora com o desenvolvimento social, já que não acompanha o padrão evolutivo da sociedade, nomeadamente o surgimento de enfermidades. A necessidade de uma maior inovação farmacêutica é inegável e a melhoria da saúde (pública e individual) em termos mundiais depende dessa inovação. Ela está ligada às necessidades de saúde pública em constante evolução e associada a fenômenos globais. Portanto, seu objetivo é a continuidade da inovação dos medicamentos, propiciando maiores benefícios para a humanidade. Esse processo de inovação, no entanto, é muito complexo, demorado e frágil, por natureza. Por essa razão, são reduzidas as hipóteses de èxito na tarefa de colocar um novo medicamento no mercado. Além disso, o processo é muito dispendioso, fato que restringe o número de entidades capacitadas, técnica e financeiramente, para a busca exitosa de uma nova molécula (MARQUES, 2013). A falta de incentivo para investigação nas inovações farmacêuticas para combate das enfermidades é percebida não apenas nos antirretrovirais, mas também nos medicamentos para

combate

e

controle

da

malária,

tuberculose,

dentre

outros.NessaperspectivaGanslandt(2005) observaque: ―the problem, however, is that developing new drugs typically involves substantial investments in R&D. The average cost to develop a new pharmaceutical drug is approximately U$300 million; in some cases, it is substantially higher.These costs are mainly fixed and sunk once the drug is developed‖. (GANSLANDT et. al,

2005, p.214) 297


Essa questão decorre justamente da frágil proteção que os fármacos dispõem em vários países, em especial aqueles em desenvolvimento. Nesse sentido Mattias Ganslandt, observa que: HIV/ ADIS is not the only disease plagues poor nations; malaria tubercolosis, and other maladies are equally lethal and debilitating. Indeed, HIV/AIDS is unusual in that strong incentives for pharmaceutical companies to develop treatments for sufferers in high-income economies have resulted in medicines that effectively permit patients to function well years before onset of the disease. Overwhelmingly poor and cannot afford medicines in sufficient quantities to cover R/D costs. The problem is accentuated by weak patent protection in potential markets, further reducing the willingness of pharmaceutical enterprises to develop new drugs and vaccines.(GANSLANDT 2005p.34)

Em países desenvolvidos, a indústria relacionada com a Propriedade Intelectual, caracterizada hoje como bem de alto valor agregado, vem crescendo continuamente em ritmo mais acelerado do que qualquer outro segmento da economia. É um reflexo do novo ciclo de evolução das indústrias embasado no dinamismo tecnológico que tem como matéria-prima para os meios de produção, o conhecimento, elemento dependente da criatividade. O Brasil dentre outros países em vias de desenvolvimento enfrentam a dificuldade de se situar no mercado internacional de fármacos em virtude do frágil sistema de produção ainda existente, pois apesar de possuir incentivo de tecnologia na área, não é o suficiente para concorrer diretamente com a produção de alto nível dos medicamentos originários dos países desenvolvidos. Todavia, os países em vias de desenvolvimento apesar de não alcançarem o patamar dos desenvolvidos, na produção de fármacos originais, conseguiram desenvolver um alto padrão de qualidade para produção de fármacos na modalidade genérica, assim, conseguem abastecer o mercado interno de medicamentos com custo menor, com produção nacional de produtos genéricos, utilizando, portanto, a mesma fórmula medicamentosa do original. Diante do exposto, torna-se importante observar que as flexibilidades advindas do Acordo TRIPS e enaltecidas pela Declaração de Doha, podem não ser colocadas em atividade em virtude das dificuldades, de ordem organizacional, enfrentadas pelos países em desenvolvimento. Sendo assim, mesmo tendo sido reunido os requisitos essenciais para o estabelecimento de determinadas flexibilidades, os países não terão condições de executálas.NessaperspectivaMatthews (2011) observaque: The use of compulsory licensing provisions and other TRIPS flexibilities is also problematic the procedural requirements for implementing the appropriate national legal provisions are complex and burdensome, particularly for developing and least-

298


developed countries that lack the necessary technical and legal expertise and administrative capacity.(MATTHEWS, 2011 p. 423)

Observa-se ainda que, além das dificuldades de estrutura enfretada pelos países em desenvolvimento, existem os acordos bilaterais e regionais, como veremos à seguir, que podem incluir medidas restritivas que venham dificultar o desenvolvimento de técnicas essenciais para a produção ou reprodução de medicamentos (MATTHEWS, 2011). Em virtude das dificuldades enfrentadas pelos países em desenvolvimento no que tange à implementação das flexibilidades do Acordo TRIPS, as Organizações Internacionais tornaram-se, como se verá à seguir, um forte suporte para identificar as soluções viáveis nas negociações ocorridas entre os países (MATTHEWS, 2011). O debate sobre exceções e limitações no campo de patentes, especialmente o licenciamento compulsório, tem focalizado, desde há muito, a área da saúde pública e o acesso a medicamentos no mundo em desenvolvimento. A alteração do Acordo TRIPS decidida em 2005, com relação a licenciamento compulsório para exportação na área farmacêutica, é um resultado desse debate. O debate também se refere à discussão se o sistema de patentes, com suas atuais verificações e equilíbrios embutidos, permanece um sistema adequadamente equilibrado, o que é de extrema importância, pois vai existir oferecimento de incentivos para desenvolvimento técnico e crescimento econômico. Esse processo de competição através do fortalecimento do comércio dos países em desenvolvimento faz parte da condição natural do sistema comercial internacional. Importa ressaltar ainda que, no que tange ao sistema de propriedade intelectual, a economia dos países em desenvolvimento estão vivenciando um período de transição de substancial importância, pois partem do pressuposto em que não dispõem de tecnologia suficiente para desenvolver suas pesquisas e por isso, acabam dependendo do conhecimento e ainda, da tecnologia de países desenvolvidos. Nesse sentido, torna-se de fundamental importância a existência dos genéricos, pois será a partir de uma tecnologia já existe que se desenvolverá uma tecnologia mais avançada. Sendoassim, Gibbons observaque:

History teaches that uncompensated intellectual property transfers (piracy) as a developmental policy may have much to commend it because uncompensated transfers may mark an attempt to return to the well-worn paths that led to past successful economic development. Many now-developed nations passed through this stage of taking and exploiting uncompensated transfers of intellectual property. (GIBBONS, 2011, p87)

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A discussão tem agora se alargado para outras áreas. Exemplos são as discussões na Convenção Básica das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) sobre propriedade intelectual referente à tecnologia ―verde‖, a decisão na Comissão Permanente sobre Direito Patentário, da WIPO, para estudar a área de exceções e limitações no sistema de patentes, e a Conferência da WIPO realizada em 13-14 de julho de 2009, sobre propriedade intelectual e política pública. Nesse sentido, para o adequado equilíbrio entre os direitos dos indivíduos e os direitos dos detentores das patentes de objetos frutos de maior necessidade humana, podem ser adotadas medidas de proteção aos direitos de indivíduos que necessitem de forma urgente a utilização de tais medicamentos, todavia, não podendo, portanto, tais medidas serem abusivas, ou seja, é de extrema importância que exista coerência e limites nas medidas que forem sendo tomadas. Assim, uma análise ponderada entre os direitos de propriedade intelectual e o acesso à saúde pública se faz necessária, pois existe a necessidade de proteção patentária na indústria farmacêutica e ainda, a implementação de políticas públicas de preços diferenciados para a aquisição de medicamentos essenciais, nos países desenvolvidos e os em vias de desenvolvimento social. O fato é que os medicamentos estão se constituindo em simples mercadorias e a saúde uma extensão do mercado nas quais as curas e os tratamentos para as doenças que afligem as comunidades mundiais carentes só ficarão a disposição de maneira excludente, isto é, para aqueles que dispuserem de um poder de compra suficiente para suportá-los (Plaza 2008) Atualmente tem sido discutida a questão dos medicamentos fabricados na Índia, China e ainda, no Brasil quando se trata de medicamento similar. Sendo assim, os países emergentes se destacam no mercado de medicamentos no mundo, mas, contudo, existem indícios sobre má qualidade dos medicamentos colocados no mercado. Com o intuito de reduzir os custos dos medicamentos e, consequentemente, o valor final (preço trabalho pelas empresas para o acesso pelo consumidor), as empresas acabam por investir pouco de forma a não aplicar boas práticas de fabricação de genéricos, já que irá substituir por ingredientes mais baratos. Sendo assim, os produtos de baixa qualidade podem decorrer de várias questões, nomeadamente, falta de conhecimento, prática de fabricação falha, infra-estrutura insuficiente, conter toxinas, ingredientes ativos e ingredientes incorretos. Outra questão importante se refere aos órgãos fiscalizadores para a entrada de medicamentos no mercado,

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que muitas vezes, não são tão rigorosos e acabam facilitando a entrada de produtos farmacêuticos sem qualidade. As consequências da entrada dos medicamentos sem qualidade no mercado são graves, quais sejam: não tratamento da doeça, tanto pelo remédio não fazer efeito ou ainda, por desenvolver uma resistência do organismo ao medicamento ingerido, pode gerar ainda, desconfiança no sistema de saúde, alergias e intoxicações. Nessesentido, observa-se que: When patients receive a counterfeit medicines, they are subjected to multiple risks. They often suffer more than just an inconvenience; as they become victims of fraud medicines and are all put at risk of adverse effects from unprescribed medicines or substandard ingredients. Additionally, patients may lose confidence in health care professionals including their physician and pharmacist, and potentially modern medicine or the pharmaceutical industry in general. Counterfeit or substandard (poor quality) drugs pose threats to society; not only to the individual in terms of the health side effects experienced, but also to the public in terms of trade relations, economic implications, and the effects on global pandemics. It is vital for suppliers, providers, and patients to be aware of current trends in counterfeiting in order to best prepare for encounters with suspicious products. (SE, NSIMBA 2008, p4.)

Por isso, não é o simples acesso ao medicamento que irá construir a ideia de igualdade, mas também, a qualidade desse medicamento que está sendo disponibilizado ao público. Assim, o acesso ao medicamento estará condicionado à sua qualidade, pois se o paciente tiver acesso a um medicamento sem qualidade, logo o seu direito à saúde será automaticamente violado. Nesse sentido, as políticas de fiscalização utilizadas atualmente pelos países em desenvolvimento no que tange à permissividade da entrada de medicamentos sem qualidade no mercado, são bem preocupantes. O problema não é necessariamente a cópia do medicamento, mas tão-somente os critérios de fiscalização para conceder a permissão de entrada de medicamentos no mercado. Nesse sentido Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo observam que: Uma política permissiva relativamente a medicamentos similares e contrafeitos por razões unicamente relacionadas com o baixo preço e acessibilidade dos medicamentos pode revelar-se desastrosa para a saúde pública, colocando numa posição especial de risco e vulnerabilidade aqueles pacientes com menos capacidade para pagar. (MACHADO; RAPOSO 2010, p70.)

Diante do presente contexto, a globalização se torna um fenômeno preocupante no cenário internacional, pois as flexibilidades decorrentes dos acordos bilaterais impulsionam a comercialização de medicamentos, podendo, inclusive, facilitar a distribuição de

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medicamentos sem a devida qualidade nos países menos desenvolvidos (MACHADO; RAPOSO, 2010). Um exemplo bastante recente do problema é o medicamento contra Malária consumido por pessoas que estão localizadas na África Subsaariana e ainda, no Sudoeste Asiático em que foi constatada certa resistência ao medicamento artemisinina, mais especificamente na fronteira do Camboja com a Tailândia. Estudos foram realizados e constatou-se um forte número de medicamentos sem qualidade, com vícios de falsificação. Dessa maneira, Nayyar (2012) observa que: ―Of 1437 samples of drugs in five classes from seven countries in southeast Asia, 497 (35%) failed chemical analysis, 423 (46%) of 919 failed packaging analysis, and 450 (36%) of 1260 were classified as falsified. In 21 surveys of drugs from six classes from 21 countries in sub-Saharan Africa, 796 (35%) of 2297 failed chemical analysis, 28 (36%) of 77 failed packaging analysis, and 79 (20%) of 389 were classified as falsified. Data were insufficient to identify the frequency of substandard (products resulting from poor manufacturing) antimalarial drugs, and packaging analysis data were scarce‖ (NAYYAR et al. 2012, p.288-496)

Dessa maneira, colocar o direito de propriedade intelectual à margem da sociedade para enaltecer, por exemplo, o direito à saúde através do acesso a medicamentos pode gerar problemas graves, já que as políticas sanitárias destinadas à fiscalização das empresas de fármacos podem não ser tão confiáveis. Incorrendo, portanto, na entrada de fármacos sem qualidade e ainda, no desestímulo para a pesquisa de novos medicamentos e que gera, portanto, elementos que indicam o retrocesso social. Sendo assim os países em desenvolvimento devem envidar esforços para controlar a entrada de medicamentos sem qualidade no mercado, tanto através do estabelecimento de bons laboratórios, que tenham o compromisso de produzir medicamentos de qualidade como também através do compromisso das agências sanitárias responsáveis pelo monitoramento ou a verificação de controle de qualidade de todos os produtos farmacêuticos fabricados localmente e os importados (entrada) ou doados aos países para se certificar de que eles se encontram o conjunto ou normas internacionais ou nacionais estabelecidas. Diante desse contexto, apreende-se mais uma vez, que é responsabilidade própria do Estado a consecução do bem estar-social e, atitudes de controle para a entrada de medicamentos no mercado através de métodos de certificação que garantam a qualidade do fármaco se tornam de substancial importância. Não pode ser considerado atitudes que bloqueiam a meramente a entrada de genéricos no mercado, mas tão-somente, a entrada de

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medicamentos sem qualidade, para que não incorra na negação dos direitos fundamentais, ou seja, o direito de acesso à saúde, de vida com dignidade.

CONCLUSÃO

À vista de tudo quanto foi exposto, tem-se que o presente estudo partiu da premissa de que o alto nível de saúde constitui um elemento fundamental para o bem-estar, uma vez que se pode concluir que é à partir da boa saúde que os indivíduos têm condições de efetivar os demais direitos humanos, nomedamente, habitação, nutrição, dignidade, educação. Assim, considerando ser a inovação farmacêutica parte essencial dos esforços para melhorar a qualidade de vida e salvar vidas, observou-se que, com o intuito de ingressar na concorrência, muitas empresas de medicamentos genéricos, acabam por produzir fármacos com substâncias de baixa qualidade. Situação que viola diretamente o direito à saúde. E, por isso, a proliferação de medicamentos sem qualidade, no mundo, constitui um problema de saúde pública internacional. Diante do exposto e relacionando com o que foi exposto no texto, observa-se que a fabricação de medicamentos genéricos nos países da periferia gobal é um problema real, poisa falta de cuidado na elaboração do medicamento ocasionará acesso à medicamentos sem qualidade por países menos favorecidos. Sabe-se que o desafio central desta problemática é tentar conciliar os interesses econômicos e o direito fundamental à saúde, pois existe um vínculo direto com os custos da pesquisa e desenvolvimento e as perspectivas de mercado. Trata-se não apenas do direito de gozar de uma vida saudável, mas também, o direito a gozar de um alto padrão nos cuidados de saúde e, por isso, deve haver um forte controle por parte dos países, no que tange a autorização da entrada de medicamentos genéricos e similares no mercado. Com efeito, a falta de proteção de patentes adequada reduzir-se-á numa estrutura de incentivos

desfavoráveis

à

investigação

e

desenvolvimento

de

medicamentos

tecnologicamente mais avançados, com perdas significativas para a saúde pública nacional e global. Certo é que a proliferação de medicamentos sem qualidade, no mundo, constitui, sim, um problema de saúde pública internacional, das maiores proporções, por isso a grande importância dos órgãos fiscalizadores para permissão de entrada de medicamentos no país. Sendo assim, conclui-se que os países em desenvolvimento, principalmente, devem envidar esforços para controlar a entrada de medicamentos sem qualidade no mercado, tanto através do estabelecimento de bons laboratórios, como também através do compromisso das 303


agências sanitárias responsáveis pelo monitoramento ou a verificação de controle de qualidade de todos os produtos farmacêuticos fabricados localmente e os importados ou doados, uma vez que não é o simples acesso ao medicamento que irá construir a ideia de igualdade, mas principalmente, a qualidade que está sendo disponibilizado ao público.

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O DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO SUPORTE AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE: O EXEMPLO DA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA João Ademar de Andrade Lima1 Januária Costa dos Santos Lima2 Daniel Barbosa da Silva3 Sumário: 1 Introdução. 2 Direito Fundamental à saúde e políticas públicas brasileiras. 3 Promoção à saúde, avanços tecnológicos e crise eventual. Conclusões. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A saúde, conceituada de várias formas ao longo do tempo, com os mais diversos significados, abrangidos nos mais diferentes sentidos, é-se definida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) não apenas como a ausência de doenças, mas como um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Logo, um conceito extremamente amplo que se reflete em muitas questões éticas e jurídicas, uma vez ser meta de alcance a todo o mundo, assim refletindo diretamente na vida de todos os seres humanos do planeta, com resultado em melhorias da qualidade de vida. No Brasil o Direito à saúde – doravante, sempre, com D maiúsculo – está expresso na Constituição Federal, em seu artigo 196, que, ipsi litteris, diz ser, a saúde, ―direito de todos e dever do Estado‖, fulcrado mediante políticas sociais e econômicas com vistas à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como através do acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. Abstrai-se, de então, a própria acepção de um direito amplo, que visa tanto a redução dos riscos como também o tratamento da doença em si, para cuja assunção fora instituído o

1

Doutorando em Ciência da Propriedade Intelectual pela Universidade Federal de Sergipe e emCiências da Educação pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Portugal);Membro colaborador de equipe de investigação (investigador doutorando) do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto (Portugal);Idealizador e líder do Grupo de Estudos em Sociologia da Propriedade Intelectual, GESPI (UFCG-UEPB-CESED-FPA). Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do CESED, em Campina Grande/PB. 2 Graduada em Farmácia, com habilitação em Análises Clínicas pela Universidade Estadual da Paraíba (2005) e habilitação em Farmácia Industrial pela Universidade Federal da Paraíba (2008); Graduada em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do CESED (2014);Especialista em Manipulação Magistral Alopática pelo Instituto Racine (2006) e em Farmacologia e Dispensação Farmacêutica pela Faculdade Cathedral (2010). 3 Graduando em Odontologia pela Universidade Estadual da Paraíba e em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do CESED; Pesquisador na linha ―Biotecnologia e Propriedade Intelectual‖ do Grupo de Biomateriais, CERTBIO (UAEMa/UFCG).

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Sistema Único de Saúde (SUS), sendo o direito, assim, uma importante ferramenta no que diz respeito ao processo que cria e regulamenta ―o estado são‖ no Brasil. Entretanto, tal não se resume à participação do direito no que diz respeito à saúde lato sensu, uma vez que, para se alcançar esse objetivo, isto é, a saúde, em si, para cada pessoa, respeitando as suas individualidades e necessidades, são necessárias ferramentas jurídicas que incluem normativas relacionadas a medicamentos, insumos, produtos médico-hospitalares, certificações e técnicas especificas, majoritariamente tuteladas pelo Direito de Propriedade Intelectual, ao salvaguardar que o desenvolvimento de tais produtos pertençam aos seus determinados desenvolvedores, condição sine qua non para instigar a produção de determinados produtos, uma vez que a quase totalidade dos(as) inventos/inovações na área surge como resultado do investimento do capital privado, que busca garantia necessária como contrapartida, haja vista que o retorno financeiro é vital até mesmo para o investimento no desenvolvimento de outros produtos. A estrutura patentária – e a propriedade intelectual como um todo – exerce papel importante na composição de ações que visem ao desenvolvimento sócio-econômico de uma região, sobretudo pela garantia e tranqüilidade dada ao seu detentor, já que ela também é vista como um instrumento de controle de mercados e uma forma de reduzir as incertezas dos inovadores, pesquisadores, centros de pesquisa, indústrias etc. que dela se valem. Isto se reverte, pois, em benefícios para a sociedade, daí a sua influência e importância nos ramos empresarial e técnico-científico, especialmente por se entender a competitividade e o desenvolvimento sócio-econômico dos países, das regiões, dos setores e das empresas como fatores bases para inovação, conhecimento e aprendizado. (LIMA, 2009, p. 1)

Acerca desta questão, expõe Cláudia Inês Chamas (2001, p. 144) que ―o célere processo de internacionalização das economias amplifica a importância desses fatores, tornando-os elementos centrais para a conquista da capacitação tecnológica.‖.

Com uma efetiva proteção de seus direitos o empresário se vê encorajado a fazer investimentos em pesquisas para a invenção de novos produtos e de novos processos de fabricação, bem como de projetar sua marca como garantia de qualidade de seus produtos e serviços. A comunidade científica, com a garantia de que os resultados de seus esforços em pesquisa e desenvolvimento contarão com efetiva proteção, também sentir-se-á estimulada a empreender todo seu conhecimento e direcionar seus estudos para a invenção de novos produtos e de novos processos destinados ao setor produtivo. (BARBOSA, 1996, p. 12)

Data séculos, os países investiam nessas pesquisas, buscando a cura de seus doentes e, assim, uma melhor qualidade de vida para seus habitantes. Contudo, iniciada nova política

309


pelos norte-americanos, embasados no neoliberalismo, essas grandes pesquisas passaram de ser custeadas, em sua grande maioria, por particulares – uma característica global atualmente. Essas empresas são detentoras de grandes capitais de investimentos, e que investem pesados em Pesquisa & Desenvolvimento (P&D), buscando, dentre os resultados, invenções/inovações que possam ser efetivas no tratamento – e, até, extinção – de doenças. Estima-se que a indústria farmacêutica chega a investir cerca de US$ 1,000,000,000.00 (um bilhão de dólares norte-americanos) para desenvolver um medicamento. Assim, são necessários elementos que possam garantir o retorno de tal aplicação, bem como que permitam novos investimentos em novas pesquisas. Essa tutela, ou seja, esse direito garantido aos inventores por seus inventos, se processa através, mormente, do instituto das patentes, peça central – seguramente a mais importante – no que tange à garantia econômica e, notadamente, à segurança jurídica de quem desempenha P&D, uma vez que é necessário a chancela estatal da garantia de propriedade para que, ao inventor/inovador, sejam salvaguardados todos os direitos sobre a sua invenção/inovação, já que – como frisado alhures – a área da saúde necessita de maneira muito explicita desse ramo do direito, sobretudo na contemporaneidade, locus de avanços das ciências biomédicas e da própria tecnologia médico-hospitalar no trato ao desenvolvimento de novas maquinas, processos e procedimentos que visam a atingir a finalidade de prover combate às diversas doenças físicas e psíquicas que mazelam o hodierno meio social. Hipócrates, no século V a.C., disse: ―Que seu remédio seja seu alimento e que seu alimento seja seu remédio‖ – Ti to fármakó sas eínai to fagitó sas kai to fagitó sas eínai to fármakó sou. Pensa-se numa saúde de maneira complexa e não ligada a ditames ou parâmetros fixos, uma vez que o emprego do uso de medicamento foi feito de maneira absolutamente generalista, mas que finalisticamente foi utilizado como tudo aquilo que é capaz de gerar saúde para o ser humano, sendo, pois, meios, métodos e artífices humanos criados pelo homem ou naturais da terra, mas que produzam ou resultem em qualidade de vida, uma vez que os instrumentos rupestres por si só, representado por objetos in natura da própria natureza e a figura de um médico, ou mesmo curandeiro, não seriam capazes de gerar ou, mesmo, manter o atual momento da saúde, definido, num novo instante evolutivo, pelo desenvolvimento tecnológico correlato. Assim, importante ressaltar a figura do medicamento como forma de promoção e busca da saúde, uma vez que possui características singulares no que diz respeito ao tratamento da doença e restabelecimento da saúde do indivíduo.

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2 DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS

O Direito à saúde é um direito fundamental esculpido, no nosso ordenamento pátrio, na própria Constituição Federal, em seu artigo 196, para o qual, sob a sua tutela, incluem-se desde o tratamento, em si, da doença, até as ações referentes à prevenção e, mais, todos os recursos necessários ao alcance desse fim, sejam estes, medicamentos, recursos humanos ou materiais, bem como quaisquer outros elementos que por acaso venham a ser necessários. No que diz respeito aos direitos referentes à saúde, na carta maior, estes estão dispostos entre os artigos 196, já citado anteriormente, e 200, compondo o Título VIII, Da Ordem Social, e pautam além da relação direitos e deveres correlatos, a forma de hierarquização, e composição do Sistema Único de Saúde (SUS) e, propriamente dito, suas atribuições. Antes, ao embasamento constitucional, a garantia do Direito à saúde no Brasil encontra-se expresso no artigo 6º da lei magna de 1988, cujo rol elenca os chamados Direitos Sociais, quais sejam: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Cumpre ressaltar ainda o fato de que, com o objetivo de cumprir esse dever do Estado em oferecer saúde aos seus residentes como garantia feita constitucionalmente, foi promulgada, em 19 de setembro de 1990, a Lei n.º 8.080, criando oficialmente o SUS, retomando conceito equivalente textual e conceitualmente àquele estabelecido dois anos antes, qual seja: Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. §1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. §2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

Assim, não somente prescreve o dever do Estado em garantir a saúde lato sensu, mas também a insere, de acordo com seu caput, como um direito fundamental. De acordo com André da Silva Ordacgy (s.d.), a saúde se encontra entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano, a si reputando-se, pois, a dignidade de receber a tutela protetiva estatal, porque se consubstancia em característica indissociável do Direito à 311


vida. Segundo o autor, ―[...] a atenção à saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais.‖. Logo, sendo considerado propriamente como um desdobramento do principio da dignidade da pessoa humana, principio fundante e extremamente necessário ao desenvolvimento de todo e qualquer ser humano, assim como qualquer garantia fundamental, a saúde deve ser abraçada como um bem máximo a ser protegido e tutelado pelo Estado, comportando-se não somente a um direito individual, mas também um direito coletivo, haja vista que os danos à coletividade podem inferir em danos a todos aqueles que, com esta, convivam. Ao discorrer tematicamente acerca do objeto deste referido Direito, a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), estabelece ser ela, a saúde, um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades, de modo que tal conceito deve ser alcançado em todo mundo, incluindo notadamente o Brasil, um de seus signatários, de modo a instruí-lo como um fim ao qual esse Direito resguardado em base constitucional deveria alcançar. Outrossim, ainda na Lei n.º 8.080/1990, tem-se, no rol do artigo 7°, algumas bases normativas que são entendidas como os princípios do SUS, e incluem, primordialmente, os postulados da integralidade, universalidade e igualdade, refletindo-se, assim, diretamente na forma de abordagem e tratamento, o que resulta no fato de que a pessoa deve ser observada em sua totalidade, de maneira holística, ou seja, não se restringindo à cura de determinada doença mas, sim, ao estabelecimento da saúde do individuo de maneira abstrata, levando-se em consideração não somente a doença facilmente perceptível, mas também qualquer outro estado, a exemplo da condição mental e social do individuo que poderia desencadear em determinada doença. Cumpre-se, assim, o que se enseja a OMS. A pergunta que se coloca a todos que analisam a dimensão prestacional (ou positiva) do direito à saúde, em última análise, diz com a possibilidade do titular desse direito (em principio qualquer pessoa), com base nas normas constitucionais que lhe asseguram esse direito, exigir do poder público (e eventualmente de um particular) algum prestação material, tal como um tratamento médico determinado, um exame laboratorial, uma internação hospitalar, uma cirurgia, fornecimento de medicamentos, enfim, qualquer serviço ou beneficio ligado à saúde. (SARLET, 2007, p. 11-12)

Para o autor, o Direito à saúde é também, além de tudo, um direito a prestações, que deverá ser, igualmente, outorgado à máxima eficácia e efetividade. Assim, de maneira 312


preliminar, convém observar, à base do texto acima transcrito e às normas em comento, que não há limitações ao Estado para o alcance do fim da saúde, ou seja, pode incluir tratamentos médicos, exames laboratoriais, medicamentos, entre outros. Entretanto, por vezes ocorre o que se costuma chamar de judicialização da saúde, no qual, pelo alto custo de determinados tratamentos – incluindo medicamentos –, o cidadão precisa recorrer ao judiciário para que o Estado cumpra com essa respectiva obrigação. Acerca da questão, promulga-se, pelo Ministério da Saúde, a Portaria n.º 3.916, de 30 de outubro de 1998, que aprova a Política Nacional de Medicamentos (PNM), como propósito garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade desses produtos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais. Neste norte, possui como principais diretrizes o estabelecimento da relação de medicamentos essenciais, a reorientação da assistência farmacêutica, além do estímulo à produção de medicamentos, bem como a sua regulamentação sanitária. Em discurso junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Benedito Barbosa Gomes (2013) assevera que: ―[...] num cenário de limitações orçamentárias, não se pode impor ao Estado a concessão ilimitada de todo e qualquer tratamento ou medicamento‖, e acrescenta, entretanto, que ―essa circunstância não pode ser apresentada como cláusula geral de isenção ao cumprimento das normas constitucionais e, principalmente, à concretização do direito fundamental à saúde.‖. Assim, desde já é possível observar, na visão de ministro da corte máxima deste país, fulcro jusfilosófico no sentido de justificar o fato de que as dotações orçamentárias não podem ser utilizadas para justificar a falta de acesso a tratamentos medicamentosos no Brasil, de modo que custo dito elevado não deve ser utilizado como forma de mitigar a aquisição de determinado tratamento terapêutico, não sendo, entretanto, ilimitado. O cidadão não pode ficar desamparado, mormente quando se trata de um direito fundamental que é a saúde, ainda que se trate de enfermidade de alta complexidade e/ou de alto custo. No entanto, deve-se entender também que a medicina, aliada à tecnologia, possui medidas/tratamentos/medicamentos infindáveis e que é necessário uma lógica razoável na efetivação desta integralidade sob pena ser autofágica. Em outras palavras: quando se garante a integralidade infinita, sem qualquer razoabilidade a um indivíduo, inevitavelmente estará sendo violada a integralidade de outro indivíduo. E isto ocorre não só porque os recursos são escassos, mas também porque as medidas são inúmeras. (DAVIES, 2013, p. 6-7).

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Há de se defender, em remate, ainda o fato de serem eleitas as prioridades frente à execução de tais direitos; circunstâncias conceituais dadas à digressão quanto ao construto ora em tela.

3 PROMOÇÃO À SAÚDE, AVANÇOS TECNOLÓGICOS E CRISE EVENTUAL

Os meios de promoção à saúde dos brasileiros sofreram uma série de transformações ao longo dos anos. Hoje, o Brasil tem um conceito de modelo assistencial à saúde bastante elogiado, embora, do ponto de vista prático, sofra com uma aplicação ainda precária. Segundo Aluísio Gomes da Silva Júnior e Carla Almeida Alves (2007), o modelo de assistência é uma forma de organização e articulação entre recursos físicos, tecnológicos e humanos disponíveis para enfrentar e resolver os problemas de saúde de uma coletividade. Em observância a esta perspectiva, o Brasil instituiu alguns modelos de assistência à saúde ao longo de sua história. Inicialmente, foram organizadas campanhas promovidas pelos sanitaristas e guardas sanitários, a fim de combater as epidemias que assolavam o Brasil no início do século XXI, como a febre amarela, a varíola e a peste.

Na década de 1920, com o incremento da industrialização no país e o crescimento da massa de trabalhadores urbanos, começaram as reivindicações por políticas previdenciárias e por assistência à saúde. Os trabalhadores organizaram, junto às suas empresas, as Caixas de Aposentadoria e Pensão (Caps), regulamentadas pelo Estado em 1923. (SILVA JÚNIOR e ALVES, 2007, p. 28).

A história da assistência médica à saúde no Brasil sempre esteve ligada à previdência social, muito embora os cuidados com a saúde sejam anteriores a ela. Eloisa Israel de Macedo (2010) lembra que, quando de sua criação, na década de 1930, o sistema público de previdência social deu origem aos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), visando prestar assistência social e à saúde aos trabalhadores contribuintes. Acerca da presente questão, alude Renilson Rehem de Souza:

O INPS foi o resultado da fusão dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (os denominados IAPs) de diferentes categorias profissionais organizadas (bancários, comerciários, industriários, dentre outros), que posteriormente foi desdobrado em Instituto de Administração da Previdência Social (IAPAS), Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Este último tinha a responsabilidade de prestar assistência à saúde de seus associados, o que justificava a construção de grandes

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unidades de atendimento ambulatorial e hospitalar, como também da contratação de serviços privados nos grandes centros urbanos, onde estava a maioria dos seus beneficiários (SOUZA, 2003, p. 11).

Dessa forma, instaurou-se um modelo de medicina voltado para a assistência à doença em seus aspectos individuais e biológicos, centrado no hospital, nas especialidades médicas e no uso intensivo de tecnologia. ―Esta concepção estruturou a assistência médica previdenciária na década de 1940, expandindo-se na década de 1950, orientando também a organização dos hospitais estaduais e universitários.‖ (SILVA JUNIOR e ALVES, 2007, p. 28-29). Na década de 1960, a III Conferência Nacional de Saúde propôs a municipalização da assistência à saúde no Brasil, mas foi interrompida pela Revolução de 1964 e o período da Ditadura Militar. Daí em diante, lembra ainda Renilson Rehem de Souza (2003), a assistência médica previdenciária passou por diversas fases, até entrar em crise no final da década de 1970, dando possibilidade à expansão do movimento da Reforma Sanitária no Brasil. Em meados da década de 1980 o movimento da Reforma Sanitária cresceu, ganhando força e representatividade através da participação de profissionais da saúde, usuários, políticos e lideranças populares que entraram na luta por um sistema reestruturado. O ponto alto do movimento aconteceu em 1986 durante a VIII Conferência Nacional de Saúde em Brasília, onde grande parte das ideias discutidas foi incorporada na Constituição de 1988, a fim de criar um sistema de saúde universal e igualitário. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, foi dado o primeiro passo em direção a esse sistema universal e igualitário. Deste marco e de outros dispositivos constitucionais, deu-se início ao delineamento de um novo modelo de assistência à saúde no Brasil, culminado na Lei n.º 8.080/1990 – a Lei Orgânica da Saúde – alhures comentada, que instituiu o SUS, a partir de então ligado ao Ministério da Saúde, e não mais ao Ministério da Previdência, como ocorria com o então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). O modelo de assistência que antecedeu o SUS era centralizado na esfera Federal e, como bem lembra Giselle Nori Barros (2006), além de estar ligado à previdência social, praticava apenas ações curativas, sem se preocupar com ações de promoção e prevenção da saúde. Ao contrário do que existia, o SUS foi criado sustentado pelos princípios da universalidade, integralidade e participação social, bem como, tornou-se responsabilidade de todas as unidades da federação, não só da União. 315


Dentre o conjunto de ações prestadas pelo SUS, devidamente expressas no artigo 4º da Lei n.º 8.080/1990, estão a pesquisa e a produção de medicamentos, que – expõe, ainda, a jurista em referência – também se expressam através do artigo 6º, da mesma lei, quando determina que a assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica, também faz parte do campo de atuação do SUS, bem como a formulação de uma política de medicamentos. Historiciza Lucíola Santos Rabello (2006) que, inicialmente, a promoção à saúde foi implantada em países tidos como desenvolvidos: Canadá, Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia, Bélgica, dentre outros. Somente na última década do século XX é que os demais países começaram a ter implantada a promoção à saúde. Nessa década de 1990, também, a indústria farmacêutica no Brasil passou por mudanças específicas em seu ambiente regulatório, com destaque para as promulgações das Leis n.º 9.279, de 14 de maio de 1996 – que substituiu a Lei n.º 5.772, de 21 de dezembro de 1971, antigo ―Código de Propriedade Industrial‖ – e n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 – Lei do Medicamento Genérico – induzindo a uma reorientação das estratégias tecnológicas da indústria farmacêutica nacional, com evidente intensificação no esforço em dinamizar as atividades de P&D no país. No Brasil, o reconhecimento dos direitos dos inventores teve início com o Alvará de 28 de abril de 1809, por ação de D. João VI, que, àqueles, permitia a exclusividade pela exploração por 14 anos de suas invenções, ―sendo muito conveniente que os inventores e introductores de alguma nova machina, e invenção nas artes, gozem do privilegio exclusivo além do direito que possam ter ao favor pecuniario [...].‖ (Sic). Várias normas legais regulando as patentes foram posteriormente promulgadas no Brasil (1830, 1875, 1882, 1887, 1904, 1923). Uma lei de 1945 previa que as invenções que tinham como objeto os produtos alimentícios, os produtos e matérias conseguidas por processos químicos, bem como os medicamentos, que até então mantinham os direitos de privilégio cedidos como na época da Corte, tiveram tal privilégio excluído. (SILVA, 2008, p. 4335).

O então o Código Brasileiro de Propriedade Industrial – Decreto-Lei n.º 1.005, de 21 de Outubro de 1969 –, no seu artigo 8º, alínea c, retirou integralmente qualquer possibilidade de proteção patentária para alimentos e também para os processos e produtos farmacêuticos. Essa situação, lembra José Carlos Loureiro da Silva (2008), permaneceu inalterada por quase 30 anos. Para Eduardo Muniz Pereira Urias, citado por SANTOS e PINHO, (2012), o não reconhecimento de patentes e a permissão da cópia tinham como objetivos declarados reduzir custos e incentivar a P&D no setor farmacêutico. No entanto, a indústria nacional, apesar dos 316


menores custos com o licenciamento de tecnologia, não chegou a intensificar os investimentos nessa perspectiva – sequer na pesquisa ou quiçá no desenvolvimento – mas especializando-se na cópia de medicamentos de marca, oriundos do estrangeiro. ―Durante o período em que as patentes farmacêuticas não eram reconhecidas, proliferaram no Brasil os similares, medicamentos geralmente fornecidos por empresas nacionais que propõem a mesma ação da droga por preço inferior.‖ (URIAS, 2006, apud SANTOS e PINHO, 2012, p. 412). Ademais, quando as patentes não eram reconhecidas no Brasil, houve a proliferação dos medicamentos chamados ―similares‖, com o mesmo princípio ativo do medicamento de marca, mas produzidos por empresas nacionais e a preços inferiores. Com as mudanças advindas da reforma de 1996, a legislação patentária passou a representar um marco para a indústria farmacêutica brasileira, bem como para a melhoria da assistência à saúde, sobretudo porque retirou, da prática, o mercado da ―cópia‖ e fez com que a indústria passasse a investir mais em seus produtos, tal qual ocorrido com a chamada ―Lei dos Genéricos‖ – Lei n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 –, que passou a exigir testes de bioequivalência e biodisponibilidade para os medicamentos daquela característica, fazendo com que tais produtos tivessem maior credibilidade. Do ponto de vista das políticas de saúde, os medicamentos genéricos têm sido uma fonte importante para o acesso da população às drogas necessárias ao tratamento de suas doenças, bem como contribuiu para a redução de custos na aquisição de drogas pelos governos Federal, Estadual e Municipal. Do ponto de vista da política industrial, [...] o segmento de genéricos está representando uma possibilidade de revitalização da indústria local, beneficiando um conjunto de empresas públicas e privadas de menor porte que estão tendo oportunidade de efetuar esforços de desenvolvimento tecnológico e de articulação com o aparato local de [Ciência & Tecnologia] C&T, ao mesmo tempo que induzem o aumento da competitividade do setor, exercendo uma pressão competitiva sobre as empresas líderes no sentido da redução de preços e de margens de lucro. (GADELHA; QUENTAL e FIALHO, 2003, p. 54).

Há de se ressaltar, porém, que, como mostram Angelo da Cunha Pinto e Eliezer Jesus de Lacerda Barreiro (2013), apesar de facilitar o acesso dos brasileiros aos medicamentos e incentivar e fortalecer as indústrias a produzirem medicamentos genéricos no Brasil, os

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princípios ativos utilizados como matéria-prima ainda são importados, em sua grande maioria, da China e da Índia, aumentando ainda mais o déficit na balança comercial brasileira no setor. Para os autores, em 2010, 21 (vinte e uma) novas entidades químicas foram aprovadas pela agência regulatória norte-americana, quatro a menos que em 2009, exemplificando uma caracterizada queda progressiva no número de fármacos inovadores nos últimos 10 anos. No Brasil, apenas dois fármacos foram efetivamente desenvolvidos. O relatório do National Science Board (NSB) – órgão dirigente da Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos da América – aponta, em 2014, outros setores nos quais os EUA estão perdendo terreno para economias em desenvolvimento, como investimentos em fontes de energia renováveis, novos combustíveis e pesquisas em biomedicina. Alguns temem inclusive a evasão de cérebros. Pesquisa da American Society for Biochemistryand Molecular Biology, reportada por Annie Lowrey (2014), revelou que um em cada cinco pesquisadores considera deixar o país em busca de melhores oportunidades na carreira, os quais 85% afirmam que os cortes nos investimentos em P&D permitiram que os competidores globais alcançassem e até mesmo suplantassem os EUA em pesquisa científica. Circunstância presente, como se depreende, quer nas nações ditas mais desenvolvidas, que em países emergentes, como o Brasil, cuja reversibilidade se denota possível por estratégia não diferente que a do rearranjo da própria base cultural acerca do (des)conhecimento político-social da matéria. Não basta retrucar a inércia circundante aos muitos atores das atividades cientificas e tecnológicas de nosso país se, ao contrário, não se gerar uma hábil cultura de resguardo e respeito aos bens intangíveis, abarcados pelas Leis Autorais e Industriais, tão comumente pouco valorizadas, quando não – literalmente – descumpridas.[...] Assim sendo, não é suficiente conhecer a legislação e uma ou outra regra de estratégia empresarial se não se assume tal cultura. É entender e, principalmente, aceitar que a Propriedade Intelectual não é um simples acessório do desenvolvimento econômico-social, mas um dos instrumentos principais e indispensáveis de seu progresso. (LIMA, 2006, p. 117-118).

Uma estrutura político-organizacional que vise à assunção deste postulado, tornando-o factível, se processa, ao menos a princípio, com uma atuação consciente e estrategicamente bem elaborada pela figura do que se convencionou chamar Gestor da Propriedade Intelectual. Segundo Cássia Rita Pereira da Veiga, Claudimar Pereira da Veiga, Janssen Maia Del Corso e Anderson Catapan (2013), tão importante quanto um novo medicamento para a 318


indústria farmacêutica, é a gestão da inovação e do direito de Propriedade Intelectual dos produtos vigentes. Para organizações que operam em condições de alta competição global e rápidos avanços tecnológicos, como é o caso da indústria farmacêutica, o gerenciamento das inovações é um ponto crucial para a sua permanência no mercado. Para prolongar a lucratividade, as indústrias lançam mão de alguns posicionamentos estratégicos, como por exemplo: garantir novas indicações terapêuticas para o produto, lançar a própria versão genérica do medicamento além de tentar aumentar o portfólio de novos produtos através de processos de fusões e aquisições. Nesse contexto, ―após a obtenção de uma patente, um número consecutivo de patentes para novas combinações, usos, formulações, processos de produção ou moléculas são também solicitadas ao órgão regulatório‖ (VEIGA et al., 2013). Para o futuro legislativo na área de Propriedade Industrial, essas e outras discussões já se encontram engatilhadas e o Brasil, de forma proativa, já questiona, pondera e prevê circunstâncias delas acerca, denotando boas perspectivas – diga-se, de ressalva, vanguardistas – aptas a responder, de forma equânime e justa, às necessidades do mercado em face e em razão às de direito. Na perspectiva da saúde pública, a concessão patentária deve seguir um padrão ainda mais estrito, de forma a apenas promover as inovações genuínas e prevenir a apropriação injustificada de matérias que apenas contribuem para limitar a concorrência e o acesso a medicamentos existentes. Por isso, é importante que apenas as patentes que de fato cumpram todos os requisitos e critérios previstos na Lei, segundo as políticas públicas estabelecidas em âmbito nacional, sejam concedidas. (LIMA, 2013, p. 120)

Tais recentes discussões ganharam novo corpo, sobretudo a partir de março de 2011, com aprovação, pelo Conselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica, da Câmara dos Deputados, de estudo intitulado ―Revisão da Lei de Patentes: inovação em prol da competitividade nacional‖, cujo resultado culminou no Projeto de Lei n.º 5402/2013 que, dentre outros temas, busca encerrar as discussões em torno da concessão de patentes para produtos e/ou processos farmacêuticos de polimórficos e de segundo uso, além da anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em face do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Jaqueline Mendes Soares, Marilena Cordeiro Dias Villela Correa e Liane Elizabeth Caldeira Lage (2010) – citando GIRON, D.; GOLDBRONN, CH., MUTZ, M.; PFEFFER, S.; PIECHON, PH.; SCHWAB, PH.. Solid-state characterizations of pharmaceutical hydrates. In: Journal of Thermal Analysis and Calorimetry, v.68, p. 453-465, 2002 –, definem o termo 319


polimorfismo como a existência de alterações no arranjo cristalino de uma substância sem que, nela, contudo, se observe modificação na estrutura das moléculas (conformação molecular e espacial). As propriedades químicas das diferentes formas cristalinas de uma substância são idênticas, reforça as autoras, não ocorrendo o mesmo com suas propriedades físicas e físico-químicas, a exemplo do ponto de fusão, da condutividade, do volume, da densidade, da viscosidade, da cor, do índice de refração, da solubilidade, da higroscopicidade, da estabilidade e do perfil de dissolução. Os polimórficos obedecem, pois, a propriedades intrínsecas das moléculas, não podendo ser admitidos como uma invenção, por não advirem da engenhosidade humana, mas tão só serem considerados como uma descoberta que, como tal, não é patenteável. Caso menos consensual na nova doutrina, e em diferentes legislações, diz respeito às patentes de segundo uso, que nada mais são que uma modalidade de duplicação de direitos, enquadrando-se na chamada ―evergreening‖, ou seja, prática inapropriada, indefinida e ilegal de extensão de prazos de vigência de privilégio patentário. O primeiro uso médico é definido como um novo uso, como medicamento, de um produto já conhecido, mas não utilizado no âmbito medicinal. O segundo uso médico (que pode incluir um terceiro, quarto ou quinto uso, e assim por diante) constitui uma nova aplicação terapêutica de um composto já conhecido e que já possui uma finalidade terapêutica. Patentes de segundo uso médico, ou terapêutico, buscam a proteção de um novo usomédico, ou terapêutico, de um composto já conhecido com aplicação no campo médico. São enquadrados nessa categoria: 1. Nova aplicação terapêutica para um medicamento já registrado; 2. Nova aplicação terapêutica de um composto em formulação, apresentação edosagens diferentes daquelas do medicamento registrado; e 3. Nova aplicação terapêutica de compostos com atividade biológica conhecida,mas que não chegaram ao mercado ou não foram considerados promissorespara a primeira indicação terapêutica. (LIMA, 2013, p. 128-129)

Quanto à anuência da ANVISA aos pedidos de patente para produtos e/ou processos farmacêuticos, o que poderia parecer, à primeira vista, uma quebra de competência do INPI ou até – para os mais críticos – um enfraquecimento da própria estrutura patentária nacional, é, na verdade, uma importante medida de proteção à saúde pública e está plenamente de acordo às regras internacionais sobre Propriedade Industrial. 320


Ademais, especificadamente na área farmacêutica, esta é uma prática já vigente, primeiramente por força da Medida Provisória n.º 2.105-15, de 26 de janeiro 2001, depois por meio da própria Lei de Propriedade Industrial, alterada pela Lei n.º 10.196, de 14 de fevereiro de 2001. Entretanto, vários questionamentos foram suscitados acerca do papel da ANVISA no exercício da anuência prévia, enfraquecendo esse instituto de proteção à saúde pública e desenvolvimento do país, sendo, pois, necessário reposicionamento legal acerca da matéria. Para rematar, transcreve-se, a seguir, proposta de acréscimos normativos à Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996, advindos do PL n.º 5402/2013. Para a proposta, à questão polimórfica e de segundo uso, adita-se os incisos X e XI ao artigo 10º: Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:[...] X – qualquer nova propriedade ou novo uso de uma substância conhecida, ou o mero uso de um processo conhecido, a menos que esse processo conhecido resulte em um novo produto; XI – novas formas de substâncias conhecidas, que não resultem no aprimoramento da eficácia conhecida da substância. Parágrafo único. Para os fins deste Artigo, sais, ésteres, éteres, polimorfos,metabólitos, forma pura, o tamanho das partículas, isômeros, misturas de isômeros,complexos, combinações e outros derivados de substância conhecida devem serconsiderados como sendo a mesma substância, a menos que difiramsignificativamente em propriedades no que diz respeito a eficácia.

À anuência prévia da ANVISA, insere-se o artigo 229-C, com a seguinte redação:

Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticosdependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa,que deverá examinar o objeto do pedido de patente à luz da saúde pública. §1º Considera-se que o pedido de patente será contrário à saúde pública, conformeregulamento, quando: I – oproduto ou o processo farmacêutico contido no pedido de patente apresentarrisco à saúde; ou II – opedido de patente de produto ou de processo farmacêutico for de interesse para as políticas de medicamentos ou de assistência farmacêutica no âmbito doSistema Único de Saúde – SUS e não atender aos requisitos de patenteabilidade edemais critérios estabelecidos por esta lei.

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§2º Concluído o exame da prévia anuência e publicado o resultado, a Anvisadevolverá o pedido ao INPI, que procederá ao exame técnico do pedido anuído earquivará definitivamente o pedido não anuído.

CONCLUSÕES

É o instituto das patentes um alicerce fundamental do Direito à saúde? Guilherme José Pereira (2011) lembra, em seu estudo, que as patentes de produtos farmacêuticos, ao contrário do posicionamento de muitas pessoas, trazem muitos benefícios, afora as características capitalistas herdadas da nossa cultura. Apesar do tempo de 20 anos de exclusividade para exploração do produto patenteado concedido pela lei, na prática esse tempo fica reduzido à metade, visto que da data do protocolo do pedido, um produto farmacêutico leva em média 10 anos até chegar ao mercado, daí sendo explorado por 10 anos. No que tange ao período de exclusividade de exploração do produto, não se constitui um monopólio, visto que o medicamento irá concorrer com tantos outros já existentes no mercado. Mas as patentes, e a Propriedade Intelectual como um todo, não se findam no exposto; ademais, apresentam importância fundamental para o setor industrial moderno, não apenas por se valerem como uma verdadeira mercadoria – dada a própria natureza jurídica de Propriedade –, vendável, envolvendo diversos aspectos econômicos, jurídicos e sociais, como também por servirem de base de pesquisa tecnológica em Bancos de Patentes. Os documentos de patente se constituem no único sistema de informação precipuamente configurado para finalidade de armazenar conhecimentos tecnológicos, isto é, destinados à produção de mercadorias. Enquanto a maioria dos sistemas de informação tem metodologia adaptável às informações de caracteres diversos, em geral provenientes de campos científicos, culturais e humanísticos, a informação patentária tem sua base em documentos cuja finalidade é, desde as suas origens, a de divulgar informação técnico-produtiva. (MACEDO e BARBOSA, 2000, p. 57)

Eis, então, uma das respostas à chamada função social da Propriedade Intelectual, notadamente aos agentes científicos, tecnológicos e inovativos, em que pese o sistema patentário de ceder, ao titular, um monopólio temporário de Direito Industrial e receber, como contraprestação, a divulgação do segredo industrial do produto, com a consequente inserção deste ao Estado da Arte. 322


Graças ao grande volume de informação presente no sistema patentário – sem se incluir, no bojo, todos os demais itens abarcados e protegidos pela Propriedade Intelectual como um todo, não contemplados pelos Bancos de Patentes – extrai-se, como vantagens à comunidade científica e tecnológica: 1. a facilidade no levantamento do estado da técnica em várias áreas do conhecimento; 2. o acesso imediato aos mais recentes pedidos de patente; 3. o mapeamento das áreas já congestionadas (ou saturadas) por pedidos de privilégio patentário; 4. a catalogação de patentes por inventores ou proprietários; e 5. a catalogação de patentes já expiradas ou prestes a expirar. (LIMA, 2006, p. 5)

Apropriadamente, lembra Roberto Castelo Branco Coelho de Souza (2005, p. 1067) que o não aproveitamento dessa faculdade dada pelo sistema de patentes, é submetê-lo, de forma injustificável, apenas às atividades de registro; e, limitar-se às atividades de registro é condenar o país a pagar caro por uma informação já disponível em uma instituição pública. Por fim, arremata: ―quando os recursos para as atividades de C&T são reconhecidamente insuficientes, chega a ser malvada essa limitação.‖. Nesse diapasão, afirma Carolina Dias Ferreira (2008/2009, p. 18-19) que, a indústria farmacêutica é o setor que mais investe em inovação, visto que, anualmente, despende elevadas quantias na criação de novos medicamentos. Por isso, o sistema de patentes é por demais importante para este área econômica, pois lhe garante que terceiros não explorem indiscriminadamente suas invenções/inovações. Igualmente, a salvaguarda patentária promove entre as indústrias farmacêuticas a concorrência e inovação na busca por novas terapêuticas e suas melhorias incrementais. Tudo isso provoca estímulo à continuação das pesquisas científicas e contribui para o desenvolvimento social, econômico e tecnológico de um país.

REFERÊNCIAS BARBOSA, Maria de Fátima de Oliveira. ABC da propriedade industrial. 2.ed. Rio de Janeiro, RJ: CNI/Dampi, 1996.

BARROS, Giselle Nori. O dever do estado no fornecimento de medicamentos. São Paulo, SP: Programa de Pós-Graduação em Direito/PUC-SP, 2006. (Dissertação)

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BRASIL. Alvará de 28 de abril de 1809. Isenta de direitos ás materias primas do uso das fabricas e concede ontros favores aos fabricantes e da navegação Nacional. Brasília, DF: Coleção de Leis do Império do Brasil – 1809, p. 45, vol.1.

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________. Lei n.º 10.196, de 14 de fevereiro de 2001. Altera e acresce dispositivos à Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 fev. 2001. Seção 1, p. 4.

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324


________. Projeto de Lei n.º 5402 de 2013. Altera a Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, para revogar o parágrafo único de seu art. 40, alterar seus arts. 10, 13, 14, 31, 195 e 229-C, e acrescentar os arts. 31-A e 43-B; e altera a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, para alterar seu art. 7º. Câmara dos Deputados, Coordenação de Comissões Permanentes, Brasília, DF, p. 3630.

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O ESPORTE NO PROCESSO DE RESSOCIALIZAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO: POSSIBILIDADES, LIMITES E DESAFIOS Adílio Moreira de Moraes1 Berla Moreira de Moraes2 Márcia Maria Mont‘Alverne Barros3 Sumário: 1 Introdução. 2 Caminhos da pesquisa e procedimentos. 3 Análise e discussão dos resultados. 3.1 Atividade física no presídio. 3.2 Conhecimento sobre regras e fundamentos das modalidades esportivas. 3.3 Comportamento durante a prática de uma atividade física regular. 3.4 Comportamento social dentro do presídio. 3.5 Aprendizagem para além de muros. Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO A abordagem do tema ressocialização, na perspectiva dos direitos humanos, tem como função trazer para a discussão atual o redimensionamento da política prisional e o grau de sua efetividade na redução dos danos sociais. O respeito aos Direitos Humanos é primordial no processo de ressocialização, considerando que aspessoas presas estão não somente privadas de sua liberdade de ir e vir, mas têmcerceadas diversas outras liberdades. Faz-se necessário que o Estado garanta a integridade física, mental e social, dentre outras necessárias para sobrevivência e convivência saudável e produtiva de tais indivíduos sob custódia. A garantia do exercício desses direitos tem seu amparo na ConstituiçãoFederal Brasileira de 1988: ―a dignidade da pessoa humana é fundamento do EstadoDemocrático de Direito‖. A garantia de expandir-se enquanto ser humano deve ser almejado, mesmo e principalmente porque, este sujeito está impedido de conviver em sociedade, ou seja, está em desvantagem social. O cumprimento da pena pelo preso repercute na privação de liberdade, o que não possibilita em totalidade, esta expansão humana:―pode-se refletir e decidir sobre que vida se quer viver, masnão se pode exercitar, senão dentro do micro-cosmo social do cárcere, essa vidaque se quer viver com outros, a convivência, parte integrante da experiênciahumana‖ (BRASIL, 2011c, p. 30). Assim, mesmo sendo garantida a dignidade humana enquanto em privação de liberdade, o cárcere é, por sua natureza, violador de Direitos Humanos. Para Manzanos Bilbao (2007, p. 135-155):

1

Mestre em Ciências da Educação pela Universidade de San Carlos (Assunción). Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. (UECE) 3 Doutora em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará. (UECE). 2

328


―O cárcere é incapaz de garantir os direitos legalmente estabelecidos, de fazer possível a segurança jurídica das pessoas encarceradas (...). Isto é o que gera violência e tensão entre as pessoas presas, e entre estas e o pessoal que trabalha nas prisões. Cria frustração, desesperança, desespero, desejos de vingança, recurso à evasão por meio das drogas, ou seja, definitivamente um clima conflituoso, corrompido e violento no cárcere‖.

Um dos fatores que corroboram com a violação dos direitos humanos do apenado é a superlotação dos presídios. De acordo com os dados coletados, em 2011,o Brasil tinha um número de presos 66% superior à sua capacidade de abrigá-los, apresentando um déficit de 194.650 vagas (BRASIL, 2011a, p. 1). Atualmente a população carcerária brasileira gira em torno de mais de 574.027 presos abrigados em 1.482 estabelecimentos cadastrados entre penitenciárias.

Desses, 537.790 encontram-se

submetidos

ao

Sistema

Penitenciário

e 36.237 estão encarcerados nas Delegacias de Polícia. No país, tem-se um total de 317.733 vagas nas Secretarias de Administração Penitenciária registrando, portanto um déficit de vagas na ordem de 256.294. Percebe-se um aumento de 4,66% (24.292 presos) na população carcerária brasileira, já que em dezembro de 2012 havia registro de cerca de 549.735presos. (BRASIL, 2013, p. 1). Importante ressaltar que, em 2011, dos 515.448 presos confinados em 1.971 estabelecimentos penais espalhados em todo o território nacional, quase a totalidade (93,4%) eramdo sexo masculino e apenas 6,6% eram do sexo feminino. O total de mulheres encarceradas que era de 35.039 presas em dezembro de 2012, alcançou o número de 36.135 em junho de 2013, tal número indica o aumento do envolvimento de mulheres no mundo do crime, especialmente ligado a tráfico de drogas(BRASIL, 2013, p. 1). Outro aspecto a ser considerado é a baixa escolaridade da população carcerária do Brasil, por volta de 236.519 (45%) informaram ter o ensino fundamental incompleto, enquanto que 64.879 completaram o ensino fundamental. Apenas 41.311 frequentaram os bancos escolares até a conclusão do ensino médio e apenas 2.153 (0,02%) representa a quantidade de presos que informaram haver completado o ensino superior (BRASIL, 2013, p. 1).Este se configura um forte indicador de uma relação muito próxima entre nível cultural e criminalidade, já que a baixa escolaridade também está relacionada com problemas sociais. Diante do contingente populacional de aproximadamente 574.027 apenados, há apenas 119.517 presos envolvidos em atividades laborais, 24.662 em trabalho externo e 94.855 em trabalho intramuros, enquanto que 58.750 estão envolvidos em atividades educacionais (BRASIL, 2013, p. 1), o que pode predizer que a maior parte dos presos estádesvinculada de ocupações significativas, ou seja, estão ociosos e sem perspectivas para sua recuperação.

329


Questiona-se assim, que possibilidades reais de recuperação os condenados podem obter pela simples privação da liberdade? Que tipo de ressocialização atingirão os internos que permanecerem em prisões superlotadas, sem condições mínimas de higiene, onde há predominância da ociosidade ou de engajamento em atividades pouco significativas ou nocivas? Destaca-se, ainda, o fato de condenados de diferentes graus de periculosidade conviver entre os considerados perigosos e irrecuperáveis, passando por verdadeira escola de especialização criminal, elevando seu potencial ofensivo e antissocial, permitido por essa convivência. O resultado não poderia ser outro senão a explosão em forma de rebeliões, destruição e morte entre presos. Diante de tantas questões, convém indagar se a ressocialização no sistema penitenciário tenciona a ser considerada uma estratégia falida? Salienta-se que a ressocialização do indivíduo objetiva promover e incentivar a reintegração do apenado ao convívio social, durante e após o período de cumprimento da pena. Trata-se de um processo de reabertura da vida em sociedade. Para tal fim, aressocialização pode ser implantada de diversos modos, visualizadas mediante realização trabalho, do estudo e do ensino religioso, porém, nessapesquisa buscouse estudá-la por meio do esporte.

Buscar no esporte a ressocialização de pessoas que

cometeram crimes é uma tentativa desafiadora. Com a prática de esportes, o preso passa a se preocupar mais com a saúde e conhece os limites e regras ensinados através da prática dos esportes coletivos como o futebol, basquete, voleibol, futsal e handebol. A prática esportiva encontra-se amparada pelo artigo 83 da Lei 7.210 de 11 de julho de 1984, denominada Lei de Execução Penal, que diz: ―O estabelecimento penal conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva‖. Desta maneira, a atividade física torna-se um instrumento transformador em ações diárias, objetivando o bem estar e a melhoria da qualidade de vida do praticante (BRASIL, 1984, p. 17). Destaca-se aqui, que o presente estudo não pretende solucionar a crise do sistema penitenciário brasileiro, e sim analisar, através de iniciativas e de discussões, se existe a possibilidade de contribuir com o processo de ressocialização do apenado através do esporte, no sentido de avaliar os desafios do ensino e do desenvolvimento dos sistemas, fundamentos e regras esportivas no processo de ressocialização de detentos que cumprem pena em sistema penitenciário de segurança máxima. 2 CAMINHOS DA PESQUISA E PROCEDIMENTOS

330


Trata-se de uma pesquisa-ação com abordagem qualitativa. Segundo Thiollent (2008, p. 16), pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou problema estão envolvidos de modo cooperativo e participativo. O método qualitativo permite desvelar processos sociais, ainda pouco conhecidos, referentes a grupos particulares. Propicia a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação. Caracteriza-se pela empiria e sistematização progressiva de conhecimento até a compreensão da lógica interna do grupo ou do processo em estudo. Por isso, é também utilizado para elaboração de novas hipóteses, construção de indicadores qualitativos, variáveis e tipologias (MINAYO, 2010). Na opção por este tipo de estudo foi sedimentada a finalidade de propiciar aos presidiários perceberem-se e atuarem no desenvolvimento das atividades esportivas. Constitui, assim, a alternativa de investigação que visa à inclusão social dos internos, como agentes ativos e participativos das ações coletivas e beneficiários dos resultados. A pesquisa foi desenvolvida nos pátios de vivências coletivas e no campo de futebolda Penitenciaria Industrial Regional (PIRES), localizada no município de Sobral-CE, que fica a 230 km da capital Fortaleza. Trata-se de uma instituição pública coordenada pelo governo do Estado do Ceará. Foi construída em 1999, tendo capacidade para acolher até 500 reclusos do sexo masculino, condenados a regime de segurança máxima. A amostra da pesquisa foi composta de 20 internos que cumpria pena, os quais foram selecionados aleatoriamente, de acordo com a participação nas atividades. O tamanho da amostra foi definido pela técnica de saturação teórica. Segundo Fontanella(2008, p. 1), o fechamento amostral por saturação teórica é operacionalmente definido como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta de dados. Os critérios de inclusão foram: a participação regular nas atividades esportivas desenvolvidas nesta instituição e a aceitação em participar da pesquisa. Foram excluídos do estudo os detentos que tiveram sua liberdade programada para um período inferior aseis meses do início desta pesquisa, uma vez que não teriam tempo suficiente para participar de todos os momentos; aqueles que não participaram do período de aprendizagem da prática, compreendendo uma assiduidade inferior a 75% e os que se recusaram participar deste estudo.

331


Considerando os aspectos éticos, inicialmente, o projeto foi apresentado à Direção da Penitenciária quando foi solicitada autorização formal para realização da pesquisa. Posteriormente, o projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Vale do Acaraú e aprovado sob Parecer nº 0080.0.0.39.000-10. Os participantes do estudo foram esclarecidos no que concerne ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Em concordância com a participação na pesquisa,

assinaram os documentos, assim, os princípios éticos foram atendidos, conforme preconiza a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2013, p. 3). A coleta do material empírico respeitou os princípios éticos que norteiam o trabalho científico, guardando o anonimato e o sigilo no respeitante à autoria das respostas dos entrevistados. Foi assegurado aos participantes da pesquisa o direito de desistirem da participação da pesquisa a qualquer momento. Garantiu-se, também, o anonimato, bem como o retorno dos resultados da pesquisa. O pesquisador, inicialmente explicou aos detentos o objetivo do estudo e o passo a passo da intervenção para ressocialização pelo esporte, bem como,a importância da colaboração de cada participante na fase de planejamento, que consistia da coleta dos dados. O instrumento utilizado para a coleta dos dados foi uma entrevista semiestruturada que reproduziu as quatro perguntas realizadas na fase de planejamento para viabilizar além de uma descrição das informações encontradas, uma comparação, que permitiu identificar o que mudou nos discursos dos internos após a prática das atividades propostas. As entrevistas semiestruturadas apresentam estrutura flexível, consistindo em questões objetivas que definem a área a ser explorada, pelo menos inicialmente, e a partir da qual o entrevistador ou a pessoa entrevistada pode divergir, a fim de prosseguir com ideia ou resposta em maiores detalhes (POPE; MAYS, 2009). Esta pesquisa foi desenvolvida no período julho de 2010 a dezembro de 2011. A coleta dos dados ocorreu no período entre julho a agosto de 2010. No concernente as etapas da intervenção, estas foram desenvolvidas da seguinte forma:levantamento de informações sobre o conhecimento de regras e fundamentos das práticas esportivas por parte dos presidiários e a percepção do seu comportamento social dentro do presídio e durante a atividade física. Osdados apreendidos foram analisados e organizados a partir da técnica de categorização dos discursos e respaldados com literatura pertinente.

332


A categorização é um processo do tipo estruturalista que comporta duas etapas: o inventário, que é o ato de isolar os elementos, e a classificação, que é a divisão de forma organizada dos elementos da mensagem. Em síntese podemos ordenar as ideias e os fatos segundo as semelhanças (LEOPARDI, 2002). Após a realização das entrevistas e categorização dos resultados na fase de planejamento, pode-se idealizar como poderia ser direcionada a fase de implantação da ação com base nos objetivos propostos. A intervenção foi realizada em dois momentos, sendo estes, divididos em duas sessões: uma teórica e outra prática. Na parte teórica foram apresentados aos detentos os fundamentos, sistemas, técnicas e táticas de jogo, assim como, a elaboração conjunta dos regulamentos internos que deveriam nortear a prática das atividades. Na parte prática, foram realizados treinamentos e competições através de festivais esportivos. Nasáreas de vivências, dentro dos pavilhões, as aulas foram divididas por dias e por esportes coletivos, com uma modalidade duas vezes por semana, cada aula com duração de uma hora, sendo trabalhado em um dia a teoria e no outro a prática. Desta forma, todos os pavilhões eram contemplados, em virtude do sistema de rodízio adotado. Os encontros ocorreram cinco vezes por semana de 07h00minàs 11h00min da manhã. Os esportes coletivos de quadra trabalhados nesta pesquisa foram: futebol, futsal, voleibol, basquetebol e handebol. As práticas esportivas aconteciam dentro das áreas de vivências dos pavilhões e em cada espaço destes adaptávamos a modalidade a ser trabalhada no dia. A prática do futebol acontecia em um espaço atrás do pátio de eventos, no qual foi ―construído‖ um campo de futebol com dimensão de 65 metros de comprimento por 38 metros de largura pelos internos. O espaço foi planeado por eles de enxada e posteriormente a terra foi peneirada para tornar o campo mais macio com vistas a não acarretar lesões. As traves foram adquiridas através de ofícios encaminhados para escolas públicas estaduais e a cal, para a demarcação do campo, foi cedida pela direção do presídio. As bolas utilizadas nas competições foram obtidas através de doações. Como estas já haviam sido utilizadas anteriormente, chegavam ao presídio geralmente furadas e necessitando de reparos. Como inicialmente só havia dois internos capazes de realizar estes reparos e por haver um grande número de doações, promoveu-se, paralelamente, uma oficina de capacitação para conserto de bola, na qual participaram 28 internos. Com isso conseguiu-se atingir o número de bolas necessárias para a realização dos treinamentos e eventos esportivos. Ao final da capacitação, foi possível cadastrar 20 internos para o conserto de bolas dentro do presídio. 333


Os treinamentos eram diários e as competições aconteciam de 15 em 15 dias. O esporte mais praticado foi o futsal dentro das vivências e o futebol no campo. Para todos os esportes foram ensinados os fundamentos da modalidade e as regras do jogo. A disciplina durante as competições era seguida criteriosamente pelo corpo de segurança da unidade, sendo assim, o interno que discordasse da marcação e não aceitasse a punição da regra, era afastado das atividades e colocado à disposição para julgamento pela comissão de disciplina dos jogos, que era formada pelo corpo técnico da unidade composto por: educador físico, psicólogo e assistente social.

3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A fase de avaliação ocorreu após a realização das etapas de repasse de conhecimentos teóricos e implantação das competições. Seu objetivo consistiu em compreender como as ações esportivas influenciaram o processo de ressocialização dos internos. A apresentação dos resultados desta fase está disposta em cinco categorias. As quatro primeiras foram semelhantes às encontradas na fase de planejamento o que permitiu, além da descrição, uma comparação dos discursos apreendidos. Já a quinta e última categoria, que trata da aprendizagem para além dos muros, foi exclusiva da fase de avaliação uma vez que se referia às percepções dos entrevistados após a implantação da ação proposta. 3.1ATIVIDADE FÍSICA NO PRESÍDIO

Nesta categoria constou-se a quebra da árdua rotina imposta pelo sistema, com a realização da prática de atividade física regular. Nos momentos de práticas esportivas, os detentos esqueceram por alguns instantes dos problemas, divertiram-se, criaram gosto pelo esporte e valorizaram a competição,conforme podemos verificar nas falas a seguir: Eu não vejo a hora de começar os campeonatos, eu fico me dedicando nos treinos (E19). Tô gostando mais de jogar (E8). É o que tem de bom nesse inferno (E10).

Além do exposto, pode-se extrair também que a dedicação a estas práticas acompanhou o detento para além dos momentos de sua realização, ficando o indivíduo envolvido tanto nos momentos que antecederam as competições quanto nos posteriores,

334


quando os mesmos relembravam estas experiências para movimentarem as rodas de conversa nas vivências. Neste sentido Proniet al. (2002, p. 21), chamam a atenção para o fato de que as reações emocionais têm um papel central no esporte e no lazer, pois desempenham funções desrotinizadoras. As rotinas, por sua vez, corporificam práticas cotidianas seguras, neste sentido, as práticas de lazer podem trazer riscos controlados e processos de ruptura das mesmas. Neste contexto identificaram-se os seguintes discursos: É muito divertido e alegra a gente esses campeonatos feitos pelo professor (E6). É massa além de distrair a gente, ainda fica tirando uma onda com os caras (E11).

Segundo Scaglia, Medeiros e Sadi (2006, p. 2), a competição não se inicia apenas quando o árbitro apita para começar, ou encerra quando termina o jogo, mas desde a preparação do evento marcando o sentido de congraçamento e responsabilidade, passando por uma série de manifestações de relações sociais e culturais, garantindo a participação ativa e motivando a todos, em seu desenvolvimento. Assim, o jogo, ao mesmo tempo, é lúdico e sério, e talvez,neste cenário, se encontre uma das suas mais valiosas virtudes. Assim sendo, o jogo apresenta inúmeras outras características paradoxais, tais como ordem, desordem, tensão, movimento, mudança, solenidade, ritmo e entusiasmo (LEONARDO et al, 2009, p. 238). Além da promoção de diversão identificada anteriormente, evidenciou-se também um discurso isolado que apontou para o fato de que as participações nas atividades esportivas iriam propiciar a remissão da pena. Em poucas palavras, o discurso abordou o seguinte: Bom, e tem benefício e redução de pena (E5).

Vale lembrar que este sistema de redução é atualmente restrito para o trabalho no qual o preso recebe para cada três dias trabalhados, a diminuição de um dia na sua pena, além de um salário pelo serviço realizado, como o que acontece, por exemplo, na oficina de confecção de botas e artesanato. Porém, é importante destacar, que a Lei de Execução Penal não excluiu expressamente a possibilidade da remição da pena peloesporte. Concorda-se com os argumentos de Gomes (2008, p. 8), quando a mesma observa que:

335


―O esporte é, igualmente, um direito do preso (artigo 40, VI, LEP) eainda, considerando a finalidade maior da execução da pena que é recuperar e reintegrar o preso à sociedade, além do fato de que a ocupação do preso sempre foi o anseio da comunidade, reconhecer o direito à remição pelo esporte é engrenar um sistema que se encontra totalmente emperrado‖.

Levanta-se aqui um questionamento: se o engajamento dos detentos em práticas esportivas, como o futebol, o vôlei, handebol, dentre outras, como possibilidade de remição da pena pode ser uma estratégia que favoreça tanto a recuperação como o retorno à sociedade, porque não há um maior investimento do governo e de empresas para este fim? Se há investimento em esporte nas escolas e em outras instituições, porque não no sistema penitenciário?Se o ponto de tensão for jurídico, parece não haver impedimento legal, visto quea remição pelo esporte poderia ser reconhecida por existir dispositivo legal semelhante disposto em lei, que aborda a remição pelo trabalho. Agora, sendo o ponto de tensão as políticas públicas de atenção ao apenado, acredita-se que estas devem ser revistas e aprimoradas para realmente promover o bom retornoà sociedade, o cidadão que cometeu crime. 3.2 CONHECIMENTO SOBRE REGRAS E FUNDAMENTOS DAS MODALIDADES ESPORTIVAS Com a rotina dos treinamentos e competições, os internos começaram a compreender melhor os significados de regras e fundamentos esportivos. Para alguns, estes momentos significaram o aprimoramento de conhecimento, já para outros uma descoberta acompanhada de aprendizado. Fiquei mais conhecendo após as aulas do professor (E18). Conheci mais as regras do jogo, nos campeonatos e nos treinos (E6). Conheci mais, tô mais sabido (E13).

A disciplina proporcionada pelas regras serve para que o jogo seja conduzido com igualdade e justiça para ambas as partes, porém nem sempre é reconhecida como algo favorável no decorrer da disputa. Como se pode verificar na fala a seguir, o fato de ter que se adequar a estas determinações é entendido como um fator desencorajador, pois torna esta atividade de lazer mais difícil e complicada. Quando a gente joga com campeonato tem muitas regras e nada pode, isso às vezes atrapalha a gente curtir (E15).

No treinamento esportivo, a técnica de ensino mais utilizada é a chamada progressão de fundamento, que consiste em exercícios para aperfeiçoar a fundamentação técnica e tática, 336


partindo-se sempre do mais simples para o mais complexo. Feitos esses exercícios, o professor ou técnico deve trabalhar com o esporte na sua totalidade de regras. Nos esportes a participação, o conhecimento das regras pode ser observado nos processos detomada de decisão que implicam na utilização de uma técnica determinada, após umaanálise tática, onde, durante um jogo os processos de tomada de decisão são conduzidos pelos jogadores sob sua própria responsabilidade e, nessa situação, refletem sua capacidade tática individual, a qual se apoia na correta percepção da realidade objetiva (SAMULSKI, 2002). O trato pedagógico dado pela educação física pode promover uma apropriação mais crítica do esporte, vale dizer, uma relação do indivíduo com o esporte que o permita situar socialmente essa prática, como condição para o exercício da cidadania neste âmbito da vida e da cultura (BRACHT, 2001, p. 16). 3.3 COMPORTAMENTO DURANTE A PRÁTICA DE UMA ATIVIDADE FÍSICA REGULAR Concorda-se com Melo (2007, p. 7), quando afirma que não se pode compreender o esporte, de forma linear, como um remédio para a recuperação do preso ou a garantia de que este não retornará a cometer infrações. Porém, com a disciplina gerada através da prática esportiva propiciada pela intervenção desta pesquisa, pode-se verificar nos discursos dos internos uma melhora em relação às suas atitudes, beneficiando sua conduta nas atividades e modificando conceitos e comportamentos.

Ficou melhor, pois conheci as regras (E4) Bom, fico tranquilo e aprendo algo mais (E16)

Elias e Dunning (1986) indicam que, à medida que o processo civilizador avança, as práticas esportivas e de lazer tornavam-se também mais controladas, menos violentas e mais regradas. Neste sentido, esporte e civilização são processos encapsulados. Corroborando com a ideia anterior, Melo (2007, p. 9), aponta que o lazer, enquanto instrumento educacionalpode ser uma poderosa arma para construirmos uma nova sociedade. Assim, o esporte, em seu caráter lúdico ou não, ―permite a confraternização, a comunicação, a espontaneidade, a liberdade corporal, o envolvimento ativo do homem como ser total‖ (GOMES, 2008, p. 7). Nota-se que a competitividade se mostrou presente nos discursos após a realização dos campeonatos, onde o caráter de normalidade e tranquilidade relatado anteriormente cedeu 337


espaço para concepções dialógicas de vencedores e perdedores. Houve alguns discursos que expressaram esta necessidade de superação e sede de vitória intrínseca a toda disputa como evidenciado a seguir: É sempre procurando a vitória (E3). Sou raçudo dentro de campo e não gosto de perder o jogo (E6).

Para que os detentos pudessem prosseguir nas competições, os mesmos deveriam demonstrar respeito às regras do jogo. Assim, apesar da rivalidade gerada pela competição os internos tiveram que aprender a lidar com este tipo de emoção e superar as dificuldades em prol de sua permanência nas atividades. Não se deve identificar a busca pela vitória como algo ruim, pois a superação de limites e a necessidade de conquistas é algo que permeia o comportamento dos seres humanos. Segundo Neumann (2003), a falta de atividade física torna o caráter dos sujeitos condenados sombrios, dando possibilidade maior para a prática do mal e para um ambiente social mais pessimista e cauteloso. No entanto, os detentos deveriam sim se esforçar para alcançar a vitória, mas para tal deveriam seguir rigorosamente todos os parâmetros legais (dentro das regras do jogo), para conquistarem seus objetivos. 3.4 COMPORTAMENTO SOCIAL DENTRO DO PRESÍDIO Com a rotina de treino e jogos, identificaram-sealguns aspectos positivos referentes à melhoria do comportamento e relacionamento. O esporte traz naturalmente uma identificação do praticante e a competição determina os parâmetros para a rivalidade esportiva. Os discursos a seguir evidenciaram este posicionamento:

Ficou ótimo, pois nós nos reconhecemos dentro do esporte (E4). Os cara são limpeza quando tão jogando bola (E2). Melhorou, pois conhecemos mais pessoas e a rivalidade é só no campo de jogo (E15).

Segundo Melo (2007, p. 8), conceber uma proposta de lazer como uma possibilidade de humanização e sensibilização, poderá auxiliar o desencadeamento de iniciativas e reflexões por parte do preso sobre sua realidade, tanto na prisão quanto na sociedade como um todo, ponderando sobre sua reinserção na sociedade. De acordo com Neumann (2003), com a inclusão da prática esportiva como: futebol, voleibol, basquetebol e atletismo, os internos dispõem de mais uma opção de atividadesaudável para sua saúde, e com isso, o estado disciplinador dá um passo importante 338


para cumprimento de sua função de recuperação dos sujeitos que não se enquadram nas regras da sociedade. A atividade esportiva apresenta também uma possibilidade de inclusão social não somente dos detentos que participaram diretamente da competição, mas também destes com a equipe técnica envolvida. Varella (1999) identificou através de sua experiência no presídio Carandiru que as partidas nem sempre são tão tranquilas, daí a necessidade dos responsáveis pela organização e pela arbitragem gozarem de prestígio e "moral" para serem respeitados pelos outros presos (MELO, 2007, p. 6). De acordo com Pires (1998, p. 28), no mundo do esporte, aprende-se que a vitória do outro não deve ser questionada; que a fixação rígida de regras é necessária para mediar às relações de disputa, a fim de evitar excessos, mesmo que isso sirva também para garantir privilégios, que a autoridade hierárquica deve ser obedecida, ainda que se não se concorde com seus atos. Estas lições, se bem aprendidas, garantirão um relacionamento harmonioso do cidadão no seu grupo social, conformado diante das injustas diferenças, crente de que o ―bem sempre vence!‖. 3.5 APRENDIZAGEM PARA ALÉM DOS MUROS Identificou-se através dos discursos que o esporte conseguiu envolver os praticantes, instigando novos interesses, motivando-os a movimentar seus corpos, estimular suas mentes e estreitar os laços para convivência saudável. Relacionado a isso, tivemos as falas dos entrevistados que após a realização da ação desta pesquisa relataram a aprendizagem de alguns ensinamentos, como o respeito às regras e às pessoas, o culto ao estilo de vida saudável e a necessidade de uma boa convivência social. Cuidar do corpo e praticar esportes (E1). Aprendemos a respeitar regras do jogo e melhorar o convívio com os outros (E3). Esse negócio de esporte faz o cara abrir os pensamentos e nada de violência (E13).

Diante disso, podem-se inferir conquistas em direção à ressocialização através do esporte, um processo tão almejado dentro de um sistema prisional. De acordo com Melo (2007, p. 6), as manifestações culturais como estratégia central e/ou de grande relevância no processo de intervenção, considerando que invariavelmente as atividades de esporte são culturais e que um programa de esporte deveria sempre ser desenvolvido, tendo em vista a dupla dimensão educativa do esporte (educar pelo e para o esporte). Nesse sentido, é possível

339


pensar que as manifestações culturais possam ser de grande eficácia para melhorar a qualidade de vida dos detentos. A tentativa de fazer com que os internos aproveitem o tempo em que passarão afastados do seu convívio em sociedade, por determinação do poder judiciário, se justifica pelo fato que em um dado momento estarão novamente em liberdade e deverão ter mudado conceitos e atitudes para que não retornem a descumprir as leis. A prática de atividades físicas e esportivas neste contexto tem o objetivo primordial, não de distraí-los, mas sim de reeducálos para a necessidade de seguirem as regras impostas pela sociedade e em conformidade com a Lei. Ensinou muitas coisas boas. Pois a sociedade não deu o apoio como o esporte proporcionou dentro do presídio (E17).

Alguns espaços de aprendizagem das regras sociais e da obediência a elas são privilegiados como forma de preparação do cidadão para sua inserção passiva na sociedade. Ao lado da própria família, da escola e dos meios de comunicação de massa, o esporte é um centro de excelênciapara essa “educação‖ (PIRES, 1998, p. 28). Com o conhecimento de regras e fundamentos, abrem-se novas perspectivas e olhares até então obscurecidos pelo sentimento egoísta de colocar suas necessidades e perspectivas acima de tudo e de todos, inclusive da lei. Esta prerrogativa de respeito ao próximo deve ser estimulada para que a busca pela vitória seja constantemente almejada, porém respeitando-se os limites, com o entendimento de que o alcance de um dever acabar onde começa o limite do outro. É uma oportunidade que temos que aproveitar bem para as nossas vidas (E9).

A atividade física não só exige um esforço compensador das energias gastas como também é um derivativo para o pensamento, o qual, naturalmente, se prende aos jogos do campeonato dos diferentes desportes, aos lances mais sensacionais de determinadas provas, a melhor forma de composição de equipes, dentre outras. As qualidades morais e sociais indispensáveis a todo o indivíduo que vive em sociedade são desenvolvidas na prática da educação física (NUNES FILHO, 2002). Considerando esses aspectos, Gomes (2008, p. 2) ressalta que: ―A recuperação pode, sim, ser alcançada pela via da conscientização moral através de uma "reeducação", nascida da prática de esporte regular e consequente convívio pacífico. Esse novo estado de consciência é que dará ao preso a oportunidade de reformular sua visão da sociedade. E não há meio mais eficaz de elevar alguém que pela educação formal, pelo trabalho ou pelo esporte‖.

340


A utilização de um modelo de competição que envolva a possibilidade de maximizar os aspectos positivos e minimizar os efeitos negativos, poderá se constituir numa proposta interessante na busca do resgate de valores essências à vida em sociedade que podem ser trabalhados nessa perspectiva. CONCLUSÃO

São muitos os desafios a serem enfrentados para promoção de uma recuperação efetiva dos apenados durante o cumprimento da pena: a superlotação dos presídios, poucas oportunidades de acesso a ocupações significativas e produtivas como o trabalho, educação, o esporte, dentre outras. Verificou-se neste estudo, que o esporte pode ser uma ferramenta no processo de recuperação dos presos, pois suas regras, fundamentos, sistemas táticos e técnicos quando aplicados em esportes como futsal, futebol, voleibol, handebol e basquetebol apresentam resultados positivos na socialização. Observou-se que a prática esportiva tem funcionado adequadamenteno presídio e correspondido às expectativas referentes ao objetivo de contribuir na ressocialização dos presos. Neste contexto, a realização de atividades físicas pode contribuir de maneira efetiva para que eles consigam conciliar e se adequar às regras e normas vigentes durante e após o cumprimento da pena. Porém, as possibilidades vão de encontro aos limites da ressocialização do preso pelo esporte: penitenciárias lotadas, espaços inadequados ou insuficientes para a prática da atividade física, pouco investimento no esporte, ausência ou restrição de profissional de educação física, devidamente habilitado, para condução de programas de atividade física e desporte. Diante das possibilidades, dos limites e dos desafios da ressocialização dos apenados pelo esporte, acredita-se que pesquisas como esta,possa sensibilizar o Estado, gestores de penitenciárias, profissionais, o Sistema Judiciário, bem como a sociedade, no sentido de que, a utilização do esporte como ferramenta integrante de um processo devidamente planejado e executado, vise tanto orientar e ajudar na ressocialização dos indivíduos que foram privados de sua liberdade, tornando o tempo de cumprimento da sentença condenatória, um momento de real aprendizado e quiçá, aproveitá-la também como forma de redução da pena.

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OS GRAUS DE VINCULAÇÃO NA ATUAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS Mônia Aparecida de Araújo Paiva1 Davi Augusto Santana de Lelis2 Sumário: 1Introdução. 2 O Direito à Saúde no Ordenamento Jurídico Brasileiro. 2.1Normas constitucionais referentes ao direito à saúde. 2.2 Normas infraconstitucionais. 3 Discricionariedade Administrativa. 4 Discricionariedade e Controle Jurisdicional das Políticas Públicas de Medicamentos. 5 Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO

O direito à saúde está previsto nos artigos 6º, 196 a 200 da Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB. Trata-se de um Direito Humano Fundamental, a ser assegurado pelo Estado mediante políticas sociais e econômicas que possibilitem o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Para que tais políticas sejam elaboradas e executadas, o legislador e o administrador público fazem uso da chamada discricionariedade, entendida como a margem de atuação que conferida aos agentes públicos para a conformação e aplicação da lei no caso concreto. Entretanto, devem, ao mesmo tempo, se ater às condições que garantam de fato o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde, bem como observar as diretrizes estabelecidas pelas normas e princípios constitucionais. Assim, dentro dos parâmetros estabelecidos pela norma constitucional, deve o agente público optar por aquelas políticas públicas que mais atendam ao disposto na norma de forma genérica. Acreditava-se que no exercício dessa competência, legislador e administrador estariam apenas vinculados à lei em sentido estrito, ou seja, somente poderiam fazer o que estivesse previsto na lei. ―Fora da lei não há salvação‖, diriam alguns. Entretanto, com a emergência da chamada teoria da juridicidade, que orienta toda a aplicação do direito público na atualidade, foi preciso uma releitura da margem de atuação desses agentes, que não se encontram mais atrelados somente à lei, mas ao ordenamento jurídico como um todo, passando, inclusive, pela observância aos princípios constitucionais.

1

Graduada em Direito pela Universidade Federal de Viçosa/MG Professor Assistente de Direito Administrativo da Universidade Federal de Viçosa/MG;Advogado;Especialista em Direito Público pela ANAMAGES-MG; Mestre em extensão rural pela Universidade Federal de Viçosa; Doutorando em Direito Público na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 2

345


Diante disso, a possibilidade de controle jurisdicional dos atos administrativos vem sendo revista e ampliada, ao mesmo tempo em que cresce a insatisfação com os outros Poderes do Estado, que por vezes vêm descumprindo seu papel constitucional, em diversos campos. No caso dos órgãos do Poder Público, não são raras as vezes em que se identificam omissões ou demora na elaboração de políticas públicas e na sua execução. Assim, buscam-se identificar neste artigo a margem de atuação conferida pela Constituição Federal ao legislador e ao administrador na edição de leis, políticas públicas e atos administrativos referentes ao direito à saúde e o grau de vinculação desses agentes a estas normas, conforme a releitura feita pela doutrina sobre a discricionariedade administrativa, bem como a legitimidade do controle jurisdicional de tais atos. Além dessa introdução e da conclusão este trabalho está dividido em mais três seções: na segunda discute-se o direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro, partindo-se das normas de eficácia imediata da constituição até a regulamentação infraconstitucional. Na terceira seção apresentação a evolução dos conceitos de vinculação e discricionariedade para um conceito de graus de vinculação à juridicidade. Na quarta seção apresenta-se a possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas de medicamento à luz das teorias aduzidas.

2

O DIREITO À SAÚDE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

2.1

Normas constitucionais referentes ao direito à saúde

A atual previsão constitucional do direito à saúde teve origem nas discussões ocorridas na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Naquele momento, ficou evidente que a reforma3no sistema não se restringia apenas aos aspectos administrativo e financeiro, sendo necessária uma transformação mais profunda, com a ampliação do próprio conceito de saúde e das suas formas de proteção. Ressaltou-se também a necessidade de fortalecimento e expansão do sistema público de saúde, sendo sugerido, inclusive, a total destinação dos recursos públicos apenas para o setor público de saúde, suspendendo-se o financiamento da rede privada de saúde (BRASIL, 2013).

3

A reforma no sistema de saúde brasileiro era almejada devido a diversos problemas, notadamente pelo fato de que o sistema até então existente era restrito apenas aos trabalhadores urbanos com carteira assinada, de forma que a maioria da população ficava excluída do direito à saúde (BARROSO, 2013).

346


Percebe-se, assim, que a proposta do sistema de saúde privilegiava a chamada ―medicina socializada‖ – na qual o financiamento é predominantemente público, advindo da arrecadação de impostos –, modelo originalmente adotado pelo sistema de saúde britânico, o National Health Service – NHS. No entanto, a implementação do projeto previsto no relatório da conferência deu-se ―em um contexto em que a disputa ideológica favoreceu amplamente o projeto neoliberal, reorganizando as relações entre Estado e sociedade em bases distintas daquelas pressupostas pelos formuladores do SUS‖ (BORGES et al, 2012, p. 58). Com o advento da CRFB, em 1988, dentre os direitos sociais consagrados no artigo 6º do texto constitucional, foi previsto o direito à saúde e, mais à frente, dentro do Título VIII, que cuida ―Da ordem social‖, nos artigos 196 a 200, as diretrizes a serem observadas na criação e implementação do novo sistema público de saúde4.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A norma insculpida no artigo 6º da Carta Magna, ao prever os direitos sociais, conforme mencionado, trata de direitos fundamentais, pelo que possui aplicabilidade imediata, conforme artigo 5º, §1º5. Por outro lado, a previsão do artigo 196, para a maioria da doutrina, apresenta uma norma de natureza programática. Diante disso, observa-se que a própria previsão do direito à saúde na CRFB foi fruto da tentativa de buscar o equilíbrio entre as forças políticas participantes da Assembleia Constituinte, já que se previu, de um lado, uma norma instituidora de direitos humanos fundamentais, cuja aplicabilidade não está condicionada à atividade legislativa ou administrativa, e, de outro, as condições de efetividade do mesmo direito ficaram a cargo da implementação de políticas sociais e econômicas a serem elaboradas pelo Poder Público, já que a previsão foi feita por meio de uma norma programática, além de ter sido possibilitada a participação do mercado privado na execução das ações e serviços de saúde, com nítida influência de ideias liberais (SILVA, 1998). Dessa forma, como resolver o impasse que se 4

É importante salientar que a normatização do direito à saúde no ordenamento brasileiro não se esgota na previsão constitucional, há normatização infraconstitucional, como a Lei nº 8.080/1990 e seus decretos e portarias regulamentadores, que, no momento oportuno, serão objeto de análise no presente trabalho. 5 ―Art, 5º,§ 1º: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.‖ (BRASIL, 2014a)

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apresenta já no texto constitucional acerca da eficácia das normas que regulam o direito à saúde? É cediço as normas programáticas6 traçam ―linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os Poderes Públicos‖ (SILVA, 1998, p. 137). Entretanto, não se limitam apenas a dirigir a atuação do Estado, mas, embora sejam de eficácia limitada7, possuem caráter imperativo e vinculativo, como toda e qualquer norma constitucional. Daí deriva de que tais normas origina um vínculo para o legislador derivado, que somente pode exercer sua competência dentro dos limites estabelecidos pela norma. Questão controvertida é saber se as normas programáticas concedem vantagens concretas aos indivíduos, ou seja, se criam ―situações subjetivas positivas ou de vantagem‖ (CRISAFULLI, 1952 apud SILVA, 1998, p. 174). Para o constitucionalista, que defende a juridicidade nas normas programáticas, estas regulam juridicamente certos interesses, que podem ser simples interesse, simples expectativa, interesse legítimo e direito subjetivo 8. A partir da explanação do autor acerca do art. 205, que trata do direito à educação9, é possível concluir que o art. 196, que discorre sobre o direito à saúde, tutela interesse legítimo, ou seja, ―fundamenta sua invocação para embasar solução de dissídios em favor de seus beneficiários‖, ou seja, pode servir de base para proteger o indivíduo contra a violação do direito nela previsto. Pelo exposto, como o Estado se colocou na posição de garantidor do direito à saúde, por meio da elaboração de políticas públicas eficazes, caso não cumpra seu papel, a norma do art. 196 poderá servir como fundamento para exigir que o Estado adote as providências cabíveis para a efetivação do texto constitucional. Neste ponto, as lições de Canotilho são bastante claras, ao estabelecer que as prestações possuem duas faces: uma objetiva, que seria o objeto da pretensão dos particulares; 6

7

8

9

A classificação das normas constitucionais que será adotada no presente trabalho é apresentada pelo constitucionalista José Afonso da Silva, em sua obra Aplicabilidade das normas constitucionais, na qual defende o caráter vinculativo e imperativo das normas programáticas. Silva (1998) entende que as normas constitucionais podem ser e eficácia plena, quando se aplicam sozinhas; contida, quando atuam de pronto, mas podem ser reduzidas pelo legislador infraconstitucional; limitada, quando dependem da atuação do legislador infraconstitucional para terem eficácia. Em breve síntese, as normas de simples interesse não ―conferem aos beneficiários desse interesse o poder de exigir sua satisfação‖; as normas que tutelam interesse legítimo ―encontram-se no limiar da plena eficácia‖, e as normas que produzem direito subjetivo ―considerado este como a possibilidade de exigir ora uma abstenção, ora uma prestação, ora um agir que crie, modifique ou extinga relações jurídicas‖ (SILVA, 1998, p. 176-177). As normas de simples expectativas não são definidas pelo autor. O autor, em determinado ponto de sua obra, é claro ao dizer que os artigos 196 e 205 não tratam de normas programáticas, ao estatuir que, caso não sejam satisfeitas, ―não se trata de programaticidade, mas de desrespeito ao direito, de descumprimento da norma‖. Entretanto, mais à frente, inclui o artigo 205 entre os exemplos de normas programáticas. Assim, tendo em vista a grande semelhança entre as redações dos artigos, a contradição do autor e a posição majoritária da doutrina, foi possível concluir que o artigo 196 também trata de uma norma de natureza programática e tutela interesse legítimo.

348


e outra subjetiva, que seria o dever concretamente imposto ao legislador ou ao administrador. Como a pretensão em sua dimensão objetiva não pode ser exigida de imediato, pelo fato de a norma não conter um direito subjetivo, emerge da norma do art. 196 a dimensão subjetiva da prestação, qual seja, a possibilidade de exigir o cumprimento do dever nela previsto (CANOTILHO, ano apud SILVA, 1998). Ademais, para o autor português, o reconhecimento de um direito subjetivo, que é feito por nossa Constituição no art. 6º, difere do mandamento constitucional que determina a criação de condições materiais necessárias para a efetivação desse direito. A conclusão do autor é elucidativa:

Ainda aqui a caracterização material de um direito fundamental não tolera esta inversão de planos: os direitos à educação, saúde e assistência não deixam de ser direitos subjetivos pelo facto de não serem criadas as condições materiais e institucionais à fruição desses direitos. (CANOTILHO, 1983 apud SILVA, 1998, p. 152)

Sob o ponto de vista legislativo, a Constituição estabeleceu que a competência para legislar sobre a proteção e a defesa da saúde é concorrente (art. 23), ou seja, cabe à União a elaboração de normas gerais, e aos Estados-membros e Municípios suplementar a legislação federal. No que tange à competência administrativa, aqui incluída a criação e execução das políticas públicas, a Carta Magna atribui competência comum aos entes federativos, o que significa que os três entes são responsáveis pela elaboração das políticas públicas na área da saúde.A ideia de competência comum impõe a cooperação entre os entes, de forma que a prestação estatal seja organizada de forma que o interesse público seja melhor observado. Diante das disposições constitucionais, em síntese, é possível afirmar que o direito à saúde é um direito fundamental, de exigibilidade imediata, mas a sua efetivação depende da observância de uma norma programática, embora esta, é bom que se ressalte, possua aplicabilidade, no sentido de que pode tutelar interesse de qualquer indivíduo que se sinta prejudicado pela sua não observância, abrindo-se a estea possibilidade de exigir o cumprimento da obrigação nela imposta. Ademais, a competência para formulação das políticas que irão garantir o acesso da população aos meios que concretizem tal direito é comum entre os entes, de forma que a responsabilidade recai sobre as três esferas de governo. Cumpre, portanto, analisar a atuação do legislador derivado e do administrador no que tange à efetivação das políticas públicas referentes ao direito à saúde, a fim de que seja possível concluir se a norma constitucional está sendo ou não cumprida. 349


2.2

Normas infraconstitucionais Conforme apresentado, a CRFB previu que a saúde é ―direito de todos e dever do

Estado‖ (BRASIL, 2014a). Por outro lado, a este incumbe a formulação de políticas públicas capazes de garantir o acesso aos serviços de saúde.Para a elaboração de tais políticas o legislador constituinte também estabeleceu algumas diretrizes, que constam no art. 19810, quais sejam, a descentralização, o atendimento integral e a participação popular. Seguindo a orientação constitucional, em 19 de setembro de 1990 foi publicada a Lei nº 8.080, que ―dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências‖. Conhecida como a Lei Orgânica da Saúde, por ter instituído o sistema público de saúde brasileiro – o Sistema Único de Saúde11 (SUS) –, a legislação estrutura a prestação de serviços de saúde no país, fixando os princípios e diretrizes, dispondo ―sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências‖ (BRASIL, 2014c). Dessa forma, esta lei, de aplicação nacional, regula todas as ações e serviços de saúde, executados pelo Poder Público ou pelo setor privado. Dentre as ações do Sistema Único de Saúde (SUS), está a formulação da Política Nacional de Medicamentos (PNM), instrumentalizada pela Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998, aprovada pelo Ministério da Saúde, portanto, já no âmbito dos atos administrativos. A PNM ―observa e fortalece os princípios e diretrizes constitucionais e legalmente estabelecidos, além das diretrizes básicas, as prioridades a serem conferidas na sua implementação‖ (BRASIL,2014d), e as responsabilidades dos gestores do SUS em todas as esferas de governo.Por fim, a Lei nº 8.080/1990 foi regulamentada pelo Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, o qual apresenta a organização, o planejamento e assistência à saúde. Destarte, esse é o quadro normativo que será objeto de análise, ou seja, a partir do qual será verificado o grau de vinculação do administrador na concretização do acesso da população aos medicamentos de que necessita e, em última análise, na consecução do interesse público. 10

―Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade.‖ (BRASIL, 2014a) 11 Conforme o art. 4º, caput e §2º da lei, o SUS é formado pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, sendo que a iniciativa privada pode participar de forma complementar.

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DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

No Estado de Direito, a atuação dos agentes estatais está vinculada aos ditames legais. Pelo princípio da legalidade, no âmbito do direito público, em linhas gerais, o agente somente poderá agir quando a lei o permitir. Assim, a lei em sentido amplo cria o quadro normativo dentro do qual é lícito àquele que manifestará a vontade estatal exercer a sua competência. Entretanto, a liberdade de atuação pode ser mais ou menos ampla, a depender da margem concedida pela norma. Esta liberdade de que dispõe o Estado é classicamente denominada de discricionariedade. Por outro lado, quando não há espaço para que se opte por uma ou outra conduta, diz-se que há vinculação. A vinculação ocorre

quando a norma a ser cumprida já predetermina e de modo completo qual o único possível comportamento que o administrador estará obrigado a tomar perante casos concretos cuja compostura esteja descrita, pela lei, em termos que não ensejam dúvida alguma quanto ao seu objetivo reconhecimento. (BANDEIRA DE MELLO, 2012, p. 9) (grifos no original)

Por outro lado, a discricionariedade ―é a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público‖ (CARVALHO FILHO, 2011, p. 46). O autor trata a discricionariedade como um poder da Administração, posição que é criticável, pois atualmente entende-se que os poderes da Administração são instrumentais em relação ao dever de perseguir o interesse público, sendo que este aspecto do dever deve prevalecer sobre o aspecto do poder (BANDEIRA DE MELLO, 2012). Para Bandeira de Mello (2011, p.432), a discricionariedade pode ser definida como a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal.

Ainda de acordo com a teoria clássica pode-se apontar Di Pietro (2012), que afirma haver discricionariedade quando: a) a lei expressamente confere esse poder ao administrador, b) a lei é insuficiente para permitir a atuação do administrador, c) lei prevê a competência mas não estabelece a conduta e; d) lei usa conceitos indeterminados. Em relação a política pública, o uso da discricionariedade deveria ser pautado pela reserva do possível, do mínimo

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existencial e da previsão constitucional. Não havendo para o Judiciário nenhuma possibilidade de interferência na zona discricionária do Executivo. Em sentido semelhante, Morais (2004) entende que a discricionariedade administrativa pode ocorrer: a) por uma concepção negativa (formal), quando o administrador pode agir por ausência de previsão legal; b) por uma concepção positiva (material), quando o administrador pode agir por um critério valorativo em prol do interesse público; c) por uma concepção eclética, quando há valoração em prol do interesse público com margem de atuação legal. Historicamente haveria impossibilidade de controle do poder judiciário, mas este já é admitido nos ordenamentos legais. Conforme se verifica, a noção clássica de discricionariedade traz em si a ideia de livre espaço de decisão, segundo critérios subjetivos do administrador, tais como os de conveniência e oportunidade. Ou seja, a norma delineia o contorno dentro do qual o administrador poderá exercer a sua competência, mas dentro dessa margem de escolha, a opção do administrador é livre, já que todas as alternativas previamente abertas pela norma são igualmente válidas perante o ordenamento. Essa é a posição da doutrina clássica. Entretanto, o que se verifica no atual estágio de evolução do direito é que essa rígida separação entre vinculação e discricionariedade, segundo os critérios apresentados, não mais pode subsistir em nosso ordenamento. O direito administrativo vem ganhando novos contornos, deixando de ser um direito a favor do administrador para ser efetivamente um instrumento de proteção ao administrado. Dentre essas transformações, emerge o chamado princípio da juridicidade administrativa, advindo da importância assumida pelos princípios constitucionais, aos quais está a Administração Pública vinculada, conforme se extrai das lições de Gustavo Binenbojm (2014, p.38):

Toda a sistemática dos poderes e deveres da Administração Pública passa a ser traçada a partir dos lineamentos constitucionais pertinentes, com especial ênfase no sistema de direitos fundamentais e nas normas estruturantes do regime democrático, à vista de sua posição axiológica central e fundante no contexto do Estado democrático de direito. A filtragem constitucional do direito administrativo ocorrerá, assim, pela superação do dogma da onipotência da lei administrativa e sua substituição por referências diretas a princípios expressa ou implicitamente consagrados no ordenamento constitucional. (grifos no original)

A juridicidade administrativa é, portanto, a vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, emergindo daí que toda a atividade administrativa deve

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estar atrelada não só à lei em sentido estrito, mas também aos princípios que estejam implícitos ou explícitos no ordenamento. Destarte, a rígida dicotomia entre vinculação e discricionariedade perde o sentido, pois o livre espaço que possuía o administrador, segundo a doutrina clássica, agora se encontra não somente balizado pela norma legal, como também a própria escolha deve ser orientada pela obediência à juridicidade. A discricionariedade, assim, deixa de ser um livre espaço de decisão, para ser um ―espaço carecedor de legitimação‖, ou seja, não um campo de escolhas segundo critérios de conveniência e oportunidade, mas ―de fundamentação dos atos e políticas públicas adotados, dentro dos parâmetros jurídicos estabelecidos pela Constituição e pela lei‖ (BINENBOJM, 2014, p.39). Diante disso, a divisão entre discricionariedade e vinculação cede lugar para que existam diferentes graus de vinculação à juridicidade. Por consequência, os atos administrativos passam a ser classificados de acordo com esse grau de vinculação, conforme uma escala decrescente conforme estejam mais ou menos vinculados à norma. Esta é a chamada teoria dos graus de vinculação à juridicidade (BINENBOJM, 2014). Os atos administrativos vinculados por regras são os que possuem o mais alto grau de vinculação à juridicidade12. Por conterem a descrição do fato e a correspondente conduta a ser adotada, uma vez verificada esta correspondência, incumbe ao administrador agir conforme prescrito. O administrador, no entanto, poderá deixar de observar o comportamento descrito caso ele vá de encontro à finalidade da norma, conforme análise concreta13. Em segundo lugar, há os atos vinculados por conceitos jurídicos indeterminados14, que exigem do administrado certa valoração para que o seu alcance seja determinado. A 12

Regras, para Humberto Ávila, são normas imediatamente descritivas, cuja aplicação exige a avaliação da correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. A avaliação da correspondência, lembra o autor, deve ser centrada na finalidade da norma ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes (ÁVILA, 2008). 13 Um exemplo extraído da doutrina ilustra esta possibilidade: ―Este seria o caso, e.g., de alguém que tenha ultrapassado um semáforo defeituoso, que ficava permanentemente com a luz vermelha acesa, após verificar que o semáforo da rua oposta encontrava-se também na posição ‗pare‘. Na espécie, a conduta do motorista não violou a finalidade da regra (evitar colisões em cruzamentos), nem o princípio a ela imediatamente superior (segurança no trânsito, incolumidade física das pessoas)‖. (BINENBOJM, 2014, p. 244) 14 A Doutrina pátria ainda diverge sobre os conceitos jurídicos indeterminados, ―são noções vagas, fluidas ou imprecisas, que não possuem um único significado de caráter prévio e absoluto, mas, ao contrário, situam-se entre uma zona de certeza positiva e uma zona de certeza negativa conceitual‖ (CARVALHO, 2008, p. 408). Para Morais (2004), os conceitos indeterminados podem ser: a) vinculados, quando comportam apenas uma solução já prevista na lei; b) não vinculado discricionário, quando a relação com a norma aberta permite uma criatividade axiológica para a integração da norma; c) não vinculado e não discricionário, quando é um mero juízo de prospecção. Para Di Pietro (2012) no Brasil os conceitos jurídicos indeterminados tornam-se determinados mediante a interpretação do agente, em se tratando de conceitos técnicos a Administração Pública pode se tornar vinculada à terminação tecnocrata.

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investigação da vinculação do administrador, neste caso, passa pela delimitação de que existe uma zona de certeza positiva, uma zona de certeza negativa e uma zona de penumbra. A zona de certeza positiva é aquela na qual não há dúvida acerca da expressão utilizada na norma; na zona de certeza negativa estão uma série de situações que não estão contempladas no alcance da norma. Por outro lado, na zona de penumbra a apreciação do administrador é maior, já que foram utilizadas expressões que criam uma margem de dúvida acerva de seu alcance. Por fim, existem os atos vinculados diretamente por princípios, correspondentes ao que hoje conhecemos como atos discricionários. Nesse caso, à vista dos princípios que norteiam o ordenamento, o administrador optará pela conduta que melhor atende à finalidade da norma em aplicação. Essa espécie de ato possui o menor grau de vinculação.

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DISCRICIONARIEDADE E CONTROLE JURISDICIONAL DAS POLÍTICAS

PÚBLICAS DE MEDICAMENTOS

Ante a nova concepção acerca da atuação da Administração Pública por meio de seus atos, admitindo-se a existência não mais de um livre espaço de apreciação, mas de uma atuação vinculada em maior ou menor grau à juridicidade, necessário que seja feita uma releitura da possiblidade de controle jurisdicional dos atos administrativos15. A princípio, a possiblidade de controle é inversamente proporcional à vinculação do ato à juridicidade, ou seja, quanto maior o grau de vinculação menor o grau de controlabilidade (BINENBOJM, 2014). Ademais, a teoria dos graus de vinculação à juridicidade defende que o controle não deve ser estático, mas estabelecido de acordo com critérios que levem em consideração não só a estrutura dos enunciados normativos, como também a distribuição de competências, a estrutura orgânica, dentre outros (KRELL, 2004 apud BINENBOJM, 2014). Historicamente, para a instituição das políticas públicas, os agentes incumbidos de tal mister lançaram mão da chamada discricionariedade. Aliás, o campo das políticas públicas é, por excelência, o que permite a concretização da liberdade de atuação conferida ao administrador (FERREIRA, 2014). Diante da releitura da discricionariedade, rectius, dos graus de vinculação à juridicidade, e tendo em vista o fato de a política pública ser instituída pelo legislador e pelo

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É cediço que diversas são as formas de controle externo da Administração Pública, como o controle levado à efeito pelo Poder Legislativo e o controle popular. No entanto, será objeto de abordagem somente o controle realizado pelo Poder Judiciário.

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administrador, é possível deduzir que estes não mais devem obedecer aos critérios que melhor lhes convier, em um juízo de valoração livre, mas que estão vinculados a toda uma estrutura de normas e princípios que deverão orientar suas escolhas. No caso específico do direito à saúde, a análise dos graus de vinculação surge a partir da previsão por meio de norma programática, conforme já apresentado. Assim, para concretizar o mandamento constitucional, o legislador está adstrito primeiramente à Constituição como um todo e às diretrizes estabelecidas no tocante ao direito à saúde.Dessa forma, o art. 196 estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, que deve ser garantida por meio de políticas que visem ao acesso universal e igualitário às ações e serviços. Destarte, neste ponto encontra-se a primeira amostra da vinculação de todas as medidas subsequentes, sejam elas legislativas ou administrativas. As ações em saúde, aqui incluídas aquelas que permitam o acesso a medicamentos à população, estão obrigadas a concretizar o acesso universal e igualitário aos serviços. Qualquer norma que venha a desrespeitar ou obstaculizar o acesso nos termos estabelecidos será inconstitucional, após análise segundo a proporcionalidade e a ponderação entre princípios e direitos fundamentais. Prosseguindo na análise da legislação em assistência farmacêutica, a Lei nº 8.080/1.990, que estrutura o SUS, em seu art. 7º reforça os princípios da universalidade e da igualdade, constitucionalmente previstos. A lei foi além, estabelecendo em seu art. 2º que incumbe ao Estado prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde. A lei supramencionada foi regulamentada por inúmeras portarias, sendo a que mais interessa ao presente estudo é a Portaria nº 3.916/1.998, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos, que representa a base de toda a política pública de distribuição de medicamentos no país. Tal norma se encontra no âmbito de competência da Administração Pública, uma vez que tal ato foi editado pelo Ministério da Saúde; verifica-se que houve reforço na integralidade e universalidade da cobertura da assistência, ao prever que ―o modelo de assistência farmacêutica será reorientado de modo a que não se restrinja à aquisição e à distribuição de medicamentos‖ (BRASIL, 2014d). A portaria também apresenta diversos aspectos técnicos que devem ser levados em consideração no momento da elaboração e concretização da assistência farmacêutica, tais como critérios epidemiológicos, disponibilidade de recursos financeiros, custo benefício e custo efetividade da aquisição e distribuição dos produtos em relação à demanda populacional, etc.

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É interessante ressaltar que o administrador estabeleceu critérios técnicos de forma a racionalizar a seleção e distribuição de medicamentos. Entretanto, não se pode perder de vista que a política pública de saúde como um todo deve obedecer tanto aos princípios constitucionalmente previstos para a área da saúde quanto os direitos fundamentais, servindo estes como norte na atuação de todo os agentes estatais. Os critérios técnicos estabelecidos devem ser prestar a otimizar a garantia do acesso universal e igualitário, efetivando assim uma política pública de qualidade, não a restringir o acesso da população. Assim, em que pese o caráter técnico da seleção dos medicamentos e execução da assistência farmacêutica, o que reduz o campo da análise jurisdicional, uma vez que o administrador é quem detém a experiência necessária e o contato direto com as demandas dos administrados, esse aspecto técnico-funcional não pode se sobrepor nem deixar de observar os ditames constitucionais e legais já estabelecidos. No ano de 2011, foi editado pela chefe do Poder Executivo federal um decreto (Decreto nº 7.508), o qual talvez traga a norma que mais vincula o administrador e, por consequência, afastaria a possibilidade de controle por parte do Poder Judiciário. Da leitura do art. 28, abaixo transcrito, é possível perceber que não restou alternativa ao agente público: diante do pleito de um indivíduo, desde que preenchidos os requisitos, a Administração Pública estaria obrigada a fornecer o medicamento pleiteado.

Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente: I - estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS; II - ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS; III - estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos; e IV - ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS. (BRASIL, 2014b)

No entanto, se for feita uma análise segundo as diretrizes estabelecidas pela CRFB e demais leis que regulamentam o direito à saúde, pode-se apontar que o dispositivo está eivado de inconstitucionalidade. Ora, não é concebível que um sistema de saúde que almeja ser igualitário e universal restrinja o acesso aos medicamentos apenas a pacientes que estejam em tratamento pelo SUS. A própria Lei nº 8.080/1.990 afirma que a iniciativa privada participa de forma complementar ao SUS. Assim, se um indivíduo, em tratamento com um médico particular, não vinculado a qualquer ação promovida ou financiada com recurso do SUS, com uma prescrição de um 356


medicamento feita por este médico apresenta sua pretensão ao administrador, este deve negar o pedido, tendo em vista que tal indivíduo não está assistido pelos serviços do SUS? Embora haja defesa desta ideia, o SUS não é um plano de saúde ao qual as pessoas optam por se filiar ou não; é um sistema de saúde financiado por todos e ao qual todos devem ter acesso, sem distinção. Afora o caso específico desse artigo, cuja inadequação deve ser resolvida em sede de controle de constitucionalidade, as demais normas em análise que norteiam a elaboração de toda a política pública de saúde trazem em seu bojo ora princípios, ora conceitos que ganham sentido diante de um caso concreto. De acordo com a teoria dos graus de vinculação, os atos vinculados a princípios, sejam estes constitucionais ou infraconstitucionais, são os que admitem o controle jurisdicional mais amplo. Verifica-se, então, que as políticas públicas encontram-se em sintonia com as diretrizes estabelecidas constitucionalmente, salvo o artigo acima impugnado, uma vez que buscam garantir o acesso universal e igualitário, visando a concretização do direito à saúde da forma mais plena possível. Esta é a leitura das normas. Realizando um confronto dessas normas com a teoria dos graus de vinculação, pode-se inferir que aquelas trazem em seu conteúdo conceitos vagos. O que representa a acesso universal e igualitário à saúde? O que seriam condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde? Entende-se que tais condições de acesso e de pleno exercício serão alcançadas mediante exercício interpretativo do aplicador, no caso, o administrador, tendo sempre em mente os princípios jurídicos, as finalidades e o contexto das normas a serem aplicadas. Nota-se nessa acepção a possibilidade de controle que era reconhecida por Bandeira de Mello (2012) quando da causa, motivo, legalidade e motivação do ato16. E mais, caberia ao judiciário à missão de verificar se o administrador se manteve dentro do campo da legalidade, atual jurisdicionariedade. Um passo adiante está Faria (2011), ao entender ser possível o controle do mérito do ato administrativo pelo judiciário. Na doutrina pátria não se encontra dissidência quanto à possibilidade de controle da discricionariedade (FARIA, 2011, p. 214), mas o controle sobre o mérito foi sistematizado de modo que o controle sobre os motivos, a

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Havendo vício em algum desses elementos há nulidade do ato administrativo. Desse modo pode-se dizer que para Bandeira de Mello (2012), é a nulidade do ato, que não perfaz um interesse público, que permite o controle judicial.

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proporcionalidade, a finalidade e capacidade importam em verdadeiro mérito do ato administrativo17. No caso de pleito de um medicamento de alta complexidade, por exemplo, que não está contemplado nas listas nacionais, estaduais ou municipais, qual deve ser a postura da administração, diante da indeterminação dos conceitos? A tendência é que seja negado, principalmente sob o argumento de que o medicamento não se encontra na lista oficial de medicamentos, mas,perante de todo o corpo de normas e princípios orientadores da administração em suas políticas de saúde, é possível que seja exercido um controle nesse caso, determinando que a administração cumpra com sua obrigação de proporcionar os meios para o pleno exercício do direito à saúde. Desse modo, o juiz, ao ser provocado a se manifestar em uma demanda de medicamentos, pode analisar a possibilidade de controle a partir da análise das zonas de certezas positiva e negativa. Assim, a negativa de fornecimento de um medicamento certamente não se encontra abarcada pelo conceito de integralidade, termo insculpido nas diversas normas das políticas públicas. Por outro lado, o fornecimento atenderia à finalidade e alcance da norma que prevê a integralidade. Com base nesse primeiro exame, depreende-se que o controle jurisdicional será amplo, uma vez que é possível delimitar, sem qualquer dúvida, a correta utilização do termo. Em síntese, diante dos conceitos indeterminados contidos nas normas que orientam a assistência farmacêutica, a análise deve ser feita com base na investigação se tais conceitos estão situados em uma zona de certeza positiva ou em uma zona de certeza negativa, ou, ainda, se se encontram em uma zona de penumbra, quando não for possível a afirmação de que estão compreendidos pelos conceitos apresentados. Neste último caso, a possibilidade de controle pelo juiz será reduzida, mas não eliminada, tendo em vista que o controle ainda pode ser efetivado por meio dos princípios.

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Em 1948, o acórdão proferido por Seabra Fagundes na apelação nº. 1422 em mandado de segurança do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte marcou, segundo Faria (2011, p.238), o primeiro controle de mérito de ato administrativo. Na ação a Empresa de Transporte Potiguar questionou ato praticado pelo Inspetor de Trânsito do Estado do Rio Grande do Norte que determinava horários de saída de ônibus na cidade de São José de Mipibu com destino a capital do estado que não atendiam aos interesses dos diversos moradores. Segundo o doutrinador a segurança no caso só foi concedida porque o Tribunal exerceu controle sobre o mérito do ato administrativo. Não se trata de um caso de saúde, entretanto, a importância do julgado fez chegar ao Poder Judiciário atual a possibilidade de, se provocado, exercer amplo controle sobre os atos administrativos que não respaldem interesse público.

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CONCLUSÃO

Após a exposição sistemática do tema, foi possível constatar que, nos termos da CRFB, o Estado se colocou na posição de garantidordo direito à saúde, e, caso não cumpra seu papel, a norma do art. 196 serve de fundamento para exigir que o estado adote providências para a efetivação do texto constitucional, já que desse dispositivo emerge a possibilidade de exigir o cumprimento da obrigação estatal dele imposta. Ressaltou-se também que, de acordo com o princípio da legalidade, a atuação administrativa e legislativa, responsável por elaborar e efetivar as políticas públicas de saúde, deve ser exercida dentro dos ditames legais. Dentro dos contornos estabelecidos pela lei, é lícito ao agente público exercer sua competência, escolhendo a melhor conduta de acordo com critérios de conveniência e oportunidade. Essa liberdade de atuação é chamada pela doutrina clássica de discricionariedade. Entretanto, como visto, o direito administrativo vem ganhando novos contornos, principalmente a partir do desenvolvimento da teoria dos princípios, vinculando o administrador à juridicidade. A partir de então, a rígida dicotomia entre vinculação e discricionariedade perde o sentido, pois o livre espaço que possuía o administrador, segundo a doutrina clássica, agora se encontra não somente balizado pela norma legal, como também a própria escolha deve ser orientada pela obediência à juridicidade.A divisão entre vinculação e discricionariedade dá lugar à constatação de que existem diferentes graus de vinculação à juridicidade, ou seja, pode haver a vinculação a regras, a conceitos jurídicos indeterminados ou a princípios. No que tange ao direito à saúde, foi visto que as normas analisadas se apresentam para o aplicador por meio de conceitos indeterminados, cujo sentido será desvendado após confronto com a realidade fática. Dessa forma, cabe ao elaborador e executor das políticas públicas observar tais conceitos, revelando e concretizando seu sentido no momento do exercício de sua competência, tendo sempre em mira os princípios orientadores da atuação estatal. Conforme visto, caso seja provocado, o juiz deve analisar o comportamento do administrador verificando se a escolha por este feita encontra-se no campo de certeza positiva do conceito indeterminado, ou seja, a escolha é alcançada pelo sentido da norma. Neste caso, não há que falar em controle, pois a finalidade da norma foi observada. Caso contrário, a conduta esteja situada na zona de certeza negativa, já que é flagrante que a aplicação do conceito jamais daria ensejo àquele comportamento em análise, o controle do ato pelo Poder 359


Judiciário será plenamente cabível, tendo em vista a não observância do enunciado normativo. Por fim, caso a conduta se encontre na zona de penumbra, sobre a qual paira dúvida se a conduta se ajusta à hipótese normativa, o controle jurisdicional ainda assim não estará afastado; poderá ser exercido limitado à averiguação de o fato estar ou não em conformidade com os princípios constitucionais e infraconstitucionais. Acredita-se que a partir dessa análise ponderada possa se efetivar um controle jurisdicional legítimo, capaz de garantir a todos, de fato, um direito à saúde pleno, sem que isso acarrete em desequilíbrio entre os Poderes estatais.

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REFLEXÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: A REALIDADE ENTRE OS ASPECTOS ÉTICOS E LEGAIS Rebeka Souto Brandão Pereira1 GrasielaPiuvezam2 Sumário: 1 Introdução. 2 Do crime silencioso e das questões éticas. 2.1 Panorama da violência contra a pessoa idosa. 2.2 Leis de proteção ao idoso e a realidade de sua aplicabilidade. 2.3 Aspectos filosóficos da origem da violência contra o idoso. 2.4 Conflitos ético-sociais acerca da velhice e suas consequências. 3 Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO A violência contra o idoso pode ser considerada silenciosa e em constante crescimento

dentre a população idosa. Nessa perspectiva há que se ter um panorama geral, dos institutos que protegem a dignidade da pessoa idosa com a efetiva postura positiva do Estado. Segundo estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), o cenário de crescimento demográfico do Brasil concernente aos idosos brasileiros, é bastante pertinente, pois, de acordo com o Censo de 2010, a população total do nosso país alcança o patamar de 190 milhões de pessoas, sendo que 22 milhões são idosos. Neste sentido, o IBGE fez uma projeção em relação ao crescimento populacional da pessoa idosa, segundo a qual, em 2050, a população brasileira alcançará 238 milhões de habitantes, dos quais 52 milhões terão atingido mais de 60 anos de idade. Constata-se a possibilidade de existir uma imagem sociocultural negativa do idoso repleta de estereótipos e preconceitos, diferentemente do que ocorre nas sociedades orientais, onde há a valorização do idoso e a perspectiva de um novo papel social. Essa visão da velhice, que destaca a incapacidade funcional e social do indivíduo, colocando tal grupo vulnerável em uma condição de fardo para os seus familiares e/ou cuidadores, entende-se que essa é uma das principais razões para a prática da violência contra essa faixa etária. A violência é caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como qualquer ato único ou repetitivo, e até mesmo a omissão, que cause dano, sofrimento ou angústia, praticado dentro ou fora do ambiente doméstico, por algum membro da família ou outra pessoa que exerça algum tipo de poder sobre o idoso. São identificados sete tipos de maus-tratos contra a pessoa idosa, a partir de um consenso internacional envolvendo a OMS e 1

Graduanda do 8° Período do Curso de Direito da UNI-RN. Especialista em Direto Penal pela Faculdade Internacional Signorelli. Estagiária Concursada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. E-mail: rebekasbrandao@gmail.com 2 Professora Doutora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).E-mail: gpiuvezam@yahoo.com.br

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a Rede Internacional de Prevenção contra Maus Tratos em Idosos: os maus-tratos físicos, os maus-tratos psicológicos, a negligência, a autonegligência, o abandono, o abuso financeiro e o abuso sexual (WHO, 2002). Desse modo, percebe-se que a violência não se restringe apenas a agressão física, identificada por lesões corpóreas, mas também por danos sociais, morais e psicológicos, que provocam sofrimento desnecessário, lesão ou dor, violação dos direitos humanos e redução da qualidade de vida. Todos esses acontecimentos influem diretamente no medo da represália, da quebra dos laços familiares, da perda de autonomia e do local onde reside, fazendo a vítima não buscar ajuda nas medidas legais, no suporte social, com a ocorrência da violência, favorecendo a manutenção da agressão(SANCHES, LEBRÃO e DUARTE, 2008). O presente trabalho teve como finalidade promover uma reflexão acerca da questão do envelhecimento humano e as formas de violência contra idosos tecendo considerações a partir do Código Penal e do Estatuto do Idoso, bem como das principais doutrinas que dissertam sobre o objeto em questão.

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DO CRIME SILENCIOSO E DAS QUESTÕES ÉTICAS

2.1

Panorama da violência contra a pessoa idosa

A velhice é uma realidade fática e de múltiplas faces, nas quais envolve aspectos biológicos, psicológicos, econômicos, sociais, culturais e existenciais. Para um grande número de brasileiros, envelhecer representa perdas, como por exemplo, da juventude, da vitalidade que outrora teve; Sem falar nas perdas mais palpáveis, como a perda do trabalho, dos amigos e parentes, da saúde, da autonomia, da segurança. Quando ocorre a preponderância da estigmatização de uma pessoa idosa, terminamos por posicioná-la à margem da sociedade e da cultura, desrespeitando os princípios basilares da igualdade, do respeito e da dignidade da pessoa humana, contribuindo para uma diminuição na valoração do idoso. Portanto, esse desrespeito, em virtude da diminuição da valoração da pessoa idosa no âmbito social, contribui para aviolência intrafamiliar, ou seja, no âmbito residencial, que é um fato que se agrava nos dias atuais. Neste sentido, o envelhecimento da população requer intervenções eficazes no âmbito das políticas sociais e no âmbito jurídico, com o intuito de

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que contemple as novas demandas e necessidades dos idosos de hoje e dos que o serão amanhã. São identificados sete tipos de maus-tratos contra a pessoa idosa, a partir de um consenso internacional envolvendo a OMS e a Rede Internacional de Prevenção contra Maus Tratos em Idosos: os maus-tratos físicos, os maus-tratos psicológicos, a negligência, a autonegligência, o abandono, o abuso financeiro e o abuso sexual (WHO, 2002). Desse modo, percebe-se que a violência não se restringe apenas a agressão física, identificada por lesões corpóreas, mas também por danos sociais, morais e psicológicos, que provocam sofrimento desnecessário, lesão ou dor, violação dos direitos humanos e redução da qualidade de vida. Todos esses acontecimentos influem diretamente no medo da represália, da quebra dos laços familiares, da perda de autonomia e do local onde reside, fazendo a vítima não buscar ajuda nas medidas legais, no suporte social, com a ocorrência da violência, favorecendo a manutenção da agressão. Percebe-se que as agressões contra a pessoa idosa se contextualizam através de múltiplos aspectos que se classificam em violência social e familiar, sendo essa última, uma das maiores agravantes sob o ponto de vista de alguns pesquisadores. Posto que a violência doméstica é praticada no meio familiar, em regra, por parentes, curadores ou por cuidadores do idoso, enquanto que a violência social é identificada pelas ações de discriminações e preconceitos por parte da sociedade ou de instituições privadas ou públicas.

"As relações de troca e a ajuda mútua entre pais e filhos são o principal fator que tem assegurado, ao longo da história, a sobrevivência nas idades mais avançadas. Nesse último século, no entanto, as funções familiares nos países mais desenvolvidos foram sendo gradativamente substituídas pelo setor público, reduzindo o papel central da família como suporte básico aos idosos. Esse não é o caso, porém, da maioria dos países menos desenvolvidos onde, devido às deficiências do setor público, particularmente nas áreas de Saúde Publica e Seguridade Social, a família (em especial os filhos adultos) continua representando fonte primordial de assistência para parcela significativa da população idosa." (SAAD, 2004).

De um modo geral, os abusos familiares contra o idoso são mais preocupantes, tendo em vista que é na família que a pessoa idosa encontra laços fraternais, o seu habitat, a sua história, uma segurança como forma de proteção humana. O idoso se sente protegido por permanecer sobre a companhia daqueles parentes que ele ajudou a evoluir sua geração, são rostos conhecidos que representam a continuidade de sua existência. Vale salientar, conforme a Carta Magna, que a família é a base da sociedade, o que implica que se existe violência social é porque já se presume existir a violência no âmbito 364


doméstico, no cerne do habitat do idoso, e nesse sentido, afirma MINAYO (2005) que a natureza das violências que a população idosa sofre coincide com a violência social que a sociedade brasileira vivencia e produz nas suas relações e introjeta na sua cultura. Ainda, conforme as reflexões de SOUZA (2004) a violência doméstica ou intrafamiliar é aquela que toda e qualquer ação ou omissão que restringe a dignidade, o respeito, a liberdade, a integridade física e psicológica e o pleno desenvolvimento por parte de um membro familiar. E o sujeito ativo do crime é aquele que pratica essa agressão podendo ser um sujeito da família, como parente ou pessoa que exerce a função parental sem haver laços sanguíneos, tal como o cuidador de idosos. A violência intrafamiliar é um grave problema, posto que, ocorre atualmente, em vários países, sem distinções de classe, raças, religiões, etnias, culturas entre outros. Tornando-se um fenômeno complexo, por não existir um consenso entre estudiosos da área a respeito de como surgiu essa violência. Alguns autores apontam ser referente a questões socioeconômicas e culturais, e outros acreditam ser por conta da impaciência quanto à questão da saúde frágil dos idosos e outras. Contudo, sabe-se que em geral, os casos de violência ocorrem no ambiente doméstico, entretanto, encontram-se ocorrências em Instituições de Longa Permanência de Idosos (ILPI) e na vida social. Circunstâncias como essas podem ser desencadeadas devido a fatores estressantes, de exaustão física e emocional decorrentes dos cuidados prestados ao idoso com doenças crônicas e incapacidades funcionais, que terminam por sobrecarregar o familiar/cuidador. Outras razões são a dependência financeira dos pais idosos com seus filhos, ou viceversa, e o abuso de drogas, álcool somados a um ambiente familiar com pouca interação e afeição e com histórico de agressividade. Então, para tornar tal fenômeno mais visível e notificável, as equipes de saúde da Estratégia Saúde da Família (ESF) podem colaborar fortemente para esse fim, uma vez que a prática multiprofissional inserida no cotidiano, nos costumes e nos problemas das famílias atendidas facilita a identificação da violência ocorrida no ambiente intrafamiliar e a realização de processos educativos e de assistência ao idoso, a fim de atuar na prevenção e no tratamento dos males exercidos contra os idosos. Conforme afirma CASTRO (2013), a construção social referente à questão da violência na velhice revela uma problemática antiga que vem se tornando cada vez mais grave e comum, constituindo um problema social que atravessa gerações e que, portanto, exige atenção profissional das mais diferentes áreas. No entanto, observa-se que há uma grande 365


fragilidade na implantação das políticas públicas de proteção ao idoso, que preconizam a atenção integral e interdisciplinar entre as diferentes áreas de atuação, tais como: ação social, saúde, direitos humanos, educação e esportes. A articulação intersetorial com as mais diversas áreas para atenção ao idoso é uma ação preconizada pela Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI) e também por autores que discutem a atenção às pessoas em situação de violência. Seguindo esse prisma de abordagem, é importante também destacar a necessidade de políticas públicas eficazes para a prevenção e a assistência à vítima de violência. Dentre os documentos legais relacionados à temática, destacam-se: a Lei 8.842/94 regulamentada pelo Decreto 1.948/96 que cria a Política Nacional do Idoso (PNI) e pelo Decreto 4.227 de 13 de maio de 2002 que cria o Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos, a Lei 10.741/03 que cria o Estatuto do Idoso e a Portaria 2.528/06 que aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI). Assim, pode-se observar que embora essa questão esteja bem fundamentada, há uma grande disparidade entre a teoria e a prática observada no cotidiano. Por isso, é necessário investigar e analisar os entraves à aplicabilidade das ações de proteção ao idoso, visando à dissolução desses problemas e, consequentemente, à maior eficácia das políticas públicas existentes. Posto que, o crime de maus-tratos contra a pessoa idosa representa uma grave violação de seus direitos como cidadãos, demonstrando um retrocesso da evolução jurídico-social no que concerne às afirmações dos direitos humanos, posto que, as mudanças ocorrem constantemente no Brasil e no mundo. Apontando a violência doméstica para o rol das que mais contrariam tais princípios humanísticos, os quais resguardam e tutelam o idoso.

2.2

Leis de proteção ao idoso e a realidade de sua aplicabilidade Segundo a Declaração dos Direitos Humanos (ONU, 1948) ―Todas as pessoas nascem

livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade‖. Nos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, encontra-se o repúdio a toda e qualquer forma de exploração, desigualdade e discriminação, seja de sexo, de idade, de raça, de nacionalidade, de religião, de opinião política, de origem social etc. Apontando, de forma clara e incisiva, todos os direitos inerentes à pessoa.

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No Brasil, o Estatuto do Idoso assegura direitos para as pessoas com idade igual ou acima de 60 anos. Determina que os idosos gozem de todos os direitos inerentes ao ser humano e garante proteção, facilidades e privilégios condizentes com a idade, como por exemplo, prioridade no atendimento e facilidade de acesso aos meios e recursos necessários à existência. Segundo o artigo 3º3 do dispositivo: ―É obrigação da família, da comunidade, da sociedade em geral e Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.‖ (BRASIL, 2004)

Nesta perspectiva, existe a previsão legal no Estatuto do Idoso do amparo da pessoa idosa pela família, pela sociedade e pelo Estado, assegurando-lhe a efetiva participação na comunidade e preservando sua dignidade, seu bem-estar e o direito à vida. Tal fato consiste na inclusão do idoso, processo este que resguardar o direito dele de pertencer e participar das atividades sociais, no que concerne em falar e ser ouvido. Significa poder usufruir dos bens socialmente produzidos, sejam eles materiais (moradia, comida, remédios etc.) ou culturais (educação e lazer). Ser cidadão supõe participar ativamente da sociedade. E como coibição da violação deste dispositivo, segundo o artigo 6º, do mesmo Estatuto afirma que: ―Todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação a esta Lei que tenha testemunhado ou que tenha conhecimento.‖ Posto que, as restrições socialmente impostas aos idosos podem acarretar a perda de autonomia para decidir e escolher o que é melhor para si, estigmatizando e desvalorizando o idoso, condenando-o ao abandono e ao isolamento para exercer a cidadania o indivíduo precisa de autonomia e independência. A autonomia consiste na capacidade de decidir, ao passo que e a independência é a capacidade de realizar algo por seus próprios meios, sendo estes os princípios que muitos idosos precisam conquistar novamente. São considerados indicadores de saúde e também identificam idosos com envelhecimento bem ou mal sucedido. Assim, a sociedade deve ajudar a promover e preservar a autonomia e a independência dos idosos e deixar de considerá-los cidadãos de ―segunda classe‖. 3

BRASIL. Estatuto do idoso: lei federal nº 10.741, de 01 de outubro de 2003. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004.

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Contudo, mesmo diante da incapacidade do idoso para exercer atos de cidadania, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), assim como a Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988), tem como o ideal maior a formação e manutenção de uma sociedade justa e fraterna, pluralista e sem preconceitos de qualquer espécie; de uma sociedade fundada na harmonia social e no compromisso com a solução pacífica de problemas sociais, conflitos e contradições. A Constituição Federal (BRASIL, 1988) reafirma, em seu artigo 1°, que a República Brasileira tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. O que deveria obstar tais tipos de violência, sob a preponderância de atos ensejadores de coibir os agressores. A carta magna vai além, em seu artigo 304, ela estabelece como objetivos: "Construir uma sociedade livre, justa e solidária: Garantir o desenvolvimento nacional; Erradicar a pobreza e a marginalização; Reduzir as desigualdades sociais e regionais; Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.‖.

Contudo, fica a questão, de que será que tais dispositivos constitucionais são respeitados, e quais os mecanismos jurídicos e éticos que deveriam ser adotados para uma efetiva coibição de agressão contra a pessoa idosa, conforme explana a doutrinadora Flavia Piovesan ―Que possamos celebrar (...) o início de uma cultura de respeito à cidadania, capaz de implementar, de forma plena e ampla, a absoluta prevalência à dignidade humana.‖ Ao analisarmos este fato, constatamos um grande hiato que separa a realidade dos princípios constitucionais e da Declaração Universal dos Direitos Humanos é, ainda, bastante grande, e dessa maneira podemos concluir que tais dispositivos jurídicos encontram-se no plano do ideal, do dever ser. A realidade da sociedade brasileira tem como principal reflexo a desigualdade, na qual os direitos valem para alguns, mas não para a maior parte dos brasileiros. Além dos milhões de brasileiros que vivem abaixo da chamada ―linha de pobreza‖, outros tantos milhões experimentam as mais adversas condições de trabalho, saúde, alimentação, educação, transporte, habitação etc. A Organização das Nações Unidas (ONU) mostra ainda, que o Brasil aparece com o terceiro pior índice de desigualdade no mundo e, em se tratando da diferença e distanciamento

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BRASIL. Constituição Federal. 1988

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entre ricos e pobres, fica atrás no ranking apenas de países muito menores e menos ricos, como Haiti, Madagascar, Camarões, Tailândia e África do Sul (ONU, 2011). E tem como as principais causas de tanta desproporcionalidade social, é a falta de acesso à educação de qualidade, de uma política fiscal injusta, de baixos salários e da dificuldade da população em desfrutar de serviços básicos oferecidos pelo Estado, como saúde, transporte público e saneamento básico (ONU, 2011). Mesmo com a Constituição Federal e de diversos códigos e estatutos, os quais asseguram o acesso à educação, moradia, saúde, segurança pública, além de autonomias econômicas e ideológicas, a realidade que se vê ainda é distante do que se vislumbra no direito do cidadão brasileiro quando se trata à erradicação da desigualdade social neste país, em constante crescimento econômico e político.

2.3

Aspectos filosóficos da origem da violência contra o idoso

Neste contexto, entende-se que a vida contemporânea se caracteriza pelo progresso científico e tecnológico, através de novos meios de comunicação, dos avanços dos meios de transporte, novas formas de arquitetura, assim como em outros campos do conhecimento. Esses avanços desempenharam um papel central no processo de mudanças no contexto político-econômico, e, sobretudo, no âmbito cultural. Evidenciam-se então, essas mudanças sociais através da multiplicidade de novos estilos de vida e de socialização, o que explicita um novo olhar para a realidade atual das sociedades, a diversidade em sua essência torna-se uma característica da sociedade brasileira. É, traduzida em diferenças de raças, de culturas, de classe, de sexo ou de gênero, de religião, de idade, dentre outras. Nesta perspectiva, viver em sociedade é conviver com situações que propõem ao homem oportunidades de lidar com questões éticas, morais e religiosas as quais servem de base para a orientação normativa do individuo no seio social. Observa-se que é na medida em que majora a consciência social dos direitos individuais, sociais, coletivos e políticos, ressaltam-se inúmeras formas de tentar introduzir o exercício da cidadania, conscientizando e problematizando o problema da violência contra os idosos. Por isso, afirma LOPES (2005), a luta pelo direito de reconhecimento é uma disputa pelo reconhecimento da dignidade da pessoa aviltada ou ofendida pela maioria; contudo, não é uma luta pelo convencimento da maioria quanto ao valor de uma minoria, mas uma luta pelo 369


pluralismo. Não se trata de dar a cada ser humano que pertence àquele grupo estigmatizado a oportunidade de simplesmente se desfazer do estigma, e sim de desestigmatizar todo o grupo, demonstrando que o estigma está fundado em preconceitos e discriminações inaceitáveis na sociedade. Logo, permanece como ideal a ser brevemente atingido o princípio da igualdade, isto porque ainda existem enormes desigualdades, preconceitos e discriminações. Seja no âmbito das diferenças de sexo, orientação sexual, cor da pele e quanto à idade, o que atinge neste caso, a pessoa idosa. O desrespeito, por vezes, nasce das diferenças, e essas dessemelhanças, caracterizamse por ser a essência de uma sociedade em virtude da própria dialética social. Contudo, o direito à diferença pode ser um fator de relevância no que condiz aos direitos inerentes ao ser humano, a sociedade utiliza das diferenças para usurpar direitos em virtude da intolerância. Portanto, o reconhecimento das diferenças poderia ser o remédio para fazer valer o direito da diferença, em que neutralizaria a valoração negativa identitária do indivíduo (LOPES, 2005). O sociólogo HONNETH (2003) traça uma estrutura das relações sociais de reconhecimento, em que o mesmo contêm três formas de relações: as primárias (guiadas pelo amor), as jurídicas (pautadas pelo direito) e na comunidade de valores (firmadas na solidariedade). A primeira relação tem abarca com a autoconfiança do sujeito, por se relacionar com questões de natureza emotiva e de dedicação com outrem, a segunda envolve autorrespeito, pois se trata de questões de respeito mútuo e às leis humanas, assim como envolve a cognição, e por fim a terceira relação que tem a ver com a autoestima, por tratar-se de estima social. O autor associa três formas de desrespeito: 1) Maus tratos e violação, as quais afetam a integridade física e psíquica dos sujeitos, portanto, a autoconfiança; 2) Privação de direitos e exclusão, em que promove a negação de direitos, e implica na destruição da possibilidade do autorrespeito, ao passo que impõe ao sujeito o sentimento de subalternidade, 3) Degradação e ofensa, na qual abarca a referência negativa ao valor de certos indivíduos e grupos, o que causa dano à autoestima. Essas formas de desrespeito e degradação impedem a possibilidade de autorrealização realização do indivíduo em sua totalidade. A subalternização e a humilhação ameaçam as identidades, e desta forma, tornam-se as molas propulsoras para a formação das lutas pelo reconhecimento, o que é importante para o progresso moral do sujeito e da sociedade em geral, em virtude da concepção ensejada por HONNETH (2003) de boa vida, na qual é a

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eticidade formal fundada no amor, no direito e na solidariedade, que apenas é construída através da interação social. A formação da luta pelo reconhecimento, ou seja, o conflito é inerente tanto à formação da intersubjetividade como aos próprios sujeitos. E, versa sobre uma luta de aspecto moral (impulsos morais, e não mais de autoconservação), visto que a organização da sociedade é pautada por obrigações intersubjetivas, ou seja, a reciprocidade do reconhecimento identitário gera ―uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e político das instituições garantidoras de liberdade.‖ (HONNETH, 2003). Na analítica do poder em FOUCAULT (1979) não há apenas o predomínio dos impulsos morais, mas sim a racionalidade das relações de poder, logo ―o poder é guerra, guerra prolongada por outros meios‖. Sendo assim, o poder é luta, disputa, relações de forças estratégia, em que o objetivo é obter vantagens e benefícios. E luta há que se articular em extensa rede de poderes que atravessam a sociedade. Sendo assim, Foucault entende que a base das relações de poder seria o confronto através de lutas das forças sociais em uma dialética constante. FRASER (2003) apresenta uma nova conotação para a filosofia política do reconhecimento, ao fornecer uma fórmula sucinta quando se referiu a transição do pensamento político de redistribuição para o reconhecimento da dignidade pessoal de todos os indivíduos. Segundo a mesma autora, reconhecimento de minorias não é uma questão ética, mas sim moral, logo não implica à busca pessoal pela autorrealização, mas as leis humanas, as quais organizam as instituições públicas; Então, o desenho institucional só será justo na medida em que todos os segmentos da sociedade, sejam eles de grupos majoritários ou de grupos minoritários, tenham a possibilidade de participar de maneira igualitária na formulação dessas regras. Conclui-se, portanto a ligação de paridade participativa e a produção de justiça social. FRASER (2007) explicita que seu modelo moral de reconhecimento não invalida as reivindicações de justiça econômica. Assim, estabelece que para que seja possível criar um regime de paridade participativa é necessário tanto que certas condições objetivas, quanto certas condições intersubjetivas, sejam satisfeitas. As condições objetivas são aquelas que excluem níveis de dependência econômica e desigualdade que impeçam a igualdade de participação. Ao passo que as subjetivas exigem o mútuo respeito e a garanta a oportunidade igual para que cada qual alcance a estima social.

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Torna-se oportuno ressaltar que ambas são necessárias para a paridade de participação, pois a satisfação de apenas uma delas – reflete a autora que, não é suficiente. Desse modo, a sociedade e as leis propiciam a oportunidade para que os sujeitos estejam em um processo contínuo de autorreconhecimento, tanto no âmbito das capacidades como nas potencialidades, neste sentido é previsível o surgimento de constantes lutas sociais de reconhecimento dando início à nova fase de reconhecimento social o que possibilita ao indivíduo a apreensão de novas dimensões de sua própria identidade. E o reconhecimento social do idoso se reflete através do desaparecimento do preconceito e discriminação, logo, da discriminação, desenvolvendo ações contrárias à segregação. O que já enseja os preceitos constitucionais e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e este fato não podemos atribuir apenas ao Estado a responsabilidade pelas discriminações e desigualdades. Se ao Estado cabe parte da responsabilidade, à Sociedade Civil – com suas diferentes e diversas formas de organização e mobilização – cabe, igualmente, o papel de transformar em realidade o que, por enquanto, são desejos, ideais e aspirações.

2.4

Conflitos ético-sociais acerca da velhice e suas consequências

A questão das violências sofridas pelas pessoas idosas é uma preocupação atual, pois a cada dia, nasce uma nova vítima de todos os tipos de violências possíveis, e é nesta ótica, o idoso sendo este mais vulnerável e, portanto mais frágil, acaba por se tornar vítima de um crime silencioso, tendo em vista os diversos abusos psicológicos e físicos. Para MINAYO (2005), a violência acometida aos idosos trata-se de um fenômeno de notificações recente no mundo e no Brasil, posto que a vitimização desse grupo é decorrente de um problema sócio cultural de raízes profundas e antigas, e suas manifestações são facilmente reconhecidas desde as mais antigas estatísticas elaboradas. Ressalta, ainda a autora, que no momento histórico, a quantidade crescente de idosos oferece um clima de publicização e de politização das informações sobre maus-tratos de que são vítimas tornando este problema uma prioridade na pauta de questões sociais, o que comprova este fato foi que em 1975 os abusos de idosos foram publicados em revistas científicas na Inglaterra, e tornou-se visível no Brasil na década de 90, marcando um avanço no âmbito da consciência social do País. Trata-se de um crime silencioso, posto que, seus ofendidos dependem genuinamente dos ―cuidados‖ de seu agressor, e nesta perspectiva, na eminência de uma relação de 372


dependência, acabam por se sentir intimidados, ou envergonhados de denunciá-los acabando por silenciar diante da justiça. O silêncio perante as autoridades policiais, e conseqüentemente, diante da justiça torna-se uma situação que agrava a identificação de tais crimes, posto que, segundo policiais especializados na proteção da pessoa idosa, em situação de diligência, afirmam que na maioria das denúncias anônimas quando investigados in loco, nada restava constatado, ficando apenas uma denúncia anônima infrutífera. Resta patente que diante de crimes com tanta peculiaridade, deve-se ter uma nova abordagem investigativa, pois esta categoria de crimes representa um retrocesso da evolução social quanto às afirmações dos direitos humanos, pois as mudanças ocorrem constantemente no país e no mundo, além de grave desrespeito dos direitos do homem, demonstrando assim. Nesta perspectiva, a violência doméstica é o exemplo mais significativo de violação dos princípios protetivos da pessoa idosa prevista no ordenamento jurídico internacional e brasileiro.

Ao passo que, no que concerne à área da saúde, estes crimes se denominam de violências que se categorizam em violência física, na qual o uso da força física para ferir, provocar dor, incapacidade ou morte ou para compelir o idoso a fazer o que não deseja; Do mesmo modo ocorre a violência psicológica, onde as agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, humilhar, restringir a liberdade ou isolar o idoso do convívio social; A violência sexual, nos quais os atos ou jogos sexuais de caráter homo ou heterorrelacional que utilizam pessoas idosas visando obter excitação, relação sexual ou práticas eróticas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças; Nesse aspecto, Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 1990) define violência como sendo a utilização da força física ou da coação psíquica e moral por um indivíduo ou grupo, gerando destruição, dano, limitação ou negação de qualquer dos direitos estabelecidos das pessoas ou dos grupos vitimados. Contudo uma das principais formas de violência contra a pessoa idosa é a violência financeira e econômica, onde a exploração imprópria, ilegal ou não, consentida dos bens financeiros e patrimoniais do idoso; A negligência: recusa ou omissão de cuidados devidos ao idoso, por parte de responsáveis familiares ou institucionais; Assim como o Abandono, no qual a ausência ou deserção dos responsáveis governamentais, institucionais ou familiares de prestarem socorro a um idoso que necessite de proteção.

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Sem olvidar que, em decorrência de todas as formas de violências destacadas acima, pode ocorrer a autonegligência, em que a conduta da pessoa idosa ameaça sua própria saúde ou segurança por meio da recusa de prover a si mesmo de cuidados necessários. Segundo MINAYO (2003), a violência familiar contra idosos é um problema de caráter nacional e internacional, pois, pesquisas feitas em várias partes do mundo revelam que cerca de 2/3 dos agressores são filhos e cônjuges. E que as agressões mais relevantes são exteriorizadas através dos abusos e negligências, nas quais se perpetuam por choques de gerações, por problemas de espaço físico e por dificuldade financeiras que costumam somar a um imaginário social que estigmatiza a velhice como uma ―decadência‖ e os idosos como o ―passado‖ e ―descartáveis‖. No Brasil, está-se convivendo com a primeira geração a ter seus direitos reconhecidos pela Política Nacional do Idoso, instituída pela Lei n° 8.842, de 1994. Mas só com a aprovação do Estatuto do Idoso, em 2003, passou a ocorrer maior conscientização por parte da sociedade quanto à observação desse específico amparo legal. Com Estatuto, o Ministério Público Estadual passou a atuar na defesa dos direitos dos idosos relacionado com o direito à vida, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à saúde, a alimentos, educação, cultura, esporte, lazer, profissionalização, ao trabalho, à assistência social, à habitação, ao transporte, ou assegurados ao idoso, promovendo as medidas judiciais ou extrajudiciais cabíveis. Existe previsão normativa na Constituição Federal5, em seu artigo 144 no qual aduziu: ―a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio‖. Corroborando com a Carta Magna, o Estatuto do Idoso em seu Art. 4º, ensina que ―nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão‖.

Ainda no mesmo instituto jurídico, os parágrafos §§1º e 2º, mostram que ―é dever de todos prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso‖, assim como ―as obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção outras decorrentes dos princípios por ela adotados‖. São os responsáveis por esta situação, o Estado, por falta de uma postura mais próxima e acessível ao idoso, assim como a sociedade adulta e jovem, que em regra, discriminam e asilam os idosos, dentro de suas próprias residências ou bem afora dela. Outros abandonam

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BRASIL. Constituição Federal. 1988.

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seus entes velhos em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), e jamais voltam para saber de suas vidas. Assim como, segundo o texto de uma Ação Civil Pública, a qual trabalha em Defesa das Pessoas Portadoras de Deficiência e Idosos, afirmou que ―é prioritário a preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas, bem como na destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso‖6. Por se tratar de um crime silencioso, e corroborando com um cenário de grande crescimento da população idosa, deve-se buscar um panorama dos institutos que protegem a dignidade da pessoa idosa agregado a efetiva postura positiva do Estado. Os crimes previstos no Código Penal Brasileiro são os crimes sexuais, contra a pessoa e os contra o patrimônio. Condutas tipificadas por abusos sexuais, apropriação indébita, abandono de incapaz, dentre outros. Torna-se importante discorrer acerca da ética e da aplicabilidade da lei, diante de casos de suspeição de violência contra a pessoa idosa, existem denúncias que quando investigadas, nada fica comprovado, tornando as diligências infrutíferas diante da não constatação de crime pelos policiais. A ausência de sinais e sintomas em decorrência deste crime específico, não assegura a inexistência de violência contra idosos, mas existem alguns indicadores que servem de guia quando se suspeita de uma dessas situações. Assim, de acordo com GUCCIONE (2000): ―(…) os indicadores físicos mais comuns nesses casos são perda de peso, desnutrição ou desidratação sem uma patologia de base que justifique marcas, hematomas, queimaduras, lacerações, úlcera de pressão, ferimentos; palidez, face abatida, olheiras, evidência de descuido e má higiene da pele, vestuário inadequado, sujo, inapropriado para a estação, ausência ou estado ruim de conservação de próteses; evidência de administração incorreta de medicamentos; evidência de traumas ou relatos de acidentes inexplicáveis.‖

Continua o autor a relatar que, após ter sofrido episódios de violência, o idoso pode demonstrar passividade, resignação, tristeza, desesperança, falta de defesa, ansiedade, agitação, medo, exacerbação de quadro depressivo, relatos contraditórios, receio de falar livremente, relutância em manter qualquer tipo de contato verbal ou físico com o cuidador, busca ou mudança frequente de profissionais e/ou centros de atenção médica. GUCCIONE (2000) ainda afirma que:

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AÇÃO CIVIL PÚBLICA impetrada em 2008 pela 30ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE NATAL.

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―Existem ainda os indicadores sexuais, que se constituem em conduta sexual incompatível com a personalidade prévia, comportamento diferente e inapropriado diante da presença de certas pessoas (comportamento exibicionista, comentários fora de lugar), conduta agressiva, isolamento, autoagressão, presença de sinais e sintomas, tais como infecções recorrentes, dor, hematomas, sangramento na região anal e genital, dificuldade para a marcha e dor abdominal sem causa aparente, vestuário íntimo rasgado ou manchado de sangue.‖

Entretanto, torna-se importante dissertar acerca das questões da ética, posto que, supostamente é pela ética que se acredita na não existência da violência contra o idoso, por se tratar de parentes os agentes ativos do crime. A ética aristotélica foi concebida de modo sistemático, no Livro I da obra Ética a Nicômacoo filósofo grego analisa o agir humano, na qual constata que toda prática é realizada tendo em vista um fim. Logo, a finalidade da medicina é a saúde, da economia é a riqueza, é pacífico que os fins seriam os bens. Contudo, estes bens não possuem fins em si mesmos, isto é, não são bens autossuficientes, mas intermediários para a Felicidade, este sim entendido como o sumo bem. Para Aristóteles os indivíduos divergem sobre aquilo que seria a Felicidade, pois se para alguns ela está ligada à riqueza, para outros está à honra e assim por diante. Entretanto, não existem divergências quanto ao fato de ela ser o bem supremo. A ética aristotélica converge para uma metafísica, uma vez que pressupõe a Felicidade, como bem absoluto. O conceito de Eudaimonia várias vezes na obra surge em conotação divina, revelando que o indivíduo que vive de modo habitualconforme a prática das virtudes aproxima-se da melhor condição humana, da perfeição. A virtude, considerado o bem supremo, em sentido helênico são todos termos que certamente retomam a concepção de Ser, que na obra Metafísica Aristóteles articulará no conceito de Primeiro Princípio, neste óbice, o homem virtuoso possuía a felicidade, e, portanto da perfeição e da sua condição divina. Este projeto elevado de ética, que fielmente a longa tradição grega da Paideia, persistirá durante vários séculos, influenciando a ética medieval e moderna. O ser humano é visto filosoficamente em uma de suas características essenciais justamente a tendência a viver em sociedade, àquilo que Aristóteles denominou animal político. Para o pensamento grego em geral, não somente Aristóteles, o homem só possui sentido quando cidadão, isto é, quando imerso na polis. Assim, para HEGEL (2010) ―A eticidade é o plano objetivo, no qual onde as leis derivadas dos costumes reconhecidos em uma comunidade são positivadas e vinculam a ação de todos os indivíduos, portanto, é de caráter objetiva, possuindo o poder de coerção.‖. A 376


grande contribuição hegeliana a esta problemática é que se trata apenas de uma aparente separação, apenas conceitual. A objetividade da eticidade não é exterior e opressora contra os sujeitos, pois os costumes apenas se tornam leis quando devidamente reconhecidos socialmente pelo povo. Logo, os costumes são as práticas que nascem da subjetividade dos indivíduos, mas que se expandem em uma dimensão intersubjetiva por meio do reconhecimento ético, em uma fenomenologia descrita habilmente por Hegel na obra Fenomenologia do Espírito. Neste contesto, assim como o estigma da velhice, o costume está sempre condicionado a uma prática coletiva, logo, para existir, necessita que seja um comportamento praticado habitualmente por muitas pessoas em uma comunidade. O movimento nasce da interioridade de um sujeito, que é reconhecido por outro, e nesse processo toma forma histórica e por fim consolida-se juridicamente na forma de lei. Portanto, a compreensão hegeliana é bastante existencial, tratando a ética com fundamento no indivíduo em harmonia com a comunidade, e materializa-se historicamente através dos costumes, práticas sociais coletivas que são institucionalizados como leis. Na concepção de REALE(2002): ―O direito é uma experiência cultural, um modo existencial utilizado pelo homem para transformar a Natureza em mundo humano, em Cultura. A norma jurídica é essencialmente cultural. Uma norma sempre decorre de fatos concretos que a justificam.‖

Para uma coletividade entender que estes fatos são tão essenciais a ponto de precisarem ser regulamentados é porque eles representam algum valor, isto é, algum bem que deve ser protegido juridicamente. Toda norma jurídica possui em seu conteúdo um valor. E todos os valores decorrem, em última instância, de um valor-fonte: a dignidade da pessoa humana, afirmou REALE (2002) nas obras Direito como Experiência e Experiência e Cultura. É nesta perspectiva que continua o autor defendendo a sua concepção do Direito, no qual se trata de uma construção com bases tanto transcendentais como empíricas. Demonstrase, então, como age a dinâmica da ética, que acaba por abarcar e substanciar a dinâmica jurídica. Logo, compreende-se que a ética estabelece critérios para o agir individual em consonância com o bem comum. Sendo, somente possível no plano existencial, tendo em vista as características históricas de tempo e espaço. Ademais, esta se vincula originariamente

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à ideia de bem, mesmo que o seu conceito não seja uno, ainda pode ser muito bem sintetizada na clássica definição aristotélica da Felicidade, em grego, é entendida por Eudaimonia. Portanto, a ética busca delimitar critérios que possibilitam ao homem viver bem e aproximar-se da felicidade, e este caminho passa pela dimensão intersubjetiva, momento em que se constituem os costumes que por sua vez reproduzirão a vontade coletiva de determinado grupo. E é desta forma que em um mundo moderno, toda a dinâmica ética alcança uma dimensão global, posto que, existe uma multiplicidade de costumes e concepções éticas, que ultrapassam fronteiras e constituem-se verdadeiras práticas sociais globais. Neste sentido, o critério ético torna-se importante para a implementação e aplicação de um direito transnacional, que é a questão da Declaração dos Direitos do Homem (ONU, 1948), no qual tutela a questão da dignidade da pessoa humana, o que ajuda na (re)formulação do sistema jurídico local, no qual refletiria valores e costumes globais na aplicação e efetivação da norma jurídica.

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CONCLUSÃO

Finalmente, a partir de uma análise conjunta da cláusula pétrea que trata dos direitos e garantias individuais, agregada com o art. 230, CF/88 no qual considera que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida;A violência contra o idoso é prova da não efetivação deste preceito constitucional, visto que o abandono, a violência física e financeira não contraria apenas estes institutos constitucionais, mas também o Estatuto do Idoso. A violação destes direitos ocorre não só por ação de quem ampara os idosos, mas também pela omissão do Estado, no qual deixa de fiscalizar e punir tais agressores. A questão da fiscalização se torna um ponto delicado, posto que se nota que não há uma preparação especializada das policias, sejam civis ou militares, para que estabeleçam uma efetiva constatação de tal crime. Isso por se tratar de crimes que ocorrem, geralmente, no âmbito intrafamiliar, nos quais as vítimas silenciam pela tradição de que seus filhos lhes resguardariam uma boa velhice. Nesta perspectiva, acredita-se que a falta de efetividade da aplicação das normas jurídicas ocorre também na esfera da concepção do que é ética, pois nota-se que a ética está ligada também com questões tradicionalistas da sociedade, o que não deveria acontecer, pois o correto seria ser definida pelos valores reconhecidos e defendidos mundialmente 378


REFERENCIAS

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REFLEXÕES JURÍDICAS SOBRE O TESTAMENTO VITAL Cinthia Caroline Luiz do Nascimento1 Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio da dignidade humana como pressuposto ao direito a morte digna. 3 Definição de testamento vital. 4 Breve histórico sobre testamento vital. 5 testamento vital e sua expansão no mundo. 5.1 Estados Unidos. 5.2 Espanha. 5.3 Alemanha. 5.4 Portugal. 5.5 Argentina. 6 Do cabimento do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro. 7 A Resolução 1.995/2012 do conselho federal de medicina. 8 Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO A morte é talvez uma das realidades mais difíceis de suportar, apesar de fazer parte do

ciclo natural da vida de todos os seresexistentes. O fato é que algumas pessoas atravessam processos extremamente dolorosos até passar por ela. Nessaera de avanços tecnológicos, especialmente na área da medicina, são criados com frequência medicamentos e aparelhosamplamente eficazes e capazes de prolongar a vida, contudo, em se tratando de paciente terminal estes tipos de terapêuticas acabam por prolongar tambémoseusofrimento. É visto atualmente que o uso de algumas terapias e métodos medicinais está alargando a tortura desses enfermos, uma vez que estes assim são mantidos devido ao uso dos aparelhos que os preservam ―vivos‖, dessa maneira, ao tentar salvar acabam por retirar a dignidade desses indivíduos que estão em estado deplorável de vida (SILVA e GOMES, 2012). O princípio da autonomia humana tem ganhado força nosordenamentosjurídicos,ese consubstancia por meio do consentimento informado e expresso das escolhas do paciente, por exemplo. Nos últimos anos, a observação a este princípio trouxe para o paciente odireitodeserinformado, escolher qual tratamento deseja receber e atémesmopermitir ou não procedimentos ou terapiasprocrastinatórias, propostas pelos médicos(CAMPOS et al, 2012). A proximidade com a morte é considerada, sem dúvida, um dos momentos mais difíceis para a maioria das pessoas, por isso falar nesse tema sempre geracertoembaraço, uma vez que as opiniões são divididas entre grupos que são a favor e outros que são contra as práticas de tratamentos que prolonguem a vida de doentes com quadro irreversível. Estaanálise trazconflitosentrevários princípios e garantias constitucionais como o da liberdade de autodeterminação e o do direito à vida, defendendo a ideia de que este é um bem indisponível (PICCINI et al, 2012), assim como o da dignidade da pessoa humana e até a proibição de tratamento desumano (DADALTO, 2013). 1

Graduada em Direito pelo UNIPÊ.

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Com recursos terapêuticos cada vez mais avançados o tempo de vida de pessoas em fase terminal tem crescido consideravelmente, entretanto pensar em prolongamento da vida sem pensar na possibilidade de tê-la com qualidade é no mínimo uma atitude insensata.Tal afirmação gera um questionamento, será que agindo dessa forma os pacientes estarão sendo submetidos um tipo de tortura consentida? (DADALTO, 2013) Em assim sendo, foi criado um meio para tentar, solucionar ou amenizar, essas questões. Hoje existe um documento chamado de testamento vital que na visão de Furtado(2013) é um documento feito por pessoa, enquanto capaz, onde irá determinar como quer ser tratado em caso de tornar-se incapaz de declarar sua vontade. Conforme Nunes (2012), o testamento vital tem o ―objetivo de permitir a uma pessoa, devidamente esclarecida, recusar determinado tipo de tratamentos que no seu quadro de valores são claramente inaceitáveis”. Permitir que uma pessoa escolha como queira passar seus últimos dias é uma atitude de respeito à sua vida, ao corpo e ao desenvolvimento da personalidade, um direito que a todos é garantido. 2

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANACOMO PRESSUPOSTO AO

DIREITO A MORTE DIGNA

O direito à vida é o primeiro de todos os direitos garantido a qualquer pessoa. É obrigação do Estado defendê-la e garanti-la com dignidadeaos cidadãos, assim, a busca pelo direito a uma vida digna é o combustível que movimenta a humanidade e toda a máquina judiciária. O princípio da dignidade da pessoa humana está consubstanciado na Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 1º e se configura como um de seus fundamentos (CF/88). Entretanto, esse princípio não era conhecido nas primeiras civilizações. Por exemplo, para Aristóteles, o homem era um animal político, que pertencia ao Estado e se concretizava por meio do exercício da cidadania. Naquela época, não se tinha conhecimento aprofundado sobre a personalidade, tanto que é uma época ausente de vocábulo que a defina, posto que o termo ―persona‖ provém do latim. (SANTOS, 1998) A palavra dignidade também deriva do latim dignitas, e se traduz como sendo tudo o que é digno de respeito, estima. A definição da dignidade da pessoa humana para os Antigos (de 4.000 a.C. a 3.500 a.C.) era algo meritocrático, ou seja, referia-se ao dinheiro, título de nobreza, inteligência, entre outros. Para os gregos o que diferenciava os homens dos demais animais era a aptidão de raciocínio pela utilização de um dialeto próprio, por isso tinha-se a 382


exigência do respeito aos homens, devido tal capacidade (AGRA, 2008, p. 109). Com o passar dos anos foi-se observando que o homem é um ser que possui direitos específicos e que seus interesses individuais não podem ser confundidos com os interesses do Estado. Assim, houve uma transição do direito no âmbito estatal para o âmbito individual, com finalidade de harmonizar liberdade e autoridade. (REALE, Miguel - Questões de Direito Público, p. 4). Tal individualização dos direitos do homem veio com o Cristianismo, onde aqueleé tido como uma criação à imagem e semelhança de Deus, daí então a dignidade passou a ser vista como merecimento de cada pessoa independente de qualidades. Contudo, somente após a Segunda Guerra Mundial, que a dignidade passou a ser uma das maiores preocupações no Ocidente, tornando a fazer parte de vários documentos internacionais, Constituições, leis e jurisprudências. (BARROSO, 2012) Mas, para o direito qual o real significado da dignidade da pessoa humana? Na concepção de Agra (2008, p. 110):

A dignidade da pessoa humana representa um complexo de direitos que são inerentes à espécie humana, sem eles o homem se transformaria em coisa, res. São direitos como a vida, lazer, saúde, educação, trabalho e cultura que devem ser propiciados pelo Estado e, para isso, pagamos tamanha carga tributária. Esses direitos servem para densificar e fortalecer os direitos da pessoa humana, configurando-se como centro fundante da ordem jurídica.

Seguindo essa linha de pensamento, tem-se que a dignidade da pessoa humana é, atualmente, base para todos os ordenamentos jurídicos, onde nenhuma norma vindoura possa vir a ter o poder de por abaixo sua essência. Destarte, o homem é apontado como o centro de todo ordenamento jurídico, sendo ele a base para toda interpretação das leis. O respeito pela vontade de cada pessoafaz parte desse direito tão indisponível que é o direito à vida dignaehonraressa vontade é mais do queuma atitude de consideração a ela.Quando a vontade do indivíduo diz respeito aosseusúltimos momentos de vida também o princípio da dignidade da pessoa humana se faz presente. Não há nada mais humano do que deixar que a pessoa doente viva os dias finais à sua maneira. Desta forma, tem-se que o direito a uma morte digna é uma consequência da obediência a este princípio fundamental. Devido o grande avanço tecnológico na área da medicina, esta vem desafiando gradativamente a vida tentando prolongá-la com o uso de tratamentos muitas vezes inúteis, o que causa certo desconforto quanto à ética e a dignidade dos pacientes.(HENRINGER, 2012) É de grande valia bem escolher os meios terapêuticos num momento em que já não há possibilidade de cura, uma vez que pode acarretar na potencialização da agonia do paciente. A 383


importância em se ter zelo ao sofrimento humano no momento da morte é crucial, pois envolve o aspecto físico, social, cultural como também espiritual. Talvez seja essa a grande contenda enfrentada pelos profissionais dessa área ao se tentar obter um equilíbrio entre a ciência e a realidade humana ante a fragilidade do começo e término da vida. (PESSINI, 2006 – EM HENRINGER, 2012) O ato de morrer é uma realidade de todos, porém não se pode escolher quando, onde e como morrer. Desta forma não é fácil defender o direito a boa morte, quando esta não é bem aceita. Porém, a medicina avançada é capaz de tornar o processo de morrer em um momento mais longo e árduo, muitas vezes sem necessidade, indo contra as regras da natureza. É nesse momento que o paciente tem que ter autonomia de escolher seus tratamentos para que sua morte venha naturalmente, evitando sofrimento desnecessário. Portanto é imprescindível o direito a morte digna é pressuposto da dignidade da pessoa humana e assim como ela é um direito garantido a todos.(BARROSO, 2012) O testamento vital vem como um meio de por em prática essa autonomia da vontade, pois, é nele que a pessoa absolutamente capaz poderá deixar registrada a sua vontade quanto a tratamentos que queira ou não receber caso fique inconsciente e incapaz de tomar decisões. E é sobre esta temática que este trabalho passará a versar.

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DEFINIÇÃO DE TESTAMENTO VITAL

Tempos atrás, a decisão sobre como um paciente em fase de terminalidade devia ser tratado cabia exclusivamente ao médico. Antes se tinha a figura do médico de família, que em sua maioria eram pessoas ligadas aos familiares do paciente, assim, era costume associar ao médico a tarefa de decidir o que era melhor para ele e com isso acabava tendo certa autoridade para impor sua decisão (SILVA E GOMES, 2012). Com o passar dos anos houveuma expansão de avanços tecnológicos e o exaustivo uso dessas tecnologias rebuscadas contribuiu drasticamente para a desumanização da prestação de serviços de saúde. Isso está bem demonstrado através do uso desconforme de tratamentos sem fundamentos em doentes terminais, o que se conhece por distanásia(NUNES, 2012). Entretanto,a vida como um todo passou a ser mais respeitada com o advento do princípio da dignidade da pessoa humana, exposto na Constituição Federalde 1988, o que acarretou o desejo de se levar em consideração a opinião, o desejo do indivíduo doente. Como dito anteriormente, os avanços na medicina trouxeram alguns benefícios para os tratamentos de pacientes em fase terminal, pois os fazem ter mais tempo de vida, porém 384


muitas vezes sem qualidade. É a partir desses questionamentos que surge a ideia do ―Testamento Vital‖, conforme entendimento de Sanches, et al(2008). Na visão deDadalto (2013b),testamento vital é um documento escrito por indivíduo que, em pleno gozo de suas capacidades mentais, deseja expressar antecipadamente sua vontade sobre os tipos de tratamento que queira ou não receber caso seja impossibilitado de manifestá-la, ante uma fase terminal de doença incurável. Testamento, no direito civil,é um negócio jurídicounilateral,personalíssimo, gratuito, solene, revogável,com efeito pós morte,em que um indivíduo dispõe total ou parcialmente de seu patrimônio e onde virá a determinar diligências de cunho pessoal e/ou familiar(DINIZ, p. 1309, 2009) . De acordo com Tartuce:

O testamento representa em sede de Direito das Sucessões, a principal forma de expressão e exercício da autonomia privada, como típico instituto mortis causa. Além de construir o cerne da modalidade sucessão testamentária, por ato de última vontade, o testamento também é via adequada para outras manifestações da liberdade pessoal.

Tais características também alcançam o chamado testamento vital, entretanto, divergem no efeito pós-morte, pois este tipo de documento tem efeito quando seu outorgante ainda está vivo, mas com a capacidade de raciocínio prejudicada devido uma doença terminal, ou seja, incapaz de tomar decisões por si próprio. É também dispensada a solenidade, nestes casos. Por esta razão, tem-se que o termo testamento vital não é o mais apropriado (DADALTO, 2013). O uso da expressão ―testamento vital‖ se deu em virtudeda tradução de ―living will‖, termo utilizado inicialmente por LuisKutner, que deu margem a várias traduções como ―testamento de vida‖, ―testamento em vida‖, ―testamento biológico‖, ―testamento de paciente‖, ou ainda, ―cláusulas testamentárias sobre a vida‖ (NUNES, 2012). Portanto, chamar de testamento vital um documento que tem plena validade enquanto há vida no paciente, é algo contraditório, posto que o testamento, instituto do direito civil, possui eficácia quando de sua morte. Desta forma, a terminologia ―Diretivas Antecipadas de Vontade‖(DAV‘s) tem sido melhor acolhido pelos juristas. (PROVIN, 2013).

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BREVE HISTÓRICO SOBRE TESTAMENTO VITAL

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O testamento vital surgiu nos Estados Unidos como ―living will‖, aproximadamente em 1967 e foi proposto inicialmente pela Sociedade Americana para a Eutanásia, onde seria um documento pelo qual as pessoas pudessem manifestar sua vontade com relação a tratamentos médicos inúteis utilizados para preservação da sua vida, quando em estado terminal (FERNANDES, 2012) Em 1969, na cidade de Chicago (EUA), o advogado LuisKutner, elaborou pela primeira vez um modelo de documento onde um indivíduo poderia pedir que fossem cessados os tratamentos que lhe mantinha vivo, em caso de estado vegetativo sem possibilidade de cura (PICCINI, 2011). Tal documento tinha a finalidade de reduzir as desavenças entre os pacientes terminais, seus familiares e os médicos, enfermeiros e toda a equipe que estava trabalhando em prol da manutenção daquela vida(NILMAR, 2013). Para o advogado LuisKutner, o testamento vital tinha além de outras finalidades, garantir ao paciente terminal o direito de morrer com dignidade, respeitando sua vontade, mesmo que estivesse incapaz de dar seu consentimento. (CAMPOS, 2012) Ainda em 1976 na Califórnia (EUA), foi editada a primeiraleisobre morte natural que vigeu até 1991 quando foi publicada a lei federal de autodeterminação do paciente - Patient Self-DeterminationAct(PSDA)-(PACHECO,2006)onde o testamento vital passou a ser válido juridicamente, uma vez que levou em consideração a vontade do paciente, até mesmo para rejeitar tratamento médico (FERNANDES, 2012). Assim, o testamento vital foi se propagando pelo mundo, inclusive na Europa, onde ganhou bastante força, pois a maioria dos países que o adotaram e já legislaram a seu respeito fazem parte deste continente. 5

TESTAMENTO VITAL E SUA EXPANSÃO NO MUNDO

Como visto no tópico anterior o testamento vital surgiu e foi disseminado pelos Estados Unidos, porém logo ganhou espaço em diversos lugares. Vários países já possuem uma legislação específica acerca do testamento vital, segue o rol desses países: Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Hungria, Inglaterra, México, Porto Rico, Portugal, União Europeia e Uruguai (DADALTO ON LINE, 2013).Nesse item será feita uma abordagem sobre alguns desses países, não sendo possível falar sobre todos, devido a brevidade deste trabalho.

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5.1 ESTADOS UNIDOS

Não será profundamente discutido pelo fato de ter sido um tema explanado anteriormente, entretanto, como este país foi o nascedouro do testamento vital, vê-se a extrema importância em demonstrar sua experiência no assunto. Como dito anteriormente, o testamento vital surgiu nos EUA, no final da década de 60. A eutanásia já era bastante discutida naquele país e foi a partir da Sociedade Americana para a Eutanásia que houve a primeira proposta de testamento vital, mais precisamente em 1967, cuja finalidade era que nesse documento uma pessoa pudesse expressar antecipadamente sua vontade a respeito da interrupção de intervenções médicas de manutenção da vida. Logo após, foi criado o primeiro modelo de testamento vital, pelo advogado LuisKutner, como já dito em outra oportunidade. Ocorre que a questão do respeito à vontade do paciente foi ganhando força gradativamente devido a alguns fatos que foram surgindoem que houve a necessidade da tomada de decisão pela manutenção ou não da vida por meio de aparelhos. Em 1976houve o caso da Karen Ann Quinlan, uma jovem de apenas vinte e dois anos que entrou em coma irreversível e que havia dito aos seus pais o desejo de não ser mantida viva por aparelhos. Ocorre que o pedido da paciente não pôde ser atendidopelos médicos por questões morais e éticas, sendo o caso levado ao Poder Judiciário.Apenasem segunda instância, a justiça americana determinou ao hospital que fossem desligados os aparelhos que a mantinham viva. No mesmo ano, foi criada na Califórnia, a primeira lei que reconhecia juridicamente o testamento vitale a partir de então vários outros estados norte-americanos também trataram de regulamentar o chamado ―living will‖ (PENALVA, 2008) . Relata Penalva (2008) que em 1983, Nancy Cruzam, vítima de um acidente ficou em coma irreversível e permanente. Seus pais, também pediram o desligamento dos aparelhos e o caso chegou até a Suprema Corte dos estados Unidos, que concederam a eles tal direito. Este caso foi o estopim para uma comoção social que levou a aprovação da lei da autodeterminação do paciente (Patient Self-DeterminationAct), a primeira lei de âmbito federal que reconheceu a autodeterminação do paciente. Foi com a criação desta lei federal que o testamento vital ganhou forças nos EUA influenciando mais da metade de seus estados-membro que passarama obter legislação própria sobre “living will”. Vale aqui ressaltar que, neste país, cada estado tem sua autonomia legislativa, devido seu processo de formação (LEÃO, 2012).

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5.2 ESPANHA O testamento vital na Espanha é conhecido por ―instrucciones previas” e teve início nesse país em 1986 a partir de uma iniciativa da Associancion Pro Derecho a Morrir que elaborou o primeiro modelo do documento em solo espanhol. Entretanto, apenas no ano de 2000 é que o testamento vital foi validado juridicamente no país, quando da vigência da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, também conhecido por Convênio de Oviedo. (VALADARES LEÃO, 2013).Destaconvenção, foram signatários os estados membros do Conselho da Europa, mas não em sua totalidade, pois dos 47 países que fazem parte deste conselho somente 35 assinaram a convenção e 29 a ratificaram, entre eles Espanha, Portugal e Suíça. (PENALVA, 2008). Como a Espanha é dividida entre várias comunidades, estas elaboraram suas próprias leis relativas às instrucciones previas, devido à autonomia legislativa que possuem. LEÃO (2013) detalha que as leis de cada comunidade possuem especificidades, como por exemplo, o fato de não serem todas as comunidades que utilizam do termo instrucciones previas, algumas delas permitem que o testamento vital seja feito por pessoa menor de idade e na maior parte das comunidades as instruccionesprevias podem tratar ainda sobre a doação de órgãos e o destino do corpo, após o falecimento do indivíduo. Contudo, mesmo com as leis de cada comunidade espanhola foi criada uma lei de esfera nacional, na tentativa de unificar a legislação em todo o país. A primeira lei federal sobre testamento vital, na Espanha, foi a Lei 41/2002 de 14 de novembro, chamada de lei da autonomia dos doentes, que teve como base para sua criaçãoa importância dos direitos dos pacientes e da relação médico-paciente, a Convenção de Oviedo e a declaração dos Direitos Humanos. Esta lei incentivou melhores condições para a infraestrutura dos hospitais, assim como deu uma atenção especial para importância da humanização dos serviços de saúde respeitando a dignidade dos pacientes. Dispõe ainda sobre os direitos e obrigações dos profissionais de saúde, para que estes possam exercer suas funções de maneira tal que garantam o bem-estar dos pacientes. (CASTRO NETO, 2012) Fato interessante é que a lei espanhola teve a preocupação de que o testamento feito em uma determinada localidade pudesse ser reconhecido nas demais. Para que isso acontecesse era necessário que fosse criado uma espécie de Registro Nacional de todas as instruccionesprevias existente, pois cada comunidade tem sua autonomia legislativa e o não reconhecimento poderia trazer complicações (LEÃO, 2012). Entretanto, no ano de 2007 houve a publicação do Real Decreto 124/2007, que cria o Registro Nacional de Instruções 388


Prévias com banco de dados de cada pessoa que se dispôs a fazer o testamento vital. O Registro Nacional dá oportunidade às pessoas que residam nas províncias em que não existe legislação especifica sobre o tema, de fazerem seu testamento vital e apresenta-lo ao órgão supracitado, para garantir-lhe o direito a sua autonomia (PENALVA, 2008). Na prática, o testamento vital espanhol, deve ser escrito e o reconhecimento do mesmo pode ser feito em cartório, no Registro Nacional ou ainda perante algum servidor da Administração Pública, pois possuem munuspúblico, podendo ainda ser feito na presença de três testemunhas. Poderá ainda ser revogado a qualquer momento pelo próprio testador, enquanto capaz, e ser nomeado um representante para que, na impossibilidade do outorgante, este tome as decisões cabíveis (PENALVA, 2008). Ante o exposto, vê-se que as instrucciones prévias estão bastante desenvolvidas na Espanha, porém ainda não é uma ideia comum a toda população, uma vez que existem divergências de pensamento quanto ao procurador e a atividade do Registro Nacional (PENALVA, 2008)

5.3 ALEMANHA Na Alemanha o testamento vital foi regulamentado em 2009, assim a vontade dos pacientes passou a ser respeitada, uma vez que tenha deixado essa vontade manifestamente escrita em documento. A legislação alemã não fugiu de todo as regras gerais do testamento vital, pois de acordo com ela, o indivíduo absolutamente capaz poderá escolher os tipos de tratamentos que irá receber ou não caso tenha sua capacidade prejudicada em virtude de doença ou traumatismos que o deixe impossibilitado de tomar decisões, desde que tenha expressado sua vontade antecipadamente (LEÃO, 2012). Conforme a legislação alemã será permitido ao paciente que seja nomeado uma espécie de procurador, alguém de sua inteira com fiança que irá ditar as regras sobre o seguimento do tratamento de acordo com a manifestação expressa e antecipada do testador. Porém, se por ventura o testamento vital não se encaixar no estágio da doença ou se não houver retificação escrita por parte do paciente, as regras passarão a ser ditadas pela equipe dos médicos em conjunto com a família e em não havendo consenso será levado ao Judiciário para que dê a última palavra. (LEÃO, 2012). Por fim, tem-se que o testamento vital alemão é considerado constitucional, uma vez que leva em conta o princípio da autodeterminação e confere ao indivíduo doente o direito ao respeito a sua vontade, até mesmo no momento mais frágil da vida de qualquer ser humano 389


que é a proximidade com a morte. Vencendo, portanto, aos embates de cunho ético e religioso levantados no parlamento quando a lei ainda estava em discussão. (LEÃO, 2012).

5.4 PORTUGAL

Portugal, mesmo sendo um país europeu, onde a temática do Testamento Vital estava sendo bastante discutida, levou certo tempo para regularizá-lo em seu território.Mesmo tendo sido um dos países que ratificaram a Convenção de Oviedo (Espanha) que ocorrera em 2001, em 2006 foi lançado um projeto de lei por parte da Associação Portuguesa de Bioética (DADALTO, 2013a) e apenas em 2012 é que este país publicou uma lei específica sobre o testamento vital. De toda forma, a ratificação da convenção foi um passo imprescindível para que viesse a existir uma discussão acerca da importância de se legislar sobre o tema. Conforme, Castro (2012), Portugal já possuía uma base jurídica amplamente favorável para a provação do testamento vital, pois sua Constituição, no art. 25 garante o direito à integridade pessoal, afirmando ser um direito inviolável assim como o art. 26 determina o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, assegura ainda a dignidade da pessoa humana e identidade genética em seu artigo terceiro. O que seria um alicerce para os pensamentos fundadores da ideologia do testamento vital, em suas palavras ―respeitar a vontade do indivíduo quando este se encontrar incapaz de manifestar o seu consentimento ou dissentimento relativamente a um qualquer procedimento clínico‖. As ―directivas antecipadas‖, como é conhecido o testamento vital em Portugal, foram regulamentadas através da Lei 26/2012 de 17 de julho. De acordo com esta lei, a diretiva antecipada só poderá ser elaborada frente a um notário, assim como frente a um funcionário do Registro Nacional do Testamento Vital, órgão até então inexistente, no país. Entretanto, algumas autoridades ainda veem pontos a serem esclarecidos pelo legislador, principalmente no que concerne a vontade expressa do autor. (LEÃO, 2012).

5.5 ARGENTINA

Neste país, também já existe legislação específica sobre as diretivas antecipadas das quais o testamento vital faz parte. De acordo com Dadalto (2013a) a primeira lei vigente na Argentina foi promulgada na província de Rio Negro, lei 4.263 de 19 de dezembro de 2007. Entretanto o país deu maior relevância às diretivas antecipadas quando em 2009 promulgou

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uma lei federal (Lei 26.529) que versa sobre os direitos do paciente, onde em seu artigo 11 defende o direito do paciente expressar sua vontade através das diretivas antecipada.

6 DO CABIMENTO DO TESTAMENTO VITAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Para fazer esta análise, é preciso verificar se o testamento vital vai de encontro ou não aos princípios norteadores do ordenamento jurídico brasileiro. Este estudo nos leva a fazer certos questionamentos: deixar ir naturalmente uma vida que já não possui meios de voltar a ser como antes é um ato contrário ao direito à vida ou é uma atitude de respeito ao ser humano que está em pleno gozo do sofrimento? Manter a vida de uma pessoa, por meios de aparelhos, fazendo prolongar sua agonia, é um meio de manter a vida a todo custo ou é uma atitude de tortura para com o indivíduo enfermo? Para responder a essas questões se faz necessário saber quais são os bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro que estão relacionados às diretivas antecipadas de vontade, das quais o testamento vital faz parte. Sendo este documento o meio pelo qual uma pessoa declara antecipadamente sua vontade acerca do seguimento de um tratamento médico, em fase de terminalidade de vida, fica claro que os bens jurídicos tutelados são a vida e a morte, ambos amplamente amparados pelo direito brasileiro. Existe, atualmente, um hábito de centralizar nas mãos do médico a decisão sobre a vida de doentes terminais. Nas palavras de Bussinguer e Barcellos (2013):

(...) o paternalismo do profissional reduz o indivíduo doente a um paciente que deve aguardar, resignada e submissamente, que deliberações acerca de sua vida sejam tomadas por outros sem que ele possa se manifestar ou decidir autonomamente como quer ser tratado ou que tipo de práticas de intervenção está disposto a aceitar.

Ainda de acordo com esses autores, ante essa problemática, é salutar que se crie um novo paradigma jurídico sobre vida e morte, pois a vida é tratada como um direito absoluto, esquecendo que a morte também tem sua vez na própria vida, pois faz parte de seu processo natural. Isso faz com que médicos tentem a todo custo prolongar a vida de pessoas sem perspectivas de melhora, definitivamente para utilizar-se das novas tecnologias, como se o ser humano fosse apenas um meio de por em prática seus novos experimentos e técnicas. Os pacientes terminais se encontram em circunstâncias tais em que mais do que nunca – pois é a única certeza de todas as pessoas – a morte se faz presente. Nesses casos não existe 391


qualquer possibilidade de recuperação, sendo a morte a única ―saída‖ para aquele indivíduo que apenas espera por ela. Portanto, sendo a vida um direito constitucionalmente garantido, a decisão pela sua manutenção ou não por meios artificiais é um respeito à própria vida(BUSSINGUER e BARCELLOS, 2013). No Brasil, ainda não uma existe legislação específica sobre o testamento vital, todavia, não é possível dizer que este instituto seja incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro vez que, em uma breve análise de suas normas constitucionais e infraconstitucionais, encontra-se suporte para a sua regulamentação. A Constituição Federal de 1988 traz alguns dos princípios que abraçam as diretivas antecipadas, como o da Dignidade da Pessoa Humana, expresso em seu artigo 1º, como um dos fundamentos da República brasileira, o princípio da Autonomia – que não está expresso diretamente na Constituição, mas subtendido - e a proibição de tratamento desumano. (DADALTO, 2013b) Para Luciana Dadalto (2013b), tais princípios são suficientes para que o testamento vital possa ser aceito no direito brasileiro, pois sua finalidade é garantir às pessoas o exercício da sua autonomia ao escolher, antecipadamente, sobre futuros tratamentos fúteis em caso de quadro irreversível. Afirma ainda esta autora que o acolhimento, pelo ordenamento brasileiro, às diretivas antecipadas de vontade é uma demonstração clara do pleno exercício do direito constitucional à liberdade e quepara isso é extremamente necessário que este direito seja exercido da forma mais autêntica possível, sem protecionismos por parte dos médicos, da família do paciente e até mesmo do governo. Encontra-se amparo legal para a legalização do testamento vital no Código Civil Brasileiro, em seu artigo 15, que determina que nenhuma pessoa será ―constrangida ao submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica‖, portanto, o testamento vital é uma confirmação prática deste preceito, pois garante ao paciente terminal a não submissão a tratamentos extraordinários quando a cura não é mais possível, evitando o prolongamento do seu sofrimento. (DADALTO, 2013b) Então, de acordo com a Constituição brasileira é possível sim que o testamento vital seja de fato regulamentado, pois o ordenamento jurídico pátrio tem a vida como maior bem jurídico tutelado e como um de seus fundamentos e princípios norteadores de toda legislação a dignidade da pessoa humana. Um indivíduo mantido vivo por meio de aparelhos sem qualquer possibilidade de melhora está longe de viver uma vida digna e é o Estado quem tem que assegurar este direito. Conforme entendimento de Abreu (2013), ―um governo que negue o direito de decisão sobre a vida e a morte é totalitário, por mais livre que deixe os cidadãos para fazerem outras escolhas menos relevantes”, portanto, sendo o Brasil um estado 392


democrático de direito a negativa pelo exercício da autonomia privada do paciente configurada no testamento vital é uma pura contradição a seu regime de governo. Destarte, prezar pela dignidade é uma exigência à democracia, pois uma Constituição que impeça a liberdade de consciência é autoritária, por tal motivo é que o direito de decidir sobre a vida e a morte deve ser constitucionalizado (ABREU, 2013) Fato é que a vida é o bem mais precioso e indisponível que se tem, mas ter uma vida sem dignidade é um contrassenso.Esta afirmação é deveras compatível para o caso dos pacientes terminais mantidos por aparelhos, pois estes estão vivos, mas, no sentido estrito da palavra, uma vez que “essas pessoas não gozam da vida em sua plenitude, não podendo afirmar sequer a existência de vida digna, pois encontram-se privados de sua liberdade e do exercício de muitos de seus direitos”. . (MAGALHÃES, 2011)

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A RESOLUÇÃO 1.995/2012 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

Em que pese a importância da autonomia privada do paciente diante de uma situação terminalidade, até a presente data não se tem uma regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro referente à declaração prévia do paciente terminal, mas comumente conhecida por ―testamento vital‖.(LEÃO, 2013) Entretanto, o Conselho Federal de Medicina editou uma resolução em 31 de agosto de 2012, (resolução 1.995) que trata das diretivas antecipadas de vontade, sendo esta a primeira regulamentação existente no Brasil acerca deste tema. (DADALTO, 2013a) Esta resolução veio trazer a definição do que sejam as diretivas antecipadas de vontade como ―o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade‖ (RESOLUÇÃO 1.995 CFM). A despeito de que esta resolução não possua força de lei vale ressaltar, todavia, que encontra amparo no direito brasileiro, pois o testamento vital apenas põe em prática a ortotanásia, técnica regulamentada pelo CFM através do Novo Código de Ética publicado em 2010 e reconhecida pelo Judiciário como constitucional, no julgamento a ação civil pública 2.007.34.00.014809-3, ao contrário da eutanásia que é considerada como crime, no Brasil. (DADALTO, 2013a) Fato é que esta regulamentação trouxe para os médicos um pouco de alívio para tomada de decisões, posto que a vontade do paciente poderá estar expressa e ele não terá que se responsabilizar ética e juridicamente por tal ato. Assim como poderá proporcionar conforto 393


para os parentes que não estejam satisfeitos em ver seu ente mantido por aparelhos. Para tanto, o médico deverá registrar os desejos do paciente em seu prontuário e estes irão prevalecer sobre opiniões de médicos, familiares e qualquer outra pessoa, desde que estejam de acordo com o Código de Ética Médica, conforme preceitua o art 2º da regulamentação “As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares‖(RESOLUÇÃO 1.995 CFM). O regulamento 1.995/2012 trouxe também a possibilidade de ser nomeado um representante para o paciente, onde o médico deverá levar em consideração as informações passadas por ele (Art. 2º, §1º,RESOLUÇÃO 1.995 CFM), mas poderá deixar de acatá-las se por ventura estiverem em desacordo com o Código de Ética Médica, como dito em outra oportunidade. (Art. 2º, §2º, RESOLUÇÃO 1.995 CFM). A resolução 1.995/2012 do CFM previu para os casos em que não haja deliberação por parte do paciente, ausência de representante, ou ate mesmo na ausência de acordo entre estes, a obrigação do médico levar o caso para o Comitê de Bioética do hospital, para o Comitê de Ética do hospital ou até o Conselho Regional ou até mesmo Federal de Medicina. (Art. 2º, §5º, RESOLUÇÃO 1.995 CFM). Contudo, existem muitos questionamentos com relação a eficácia jurídica da Resolução CFM 1.995/2012. Isso por uma razão muito simples, a resolução não tem força de lei fora do âmbito da classe médica, não podendo ela vincular decisões judiciais. O fato de as diretivas antecipadas terem sido previstas nesta regulamentação não quer dizer que passaram a ser aceitas no ordenamento jurídico brasileiro. O papel da resolução, portanto, foi de verdadeiramente reconhecer a autonomia do paciente em aceitar ou rejeitar tratamentos extraordinários, ou seja, que não mais oferecem qualquer benesse ante uma fase de terminalidade de vida, apenas prolongam a dor e o sofrimento dessas pessoas. (DADALTO, 2013a) Atualmente, existe um projeto de lei do Senado Federal (PLS nº 524/2009) que versa sobre os direitos da pessoa em fase terminal de doença, proposto pelo senador Gerson Camata (PMDB/ES) e confeccionado pela Comissão de Bioética da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Contudo, tal projeto encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde aguarda a designação de relator. Passará ainda pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e por fim a Comissão de Assuntos Sociais (CAS). (LEÃO, 2013)

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Ante o exposto, vê-se a necessidade de edição de lei no Brasil para que se possa garantir aos cidadãos a autonomia privada de suas vontades com relação ao fim de suas vidas. De acordo com Godinho (2010):

(...) o testamento vital não somente deve encontrar espaço no ordenamento brasileiro, como urge reconhecer sua validade por meio de lei, o que consagra o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que pretenda ou não se submeter.

A regulamentação do testamento vital é uma garantia a plenitude de direitos personalíssimos tão enraizados no ordenamento jurídico brasileiro, para tanto é de total importância a sua regulamentação, conforme relata Miguel Reale Júnior (ONLINE, 2013): Para permanecer dono do próprio corpo mesmo inconsciente, sem riscos de conflitos éticos no exercício da medicina ou perante o Ministério Público, é de todo conveniente que a matéria seja objeto de lei, e não apenas de resolução do CFM, elaborando-se anteprojeto em discussão com médicos, juristas e especialistas em bioética.

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CONCLUSÃO

Diante dos avanços tecnológicos e dos mais diversos casos de pacientes em fase terminal mantidos há anos por aparelhos, vê-se cada vez mais a necessidade de regulamentação de lei específica acerca testamento vital. O reconhecimento da vontade do paciente é garantia de respeito ao princípio basilar de todo ordenamento jurídico não apenas o brasileiro que é o da dignidade da pessoa humana. Estar vivendo de maneira artificial, sem qualquer perspectiva de recuperação é, sem questionamentos, um prolongamento do sofrimento. Tanto daquele que está no leito como de familiares que acompanham a sua via crucis. Viver é um direito e não um dever, a partir do momento que o indivíduo está impedido de realizar quaisquer atos da vida civil ou mesmo viver as rotinas de seu dia a dia, sem qualquer chance de um dia voltar a ser o que um dia fora, não se pode dizer que esta em uma vida digna. Impedir de viver sua própria morte, quando esta, mais do que nunca é a única certeza que se tem é uma violação sim asua dignidade.

REFERENCIAS

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SUICÍDIO ASSISTIDO E A COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À VIDA VERSUS DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Ingrid Coderceira Costa1 Lorena Daniely Lima de Castro2 Sumário: 1 Introdução. 2 Suicídio assistido. 3 A legalização do suicídio assistido na Suíça. 4 Suicídio assistido e a colisão de direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. 5 Conflito entre normas constitucionais no suicídio assistido: dignidade da pessoa humana versus direito à vida. 6 Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO No plano constitucional, a discussão acerca do suicídio assistido é uma das mais

controversas e complexas da contemporaneidade. O debate sobre o tema é muito importante, considerando que o estudo do Biodireito pátrio é recente, sendo necessário para a renovação da ordem jurídica e a sua adequação aos novos anseios sociais. O dualismo de opiniões envolvendo o tema associa-se ao fato de haver inúmeras questões conflitantes, não apenas éticas e bioéticas, como, outrossim, de natureza religiosa, jurídica e política. A problemática enfrentada refere-se ao direito fundamental que deve prevalecer no caso de doenças degenerativas que causem incapacidade física ou mental de caráter irreversível, quando da colisão entre o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, ambos protegidos pela Constituição Federal. Há os que defendem a prevalência do direito à vida, considerando-o bem indisponível, devendo preponderar até mesmo em face da dignidade da pessoa humana. No entanto, há autores que defendem o direito a uma morte digna, segundo o qual, dadas certas circunstâncias, qualquer pessoa possui o direito de dispor da própria vida. Para chegar a um resultado juridicamente adequado, utiliza-se os princípios de interpretação e aplicação de normas constitucionais, prevalecendo, neste caso específico, o cânone da proporcionalidade.

1

Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba; Servidora pública do Município de João Pessoa, com atuação em demandas judiciais sobre a saúde. 2 Graduada em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba.

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2

SUICÍDIO ASSISTIDO A palavra suicídio tem origem latina e significa ―assassinato de si mesmo‖. O suicídio

assistido3consiste no ato intencional de tirar a própria vida com auxílio de outra pessoa. A assistência ao suicídio pode ser feita por atos, como a prescrição de doses excessivamente altas de medicação ou de maneira passiva, por meio de incentivo, compactuando com a intenção da outra pessoa de morrer. No entanto, independente do tipo de suicídio, todas são ações executadas pela própria pessoa e não por um terceiro4. Ele pode ser executado pelos pacientes terminais acometidos por doenças degenerativas, de acordo com a sua vontade, auxiliados e orientados por um terceiro. Entende-se por doenças degenerativas aquelas que produzem alteração estrutural no funcionamento de uma célula, de um tecido ou de um órgão, e são assim denominadas porque provocam a degeneração de todo o organismo. Por serem patologias não passíveis de cura, ocasionalmente a morte pode aparecer como solução, frente ao sofrimento causado por elas. Surge então um importante questionamento: seria esta uma vida que vale a pena ser vivida? Em seus diálogos, Platão lembra a afirmação de Sócrates de que ―o que vale não é o viver, mas o viver bem‖5. Para este filósofo, uma vida que não vale a pena ser vividanão deve ser protelada numa luta cruel contra a morte. No caso em apreço, utiliza-se a assistência ao suicídio como uma maneira de promover uma morte digna ante o sofrimento insuportável e a inutilidade do tratamento. Trata-se de fato típico que conta com a colaboração de um terceiro. Este pode atuar ativamente, empregando, por exemplo, recursos farmacológicos (prescrição de doses altas de medicação, indicações de uso etc.), ou passivamente, deixando de evitar o resultado mencionado pelo tipo. Na Antiguidade, a prática em questão não era condenada, sendo até mesmo corriqueiro o fato de se ajudar alguém a ter uma ―boa morte‖, pois a maioria dos médicos relutava em tratar casos de doenças para as quais não havia cura conhecida, deixando para os pacientes 3

José Roberto Goldim conceitua o suicídio assistido: ―O suicídio assistido é quando a pessoa não consegue concretizar sozinha sua intenção de morrer. A assistência ao suicídio de outra pessoa pode ser feita por atos, como a prescrição de doses excessivamente altas de medicação e da indicação de seu uso, ou ainda, de forma passiva, por meio de persuasão ou de encorajamento. Em ambas as situações, alguém contribuiu para a morte de outra, por compactuar com a sua intenção de morrer. Independente do tipo de suicídio, todas são ações executadas pela própria pessoa e não por um terceiro‖ GOLDIM, José Roberto. Suicídio Assistido. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/suicass.htm>. Acesso em: 16 abr. 2014. 4 O suicídio assistido diferencia-se da eutanásia por ser o próprio enfermo que realiza o ato, embora necessite ajuda para realizá-lo, e no caso da eutanásia, o pedido é feito para que alguém execute a ação que levará a morte. 5 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 340.

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terminais poucas alternativas, além da opção pelo suicídio. Este era considerado pela grande maioria dos filósofos de Grécia e Roma como a solução mais apropriada e racional para por fim a diversos males. Conforme afirma Maria Helena Diniz6:

Entre os povos primitivos, era admitido o direito de matar doentes e velhos, mediante rituais desumanos. O povo espartano, por exemplo, arremessava idosos e recém-nascidos deformados do alto do Monte Taijeto. (...) Os guardas judeus tinham o hábito de oferecer aos crucificados o vinho da morte ou vinho Moriam. (...) Os brâmames eliminavam recém-nascidos defeituosos, por considerá-los imprestáveis aos interesses comunitários. Na Índia, lançavam no Ganges os incuráveis. (...) Os celtas matavam crianças disformes, velhos inválidos e doentes incuráveis.

A morte assistida começou a sofrer rejeição apenas com o advento do cristianismo e do judaísmo, religiões que preconizaram o repúdio a qualquer tipo de morte que não seja a morte natural. Um grande defensor dessa idéia foi Santo Agostinho, que, em ―A Cidade de Deus‖, afirmou que o suicídio era simplesmente outra forma de homicídio, e que, portanto, também era inadmissível. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, surgiram significativas mudanças na maneira de pensar da sociedade, tendência que, inspirada no humanismo, projetou-se de forma acentuada na postura médica. A partir desse momento, a conduta médica, ancorada por critérios de caráter ético, sofre profunda transformação. O profissional deve estar a serviço do seu paciente até o ultimo momento, evitando, postergando ou fazendo com que sua morte ocorra do modo mais ameno possível. Nesse aspecto, o Conselho Federal de Medicina impõe certos princípios éticos que devem ser seguidos pelo médico, não podendo este, v. g., tomar decisões próprias quanto ao destino dos seus pacientes. O Código de Ética Médica7, no art. 25 (Capítulo IV, que trata dos direitos humanos), pune o médico que:

[...] deixar de denunciar a prática de tortura ou de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, que praticar esses procedimentos, bem como aquele que for conivente com quem as realize ou que forneça meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos que as facilitem.

Já no capítulo V, que versa sobre a relação com pacientes e familiares, oart. 41 veda ao médico ―abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.‖

6

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 386. Código de Ética Médica. Disponível em: http: <//www.portalmedico.org.br/novocodigo/legislacao.asp.>. Acesso em: 18 abr. 2014. 7

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Sendo assim, de acordo com os princípios éticos que informam o exercício da Medicina, é inadmissível que o médico coadune com a prática do suicídio assistido.

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A LEGALIZAÇÃO DO SUICÍDIO ASSISTIDO NA SUÍÇA A Suíça é referência entre os países8 que legalizaram a prática do suicídio assistido.

Sua legislação é flexível quanto a este ato. Há limitação apenas quanto à pessoa que venha a prestar o auxílio, não podendo esta ter nenhum interesse pessoal na morte do paciente ou ser seu herdeiro direto. O procedimento pode ser realizado sem a participação de um médico e não há necessidade de que a pessoa que deseja morrer esteja em fase terminal. No país, existem cinco associações especializadas na prática do suicídio assistido; as mais famosas dentre elas são a Dignitas e a Exit9, sendo a primeira a única que oferece auxílio ao suicídio de estrangeiros. Estas clínicas possuem critérios para a admissão de pacientes que desejam suicidar-se. É necessário que o pedido de assistência seja permanente e reiterado durante algum tempo. Além disso, a doença que acomete o paciente deve ser incurável, com morte previsível e provocar sofrimentos físicos e psicológicos. Após uma decisão segura e precisa por parte do paciente, este receberá a assistência personalizada de um acompanhante voluntário, que deverá fazer um estudo prévio do caso e verificar se ele preenche os requisitos previstos em lei. Ao chegar o momento marcado para a morte, é oferecida ao paciente a solução letal, que ele deve ingerir com suas próprias forças, requisito essencial para que se configure um suicídio assistido e que o difere da eutanásia. Todo o procedimento é registrado para que a filmagem seja mostrada às autoridades suíças, assegurando que a pessoa estava em estado de total consciência, agiu segundo a sua vontade livre e espontânea e que, portanto, não houve crime. A permissão para o suicídio assistido na Suíça acabou por dar início ao que se chama de ―turismo suicida‖ ou ―turismo da morte‖, atraindo pessoas de outras localidades para realizar o suicídio nesse país. As associações que atuam nesta prática possuem um grande corpo de membros, em sua maioria alemães, suíços e britânicos, além de cidadãos de outros países da Europa. Em maio deste ano, foi realizado um referendo no cantão de Zurique, com efeitos na Suíça inteira, no qual se colocou em votação o aumento na rigidez da lei suíça sobre a matéria. A grande maioria da população optou por manter uma legislação liberal.

8

Holanda, Bélgica, Suíça e o Estado norte-americano de Oregon são exemplos de países e estados que já autorizam o suicídio assistido através de medicamentos. 9 Disponível em: < http://www.exitinternational.net/page/Switzerland>. Acesso em: 18 abr. 2014.

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Contrastando com a realidade suíça, na maioria dos países ocidentais, incluindo o Brasil, a assistência ao suicídio não é uma prática legalizada. Tal proibição é baseada em fatores jurídicos, políticos religiosos e morais, que o consideram como uma interrupção do ciclo natural da existência e uma afronta ao direito à vida elencado na Constituição Federal10. A discussão no âmbito jurídico brasileiro acerca desse tema é relativamente recente, assim como todos os casos polêmicos que envolvem o Biodireito.

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SUICÍDIO ASSISTIDO E A COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NO

ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O surgimento do Estado Constitucional contemporâneo acarretou em mudanças significativas no que diz respeito às discussões sobre o direito e a sociedade. A ideia de defesa da soberania estatal, de certo modo, foi deixada de lado para dar origem à defesa da Constituição e da sua força normativa (Konrad Hesse), o que pressupõe, entre outros fatores, a criação de garantias constitucionais11 capazes de assegurar a aplicação e a estabilidade da Carta Magna. No constitucionalismo contemporâneo, o início do reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais teve como marco a Declaration of Human Rights12pela Assembléia Geral das Nações Unidas, elaborada após a Segunda Grande Guerra Mundial, mais especificamente em 10 de dezembro de 1948, em um cenário de expressivas transformações políticas e sociais.

10

O direito à vida é protegido pela Constituição Federal e pelo Código Penal, que prevê pena para o suicídio assistido quando, no seu art. 122, versa: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: pena de dois a seis anos de reclusão”. A pena é duplicada se o crime for praticado por motivo egoístico, se a vítima é menor ou se tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. O bem jurídico protegido no dispositivo em questão é a vida humana, haja vista que no ordenamento jurídico pátrio não se fala em direito à morte. 11 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 879. 12 ―A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos.Desde sua adoção, em 1948, a DUDH foi traduzida em mais de 360 idiomas – o documento mais traduzido do mundo – e inspirou as constituições de muitos Estados e democracias recentes. A DUDH, em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos Opcionais (sobre procedimento de queixa e sobre pena de morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional, formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos.‖ A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/declaracao/>. Acesso em: 20 abr. 2014.

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Os chamados direitos de primeira geração13 fortaleceram a idéia de limitação e controle do poder do próprio Estado e de suas respectivas autoridades constituídas, além de consagrar os princípios básicos da igualdade perante a lei e da legalidade como regentes da atuação estatal. Os direitos de segunda geração14, por sua vez, conferem ao Estado a incumbência de proporcionar um mínimo igualitário e de bem-estar social para a população. Tal perspectiva foi aceita e adotada pela grande maioria das democracias ocidentais. Os direitos fundamentais devem servir de preâmbulo para um Estado Democrático de Direito, criando as condições necessárias para assegurar uma vida em liberdade e a dignidade humana. Influem, outrossim, em todo o direito, não apenas quando têm como objeto de proteção as relações jurídicas dos cidadãos com os poderes públicos, mas também quando regulam as relações jurídicas entre os particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).15 A Carta Magna de 1988 sedimenta uma fase de reconhecida efetividade de extenso rol de direitos e garantias fundamentais, ao tutelar em seu texto os princípios norteadores dos direitos humanos, de primeira à quarta geração. O ordenamentonão confere qualquer tipo de privilégio normativo ou prevalência de um direito fundamental sobre o outro. Contudo, em razão do suporte fático, no âmbito jurisprudencial alguns desses direitos terminam por prevalecer quando da elaboração da decisão jurídica. Essa tendência se manifesta principalmente perante o princípio da dignidade da pessoa humana. Apesar do exposto anteriormente, e tendo em vista a pluralidade social e cultural existente nos dias atuais, é inevitável que haja colisão entre direitos fundamentais. Nesse sentido, afirma-se que há colisão entre direitos fundamentais quando dois enunciados normativos parecem incidir sobre o mesmo caso ou quando se identifica conflito decorrente do exercício de direitos individuais por diferentes titulares16. Em algumas situações, os conflitos existentes entre direitos individuas são apenas aparentes, em virtude de algum dos 13

Segundo Bobbio, os direitos de primeira geração são direitos que reservam ao indivíduo uma esfera de liberdade "em relação ao" Estado. Nesta mesma dimensão, porém no que concerne aos direitos políticos, Bobbio afirma serem direitos que concedem uma liberdade "no" Estado, pois permitiram uma participação mais ampla, generalizada e freqüente dos membros da comunidade no poder político. (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 16). 14 ―Os direitos da segunda geração são os sociais, culturais e econômicos. Derivados do princípio da igualdade, surgiram com o Estado social e são vistos como direitos da coletividade. São direitos que exigem determinadas prestações por parte do Estado, o que ocasionalmente gerou dúvidas acerca de sua aplicabilidade imediata, pois nem sempre o organismo estatal possui meios suficientes para cumpri-los. (PFAFFENSELLER,Michelli. Teoria dos direitos fundamentais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_85/artigos/MichelliPfaffenseller_rev85.htm>. Acesso em: 20 abr. 2014). 12 Entende-se por eficácia horizontal dos direitos fundamentais a incidência e aplicação dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas. 16 MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 341.

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pólos não ter efetiva proteção no ordenamento constitucional como direito fundamental. O verdadeiro conflito é analisado quando um dos direitos envolvidos atinge de maneira direta o âmbito de proteção do outro direito, prevalecendo, neste caso, a norma constitucional passível de menor restrição. No que concerne à colisão aparente entre direitos e garantias fundamentais, discorre J. J. Gomes Canotilho que a superfluidade de normas constitucionais pode ser considerada como um fator predominante no sentido de desencadear tais colisões, havendo então a necessidade de uma ponderação e balanceamento de tais bens. A análise é feita a partir dos direitos protegidos juridicamente que estão envolvidos no conflito, com o intuito de encontrar uma norma de decisão baseada no caso concreto. Nessa ponderação, segundo o constitucionalista português, há predominância de um determinado direito juridicamente protegido, em face do equilíbrio e ordenamento dos bens conflitantes, aspectos que devem ser levados em consideração como indispensáveis na análise de cada caso em particular. Tais critérios de ordenação visam obter soluções justas para o conflito entre princípios17. Por outro lado, Canotilho defende que as ideias de ponderação (Abwügung) ou de balanceamento (balancing)18 surgem sempre que haja a necessidade de encontrar o direito para resolver os casos de tensão entre bens juridicamente protegidos. Nesse sentido, os tribunais fazem uso de princípios norteadores da interpretação e aplicação de normas constitucionais em busca de soluções viáveis para assegurar a proteção e dos direitos fundamentais conflitantes. Um dos princípios utilizados é o da concordância prática ou da harmonização19, considerado como pressuposto essencial para a resolução da colisão entre direitos fundamentais. É utilizado para estabelecer o alcance e os limites dos bens protegidos pela Carta Magna, para que todos tenham a sua porção correta de eficácia, sem a prevalência de um interesse sobre o outro. A combinação de bens jurídicos conflitantes tem como intuito evitar inteiro sacrifício de uns em relação aos outros. É indispensável que haja um ponto de convergência entre eles, na medida em que um determinado direito deva ceder em face do outro, ocorrendo a partir dessa ponderação uma verdadeira harmonização. 17

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 1998. 18 Ibidem, p. 1236 e 1237. 19 ―O objetivo da aplicação desse princípio será proporcionar ao intérprete que este faça uma análise dos bens, interesses ou valores que estão em conflito e estabelece os limites e a abrangência de cada um deles, de maneira coordenada e consentânea com o texto constitucional, sem que nenhum seja sacrificado em proveito de outro. Vale dizer, o intérprete fará uma harmonização desses interesses.‖ (SILVA, Enio Moraes da. Princípios e critérios de interpretação constitucional na solução dos conflitos de competências em matéria ambiental. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/teses/Enio%20Moraes.htm>. Acesso em: 23 abr. 2014).

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O princípio considerado como o mais apropriado para a solução dos conflitos entre normas fundamentais é o da proporcionalidade20, apesar de não estar expresso de forma explícita na Constituição Federal. Seu intuito é promover uma distribuição adequada e ponderada entre bens jurídicos, resguardando os direitos fundamentais colidentes, na busca de uma solução jurídica razoável, concedendo ao caso concreto uma aplicação coerente das normas constitucionais, preservando os direitos e garantias constitucionais. Segundo o autor Steinmetz21,

Para a realização da ponderação de bens requer-se o atendimento de alguns pressupostos básicos: a colisão de direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos, na qual a realização ou otimização de um implica a afetação, a restrição ou até mesmo a não-realização do outro, a inexistência de uma hierarquia abstrata entre direitos em colisão, isto é, a impossibilidade de construção de uma regra de prevalência definitiva.

Nesse sentido, verifica-se a importância relativa dos direitos envolvidos, através da aferição de valores, ressalvando outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, obstando as dispensáveis restrições imoderadas de direitos fundamentais, constituindo-se como sendo o princípio norteador para a resolução do conflito normativo no caso do suicídio assistido.

5. CONFLITO ENTRE NORMAS CONSTITUCIONAIS NO SUICÍDIO ASSISTIDO: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA VERSUS DIREITO À VIDA

O princípio da dignidade da pessoa humana é dotado de amplitude conceitual, não se restringindo unicamente à proteção dos direitos individuais do homem, alcançando também todo o rol de direitos, liberdades e garantias. Na verdade,

O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição federal exige que lhe respeitem a própria. 22

20

O princípio da proporcionalidade ordena que a relação entre o fim que se busca e o meio utilizado deva ser proporcional, não-excessiva. Deve haver uma relação adequada entre eles 21 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e principio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 142-143. 22 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 50-51.

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Ademais, seria inconcebível alienar ou renunciar a um valor inerente ao ser humano, de acordo com o aspecto intrínseco. Nesse aspecto, José Afonso da Silva23 conceitua a dignidade como:

[...] atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor intrínseco superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim a dignidade entranha e se confunde na própria natureza do ser humano.

Nesse sentido, Ingo Wolfgang Sarlet24 afirma que:

[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade.

Sendo assim, a Constituição de 1988 considera a dignidade da pessoa humana como fundamento dos demais dispositivos normativos, funcionando como condutor no que tange à efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Podemos afirmar, com isso, que a dignidade da pessoa humana é princípio de elevada importância em um Estado Democrático de Direito, servindo de guia no que se refere à interpretação constitucional. Nessa linha, Ernst Benda25 considera que: Em qualquer caso, o Estado é juridicamente obrigado a preservar a dignidade humana e a protegê-la no marco de suas possibilidades. As competências do Estado resultam limitadas, na medida em que com o mandato de respeito à dignidade se estabelece uma barreira absoluta em relação à toda a ação do Estado. Respeito e proteção da dignidade são diretrizes vinculantes para toda a atividade do Estado.

Concernente ao direito à vida, a Constituição brasileira lhe confere dupla concepção.. Nesse sentido, temos uma primeira vertente, que dispõe sobre o direito de continuar vivo, e uma segunda, que abrange a necessidade de se ter uma vida digna, concepção que pode estar

23

SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. SILVA, Carlos Medeiros; Caio Tácito. Revista de direito administrativo. Periódicos, Vol. 212. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: Renovar, abril/junho 1998, p. 91. 24 SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.), Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. trad. Ingo Wolfgang Sarlet, Pedro Scherer de Mello Aleixo, Rita Dostal Zanini. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 17 - 18. 25 BENDA, Ernst. Dignidade humana y derechos de la personalidad. In: Manual de Derecho Constitucional. 2 ed. Madrid: Marcial Pons, 2001, p. 235.

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relacionada com a idéia de subsistência ou com as condições existenciais necessárias para a vida do indivíduo. Sendo assim, O direito à vida é o direito legítimo de defender a própria existência e de existir com dignidade, a salvo de qualquer violação, tortura ou tratamento desumano ou degradante. Envolve o direito à preservação dos atributos físico-psíquicos (elementos materiais) e espirituais-morais ( elementos imateriais) da pessoa humana, sendo, por isso mesmo, o mais fundamental de todos os direitos, condição sine qua non para o exercício dos demais.26

O direito à vida é considerado pelo ordenamento jurídico brasileiro como sendo um bem absoluto, bem jurídico indisponível, não sendo passível de renúncia mesmo em casos extremos. Nesse caso, pode haver conflitos entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana quando sua segunda concepção não for observada, ou seja, quando não houver efetivamente ―vida digna‖. Embora não exista um direito absoluto e incondicionado de viver, ninguém pode ser desprovido da própria vida contra sua vontade. No entanto, não se pode falar num direito à morte decorrente do direito à vida, sendo esta uma real inversão do sentido do preceito constitucional. O Estado garantista preserva a vida acima de qualquer outro interesse, considerando-o bem jurídico indisponível. Uma possível disponibilidade do bem jurídico ―vida‖ traria repercussões em diversos setores, não constituindo apenas um problema jurídico ou moral, mas também religioso. É evidente a relação existente entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Ambos são bens jurídicos fundamentais constitucionalmente protegidos. Entretanto, eles entram em choque sempre que se cogita a eliminação de uma vida não digna, como normalmente ocorre com as hipóteses de suicídio assistido. A partir daí, surgem diversos posicionamentos. No suicídio assistido, em caso de doenças degenerativas incuráveis, observa-se um conflito entre o direito à vida e um possível direito à morte digna. De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, este conflito é resolvido com a prevalência do direito à vida, não existindo sequer a possibilidade de se defender um direito à morte digna. Segundo a concepção dominante na doutrina, fundada nos preceitos constitucionais, não pode haver qualquer tipo de interrupção artificial do processo natural da vida humana, ainda que para pôr termo ao sofrimento e agonia do indivíduo. As exceções à indisponibilidade da vida existentes

26

CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 675.

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no ordenamento jurídico restringem-se ao aborto, quando plenamente justificado, em caso não haver meios de se salvar a vida da gestante ou em caso de gravidez decorrente de estupro27. Há que defendem a importância do reconhecimento e garantia da dignidade da pessoa humana em todas as etapas da vida humana, sendo incluído neste caso o direito à morte digna. Tratar-se-ia do direito de viver os instantes finais com dignidade, evitando-se dor intolerável e sofrimento, verdadeiros atentados à dignidade humana. Em caso de ser adotada esta postura, a morte digna eliminaria a dimensão material-normativa do tipo, pois a morte, em tal circunstância, não seria reprovável, não se enquadrando no crime de suicídio assistido. Tal argumento fundamenta-se no fato de que o bem jurídico vida deve ser ponderado em face de outros valores constitucionais igualmente básicos, como o da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF), a liberdade de autodeterminação (art. 5º) podendo ser, portanto, constitucionalmente admissível e permitido no Brasil sua relativização. Um importante setor doutrinário defende, em contraposição ao anteriormente exposto, a prevalência do direito à vida sobre todos os outros, inclusive sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o direito à vida deve ser tutelado de maneira absoluta, não admitindo qualquer tipo de restrição, mesmo que diante de conflitos com outros princípios fundamentais. Seguindo esta linha de raciocínio, Maria Helena Diniz afirma que não se pode fazer prevalecer o direito à morte digna em detrimento do direito à vida, mesmo que a doença apresentada pelo paciente, que queira adotar tal método, seja incurável, fazendo com que este sofra dores insuportáveis, pois:

a) a incurabilidade é prognóstico e como tal falível é, e além disso, a qualquer momento pode surgir um novo e eficaz meio terapêutico ou uma nova técnica de cura(...); b) a medicina já possui poderosos meios para vencer a dor física ou neurológica(...); e c) o conceito de inutilidade de tratamento é muito ambíguo. 28

27

De acordo com o art. 128 do Código Penal Brasileiro: “Não se pune o Aborto praticado por médico: Aborto Necessário I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no Caso de Gravidez Resultante de Estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o Aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.‖ 28 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 345.

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As posturas acima mencionadas revelam a complexidade do tema, principalmente em face de uma possível justificativa no âmbito jurídico-penal para o suicídio assistido, que resultaria na sua não aplicação diante de casos concretos. Tal postura apenas poderia ser defendida tendo-se em vista a vertente que defende o direito à vida digna, englobando neste o direito à uma morte digna. 6

CONCLUSÃO A discussão acerca do suicídio assistido é de grande importância no âmbito jurídico

nacional e internacional, pois abarca um dos principais paradigmas axiológico-jurídicos da sociedade atual: o conflito normativo entre dignidade da pessoa humana e a proteção do direito à vida. A Constituição brasileira de 1988 estabelece princípios fundamentais relacionados à pessoa, dentre os quais se encontra aquele que protege a sua dignidade, bem como a inviolabilidade da vida. Ambos estão completamente conectados, havendo profunda dependência entre eles. Toda a legislação infraconstitucional vigente no país deve estar em concordância com os preceitos constitucionais, e o Código Penal não foge a esta regra quando protege a vida através dos mais variados tipos penais. Os que defendem a interrupção da vida através do suicídio assistido partem da idéia de que não pode haver dignidade numa vida repleta de limites, cercada por uma rotina de medicações e tratamentos que parecem inúteis (e que, às vezes, o são). Nesse sentido, afirmam que a postura mais sensata seria proporcionar a esta pessoa que vive em condições ―indignas‖ ao menos o direito a uma ―morte digna‖. No entanto, esta discussão acabará esbarrando na imprecisão conceitual do que seria dignidade. Seria, então, correto defender a idéia de que não existe dignidade nos casos onde o paciente necessita de atenção especial ou que deverá enfrentar dificuldades para superar (sem qualquer garantia de sucesso) a sua enfermidade? Uma resposta afirmativa para este questionamento levaria à seguinte conclusão: uma doença que apresenta limitações desde o ponto de vista da Medicina para a sua cura e que, além disso, torna degradante e angustiante a vida de determinada pessoa, não permite a concretização da dignidade humana. A questão é de extrema complexidade, pois se verifica a existência de impedimentos estruturais para uma possível legalização do suicídio assistido no Brasil. Ainda prevalece uma vertente tradicionalista no que se refere a este tipo de reestruturação legislativa pelas dificuldades ético-jurídicas apresentadas pelo tema. Contudo, as dificuldades que giram em 409


torno da concretização de direitos fundamentais são notáveis até mesmo naqueles casos menos polêmicos.

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FERTILIZAÇÃO IN VITRO: UMA ANÁLISE DO PROCEDIMENTO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DAS CORTES INTERAMERICANA E EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS Ana Cláudia Ruy Cardia1

Sumário: Introdução. 1 A justicialização dos direitos humanos na ordem internacional os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos. 2 O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. 2.1 Histórico de surgimento: a convenção americana de direitos humanos. 2.2 A comissão interamericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos. 3 O sistema europeu de proteção aos direitos humanos. 3.1 Histórico. 3.2 A convenção europeia de direitos humanos. 3.3 A corte europeia de direitos humanos. 4 A fertilização in vitro à luz da jurisprudência das cortes interamericana e europeia de direitos humanos. 4.1 Fertilização in vitro: breves considerações. 4.2 O procedimento na corte interamericana de direitos humanos: análise da sentença proferida no casoartaviamurillo e outros v. costa rica. 4.3 O entendimento da corte europeia de direitos humanos no caso s.h. e outros v. áustria. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A proteção dos direitos humanos na sociedade internacional pós-moderna é marcada pelajusticiabilidadedesta categoria de direitos, com a criação e a expansão das Cortes internacionais e regionais de direitos humanos, estabelecidas com a finalidade de garantir que eventuais violações aos direitos dos indivíduos cometidas pelos Estados se perpetuem e deem ensejo a uma situação de impunidade e de descaso para com os indivíduos e a humanidade como um todo. Nas últimas décadas foram estabelecidas cortes de direitos humanos temporárias (ou ad hoc) e permanentes, todas elas sob a égide de convenções internacionais que comprovam a expansão quantitativa e qualitativa do Direito InternacionalPúblico na pósmodernidade. As Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos representam, neste cenário, as principais expoentes do sistema regional de proteção aos direitos humanos, atuando de forma subsidiáriaao sistema judicial dos Estados, ou seja, agindo quando estes não forem capazes de garantir a efetiva proteção dos indivíduos nos mais diversos planos. Concomitantemente à expansão do Direito Internacional Público e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, verificou-se na sociedade internacional o exponencial 1

Advogada. Mestranda em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especializada em Direito Internacional Público e Direito Internacional dos Direitos Humanos pela Universidade de Copenhague, Dinamarca. Membro do Alumni da Academia de Direito Internacional da Haia, Holanda. Coordenadora do grupo de Cortes Regionais de Direitos Humanos no Núcleo de Estudos e Pesquisa em Tribunais e Cortes Internacionais da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (NETI-USP). Membro do Comitê de FeminismandInternational Law da International Law Association (ILA).

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avanço da tecnologia, materializada com a criação de novas possibilidades, disponíveis aos indivíduos em praticamente todos os contextos sociais. No campo da medicina, mais especificamente, restou verificada a expansão mais significativa, seja no combate às doenças mais graves que acometeram a humanidade nos últimos séculos, seja nas atividades desempenhadas pela engenharia genética. Neste último caso, é de grande importância para a sociedade internacional e para a humanidade a reprodução assistida, que garantiu a possibilidade de casais, impedidos naturalmente de conceber seus filhos, de conceberem sua prole mediante a realização de, dentre outros, do procedimento da fertilização in vitro. Não obstante as questões morais e religiosas que referido tema possa suscitar na sociedade internacional, que não serão objeto do presente trabalho, há, também perante o Direito Internacional Público, grandes questionamentos a respeito de referida prática, todos eles fundamentados nas premissas estabelecidas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este será, assim, o objeto do presente trabalho, qual seja, o de analisar o posicionamento das cortes regionais de direitos humanos no que tange à temática da fertilização in vitro. Dessa maneira, será estudada no presente trabalho a evolução da justicialização dos direitos humanos na Ordem Internacional, sendo analisada a recente jurisprudência produzida no âmbito das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos sobre a temática da fertilização in vitro. Referido corte metodológico se deu em razão de a temática tratada não ter sido objeto de julgamento perante a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Serão estudados, assim, os casos: ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica2, cuja sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos data do final do ano de 2012; e S.H. e Outros v. Áustria3, decidido pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 2011. Para se alcançar o objetivo proposto, a metodologia adotada no presente estudo será a da pesquisa histórico-bibliográfica, sendo, ainda, utilizado o método indutivo para o alcance das principais conclusões4.O método indutivo será utilizado quando da análise dos Sistemas Regionais de Proteção como consequência direta da expansão horizontal e vertical do Direito Internacional Público e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao passo que o 2

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica. Série C, nº 257. Sentença de 28 de novembro de 2012. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_ing.pdf>. Acesso em: 15 out. 2014. 3 CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso S.H. e Outros v. Áustria. Sentença de 03 de novembro de 2011. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{"fulltext":["S.H. andOthers v. Austria"],"sort":["respondentAscending"],"itemid":["001-107325"]}>. Acesso em: 15 out. 2014. 4 BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia para os cursos de direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

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método dedutivo será empregado quando da análise concreta da jurisprudência das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos nos casos supramencionados.

1

A

JUSTICIALIZAÇÃO

DOS

DIREITOS

HUMANOS

NA

ORDEM

INTERNACIONAL E OS SISTEMAS REGIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS O Direito Internacional dos Direitos Humanos5, ramo do Direito Internacional Público, remonta ao final da primeira metade do século XX, mais especificamente ao final da Segunda Guerra Mundial. Instituído a partir de 19456, com a criação da ONU, e consolidado a partir de 19487, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (―DUDH‖)8, referido ramo do Direito Internacional materializou a ideia de que o indivíduo deve ser o objetivo principal das preocupações internacionais e contribuiu para reforçar a expansão subjetiva e normativa do Direito Internacional Público. Resultam da concepção de que os direitos humanos devem ser objeto de proteção não apenas pelos Estados, mas também pela comunidade internacional, duas consequências importantes, quais sejam: a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado; e a transformação do cidadão à condição de sujeito de direito pela Ordem Internacional.

5

Para referências mais aprofundadas sobre o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ver, dentre outros, COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013; GOODMAN, Ryan. International human rights: text and materials. The successor to International Human Rights in context: Law, Politics and Morals. Oxford: Oxford University Press, 2013; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010; RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Sindicato dos Bancos do Estado do Rio de Janeiro, 1988; TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Co-existence and co-ordination of mechanisms of international protection of human rights.RecueildesCours de l’Académie de DroitInternational, t. 202, p. 12435, 1987., p. 12-435, 1987. No presente trabalho, utilizar-se-á o termo ―direitos humanos‖ como equivalente ao termo ―Direito Internacional dos Direitos Humanos‖. 6 Há, no entanto, autores que denominam outros instrumentos normativos como precursores dos tratados de direitos humanos como vistos em sua configuração atual, como a Declaração Inglesa de 1689, a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, ou mesmo o estabelecimento da Organização Internacional do Trabalho e da Liga das Nações, desde 1919. 7 É nesse período que se insere o contexto histórico-jurídico da elevação dos sujeitos à categoria de sujeitos de Direito Internacional Público e do rompimento da lógica dos Tratados de Westfália, em que a coordenação dos Estados-nações independentes e da justaposição de soberanias absolutas levava à exclusão dos indivíduos e dos grupos sociais como sujeitos de direitos. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O direito internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 1.051; 1.075. 8 A Declaração Universal de Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e estabelece os padrões mínimos de proteção dos Direitos Humanos, que devem ser obedecidos e incentivados pelos Estados. Contudo, apesar de sua extrema importância para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, suas disposições não são de cumprimento obrigatório por parte dos Estados que a adotam.

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A partir desse ideal, verifica-sea evolução do processo dejusticialização dos direitos humanos internacionalmente enunciados, que teve como marco inicial a criação do Tribunal de Nuremberg e dos Tribunais ad hoc9, culminando com o estabelecimento das cortes regionais de direitos humanos, sendo hoje complementado com oTribunal Penal Internacional10. O processo de justicialização dos direitos humanos é verificado não apenas no sistema universal de proteção aos direitos humanos, formado pelo conjunto da DUDH com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (―PIDCDP‖) 11 (e seus respectivos Protocolos Facultativos12), o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (―PIDESC‖)

13

(juntamente com seu Protocolo Facultativo14), com seus respectivos Comitês,

e todas as Convenções do sistema onusiano15. Verifica-se, também, processo semelhante nos sistemas regionais de proteção, em que as Cortes regionais de direitos humanos têm assumido extraordinária relevância, comoespeciallocuspara a proteção de referidos direitos16. Os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, assim como o sistema global, encontram-se à disposição de todos aqueles que, no âmbito doméstico, não tiveram a devida proteção de seus direitos, sendo amparados se os Estados dos quais são nacionais forem membros de tais sistemas e tiverem reconhecido a competência de suas respectivas Cortes. Deve-se, ainda, atentar para a complementaridade dos sistemas global e regional, fortalecendo o ideal de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado dos Estados17.

9

RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 341; 344. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi aprovado em 17 de julho de 1998, na Conferência de Roma, tendo entrado em vigor em 1º de julho de 2002. 11 Adotado pela Resolução nº 2.200- A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, tendo sua entrada em vigor datada de 23 de março de 1976. 12 O primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos entrou em vigor em 1976, e o Segundo Protocolo Facultativo, em 11 de julho de 1991. O primeiro estabeleceu, dentre outras questões relevantes, o direito de petição individual, ao passo que o segundo trouxe como referência a vedação à pena de morte. 13 Adotado pela Resolução nº 2.200- A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, tendo sua entrada em vigor datada de 03 de janeiro de 1976 14 Aprovado em dezembro de 2008, traz disposições sobre o direito de petição individual. 15 PIOVESAN, Flávia (Coord.). Código de direito internacional dos direitos humanos anotado. São Paulo: DPJ, 2008, pp. 3;420. 16 BRANT, Leonardo Nemer Caldeira. O Brasil e os novos desafios do direito internacional. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 301. 17 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 12 10

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São conhecidos, na atualidade, três sistemas regionais de proteção aos direitos humanos18, quais sejam: o Sistema Europeu, o Sistema Interamericano e o Sistema Africano. Os três sistemas são integrantes de sistemas regionais com atribuição mais ampla do que apenas a proteção aos direitos humanos: o Sistema Europeu tem suas origens no Conselho da Europa, o Sistema Interamericano, na Organização dos Estados Americanos (―OEA‖) 19, e o Sistema Africano, na União Africana.. Assim como no sistema global, os tratados que compõem os sistemas regionais de direitos humanos programam normas que são válidas apenas para os Estados que adotarem tais sistemas, além de criarem um aparelho de monitoramento capaz de assegurar o cumprimento dessas normas nos Estados que os adotaram. Os sistemas Interamericano e Africano contam com Comissões de Direitos Humanos, que avaliam e encaminham as petições às Cortes Interamericana e Africana de Direitos Humanos. A Comissão Europeia de Direitos Humanos deixou de existir com sua fusão à Corte Europeia de Direitos Humanos, em novembro de 1998, com vistas à maior justicialização do Sistema Europeu20. Dentre as vantagens trazidas pelos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, deve-se mencionar que os valores regionais, culturais, jurídicos, políticos e econômicos são considerados no momento da elaboração dos dispositivos legais de cada sistema. Além disso, é permitida, também, a adoção de mecanismos de cumprimento que se coadunem melhor com as condições locais do que as do sistema global 21. A maior aceitação, pelos Estados-parte de referidos sistemas,das decisões nele tomadas, bem como a maior pressão feita pelos outros Estados-parte para que haja o efetivo cumprimento das decisões, graças à sua proximidade geográficapermitem que a efetividade das decisões seja mais facilmente alcançada. Os três sistemas mencionados apresentam semelhanças e diferenças que os caracterizam. No entanto, sua importância será tratada no tocante à força que tais sistemas representam na defesa dos direitos humanos, o que será feito mediante a análise de suas 18

Deve-se mencionar, ainda, a existência de um sistema árabe (dentro do âmbito da Liga dos Estados Árabes, criada em 1945) bem como a proposta de criação de um sistema regional asiático (que conta com a Carta Asiática de Direitos Humanos, criada em 1997). Como ambos ainda apresentam pequena relevância no cenário internacional, não contando com decisões paradigmas para a proteção dos direitos das Mulheres, o presente trabalho não abordará tais sistemas, atendo-se, apenas, aos Sistemas Africano, Europeu e Interamericano de proteção aos Direitos Humanos. 19 HEYNS, Christof. PADILLA, David. PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas regionais de direitos humanos: uma atualização. Revista internacional de direitos humanos: SUR, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 161-162, 1 sem. 2006. Disponível em: <http://www.surjournal.org>. Acesso em: 14 out. 2014. 20 PIOVESAN, 2006, p. 50. 21 HEYNS, Christof. PADILLA, David. PADILLA, Leo. Comparação esquemática dos sistemas regionais de direitos humanos: uma atualização. Revista internacional de direitos humanos: SUR, São Paulo, v. 3, n. 4, p. 161-162, 1 sem. 2006. Disponível em: <http://www.surjournal.org>. Acesso em: 14 out. 2014.

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principais características e da jurisprudência de suas respectivas Cortes. A Corte Africana de Direitos Humanos, por ainda não contar com uma jurisprudência consolidada natemática da fertilização in vitro, não será objeto de análise no presente trabalho, sendo estudados apenas o histórico de criação, as principais características e a jurisprudência das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos com relação a referido tema. É neste contexto de internacionalização dos direitos humanos - ou de humanização do Direito Internacional22 -, que serão estudados os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, notadamente os sistemas Interamericano e Europeu de proteção, como se verá a seguir.

2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Tendo sido verificadas as principais semelhanças e diferenças entre os sistemas global e regional de proteção aos direitos humanos, dentro de um contexto de humanização do Direito Internacional e de justicialização dos direitos humanos, faz-se necessário o estudo dos dois principais sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, quais sejam, o Sistema Interamericano e o Sistema Europeu. Dada sua importância regional para o presente trabalho, apesar de ter surgido em momento posterior ao Sistema Europeu, será analisado primeiramente o Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos.

2.1 HISTÓRICO DE SURGIMENTO: A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

As bases para a análise do Sistema Interamericano de Direitos Humanos encontram-se na Convenção Americana de Direitos Humanos (―Convenção Americana‖), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.Aprovada na Conferência de San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, a Convenção Americana entrou em vigor apenas na década seguinte, em 18 de julho de 1978, época marcada pelos regimes ditatoriais e pela transição aos regimes democráticos na América Latina23. No entanto, apesar do paradoxo que marcou o surgimento desse sistema, é possível verificar, na atualidade, a consolidação das

22

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do direito internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 111. 23 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 201; 204.

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diretrizes estabelecidas no momento de sua criação. Seu estabelecimento teve, ainda, inspiração no Sistema Europeu de Direitos Humanos, que será estudado em seguida. Os direitos assegurados pela Convenção Americana constituem-se como uma reprodução substancial dos direitos constantes do PIDCP, de 1966. O Protocolo Adicional à Convenção Americana, referente aos direitos econômicos, sociais e culturais, também conhecido como Protocolo de San Salvador, foi adotado em 199824.O maior trunfo da Convenção Americana é o de enunciar a necessidade de os Estados que ela ratificarem de alcançarem, progressivamente, a plena realização dos direitos nela previstos, seja por meio da criação de leis especiais para tais fins, seja por meio de outras medidas consideradas apropriadas. Há, dessa forma, o estímulo à obrigação dos Estados-parte à Convenção de respeitarem o exercício de todos os direitos e liberdades previstos sem qualquer discriminação. A Convenção estabelece ainda um mecanismo de monitoramento das possíveis violações, pelos Estados-parte, dos direitos nela enunciados, quais sejam: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (―CIDH‖) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (―Corte Interamericana‖), ambas integrantes do chamado Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e que serão estudadas a seguir.

2.2 A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A CIDH tem suas bases na Resolução VII, do 5º Encontro de Consulta de Ministros de Relações Exteriores, realizado em 1959, no Chile, e passou a fazer parte do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos após a criação da Convenção Americana. Sua principal atribuição é a observância e a proteção dos direitos humanos na América. Sua competência alcança todos os Estados-parte da Convenção Americana em relação aos direitos humanos nela consagrados, e todos os Estados-membros da OEA no tocante aos direitos consagrados na Declaração Americana de 194825. Composta por sete membros de alta autoridade moral e reconhecido saber em matéria de direitos humanos, nacionais dos Estados-membros da OEA, a CIDH tem por funções

24

Assinado em San Salvador, El Salvador, em 17 de novembro de 1988, no Décimo Oitavo Período Ordinário de Sessões da Assembleia Geral da OEA. 25 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 258.

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principais: o recebimento, a análise e a investigação de petições individuais26 que tragam alegações sobre violações aos direitos humanos, além da remessa de casos à jurisdição da Corte Interamericana; a realização de visitas in loco aos Estados que eventualmente estejam violando direitos previstos na Convenção Americana e na Declaração Americana; a publicação de estudos sobre temas específicos de interesse dos Estados-membros da OEA; a criação de recomendações aos Estados-membros da OEA referentes à adoção de medidas capazes de contribuir com a promoção e garantia dos direitos humanos, bem como a solicitação aos governos dos Estados-membros de informações relativas às medidas por eles adotadas para garantir a eficácia da Convenção Americana; a solicitação de concessão de medidas cautelares e opiniões consultivas à Corte Interamericana, sendo as primeiras concedidas em caso de gravidade e urgência, e as segundas, analisadas quando houver dúvidas a respeito da interpretação da Convenção Americana27. Dessa forma, é possível concluir que a CIDH não apresenta mera função receptora das petições endereçadas à Corte Interamericana, exercendo muitas vezes competência exclusiva para decidir sobre determinadas questões, e atuando, no entender de alguns autores, como primeira instância jurisdicional28. Além disso, a CIDH e a Corte Interamericana apresentam funções complementares, em completa harmonização do Sistema Interamericano. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, é o órgão judicial autônomo pertencente ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Com sede na cidade de San José, na Costa Rica, referido tribunalpossui competência contenciosa e consultiva para analisar os casos a que lhe são submetidos29. Seu estabelecimento também remete à instituição do Pacto de San José da Costa Rica. Nos termos do artigo 4º de seu Estatuto, a Corte Interamericana deverá ser composta por sete juízes nacionais dos Estados-membros da OEA. Seus idiomas oficiais são os mesmos daquela Organização, quais sejam: o espanhol, o português, o inglês e o francês. Apenas os Estados que reconheceram sua jurisdição podem se valer de suas atribuições. Dos 25 Estados que ratificaram a Convenção Americana, apenas 21 países a reconheceram: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad e Tobago e Uruguai. A Venezuela, que havia reconhecido a jurisdição da Corte 26

Comunicações encaminhadas por indivíduos, grupos de indivíduos ou ONG‘s. Disponível em: <http://www.oas.org/es/cidh/>. Acessoem: 15 out. 2014. 28 FAÚNDEZ, Ledesma Héctor. El sistema interamericano de protección de los derechos humanos: aspectos institucionales y procesales. 2ª ed. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1999, p. 182. 29 Art. 2º do Estatuto da Corte Interamericana. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/index.php/en/about-us/estatuto>. Acesso em 14 out. 2014. 27

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Interamericana, denunciou à Convenção Americana em 2012, de forma que a jurisdição de referida Corte apenas alcançará as violações aos Direitos Humanos ocorridas naquele Estado até setembro de 201330. A competência consultiva da Corte Interamericana está relacionada à interpretação, por aquele órgão, dos dispositivos elencados na Convenção Americana e nos tratados concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos31, após eventual questionamento feito pela CIDH ou pelos Estados-membros da OEA32. A Corte ainda é competente para realizar o ―controle da convencionalidade das leis‖, opinando sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais33. No tocante à competência contenciosa da Corte Interamericana, consoante o artigo 61 da Convenção Americana, somente os Estados-membros e a CIDH podem submeter um caso à sua apreciação, estando presentes os requisitos do esgotamento dos recursos internos e da inexistência de litispendência internacional, uma vez que a Corte Interamericana não se presta ao reexame do mérito das decisões proferidas pelos Tribunais internos. O artigo 23 do Regulamento da Corte Interamericana admite ainda a participação das vítimas como peticionárias apenas após a admissão da demanda34. Com este último mecanismo, permite-se que os Estados violadores de direitos humanos sejam política e moralmente condenados. As sentenças proferidas pela Corte Interamericana são definitivas e inapeláveis, devendo ser imediatamente aplicadas pelos Estados condenados por violações aos direitos humanos previstos na Convenção Americana. Uma vez reconhecida a violação à Convenção,

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A este respeito, ver: <http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2013/064.asp>. Acesso em 15 out. 2014. 31 PIOVESAN, 2010, p. 266. 32 Ainda, nos termos do capítulo X da Carta da OEA, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires (aprovado em 1967), além da CIDH, os seguintes órgãos serão competentes para realizar consultas à Corte Interamericana: a Assembleia Geral da OEA, a Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, os Conselhos; a Comissão Jurídica Interamericana; a Secretaria-Geral; as Conferências Especializadas; e os Organismos Especializados. 33 PIOVESAN, 2010, p. 267. BOGDANDY, Arminvon. PIOVESAN, Flávia. ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, pp. 557;800. 34 A respeito da participação das vítimas no procedimento contencioso, válidas serão as palavras de Antônio Augusto Cançado Trindade; ―É da própria essência do contencioso internacional dos direitos humanos o contraditório entre as vítimas de violações e os Estados demandados. Tal locusstandi é a consequência lógica, no plano processual, de um sistema de proteção que consagra direitos individuais no plano internacional, porquanto não é razoável conceber direitos sem a capacidade processual de vindica-los. Ademais, o livre direitos de expressão das supostas vítimas é elemento integrante do próprio devido processo legal, nos planos tanto nacional quanto internacional.‖, in BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu. ARAÚJO, Nadia de (Org.). Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 19.

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a Corte determinará a adoção de medidas necessárias à restauração do direito violado, bem como a condenação ao pagamento de justa indenização às vítimas. A jurisprudência da Corte Interamericana é ainda recente, mas tem se consolidado na proteção aos direitos humanos violados pelos Estados cujas instituições nacionais tenham sido falhas ou omissas. Suas decisões são importantes marcos para A proteção da dignidade humana, sendo imprescindível, portanto, sua análise no que tange à temática da fertilização in vitro, sendo analisado, neste contexto, o caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica.

3 O SISTEMA EUROPEU DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

Uma vez estudadas as principais características do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, passa-se ao estudo do sistema que inaugurou a efetiva e permanente justicialização dos direitos humanos na Ordem Internacional, a saber, o Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos.

3.1 HISTÓRICO

Diversamente do Sistema Interamericano de proteção aos Direitos Humanos, surgido em um período marcado por ditaduras militares em países como Chile, Brasil e Argentina, o Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos teve por inspiração a intensa busca pela democracia e pela proteção efetiva dos direitos humanos. O processo de reintegração europeia, desenvolvido logo após o final da Segunda Guerra Mundial, foi marcado pela cooperação entre os países da Europa Ocidental na retomada de regimes democráticos e na proteção aos direitos humanos. Foi nesse contexto que teve origem o Sistema Europeu, cuja homogeneidade de princípios o distingue dos demais. Sua instituição influenciou,como visto, a criação e desenvolvimento do Sistema Interamericano. Foi ainda com base em tal homogeneidade que se tornou possível a consolidação dos direitos humanos na Europa, traduzida por meio da Convenção e da Corte Europeia de Direitos Humanos, que serão estudadas a seguir.

3.2 A CONVENÇÃO EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

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Instituída pelo Conselho da Europa35, a Convenção Europeia de Direitos Humanos (―Convenção Europeia‖) foi adotada em 04 de novembro de 1950, entrando em vigor em 03 de setembro de 1953. Marca-se, principalmente, pelos princípios da solidariedade e da subsidiariedade, fundamentando-se no consenso sobre padrões internacionaisde direitos humanos. Em outras palavras, baseia-se emstandards protetivos mínimos, de forma que as questões de direitos humanos protegidas por um Estado-parte da Convenção Europeia podem ser contestadas por petições individuais ou comunicações estatais perante a instituição que a compõe36. A adoção de Protocolos à Convenção Europeia corrobora sua evolução ao longo dos anos, em que foram consagrados direitos subjetivos, tais como o direito à educação, a proibição à pena de morte, o direito de igualdade entre os cônjuges e o direito a nãodiscriminação37.O Protocolo que merece destaque no âmbito do Sistema Europeu é o Protocolo nº 11, que entrou em vigor em 1º de novembro de 1998. Por meio de referido Protocolo, a justicialização do Sistema Europeu restou fortalecida, com a substituição da Comissão e da Corte Europeias, originariamente previstas na Convenção Europeia38, por uma Corte permanente (―Corte Europeia‖), competente para realizar o juízo de admissibilidade e de mérito dos casos que lhes são submetidos e com jurisdição prevista por uma cláusula obrigatória com aplicação automática39.Ainda, por meio do Protocolo nº 11, consagrou-se o direito de petição de Estados, particulares, ONGs ou mesmo grupo de pessoas, que, consoante a disposição dos artigos 33 e 34 da nova redação da Convenção Europeia, passaram a ter pleno locusstandi e jus standiperante a Corte Europeia, tornando-o diferente dos demais sistemas regionais de proteção aos direitos humanos.

3.3 A CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Conforme mencionado anteriormente, a Corte Europeia de Direitos Humanos teve seu marco inicial em 1º de novembro de 1988, após a adoção do Protocolo nº 11. Com a adoção do Protocolo nº 11houve a unificaçãodas funções de admissibilidade e de mérito dos casos

35

Instituído em 05 de maio de 1949, é o órgão composto pelos Ministros da Justiça dos países dele integrantes. PIOVESAN, 2006, p. 66. 37 Respectivamente, Protocolos nº 2, 13, 7 e 12. 38 Cumpre ainda observar que o Protocolo nº 11 extinguiu a função do Comitê de Ministros (órgão diplomático formado pelos Ministros de Relações Exteriores dos Estados-membros do Conselho da Europa) de avaliar a existência de supostas violações aos direitos previstos na Convenção submetidos à Comissão e não à antiga Corte. 39 PIOVESAN, 2006, pp. 72; 73. 36

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submetidos à Corte Europeia, em um significativo avanço ainda não alcançado pelos demais sistemas regionais. A Corte Europeia conta com um número de juízes equivalente ao número de Estadospartes, e seu mandato deve ser de seis anos. Devem os juízes, ainda, assim como no Sistema Interamericano, contar com elevada responsabilidade moral, e obedecer aos idiomas oficiais daquela Corte, quais sejam, o inglês e o francês. Assim como na Corte Interamericana, a competência da Corte Europeia é consultiva e contenciosa. Nos termos do artigo 47 da Convenção Europeia, cumpre àreferido tribunal formular opiniões consultivas sobre questões jurídicas atinentes à interpretação da Convenção e de seus respectivos Protocolos. No entanto, um ponto que a difere da Corte Interamericana encontra-se no fato de que aquela Corte é competente para discutir qualquer questão referente à interpretação dos dispositivos da CIDH, ao passo que a Convenção Europeia restringe o alcance das questões passíveis de análise por meio de sua competência consultiva40. Por essa razão, poucas são as opiniões consultivas emitidas pela Corte Europeia. Com relação à competência contenciosa, o artigo 34 da Convenção Europeia consagra o locusstandi dos indivíduos, individualmente e em grupo, e das ONGs, que têm acesso direto perante a Corte Europeia41.Os requisitos de admissibilidade dos casos a ela submetidos encontram-se delimitados no artigo 35 da Convenção, quais sejam: o esgotamento das vias jurídicas internas; o respeito ao prazo de seis meses, contados da data em que fora proferida a decisão definitiva de mérito no âmbito interno; a determinação do sujeito que submete a demanda à Corte Europeia; a inexistência de litispendência internacional; a compatibilidade com os princípios e enunciados previstos na Convenção Europeia e em seus Protocolos; e a inexistência de caráter abusivo ou falta de fundamentação trazida pelo pedido. A Corte Europeia, diferentemente da Corte Interamericana, não é competente para determinar a

40

Em outras palavras, o parágrafo 2º do artigo 47 da Convenção Europeia restringe as consultas feitas à Corte Europeia, de forma que não podem ser discutidas questões referentes ao conteúdo ou ao alcance dos direitos e liberdades enunciados na Convenção e em seus Protocolos, ou mesmo a qualquer outra questão que a Corte ou o Comitê de Ministros possa levar em consideração em decorrência de sua competência. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 75. 41 Interessante, nesse caso, notar que a consequência direta do avanço trazido pelo Protocolo nº 11 (que garantiu o acesso direto dos indivíduos à Corte Europeia por meio do direito de petição) foi o considerável aumento das demandas submetidas àquele órgão de proteção aos direitos humanos na Europa. A fim de minimizar os efeitos desse aumento vertiginoso, entrou em vigor, em 1º de junho de 2010, o Protocolo nº 14, que tem por objetivo aumentar a eficiência da Corte Europeia, permitindo sua concentração maior em casos que demandem importantes questões de direitos humanos. Referido Protocolo foi paradigmático para o Sistema Europeu de Proteção aos Direitos Humanos. Contudo, persistem as questões envolvendo o grande acúmulo de casos na Corte Europeia de Direitos Humanos.

423


adoção de medidas provisórias, haja vista a inexistência de dispositivo na Convenção Europeia nesse sentido. As decisões proferidas pela Corte Europeia revestem-se de natureza declaratória, vinculando juridicamente as partes integrantes dos conflitos a ela submetidos. Além disso, tem referidas sentenças autoridade de coisa julgada, de forma que seu não cumprimento, por parte dos Estados-partes, traz como consequência a aplicação de sanções. A sanção mais gravosa que se tem conhecimento é aquela trazida nos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho da Europa, a saber, a ameaça de expulsão do Conselho. Finalmente, considerando-se novamente a evolução trazida pelo Protocolo nº 11, que aboliu a existência da Comissão Europeia, serão apenas considerados apenas os casos contenciosos julgados no âmbito da nova Corte Europeia, sendo dada especial atenção, no caso da fertilização in vitro, ao Caso S.H. e Outros v. Áustria.

4 A FERTILIZAÇÃO IN VITRO À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DAS CORTES INTERAMERICANA E EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS

Fez-se necessário até o presente momento o estudo sobre as principais características dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos existentes na Ordem Internacional. Uma vez conhecido seu modus operandi, é possível compreendercom maior rigor de detalhes a jurisprudência emanada de cada um dos dois sistemas, em especial em temas sociais ainda considerados polêmicos, como, no caso do presente trabalho, a realização do procedimento da fertilização in vitro por casais que não tenham, por alguma razão, a possibilidade de conceber naturalmente sua prole. Para ilustrar o status de referida discussão nos dois sistemas então estudados, serão analisadas as sentenças proferidas em dois casos, a saber: Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica, decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2012, e Caso S. H. e Outros v. Áustria, cuja decisão foi proferida pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 2011. Contudo, antes de se entrar no mérito das decisões proferidas por ambos os tribunais, é de rigor a realização um breve estudo sobre o procedimento de fertilização in vitro. É o que se verá a seguir. 4.1 FERTILIZAÇÃO IN VITRO: BREVES CONSIDERAÇÕES

As origens do procedimento da fertilização in vitro remontam à segunda metade do século XX, mais precisamente ao ano de 1978, quando, na Inglaterra, foi anunciado o nascimento do 424


primeiro bebê concebido fora do útero materno. A partir de então, mais de cinco milhões de crianças foram concebidas por meio de referido procedimento42. A fertilização in vitro constitui-se como uma das técnicas reconhecidas de reprodução assistida43, em que os óvulos da mulher são removidos de seus ovários, sendo fertilizados por espermatozoides em um procedimento laboratorial. Uma vez fertilizados, os agora embriões são reimplantados no útero feminino, ocorrendo, então, a normal gestação da mulher. O procedimento total da fertilização in vitro dura aproximadamente cinco dias44. Por ser um procedimento que cause um potencial risco tanto para a saúde da mulher quanto para a criança, de grande relevância social, uma vez que atinge os direitos familiares como um todo (direito à maternidade e à paternidade) – sem contar as questões éticas, morais e religiosas que circundam essa prática - e de alto custo para as indústrias médica e farmacêutica, o procedimento da fertilização in vitro é altamente regulamentado pelos Estados da sociedade internacional. Sua prática é permitida em alguns Estados e neles regulamentada, como, por exemplo, Chile, Guatemala e México, e expressamente proibida em outros, como, por exemplo, na Costa Rica, cuja regulamentação e polêmica a este respeito serão estudadas com maior rigor de detalhes no item que se segue.

4.2 O PROCEDIMENTO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DA SENTENÇA PROFERIDA NO CASO ARTAVIAMURILLO E OUTROS V. COSTA RICA

O Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Ricafoi julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 28 de novembro de 2012, e se constitui como um caso paradigmático no âmbito do Sistema Interamericano em relação à temática da reprodução assistida. No caso em questão, as vítimas, nacionais da Costa Rica, questionaram a violação de seus direitos garantidos na Convenção Americana de Direitos Humanos ante a proibição expressa, pela Câmara Constitucional da Suprema Corte daquele Estado, de realização da fertilização in

42

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica. Série C, nº 257. Sentença de 28 de novembro de 2012. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_257_ing.pdf>. Acessoem: 15 out. 2014.Parágrafo 66. 43 ―Assisted reproductive techniques or procedures are a group of different medical tratments used to help infertile individuals and couples achieve pregnancy; they include “the manipulation of both ovocytes and spermatozoids, or embryos […] for the establishment of a pregnancy.” The techniques include in vitro fertilization, embryo transfer, gamete intratubal transfer, zygote intratube transfer, intratubal embryo transfer, cryopreservation of ovocytes and embryos, oocyte donation and embryo donation and surrogate motherhood. Assisted reproduction techniques do not include assisted or artificial insemination‖. Idem. Parágrafo 63. 44 Idem. Parágrafos 63-65.

425


vitro. Foram alegadas violações aos seguintes artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos: artigo 1º que estabelece a obrigação dos Estados de proteger os direitos humanos; artigo 4(1), referente ao direito à vida; 11(2), referente à integridade pessoal na vida privada e familiar, 17(2), sobre a proteção da família e possibilidade de formação de uma família, e 24, que trata da igualdade perante a lei. Após todos os pedidos preliminares feitos pela Costa Rica terem sido rejeitados pela Corte Interamericana, foram consideradas as questões de mérito. Com relação ao direito à vida privada e familiar, a Corte Interamericana entendeu que, além de referido direito em sua acepção tradicional, qual seja, a de garantia do papel central da família na vida dos indivíduos, bem como de possibilidade de se formar uma família, referido direito também está relacionado à autonomia reprodutiva e ao direito ao acesso aos meios tecnológicos oriundos da medicina que sejam necessários para o exercício deste direito. A este respeito, é feita também menção ao artigo 16(e) da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, que garante às mulheres a liberdade de escolha na formação de sua prole, bem como o acesso à informação necessária a este propósito 45.A este respeito, a Corte Interamericana traz como premissa a interpretação evolutiva das disposições de direitos humanos insculpidas na Convenção Americana, trazendo também como referência a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluindo que, apesar de a fertilização in vitro não ter sido prevista na Convenção Americana no momento da elaboração de seu artigo 4(1), é seu dever o de interpretar referido instrumento à luz da evolução da sociedade internacional. Dessa maneira, faz uma extensa análise sobre quando se deve considerar o início da vida para o artigo 4(1) da Convenção Americana, concluindo que este ocorre a partir do momento em que o embrião é implantado no útero materno. Com essa interpretação, a Corte Interamericana decide que não houve violação ao artigo 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Quanto à proporcionalidade da proibição, pelo Estado da Costa Rica, ao procedimento da fertilização in vitro, a Corte Interamericana concluiu pela existência de uma rica normativa internacional que não permite que aquele Estado tenha qualquer margem de apreciação no momento de estabelecer uma norma restritiva de direitos às famílias costa-riquenhas. Neste sentido, considera que foram violados os artigos 5(1), referente à integridade pessoal,7, referente o direito à liberdade pessoal, 11(2), referente à integridade pessoal na vida privada e

45

A respeito dos direitos reprodutivos da mulher, ver FERRAZ, Carolina Valença (Coord.). Manual dos direitos da mulher. São Paulo: Saraiva, 2013. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010. PIOVESAN, Flávia (Coord.). Direitos humanos. 4. reimp. Curitiba: Juruá, 2011.

426


familiar, e 17(2), concernente à proteção à família, todos em relação ao artigo 1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, devendo a Costa Rica reparar as vítimas de referido caso, bem como a estabelecer as medidas necessárias para garantir a anulação de referida proibição, disponibilizando a fertilização in vitro como um dos tratamentos disponíveis para infertilidade e educando os funcionários do Poder Judiciário daquele Estado para uma perspectiva nãodiscriminatória no que diz respeito aos direitos reprodutivos. Não obstante os votos dissidentes e concorrentes que se seguiram a tal decisão, é possível concluir que a atuação da Corte Interamericana no Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica representa um potencial avanço à proteção dos direitos reprodutivos e ao direito à vida privada e familiar no continente americano.

4.3 O ENTENDIMENTO DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO S.H. E OUTROS V. ÁUSTRIA

No Caso S.H. e Outros v. Áustria, decidido pela Grande Câmara (Grand Chamber) da Corte Europeia de Direitos Humanos em 03 de novembro de 2011, dois casais de nacionalidade austríaca questionaram a norma interna daquele Estado sobre reprodução artificial, que proibiua doação de óvulos e esperma para a realização do procedimento da fertilização in vitro. Foram, dessa maneira, alegadas violações ao artigo 8º da Convenção Europeia, referente ao respeito pela vida privada e familiar, bem como a violação de referido artigo em conjunto com o artigo 14 da mesma Convenção, este último artigo atinente a não discriminação46. A alegação de violação ao artigo 8º da Convenção Europeiafoi feita em razão de os casais, impossibilitados de conceberem seus filhos por meios naturais, terem considerado violado seu direito a plena vida familiarcom a proibição da legislação austríaca. Em defesa da legislação adotada pela Áustria, a Alemanha e a Itália submeteram suas considerações47. A Alemanha, no caso, justificou suas considerações com base na proteção aos direitos das crianças concebidas mediante o método da fertilização in vitro, afirmando

46

O artigo 14 da Convenção Europeia, emendado pelo Protocolo nº 12, é um princípio autônomo, mas que apresenta caráter subsidiário nos julgados da Corte Europeia, sendo sempre analisado em conjunto com os demais artigos de referida Convenção. A referência a não discriminação é maior em casos da Corte Europeia de Justiça, que tem por objetivo garantir a aplicação da legislação da União Europeia em todos os Estadosmembros. 47 CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso S.H. e Outros v. Áustria. Sentença de 03 de novembro de 2011. Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/Pages/search.aspx#{"fulltext":["S.H. andOthers v. Austria"],"sort":["respondentAscending"],"itemid":["001-107325"]}>. Acesso em: 15 out. 2014. Parágrafos 6973.

427


possuir legislação idêntica à austríaca. A Itália, por sua vez, afirmou que o direito à medicina assistida para a reprodução entre casais não se insere no escopo do artigo 8º da Convenção Europeia, alegando ainda que, uma vez que referido tema não é revestido de amplo consenso entre os Estados europeus, é deixada aos Estados-membros da Convenção Europeia uma ampla margem de apreciação, no sentido, portanto, de que cabe aos Estados que sãoparte no Sistema Europeu estabelecerem a regulação que melhor lhes convier na temática da reprodução assistida. Por fim, a Itália concluiu que este é um ramo da medicina que ainda pode provocar graves riscos à vida das mulheres e das crianças, razão pela qual a proibição, pela Áustria, se fazia justificada. A margem de apreciação foi também levantada pelo European Centre for Law and Justice48. Também intervindo como terceiros no caso em referência, as organizações Hera Onlus e SOS InfertilitàOnlus alegaram que a infertilidade deveria ser considerada uma questão de saúde humana. Dessa maneira, deveria haver maior permissão quanto à reprodução assistida, devendo ser este o consenso no continente europeu. Não obstante, no entender das organizações, a proibição aos casais inférteis de recorrerem à fertilização in vitro para conceber sua prole poderia levá-los a praticar o chamado ―turismo de fertilidade‖, em que casais nacionais de Estados que proíbem práticas de reprodução assistida buscam conceber seus filhos em Estados com regulamentação ausente ou liberal neste sentido, pagando altos valores para a realização de tal prática49. Em sua decisão a Grande Câmara da Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que o conceito de vida privada delimitado no artigo 8º da Convenção Europeia deve ser interpretado de forma ampla, abarcando, dentre outros direitos, o direito à vida sexual. Amparando-se nas decisões proferidas em casos decididos anteriormente, a Corte Europeia decidiu pela aplicabilidade do artigo 8º da Convenção Europeia aos casais que buscam a medicina assistida para reprodução, o que inclui o procedimento de fertilização in vitro50. Contudo, os juízes de referida Corte decidiram que esta questão, dada sua repercussão ética e moral diantedo rápido desenvolvimento tecnológico, deve estar sujeita a uma ampla margem de apreciação51 pelos Estados que ratificaram a Convenção Europeia de direitos humanos, decidindo, portanto, que a norma austríaca que proibia a prática de reprodução assistida almejada pelos autores não violou o artigo 8º da Convenção Europeia, tampouco o artigo 14. 48

Idem. Parágrafos 75-76. Idem. Parágrafos 74-75. 50 Idem. Parágrafos 80-82. 51 Sobre a teoria da margem de apreciação, ver BOGDANDY, Arminvon. PIOVESAN, Flávia. ANTONIAZZI, Mariela Morales (Coord.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica: emergência de um novo direito público. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, pp. 507-520. 49

428


Em opinião separada, o juiz Vincent A. de Gaetano considerou quea decisão da Corte não significou uma negação dos direitos fundamentais dos casais que buscavam a realização do procedimento da fertilização in vitro, mas sim um reconhecimento positivo e um avanço na proteção irrestrita aos direitos humanos independentemente dos avanços da medicina e de eventuais questões éticas e morais que tais avanços possam representar. No que diz respeito à aplicação da margem de apreciação pela Corte Europeia no presente caso, a conclusão ventilada no presente trabalho é a de que o grau de discricionariedade atribuído à Áustria para regulamentar a questão referente à reprodução assistida foi extremamente amplo, de modo que a decisão daquela Corte não foi capaz de representar, em pleno século XXI, um avanço na interpretação de referido tema, deixando uma lacuna muito grande em uma eventual interpretação evolutiva dos direitos humanos ante o avanço da medicina e das técnicas de reprodução assistida, e enfraquecendo o espírito contra majoritário do sistema internacional de proteção aos direitos humanos52.

CONCLUSÃO

No contexto de humanização do Direito Internacional Público e de justicialização do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que contaram com amplo desenvolvimento e cruciais avanços nas últimas seis décadas, verificou-se o surgimento e a consolidação dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, e, em especial, das cortes regionais de direitos humanos. Dada a importância de sua jurisprudência para o estudo do Direito Internacional Público, optou-se no presente trabalho por estudar as principais características das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos. A efetividade das decisões proferidas em ambas as cortes permite a afirmação de que tais sistemas contribuem para uma crescente evolução da interpretação dos direitos humanos ao redor do globo, beneficiando a humanidade como um todo. Isso se verifica, em especial, em temas de grande impacto social, como o tema que inspirou a realização do presente trabalho, a saber, o da possibilidade de

52

Há quem critique, contudo, a utilização da teoria da margem de apreciação pela Corte Europeia de Direitos Humanos, afirmando que em sua aplicação em casos envolvendo direitos das minorias, em que se concentram temas religiosos, ocorre uma verdadeira denegação da justiça internacional, que tornaria impune algumas tradições majoritárias nacionais. A esse respeito, ver RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 170.

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realização do procedimento de fertilização in vitro por casais impedidos de conceber seus filhos naturalmente. Após o estudo sobre os sistemas regionais de proteção Interamericano e Europeu, com as principais distinções a eles atribuídas, passou-se ao estudo concreto da produção jurisprudencial de ambos os sistemas no que tange ao procedimento da fertilização in vitro. Os casos paradigmáticos e mais recentes decididos nas duas cortes regionais, quais sejam, Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Rica, decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2012, e o Caso S.H. e Outros v. Áustria, cuja decisão data do ano de 2011, refletemde forma clara qual o posicionamento das instituições existentes nos Estados de ambos os continentes com relação à referida temática. Ainda, denota-se, em conformidade com as decisões estudadas, que, no caso da fertilização in vitro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos na decisão do Caso ArtaviaMurillo e Outros v. Costa Ricamostrou-se mais evoluída que a Corte Europeia de Direitos Humanos, não apenas na profundidade com que a temática foi tratada, mas também na relevância das referências feitas ao próprio Sistema Europeu e ao sistema global de proteção aos direitos humanos em questões atinentes aos direitos reprodutivos das mulheres e ao direito à vida privada e familiar.No caso da decisão proferida no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos, foi possível concluir que, mais uma vez, aquela Corte se valeu da aplicação da teoria da margem de apreciação para se escusar de decidir positivamente a respeito de um tema tão importante para a sociedade internacional, ou mesmo de discuti-lo com a profundidade que lhe é intrínseca. Dessa maneira, é possível concluir que a proteção aos direitos humanos deve acompanhar o avanço da sociedade internacional como um todo, não sendo possível que as cortes

regionais

de

direitos

humanos

não

assumam

uma

verdadeira

postura

contramajoritáriacom vistas a garantir a efetiva proteção dos direitos humanos, consubstanciada, no caso, nos direitos reprodutivos e familiares de um lado, e a responsabilidade que deve advir dos avanços da tecnologia, de outro.

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432


O DESAFIO DE CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS E A RESPONSABILIDADE DOS DEMAIS ATORES INTERNACIONAIS PARA COM A SUA EFETIVAÇÃO Lucília Napoleão Barros1

1 INTRODUÇÃO: A HISTORICIDADE DA PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE Antes do Século XVIII, o tratamento de doenças era predominantemente realizado por entidades privadas, como, por exemplo, igrejas e instituições de caridade. Instituições estatais só intervinham em casos de epidemias ou doenças pandêmicas. Mesmo assim, basicamente atuavam no sentido de determinar quarentenas e estruturar esforços destinados ao fornecimento de saneamento básico adequado nas grandes cidades. Com o advento da Revolução Industrial e as péssimas condições de trabalho que se estabeleceram em função da produção em massa, aumentaram o número de epidemias e outros graves problemas de saúde2, o que fez com que a conscientização a cerca da importância da saúde pública também crescesse consideravelmente.3 Em outras palavras, a necessidade de contenção das epidemias e outros graves problemas de saúde, tornou evidente a urgência de se constituir, no âmbito das políticas públicas, medidas de saúde destinada à melhoria das condições de vida no espaço urbano.4 No entanto, conforme bem esclarece, Patrícia Luciane, a preocupação com a busca de solução para as doenças graves que se alastravam, contagiando vasto contingente de pessoas, tinha origem econômica, tendo em vista a queda de produção gerada pelo grande número de afastamentos e falecimentos.5

1

Mestre em Ciências Jurídico-Políticas e doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. 2 OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p.3 3 Sobre o aumento da preocupação com a saúde pública ver: HESTERMEYER, H. (2007). Human Rights and the WTO: the Case of Patents and Access to Medicines. New York: Oxford, p.83; BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p. 1. 4 Em mesma linha, ver: TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 10 5 CARVALHO, P. L. (2007). Patentes Farmecêuticas e Acesso a Medicamentos. São Paulo: Atlas, p. 15.

433


Sendo assim, é possível afirmar que os movimentos de saúde pública tiveram suas raízes na Inglaterra, como desencadeamento das circunstâncias geradas pela Revolução Industrial.6 Na segunda metade do Século XIX, foram dados os primeiros passos na direção do estabelecimento de uma organização internacional de saúde. Diante da ampliação das relações comerciais e da melhoria das condições de transporte, emergiu a necessidade de coordenação de políticas destinadas à prevenção das doenças transmissíveis no plano internacional. Em 1851 foi realizada em Paris, a primeira Conferência Sanitária Internacional. A conferência teve, como maior propósito, não a melhoria das condições globais de saúde mas, sim, a proteção dos Estados Europeus contra doenças estrangeiras, dentre as quais destacavam-se, naquela época: a cólera, a peste e a febre-amarela.7 Nas décadas seguintes, sucessivas conferências sobre questões relacionadas com os cuidados de saúde, a prevenção de doenças e o saneamento básico foram realizadas. Nesse contexto caracterizado pela coordenação de esforços, numa tentativa de solucionar problemas comuns, surgiram as primeiras organizações internacionais. Em 1902 foi criada a Pan-American Sanitary Bureau – PASB.8 No ano seguinte, a 11ª Conferência Sanitária Internacional destacou-se das anteriores por fornecer novos esclarecimentos sobre a transmissão das doenças supra mencionadas, contribuindo para que medidas mais eficazes pudessem ser tomadas e também porque resultou na decisão de se proceder à criação de um escritório internacional de saúde (Office International d‟Hygiène Publique – OIHP) O OIHP foi fundado quatro anos depois, em 1907com a assinatura do Acordo de Roma pelos delegados dos seguintes Estados: Bélgica, Brasil, Egito, Espanha, Estados Unidos da América, França, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia e Suíça.9 Todavia, em 22 de Julho de 1946 o OIHP foi dissolvido e seu serviço epidemiológico foi, oficialmente transferido para a Comissão Interina da OMS no dia 1º de Janeiro de 1947.10

6

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 10; LOUGHLIN, K., & BERRIDGE, V. (2002). Global Health Governance: Historical Dimensions of Governance. Geneva: World Health Organization, p. 7. 7 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 12; BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p. 1. 8 Trata-se da primeira agência internacional de saúde. Posteriormente, a PASB transformou-se na Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS. Constitui hoje um organismo especializado do Sistema Interamericano e funciona como um escritório regional para as Américas, vinculado à OMS. 9 OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p. 16. 10 Informação obtida dos ―Archives of the Office International d'Hygiène Publique (OIHP)‖, disponível no site da OMS: http://www.who.int/archives/fonds_collections/bytitle/fonds_1/en/.

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A emergência das primeiras organizações internacionais de saúde constitui parte e ao mesmo tempo fruto de um movimento complexo e muito mais amplo de esforços para estabelecer uma cooperação internacional, que já vinha se desenvolvendo ao longo do Século XIX. 11 Paulatinamente foi se consolidando a consciência de que os Estados são responsáveis pela saúde de sua população. E assim, conforme os desenvolvimentos precedentes demonstraram, foram sendo estabelecidas as bases necessárias para o reconhecimento do direito à saúde como um direito humano em níveis nacional, regional e internacional.12 Cumpre mencionar que, no âmbito do processo de criação das Nações Unidas, o projeto inicial de sua Carta constitutiva, elaborado na conferência de São Francisco, em 1945, não fazia nenhuma referência específica ao termo ―saúde‖.13 No entanto, as delegações do Brasil e da China apresentaram memorando propondo a convocação de uma conferência encarregada de estabelecer a criação de uma organização sanitária internacional.14 A proposta dessas duas delegações foi aceita por unanimidade. Assim, o termo ―saúde‖ foi incluído no texto da carta da ONU, nos artigos 13.º, 55.º, 56.ºe 62.º. 15 Em Fevereiro do ano seguinte (1946), foi estabelecido pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas um Comitê Técnico Preparatório com a tarefa de definir a agenda da Conferência Internacional de Saúde em Nova York, e de elaborar um projeto de Constituição para a criação da Organização Mundial de Saúde. No dia 22 de Julho de 1946 foi aprovada a Constituição da OMS e, em seguida, foi designada uma Comissão Provisória para realizar as atividades essenciais relativas a questões de saúde pública, até que a criação da nova organização fosse consolidada.16

11

LOUGHLIN, K., & BERRIDGE, V. (2002). Global Health Governance: Historical Dimensions of Governance. Geneva: World Health Organization, p. 8. 12 Nesse sentido, TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 14. Para mais detalhes sobre a origem histórica da proteção da saúde veja: WHO. (1947). Development and Constitution of the WHO. Chronicle of the World Health Organization , 1, pp. 1-196; e, OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958; e, BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff. 13 BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p.9. 14 Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p. 38; BURCI, G. L., & VIGNES, C.-H. (2004). World Health Organization. Netherlands: Kluwer Law International, p. 15. 15 BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff, p.9; Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud. Ginebra, 1958, p. 38. TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 28. 16 GRAD, F. P. (2002). The Preamble of the Constitution of the World Health Organization. Bulletin of the World Health Organization, 80 (12),p. 981.

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De acordo com o Preâmbulo da Constituição da OMS a saúde passou a ser definida como ―um estado de completo bem-estar físico, mental e social‖. Desde então conceito de saúde deixou de estar exclusivamente relacionado com (in)existência de doenças. Logo depois, o direito à saúde foi novamente mencionado no artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e, no artigo 12.º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de1966. Posteriormente, o direito à saúde foi sendo incorporado nos diversos instrumentos de direitos humanosinternacionais e regionaissubsequentes, os quais abordaram-no de distintas formas. Alguns destes instrumentos são dotados de aplicação geral, outros, no entanto, referem-se a grupos específicos como, por exemplo, mulheres, crianças e trabalhadores migrantes.17 No plano internacional, para além dos dispositivos supra citados18, o direito à saúde encontra-se previsto no artigo 5.º, alínea “e” inciso (iv) da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965; artigo 11.º 1) alínea “f” e no artigo 12.º da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres de 1979; no artigo 24.º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989; nos artigos 28.º, 43.º “e” e 45.º alínea “c” A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Suas Famílias de 1990; e, no artigo 25.º da Convenção sobre os direitos das Pessoas com Deficiência.19 No plano regional, o direito à saúde encontra-se reconhecido no artigo 11.º da Carta Social Européia de 1961 revista em 1996; no artigo 16.º da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos de 1981; e, no artigo 10.º do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1988.20 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 e a Convenção Européia para aPromoção dos Direitos Humanose das Liberdades Fundamentaisde1950 também contêm disposições relacionadas com a saúde, tais como o direito à vida, a proibição da

17

OHCHR, The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 9. Em determinadas ocasiões, as disposições destinadas aos grupos específicos conferem proteção mais eficaz que as disposições de aplicação geral, presentes no artigo 25.º da DUDH e no artigo 12.º do PIDESC. Nesse sentido, TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 62. 18 Artigos 25.º da DUDH e 12.º do PIDESC. 19 OHCHR. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 10. 20 Todas as três organizações de direitos humanos incorporaram o direito à saúde nos seus instrumentos normativos. No entanto, conforme bem observado por Brigit Toebes, resta saber se características de cada região foram incluídas nos respectivos textos normativos. TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 73.

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tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes e o direito à vida privada e familiar.21 Contudo, concordamos com Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo quando afirmam que: ―[a]s formulações adotadas nesses instrumentos normativos são ainda demasiado vagas e indeterminadas, fornecendo padrões ainda pouco precisos para a avaliação da atuação estadual. Torna-se, por isso, necessário ir mais longe para dar substância ao direito humano em presença‖.22

2 NECESSIDADE DE UMA DELIMITAÇÃO MAIS PRECISA DO CONCEITO DE DIREITO À SAÚDE

Conforme vimos anteriormente, o direito à saúde encontra-se incorporado em diversos instrumentos internacionais, regionais e nacionais. No entanto, muitos afirmam que a abrangência do seu significado dificulta o estabelecimento preciso das obrigações às quais dá ensejo, comprometendo sua efetiva realização. Desde sua primeira codificação, o direito à saúde foi concebido num formato abrangente, de modo a incluir diversos aspectos relacionados com a saúde, inclusive, o direito a um padrão de vida adequado para uma vida saudável. 23 O direito à saúde, de acordo com o Preâmbulo da Constituição da OMS, é definido como um ―estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.‖ O referido texto destaca que ―gozar do melhor estado de saúde possível de se atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social‖; esclarece que ―a extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir esse grau mais elevado de saúde‖; e, ainda assevera que ―os Governos são responsáveis pela saúde de seus povos e, portanto, devem adotar as medidas sanitárias e sociais que se revelarem adequadas‖.24 Como já se poderia prever, a conceituação de saúde proposta pela OMS não foi imune a críticas. Para além de destacarem sua falta de operatividade, muitos críticos alegavam que

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OHCHR. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 10 MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo: Almedina, p.13. 23 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 18. 24 Preâmbulo da Constituição de 1946 da Organização Mundial da Saúde (OMS) – a qual nos referiremos como ― Constituição da OMS‖ daqui por diante. 22

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sua definição corresponderia à de felicidade e, que um estado de ―completo bem-estar‖ seria praticamente impossível de ser alcançado.25 A amplitude do conceito de saúde, conforme definido na Constituição da OMS, gera uma angústia compreensível nos sanitaristas que vêem seu trabalho atrelado a um objeto tão vasto. Por outro lado, Sueli Dallari pondera que ―qualquer redução na definição desse objeto o deformará irremediavelmente‖.26 Ao nosso ver, não se trata de reduzir o conteúdo abrangido pelo direito à saúde mas sim de identificar e interpretar seus elementos, a fim de alcançar uma noção mais precisa do seu significado e da extensão das obrigações às quais dá ensejo. No intuito de promover maior esclarecimento sobre a amplitude do direito à saúde, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotou, em 2000, o Comentário Geral 14, sobre o ―direito ao melhor estado de saúde atingível‖ assegurado no artigo 12.º do PIDESC.27 De acordo com o entendimento exteriorizado pelo Comitê no referido Comentário, a saúde constitui um direito humano fundamental. Trata-se de um direito indispensável à realização de outros direitos humanos como, por exemplo, o direito à vida, à dignidade humana, à alimentação, ao alojamento, ao trabalho, à educação, à igualdade, à não discriminação, ao acesso à informação, às liberdades de associação, reunião e movimento.28Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo argumentam que: ―[e]ste entendimento amplo e relacional do direito à saúde afigura-se de grande relevo, na medida em que pressupõe uma relação complexa entre o direito à saúde e outras variáveis importantes associadas à pobreza e ao subdesenvolvimento.‖ 29

No artigo12.º 1) do PIDESC os Estados Partes reconhecem o direito que toda pessoa tem de desfrutar do ―melhor estado de saúde física e mental possível de atingir‖. Tal entendimento não se restringe apenas ao direito aos cuidados de saúde. Conforme destacado pelo Comitê, a redação do artigo 12.º 2) do Pacto demonstra o reconhecimento de que o direito à saúde abrange uma série de fatores socioeconômicos que viabilizam as condições necessárias ao gozo de uma vida saudável e, que este direito estende-se aos fatores

25

DALLARI, S. G. (1988). O Direito à Saúde. Revista de Saúde Pública, p58. DALLARI, S. G. (1988). O Direito à Saúde. Revista de Saúde Pública, p59. 27 General Comment No. 14 (2000) - The right to the highest attainable standard of health (article 12 of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights). 28 General Comment No. 14 (2000) paras. 1e 3. 29 MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo: Almedina, p.15. 26

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determinantes básicos da saúde como alimentação, nutrição, alojamento, o acesso à água limpa e potável e condições sanitárias adequadas, condições salubres de trabalho e um meio ambiente sadio.30 Contudo, o direito à saúde não deve ser entendido como direito a ―ser saldável‖. Não se pode esperar que o Estado garanta proteção aos seus cidadãos contra todas as possíveis causas de enfermidade ou incapacidade. Ou seja, o Estado não pode ser responsabilizado pelas condições adversas decorrentes, por exemplo, de doenças genéticas, da susceptibilidade individual ou do exercício do livre arbítrio dos indivíduos que voluntariamente assumem riscos desnecessários, incluindo a adoção de estilos de vida pouco saudáveis. Do mesmo modo, o direito à saúde não deve constituir um direito ilimitado a receber cuidados médicos para toda e qualquer doença ou deficiência que possa ocorrer. Em vez disso, o direito à saúde deve ser interpretado como um direito ao gozo de uma variedade de instalações e condições necessárias à realização e manutenção de uma boa saúde, cuja promoção configura responsabilidade do Estado.31 De acordo com o Comitê, os Estados têm a obrigação de adotar com prioridade, medidas destinadas à prevenção, ao tratamento e controle de doenças epidêmicas e endêmicas.32 Outra relevante contribuição para maior clarificação da natureza do direito a saúde e de como o mesmo poderá ser alcançado, consiste na criação do mandato do Special Rapporteur on the right of everyone to the highest attainable standard of physical and mental health, em 2002, pela OMS juntamente com a Comissão de Direitos Humanos (hoje, Conselho de Direitos Humanos).

3 DIREITO À SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO

Enquanto as necessidades estão relacionadas com o ―ter‖, os direitos estão associados ao ―ser‖. Ao distinguir os ―direitos‖ das ―necessidades‖, Vivek Neelakantan argumenta que o direito constitui uma prerrogativa do indivíduo passível de execução por um tribunal de justiça e implica uma obrigação aos governos de garanti-lo; a necessidade, por sua vez, constitui reflexo das aspirações do povo e não gera, necessariamente, obrigações aos governos 30

General Comment No. 14 (2000) para. 4. General Comment No. 14 (2000) paras. 8 e 9; ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 17. 32 General Comment No. 14 (2000) para. 44, c). 31

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relativas à sua satisfação. Para Vivek, o desenvolvimento dos direitos humanos e sua realização refletem a existência de um comprometimento fundamental com a proteção do bem-estar e da dignidade dos indivíduos de todas as sociedades do globo.33 Segundo observam, Jónatas Machado e Vera Lúcia Raposo, os direito humanos ―constituem hoje o coração do direito internacional…fornecem um fundamento de legitimidade e um padrão de conformação do direito internacional.‖34 Partindo-se do princípio de que todos os indivíduos são titulares de direitos humanos, a adoção de uma abordagem de direitos humanos para o direito à saúde certamente potencializaria sua força normativa. A caracterização do direito à saúde como um direito humano faz com que as necessidades básicas de saúde sejam reenquadradas de modo a integrarem ao conteúdo do direito à saúde tornando-se portanto, pertencentes ao rol dos direitos humanos.35 Tomemos como exemplo, a questão da imunização infantil. Se a imunização infantil for entendida a partir de uma perspectiva de direitos humanos, deixa de ser apenas uma exigência médica ou uma medida preventiva de saúde pública para tornar-se um direito de toda criança e um dever governamental. A concessão de vacinas não poderá ser vista como uma ação de ―caridade‖ mas sim, como uma obrigação cujo cumprimento escapa da discricionariedade do governo. Consequentemente, o governo deverá garantir que todas as crianças tenham acesso às vacinas adequadas. Assim, um programa de imunização do governo não poderá ser negociado ou afastado devido a restrições financeiras ou em função de outras prioridades.36 O direito a ter saúde e permanecer saudável, se interpretado à luz dos direitos humanos, representa, não apenas uma questão de natureza médica, técnica e econômica, mas também, uma questão de justiça social e de imposição de obrigações concretas aos governos dos Estados.37 O entendimento do direito à saúde como direito humano gera, portanto, impacto direto na determinação das prioridades dos Estados no que diz respeito à aplicação dos seus 33

NEELAKANTAN, V. (2006). Tracing Human Rights In Health. Mumbai: CEHAT, p. 11. MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos. São Paulo: Almedina, p. 5. 35 Em sentido semelhante, confira: MEIER, B. M., & MORI, L. M. (2005). The Highest Attainable Standard: Advancing a Collective Human Right . Columbia Human Rights Law Review , 37, p. 125. 34

36

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, pp. 21-22.. ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 21. Para mais detalhes sobre a relevância da adoção de uma abordagem de justiça social para o direito à saúde ver também: NEELAKANTAN, V. (2006). Tracing Human Rights In Health. Mumbai: CEHAT, p. 41. 37

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recursos. Assim, ao estabelecerem suas políticas públicas, os governos são forçados a considerar a realização dos direitos humanos no âmbito do desenvolvimento de suas políticas públicas.38 Compartilhamos, portanto, do entendimento exteriorizado por Judith Asher, segundo o qual, o direito à saúde deve ser interpretado como um direito universal, fundamentado na dignidade e integridade de todos os indivíduos. Sendo assim, a adoção de uma perspectiva de direitos humanos para o direito à saúde implica na compreensão de que indivíduos e grupos possuem um rol definido e inegociável de direitos relacionados com a saúde, o que torna os governos juridicamente responsáveis por assegurar que esses direitos sejam efetivamente desfrutados por seus cidadãos.39

4 OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS RESULTANTES DO DIREITO À SAÚDE

Como vimos anteriormente, o direito à saúdeencontra-se positivado nos diversos tratadosinternacionais de direitos humanos. No entanto, as disposições destes tratados, nãoespecificam com detalhes suficientesas obrigaçõesque impõem aos governos.40 No Comentário Geral 3, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais esclarece que os Estados têm a obrigação fundamental de assegurar a satisfação em níveis mínimos essenciais referentes a cada um dos direitos estabelecidos pelo Pacto.41 No âmbito de suas obrigações fundamentais relativas ao direito à saúde, os Estados têm um dever imediato de garantir um padrão mínimo de cuidados básicos de saúde a todos os setores de sua população, independentemente de suas respectivas situações econômicas.42 Considerando que a promoção de um padrão mínimo de saúde, em certa medida, é dependente de recurso econômico, os Estados devem adotar políticas de saúde que priorizem assegurar:

38

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 21; HUNT, P., & BACKMAN, G. (2008). Health Systems and the Right to the Highest Attainable Standard of Health. Health and Human Rights , 10, 1, p. 81. 39 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 29. 40 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 29. 41 CESCR General Comment 3, The nature of States parties obligations (Art. 2, par.1) (Fifth session, 1990), contained in document E/1991/23, para. 10. 42 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NOGs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 50.

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direito de acesso equitativo às instalações, bens e serviços de saúde sem discriminação, especialmente em relação aos grupos mais vulneráveis ou marginalizados;

acesso à alimentação mínima essencial, nutricionalmente adequada e segura;

acesso ao abrigo, à moradia, ao saneamento básico e, ao suprimento adequado de água potável; e,

a provisão de medicamentos essenciais.43

Em outras palavras, o núcleo essencial de obrigações relativas ao direito à saúde, nos termos em que é assegurado no artigo 12.º do PIDESC, requer que os Estados administrem seus recursos disponíveis de modo a investir na adoção de medidas de saúde pública que priorizem a extensão equitativa dos cuidados básicos e dos serviços preventivos de saúde. Nesse contexto, os Estados encontram-se, também obrigados, a tomar medidas destinadas à correção das desigualdades e desequilíbrios existentes na distribuição dos seus recursos, para melhorar as condições de acesso a saúde pelas classes menos favorecidas da sociedade.44 Voltamos a destacar que o direito à saúde não deve ser entendido como direito a ser saldável. Assim, não se pode esperar que o Estado garanta proteção aos seus cidadãos contra todas as possíveis causas de enfermidade ou incapacidade. Ou seja, o Estado não pode ser responsabilizado por condições adversas decorrentes, por exemplo, de doenças genéticas, da susceptibilidade individual ou do exercício do livre arbítrio dos indivíduos que voluntariamente assumem riscos desnecessários, incluindo a adoção de estilos de vida pouco saudáveis. Do mesmo modo, o direito à saúde não deve constituir um direito ilimitado a receber cuidados médicos para toda e qualquer doença ou deficiência que possa ocorrer. Em vez disso, o direito à saúde deve ser interpretado como um direito ao gozo de uma variedade de instalações e condições necessárias à realização e manutenção de uma boa saúde, cuja promoção configura responsabilidade do Estado.45 Assim, depreende-se que manutenção da saúde deve ser reconhecida pelos Estados como um importante pré-requisito da dignidade humana.46

43

WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 25 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NOGs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 51. 45 General Comment No. 14 (2000) paras. 8 e 9; ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 17. 46 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 350. 44

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Cumpre mencionar que os Estados serão sempre os responsáveis diretos pela proteção e promoção dos direitos humanos definidos nos tratados e demais convenções de que fizerem parte.47 Algumas obrigações definidas nesses instrumentos podem ser realizadas de forma progressiva, tendo em conta as realidades econômicas e o estágio de desenvolvimento de cada Estado. Outras, por sua vez, são de efeito imediato, e impõem aos Estados o dever de um assegurar um padrão mínimo de cuidados essenciais de saúde.

4.1 OBRIGAÇÕES DE REALIZAÇÃO PROGRESSIVA

Nem todos osaspectos dosdireitos estabelecidos pelo Pactopodem ser realizados imediatamente. Entretanto, os Estado devem demonstrar, no mínimo, que dentro dos recursos disponíveis, estão tomando todas as medidas possíveis para melhor proteger e promoveros direitosdecorrentes do Pacto.48 Nesse sentido, o artigo 2.º 1) determina que cada Estado Parte do Pacto deve comprometer-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a atingir progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. Em muitos casos torna-se indispensável a adoção de uma legislação adequada para garantir a exequibilidade desses direitos. Contudo, a elaboração de leis, por si só, não constitui uma resposta suficiente às obrigações do PIDESC. Para garantir a fruição generalizada e satisfatória dos direitos econômicos, sociais e culturais, é preciso que os Estados também adotem as medidas administrativas, judiciais, políticas, econômicas, sociais e educacionais que se fizerem necessárias.49

47

WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 22. WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 23. 49 UN. ( 2005). Economic, Social and Cultural Rights Handbook for National Human Rights Institutions. New York and Geneva: UNITED NATIONS, p. 9. Veja, também: UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, paras. 16-18. 48

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Uma leitura do artigo 2.º 1) em conjunto com o artigo 12.º 1) do PIDESC permite concluir que os Estado encontram-se subordinados à obrigação de realizar o direito à saúde ‗progressivamente, até o máximo deseus recursos disponíveis e, pelos meios adequados‘.50 A forma como esta obrigação encontra-se redigida, abre margem para que os Estados encontrem subterfúgios para escaparem de sua responsabilidade. Nesse sentido, Brigit Toebes adverte que em relação à frase ‗até o máximo de seus recursos disponíveis‘, concede aos governos a possibilidade de escusarem-se de cumprir com suas obrigações sob alegação de insuficiência de recursos. Já o termo ‗atingir progressivamente‘ sugere aos Estados a idéia de que eles podem ir adiando o cumprimento de suas ad infinitum.51 Mas o verdadeiro sentido do artigo 2.º 1) determina que os Estados comecem, imediatamente, a tomar as medidas necessárias para assegurar a realização dos direitos do Pacto. Esse entendimento já havia sido exteriorizado em 1987, pelos Princípios de Limburg52e, posteriormente confirmado pelo Comentário Geral 14, ao afirmar que o PIDESC ―impõe claramenteum dever aos Estados detomartodas as medidas necessáriaspara garantirque todos tenham acessoaos bens e serviços de saúde, para que eles possamdesfrutar, assim que possível, o mais alto nível possível de saúdefísica e mental‖.53 Para tanto, a Comissão dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sublinhou que os Estados devem estabelecer um a estratégia nacional para assegurar a todos, a fruição do direito à saúde. Recomendou que no âmbito de suas estratégias os Estados definissem os objetivos a serem alcançados, bem como indicadores e valores de referência.54 O estabelecimento de um sistema apropriado de indicadores e parâmetros de referência é fundamental para que se possa verificar se um Estado está aperfeiçoando ou não seu sistema de saúde e realizando, progressivamente o direito ao mais elevado nível de saúde possível. 55 Além disso, os indicadoresdevemser desagregados de modo que o Estado possa verificar, com maior clareza e precisão, o alcance de sua atuação em cada área.

50

TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 294. 51 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 294. 52 ―All States parties have an obligation to begin immediately to take steps towards full realization of the rights contained in the Covenant.‖ UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para 16. 53 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 53. 54 Confira: WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 24. 55 Ver: UNHRC. Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. A/HRC/4/28 (17 January 2007), para. 91.

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Contudo, a recolha desses dados desagregados constitui um enorme desafio para aqueles Estados que, em razão de sua capacidade limitada, não possuem as condições necessárias para coletarem dados desagregados confiáveis.56 Outro aspecto relevante sobre a desagregação dos dados, tendo em conta a preocupação com as minorias sociais, diz respeito ao fato de que a condição de vulnerabilidade e a existência de discriminação são contextuais. Assim, enquanto determinado grupo pode ser especialmente vulnerável em um contexto, pode não ser em outro. Ou seja, num contexto nacional particular, pode haver a necessidade de se dar prioridade à coleta de certos dados desagregados, ao invés de outros.57 Importa mencionar que a obrigação de realizar progressivamente o direito à saúde, impõe aos Estados o dever de administrar seus recursos disponíveis com extrema eficácia.58

4.2 OBRIGAÇÕES DE EFEITO IMEDIATO

Ao mesmo tempo que o PIDESC prevê a realização progressiva de determinadas obrigações, reconhecendo a existência de limitações quanto aos recursos disponíveis, também impõe aos Estados Partes obrigações de efeito imediato.59 As obrigações de efeito imediato aplicam-se a todos os Estados, independentemente de condições adversas como, por exemplo, insuficiência extrema recursos econômicos. Em outras palavras, a situação econômica de um Estado não pode impedir o cumprimento imediato de suas obrigações fundamentais.60 Tratando-se das obrigações de caráter imediato, cumpre destacar os artigos 2.º 2) e 3.º do PIDESC, por constituírem constituem cláusulas de não discriminação. Lidos juntamente com o artigo 12.º mesmo Pacto, determinam que o direito à saúde deve ser exercido por todos, sem discriminação de raça, cor, sexo, idade, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional, status social, condição econômica, nascimento ou qualquer outra

56

Commission on Human Rights.Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. E/CN.4/2006/48 (3 March 2006), para. 49 b). 57 Commission on Human Rights.Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. E/CN.4/2006/48 (3 March 2006), para. 49 b). 58 Nesse sentido, UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, paras. 23-24. 59 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 30. 60 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 23.

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situação.61Trata-se de uma lista não exaustiva. Ou seja, a proibição de discriminação refere-se a toda e qualquer área que prejudique o exercício do direito à saúde.62 Muitas das medidas destinadas a eliminar a discriminaçãono âmbito da saúde, podem ser executadas com poucos recursos, como, por exemplo,através da adoção, modificação ou revogaçãodelegislaçãoouda realização de campanhas informativas. Sendo assim, mesmo em tempos deseveras restrições de recursos, os membros mais vulneráveis da sociedade devem ser protegidos pela adoção deprogramas de saúde que possam ser viabilizados a um custo relativamente baixo.63 No Comentário Geral 14 o Comitê adverte que a alocação inadequada dos recursos de saúde pode conduzir à discriminação, ainda que não seja evidente. E recomenda, portanto, que os Estados priorizem a aplicação de seus recursos em cuidados de saúde primários e preventivos que beneficiem a maior da população ao invés de investir em serviços curativos de saúde caros que favoreçam desproporcionalmente uma parcela pequena e privilegiada da população.64 Também encontra-se incluído no rol de obrigações imediatas de um Estado, o dever de garantir a participação de seus cidadãos nos processos de tomada de decisões que afetam sua saúde e seu bem-estar.65

4.3 OBRIGAÇÃO DE RESPEITAR, PROTEGER E REALIZAR

As obrigações dos Estados relativas aos direitos humanos são, geralmente, classificadas em obrigações de respeitar, de proteger e de realizar. A implementação dessas obrigações pode requerer dos Estados uma atuação ora positiva, ora negativa, ou ambas ao mesmo tempo. A obrigação de respeitar tem sido classificada pela doutrina como uma obrigação de natureza negativa, enquanto as obrigações de proteger e de realizar são entendidas como obrigações de natureza positiva. No que diz respeito ao direito à saúde, a obrigação de respeitar proíbe os Estado de elaborarem leis, desenvolverem programas ou estabelecerem políticas de governo que, direta 61

Em mesma linha, TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 296. 62 UN. ( 2005). Economic, Social and Cultural Rights Handbook for National Human Rights Institutions. New York and Geneva: UNITED NATIONS, p. 13. 63 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 18. 64 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 19. 65 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual. London: Commonwealth Medical Trust, p. 23.

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ou indiretamente possam resultar em danos corporais, a morbidade desnecessária,e da mortalidadeevitável.66 A obrigação de respeitar o direito à saúde requer que os governos se abstenham de tomar qualquer medida que possa limitar ou impedir o acesso à saúde por todas as pessoas, sem discriminação. De acordo com o Comentário Geral 14, os Estados devem se privar de todos os atos que venham obstruir o acesso preventivo, curativo ou paliativo aos cuidados e serviços de saúde pelos diversos setores da população, inclusive, presos ou detidos, os requerentes de asilo, imigrantes ilegais e demais minorias sociais.67 Em mesma linha, Brigit Toebes ressalta que os Estados não podem impedir o acesso aos serviços de saúde disponíveis.68 Cumpre mencionar que, além de não poderem adotar políticas discriminatórias de saúde, os Estados encontram-se obrigados a absterem-se de: impedir a realização de práticas preventivas e curativas tradicionais; de comercializar medicamentos inseguros; da aplicação de tratamentos médicos coercivos (a não ser em caráter excepcional69, para o tratamento de doença mental ou para prevenção e controle de doenças transmissíveis).70 A obrigação de respeitar apresenta tanto uma dimensão associada à liberdade quanto uma dimensão social. Relativamente à liberdade, a obrigação de respeitar traduz-se no dever de respeitar a integridade do indivíduo. A dimensão social, entretanto, corresponde a possibilidade de livre utilização das condições subjacentes à saúde, dentre as quais, destacamos o acesso às instalações e serviços de saúde disponíveis; à água potável e ao saneamento básico.71 Brigit Toebes atenta para o fato de que a obrigação de respeitar o acesso igualitário aos cuidados de saúde encontra-se intimamente relacionada com a terceira obrigação de realizar, mais especificamente, com o dever de ‗assegurar‘ o acesso aos cuidados de saúde.72 Nesse sentido a autora argumenta que:

66

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NOGs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 35. 67 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 34. 68 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law.Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 316. 69 Segundo o Comentário Geral 14, esses casos excepcionais devem ser sujeitos a condições específicas e restritivas, respeitando as melhores práticas e normas internacionais aplicáveis. 70 CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 34. 71 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 313. 72 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 316.

447


Conforme mencionado anteriormente, a obrigação de proteger, ao contrário da obrigação de respeitar, demanda uma atuação positiva do Estado. Assim, a obrigação de proteger, implica na adoção pelos Estados de medidas destinadas a impedir que terceiros comprometam a realização dos direitos humanos. No âmbito da saúde, a obrigação de proteger envolve a adoção de legislação e outras medidas que visem garantir o acesso igualitário aos serviços e cuidados de saúde prestados por terceiros. Em outras palavras, os Estados devem impedir que a privatização do sector da saúde constitua uma ameaça à disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade desses serviços. Para tanto, os Estados devem fiscalizar a comercialização de equipamentos médicos e de medicamentos realizadas pelo setor privado.73 Em outras palavras, cabe aos Estados o dever de zelar para que a prestação de cuidados de saúde e de outros serviços por atores não-estatais seja realizada em conformidade com o sistema normativo dos direitos humanos.74 Os Estados devem proteger seus cidadãos contra informações inadequadas ou equivocadas relativamente aos serviços e cuidados de saúde fornecidos pelo setor privado. No que diz respeito ao acesso a medicamentos, por exemplo, os Estados encontram-se subordinados à obrigação de controlar a atividade das companhias farmacêuticas, proibindo a venda ou publicidade de medicamentos com efeitos colaterais nocivos à saúde.75 A diferença entre a obrigação de proteger e a obrigação de realizar refere-se ao fato de que a obrigação de proteger envolve uma terceira parte, perante a qual os indivíduos devem ser protegidos pelo Estado. Segundo Brigit Toebes, o envolvimento de terceiros na prestação de serviços relacionados com a realização da saúde, poderia dar ensejo à concepção de que a obrigação de proteger reveste-se de maior juridicidade que a obrigação de realizar, geralmente caracterizada por sua natureza programática. Todavia, a autora ressalta a dificuldade de se determinar se uma terceira parte é responsável ou se é o Estado que carrega a responsabilidade final.76

73

CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 35. 74 WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 26. 75 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 329. 76 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 327.

448


5 LIMITAÇÕES AO DIREITO À SAÚDE

O artigo 4.º do PIDESC dispõe sobre as condições e, até que ponto os direitos assegurados no Pacto podem ser limitados pelos Estados. Sua leitura associada ao artigo 12.º do mesmo Pacto permitem concluir que os Estados só poderão submeter o direito à saúde às limitações previstas em lei, de maneira compatível com a natureza deste direito e, exclusivamente com o propósito de favorecer o bem-estar geral numa sociedade democrática. Consoante com a interpretação do artigo 4.º realizada pelos Princípios de Limburgo, o uso da expressão ‗compatível com a natureza desse direito‘ significa que a limitação não deve ser interpretada ou aplicada de forma a pôr em risco a essência do direito á saúde.77 Já a permissão para estabelecer limitações ao direito à saúde como propósito de favorecer o ‗bem-estar geral‘ é considerada por Brigit Toebes, confusa e potencialmente perigosa.78 No entanto, de acordo com os Princípios de Limburgo, o artigo 4.º destina-se, principalmente, à proteção dos direitos dos indivíduos e não à concessão de autorização para os Estados imporem limitações aos direitos previstos no Pacto. Dessa forma, não pode ser usado como base para a introdução de restrições a direitos que afetem a sobrevivência ou a subsistência do indivíduo, nem que ameacem sua integridade física.79 As restrições legais relativas ao direito à saúde, além de ser consistentes com o PIDESC, devem ser claras e acessíveis a todos.80 Nesse sentido, pode-se afirmar que o artigo 5.º do PIDESC proíbe a imposição de limitações arbitrárias ou injustificadas81 ao direito à saúde, quando determina que um Estado não pode impor limitações às liberdades e garantias asseguradas no Pacto mais amplas do que as que nele encontram-se previstas.

77

UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para. 56. Veja também: COOMANS, F. (2007). Application of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights in the Framework of International Organisations,. In A. v. BOGDANDY, R. WOLFRUM, & . E. PHILIPP, Max Planck Yearbook of United Nations Law (Vol. 11). Netherlands: Brill, p. 385. 78 TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia – HART, p. 298. 79 UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, paras. 46-47. No mesmo sentido, ver: CESCR General Comment 14, The right to the highest attainable standard of health. E/C.12/2000/4, para. 28. 80 The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para. 50 81 The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex, para. 49.

449


6 RESPONSABILIDADE DE OUTROS ATORES À LUZ DA OBRIGAÇÃO DOS ESTADOS PARA COM A PROTEÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Muito embora os governos possuam a obrigação primária de respeitar, proteger e realizar o direito à saúde, também é esperado que outros atores não só respeitem mas também cooperem para a promoção da saúde. Muito embora o estudo proposto foca-se na análise das obrigações dos Estados para com a realização do direito à saúde, não de pode deixar de mencionar que há um bom tempo vem sendo tecido um debate sobre em que medida os atores não-governamentais como, por exemplo, os indivíduos, as organizações intergovernamentais e as não-governamentais (ONGs), os profissionais de saúde, e as empresas são responsáveis pela promoção e proteção dos direitos humanos.82 Quando os tratados de Direitos Humanos como o PIDESC, por exemplo, foram elaborados, a saúde pública era reconhecida como responsabilidade primária dos Estados, os quais, naquela altura, eram os protagonistas do direito internacional. 83 Com o advento da globalização econômica, tanto o poder quanto o papel do Estado transformaram-se significativamente. Os governos de muitos Estados alteraram suas funções de modo a incluir a participação de atores não-estatais na gestão e prestação dos serviços de saúde.84 Neste contexto, as políticas de saúde de muitos dos Estados em desenvolvimento vem se tornando extremamente vulneráveis às influências do mercado internacional e cada vez mais dependentes de investimentos externos, empréstimos e assistência ao desenvolvimento. Diante da ampliação do papel do setor privado e, consequentemente, do seu poder econômico e influência política no cenário internacional85, faz-se necessária uma reformulação dos sistemas normativos nacionais e internacionais com o propósito de regulamentar adequadamente o exercício da atividade privada para assegurar que a mesma não constitua um obstáculo à realização do direito à saúde. 82

OHCHR-WHO. The Right to Health. Fact Sheet Nº 31, p. 28. ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 64. Em mesma linha August Reinisch afirma que: ―we are now witnessing a clear departure from this purely state-centred approach.‖ REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with Non-State Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford, p.79. 84 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 64. No mesmo sentido PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J. KLABBERS, A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153-262). Great Britain: Oxford, p. 248. 85 PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J. KLABBERS, A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153-262). Great Britain: Oxford, p. 243. 83

450


A obrigação de proteger a saúde das pessoas que vivem em seu território impõe aos Estados o dever de assegurar que terceiros não violem o direito à saúde. Para tanto, seus respectivos governos devem adotar legislações e outras medidas que garantam a igualdade de acesso aos cuidados de saúde prestados pelo setor privado.86 A redução da influência e poder dos Estados demanda um engajamento maior da sociedade civil, especialmente das organizações não-governamentais, tanto para fiscalizar o cumprimento do direito à saúde pelos Estados, como também, para pressionar os governos a garantir que tal direito seja devidamente respeitado pelo setor privado.87 As

organizações

não-governamentais

exercem

uma

função

importante

de

monitoramento da realização do direito à saúde, e dos demais direitos humanos. Por esta razão, é fundamental que as obrigações referentes a esses direitos sejam definidas com bastante clareza para servirem como ponto de referência para as organizações nãogovernamentais avaliarem seu cumprimento.88 Cumpre mencionar que a ausência de mecanismos adequados de responsabilização relativamente ao cumprimento do direito à saúde, tem sido um dos maiores desafios enfrentados pelas ONGs. Considerando que o setor privado e demais atores nãogovernamentais vêm assumindo uma série de funções que antes eram exclusivas dos Estados, nada mais coerente que também sejam responsabilizados pelas consequências negativas que suas atividades acarretarem para o direito à saúde.89 Para Steven Ratner, um sistema no qualo Estado constitui o único de obrigações jurídicas internacionaispode nãoser suficiente para protegeros direitos humanos.90August Reinisch, por sua vez, argumenta que um sistema de responsabilidade destinado aos atores não-governamentais poderia ser implementado tanto no plano internacional quanto no plano nacional.91 No entanto, é preciso deixar claro que, embora os Estados possam delegar algumas de suas funções a entidades não-governamentais, não podem, de forma alguma, ilibarem-se das 86

OHCHR-WHO. The Right to Health.Fact Sheet Nº 31, p. 28. ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs.London: Commonwealth Medical Trust, p. 65. Sobre a importância das Organizações Não-Governamentais confira: PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J. KLABBERS, A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153-262). Great Britain: Oxford, p. 219 88 ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 29 89 No mesmo sentido, ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust, p. 67 90 RATNER, S. R. (2001). Corporations and Human Rights: A Theory of Legal Responsibility. Yale Law Journal, 111, p. 461. 91 REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with Non-State Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford, p. 78. 87

451


responsabilidades que lhes são próprias, na tentativa de transferi-las para terceiros.92 O Estado continua sendo, portanto, o destinatário direto das obrigações para com a promoção e proteção dos direitos humanos.

CONCLUSÃO

Como vimos anteriormente, o direito à saúdeencontra-se positivado nos diversos tratadosinternacionais de direitos humanos. No entanto, as disposições destes tratados, nãoespecificam com detalhes suficientesas obrigaçõesque impõem aos governos. A adoção de uma perspectiva de direitos humanos para o direito à saúde implica na compreensão de que indivíduos e grupos possuem um rol definido e inegociável de direitos relacionados com a saúde, o que torna os governos juridicamente responsáveis por assegurar que esses direitos sejam efetivamente desfrutados por seus cidadãos. No âmbito de suas obrigações fundamentais relativas ao direito à saúde, os Estados têm um dever imediato de garantir um padrão mínimo de cuidados básicos de saúde a todos os setores de sua população, independentemente de suas respectivas situações econômicas. Em outras palavras, é preciso investir em políticas preventivas de saúde, voltadas para a criação de melhores condições de higiene, alimentação, lazer e trabalho, tanto quanto em assegurar uma infraestrutura de atendimento curativo condizente com as necessidades da população. Para isso, são necessários mais hospitais, postos de saúde, ambulatórios, atendimentos de urgência, equipamentos e aparelhagens adequadas, leitos, profissionais qualificados. É imprescindível que se criem condições para que as classes menos favorecidas também tenham melhores condições de acesso aos cuidados de saúde. O entendimento do direito à saúde como direito humano gera impacto direto na determinação das prioridades dos Estados no que diz respeito à aplicação dos seus recursos. Ao estabelecerem suas políticas públicas, os governos encontram-se vinculados a levarem em conta as suas obrigações para com a realização dos direitos humanos. A verdadeira efetivação do direito à saúde constitui um grande desafio. Diante de uma realidade profundamente marcada pela má distribuição de renda, péssimas condições de emprego, moradia, alimentação, saneamento básico e transportes públicos, a garantia da saúde 92

Em sentido semelhante, REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with Non-State Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford, p. 82.

452


deve vir acompanhada não só de boas políticas públicas de saúde, mas também de ações destinadas à promoção de justiça e de maior igualdade socia

REFERÊNCIAS

ASHER, J. (2004). Right to Health: A Resource Manual for NGOs. London: Commonwealth Medical Trust. BEIGBEDER, Y., NASHAT, M., ORSI, M.-A., & FIERCY, J.-F. (1998). The World Health Organization (Vol. 4). Netherlands: Martinus Nijhoff. BURCI, G. L., & VIGNES, C.-H. (2004). World Health Organization.Netherlands: Kluwer Law International. CARVALHO, P. L. (2007). Patentes Farmecêuticas e Acesso a Medicamentos.São Paulo: Atlas. COOMANS, F. (2007). Application of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights in the Framework of International Organisations,. In A. v. BOGDANDY, R. WOLFRUM, & . E. PHILIPP, Max Planck Yearbook of United Nations Law (Vol. 11, pp. 359-390). Netherlands: Brill. GRAD, F. P. (2002). The Preamble of the Constitution of the World Health Organization. Bulletin of the World Health Organization, 80 (12), pp. 981-984. HESTERMEYER, H. (2007). Human Rights and the WTO: the Case of Patents and Access to Medicines.New York: Oxford. MACHADO, J. E., & RAPOSO, V. L. (2010). Direito à Saúde e Qualidade dos Medicamentos.São Paulo: Almedina. MEIER, B. M., & MORI, L. M. (2005). The Highest Attainable Standard: Advancing a Collective Human Right . Columbia Human Rights Law Review, 37, pp. 101-147. NEELAKANTAN, V. (2006). Tracing Human Rights In Health. Mumbai: CEHAT. OHCHR-WHO. The Right to Health.Fact Sheet Nº 31. OMS. Los Primeros Diez Años de la Organizacion Mundial de la Salud.Ginebra, 1958. PETERS, A. (2011). Membership in the Global constitutional Community. In J. KLABBERS, A. PETERS, & G. ULFSTEIN, The Constitutionalization of the International Law (pp. 153262). Great Britain: Oxford. RATNER, S. R. (2001). Corporations and Human Rights: A Theory of Legal Responsibility. Yale Law Journal, 111, pp. 443-545. REINISCH, A. (2005). The Changing International Legal Framework for Dealing with NonState Actors. In P. ALSTON, Non-State Actors and Human Rights (pp. 37-89). New York: Oxford. 453


TOEBES, B. C. (1999). The Right to Health as Human Right in International Law. Antwerpen, Groningen, Oxford: Intersentia - HART. UN. ( 2005). Economic, Social and Cultural Rights Handbook for National Human Rights Institutions. New York and Geneva: UNITED NATIONS UN. (1987). The Limburg Princliples on the Implementation of the International Convenat on Economic, Social and Cultural Rights. UN doc. E/CN.4/1987/17, Annex. UNHRC. Report of the Special Rapporteur on the Right of Everyone to the Enjoyment of the Highest Attainable Standard of Physical and Mental Health. Paul Hunt, UN Doc. A/HRC/4/28 (17 January 2007). WHO. (1947). Development and Constitution of the WHO. Chronicle of the World Health Organization, 1, pp. 1-196.

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A OBRIGAÇÃO DE MEIOS E RESULTADO NA MEDICINA: UMA OPORTUNIDADE DE QUESTIONAMENTO André Fonseca Guerra1

Sumário: 1 Introdução. 2 A Obrigação de Meios e Resultado na Medicina: uma oportunidade de questionamento. 2.1 Origem da Classificação. 2.2 Conceito. 2.3 Critérios de distinção. 2.4 Críticas. 2.5 Consequência. 3. Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO A doutrina e jurisprudência brasileira, habitualmente, não apresentam muitas

novidades em relação ao tema por nós proposto. Costumeiramente, encontramos discursos repetitivos e pouco aprofundados. Exemplo disso é a assunção da obrigação do Cirurgião plástico estético como de resultados; independente de qualquer condição. Tais concepções são arriscadas e, no cenário atual, não merecem prosperar. Obviamente, alguns autores defendem posicionamentos diferenciados e travam uma querela em face daqueles juristas que insistem em replicar opiniões rasas sobre a questão. O debate merece certo aprofundamento, todavia, o objetivo do presente artigo é oferecer a oportunidade de questionar as obrigações de meios e resultado. É certo que a utilização da bipartição não está isenta de problemas, como alguns juristas insistem em deixar transparecer. Nesse sentido será demonstrado algumas dessas dificuldades, não sem antes tocar nos aspectos preliminares do tema, como a origem da classificação, o conceito e os critérios de distinção.

2

A OBRIGAÇÃO DE MEIOS E RESULTADO NA MEDICINA: UMA

OPORTUNIDADE DE QUESTIONAMENTO

Imperioso, antes de tudo, destacar o conceito de obrigação. Para Monteiro é ―a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa

1

Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra e pós-graduado pelo Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito de Coimbra

455


prestação pessoal e econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio‖2.

2.1

ORIGEM DA CLASSIFICAÇÃO

É possível classificar as obrigações em relação ao seu objeto ou conteúdo em obrigações de meio ou de resultado. Todavia, qual a gênese dessa classificação? Habitualmente os autores atribuem essa divisão ao autor francês Demogue. Eles estão parcialmente corretos. Isso porque o Direito Romano já se utilizava de uma divisão semelhante. Os jurisconsultos romanos conseguiam visualizar uma distinção no conteúdo da obrigação do devedor. De um lado havia as promessas determinadas, quando o devedor prometia um resultado que se não fosse atingido geraria responsabilização, a menos que restasse comprovada a interferência de uma causa estranha. De outro lado, algumas obrigações exigiam apenas um esforço constante e sincero. O devedor, nesse último caso, não se vinculava ao resultado específico, tão somente ao seu modo de atuação. Somente caberia a responsabilização se houvesse a comprovação de uma atuação não diligente3. Já no século XIX, ao comentar o projeto do BGB, Bernhöft dividiu as obrigações de forma análoga, contudo não as batizou, ficando a cargo de Fischer, passado alguns anos, denominá-las de obrigações subjetivas e obrigações objetivas4. Apenas nas primeiras décadas do século XX, Demogue criaria a divisão das obrigações em meios e resultado, de maneira semelhante ao pensamento romano, de Bernhöft e Fischer, sendo efetivamente o autor francês o primeiro a utilizar essa nomenclatura para tentar resolver as necessidades do seu tempo, no caso a expansão dos transportes e o consequente aumento de acidentes5. Essa summa divisio, proposta por Demogue deveria substituir o regime da responsabilidade contratual e extracontratual para efeito de distribuição do ônus da prova (na 2

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações, Volume IV. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 8. Outro bom conceito consta no artigo 397.º do Código Civil português ―o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação‖. 3 O autor se refere a alguns contratos especialmente lesivos ao credor, particularmente aqueles em que uma parte entregava coisa certa à outra que deveria restituí-la em dada altura. RIBEIRO, Ricardo Lucas. Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado. Coimbra: Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, 2010, p. 25-26. 4 Idem, Ibidem, p. 27. 5 GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica – As obrigações de meio e resultado: avaliação, uso e adequação. 1ª Ed., 2ª tiragem. Curitiba: Juruá, 2002, p. 143.

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primeira presume-se a culpa, na última prova-se). Na visão do autor, ora o devedor promete determinado resultado, caso em que, não cumprindo, a sua culpa é presumida; ora promete apenas adotar medidas ou empregar esforços para a obtenção de um resultado, caso em que, não cumprindo, tem o credor o ônus de provar a sua culpa6. A tese de Demogue cumpriria uma função útil ao conciliar os artigos 1137.º e o 1147.º do Código de Napoleão. Segundo Ferreira de Almeida7, no primeiro artigo, a ausência de culpa exclui a responsabilidade do devedor e seria o credor quem teria o ônus de comprovar a existência de culpa. Já em relação ao art. 1147, o devedor só se exoneraria ao provar uma causa estranha ou um fato exterior que tenha impedido o sucesso da prestação. As obrigações de meios e de resultado explicariam perfeitamente as duas disposições. Esse ponto de vista estendia a eficácia da distinção à esfera extracontratual. No âmbito delitual, as obrigações de meios seriam os deveres de atuação prudente que evitassem lesões a terceiros e as obrigações de resultado como o dever de não causar danos com coisas ou animais de sua propriedade a outrem8. A extensão da divisão à natureza extracontratual é controvertida. Tal situação se explica pelo fato de que o dever geral de abstenção extrapola o conceito técnico de obrigação, não sendo imposta indistintamente a todos os indivíduos. Assim, não se poderia falar em obrigações pré-existentes no domínio extracontratual; elas só nasceriam após a violação danosa de um bem jurídico9. Mas o que definiria uma obrigação como de meio ou de resultado?

2.2

CONCEITO

Obrigações de meios seriam aquelas que têm como objeto apenas o emprego de todos os meios necessários ou possíveis para alcançar o resultado pretendido pelo credor, sem que o devedor garanta esse resultado10. A obrigação de meios obriga o profissional a uma atuação

6

RIBEIRO, Ricardo Lucas. Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado. Coimbra: Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, 2010, p. 28. 7 Cfr. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto. Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 127-256, p. 198-199. 8 Idem, ibidem, p. 42-43. 9 Idem, ibidem, p. 43. 10 Sobre o tema: Ricardo Lucas, cit., p. 91, MATIELO, Frabricio Zamprogna. Responsabilidade civil do médico. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998, p. 53, BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil Médica, Odontológica, Hospitalar. Vários autores. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 102 e GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico: à luz da jurisprudência comentada. 2ª Ed., 6ª reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 75; RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit.

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conforme os parâmetros da técnica e ética da sua ciência. Ele deve se comprometer a utilizar todos os meios possíveis para atingir o resultado, devendo ser zeloso e diligente11. Por diligência podemos entender a observância às normas técnicas que culmina numa prestação tecnicamente perfeita, atenciosa e de acordo com a boa-fé, mesmo que o melhor resultado não seja atingido12. Sabendo que há desvinculação do devedor com o resultado pretendido pelo credor, só haveria descumprimento na hipótese de o profissional não adotar, culposamente, a conduta média exigida para aquela situação concreta que ocasione um dano13. A definição da obrigação de meios é basicamente a mesma para os doutrinadores, assim como o conceito da obrigação de resultado. Se não, vejamos: As obrigações de resultado14 tem como meta a obtenção de um resultado predeterminado, que se não alcançado, pode gerar a responsabilidade do devedor. A não consecução do resultado presume a culpa e a relação de causalidade entre o atuar do devedor e o resultado danoso15. Somente não haveria o dever de indenizar no caso da prova de ocorrência de uma excludente de responsabilidade, como o caso fortuito, a força maior, a culpa de terceiro ou a culpa exclusiva da vítima16. Devemos frisar que a obrigação de resultado não equivale à responsabilidade objetiva. Na responsabilidade do profissional liberal, a culpa é requisito essencial. Porém, os limites de ambos os institutos podem ser nebulosos. Le Tourneau17 afirma que a culpa estará sempre subjacente na obrigação de resultado: ela consistiria da impossibilidade de executar o prometido. Em relação às obrigações de resultado, a conduta e a diligência do devedor não são levadas em consideração para análise da responsabilidade18: o importante é o próprio resultado compactuado. Sempre que este não for atingido, a obrigação pode ser considerada descumprida. 11

MATIELO, Frabricio Zamprogna, cit., p. 53. GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico, cit., p. 143. 13 Idem, ibidem, p. 143. 14 Idem, ibidem, p. 144. BITTAR, Carlos Alberto, cit., p. 102. RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 91. 15 GARCÍA GARNICA, María del Carmen. La responsabilidad civil en el ámbito de la medicina asistencial. In: La responsabilidad Civil por daños causados por servicios defectuosos – Daños a la salud y seguridad de las personas. Director: ORTI VALLEJO, Antonio. Coordinadora: GARCÍA GARNICA, María del Carmen. Navarra: Editorial Aranzadi, 2006, p. 217. 16 A culpa exclusiva da vítima somente pode ser utilizada como excludente se o devedor não tem a obrigação de guarda e proteção, como nas situações de pacientes internos em instituições psiquiátricas. Corroborando na tese da prova das excludentes como único mecanismo do devedor em livrar-se da responsabilização. GALÁN CORTÉS, Julio César, cit., p. 178-179. 17 LE TOURNEAU, Philippe. La responsabilité civile. Paris: Dalloz, 1982, p. 409-410. 18 GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Erro médico, cit., p. 144. 12

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É importante ressaltar que o não cumprimento da obrigação, ou seja, a desconformidade do resultado pretendido pelo credor caracteriza o elemento da ilicitude. Já na obrigação de meios, a ilicitude está na violação dos deveres objetivos de cuidado, acabando por aumentar a dificuldade probatória do credor. Explica-se: se na obrigação de resultado o credor deve demonstrar que o resultado obtido diverge daquele compactuado, na obrigação de meios, ele deverá provar que o devedor atuou de forma a atentar contra o dever objetivo de cuidado, comprovando sempre a culpa do lesante19. Para contornar essa dificuldade probatória, que atinge o credor na obrigação de meios, pode ser utilizada a prova de primeira aparência, instituto que permite um juízo de probabilidade baseada na prática científica e nas máximas da experiência 20. Mesmo que não sirva como juízo de certeza, esse mecanismo poderá ser empregado para as situações em que o credor não consiga comprovar o nexo de causalidade de forma satisfatória; apesar de a situação concreta indicar que o dano causado não poderia advir de outra causa que não a conduta do devedor21. Embora não seja o nosso foco, devemos esclarecer que ao lado das obrigações de meios e resultado, pairam as obrigações de garantia22, que apesar de não terem sido previstas por Demogue, merecem destaque. Essa obrigação acaba sendo ainda mais gravosa ao devedor do que a obrigação de resultado. Uma vez que não alcançado o resultado, o devedor será responsabilizado mesmo que uma causa estranha tenha tornado a prestação impossível23.

2.3

CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO

Não obstante seja clara a distinção entre as obrigações de meios e de resultado, faticamente, na análise do caso concreto, haverá casos extremamente nebulosos que impedirão a opção por uma ou outra classificação à primeira vista. Na prática, a importância da distinção é: determinar o objeto exato da obrigação assumida pelo devedor e de estabelecer

19

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 118-130. Destacamos que essa é apenas uma das alternativas que poderiam ser utilizadas. 21 A Anscheinsbewis do direito germânico ou a res ipsa loquitur da common law. Idem, Ibidem, p. 130. 22 A obrigação de garantia teria como objeto a proteção da integridade física do paciente, servindo como instrumento para garantir ressarcimento à vítima nos casos em que seja difícil demonstrar a culpa do profissional, ou naqueles em que não tenha havido culpa. A obrigação de garantia teria finalidade de não lesar a integridade do paciente e estaria conectada, particularmente, ao mau funcionamento dos aparelhos médicos. ROMERO COLOMA, Aurelia María, cit., p. 83-84. 23 Idem, ibidem, p. 23, nota 14. 20

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a carga probatória24. Mas a doutrina possui algumas ferramentas que pretendem auxiliar na identificação da obrigação compactuada. O principal critério adotado pelos juristas para tal diferenciação é a álea25, caracterizada como os riscos capazes de atingir o contrato. Todos os fatos eventuais que influenciariam o resultado e que não dependeriam da vontade das partes. Para os irmãos Mazeaud, na falta de outras circunstâncias que permitam descobrir a vontade das partes, deve-se atentar para a presença de álea. Quando for identificada, deve supor-se que a obrigação assumida fora de meios, uma vez não ser presumível o comprometimento do devedor a um resultado que ele sabe ser aleatório. Já, se o resultado não for aleatório, pode estimar-se que o devedor se comprometeu a atingir o resultado determinado26. Para Demogue, uma obrigação de resultado não poderia depender de uma álea, com isso, a princípio, um contrato médico por ter como objeto o corpo humano não poderia gerar obrigação de resultado27. Por sua vez, Jamarillo estabelece importante consideração. Se não podemos desconsiderar a álea terapêutica, tampouco poderíamos lhe dar um efeito excludente de antemão. Sua presença é intrínseca a área médica, mas não poderíamos sacrificar a categoria das obrigações de resultado por esse fato. Isso sem mencionar a dificuldade na diferenciação de uma álea normal da que não é; o que coloca mais um ponto de questionamento sobre até onde, na atualidade, é possível considerar a medicina como aleatória, em todos os casos e no mesmo grau estabelecido no último século28. Existem outros critérios29 de distinção. Entre eles o da intensidade da participação do lesado na realização da prestação debitória. Quando o devedor tem um importante papel ativo no resultado, a obrigação será de meios. Como na prestação médica o paciente tem um papel,

24

GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad médica. In: La responsabilidad civil profesional. Cuadernos de Derecho Judicial VII. Director: Álvarez Sánchez, José Ignacio. Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 2003, p. 178. 25 Nesse sentido o acórdão da Relação do Porto 3233/05.0TJPRT.P1 publicado em 05/03/2013, disponível em www.dgsi.pt. 26 MAZEAUD, Henri, Léon e Jean/Chabas, François. Leçons de Droit Civil. Obligations – théorie générale. T. II, V. 1. 9.ª Ed. Paris: Éditions Montchrestien, 1998, p. 15-16. 27 Separando as obrigações de acordo com a aleatoriedade do resultado final, OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p.189. 28 JARAMILLO J., Carlos Ignacio. La responsabilidad…, cit., p. 328. 29 Para Ricardo Ribeiro, os fatores que o levam a entender a obrigação como de meios são: a aleatoriedade do resultado, o papel ativo ou a participação do credor na execução da obrigação e a menor fiabilidade das técnicas e instrumentos são fatores que nos levam a pensar em obrigações de meios. RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 80.

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majoritariamente passivo – ou seja, a resposta orgânica do seu corpo – a obrigação, se utilizarmos esse critério, seria de resultado, e sabemos que, em princípio será de meios30. No ponto de vista de Starck, outro critério que poderia ser utilizado é o da incidência da prestação do devedor na integridade corporal do credor. Se o contrato afeta a integridade física, a obrigação seria de resultado, de modo a proteger de forma mais eficaz o credor. Se não afeta, a obrigação seria de meios, visto que o contrato teria natureza puramente econômica ou moral31. Do mesmo modo do critério anterior, o de Starck, colocaria a prestação médica sempre como uma obrigação de resultado, ao contrário do posicionamento da maioria da doutrina. Independente dos critérios utilizados32, ―excepcionalmente, atividades que denotam uma obrigação de meio podem se converter em uma obrigação de resultado, a depender da forma como se deu a pactuação com o consumidor dos serviços médicos‖33.

2.4. CRÍTICAS

A classificação proposta por Demogue é de simples entendimento e percepção para os juristas. Tal fato, todavia, não a ilide de críticas. Boa parte das considerações atinge a denominação escolhida pelo autor. Para alguns críticos, o termo obrigação de meios ou de resultado não possui um sentido apropriado. Essa preocupação seria justificável pelo fato de todas as obrigações buscarem um resultado, seja uma obrigação de meios seja a de resultado propriamente dita. Para outros autores, todas as obrigações também seriam de meios, uma vez que sempre requerem uma atuação diligente para a obtenção do interesse do credor, ou seja, o resultado final34. Visando resolver esses impasses, os irmãos Mazeaud propõem a modificação da denominação. As obrigações de meios passariam a ser chamadas de ―obrigações gerais de 30

Critério apresentado, por Philippe Le Tourneau e Loic Cadiet. PEDRO, Rute Teixeira. A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 93, nota 222. O papel ativo do paciente que resulta diretamente na não obtenção do resultado poderá servir como excludente da responsabilidade na modalidade de culpa exclusiva da vítima. 31 RIBEIRO, Ricardo Lucas, p. 61. 32 Na Itália, PRINCIGALLI, afirma que a distinção dependeria das circunstâncias do contrato. A doutrina e os Tribunais recorrem aos critérios da: intenção das partes; a economia geral do contrato; ou a existência de um contrato de seguro. PRINCIGALLI, Annamaria. La responsabilità del Medico. Bari : Editore Jovene Napoli, 1983, p. 43. 33 GAGLIANO, Pablo Stolze e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 211. 34 Idem, ibidem, p. 33-34, nota 43.

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prudência e diligência‖, que comprometem o devedor apenas a uma forma adequada de atuação; as obrigações de resultado deveriam ser denominadas de ―obrigações determinadas‖, já que buscam um resultado predeterminado35. A proposta de Mazeaud tampouco fica isenta de críticas. Na Itália, Mengoni observa que as obrigações, de forma geral, têm objeto determinado ou, no mínimo, determinável. E no que diz respeito a ―obrigação geral de prudência e diligência‖, objeta, primeiramente, a questão do termo ―geral‖ indicar a imposição de um dever a uma generalidade de sujeitos e não a uma ou mais pessoas determinadas, o que deixaria de fora a responsabilidade contratual, resultante, por definição, da violação de direitos relativos. Soma-se a isso o fato da diligência ser um modo de atuação, uma medida do conteúdo de um concreto dever de prestação e não apenas um comportamento36. O autor acaba por classificar as obrigações em ―obrigações de resultado‖, seguindo Demogue, e ―obrigações de (simples) comportamento‖, tendo boa aceitação na doutrina italiana37. Na Espanha, existem muitas divergências terminológicas. Muitos se utilizam da classificação demoguiana, mas outros adotam a expressão ―obrigações de atividade‖ para se referir à obrigação de meios, não faltando, ainda, quem utilize a uma terminologia híbrida38. E há certa razão para criticar a nomenclatura. Toda obrigação busca satisfazer um interesse do credor, mas, segundo Ricardo Ribeiro, devemos distinguir o interesse final ou primário do credor do interesse instrumental ou de 2.º grau. As obrigações de meios satisfazem esse interesse de 2.º grau, já as de resultado, deverão atingir o interesse final. A distinção entre obrigações de meios e de resultado é, única e exclusivamente, o resultado final, mas os resultados instrumentais são meios idôneos a produção do resultado final, assim cada espécie de obrigação buscaria um resultado específico39. Toda obrigação requer uma atuação zelosa do devedor para atingir a finalidade do contrato. Porém, no caso de uma obrigação de meios, a diligência é abarcada pelo conceito de culpa, enquanto nas obrigações de resultado, reconduz-se ao conceito de ilicitude40. Vázquez Barros ainda defende que todo cirurgião, indefectivelmente, suportará ambas as obrigações: a de meios, ou seja, a de proporcionar os cuidados sanitários mínimos e

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MAZEAUD et MAZEAUD. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile. 4ª Ed. Paris: Sirey, 1947, v.1, p. 110. 36 RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 29-30. 37 Idem, ibidem, p. 30. 38 Idem, ibidem, p. 30. 39 Idem, ibidem, p. 33. 40 Idem, ibidem, p. 34.

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indispensáveis; e a de resultado, qual seja: de assegurar que não causará nenhum dano à integridade do paciente41. Podemos concluir que, apesar de ambas as obrigações buscarem um resultado e exigirem uma conduta diligente, o conteúdo das duas modalidades é distinto, tornando-se plausível adotar a denominação de Demogue sem grandes dificuldades. Existe, entretanto, outra gama de críticas. De acordo com Jean Bellissent, a divisão seria ―esclerosante‖, na medida em que pretende ordenar de maneira rígida as obrigações em um dos grupos pré-definidos; ―empobrecedora‖ porque não atenderia a totalidade das obrigações que poderiam surgir da autonomia privada e liberdade contratual, além de ―míope‖, visto que propõe uma qualificação pré-concebida que não é satisfatória42. Em Portugal, uma crítica contundente é feita por Ferreira Almeida. Na perspectiva do autor, o ordenamento lusitano prevê apenas os regimes contratual e extracontratual. Assim, a divisão de Demogue, acaba por perturbar a presunção de culpa do devedor plasmada no art. 799.º, n.º 1 e, consequentemente, acaba por ser fonte de confusões e imprecisões que pretenderia evitar43. A perturbação atingiria inclusive a qualificação do contrato médico como de prestação de serviços, visto que a legislação portuguesa indica a necessidade de uma das partes se obrigar a proporcionar a outra um resultado determinado44. Os problemas não afetam somente o sistema jurídico português. Princigallirevela que na Itália, a proposta demoguiana é defendida por parte da doutrina e aceita pela jurisprudência, sobretudo, no tema da responsabilidade médica. Há doutrinadores, todavia, que consideram a bipartição nociva por supor uma categorização dogmática desnecessária. Assim, esses juristas negam validade à bipartição, defendendo a unidade do conceito de obrigação45. Na Espanha, no mesmo sentido italiano, é possível encontrar doutrinadores afirmando que a bipartição não ocasiona mais do que confusão46. Mesmo controvertido, é certo que, nas obrigações de fazer, sempre será possível distinguir os casos em que o fim-resultado se incorpora à prestação47 daqueles outros em que

41

VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad civil de los médicos – doctrina, legislación básica, jurisprudencia, formularios y bibliografía. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009, p. 346. 42 RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 36. 43 Idem, ibidem, p. 36 e OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p.198. 44 Idem, ibidem, p. 205. 45 PRINCIGALLI, Annamaria, cit., p. 37, nota 34. e p. 44. 46 ROMERO COLOMA, Aurelia María, cit., p. 84. 47 O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) prevê a summa diviso no artigo 5.4 relativo aos contratos comerciais internacionais. O n.º1 dispõe: ―quando a obrigação de uma parte implicar o dever de atingir um resultado determinado, essa parte está obrigada a atingir esse resultado‖; já o n.º 2: ―quando a obrigação de uma parte implicar o dever de empregar toda a diligência necessária na realização de uma certa atividade, essa parte esta obrigada a empregar toda a diligência que seria usada por uma pessoa razoável da

463


não se incorpora48. Sinde Monteiro apoia a divisão, mas adverte ao jurista que a utilize com cautela. A opção por uma ou outra natureza obrigacional deve resultar da interpretação da lei ou do contrato, concebendo-se situações que possam não se adaptar a tais figurinos49. O Brasil parece ainda estar na fase de plena aceitação da bipartição pela doutrina e jurisprudência. Ainda será preciso percorrer um longo caminho até alcançarmos a maturidade para criticar a classificação e propor alternativas condizentes com nossa realidade jurídica.

2.5

CONSEQUÊNCIA

Uma vez que apresentamos a conceituação e algumas críticas, falta-nos explicitar as consequências da opção por uma ou outra obrigação de maneira fundamentada. De modo geral, entende-se que a obrigação médica é de meios, ou seja, o médico deverá utilizar todos os mecanismos disponibilizados pela Ciência Médica a fim de aproveitar todas as probabilidades que o paciente tem de alcançar uma melhora da sua saúde, além de que, o profissional, deverá abster-se de quaisquer atos que diminuam essas possibilidades50. Esse entendimento acaba aumentando a dificuldade probatória do paciente51. De acordo com o pensamento clássico, para gerar responsabilização na obrigação de meios, o credor deverá comprovar a culpa do devedor. Em tal hipótese, o paciente deverá provar que o médico atuou de forma negligente, imprudente ou imperita, que a atuação foi susceptível de produzir o dano alegado52. Para Rute Teixeira, o ônus da prova a cargo do paciente, acaba sendo um escudo protetor do profissional porque, praticamente, determina o insucesso da demanda por não haver a presunção de culpa. Presunção essa que recai sobre a generalidade dos devedores inadimplentes. Assim, vigorará uma presunção de diligência do médico a qual o paciente deverá destruir, no caso de uma obrigação de meios53. Se a situação for de uma obrigação de

mesma condição colocada na mesma situação‖. Tal posicionamento demonstra que a divisão demoguiana não perdeu força com o passar das décadas e depois de numerosas críticas, cfr. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p. 201. 48 JARAMILLO J., Carlos Ignacio. La responsabilidad…, cit., p. 345. 49 MONTEIRO, Sinde. Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 1996. In: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132.º, 1999-2000, p. 93. 50 PEDRO, Rute Teixeira, ibidem, p. 82. 51 Nesse sentido o acórdão da Relação do Porto 3233/05.0TJPRT.P1 publicado em 05/03/2013, disponível em www.dgsi.pt. 52 OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p. 229. 53 Nesse sentido, Idem, ibidem, p. 105.

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resultado haverá uma presunção de culpa do profissional sempre que o resultado predeterminado não for atingido. Como visto, as consequências são opostas. Quando tratar-se de uma obrigação de resultado, o regime adotado será equivalente ao contratual. Entendendo como sendo de meios, o regime será o extracontratual, devendo a culpa de o devedor ser provada. Novamente devemos ressaltar a aparente inadequação da divisão de Demogue para o ordenamento brasileiro. Se a natureza do negócio jurídico que rege a relação médico-paciente é contratual, por que utilizar as regras do regime extracontratual para as obrigações de meios? Muitos autores se debruçam sobre essa problemática. Embora não entre na divisão demoguiana, Teixeira de Sousa argui que o paciente sempre deverá provar a culpa do médico. Para o jurista, a existência de um contrato não acrescenta nenhum dever específico que já não estivesse previsto nos deveres gerais do profissional, pelo que não deveria atribuir-se relevância ao ônus da prova, e sua inversão, pelo simples fato de uma celebração de contrato entre os dois sujeitos. Nessa visão, será aplicado o regime do ônus da prova previsto pela responsabilidade extracontratual, onde o doente deverá provar a culpa do médico54. No entanto, não se vê base jurídica para aplicar a presunção de culpa pela violação da responsabilidade na obrigação de resultado e não às obrigações de meios se ambas deveriam ser regradas pelo regime contratual55. Nesse sentido apresentamos outra posição doutrinária, segunda a qual o regime contratual deverá ser aplicado integralmente, incluindo a presunção de culpa do devedor, nele prevista – às situações de incumprimento das obrigações de meios56. Para Henrique Gaspar o fundamento da responsabilidade médica é, essencialmente, o cumprimento defeituoso da obrigação. E para esses casos, o paciente deverá comprovar o defeito no cumprimento, ficando a cargo do médico a comprovação da falta de culpa57. Mesmo utilizando o regime contratual para ambas as espécies de obrigação ainda seria possível vislumbrar uma diferença entre a presunção de culpa em uma e outra. Segundo Ricardo Ribeiro, nas obrigações de resultado a presunção abrangeria a ilicitude e o nexo de causalidade entre o fato ilícito e o dano. Nesse caso, o médico terá o ônus: de provar o cumprimento da obrigação, ou então de provar que o não cumprimento não é ilícito ou que o não cumprimento ilícito não procede de culpa sua, ou

54

SOUSA, Miguel Teixeira de. Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa, 1996, p. 113-114. 55 RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 118. 56 PEDRO, Rute Teixeira, ibidem, p. 105. 57 GASPAR, António Silva Henriques. A responsabilidade civil do médico. CJ, ano III, T. 1, 1978, p. 344-345.

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finalmente, que não há uma relação de causalidade entre o não cumprimento ilícito e culposo e os danos sofridos pelo credor58.

Nas obrigações de meios a presunção de culpa seria mantida, devendo o devedor provar que não atuou com culpa e agiu com cuidado e atenção. Enquanto a presunção de culpa nas obrigações de resultado abarcam a ilicitude e o nexo causal, nas obrigações de meios ela se reduz a censurabilidade pessoal da conduta do devedor59. Para Ricardo Ribeiro, a natureza da obrigação influencia ―a repartição do ónus da prova, mas não do ónus da prova da culpa, antes do ónus da prova de outros elementos da responsabilidade‖60. Podemos concluir que ao aceitar a obrigação do profissional da saúde como de resultado, o paciente deverá provar o incumprimento do contrato, devendo o médico comprovar, ou que o resultado foi atingido ou que uma causa alheia impediu que o objetivo fosse alcançado, como a força maior, a culpa de terceiro ou a culpa exclusiva do paciente. Como consequência direta, o paciente conseguiria responsabilizar o médico de maneira mais fácil, porque ele, normalmente, é a parte hipossuficiente da relação, carecendo de recursos financeiros e técnicos para buscar seu direito de maneira eficaz. Além do mais, o acesso à prova documental, principalmente do processo clínico é mais simples para o médico. Mas, essa facilidade poderia fazer com que o preço dos serviços médicos aumentasse, uma vez que abarcariam os riscos da responsabilização facilitada e os custos de um possível seguro capaz de proteger o patrimônio do profissional. Mas se entendermos que a obrigação do médico é de meios, como a doutrina clássica entende, estaríamos dificultando a responsabilização do médico, bem como aplicando as regras do regime da responsabilidade extracontratual, uma vez que o devedor deveria comprovar a culpa do profissional, não havendo a presunção. Para satisfazer o regime contratual, devemos nos utilizar dos ensinamentos discutidos supra e defendidos pela doutrina mais recente.

3

CONCLUSÃO

Ao longo da exposição buscamos introduzir a divisão demoguiana de forma mais detalhada, revelando a origem histórica, o conceito de obrigação de meios e a de resultado, bem como os critérios de distinção entre ambas.

58

RIBEIRO, Ricardo Lucas, cit., p. 123-124. Idem, ibidem, p. 130. Pinto Oliveira aduz que a presunção de culpa do art. 799.º seria aplicável às obrigações de meios, mas o alcance da presunção seria diversa. Na obrigação de resultado o art. 799.º se combinaria com o critério de tipicidade/ilicitude no resultado, exonerando o credor do ônus de provar a omissão de cuidado; na de meios, ele se relacionaria com um critério de tipicidade/ilicitude referido à conduta, não exonerando o credor do ônus de demonstrar a omissão da mais elevada medida de cuidado exterior. Nas obrigações de resultado, a inobservância do cuidado ou diligencia constituiria o critério de culpa, enquanto nas obrigações de meios, ela constituiria o critério de ilicitude. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, cit. p.187-188 e 245. 60 Idem, ibidem, p. 118. 59

466


Abordamos tais questões somente para alcançar o ponto primordial do presente artigo: as inconsistências da classificação de Demogue. Pelo limite natural do trabalho optamos por explicitar as críticas e as consequências da opção por uma ou outra obrigação no Direito da Medicina. Que o leitor aproveite essas linhas iniciais como ponto de partida para o aprofundamento no estudo do Direito da Medicina bem como para questionar tudo que já foi escrito sobre o tema.

REFERÊNCIAS

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MAZEAUD, Henri, Léon e Jean/Chabas, François. Leçons de Droit Civil. Obligations – théorie générale. T. II, V. 1. 9.ª Ed. Paris: Éditions Montchrestien, 1998. MONTEIRO, Sinde. Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de novembro de 1996. In: Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132.º, 1999-2000 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das obrigações. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, v.4. OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto. Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde. In: Responsabilidade Civil dos Médicos. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. PEDRO, Rute Teixeira. A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. PRINCIGALLI, Annamaria. La responsabilità del Medico. Bari : Editore Jovene Napoli, 1983. RIBEIRO, Ricardo Lucas. Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado. Coimbra: Wolters Kluwer sob a marca Coimbra Editora, 2010. ROMERO COLOMA, Aurelia María. La medicina ante los derechos del paciente. Madrid: Editorial Montecorvo, 2002. SOUSA, Miguel Teixeira de. Sobre o ónus da prova nas acções de responsabilidade civil médica. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa, 1996. VÁZQUEZ BARROS, Sergio. Responsabilidad civil de los médicos – doctrina, legislación básica, jurisprudencia, formularios y bibliografía. Valencia: Tirant lo Blanch, 2009.

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A LEGALIZAÇÃO DA MACONHA PARA FINS MEDICINAIS SOB O OLHAR DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO Edeurlan Albino Duarte1 Rossana Tavares de Almeida2 Sumário: 1 Introdução. 2 Legalização da Cannabis em seu Contexto Histórico: uma interpretação racista da norma jurídica. 3 Conhecendo Morfologicamente a Maconha. 4 Os Benefícios da Cannabis Sativa. 5 Contraindicações da Maconha. 6 A Lei de Drogas no Brasil Hoje. 7 O Problema da Norma Penal em Branco da Lei 11. 343/2006 e a Portaria 344 da ANVISA. 8 O Olhar da Bioética e do Biodireito na Legalização da Maconha. 9 Direitos Fundamentais: direito à saúde. 10 A Legalização da Cannabis em Outros Países 11. Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO

A ciência vive em constante mutação, pois novas tecnologias surgem com o intuito maior de contribuir para o bem-estar do ser humano, como a evolução dos estudos científicos da Cannabis Sativa, uma das substâncias ilícitas mais utilizada e mais produzida no planeta, sendo cultivada em praticamente todos os países (ALVES, 2012, p.91). Essa planta é extremamente importante para o tratamento de várias doenças, porém, sua utilização é barrada pela legislação brasileira, mostrando-se contra os avanços da ciência. Percebe-se que esta atitude não envolve questões da bioética ou do biodireito, mas sim, questões morais. De forma ampla, este artigo tem como objetivo informar acerca dos efeitos benéficos da Cannabis Sativa com fins terapêuticos, tendo em vista a falta de informação sobre do tema, aspirando principalmente defender a legalização da maconha para fins medicinais, não referindo-se à discussão sobre o uso recreativo, pois não é com este intuito que propomos a legalização da maconha. A relevância de estudar esse tema deve-se a sua repercussão nos últimos anos, principalmente agora, com a legalização do país vizinho o Uruguai e da macha da maconha, como também a mudança da Legislação Brasileira, no que tange às drogas, com a nova Lei Nº 11. 343/2006. Além disso, o avanço de vários estudos científicos que vem pesquisando o uso da maconha para tratamentos de doenças. Para o enriquecimento deste artigo usaremos o trabalho de Luiz André Barreto e o de Mônica Mourinho, como fonte de conhecimento sobre os aspectos morfológicos da maconha e seus efeitos no organismo humano. Também serão abordadas as ideias de Edison Namba e 1 2

Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Graduando em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

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Regina Loureiro, que contribuirá para compreendermos o conceito e a função do biodireito e a bioética entre outros trabalhos. Primeiramente discutiremos sobre o contexto histórico da maconha, fazendo menção desde a Idade da Pedra até chegar no contexto americano e brasileiro hoje, com a finalidade de conhecermos como esse tema era tratado na época, e o que mudouno decorrer dos anos. Posteriormente, será apresentada a morfologia da maconha, bem como seus compostos orgânicos e quais são seus efeitos no organismo humano. Também será abordada a Lei 11. 343/06, que legisla sobre as drogas, e os problemas decorrentes dela. Além disso, trataremos do tema sobre a perspectiva do biodireito, da bioética, dos direitos fundamentais, principalmente do direito à saúde; ainda serão expostos os países nos quais a maconha já é legalizada.

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LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO: UMA

INTERPRETAÇÃO RACISTA DA NORMA JURÍDICA

A Cannabis é cultivada pelo homem desde a Idade da Pedra, utilizada para a fabricação de utensílios domésticos, de modo a facilitar suas atividades, servindo de matéria prima para a confecção de cordas, tecelagem rudimentar e redes de pesca (OLIVEIRA, 2011, p. 24). A importância do cultivo da Cannabis, no contexto citado, vai além do uso de confeccionar, pois a maconha também era usada como uma forma de interação entre o homem e o sobrenatural. Conforme Oliveira cita Ribeiro: Assim, em algum momento longínquo do passado, mais do que uma fonte de fibras, alimentos e óleo, variedades da Cannabis ricas em resina (maconha) provavelmente passaram a ser usadas para atingir a comunhão com o mundo sobrenatural (2011, p.24).

Barreto (2002, p.1) elenca, desde a antiguidade até a época medieval, que a Cannabis já era utilizada para fins medicinais. A primeira farmacopeia, de que se tem conhecimento, foi datada em 375 a.c., na China, pelo lavrador ShenNung. O autor enfatiza que nesta época o uso da semente de cânhamo tinha fins terapêuticos e alimentícios. Não obstante, na Grécia, no século III a.C.,Dioscorides, influenciado por Hipócrates, começou uma pesquisa com plantas, entre elas a Cannabis Sativa3, a qual afirmou ser bastante útil para a vida humana, reconhecendo a importância das fibras, como também o valor medicinal da planta (BARRETO, 2002, p.02). 3

Nome adotado por Carl Linnaeus em 1753.

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Muitos autores, como Oliveira (2011), Barros e Peres (2011), relacionam a proibição da maconha com a questão preconceituosa e racista. Isto porque apesar da maconha ser consumida há muitos anos, em diversas partes do mundo, somente no começo do século XX é que a planta chega aos EUA, trazida pelos imigrantes mexicanos, que usavam a maconha para aguentar a dura jornada de trabalho. Nesta perspectiva, a população branca dos EUA criou uma lenda baseada em pilares preconceituosos, em que a maconha gerava uma energia sobrehumana para os trabalhadores mexicanos e transformava-os em assassinos sanguinários (OLIVEIRA, 2011, p. 26). Para a solidificação do aspecto racista, em relação àCannabis, Oliveira (2011, p.27) traz um caso ocorrido nos EUA, em que um mexicano diabolicamente influenciado pela erva, teria atacado um cidadão branco americano, a partir deste fato.O Texas, onde o fato ocorreu, aprovou a lei proibindo a posse da maconha. Vejamos o argumento de Robinson (1999, p. 91 apud OLIVEIRA, 2011, p.27):

[...] a Cannabis Sativa foi proibida nos Estados Unidos por razões ligadas ao racismo e economia quanto à moralidade. Uma associação arbitrária que vinculava a ―loucura da maconha‖ com mexicanos, afro-americanos, jazz e violência havia sido adotada por doutrinadores, cujos temores e fantasias eram alimentados pela mídia.

A partir desta citação, percebemos que a proibição da maconha nos EUA está intrinsicamente relacionada com o racismo, pois não havia nenhum estudo científico sobre o efeito da Cannabis, para o embasamento de tal lei, sendo uma forma de subjugar o outro, não respeitando a alteridade. Ainda no contexto estadunidense, a maconha se populariza e deixando de ser marginalizada, quando é consumida por várias classes sociais, mais uma vez evidenciando a questão preconceituosa que envolve a legalização da maconha, pois quando a erva era utilizada por imigrantes e hippies, relacionavam a atitudes diabólicase ao ócio, mas quando houve a ascensão do uso da maconha para classes médias e altas o discurso mudou. A mídia também influenciou, pois em 1972 John Lennon faz uma música em homenagem a um jovem que lutava a favor da legalização da maconha. Em meados dos anos 70, ela, a Cannabis, se populariza através do cinema e da TV (OLIVEIRA, 2011, p. 33). Já no Brasil, o costume de fumar maconha foi trazido pelos escravos africanos, posteriormente se espalhou entre as populações rurais e indígenas (OLIVEIRA, 2011, p. 50). No período de 1809, com a criação da Guarda Real, começou a polícia dos costumes, repreendendo festas com cachaça, música afro-brasileira e, consequentemente o uso da

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maconha (BARROS e PERES, 2011). Ainda, segundo as autoras, o hábito de fumar maconha foi marginalizado, no Brasil, através da psiquiatria lombrosiana, que pregava a ideia de algumas raças serem imanente criminosas, bem como o negro, ligando os atos destes a crimes, englobando o ato de fumar maconha. O Código Penal, em 1890 e a ―Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação‖, cria uma forma de reprimir a manifestação da cultura africana. Além disso, a criminalização da maconha foi influenciada pelo discurso médico, pois conforme o psiquiatra Rodrigues Dória (1857-1958) citado por BARROS e PERES:

[...] é possível que o indivíduo já propenso ao crime, pelo efeito exercido pela droga, privado de inibições e de controle normal, com o juízo deformado, leve à prática seus projetos criminosos. (...) entre nós a planta é usada, como fumo ou infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos ―feiticeiros‖, em geral pretos africanos, ou velhos caboclos. Nos candomblés - festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes, e que lhe herdam os costumes e a fé – é empregada para produzir alucinações e exercitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas (Herman e Pessoa Jr, 1986) (2011).

Percebemos que tal ―ciência‖ é carregada de racismo, pois considera o negro um ser naturalmente criminoso, e todas as práticas exercidas por eles, consequentemente serão rotuladas injustamente como ilícitas, assim o uso da maconha, que divergentemente da visão do branco, não é um uso esporádico, mas é carregado de significados e simbolismo religioso. Gilberto Freyre afirma ser a maconha um elemento cultural de resistência à desafricanização. A legalização da maconha, como pôde ser visto, camuflou-se em argumentos médicos construídos em solo de areia, pois não era baseado em pesquisas verdadeiramente científicas, mas sim, alicerçadas em racismo e preconceito, com o intuito de inibir as manifestações culturais africanas, na tentativa de um controle social.Observemos a citação de Mendes:

Há um dado em sua criminalização (da maconha) histórico que transcende o discurso médico. Trata-se do caráter explicitamente racista do seu processo de criminalização, quando foi associada a uma perversão própria dos descendentes dos africanos que teriam trazido tal doença pra a sociedade civilizada. (MAGALHÃES, 1994, p.107) (2011, p.50).

Ao enxergarmos a legalização da maconha pelo viés cultural, em que as relações entre a cultura que olha e a cultura que é olhada, não se estabelece de uma única forma (TUTIKIAN, 2006, p. 13). Por intermédio da teoria de Daniel Henri Paoeaux (1989), podemos afirmar, que as relações culturais entre os americanos e os mexicanos e dos

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portugueses (residentes no Brasil, no século XIX)4 eram de fobia5, na qual a cultura nacional de origem considera-se superior à superior à estrangeira e tende a refratá-la. Esta ideia é confirmada a partir dos argumentos expostos anteriormente.

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CONHECENDO MORFOLOGICAMENTE A MACONHA Derivada da palavra grega Kannabis (traduzida ―proveitosa‖), a Cannabis Sativa,

nome científico da maconha, dado na segunda metade do século XVII, tem sua origem na Ásia Central. Atualmente sabe-se que essa planta possui mais de 60 compostos orgânicos, denominados de canabinóides (MOURINHO, 2013, p. 02). Segundo a autora, nos últimos quarenta anos foram identificados como constituintes principais da Cannabis, o delta9Tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). A planta da Cannabis Sativa apresenta um dimorfismo sexual, da qual a planta masculina se obtém a fibra para confecção de tecido e corda, em que a produção de fibras é inversamente proporcional à produção de THC, ou seja, não serve para a produção de cigarros. Diferentemente, a planta feminina, produz mais resina, que detém o complexo ativo THC, sendo este utilizado para fins diferentes da planta masculina (BARRETO, 2002, P. 06). Além disso, a partir do tronco central da planta é extraído um óleo com teor elevado de THC, que produzirá o haxixe.

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OS BENEFÍCIOS DA CANNABIS SATIVA

Conforme mencionamos anteriormente, existem os compostos orgânicos na maconha, podendo ser psicoativos ou não, denominados de canabinóides. Elenca Barretos (2002, p.16), o THC é o canabinóide mais conhecido, por causa de suas propriedades psicoativas, tendo o potencial terapêutico mais explorado, contribuindo para o controle psicomotor (relaxamento) e como analgésico leve, enquanto o CBD, alivia a náusea e a dor e no aumento de apetite. Sendo ambos compostos, os únicos canabinóides testados em humanos, para algumas doenças como esclerose múltipla, dor neuropática, esquizofrenia, mania bipolar, distúrbio de ansiedade social, insônia e epilepsia (MOURINHO, 2013, p. 03).

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Momento em que a Coroa portuguesa fugiu das tropas napoleônicas, em novembro de 1807 (BARROS & PERES, 2011). 5 Este termo é empregado como uma das três formas que o autor caracteriza as relações entre as culturas.

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Mourinho (2013, p.10), alerta para o uso da Cannabis, pois esta deve ser usada como terapia complementar, principalmente nos tratamentos de doentes em cuidados paliativos, que surge como uma tentativa de prevenir o sofrimento, pois sua utilização, como terapia complementar, age na redução de alguns sintomas em doentes com cancro ou esclerose múltipla, principalmente na espasticidade. Como a autora elenca, há uma necessidade de maiores estudos em relação a Cannabis como terapia. Conforme os estudos apresentados pela autora, no que tange ao uso da Cannabis Sativa quanto ao impacto a nível de estrutura cerebral é pequeno, mas em relação ao nível das funções sensitivas cerebrais há alterações sutis associadas há anos de uso regular. Além de discutir sobre os benefícios da Cannabis na perspectiva de cuidados paliativos, a autora crítica, a questão da ilegalidade do consumo da planta:

Apesar das evidências que o consumo terapêutico da Cannabis pode melhorar a sintomatologia e consequentemente a qualidade de vida de determinados grupos de doentes, continua, a existir a questão da ilegalidade do consumo desta droga, sendo o seu uso uma atividade criminosa punida por lei, a questão de ser uma substância que gera preconceito pela sua comercialização, e o estigma que ela ainda instiga na nossa sociedade (MOURINHO 2013, 2013, p.03).

Ainda existem os canabinóides sintetizados, produzidos a partir dos constituintes da Cannabis Sativa, para o uso terapêutico, comercializado em vários países, como Reino Unido e Estados Unidos (MOURINHO 2013, 2013, p.03). Além disso, a autora analisa sete estudos clínicos que avaliam os efeitos terapêuticos da Cannabis e canabinóides no controle sintomático em pessoas com cancro, ou doença neurológica degenerativa, aparecendo como terapia complementar. Vale salientar, que os artigos estudados datam de 2008 a 2012. Dos sete artigos, cinco obtiveram resultados positivos do uso da Cannabis ou canabinoídes, como terapia complementar em doentes com caso paliativo. Diante dos aspectos positivos do uso da maconha, Barreto (2002, 0.17) menciona que a planta é regida clinicamente para tratar pacientes com câncer, em alguns países. Conforme elenca o mesmo autor, o uso da Cannabis contribui para a regulamentação do aparelho gastrintestinal, além de diminuir náuseas, também possui efeito anestésico após o uso oral, pois suaviza a dor em pacientes de câncer pós-quimioterapia. O autor, ainda, afirma que o efeito da Cannabis é relativo: Há de lembrar que os efeitos esperados dependem do conjunto consumidor/meio/qualidade e quantidade da droga a ser administrada. Assim, o que

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pode ser anestésico para um indivíduo, pode não surtir efeito algum num segundo caso (BRAGG et al. 1988) (2002, p.17).

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CONTRAINDICAÇÕES DA MACONHA

Em comparação a outras drogas lícitas, as consequências de pequenos níveis de THC assemelham-se ao do álcool, diminuindo suavemente as funções do sistema nervoso central, já em grandes quantidade o THC pode acarretar euforia por meios parecidos coma morfina (BARRETO, 2002, p.17). Quando se fala em drogas, as pessoas pensam de acordo com o senso comum, em algo totalmente maléfico à saúde, principalmente no que se refere à maconha, porém, os efeitos ocasionados pelo uso da planta envolve vários fatores. Quando se trata de C. Sativa e seus efeitos tem-se que considerar algumas peculiaridades que influenciam de forma significativa. Deve-se levar em conta o grau de THC (qualidade de maconha consumida), a química corporal do indivíduo que consome bem como sua receptividade psicológica, condições socioambientais do usuário, personalidade e estabilidade emocional, forma como consome (se fumada ou ingerida) (SANTOS 1997). Por fim, os efeitos da C. Sativa são ―particularmente função de uma pessoa particular, em condições particulares, num momento particular‖ (...) (BARRETO, 2002, p.18). Como podemos observar, o uso da C. Sativa, para fins medicinais, assim como qualquer outra droga lícita (remédios) irá depender do organismo de cada paciente e dos fatores em que estes estão inseridos. Dessa forma, a utilização da maconha como tratamento pode ser prescrito para um indivíduo e outro não, mesmo ambos possuindo a mesma doença. O grande problema do uso da maconha diz respeito ao seu uso abusivo: ―Altas doses de THC podem causar ansiedade, que podem vir a desencadear ou agravar um quadro psicótico, numa personalidade que tende a este quadro‖ (BARRETO, 2002, p.18). Quando o uso abusivo da maconha torna-se um hábito pode ocasionar a perda da consciência, e este hábito em poucos intervalos de tempo, associado a grandes quantidades, acelera os batimentos dobrando a pulsação, afetando o coração. Ao lermos as literaturas que elencam sobre os efeitos negativos, quanto ao uso da maconha, sempre enfatiza a questão do seu uso abusivo, principalmente quando associada a outra droga, por este motivo há uma maior dificuldade para exprimir com exatidão os efeitos do uso da maconha:

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O uso da Cannabis em associação com outras drogas pode vir a acentuar alguns efeitos tanto destas como daquela. Em associação com o álcool, por exemplo, ambas têm seus efeitos salientados. Em associação com a cafeína presente em refrigerantes ou café, os efeitos sedativos e indução ao sono da Cannabis são suprimidos, gerando até casos de insônia (BARRETO, 2002, p. 22).

A Associação Brasileira de Psiquiatria. Sociedade Brasileira de Cardiologia discerne sobre a relação do uso da maconha com o tabaco: ―Apesar da fumaça da maconha apresentar uma composição química muito parecida com o tabaco, exceto a nicotina,presente no tabaco e os cerca de 60 canabinóides presentes na Cannabis, os efeitos do consumo da Cannabis diferem do tabaco (2012, p.18).‖ O consumo de Cannabis está associado a um maior risco de sintomas respiratórios como tose e expectoração, mas os estudos não conseguiram evidenciar declínio da função pulmonar ou obstrução ao fluxo aéreo, como ocorre com o consumo do tabaco (2012, p.18). O artigo ―Abuso e Dependência de Maconha‖ traz inúmeras questões que envolvem o uso da maconha, bem como suas consequências negativas. O artigo utilizou como método a revisão de diversos artigos, em que cada dado retirado destes obteve um grau de recomendação e força de evidência que vai de A a D. Percebe-se que os argumentos negativos em torno do uso da Cannabis são geralmente classificados pela letra D, que significa ―opinião desprovida de avaliação crítica, baseada em consensos, estudos fisiológicos ou modelos de animais‖. Em relação à tolerância e à toxidade da Cannabis, Barreto discorre: A tolerância da Cannabis é dita uma ―tolerância reversa‖ (Anderson 1980), justificada pela permanência do THC no sangue do indivíduo por muito tempo, e sua progressiva eliminação, restaurando os níveis normais de tolerância. (...)a Cannabis não é tóxica, pelo menos no que diz respeito ao homem. A baixa toxidade do THC fica evidenciada quando se leva em conta o uso da erva por milhões de pessoas, hoje e no mundo todo, e jamais se registrou casos de morte ou quadros clínicos de overdose por intoxicação por Cannabis (2002, p.25).

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A LEI DE DROGAS NO BRASIL HOJE

Não podemos negar a evolução no ordenamento jurídico brasileiro em relação à Lei Nº 11. 343/06 que diferente das antigas Leis de Drogas (Lei Nº 6.368/76 e a Lei Nº 10. 409/02), pois distingue o usuário do traficante, porém não contempla o volume máximo da droga a ser classificada como uso pessoal. Dessa forma, percebemos uma mudança na ótica do legislador, utilizando não somente do aspecto penalista como também o sociológico. Vejamos a afirmação de Araújo (2013):

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Com o advento do novo diploma legal, o legislador demostrou maior preocupação com o aspecto sociológico do tema, percebeu-se que o problema não era apenas de Direito Penal: envolvia assistência social, economia,critérios criminológicos, políticas públicas e uma série de fatores que contribuem para disseminação, em todo território nacional, de substâncias entorpecentes.

Ao que se refere às mudanças introduzidas pela Lei Nº 11. 343/2006 com as Leis Nº 6. 368/76 e Nº 10.409/02, houve mudanças de grande relevância, como a supressão da restrição da liberdade para os usuários, advertindo, considerando o processo de ressocialização do usuário uma medida educativa, com a participação de programa ou curso educativo, que vai do art. 20 ao 26 da respectiva lei. Além disso, no art. 28, houve o acréscimo dos temos ―transportar‖ e ―tiver em depósito‖, também ocorreu o aumento da pena in abstrato prevista para o crime, elevando-se o mínimo de 3 (três) para 5 (cinco) e mantendo-se o máximo em 15 (quinze) anos, e o aumento da pena de multa, passando de 50 (cinquenta) para 500 (quinhentos) dias-multas e o máximo de 360 (trezentos e sessenta) para 1.500 (mil e quinhentos) dias-multas. Ainda houve a tipificação de novas condutas (financiar, colaborar e conduzir) previstas na Lei Nº 11. 343/2006, transcritos nos artigos subsequentes: Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1. º, e 34 desta lei; Art. 37. Colaborar, como informante, com grupo, organização ou associação destinados à prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1.º, e 34 desta lei; Art. 39. Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem;

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O PROBLEMA DA NORMA PENAL EM BRANCO DA LEI 11. 343/2006 E A

PORTARIA 344 DA ANVISA

Na Lei 11. 343/2006 adota a norma penal em branco, que é normalmente adotada pelo direito brasileiro. Dessa forma, não são definidas, pela lei citada, as substâncias que estão a cargo de sua tutela. Esta responsabilidade fica a cargo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), através da portaria 344. Neste caso, a norma penal em branco é examinada enfocando seu sentido estrito, pois a sanção é estabelecida pela Lei 11. 343/06, enquanto a norma complementadoraencontra-se na portaria 344, assim, diz restrito, porque os órgãos que regulam o mesmo objeto são diferentes, estando a sanção no âmbito legislativo e a matéria de proibição prescrita pela autarquia.

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Para a Cannabis ser legalizada seria necessário que a ANVISA retirasse do seu dispositivo a maconha da portaria 344, pois para a inclusão da maconha no rol de drogas ilícitas não houve nenhuma fundamentação científica, tendo em vistas os vários estudos que comprovam a eficácia dos canabinóides e de seus sintéticos. Em consonância a esta problemática Mendes assevera: (...) faz necessário o controle judicial do ato administrativo da ANVISA que insere o THC no referido rol, tendo em vista que ―a validade do ato estará condicionada à existência dos fatos pela Administração como pressuposto fático-jurídico para sua prática, bem como à juridicidade de tal escolha‖ (BINENBOJM, 2008, p.2006). Portanto, pela natureza técnica das agências reguladoras, a mera existência de tratados internacionais não justifica o ato administrativo, devendo haver uma fundamentação técnica. (2011, p.54).

Em relação aos aspectos negativos na maconha a ANVISA deveria compará-los aos de outras drogas lícitas e normalmente comercializadas, pois como já foi mostrado neste artigo o uso da Cannabis pode ser menos prejudicial que o tabaco. Observemos esta questão a partir dos argumentos de Mendes: (...) respeitando o Estado de Direito, a administração não pode ser arbitrária em seus atos, adentrando ao âmbito científico não bastaria a ANVISA mencionar os danos gerados pela cannabis, teria de enfrentar a questão de confrontar tais males como de substâncias que ela permite, como o álcool e o tabaco, do contrário, sem tal confrontamento, permaneceria a repressão cultural materializada na proibição de uma substância menos nociva enquanto outras mais danosas, por razões políticas e não técnicas, são permitidas (2011, p.55).

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O OLHAR DA BIOÉTICA E DO BIODIREITO NA LEGALIZAÇÃO DA MACONHA

A primeira vez que utilizou-se a palavra bioética, foi no século XX, nas obras Bioethics: Bridge tothe Future, EnglewoodCliffs/New York: Prentice-Hall, 1971, de Van Ressealaer Potter (NAMBA, 2009, p.08). Pra este autor, os avanços da ciência opreocupava, por esta razão, apresentou um ―novo conhecimento‖, que instigasse as pessoas a refletirem sobre as consequências positivas ou negativas dos avanços da ciência sobre a vida (JUNQUEIRA, 2011, p.08). Loureiro citando Leo Pessini, define a bioética: ―É o ramo da ciência que estuda como as descobertas científicas devem ser utilizadas com o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana (2009, p.03).‖ Em relação ao princípios da bioética temos o do benefício/não malefício: Benefício significa ―fazer o bem‖, e não malefício significa ―evitar o mal‖. Desse modo, sempre que o profissional propuser um tratamento a um paciente, ele deverá

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reconhecer a dignidade do paciente e considerá-lo em sua totalidade (todas as dimensões do ser humano devem ser consideradas: física, psicológica, social, espiritual), visando oferecer o melhor tratamento ao seu paciente, tanto no que diz respeito à técnica quanto no que se refere ao reconhecimento das necessidades (...) do paciente (JUNQUEIRA, 2011, p.18).

Através da ótica da bioética, a aceitação da C. Sativa para fins medicinais, insere-se no princípio referido no parágrafo anterior, a legalização da maconha é uma opção plausível, pois como foi discutido no início deste artigo, o uso da Cannabis, em alguns pacientes mostrou-se benéfico no tratamento de algumas doenças, claro que como qualquer outro remédio, deve ter acompanhamento médico. Em relação a essa problemática, um caso teve grande repercussão na mídia, o da menina de quatro anos de idade, que sofre de encefalopatia epilética infantil precoce tipo 2. Através de um tratamento com um medicamento à base de Canabidiol (CBD), derivado da maconha, houve a diminuição na quantidade de convulsões por dia, proporcionando uma maior qualidade de vida para a criança. O juiz federal César Bandeira Apolinário, da Terceira Vara Federal do Distrito Federal, liberou o medicamento, através de uma decisão liminar, determinando que a ANVISA entregasse à família o medicamento derivado da maconha, para que a menina continuasse o tratamento. Ao deferir tal decisão, o juiz Apolinário utilizou-se de um dos princípios da bioética, o de justiça, englobando o conceito de equidade que representa a ideia de dar à pessoa aquilo que lhe é devido, segundo suas necessidade, confirmando o conceito de que as pessoas são diferentes, em vários aspectos, principalmente em suas necessidades (JUNQUEIRA, 2011, p.20). O biodireito e a bioética estão intrinsecamente ligados, como afirma Namba (2009, p.14) citando José Alfredo de Oliveira Baracho: O biodireito é estritamente conexo com à bioética, ocupando-se da formulação das regras jurídicas em relação à problemática emergente do processo técnico-científico da biomedicina. O biodireito questiona sobre os limites jurídicos da licitude da intervenção técnico-científica possível.

Diante disso, vemos a omissão do direito quanto às pesquisas feitas com a maconha, que generaliza seus efeitos nocivos, faltando uma fundamentação técnica, pois como qualquer tratamento feito por meio de drogas lícitas irá ter efeitos colaterais, ou seja, os argumentos utilizados para a proibição da maconha, não são os mesmos usados para as drogas lícitas, como o álcool e o tabaco, que possui um grau de nocividade maior do que a maconha 479


(MENDES, 2011, p. 53), mostrando que o discurso da proibição é meramente mais moralizador e cultural do que científico.

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DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À SAÚDE Os Direitos Fundamentais podem ser traduzidos por ―direito que tem força jurídica

constitucional‖, isto porque baseado na fundamentalidade formal, o direito só se caracteriza como fundamental se for garantido por normas que possuam a força jurídica própria da supremacia constitucional, também manifesta a liberdade individual, presente nos textos constitucionais: Direitos Fundamentais são direitos públicos-subjetivos de pessoas (física ou jurídica), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual (DIMOULIS E MARTINS, 2012, p. 40).

Sendo um direito social fundamental, o direito à saúde está previsto no art. 196 da Constituição Federal: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Destarte, o art. 6º da nossa Carta Magma ao englobar o direito à saúde como um direito social, corroborou para identificarmos como um direito fundamental do indivíduo. Diante disto a Declaração Universal do homem, acordado em 1948 e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1976, delibera que: ―Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa ao desfrute do mais alto nível possível de saúde física e mental‖ (DIMOULIES E MARTINS, 2012, p.34). A Organização mundial de Saúde, em sua carta de princípios, de abril de 1948, define saúde como o estado do mais completo bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência de enfermidade (ALVES, 2012, p. 99). Se cabe ao Estado garantir a saúde de todos, bem como reduzir os agravos de algumas doenças e culminar maneiras de recuperação da saúde do cidadão, por que não legalizar uma droga que pode ser o diferencial no tratamento de algumas doenças?

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A LEGALIZAÇÃO DA CANNABIS EM OUTROS PAÍSES

Alguns países como Holanda, Espanha, Estados Unidos, Canadá e Israel liberam a produção, o cultivo e o consumo, deixando claro que cada país possui restrições de acordo com a realidade de sua nação. Esses últimos países, legalizaram a maconha para fins medicinais, tendo programas legais para o cultivo. Em relação aos Estados Unidos vale salientar que a Agência de Saúde Oficial Americana (FDA) não valida o consumo da maconha ou de seus sintéticos para fins terapêuticos, sendo alguns estados que liberam através de seus governos autônomos. A novidade é a inclusão do país sul-americano, o Uruguai, entre os países que legalizam a maconha, pois recentemente o pais aprovou um projeto de lei que regula avenda de maconha, configurando-se como o único país a controlar a venda para os consumidores. Vale ressaltar que em nenhum país a Cannabis é totalmente legalizada. O intuito de demostrar países que já regularizaram a maconha não é o de imitarmos suas políticas, mas sim de estudarmos seus resultados (em relação à legalização da maconha) e nos espelharmos para encontramos a melhor solução, no que tange à saúde pública, levando em consideração o biodireito e a bioética.

11. CONCLUSÃO

Neste trabalho abordamos a ideia da legalização da maconha no Brasil com fins medicinais, ou seja, referimos ao uso da Cannabis como medicamento e não recreação. Apesar de muitos conservadores afirmarem que o uso dessa planta possui efeitos colaterais, este argumento não é válido, pois como qualquer outro medicamento existe uma contra indicação. Dessa forma, concluímos que a maconha pode sim, contribuir de forma significativa para o desenvolvimento de tratamentos de doença, e que sua legalização não tem respaldo científico. Assim, afirmamos que o objetivo proposto foi alcançado, proporcionando informações e conhecimento científico acerca da maconha, mostrando relevância do tema, que envolve o discurso médico-jurídico, caracterizando como uma questão a ser mais profundamente discutida pelo biodireito e pela bioética. Uma das alternativas para a problemática da legalização da maconha com fins medicinais seria a criação Agência Brasileira da Cannabis, que permita seu uso clínico e

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medicinal, ideia já bastante discutida por cientistas, como Dr. Elisaldo Luiz de Araújo Carlin, um dos pioneiros do estudo da maconha no Brasil. Este trabalho foi importante para o aprofundamento e compreensão tanto do conhecimento científico da maconha, quanto os assuntos em que o biodireito e a bioética tutelam, também a evolução do ordenamento jurídico na Lei de Drogas e a problemática da norma penal em branco, fazendo-nos refletir sobre nosso ordenamento jurídico e a sua relação com os acontecimentos sociais.

REFERÊNCIAS

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