A Batalha, nº 276 (Setembro/Outubro 2017)

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VI Série | Ano XLII | nº 276 | Set./Out. 2017 | Bimestral | 0,70 Euros (IVA Incluído)

JORNAL DE EXPRESSÃO ANARQUISTA

PARA UMA LIBERDADE INOMINÁVEL Entrevista a João Santiago | 8 - 10

3 MANUEL VIEIRA (1943-2017)

5 OS ANARQUISTAS E A ESQUERDA

Joaquim Andrade e António Cândido Franco

M. Ricardo de Sousa

6-7 CATALUNHA INSURGENTE Tomás Ibañez e Miguel Amorós

14 - 15 A ONTOLOGIA DO TROPICAL-INDUSTRIAL Ron Gallipoli


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VISTO DA PARVÓNIA CHOQUES ASSIMÉTRICOS JÚLIO PALMA

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cena mundial desloca-se como as massas de ar à superfície terrestre ou os continentes na sua deriva. Claro que nos referimos às peças que representam conflitos. No plano político, ao contrário do que queria a globalização, cada vez mais se assiste a reivindicações de autonomia local. E os poderes estabele-

Na Ásia, há problemas na Birmânia ou nas Filipinas, que de vez em quando recorrem à força militar para esmagar a resistência de alguns grupos étnico-religiosos. E até da China nos chegam ecos da repressão no antigo Turquestão Oriental. No Médio Oriente há o caso do Curdistão.

No plano político, ao contrário do que queria a globalização, cada vez mais se assiste a reivindicações de autonomia local. E os poderes estabelecidos estão sempre dispostos a recorrer à força repressiva para esmagarem o direito à diferença. cidos estão sempre dispostos a recorrer à força repressiva para esmagarem o direito à diferença. Basta olhar para o que se passa em África, a começar pela Líbia, passando pelo Sudão do Sul, República CentroAfricana, Somália ou República Democrática do Congo, para se verificar que os conflitos abundam, alguns deles provocados pelo traçado de fronteiras desenhado pelas antigas potências coloniais, como é o caso do Sahara Ocidental, ocupado pelo reino de Marrocos. Alguns que pareciam silenciados voltam a reivindicar a sua entrada no palco da História, como por exemplo o Biafra, na Nigéria, ou Casamança, no Senegal.

E aqui na União Europeia? O caso de que mais se fala é o da Catalunha. Está mesmo na berra. O independentismo catalão já é antigo e Castela sempre teve a mania de mandar em toda a Península. Mas não manda nem pode mandar. Em Portugal foi assim: "A sublime bandeira Castelhana / Foi derribada aos pés da Lusitana" (Camões n'Os Lusíadas). Os catalães bem podem ler o Camões e se calhar até podem aprender alguma coisa com ele. Em Portugal, a sua maneira de escrever é excelente: "Defendei vossas terras, que a esperança / Da liberdade está na vossa lança!".

MÃE FRANCISCO CARDO

Pelas arestas magoadas desse triângulo do peito sofrem-se diásporas no lenço vago da separação dizer às veias teu nome é um caos insatisfeito ou um remorso já perdido nos degraus da solidão

É na vã tristeza que o frio caudal das emoções chora intimista na lápide preciosa desmedida e convulso o sentimento dói-se em contradições rentes ao corpo ausente do outro lado da vida

E apenas conhecer o sombrio destempero sofrido aquele pranto ainda dor de incapaz comedimento ao ler ansioso o passado no calendário comovido em folhas arquivadas nas estantes do pensamento.


MANUEL VIEIRA (1943-2017)

JOAQUIM ANDRADE

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artiu cedo. Deixa saudades.

Faleceu em Almada, no passado dia 13 de Agosto de 2017, o companheiro Manuel Vieira. O funeral realizou-se no dia seguinte no cemitério do Feijó. Foi uma morte não anunciada que apanhou de surpresa familiares, amigos e companheiros. Apesar de a grande maioria dos seus conhecidos só ter sabido do falecimento tardiamente, a triste notícia espalhou-se na Cova da Piedade e, para espanto e felicidade da família, muita gente anónima acorreu ao cemitério. Nascido em Luzim, Penafiel, em 17 de janeiro de 1943, mudou-se ainda bebé para Moscavide, onde viveu até ir para a tropa. Após dois anos de tropa e mais dois anos em Angola, regressou e foi trabalhar para a TAP, como técnico de manutenção de aeronaves. Acabou por se estabelecer em Almada, Cova da Piedade, onde viveu até ao seu falecimento. Biblioteca e memória libertária Desde que o Vieira partiu que temos estado em contacto com a família, mais concretamente o filho e a filha. Ambos tiveram um comportamento muito correcto e simpático com os companheiros da Batalha. Transmitiram-nos que nos seus últimos dias o Vieira andava feliz, especialmente com a presença dos seus netos, e que partiu em paz. Fizeram questão de doar a enorme e riquíssima biblioteca

do Vieira ao CEL. Prontificaram-se também a disponibilizar todo um valioso acervo de fotografias e vídeos, que o Vieira e seu filho foram realizando ao longo dos anos. Nele podemos encontrar vídeos com Edgar Rodrigues, José de Brito e eventos como as comemorações dos 75 anos da Batalha. Este material pode ser consultado num site criado pelo seu filho, em Memória Libertária de Manuel Vieira: http://bit.ly/2B2NqqA Grande divulgador dos ideais acratas Foi um militante culto e ativo. Apesar de uma postura que o aproximava de um anarquismo individualista, esteve sempre associado a organizações anarquistas. O Centro de Estudos Libertários e o jornal A Batalha foram aquelas a que dedicou mais tempo e carinho. Preocupou-se sempre com a recuperação da memória histórica do movimento anarquista. Nos últimos tempos, Manuel Vieira esteve ligado à alteração da designação de algumas ruas de Almada, fazendo com que nelas figurasse a presença libertária. Parte da sua militância, que realizava com grande prazer, como se fizesse parte orgânica da sua vida, passava pela divulgação de literatura anarquista. Das muitas histórias que ouvi do Vieira, deixo uma que é exemplo do que atrás descrevi: durante muito tempo, enquanto trabalhou na TAP, o Vieira manteve o que nós, por graça, dizíamos ser um departamento do CEL / A Batalha nas instalações da companhia aérea portuguesa. Ai tinha dois grandes armários cheios de livros anarquistas e Batalhas que vendia, dava e divulgava por todos os trabalhadores da

TAP. Comentávamos que só na TAP cada número d’A Batalha vendia, entre vendas diretas e assinaturas, mais de uma centena de exemplares. Que mais Vieiras houvesse! Para terminar, deixo uma homenagem anónima, colocada no portal internacional Contra-Info, que resume o que muitos de nós víamos e pensávamos do Vieira: “Companheiro dos livros, grande divulgador dos ideais acratas. Amante da acção direta, espírito inquieto, investigador autodidata. Andarilho do mundo, individualista apaixonado, cultivador de amizades. Grande, na sua modéstia. Adeus, companheiro, continua andarilho na terra dos sonhos libertários!”

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

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última vez que vi o Manuel Vieira foi em Évora, em Maio de 2016, no Encontro Libertário. Estava feliz, comeu com gosto, disse graças. À despedida, perguntou-me se para o ano havia mais. Se sim, não faltava. Agora que me chegou a notícia de que partiu, prefiro pensar que ele foi apenas dar uma daquelas voltas que fazia pelo mundo, aos lugares mais inacreditáveis. Um homem como o Manuel Vieira não morre. Vai apenas dar um passeio mais demorado. Um dia destes está aí, cheio de apetite e de boa disposição, com novas histórias para contar. 30-8-2017

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RADICALIDADE DO INSTANTE PIMPRENELLE

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este texto não vou pregar a iminência de uma insurreição. Vou procurar apresentar a minha experiência de militância no quadro do contexto francês, onde evoluí. Trata-se do nascimento de uma postura radical interseccional nos meios autonomistas franceses. O radicalismo como postura teórica e prática nasce, para mim, de uma confrontação violenta com a normalidade. Desde há alguns anos, vivemos em França num Estado de Excepção permanente, isto é, assistimos ao nascimento de uma nova forma de Estado neo-liberal e conservador (que se assemelha cada vez mais a um

patriarcado, e as inúmeras outras coisas que regem a nossa vida sem nunca serem postas em questão. Para lutar contra um, há que lutar contra todos, e é esse o grande desafio da radicalidade: fazer da interseccionalidade uma realidade, de fazer dela um instrumento individual e colectivo. A estrutura da sociedade francesa não é diferente da de outras sociedades europeias, mas surge-nos ainda assim como uma cristalização de forças coercivas. Já não há boas novas em França para todas as pessoas que são

(...) é esse o grande desafio da radicalidade: fazer da interseccionalidade uma realidade, de fazer dela um instrumento individual e colectivo. Estado fascista) que reproduz e impõe os esquemas de normalidade da civilização ocidental ao indivíduo e ao grupo. Este texto é um apelo ao radicalismo face à violência da norma. Esta violência da normalidade não é exclusiva de uma instituição, não é um bloco, nada é culpa de apenas um actor do mundo social. A norma é demasiado insidiosa para funcionar via choque frontal; aplica-se em todo o lado e nós somos todas e todos responsáveis pela sua aplicação em dado momento da nossa vida. Há, é certo, o Estado, a bófia, o capital, mas tantas vezes são esquecidos na nossa luta o género, a racialização, a família, o casal, o

ameaçadas pela norma - agressões de pessoas LGBT+ pela polícia ou pela extrema-direita são moeda corrente, a polícia mata e mutila nos bairros pobres. Já nada esconde o racismo de Estado: o governo de Macron, por exemplo, procura aplicar uma lei que permitirá controlar a identidade de pessoas que "tendo a nacionalidade estrangeira, podem ser deduzidos de elementos objectivos exteriores", legalizando assim os controlos discriminatórios e reforçando a opressão sistemática das pessoas racializadas. Já é impossível enumerar as medidas económicas visando tornar ainda mais vulneráveis os precários e a tornar mais ricos os que já o são. Os opressores exibem em França uma violência desinibida. A

toda esta violência estatal juntam-se a violência do controlo e da opressão interpessoais. A aplicação das normas não se faz apenas na vertical: quantas vezes ouvimos sindicalistas utilizarem palavras de ordem sexistas ou homofóbicas nas nossas manifestações, quantas vezes as nossas estruturas militantes se não mostraram discriminatórias? Tantas vezes temos encontrado a violência da norma no nosso próprio meio. Não creio mais na esperança. Os meios autonomistas reivindicam-se descontruidos, abertos, mas há nos nossos meios a reprodução de uma hierarquia de lutas, de uma «agenda» militante, do um para cada lado, de um folclore que certas vezes não corresponde já às normas dominantes, mas instaura um sistema normativo que compreende um reestabelecimento das opressões sistémicas que regulam o mundo. Negar a esperança não quer dizer que não existe futuro possível: há que substituir a esperança na sua função de motor da acção. Temos de renegar a esperança para nos projectarmos em pleno na temporalidade da destruição do mundo. A postura radical que se opõe à norma está para lá da postura militante, procura sempre projectar-se para lá do quadro, extrair-se, não sem violência, da esfera da dominação. Não é senão através de uma postura radical e interseccional que seremos capazes de desconstruir os esquemas das opressões sistémicas. Face a esse mundo da norma, devemos recusar toda a esperança da insurreição providencial e viver a radicalidade do instante. Sermos os feiticeiros que destruirão o mundo.

Agressão policial a manifestante contra a nova legislação laboral em França, 2016.


OS ANARQUISTAS E A ESQUERDA

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M. RICARDO DE SOUSA «Até hoje, desde o começo da História, ainda não houve política do povo, e entendemos por este termo a plebe, a canalha operária, que nutre o mundo com o seu trabalho; só existiu a política das classes privilegiadas, essas classes que se serviram da força muscular do povo para se destronar mutuamente, e para uma pôr-se no lugar da outra.», Bakunin

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uando falamos das origens e dos primórdios do anarquismo europeu, vamos necessariamente parar nos meandros radicalizados da Revolução Francesa onde se desenvolveram as ideias socialistas modernas. Pensadores como Fourier ou Proudhon popularizaram-se em meios populares insatisfeitos com a realidade da exploração e dominação e dispostos a derrubar a burguesia ascendente que havia chegado ao poder em nome da liberdade, igualdade e fraternidade para instaurar um regime onde esses valores eram para uso interno da sua classe.

direcção a regimes capitalistas corruptos e autoritários, não deveria haver mais espaço para alguma ilusão quanto ao significado da «esquerda» no poder. No entanto, o realismo político que então se impôs como parte do pensamento único também empurrou muitos libertários para o minimalismo político, passando muitos a manifestar simpatia pelos partidos ecologistas e, mais tarde, pela nova esquerda latino-americana onde se desenvolviam fenómenos populistas como o Chavismo e PT-lulismo. Recentemente, essa aproximação deu-se em relação a partidos da chamada «nova esquerda», tipo Podemos.

Na Associação Internacional dos Trabalhadores, o debate sobre a táctica e as formas de superar o capitalismo ganharam maior clareza nos confrontos entre uma visão política estatista e autoritária de socialismo, que valorizava a acção partidária e a conquista do aparelho de Estado, e uma perspectiva social libertária, federalista e descentralizadora, que propunha a auto-organização das classes trabalhadoras. Esse confronto fez-se em torno das ideias de Marx e Engels, por um lado, e de Proudhon e Bakunin, por outro. A Comuna de Paris de 1871 foi ainda uma experiência unitária, plural e socializante nesse contexto histórico de indefinição dos caminhos do movimento revolucionário.

Mais uma vez a ilusão de que essa «esquerda» significava a chegada das classes populares ao poder motivou o apoio de um largo espectro da ex-esquerda comunista e guerrilheirista, não deixando indiferentes alguns segmentos do anarquismo latino-americano, particularmente os mais engajados nos movimentos populares.

É a partir da I Internacional, e da sua dissolução, que os diferentes caminhos para uma sociedade comunista se começaram a definir. Dessa encruzilhada viriam a surgir, em finais do século XIX, os partidos socialistas e o anarquismo/anarco-sindicalismo. Uma parte dos socialistas logo se começou a caracterizar pelo abandono explícito do anti-capitalismo e de qualquer projecto revolucionário em favor de um reformismo institucional que haveria de transformar a socialdemocracia, no século XX, numa mera forma moderna de gerir o Estado capitalista. Na Revolução Russa de 1917, essas diferenças face aos marxistas revolucionários vieram a desaguar no confronto militar e na repressão política desencadeada pelos bolcheviques contra os opositores às suas teses autoritárias, entre os quais se destacavam os anarquistas e anarco-sindicalistas. A repressão sangrenta de Kronstadt e do movimento makhnovista, nos anos 20, são fundamentais para compreender a deriva assassina do partido comunista russo ainda antes do que viria a ser conhecido por estalinismo, que foi o pomposo e demorado enterro do movimento comunista do século XX. Este passado não impediu que uma parte dos anarquistas não tivessem, num momento ou outro, a tentação de embarcar num frentismo de esquerda, com socialistas e comunistas, e isso viu-se na Revolução Espanhola, apesar dos estalinistas terem actuado de forma criminosa nessa guerra social, mas também nas frentes anti-fascistas dos anos 30-40 ou, mais tarde, em torno da Revolução Cubana e dos movimentos anti-colonialistas. Quando nos anos 80 os regimes de Socialismo de Estado entraram em derrocada e as ex-colónias, da Argélia ao Vietname e Angola, vieram a fazer um percurso em

temos visto no Brasil, e se alie na prática, em nome do povo e dos trabalhadores, com os partidos que fizeram a gestão corrupta do capitalismo brasileiro, só mostra que o anarquismo não está imune às ilusões da política e pode ter dificuldade de levar o espírito crítico às últimas consequências e de olhar para o passado com olhos de ver. O seu passado e o dos movimentos anti-capitalistas e revolucionários. Ante a derrocada do «comunismo», esses regimes que se intitulavam socialistas geridos por partidos comunistas, dos movimentos de libertação, e do populismo de esquerda latino-americano, impunha-se ao anarquismo reaparecer como um projecto social radical assente na crítica do Estado e do Capitalismo e em defesa de uma sociedade auto-organizada baseada na autogestão generalizada. Recuperando a esperança, rebeldia e vitalidade que lhe estavam associados um século antes.

Um anarquismo configurado como «esquerda radical» não só não vai contribuir para mudar alguma coisa nas sociedades como, pior ainda, nem sequer nos irá ajudar a pensar criticamente a sociedade actual e as alternativas que podem ainda ser construídas neste pântano capitalista em que nos estamos a afundar. Chegados aqui, após quase duas décadas, com a chamada revolução bolivariana transformada num autoritarismo populista incapaz de algum caminho positivo na direcção de uma sociedade auto-organizada e com os governos do PT deixando um rasto de corrupção generalizada, e de alianças de classes espúrias, que em nada contribuíram para modificar profundamente a sociedade brasileira, é possível encontrar ainda libertários nas ruas agarrados à defesa de projectos de «esquerda», em nome de um frentismo popular contra as classes dominantes, como se essa «esquerda» que assumiu o poder não fosse parte intrínseca da gestão pluralista do Estado e do Capitalismo, ou seja, parte dessas classes. Evidentemente que sempre existiram contradições dentro das classes dominantes que hoje se manifestam entre sectores mais liberais ou mais estatistas. Estas materializam-se, também, na presença de membros das elites políticas, sindicais e gestoras, provenientes da chamada «esquerda», nesse bloco dominante. Que muitos anarquistas tenham ainda um projecto, a que eu chamaria convencional, de organização, que na corrente plataformista se aproxima – é essa a sua origem histórica na Rússia – de um vanguardismo libertário nascido para concorrer com o leninismo e as suas tácticas de acção política, na ilusão de que a Revolução Russa era um resultado da eficácia organizativa dos bolcheviques, não deixa de ser uma surpresa que nos remete para a falta de memória histórica. Que esse anarquismo sinta ainda necessidade de se reivindicar de «esquerda», como

Caso não nos distanciemos da «esquerda», essa decadente elite política que se define, desde a Revolução Francesa, pelo lugar que ocupa no Parlamento, e do seu minimalismo e pragmatismo político e ético, das suas tácticas (eleitorais ou insurrecionais) de conquista do poder do Estado e da sua ideologia de progresso e desenvolvimento imparável, não deixaremos de ser um mero apêndice insignificante, usado como força de pressão nas ruas quando interessa a esses partidos do Sistema. Tanto mais que nos últimos anos vem surgindo, um pouco por todo o lado, organizações tipo Bloco de Esquerda, Podemos e France Insoumise, uma nova social-democracia de esquerda, que se pretende anticapitalista, mas que está profundamente envolvida numa lógica eleitoralista e de participação no Sistema e para quem o poder e o Estado não merecem qualquer crítica. Um anarquismo configurado como «esquerda radical» não só não vai contribuir para mudar alguma coisa nas sociedades como, pior ainda, nem sequer nos irá ajudar a pensar criticamente a sociedade actual e as alternativas que podem ainda ser construídas neste pântano capitalista em que nos estamos a afundar.

Este texto é uma reflexão de alguém que, sendo libertário, optou, em diversas situações, por um frentismo de esquerda, mas sobreviveu para tirar algumas conclusões da sua experiência que o tempo se encarregou de confirmar.


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CATALUNHA INSURGENTE: LIBERTÁRIA OU NACIONALISTA? PERPLEXIDADES INTEMPESTIVAS TOMÁS IBAÑEZ

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uando na Catalunha acontecem mudanças tão drásticas como as que se têm produzido desde as manifestações multitudinárias de 15 de Maio de 2011, torna-se difícil não experienciar uma certa perplexidade. Que pode ter ocorrido para que alguns dos sectores mais combativos da sociedade catalã tenham deixado de "cercar o Parlamento" - Verão de 2011 - e agora quererem defender as instituições da Catalunha - Setembro de 2017? Que pode ter ocorrido para que esses sectores tenham passado de confrontar os mossos d'esquadra na Praça Catalunha, e de recriminá-los pelas selvajarias que sofreram Esther Quintana ou Andrés Benítez, a aplaudir agora a sua presença nas ruas e a temer que não tenham plena autonomia policial?

escandalosa corrupção do partido maioritário, etc. etc. No entanto, parece-me que seria ingénuo excluir dessas respostas aquela que passa por ter em conta, também, o extraordinário aumento do sentimento nacionalista. Um aumento que, sem dúvida alguma, contribuiu para potenciar os factores a que acabo de aludir, mas que também recebeu doses importantes de combustível das próprias estruturas do governo catalão, através do seu controlo das televisões públicas catalãs. Vários anos de excitação persistente da fibra nacionalista não podiam não ter importantes efeitos sobre as subjectividades, tanto mais quando as estratégias para ampliar a base do independentismo nacionalista catalão foram, e seguem sendo, de uma extraordinária inteligência. A potência de um discurso construído a partir do direito a decidir, baseado na imagem das urnas e da exigência da liberdade

(...) os processos de auto-determinação acabam sempre por reproduzir a sociedade de classes (...) Que pode ter ocorrido para que parte desses sectores tenham passado de denunciar o governo pelas suas políticas anti-sociais a votar, há pouco tempo, os seus pressupostos? Mas, também, que pode ter ocorrido para que certos sectores do anarco-sindicalismo tenham passado de afirmar que as liberdades nunca se alcançaram através do voto, a defender agora que se dê essa possibilidade à cidadania? A lista de perguntas poderia ampliar-se enormemente e poderiam ser dadas múltiplas respostas às poucas que aqui formulámos. Com efeito, podemos expor factores como o esgotamento do ciclo de 78, a crise económica com os seus correspondentes cortes e precarizações, a instalação da direita no governo espanhol com as suas políticas autoritárias e seus cortes de liberdades, a

de voto, era extraordinária e conseguia dissimular perfeitamente o feito de que era todo um aparato de governo que procurava derrubar a promoção desse discurso. Hoje, a estelada (vermelha ou azul) é sem a menor dúvida um símbolo carregado de emotividade, sob o qual se mobilizam as massas, e é precisamente esse aspecto que não devia ser menosprezado pelos que, sem serem nacionalistas, vêem nas manifestações pró-referendo uma oportunidade que os libertários não deviam desaproveitar para tentar abrir espaços com potencialidades mesmo se não revolucionárias, pelo menos portadoras de uma frente de agitação social -, e se lançam para a batalha entre os governos de Espanha e da Catalunha.

Não deveriam menosprezá-lo porque quando um movimento de luta inclui uma importante componente nacionalista, e este é, sem dúvida alguma, o caso do presente conflito, as possibilidades de uma mudança de carácter emancipatório são estritamente nulas. Gostaria de partilhar do optimismo dos companheiros que querem tentar abrir frechas na situação actual para possibilitar saídas emancipatórias, porém não posso fechar os olhos à evidência de que as insurreições populares e os movimentos pelos direitos sociais nunca são transversais, encontram sempre as classes dominantes unidas num dos lados das barricadas. Já nos processos de auto-determinação - e o actual movimento é claramente deste tipo -, há sempre uma forte componente interclassista. Estes processos irmanam sempre os explorados e os exploradores perante um objectivo que nunca é o de superar as desigualdades sociais. O resultado, corroborado pela História, é que os processos de autodeterminação das nações acabam sempre por reproduzir a sociedade de classes, voltando a subjugar as classes populares depois destas terem sido a principal carne de canhão nestas contendas. Isso não significa que não tenhamos de lutar contra os nacionalismos dominantes e procurar destruí-los, mas há que fazê-lo denunciando constantemente os nacionalismos ascendentes, em lugar de confluir com eles perante o pretexto de que esta luta conjunta pode proporcionar-lhes possibilidades de rebentar as suas abordagens e de encurralar quem só persegue a criação de um novo estado nacional que possam controlar. Que ninguém duvide: esses companheiros de viagem serão os primeiros a reprimir-nos quando não precisarem de nós.


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CARTA A TOMÁS IBAÑEZ

CARLOS D’ABREU

MIGUEL AMORÓS

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ompanheiro Tomás,

As tuas "perplexidades intempestivas" são o maior expoente lido por mim do sentido comum e do seny revolucionário que deveriam reinar não só entre os libertários, mas entre todos aqueles que querem abolir esta sociedade, em vez de administrá-la. Não obstante, não me estranha que um montão de gente que se diz anarquista tenha apontado à movimentação nacionalista e proclame com bravura o direito a decidir o material de que serão feitas as suas cadeias: ¡hay de Ricardo Mella y “la ley del número”! Também não desapareceram aqueles que um dia subiram para o carro do Podemos ou do plataformismo e mudaram os trapos da luta de classes pela roupa nova da cidadania. Perante a menor encruzilhada histórica, é próprio do anarquismo filisteu optar por fazer o jogo do poder estabelecido. A guerra civil espanhola é o exemplo mais evidente. Confusão, atracção irresistível pela confusão, desclacização, táctica do mal menor, o inimigo do meu inimigo, o que seja. O resultado final é este: uma massa de camponeses escravos de qualquer causa exterior e um montão de egos doentios, estilo Colau ou Iglesias, que pagariam para se venderem. No fim, tempestades negras agitam os ares e nuvens obscuras

de, prolongou-se numa cidadania democrática com a qual poderia levar para a rua as massas demasiado domesticadas para fazê-lo por vontade própria. Com grande habilidade, tocou a fibra obscura das emoções reprimidas e os sentimentos gregários que se aninham nos servos do consumo, isto é, souberam remover a alienação em seu proveito próprio. O objectivo, segundo o meu ponto de vista, foi alcançado, e a casta dirigente estatal está muito mais disposta a modificar a constituição do pósfranquismo para melhor encaixar a casta catalanista, mesmo que para isso tenha de sacrificar algumas figuras pelo caminho, como o próprio Puigdemont. Os poderosos representantes do grande capital (por exemplo, Felipe González) assim parecem indicá-lo. O nacionalismo está manipulado por golpistas, mas isto não se trata de um golpe. É um reflexo sentimental de uma situação frustrante para uma maioria de subjectividades pulverizadas. Não actua de forma racional, pois não é fruto da razão; é mais uma psicose que um pressentimento de libertação. A explicação da eclosão emocional patriótica na sociedade catalã só pode ser encontrada na psicologia das massas e para entender o fenómeno não serão mais úteis Reich, Canetti ou mesmo Nietzsche, que teóricos como Marx, Reclus ou Pannekoek. A convicção e o entusiasmo da multitude não provêm de frios raciocínios lógicos ou de rigorosas análises socio-históricas; tem

A vida quotidiana colonizada pelo poder da mercadoria e do estado é uma vida repleta de conflitos latentes e interiorizados, dotados de um excesso de energia que os faz emergir em forma de neuroses individuais ou colectivas. impedem-nos de ver. Tentemos dissipá-las. A questão que devia perguntar-se não é porque é que um sector local da classe dominante decide resolver as suas diferenças com o estado pela via da mobilização de rua, mas porque é que uma porção considerável de gente com interesses contrapostos, principalmente jovens, actua como decoração cenográfica e força de choque da casta que patrimonializou a Catalunha, classista, católica, corrupta e autoritária, entre outros. O jogo do patriotismo catalão não é difícil de desvendar e aqueles que o promovem e aproveitam nunca pretenderam ocultá-lo. O "Processo" tem sido uma arriscada operação de classe. A consolidação de uma casta local associada ao desenvolvimento económico exigia um salto qualitativo em matéria autonómica, que a estratégia do "peix al cove" ("pássaro que voa...") não podia alcançar. A recusa da plutocracia central em "dialogar", ou seja, a transferir competências, principalmente financeiras, bloqueava a ascensão dessa dita casta e fazia perder perigosamente a influência e capacidade política de alguns empresários, industriais e banqueiros dispostos a deixarem-se liderar por soberanistas a fim de triplicar os seus benefícios. A decisão pela cúspide de ir ao "acidente de comboios" significou uma ruptura radical da política pactista do catalanismo político. Não falar a sério é dizer que nunca houve a finalidade da declaração unilateral da independência, pois só se pretendia forçar uma negociação das posições mais vantajosas. Contudo, tinha de aparentar que sim, necessitou de um aparato de agitação bem oleado com o fim de inocular uma mística patrioteira que punha a ferver de forma controlada o caldo identitário. E a mobilização tornou-se realidade. Foi tudo um espectáculo. A demagogia independentista, armada com o marketing da identida-

É A LIBERDADE QUE AMO

mais que ver com as descargas emocionais sem risco, a sensação de poder que produzem os ajuntamentos, o fetichismo da bandeira ou de outros símbolos, a catalanidade das redes sociais, etc., características de uma massa desarraigada, atomizada e desclassada, e, portanto, sem valores, objectivos e ideais próprios. A vida quotidiana colonizada pelo poder da mercadoria e do estado é uma vida repleta de conflitos latentes e interiorizados, dotados de um excesso de energia que os faz emergir em forma de neuroses individuais ou colectivas. O nacionalismo oferece um excelente mecanismo de canalização desses impulsos que, se se fizessem conscientes, constituiriam um temível factor de revolta. O nacionalismo divide a sociedade em dois bandos paranóicos enfrentados artificialmente pelas suas obsessões. Os interesses materiais, morais, culturais, etc., não contam. Não está relacionado com a justiça, a liberdade, a igualdade e a emancipação universais. O povo catalão é algo tão abstracto como o povo espanhol, um ente que serve de álibi para uma soberania de casta com a sua polícia notavelmente repressora. Um povo só se define contra todo o poder que não emane dele ou que se separa dele. Por conseguinte, um povo com estado não é um povo. Concordarás comigo que a História se faz de gente comum através de assembleias e organismos nascidos delas, mas tal como estão as coisas, a História é de quem a manipula melhor. O que esta gente faz é proporcionar ao povo um má função teatral de onde se ventila uma prosaica distribuição do poder. Qualquer um pode fazer os seus cálculos e navegar dentro ou fora das águas nacionalistas, mas nunca deverá perder de vista o núcleo da questão.

Avui sóc català

Companys, alliberem les barques de tanta corda inútil. Hi ha grans rius que ens esperen. (Miquel Martí i Pol)

Amo e não consinto amo porque é a Liberdade que amo A Liberdade é o meu único senhor a minha única lei o meu único ditame Amo os perseguidos esfomeados agrilhoados colonizados reprimidos encarcerados exilados degradados oprimidos explorados refugiados! E que dizer dos outros …ados?: desprez… deserd… emigr… vilipendi… tortur… desgraç… atraiço… imigr… e roub…? Avui sóc català sóc Ferrer i Guardia alliberat del Castell de Montjuïc Fui Gaudí Miró Dalí Maciá Mata Salvat Rodoreda Pons Dauder Carulla Forn Montalbán e Matute Sou ainda Lizano de Berceo Este é todo o meu nome em mar de ononis natrix Avui sóc català de color groc amb estries vermelles Maçores, 1-O de 2017


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PARA UMA LIBERDADE INOMINÁVEL Entrevista a João Santiago

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ontinuando a publicação de artigos sobre a história de A Batalha, aproveitámos para conversar com João Santiago, que é o seu director desde 1998. Esta entrevista representa um importante testemunho do sapateiro setubalense para a memória deste jornal, desde os anos da clandestinidade até à actualidade, passando pelo seu ressurgimento em 1974. Autodidacta e poeta, publicou, em Setembro, o seu segundo livro, intitulado Poemas da Asa e da Pedra (UNISETI, 2017), que se junta à primeira antologia de originais A Memória e a Utopia. Perscrutando a Inquietude (Centro de Estudos Bocageanos, 2009). Recordando os encontros com os militantes anarco-sindicalistas durante a ditadura e a sua experiência enquanto associado e animador de diversos colectivos durante a democracia, Santiago expõe a sua posição perante o movimento libertário e o anarquismo contemporâneo. A Batalha: João, és director de A Batalha há 19 anos, desde 1998. Em 98 anos, és a pessoa que mais tempo desempe-

nhou essas funções. Fala-nos um pouco desta experiência. João Santiago: Apesar de nunca ter sentido grande vocação para este cargo de director, aceitei o convite dos outros membros do CEL. Fui ficando devido à grande amizade que fui construindo com a Elisa Areias e o Luís Garcia e Silva, que foram os grandes animadores de A Batalha nos últimos 20 anos.

disto ou daquilo. Vou dar um exemplo: o meu pai trabalhava na indústria das conservas e tinha uns terrenos onde trabalhava aos fins-de-semana e era criticado por isso, porque estava sempre a tratar da sua horta. O meu pai tinha uma família a sustentar e esta era uma outra forma de obter algum rendimento, pois não queria que nós passássemos fome.

A Batalha: Fala-nos do teu primeiro contacto com o anarquismo.

A Batalha: O teu pai tinha alguma ligação ao anarcosindicalismo? Podes falar de algumas experiências que tenhas tido com grupos anarquistas e que te tenham levado a encará-los com desconfiança?

João Santiago: Desde muito novo que a minha inclinação foi sempre para o anarco-sindicalismo. Para o anarquismo, não, pois não tenho boas memórias. Havia um grande defeito nos anarquistas: cada um era mais anarquista que o outro e entravam em conflito por causa disso. Quase que se policiavam uns aos outros. Se alguém fazia uma coisa que, apesar de correcta, não lhes agradava, acusavam-no

João Santiago: O meu pai era anarco-sindicalista, tal como todo o seu grupo de amigos. Foi através desta rede de amizades que fui conhecendo e me fui aproximando deste ideal. Depois fui aprender o ofício de sapateiro para uma oficina que era de um indivíduo também ligado ao anarco-sindicalismo. Quando eu abracei este ideal, fi-lo sem consciência daquilo que estava a fazer. Nessa oficina,


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já com 12 anos, comecei a contactar com muitas pessoas que tinham estado ligadas à Confederação Geral do Trabalho (CGT), pois era um ponto de encontro de toda essa gente. Naturalmente, quis alargar a minha experiência e, ligeiramente antes dos anos 1960, comecei a contactar com gente que estava sediada em Almada: Correia Pires, Sebastião de Almeida, Jorge Quaresma, Francisco e Irene Quintal. Eu era muito novinho, quando comparado com eles, e quando começaram a desaparecer, tive de procurar outro convívio.

posto. Incitavam as pessoas a cultivarem-se, a procurarem cultura para, a partir deles próprios, renascerem. Só esses homens novos é que teriam olhos para ver o mundo de outra maneira. Portanto, a minha grande simpatia pelo anarco-sindicalismo deve-se ao facto de ele trazer obra feita. Houve um tempo em que as pessoas olhavam para o passado e viam o PCP com presença em tudo, mas o que os comunistas estavam a fazer era a formar uma barreira para encobrir o que já tinha existido antes da sua fundação. Estavam a apropriar-se da obra feita por outros,

Não tenhamos ilusões: o salazarismo e o Partido Comunista Português deram cabo de tudo. A Batalha: Na década de 60, ainda havia muitos simpatizantes do anarco-sindicalismo? João Santiago: Não tenhamos ilusões: o salazarismo e o Partido Comunista Português (PCP) deram cabo de tudo. Na década de 1960, restavam poucas pessoas, que se juntavam em pequenos grupos extremamente vigiados. Não mais que 20 ou 30 militantes, que conheciam gente de Lisboa, de Almada, do Barreiro. Eu, por exemplo, conheci o Germinal de Sousa nessa oficina onde comecei a trabalhar. Nem sabia quem era, mas depois disseram-me que era o filho do Manuel Joaquim de Sousa, que tinha estado nas Juventudes Sindicalistas, na Guerra Civil de Espanha e na FAI. Conheci o Valentim Adolfo João, que esteve muito tempo preso na Penitenciária de Coimbra, tal como o Emídio Santana menciona no livro dele. Trabalhou nas Minas de São Domingos e diz-se que terá tido acesso aos explosivos que foram usados para fabricar a bomba usada no atentado a Salazar, em 1937, apesar de o Santana não falar disso no livro dele. Também conheci o Gato Pinto, que tinha sido GNR. Nessa altura residia no Barreiro, depois de ter passado uns 15 anos no Tarrafal, por ter participado no 18 de Janeiro de 1934 ao distribuir armas pela população. A Batalha: Todos esses militantes eram bem mais velhos que tu e acabaram por desaparecer antes de 1974. Por isso, disseste que precisavas de encontrar um outro convívio. Onde o encontraste? João Santiago: Estou no grupo que cria o Centro de Cultura Libertária (CCL) em Cacilhas, logo a seguir ao 25 de Abril. Já me relacionava com muitos deles, que costumavam passar aqui por Setúbal. Em Cacilhas assisti a discussões com uma profundidade que me deixava espantado: indivíduos que tiveram passados tremendos, cargas de anos de Tarrafal às costas, não deviam ter uma forma diferente de se relacionarem uns com os outros? Não havia reunião onde não houvesse acusações mútuas. Daí não ter grande simpatia por aqueles que se designavam só por anarquistas. A Batalha: Mas o CCL foi também fundado por alguns membros da velha-guarda confederal, como era o caso do Adriano Botelho. A queda do anarco-sindicalismo e da CGT, em 1927, deve-se, entre outras razões, a um conjunto de quezílias internas e ao policiamento dentro da confederação. De certa forma, aquilo que tu referias acerca da vigilância permanente dos anarquistas na clandestinidade e logo a seguir a 1974 não era novo, pois já tinha acontecido na década de 1920. Quais são as outras razões que te levam a estimar o anarco-sindicalismo? João Santiago: Porque o anarco-sindicalismo tinha uma história e um trabalho feito. Era um trabalho singular. Os anarco-sindicalistas não só criaram projectos sociais, educativos, lúdicos e culturais, como incentivaram as pessoas a libertar-se através dessas ferramentas. Eles consideravam que o grande problema da humanidade era a ignorância em que a igreja e outras instituições a tinham

como foi o caso dos anarco-sindicalistas. Hoje, os historiadores, os investigadores, mais limpos de ideologia, estão a escavar e a ver que por detrás dos comunistas existia alguma coisa. Escolas, sindicatos, grupos de teatro, associações de bairro, colectividades desportivas. Os anarco-sindicalistas eram os principais animadores e faziam tudo isso sem o objectivo de manipular mentes, mas de dizer às pessoas para se cultivarem. Não havia uma associação, por mais pequena que fosse, que não tivesse uma biblioteca. Eles pretendiam criar um outro tipo de homem. O homem que existia, que tinha sido construído ao longo dos tempos pela igreja, não estava preparado para olhar para o horizonte. A ideia dos anarcosindicalistas era permitir que qualquer pessoa se aperfeiçoasse, fosse através do teatro ou da música, por exemplo. Queriam criar um outro tipo de indivíduo. Daí a minha grande simpatia por isso. Depois há uma outra coisa que é pouco falada: é o sentido de amizade que havia entre essas pessoas. Lembro-me quando o meu pai faleceu... Os amigos dele, que eram gente saída desse meio, homens duros e gastos pela vida, a chorarem. A amizade deles era enorme. Penso que o movimento anarco-sindicalista desse tempo assentava muito na amizade que as pessoas tinham umas pelas outras. Uma amizade que não se vê hoje: as pessoas estavam dispostas a fazer tudo pelo outro. Foi tudo isso que me atraiu. É com grande lamento meu que vejo que talvez nada disso possa renascer porque tudo tem um meio onde nasce e que propicia que as coisas sejam assim. Havia muitos trabalhadores, fábricas, oficinas, ofícios. Hoje não há ofícios, as fábricas funcionam por outros processos e não é possível fazer uma reivindicação dentro de uma fábrica porque depois decidem deslocá-la para outro lado. Por exemplo, a cidade de Setúbal tinha um estrutura económica que assentava em oficinas, trabalho agrícola e indústria. As pessoas estavam crentes de que amanhã, se expulsassem os patrões, estavam em

A Batalha: Falas do problema da libertação do indivíduo. Que saídas eficazes vês para essa possibilidade? João Santiago: Hoje sou um descrente e não tenho esperança em coisa alguma. Até criei uma alegoria que define isso: o primeiro homem que se olhou ao espelho viu na sua cara deus e o diabo. E o que é que ele começou a fazer? A tentar ensinar a deus o que o diabo já era. A isso chamou-se progresso e desenvolvimento. Nomes que apenas confundem. Vai chegar uma altura em que a cara já é toda a do diabo e nessa altura a humanidade desaparece, devido à destruição da natureza, que está relacionada com a aniquilação desta camada muito frágil que sustenta a vida e da qual a vida nasceu. Por isso, estou muito descrente e decepcionado. A Batalha: Esta tua decepção não se deve ao facto de as pessoas estarem condicionadas por um meio social pestilento, restando-lhes reflectir criticamente acerca do seu lugar no mundo? Como podem os anarquistas responder a estes condicionalismos externos? João Santiago: Tenho em casa dois volumes de uma entrevista que um jornalista fez ao Jorge Luis Borges. Numa das passagens, fala de um amigo dele que era anarquista e que pretendia formar comunas em terra virgem. Todos esses projectos falharam: não porque tenha ido alguém de fora acabar com aquilo, mas porque internamente as pessoas desentendiam-se. Antes de ser anarquista, um indivíduo já é um ser humano com uma carga histórica e social. Portanto, o anarquismo não é capaz de desbastar todos os defeitos que ele tem até à pureza. Em dadas alturas, aquilo que o homem é vem ao de cima. E há ainda um outro problema no ser humano, que é gostar de se agregar a qualquer coisa que o fanatize para, a partir daí, de uma forma desculpabilizante, fazer o que tiver vontade de fazer. Isso não existe no anarquismo ou no anarco-sindicalismo. Ninguém se agrega a uma instituição que o fanatize: cada um é livre e pensa pela sua própria cabeça. Não tem de obedecer nem a deus, nem ao diabo, nem ao estado. A minha ideia é a de que o ser humano que é moldado pela sociedade gosta de se agregar a qualquer coisa que o fanatize, seja a igreja ou o clube de futebol. Há qualquer coisa no ser humano que se sente bem com o fanatismo. A Batalha: Achas que continuamos a passar por um período de fanatização pelas ideias de progresso e de democracia? João Santiago: Absolutamente. Os mestres deste malabarismo desenvolveram o discurso do fascismo e transformaram-no nos discursos da democracia, dos

E há ainda um outro problema no ser humano, que é gostar de se agregar a qualquer coisa que o fanatize para, a partir daí, de uma forma desculpabilizante, fazer o que tiver vontade de fazer. Isso não existe no anarquismo ou no anarco-sindicalismo. Ninguém se agrega a uma instituição que o fanatize: cada um é livre e pensa pela sua própria cabeça. condições de pôr os meios de produção a trabalhar, caso desejassem. Hoje vejo as coisas muito complicadas porque foi montada uma engenharia que criou uma muralha à volta das pessoas e confinou-as a uma ideia de liberdade projectada para o consumo e diversão. Para ter consciência e começar a exigir outras coisas a liberdade é logo cerceada.

direitos humanos, do futuro melhor. Todos caíram nessa ratoeira. A Batalha: Então, qual a acção que um anarquista pode ter hoje em dia quando se confronta com este tipo de fanatismo?


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João Santiago: Face a esta atrocidade, o único caminho possível é que cada indivíduo se aperceba que está num labirinto. Ganhar essa consciência é já um procedimento anarquista. Um anarquista não pode ter pretensão de ser anarquista ou sequer de se afirmar como tal. Tem, acima de tudo, de ser um homem digno, que discorda com as injustiças e com a mentira. Hoje, o caminho passa por redignificar o ser humano. Eu sou um humanista. Acho que o ser humano caiu num poço e muitos estão a aproveitar-se desse facto. Eu denuncio isso porque sou um ser humano sensível. A dignificação do ser humano foi o que os anarco-sindicalistas fizeram. Por isso, ajudaram-no a conseguir a sua libertação através da leitura, desenvolvendo competência de análise crítica, o respeito por si próprio e pelos outros. Chamar alguém para a esfera anarquista é já uma forma de doutrinação. Nós não temos o direito de doutrinar ninguém, mas o dever de dar as ferramentas necessárias para que cada um se possa reerguer, consciencializando-se de que se encontra cercado. O ser humano olha-se ao espelho e vê um monstro. A primeira coisa que tem a fazer é perguntar-se porque é que só faz monstruosidades. Só fazer essa pergunta é já dar um passo em frente. Nós saímos da natureza e abalámos não sei para fazer o quê. Acho que o ser humano está completamente perdido e não sabe que caminho percorrer. E continua a enganar-se inventando diversas coisas: ou que vai para o céu, ou que quer criar o céu na terra porque amanhã vem a democracia, um salário melhor ou o emprego para toda a gente. E vai inventando estas mentiras com que se vai enganando, com uma máquina que vai explorando isto tudo. O problema é a fraqueza do ser humano. É mais fácil domesticar cem seres humanos do que domesticar um gato. A Batalha: Achas que o anarco-sindicalismo conseguiu identificar alguns destes problemas e conseguiu encontrar respostas? João Santiago: Sim. O anarco-sindicalismo está na criação das primeiras estruturas que tentam resolver esses problemas.

A Batalha: Como enquadras A Batalha no seio de tudo isto? Que papel vês o jornal desempenhar no futuro próximo? Achas que ainda faz sentido falar do anarco-sindicalismo? João Santiago: Terá de ser alguma coisa diferente. Acho que não faz sentido tentar implementar uma coisa semelhante ao anarco-sindicalismo hoje em dia, mas é preciso preservar o seu património. Há muitas coisas interessantes, afastadas de qualquer ideologia, que estão a ser implementadas pelo mundo fora. Grupos de pessoas que não têm alternativa nenhuma, que rejeitam a

sociedade e que se associam para se libertarem das amarras sociais. A Batalha deve estar de olho nesses exemplos. Tudo aquilo que se apresente como dignificador do ser humano, que aponte para as razões que levam a que o ser humano esteja encostado à parede, que lhe mostre que ele tem de sair dali, isso é o que faz o anarquismo. Não é uma ideologia que vem escrita em livros, nem é suficiente reivindicar-se como anarquista para o ser.

O COLONIALISMO NA ETIÓPIA J. AUGUSTO O Colonialismo continua sem usucapião, sem direitos humanos, sem dó nem piedade dos povos. Continua impondo aos povos o seu modelo económico-social, político-administrativo, religioso e militar.

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a Etiópia, com o apoio da China e de empresas como a italiana Salini, os governantes planeiam construir cinco barragens (as «Gibe»). Já construíram três e planeiam a Gibe IV, no genesíaco Vale do Omo. Com a construção destas barragens, planeiam transformar a Etiópia numa economia industrial, de serviços e de macroprojectos de monocultura agrícola (algodão, por ex.), esquecendo a fisionomia primitiva das terras e os povos milenares que nelas vivem em torno das águas do lago Turkana e do Rift. Para isso, as autoridades etíopes limitam a informação e acesso aos locais, escondendo a resistência das populações da região chamada de Oromia e «Nações Surenhas, Nacionalidades e Povos da Região», bem como a violência do exército sobre as etnias Daasanach, Konso e Milo. Segundo o Centro de Estudos Africanos de Oxford, “as barragens Gibe III e IV não são sutentáveis de nenhum ponto de vista”, levarão à redução dos niveis do delta do Omo e a “perdas seguras das populações locais do Quénia e Etiópia”. Segundo a ONG International Rivers, citada na revista Geo

(nº361), a construção da Gibe III (2016), feita para assegurar energia na capital e no norte rico, não considerou os impactos social e ambiental, sobretudo sobre a população tribal do Omo, transformando a vida de 400.000 pessoas ao longo do rio até ao lago Turkana. 100.000 humanos dependiam directamente das inundações do rio Omo (gado e agricultura), outras 100.000 indirectamente. A organização International Survival denuncia que, mesmo com a barragem, não tem sido distribuída água suficiente para a sobrevivência dos indígenas humanos, havendo milhares de pessoas em risco de morrer à fome. No entanto, a Gibe III regará 175.000 hect. que abastecerão a Europa e China, privilegiando monocultivos de açúcar pela empresa etíope Sugar Corporation e pelas chinesas Complant e JJIEC, que projectam cinco novas cidades com dezenas de “aldeias para os trabalhadores”. A juntar à ausência de pré-consultas das populações do Vale do Omo, confirmada por 28 cooperantes internacionais, estas construções estão a causar sobre os povos destas regiões: escassez de água; impedimento de inundações sazonais, com prejuízo para a agricultura

tradicional; devido à falta de nutrientes na terra, perda de fertilidade e de cultivos; recolocações forçadas; migrações internas e conflitos interétnicos no lago Turkana (Quénia), cada vez mais seco, do qual dependem 300.000 pessoas; tensões com o Sudão e Egipto, por causa da Grande Barragem no Nilo Azul; deslocações violentes de populações inteiras; corte de árvores nas margens fluviais devido ao surgimento de novas aldeias; abuso de drogas, álcool e tabaco entre os indígenas; surgimento de formas de sustento como o turismo. Segundo fonte anónima, citada pela Geo, para as populações locais, estas construções significam “recolocações forçadas e usurpação de suas terras, das quais não possui [há milhares] de anos algum documento de propriedade”, embora o nome do lago Turkana proceda da tribo local. O lugar onde surgiu a humanidade, protegido pela Unesco, pode desaparecer. O colonialismo continua! Dezenas de milhares de humanos são obrigados a abandonar as suas terras e o seu estilo de vida tradicional. Ainda por cima, sem alternativas económico-sociais.


A UM CAÇADOR ANTÓNIO GONÇALVES CORREIA

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ntónio Gonçalves Correia (GC) tem merecido a nossa atenção em A Batalha, para recordarmos neste espaço, e no ano em curso, extractos das cartas que compilou no seu livro Estreia d’Um Crente, de 1917, nas quais foi procurando transmitir ao destinatário a sua reflexão sobre a sociedade burguesa, aquela que conhecia e em que vivia, bem como a crença que assumia na Revolução e na sociedade da Anarquia. Da memória oral que nos chega de Gonçalves Correia, registamos que circulava, por exemplo de bicicleta, respeitando uma «carreira» de formigas, que comprava no mercado gaiolas com pássaros para de seguida as abrir e libertar os prisioneiros - consta que o filho o convidava para comer passarinhos fritos e que ele não queria ser tentado - e os seus textos remetem-nos para o respeito pelos animais, em igualdade com os humanos, tema que aliás tratou na sua conferência “A Felicidade de Todos os Seres na Sociedade Futura”. Nesta linha de abordagem ao seu pensamento sobre os outros seres, seleccionámos para este número uma das cartas de Estreia d’um Crente, desta vez dirigida A Um Caçador, que GC considera um amigo, mas “um assassino legal!”, nas suas próprias palavras, que usa a espingarda para ferir e matar quando, ao contrário, deveria preocupar-se com coisas do espírito. Gonçalves Correia aprecia a alegria das aves, capazes de encantar os homens com “espetáculos encantadores”. Refere a codorniz, o melro, a rola, mas também o coelho, alvos de uma qualquer “espingarda cara, de canos reluzentes!”, vítimas de um caçador que tendo coração parece não o ter, pois “deixa-o em casa a um canto quando vai caçar … [já que] se o levasse, não caçaria”. Mais, GC chama mesmo “cobarde” ao amigo, o melhor termo que encontra para classificar os que actuam com armas desiguais, pois utilizar a espingarda não é servir-se de uma arma natural equivalente à dos atacados. E afirma ainda e questiona a razão pela qual os caçadores não vão atacar os animais de grande porte nas selvas da Austrália! Utilizando sempre a sua vertente pedagógica, Gonçalves Correia tenta demover o amigo caçador dessa prática da caça, procurando trazê-lo ao que chama do “Bem e do Amor Universal”, referindo-lhe o seu próprio exemplo de recuo face a uma atitude antiga, de maus tratos a um gato, lembrando que o homem começou por ser naturista e crudívoro, não matando animais, entre outros exemplos que apresenta. Convida o amigo a uma visita, mas largando a espingarda, respeitando o direito à vida, que é um direito de todos os seres, e procura sensibilizá-lo para ocupar tempos de lazer observando as maravilhas da Natureza ou frequentando em Lisboa (onde o amigo viveria, como se pode concluir) espaços de cultura, ou simplesmente enchendo os olhos e o espírito com o que pode ver à sua volta. Trata-se de mais uma carta que trazemos aqui com adaptações, desta vez em outro ângulo de reflexão sobre a vida, o homem e o ambiente que o rodeia, destacando o amor à Natureza, às aves, aos animais, e por isso repudiando a caça. Passemos então à leitura do texto de Gonçalves Correia. FRANCISCA BICHO

Meu Caro Amigo: (…) Extraordinário procedimento o seu, meu caro amigo. Extraordinários prazeres os que V. procura, substituindo-os insensatamente por outros de incontestável utilidade e de reconhecida feição moralista! Caçar, ferir, matar, roubar a vida e a alegria às pobres aves (…) Caçar! Ferir! Matar! Roubar a vida, uma coisa tão preciosa! Ser assassino a sangue frio, uma coisa tão deprimente! (…) Toda a acção ofensiva é deprimente … E haverá coisa mais deprimente, mais reveladora de cobardia, mais condenável, mais monstruosa, do que atacar sem ser atacado, do que ferir sem ser ferido, do que perseguir por maldade seja o que for? Cobardia, extraordinária cobardia! Pois não é cobardia perseguir uma ave, sempre útil? Pois não é cobardia fazer tombar com um tiro ignominioso um engraçado coelhito que delicia os nossos olhares curiosos com os seus saltitos de acrobata campesino? (…) Os argumentos que, a custo, o meu amigo tem apresentado em sucessivas discussões que temos tido são de molde a não convencerem um espírito que procura a verdade, tendo tido apenas a utilidade de demonstrarem a sua queda admirável para orador de assembleias fáceis de convencer. O caçador é, pois, como caçador, duma cobardia que revolta e que enerva. Fere e goza ferindo! Vê tombar a sua vítima e arregala os olhos ante o desnorteamento do animal que prostrou! Vê sumir-se-lhe o último alento e diz, com prazer inconcebível: “Já não comes mais grão!”. O caçador procura tão condenável prazer porque não reflecte. Se o fizesse partiria a espingarda em mil bocados e diria com soberba e consciente indignação: “Aparta-te de mim para sempre, instrumento miserável de morte e de dores! Funde-te de novo e vai agregar-te à enxada sublime que abre as entranhas da terra! Junta os teus bocados a outros bocados e vai forrar uma parte dos navios mercantes que, em serviço da civilização, percorrem lestos os oceanos! (…) Virão ainda os caçadores a procederem assim e a falarem desta forma? Por que não? O coração transforma-se. A inteligência apura-se. Muitos indivíduos há que, tendo já procedido mal, anteriormente, são nesta hora grave dum puritanismo dignificante. Um homem culto, um espírito superior, um indivíduo que tem à mão, conquistados pelo seu labor constante, material ou intelectual, os elementos precisos, dignos e morais, para a distracção do seu espírito, não pega em uma espingarda miserável para ir matar com diabólico prazer as inocentes avezinhas, cuja utilidade é incontestável, utilidade que de mil maneiras se manifesta. E V., que dispõe de elementos materiais razoáveis, que tem um cérebro normal, que tem um coração que sente, pode muito bem procurar outros prazeres mais dignificantes e mais razoáveis. V. vive em Lisboa. Por que não há-de, pois, procurar robustecer aí seu carácter e a sua inteligência? Lisboa não dispõe de elementos para isso? (…) Não cace mais, meu amigo! Não continue a ser a causa de sofrimentos horrorosos, de desgostos profundíssimos no lar bendito dos passaritos que Deus (a Natureza criadora) lançou no campo

vastíssimo da vida! Não cace mais, meu amigo! Por que não há-de empregar melhor o seu tempo? Pois só matando é que goza? Extraordinário carácter! Matar para … gozar! Para gozar, sim, pois sei muito bem que não o faz por necessidade material; se o fizesse por necessidade de ganhar a vida, é certo que o seu acto não seria digno de aplauso (ganhar a vida matando é um contrassenso que horroriza) mas seria mais desculpável. Mas assim, caçando por prazer! … Inconcebível prazer, horripilante divertimento! Dar-me-á V. o prazer de não mais pegar nessa espingarda fratricida de canos pretos como a morte, de aço duro como os pulsos dos tiranos, de boca larga como a entrada dum abismo? Não sei. Mas quem sabe? Quem sabe se V. amanhã, quando os dedos fadados duma companheira querida lhe pousarem graciosamente na fronte morena, torrada do sol de Julho, e quando o olhar meigo, angelical, dum filho tenro, se cravar interrogador nos seus olhos negros, quem sabe, repito, se V. compreenderá que tão merecedora de respeito é a mulher que tem um filho nos braços como a codorniz que aquece no ninho, com o seu peito arfante e as suas penas macias, os filhitos das suas entranhas, o prazer da sua vida, a causa dos seus trabalhos? Quem sabe? (…) Salvar uma mosca, salvar uma formiga não é um acto de respeito pela vida? Ou quer V. que isto seja pieguismo puro? Seja o que for: é o acto de quem possui um coração. E quem tem um coração para salvar um pobre insecto que as garras da morte querem prender, não será capaz de salvar um semelhante? (…) Caçar mais? Não, não fará isso de futuro, meu amigo! Caçar para quê? Para distrair o espírito? Isso não! Há mil maneiras de nos distrairmos sem que dessa distracção resulte uma angústia! (…) Estamos na quadra outonal, como sabe. Pois quer V. melhor época do ano para se gozar o espectáculo maravilhoso e surpreendente que a Natureza nos oferece? Dias tépidos, manhãs serenas, tardes deslumbrantes, noites dum luar prateado que os sons harmoniosos das rabecas vêem animar, tudo isso constitui um espectáculo soberbo que se não deve trocar por outros (…) V. responderá, entre muitas outras coisas, que o bicho homem sempre foi caçador. Não é verdade. O homem só começou a caçar depois que umas tinturas de civilização o desviaram dos seus antigos hábitos naturais (…) Os primitivos homens não eram, não podiam ser caçadores ou pescadores. Além de não carecerem de peixe e de caça para viverem, pois não a podiam comer no estado natural, não tinham à mão os elementos do mal de que hoje se servem: espingardas, pólvora, chumbo, buchas, redes, farpões e outros inventos de morte e de crime. Tem o meu amigo forma de contestar esta argumentação, descolorida mas sólida? (…) Terminando, eu espero que o meu bom amigo atenda o meu apelo (…) matar por prazer, como V. faz (…) nada mais é do que procurar impedir o avançar desta vida harmónica e vibrante a que todos têm direito! Estreia d’Um Crente, edição do autor, Minerva Comercial, Évora, 1917, pp. 49-57

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OS CANGACEIROS MÁRIO RUI PINTO

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s Cangaceiros foi o nome de um grupo que se destacou na luta anticarcerária e que actuou, sobretudo em França, de 1984 até ao início da década de 90, com uma prática que se pode considerar de acção directa. Existência breve, porém intensa e marcada pela marginalidade e pela diferença em relação às outras organizações da época. Mas a sua origem remonta a 1977, quando um pequeno grupo se constituiu em Nice à volta de uma revista, através da qual tornava públicas as suas vivências, lutas e reflexões. A revista intitulava-se Les Fossoyeurs du Vieux Monde (Os Coveiros do Velho Mundo) e dela foram publicados quatro números entre 1977 e 1983. Projecto fortemente influenciado pelo Situacionismo – mas não só –, de onde adoptaram diversos conceitos como, por exemplo, não trabalhem nunca e a revolução do quotidiano. Por vezes assinavam os seus textos como “Situacionistas”. Curiosamente, ou talvez não, foram sempre ignorados pelos pretensos (e pretensiosos) chefes do “movimento situa” e pelas obras consagradas ao estudo deste movimento. Escritos teóricos misturavam-se com reflexões mais pessoais. Através de textos longos, eram publicadas, lado a lado, análises aos crimes do Estado e críticas do quotidiano, ao mesmo tempo que ataques severos contra as organizações partidárias, sindicais ou “revolucionárias” emparceiravam com a apologia da revolta, a “estética do negativo”, na qual o prazer na destruição era inseparável de uma tentativa real de ruptura. Em Maio de 1983 saiu o último número de Les Fossoyeurs du Vieux Monde, mas não terminou a experiência comum nascida das discussões à volta dela e da participação em lutas, nem tão pouco o desejo de enfrentar a realidade. Tudo indica que o grupo se deslocou de Nice para Paris, adoptou o mesmo nome dos “bandidos sociais” do Nordeste brasileiro1, talvez devido ao papel fulcral que os seus membros atribuíam à clandestinidade e ao banditismo sociais, iniciou a edição de uma nova revista chamada também Os Cangaceiros, publicada entre Janeiro de 1985 e Junho de 1987, e começou a aparecer em algumas das lutas de origem marcadamente proletária mais importantes da época. Assim, estiveram em Vireux, na região das Ardenas, ao lado dos operários em greve, e vagabundearam das minas das Astúrias ao bairro dos Minguettes2 em Lyon, das cidades mineiras da Grã-Bretanha a Nantes ou à Polónia. Nesta altura, o leitor potencial do livro perguntar-se-á naturalmente: apesar do evidente interesse do grupo, porquê editar em 2017 textos com cerca de 30 anos de existência? Por diversos motivos: primeiro, porque ao lerse os três números da revista Os Cangaceiros fica-se surpreendido com a modernidade das suas análises, apesar da distância temporal; segundo, porque constatouse que a sua própria existência como grupo é pouco conhecida actualmente, mesmo junto de quem lhe está próximo na teoria e na prática, e merece ser divulgada; finalmente, e talvez o mais importante, porque considerou-se que, numa época em que o Estado “democrático” utiliza cada vez mais a lei e a prisão para condicionar e penalizar os movimentos sociais, a divulgação destes textos poderá ser um contributo significativo para a reflexão e a prática anticarcerárias, em suma, para o debate e a luta contra um sistema que nos mantém constantemente sob controlo. Mas, afinal, quem foram Os Cangaceiros? Um grupo reduzido de homens e mulheres vivendo em comunidade, que se consideravam uma associação de delinquentes e de desempregados permanentes e que aproveitavam o seu tempo livre para imaginarem formas de destruir este mundo sem, no entanto, caírem no activismo esquerdista ou no militantismo armado, que criticavam profundamente. Adeptos da acção directa e de um modelo decisório nãohierárquico, recusavam-se a qualificar a sua luta de

Os Cangaceiros, Lisboa, Barricada de Livros, 2017.

“política”, como também se opunham à distinção entre presos “políticos” e de “direito comum”. Ao longo dos seus poucos anos de vida, este grupo escreveu, roubou, sabotou, vandalizou, participou em lutas noutras realidades sociais e geográficas que não apenas a francesa, criou cumplicidades, denunciou situações de repressão estatal e os malefícios das instituições (principalmente da instituição-prisão), sempre defendendo uma visão social da clandestinidade. As suas formas de agir foram diversas: edição de revistas, livros e panfletos, sabotagens, destruições, apoio a greves e outras lutas, recusa ao trabalho, roubos como forma de sobrevivência. Lutaram, amaram, viveram. Fizeram da sua vida uma aventura, sempre em conflito com a realidade da época. Que mais se pode desejar? Em Janeiro de 1985 apareceu o primeiro número da revista Os Cangaceiros. Ao contrário da anterior, a nova revista já não abordava questões e reflexões sobre o quotidiano e os modos de confronto e continha menos informações sobre os encontros colectivos ou individuais do grupo. Os textos, assinados por pseudónimos, relatavam situações concretas de conflito. Uma nova forma e conteúdo, mas sempre uma vontade de apoiar e fazer avançar as lutas, em ruptura com partidos, sindicatos ou organizações “revolucionárias”. Sobre este tema, escreveram: “Só temos uma forma de relação com grupos e organizações políticas: a guerra. Todos são nossos inimigos, sem excepção.” De Maio a Agosto de 1985 registaram-se inúmeros tumultos e revoltas nas prisões do estado francês. Os Cangaceiros foram os autores de todo um conjunto de acções e panfletos, a fim de divulgarem as reivindicações dos presos, mais tarde publicadas no segundo número da revista, em Novembro de 1985. As acções realizadas incluíram: bloqueio e grafitagem de comboios e metros; destruição e/ou sabotagem de instalações e vias férreas da SNCF (a companhia nacional de caminhos-de-ferro) e de empresas que exploravam o trabalho prisional; ataques às tipografias onde eram impressos os jornais mais hostis e mentirosos em relação à luta dos presos, afectando a tiragem e a distribuição; vandalização de vários automóveis de altos funcionários do Estado e imobilização de cem viaturas da Volta à França em bicicleta pela destruição dos respectivos pneus. Às acusações de “terroristas” veiculadas pelos jornais, responderam com novos ataques às tipografias e com declarações políticas, tais como: “A nossa prática é de natureza muito diferente do terrorismo. As nossas ferramentas de acção são as mesmas que as de qualquer proletário: sabotagem e vandalismo. Nós não fazemos acções simbólicas; criamos desordem, como os trabalhadores em luta geralmente sabem fazê-la quando bloqueiam estradas e linhas de comboio, sabotam máquinas, transmissores de televisão, etc...”3 A 19 de Dezembro de 1985, em Nantes, dois presos em processo de julgamento, Georges Courtois e Patrick Thiolet, ajudados por um amigo, Karim Khalki, assumiram o controlo da sala de audiências do tribunal desta cidade, fazendo reféns juízes e outros funcionários, e durante quase dois dias, na presença dos média, o sistema judiciário foi julgado por quem este queria enviar para a morte atrás das grades. Os Cangaceiros solidarizar-se-iam de novo, através de diversas sabotagens na linha das anteriores, como se solidarizarão mais tarde, em Fevereiro de 1986, quando o Ministro do Interior faltou ao acordado com os três amigos na altura da sua rendição. Em 1987 editaram L’Incendie Millénariste, obra volumosa na qual os autores, Yves Delhoysie e Georges Lapierre, provavelmente pseudónimos, apresentam, numa perspectiva nova, movimentos e experiências que ocorreram da Idade Média à contemporaneidade. Segundo os autores: “A crítica feita pelos movimentos milenaristas encontra-se, de facto, no coração do pensamento crítico moderno. O interesse revolucionário dos movimentos


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Numa época em que o Estado “democrático” utiliza cada vez mais a lei e a prisão para condicionar e penalizar os movimentos sociais, a divulgação destes textos poderá ser um contributo signi cativo para a re exão e a prática anticarcerárias, em suma, para o debate e a luta contra um sistema que nos mantém constantemente sob controlo.

milenaristas, por oposição às heresias e outras dissidências religiosas, situa-se no facto de que estes movimentos atacaram o mundo da religião e não apenas a Igreja católica, seus dogmas e práticas, como foi o caso dos Valdenses, dos Cátaros, dos Utraquistas e mais tarde dos Luteranos, quer dizer, atacaram a religião como parte da sociedade.”4 Como a associação já era muito procurada pelas forças policiais, devido às sabotagens realizadas, a difusão deste livro tornou-se bastante difícil. Distribuidores e livreiros foram pressionados a recusá-lo. O terceiro e último número da revista apareceu em Junho de 1987, contendo textos sobre a tomada de reféns em Nantes, as greves dos estudantes em 1986 e dos ferroviários em 1987 e diversas lutas pelo mundo fora. Em 1989, Os Cangaceiros subiram a fasquia na luta contra as prisões. Da solidariedade activa com os presos, passaram para a acção directa contra a construção de novos estabelecimentos prisionais. Respondendo ao apelo securitário de alguns sectores da sociedade francesa, o governo lançou um programa de investimentos, chamado “Programa dos 13 mil”, que incluía o encerramento ou a remodelação das prisões mais antigas e a construção de novas, para criar 13 mil novos “espaços” para presos. A partir de Abril de 1989, Os Cangaceiros iniciaram uma luta que duraria até ao final de 1990: sabotagens aos escritórios e aos estaleiros das empresas de construção que ganhavam os contratos; roubos dos projectos de arquitectura e de detalhe; uma tareia ao arquitecto Christian Demonchy, “especialista” em prisões e autor de vários projectos, e o roubo à France Telecom de 10 mil moradas de pessoas e associações situadas perto das futuras prisões, para onde enviaram bastante documentação com datas e informações sobre o que estava a ser construído. Finalmente, em Novembro de 1990, tornaram público um dossier volumoso, intitulado Treize Mille Belles (Treze Mil Fugas)5, contendo 106 páginas em formato A4 de documentação técnica precisa sobre a construção, os materiais utilizados, os sistemas de alarme e vigilância e até pequenos mapas e desenhos de todas as prisões com as respectivas particularidades. Excelente ferramenta para futuros presos com pretensões à fuga! Aliás, Léopold Roc, membro do grupo, escreverá alguns anos mais tarde: “Não era exagero algum afirmar que estas prisões também estavam a ser construídas para nós; sabendo que a melhor defesa é o ataque, pensámos que, se fôssemos apanhados, melhor seria por algo que valesse a pena.”6 Após estes acontecimentos, a pressão policial, que já era significativa desde o Verão de 1987, quando a polícia judiciária se aliou a outras polícias e aos serviços secretos para melhor os investigar e neutralizar, tornou-se então verdadeiramente asfixiante, pelo que o grupo foi obrigado a abrandar a sua actividade. Uma das associadas, conhecida sob o pseudónimo de Andréa Doria, poria fim à sua vida a 15 de Agosto de 1991. Doente de cancro desde 1985, decidiu em 1990 concretizar uma decisão tomada há algum tempo. Não aceitou a proposta para um tratamento experimental (leia-se, fazer gratuitamente de cobaia para a indústria farmacêutica), rompeu radicalmente com o meio hospitalar e reapropriou-se do fim da sua vida e da sua morte, da qual escolheu a data. No ano seguinte, Os Cangaceiros publicam uma recolha dos seus textos de reflexão pessoal e de crítica à medicina7. Depois, mais nada. Os Cangaceiros eclipsam-se definitivamente. Em Maio de 1995 foi divulgado o texto de Léopold Roc já

mencionado (ver nota 6), que deitaria alguma luz sobre as razões do desaparecimento súbito. Aparentemente, o conjunto de pessoas que constituiu este grupo, apesar de ter logrado ultrapassar a mera formulação teórica de uma crítica do existente, mantendo e disseminando uma prática consequente, não conseguiu evitar alguns dos problemas inerentes a uma vida clandestina de luta em comum. Para além, como é óbvio, da pressão policial claustrofóbica e da pouca vontade de terminarem os seus dias numa qualquer prisão do Estado. E é também por isto que os seus textos merecem ser lidos e debatidos, na medida em que reflectem as também nossas dificuldades e incapacidades em pensar a complexidade das estruturas de dominação actuais e em desenvolver alianças individuais ou de grupo, que durem para lá do imediatismo ou da superficialidade de acções simbólicas. Como alguém escreveu: “Se associar-se é unir-se, como não reproduzir os espaços de coerção que qualquer grupo ou projecto induz sobre os seus membros? Se recusar é expor-se, como permanecer no anonimato da guerra social? Se lutar é organizarse, como evitar crer-se os mais astuciosos, como agir sem isolar-se e sem se tornar exemplo ou vanguardismo? Se procurar cumplicidades é armar-se, como não fantasiar categorias sociais designadas como aliadas?”8 Infelizmente, o colectivo editorial teve de fazer escolhas em relação aos textos a publicar, já que era materialmente impossível editar, na íntegra, os três números da revista Os Cangaceiros, para além de outros documentos também considerados de leitura fundamental. As escolhas recaíram nos textos mais “emblemáticos” do percurso teórico e prático do grupo, bem como nos mais elucidativos sobre as mudanças sociais que aconteceram nas “democracias” ocidentais europeias nas décadas de 70 e 80, fundamentais para se perceber o presente, textos estes que explicam como a prisão se tornou um risco sério e iminente para todos os que ousavam questionar e combater o status quo. Hoje, nada mudou! Qualquer pessoa, em qualquer momento, por qualquer motivo, pode ser presa, não apenas devido à paranóia crescente de largos sectores da sociedade em relação à “segurança”, mas também pela resposta cada vez mais repressiva e globalizada que o Estado dá de imediato, como seria de esperar, perante a menor possibilidade de radicalização e crescimento das lutas sociais. Seja como for, em resultado da evolução (ou involução) tecnológica, social e económica, há muito que todos nós já vivemos numa espécie de prisão. Até quando? Só depende de nós! 1. O cangaço, na sua forma de “banditismo social”, foi um movimento de luta armada da classe pobre que existiu no Brasil desde o final do século XIX até à década de 40 do século XX. Os cangaceiros eram bandos de “foras-da-lei” que vagabundeavam pelos diversos estados nordestinos, regra geral roubando os ricos para auxiliar os pobres, destruindo títulos de propriedade e combatendo as forças policiais. No entanto, alguns bandos não foram tão “sociais” no seu comportamento, roubando indiscriminadamente e colocando-se mesmo ao serviço dos grandes fazendeiros na protecção das suas propriedades. A extinção deste fenómeno surgiu sobretudo em consequência da decisão do então Presidente da República, Getúlio Vargas, de eliminar qualquer foco de desordem no território nacional. O regime incluiu os cangaceiros na categoria de extremistas, pelo que praticamente foram todos mortos ou obrigados a renderem-se. 2. Minguettes é um bairro guetizado da periferia de Lyon, erigido na década de 60 do século XX para alojar sobretudo pessoas de origem africana e que tem uma história importante no campo das lutas sociais. Como em qualquer outro bairro de periferia, concebido para “habitação social”, proliferam os edifícios sem qualquer beleza arquitectónica e construídos com materiais de qualidade muito duvidosa. 3. In Introdução a Un Crimine Chiamato Libertà, L’arrembaggio, 2003. 4. Delhoysie, Yves e Lapierre, Georges. L’Incendie Millénariste, Os Cangaceiros, 1987. 5. Trocadilho com a palavra Belles que, para além de Belas, também significa, em linguagem coloquial, Celas e Fugas. 6. Roc, Leopold. The Blurred Trail of the Cangaceiros in the Social Pamps, 1995. 7. Doria, Andréa. N’Dréa, Os Cangaceiros, 1992. 8. In Introdução a Os Cangaceiros, janvier 85 - juin 87, 2009.


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A ONTOLOGIA DO TROPICAL-INDUSTRIAL

Moda é imanência

RON GALLIPOLI

N

ão estou a tentar explicar um conceito. Gosto de conceitos, conceitos são divertidos e interessantes, mas cheguei a isto a partir do mundo da música popular. Aí, os conceitos são quase irrelevantes. Um crítico de arte exige razões, mas a música não. Qual é a ligação conceptual entre música electrificada e um casaco de pele? Podíamos tentar explicar isto utilizando algum tipo de diagrama de Venn desarranjado, sumarizando a situação social e económica dos meados do século passado, nos EUA, mas não aprenderíamos nada. A estética do rock and roll é contingente. É só um conjunto de coisas que aconteceram ao mesmo tempo e no mesmo espaço. À medida que o tempo foi passando, tornou-se barroca, auto-referencial, e agora praticamente que só come a sua própria merda. Não obstante, teve o seu tempo, teve o seu poder, foi importante e deu um propósito a determinadas vidas (notem a utilização do pretérito perfeito). O rock and roll não é um conceito, mas uma estética, e, agora, é um conjunto de diferentes estéticas. O que estou a tentar fazer é tornar a imanência numa estética. Estou a tentar fazer com que as pessoas vejam algo que já está lá, como as modas do próximo ano. Talvez as roupas não tenham ainda sido feitas, são intuições na cabeça do designer, alguns recortes de revista nas suas "pranchas de inspiração", mas irão certamente convergir em determinadas formas, cores e referências, de forma semi-mística. Eles irão decidir como expor estas referências, como combiná-las. "Oh, nós queremos que isto se pareça um bocado com o casaco que um futebolista da RDA pudesse ter vestido durante umas férias em 1988. Contudo, só a gola - os botões devem ser parecidos aos de um polícia chinês, e vamos manter as mangas do ano passado.»

Muitos dos produtos da indústria de moda são essencialmente banais, porque têm de atender aos desejos de uma audiência (os ricos) que é particularmente estúpida e ignorante. O seu uso da cultura também não é planeado, numa forma que conduz o crítico de arte ao desespero. Não há um Porquê, apenas um Quê. Para um designer de moda, a História e a cultura são um armazém de tecidos, silhuetas e detalhes. O designer talentoso sente que alguns deles devem ser usados agora, este é o seu tempo. Sim, é uma coisa estranha, mas estão certos que este momento na História exige tanto nylon como lã e que os fechos deste ano não sejam zips, mas botões antiquados. Porquê? Porquê estas coisas agora? O designer, que pode ignorar toda a História que não seja a da roupa, sente tendências tão intensas que nem consegue consciente-

passados de mão em mão, deixados no chão pelo raver de ontem, que é o burocrata e pai de hoje, desencantado e amargo; estes crachás são tão trágicos como o nosso idealismo abandonado." O designer de moda explica: "Estes botões grandes são fixes. Mandei-os fazer na semana passada. São bastante anos 90, não são? O resto da série é bastante monocromática, por isso estes botões dão aquele aumento de cor que equilibra tudo.» O que eles estão a intuir é o mesmo, mas é o artista que tem o fundo educacional que lhe permite racionalizar a escolha. Tenham em conta que nós - humanos - somos muito bons a racionalizar depois-do-facto, e um profissio-

A estética do rock and roll é contingente. (...) À medida que o tempo foi passando, tornou-se barroca, auto-referencial, e agora praticamente que só come a sua própria merda. mente explicar as suas decisões. Imaginem uma pilha de crachás coloridos no chão de uma galeria de arte. Um artista formal explicaria desta forma:

nal hábil pode racionalizar qualquer objecto como uma obra de arte a partir do momento em que esta tenha sido apresentada como tal.

"Isto é um arquivo de crachás do início dos anos 1990. Viajei por toda a Europa para coleccioná-los. Os seus tamanhos extravagantes e as suas cores esmagadoras fazem-nos recordar o optimismo desse tempo, antes do Capitalismo ter totalmente revelado a sua futilidade como um programa de libertação pessoal. Apesar disso, eles são rejeitados,

O que eu estou a dizer é: a moda é arte conceptual, concebida por pessoas que gostam mais de roupa que de História, poesia ou teoria crítica. A força da intuição pode ser maior na designer que na artista de galeria, mas a primeira não tenta justificar as suas decisões. Talvez só seja uma melhor artista e uma pior intelectual. O que estou a tentar demonstrar é um tipo de moda, mas como sou um intelectual quero arrastar-me em pedaços de História, geografia e arte que considero interessantes para mim, para tentar justificá-la. É uma estética. Como o Tropical-Industrial. Imaginem que não sabem nada sobre góticos. Não os bárbaros que invadiram Roma, mas os que se vestem de preto. Imaginem um mundo no qual nunca conheceram um gótico (que mundo triste que esse seria). Agora eu tento explicar-vos o que são góticos: adoram falar sobre a morte. Oh, um poeta? Não, é diferente, apesar de eles adorarem má poesia. Só vestem preto, praticamente. Isso parece-me intimidante! São gangsters? Não, a maior parte deles é bastante pálida e tímida e nunca fazem exercício físico. Adoram música com montes de eco e vozes apalermadas. Olhem, é difícil de explicar. No entanto, é um estética que as pessoas entendem instintivamente. Acho que o Tropical-Industrial é uma moda ou estética, como o gótico, à espera de ser descoberta. Quando for revelada, descobriremos que muitas das coisas que já existem fazem parte do espectro do Tropical-Industrial. Artistas de há 30 anos, de que nenhum de nós sequer ouviu falar, serão descobertos e considerados pioneiros do Tropical-Industrial.

Fotografia por Nuno Martins


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A nal, como se parece e a que soa?

Placas enormes de betão a apodrecer Flores tropicais Um colchão partido Rios pretos devido à poluição Motores de dois-tempos Roupa de nylon Um campo de golf em cima de uma vala comum Dormir em público Campainhas Humidade Lagartixas Gaivotas Fotografia por Nuno Martins

Isto requer uma divagação. E vai ser provavelmente a parte onde começam a discordar comigo, particularmen-

A música deles [RATM] não tem qualquer componente de incerteza, dificuldade, contradições a aceitar ou desvendar. É ideologia. É a glorificação de uma visão simplificada do mundo. experiência intelectual, mas um ensinamento psicológico. Aprendi o que era o poder do medo. Aqui estava um sítio onde as pessoas matavam os seus vizinhos e as suas famílias. Não apenas algumas pessoas mortas, mas milhões. Não só alguns psicopatas, mas milhões de assassinos. Como pode isto acontecer? Como pode isto acontecer? Medo, medo inqualificável. Todos nós aprendemos sobre o nazismo, claro; mas os nazis eram assassinos burocráticos. O Camboja era: toma este galho e bate no teu vizinho idoso até à morte. Sim, nós sabemos que ele é teu amigo, mas a escolha é entre ti e ele. E tu tens 12 anos. E enquanto estás no Camboja, entre estas pessoas amigáveis, tu pensas: qualquer uma destas pessoas que tenha mais de 40 anos pode ter sido um assassino. Ou um prisioneiro. Ou ambos. Todas as pessoas com mais de 40 anos tiveram familiares torturados ou assassinados. Todos. Todos são vítimas ou assassinos. Envolvimento universal, trauma absoluto. Isto é o estado a que as coisas podem chegar. Isto é o que o medo pode fazer. Por isso, não julgo as pessoas de forma tão severa. Cresci numa das sociedades mais calmas, seguras e menos violentas na História. As decisões que fiz na minha vida foram triviais. Na maior parte das vezes, na maior parte dos sítios, as pessoas são testadas severamente. Eu não fui testado. Até que esse dia chegue, não posso dizer que sou particularmente forte ou sábio, e não pretendo sê-lo, nem na minha arte. Na verdade, todos nós somos umas crianças de merda. O que é que isto tem que ver com fazer música?

te se gostam da música dos Rage Against The Machine (RATM). Quando era adolescente, a música dos RATM era bastante popular entre os meus amigos. Os RATM são politicamente didácticos. E eu concordo com a maior parte das suas posições políticas. Parecem ser bons tipos com quem ir a um protesto ou manifestação. Mas, mesmo quando era um adolescente com ideais esquerdistas e que gostava de

glorificação de uma visão simplificada do mundo. É por isso que representam o tipo de arte com a qual eu não quero ter qualquer tipo de relação. Autoritários podem estar certos em relação a uma data de coisas; isso são os RATM. Provavelmente estão correctos, mas não quero ter nada a ver com eles. Por que não? Por causa do Camboja. A música dos RATM tem o mesmo espírito do Khmer Vermelho, que tinha uma grande ideologia socialista. Mas a minha suspeição pessoal é de que certas pessoas simplesmente têm um temperamento mais autoritário que outras, independentemente das suas crenças, porque um autoritário pode acreditar em qualquer coisa. Eu sou um bom rapaz, gosto de seguir as regras, mas fico muito desconfortável quando estou numa sala cheia de gente onde todos concordam uns com os outros. É por causa disso que acho que a performance perfeita acaba com metade do público a apertar a minha mão e a outra metade a afastar-se enojada. Foi por causa disso que deixei de tocar música

Sem pecado

Uma experiência muito importante para mim foi descobrir os Khmer Vermelho do Camboja. Não foi uma simples

Eu sou um bom rapaz, gosto de seguir as regras, mas fico muito desconfortável quando estou numa sala cheia de gente onde todos concordam uns com os outros. música barulhenta, sentia que havia algo de indigesto neles. Não descobri o que era até ter assistido a um vídeo de um concerto dos AC/DC e a um vídeo de RATM de seguida. O que eu descobri foi: ambas as bandas são autoritárias. Não nas suas opiniões, evidentemente, mas na música que compõem. Há algum momento de incerteza numa música de RATM? De fragilidade, de dúvida, de contradição? Não, não há. Estás num mosh, fazes air guitar, acompanhando os riffs do Tom Morello, e concordas. Não é suposto que duvides dos RATM. Eles estão convencidos de que estão certos. A música deles não tem qualquer componente de incerteza, dificuldade, contradições a aceitar ou desvendar. É ideologia. É a

punk; é demasiado fácil agradar às pessoas a tocar guitarras e bateria. Por isso, o Tropical-Industrial é ambíguo. Isto faz tudo parte do facto de eu ainda não ter sido testado. Não vou fingir que sou um tipo fixe que sabe tudo quando canta. Preferiria ser nojento e estar errado. Preferiria ser uma criança ridícula aos gritos ou um miserável velho rastejante. As minhas músicas estão cheias de mentiras óbvias. Posso ser sincero e directo, mas não vos vou dizer quando. Desculpem, mas vão ter que ser vocês a pensar sobre isso.


NOTAS FINAIS P. M. De quem é a cidade? É de quem a ocupa, segundo o que escreve Guilherme Luz, num texto publicado no site do Mapa, a 15 de Setembro. Desde a segunda semana desse mês que o n.º 69 da Rua Marques da Silva, em Arroios, se encontra ocupado pela Assembleia de Ocupação de Lisboa (AOLX). Com diversas actividades abertas a qualquer participante, a AOLX não só se estabelece como forma de resistência à inflação imobiliária, como pretende defender o direito à habitação na cidade. Não tão bem sucedida foi a ocupação da antiga escola José Gomes Ferreira, no Porto, no passado dia 13 de Outubro. O projecto auto-gestionário foi despejado três dias depois, pela acção conjunta da PSP e PMP, mas os ocupantes reafirmam a vontade de libertar mais espaços. Sobre ambas as experiências, importa ler o artigo "Okupar e Resistir", que saiu no n.º 18 do Mapa. Feira anarquista do livro de Lisboa Entre os dias 1 e 8 de Outubro, realizou-se mais uma edição da feira anarquista do livro, em Lisboa. Com bancas montadas na praceta António Sardinha, nos três últimos dias, a feira contou com a participação do CEL / A Batalha, Mapa, Tortuga, das editoras Letra Livre, Barricada de Livros, Chili com Carne ou Eleuthera (Itália), e de diversos colectivos, como o CCL, BOESG, Rata Dentata ou o Grupo Surrealista de Madrid. Além da venda de edições, o evento foi complementado por uma série de actividades, como a apresentação da editora Ké Animal Es Esse Gato, dos livros Colapso, de Carlos Taibo, Quico Sabaté y la Guerrilla Anarquista e Oriol Solé Sugranyes - 40 años después, de Ricard Vargas, conversas sobre repressão policial e transfeminismo, ou concertos na Disgraça, como aquele que marcou o fim da digressão europeia de dUASsEMIcOLCHEIASiNVERTIDAS. Novas edições Entre 21 e 22 de Outubro, realizou-se no Anjos 70, em Lisboa, a Raia - Tráfico de Edições, que reuniu um conjunto importante de pequenos editores e artistas gráficos. Aí, António Cândido Franco apresentou o seu mais recente livro Luiz Pacheco Essencial, que é co-

editado pela recém-nascida Maldoror e pela Letra Livre. Depois de O Estranhíssimo Colosso (Quetzal, 2015), Franco continua dentro do género biográfico, aproximando-se agora do surrealismo, ao qual tem dedicado parte do seu trabalho intelectual, tanto com as edições publicadas na Licorne como nos importantes cadernos temáticos que coordena na revista A Ideia sobre essa temática. Com esta edição de A Batalha já a fechar, surgiu nos escaparates o livro Matar Salazar (Tinta-da-China), de António Araújo, sobre o atentado falhado ao ditador, em 1937. Sobre esse evento, Emídio Santana escreveu um importante testemunho em História de um atentado: o atentado a Salazar (Forum, 1976). Mais recentemente, João Madeira publicou 1937 - O Atentado a Salazar (Esfera dos Livros, 2013), que conflitua com o teor do texto de Santana e avança com uma outra leitura sobre o atentado. Importa ainda referir a existência do documentário Uma bomba para Salazar, de Jacinto Godinho. dälek e a revolução russa A passar pela Europa durante o mês de Novembro, o projecto de hip-hop experimental dälek é talvez uma das melhores expressões de uma cultura radical que já não suporta o bafio das cantigas de intervenção. Em Utrecht, ouviu-se a repetição do coro final de "Control", que é a demonstração de que qualquer política radical hoje não pode fixar-se nem num discurso que assente na produção, nem no respeito pela lei. Aos hinos que festejam um socialismo obsoleto, no seu centenário, dälek opõe-se ao produtivismo e apela ao crime. Sem uma ideia de progresso tecnológico e contra um estado que se define pela legalidade, que resta para celebrar 100 anos depois? No próximo número O próximo número de A Batalha contará com textos sobre Luiz Pacheco Essencial e Matar Salazar, um estudo sobre a possibilidade da pós-fraternidade para uma geografia radical, a partir da recente polémica entre o libertário Simon Springer e o marxista David Harvey, e um artigo sobre o Rendimento Básico Incondicional como a mais recente tentativa de gerir o estado capitalista.

ANTIGO ÓRGÃO DA CGT Fundado em 23 de Fevereiro de 1919 Este jornal surgiu em 23-2-1919, no mesmo ano em que a Confederação Geral do Trabalho (CGT), de que seria porta-voz. A CGT, única confederação sindical existente, agrupava os trabalhadores mais combativos e conscientes da altura e foi, desde início, fortemente influenciada pelas correntes anarquista, anarco-sindicalista e sindicalista revolucionária. Isto determinou a sua total independência face aos partidos e ao poder político e fê-la lutar pelas justas reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de vida, não os deixando esquecer que só uma profunda transformação económica, social e ética permitiria eliminar a opressão e exploração do homem pelo homem. Repudiou sempre, com notável antevisão, que a libertação dos trabalhadores se pudesse alcançar através duma pretensa “ditadura do proletariado” ou do “Estadopatrão”. Hoje, não estando ligado a qualquer dos movimentos sindicais existentes, de cujos princípios e prática geralmente discorda (embora tenha o maior respeito pelos trabalhadores que os constituem), continua a pugnar por uma sociedade assente em formas comunitárias de vida, de essência autogestionária e cooperativa, com total respeito pela liberdade de pensamento e pela autonomia individual, em conformidade com os princípios libertários por que se norteia. Director João Santiago Redacção Elisa Areias, João Santiago, Joaquim Andrade, Luís Garcia e Silva, Sérgio Duarte Colaboradores André Calvário, António Cândido Franco, António Gonçalves Correia, Carlos D’Abreu, Francisca Bicho, Francisco Cardo, J. Augusto, João Santiago, Joaquim Andrade, Júlio Palma, M. Ricardo de Sousa, Marcos Farrajota, Mário Rui Pinto, Miguel Amorós, Nuno Martins, P. M., Pimprenelle, Ron Gallipoli, Tomás Ibañez Composição Centro de Estudos Libertários Impressão VASP - Distribuidora de Publicações, SA Redacção e administração Az. da Alagueza, Lote X, c/v – Esq 1800 – 005 Lisboa Contacto jornalabatalha@gmail.com Proprietário e Editor Centro de Estudos Libertários NIPC 501805214 Periodicidade Bimestral, Setembro-Outubro de 2017 ISSN 0873-7223 N.º Depósito Legal 291 643 / 09 | Inscrito na Direcção Geral da Comunicação Social Nº 104981 CONDIÇÕES DE ASSINATURA Envio cintado Continente | 6 nºs: 3,99€ / 12 nºs: 7,58€ Ilhas, via aérea | 6 nºs: 5,49€ / 12 nºs: 10,47€ Ilhas, via económica | 6 nºs: 3,99€ / 12 nºs: 7,58€ Europa | 6 nºs: 9,48€ / 12 nºs: 17,46€ Extra-Europa, via aérea | 6 nºs: 11,47€ / 12 nºs: 20,45€ Extra-Europa, via económica | 6 nºs: 9,98€ / 12 nºs: 17,46€ Envio em envelope Continente | 6 nºs: 6,98€ / 12 nºs: 12,97€ Ilhas, via aérea | 6 nºs: 7,98€ / 12 nºs: 15,46€ Ilhas, via económica | 6 nºs: 6,98€ / 12 nºs: 12,97€ Europa | 6 nºs: 11,97€ / 12 nºs: 22,45€ Extra-Europa, via aérea | 6 nºs: 15,56€ / 12 nºs: 27,93€ Extra-Europa, via económica | 6 nºs: 11,97€ / 12 nºs: 22,45€ O pagamento poderá ser efectuado por cheque, vale postal ou para o NIB do CEL: 0033 0000 0001 0595 5845 9. COLABORADORES Os artigos não assinados são da responsabilidade da redacção, tal como a tradução de artigos. Os artigos não solicitados poderão ser recusados, aceites condicionalmente (mediante alterações acordadas com os autores) ou ser diferida a sua publicação em função da programação geral do jornal. Devem ser claros e sucintos, não excedendo três páginas A4 dactilografadas a dois espaços, título e ilustrações incluídos. Em caso de recusa haverá sempre explicação oral ou escrita aos autores. Além do nome e endereço agradecemos também o envio do telefone e/ou e-mail. Toda a correspondência deverá ser remetida para: A Batalha, Az. da Alagueza, Lote X, c/v – Esq 1800 – 005 Lisboa PONTOS DE VENDA Lisboa Letra Livre: Calçada do Combro, 139 Tortuga: Rua da Penha de França, 217 Tigre de Papel: Rua de Arroios, 25 Zaratan - Arte Contemporânea: Rua de São Bento, 432 Porto Gato Vadio: Rua do Rosário, 281 Parede SMUP: Rua Marquês de Pombal, 319


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