Três crônicas de abandono em Ana Miranda, Lílian Martins

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Fortaleza - 1951


2003



Os flagelados desciam a serra de São Miguel, que faziam a fronteira entre Ceará e Rio Grande do Norte. Vinham famílias inteiras, famintas, sujas, sedentas, maltratadas, as crianças machucadas, doentes, arranhadas nos espinhos da vegetação. Sem ter onde morar, instalavamse de baixo dos pés de juazeiro, à sua sombra, pois é uma das poucas árvores que conseguem manter as ramagens na estação seca, sempre com floração amarela.


Minha mãe ficava comovida. Ela havia sido também uma retirante. No ano de 1932, ela morava com o pai, a mãe e nove irmãos, em Cajazeiras, e tiveram de deixar a casa e fugir para o Icó, minha avó na boleia de um caminhão, na carroceria.


Então naquele oásis em Lima Campos mamãe recebia as crianças dos retirantes, dava-lhes comida, banho, tirava-lhes piolhos da cabeça, espinhos dos pés, tratava das feridas, levava as crianças ao médico, pois havia, além da desnutrição, muitos casos de tuberculose na região. Uma família inteira foi dizimada pela tuberculose, ficando a minha mãe com uma menina de 12 anos, a quem criou. Criou, também, e adotou para sempre, uma criança de dois meses que tinha sido deixada num juazeiro.



Numa casa escura, as crianças comiam sentadas no chão, em torno de uma bacia, junto com cachorros. A cabeça das crianças era branca de lêndeas, o pescoço e o colo feridos de percevejos, os dentes cariados, o corpo desnutrido. E Maria de Lourdes foi olhar as outras crianças das outras casas.


Algumas trabalhavam e não iam à escola. Com pais desempregados, muitas passavam fome. A maioria delas jamais tinha provado um copo de leite. Havia, entre crianças e adultos, um alto grau de analfabetismo. Havia violência contra a criança, moléstias ligadas à subnutrição e, entre os adolescentes, casos de doenças sexualmente transmissíveis, de gravidez prematura e a prática frequente do aborto caseiro.


(...) Não queriam “aquela gente” por ali, desvalorizando as propriedades. Hoje, já se acostumaram. Talvez estejam começando a entender o significado daquele portão com uma placa onde está escrito “Espaço Compartilha-te”.



Tenho vagado pelos becos de Bagdá, pelos milhares de abrigos e túneis que escondem tantos mistérios. Perambulo nas ruas tortuosas onde crianças compram mantimentos para a guerra, caixas de ovos, trigo, pão, em mercado abarrotados de gente sem dinheiro, os preços aumentam mil vezes, comércio e insurreição. Quem são essas crianças? O que sonham de noite?


O deserto da Arábia começa pertinho do vale do Eufrates, ali é o reino dos beduínos, nômades criadores de camelos, que povoam tantas histórias das mil e uma noites da nossa infância. (...) Mas a história não me ensinou que nas montanhas do Maamura os lavradores trabalham nos campos de cevada, com suas mãos calosas e duras. Mulheres secam legumes ao sol, cantam, crianças colhem algodão, homens fumam tabaco debaixo das palmeirastamareiras. Quem de nós provou uma tâmara iraquiana?



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