Abismo Humano nº5

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Editorial

5 A Associação de Artes 'Abismo Humano’ dedica-se ao aproveitamento da tendência artística presente nas novas camadas jovens e a integrar, junto da arte, os valores locais, bem como ao entretenimento, educação e cultura de forma a ocupar os espaços livres na disposição dos seus associados. Para tal a associação compromete-se a contactar vários artistas, tanto na área da pintura, da literatura, escultura, fotografia, cinematográfica, ilustração, música e artesanato, de forma a expor as suas obras tanto num jornal de lançamento trimestral, consagrado aos sócios, como na organização de eventos, como tertúlias, exposições, festas temáticas, concertos e teatros. A associação das artes compromete-se igualmente a apoiar o artista seu colaborador, com a montagem de, por exemplo, bancas comerciais e com a divulgação do trabalho a ser falado, inclusive lançamentos, visando assim proteger a arte do antro de pobreza ingrata e esquecimento que tantas vezes espera as mentes criativas após o seu labor. Os eventos, que são abertos ao público, servem inclusive o propósito de angariar novos sócios, sendo que é privilégio do sócio, mediante o pagamento da sua quota, receber o jornal da associação, intitulado de “Abismo Humano”. Este jornal possui o objectivo de divulgar as noticias do meio artístico bem como promover os muitos tipos de arte, dando atenção à qualidade, mais do que à fama, de forma a casar a qualidade com a fama, ao contrario do que, muitas vezes, se pode encontrar na literatura de supermercado. Afiliada às várias zonas comerciais de cariz artístico, será autora de promoção às mesmas, deixando um espaço também para a história, segundo as suas nuances artísticas, unindo a vaga jovem ao conhecimento e à experiência passada.

Abismo Humano

Equipa Editorial André Consciência - Albano Ruela

Assinaturas Assinaturas: abismohumano@gmail.com Para assinar a Revista Abismo Humano contactar por email


Sumário Editorial Assinaturas Sumário Manifesto Ruínas Circulares Hieróglifos Existenciais Noites Passadas na Literatura Labirintos Prosaicos Ensaios Filosóficos Circo Escarlate Captações Imaginárias Desenho Banda Desenhada Ilustração Arte Digital Escultura

3 3 4 5 6

Apogeus Espirituais Âmagos Teatralizados Coliseu dos Assinantes Trans Missões Publicidade

38 39 43 45 49

8 14 15 23 26 27 28 30 37

Ruínas Circulares Gótico Página 6

Hieróglifos Existenciais Labirintos Prosaicos

O Cego Página 14

Captações Imaginárias Desenho

Cat Woman Página 26

Captações Imaginárias Banda Desenhada

Ervilha Estátua Página 27

Captações Imaginárias

Coliseu dos Assinantes Hybrid Eve Página 37

Ilustração

Venomous Tongue Página 28

Colliseu dos Assinantes Uma Caneta Chamada 'oite Página 44

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Publicidade The Dead of 'ight Inert Página 49

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Manifesto Abismo Humano O Abismo Humano compromete-se a apresentar a sapiência, o senso artístico, e o cariz cultural e civilizacional presente no gótico contemporâneo tanto como nas suas raízes passadas. O Abismo Humano toma o compromisso de mostrar o que têm tendência a permanecer oculto por via da exclusão social, e a elevar o abominável ao estado de beleza, sempre na condição solene e contemplativa que caracteriza o trabalho da inteligência límpida e descomprometida. O Abismo Humano dedica-se a explorar as entranhas da humanidade, e é essencialmente humanista, ainda que esgravatando o divino, e divino é o nome do abismo no humano. O Abismo Humano é um espaço para os artistas dos vários campos se darem a conhecer, e entre estes, preferimos as almas incompreendidas nos meios sociais de maior celebridade. O Abismo Humano é um empreendimento e uma actividade da Associação de Artes, e por isso tomou o compromisso matrimonial para com as gémeas Ars e Sophia, duas amantes igualmente sôfregas (impávidas), insaciáveis (de tudo saciadas) e incondicionais (solo fértil à condição). O Abismo Humano compromete-se a estudar o intercâmbio da vida e da morte, da alegria e da tristeza, do amor partilhado e da desolação impossível, do qual o Abismo Humano é rebento. Como membro contra-cultura, o Abismo Humano dedica-se à destruição da ignorância que cresce escondida, no seio das subculturas, cobrindo-as à sombra do conformismo e da futilidade. Retratamos a tremura na mão do amor, a noite ardente, e a dança dos que já foram ao piano do foi para sempre.

André Consciência Imagem - Tatiana Pereira

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Ruínas Circulares

Gótico Vistam-se de negro, sim, mesmo que não tragam o negro nos trapos de fora. Vistam de negro os olhos e o coração. Sabes, não sei se ainda estás entre nós, não sei sequer se alguma vez estiveste. E por isso te venho contar do negro que perguntaste, porque o negro é a cor da noite e de noite o tempo não tem importância nenhuma. Podias ter perguntado há mil anos, há tanto tempo como as perguntas guardadas na pedra celta, na pedra das catedrais. O negro é a cor das respostas de sempre, e vestir-se-á de negro todo o coração que me ouvir. Nada sei da maioria dos góticos, da maioria de nós. Talvez vistam, sim. Espero que sim. E talvez falem baixo quando não estão a dançar, quando o amor e o vinho não dançam neles a inútil exaltação dos corpos. Mas não te preocupes, não é obrigatório que seja assim. Sabes, nada no mundo é obrigatório. Tudo no mundo é coisa que tem que ser. Vestem negro os góticos, mesmo que tantos vistam as cores do escândalo e da sedução e da insegurança e do medo. Mesmo que tantos vistam a cor alta que nunca serão. Vestem negro, e de negro parece que estão sozinhos. Vestem negro, e de negro parece que estão inteiros. Vestem negro, e o negro anda neles tão vivo que podem pôr roupa de todas as cores que é sempre o negro que lhes dá sombra, que é sempre o negro que lhes dá voz. Vestem negro porque da noite são eles feitos, e nem os anjos sabem ser de uma noite assim. Sabes, se puderes não te vistas de negro, se puderes não vistas. Se puderes, enquanto puderes, põe sobre o corpo coisas que escondam o corpo mostrando-o: "eu sou esta coisa de tantas cores, eu sou esta coisa às riscas." E deixa o negro chegar só quando não puder ser de outra maneira, só quando todas as outras cores forem obscenas e tristes.

(...) Vestem de negro, e de negro parece que estão sozinhos. Vestem de negro, e de negro parece que estão inteiros. (...) É altura hoje de te falar porque talvez tenhas ido embora, e embora se vão as coisas deixando o negro no lugar delas. Os góticos gostam de falar só quando não há ninguém a escutar. Sim, não temas e não queiras saber o que é obrigatório, o que é que a maioria te diz. Se vieres aos buracos góticos, talvez possas vestir qualquer coisa escura, qualquer coisa simples. Qualquer coisa que se não veja muito quando estiveres entre nós, nas nossas festas, nos nossos clubes, nos bares. Haverá poucas luzes e haverá fumo e haverá música de anjos e música de demónios, e o branco e o laranja e o amarelo e o rosa são cores demasiado frágeis, demasiado pequenas. Traz em ti uma coisa que nos ajude a não te ver (os demónios

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ver-te-ão sempre). Queremos estar sozinhos e mais do que tudo queremos tudo e temos tão pouco tempo para lá ficar, tão pouco tempo entre a noite e a noite. Veste a cor que quiseres, e deixa o negro para as coisas intactas, se não sabes fazer do teu corpo a blasfémia de uma coisa intacta. Mas se sentires que essa coisa chega ao teu coração, então abre os braços para a acolher, abre devagarinho os braços de dentro. É a noite que chega em ti, a noite que desde que nasceste te anda buscando. E a noite será fiel. Sim, góticos que vestem de negro, que deixam o negro vestir-se deles também. Sabes? É que todo o amor é canibal. E por isso os anjos têm fome, por isso as estrelas explodem, por isso de negro os góticos vestem. Mas não é obrigatório estar vivo, e o amor nada quer com os que ainda o não estão. Goldmundo http://ribeiranegra.blogspot.com/

(...) É que todo o amor é canibal. E por isso os anjos têm fome, por isso as estrelas explodem, por isso de negro os góticos vestem. (...)

Buraco Negro Isabel Cruz— http://wordsimages.blogspot.com/

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Hieróglifos Existênciais Noites Passadas na Literatura (...) prende Edmond Dantes numa masmorra do terrível castelo d’If, destifano a presos políticos, onde este permanecerá 14 anos, sem direito a julgamento nem sentença, e ignorante dos fundamentos por que o condenaram. (...)

"O Conde de Monte Cristo", por Alexandre Dumas (pai) "O Conde de Monte Cristo" é uma história que conheço desde infância mas cuja leitura propriamente dita foi sendo constantemente adiada. Até ao dia, mais vale tarde do que nunca, em que saquei o livro do Projecto Gutenberg. É uma tradução em inglês, e tão difícil de ler que só se pode concluir que o francês original é soberbo. [Todas as seguintes citações são desta tradução.] A história é sobejamente conhecida mas vale a pena fazer um resumo. Edmond Dantes é um jovem promissor acabado de ser promovido a capitão do navio mercante Faraó, onde era, até então, imediato. Ao desembarcar em Marselha, onde mora com o velho pai, a sua primeira preocupação é visitá-lo, para contar as boas notícias, e de seguida vai procurar a jovem catalã Mercedes, com quem pretende casar nos próximos dias. Tudo corre bem para Edmond Dantes e o futuro parece sorridente. Senão pela inveja e pelo ciúme, que congeminaram a sua desgraça. Danglars, o contabilista do navio, odeia o jovem capitão. Caderousse, o seu vizinho, rói-se de inveja do seu sucesso. Fernand Mondego, talvez o que mais razão tem para odiar Edmond, é primo de Mercedes e tem por ela uma paixão avassaladora. Uma vez que Mercedes não o corresponde, tudo faria para afastar o seu rival. São estes três que conspiram uma denúncia anónima, implicando Edmond Dantes numa conspiração bonapartista (da qual é inocente). Em sequência da acusação, no próprio dia do feliz casamento, Edmond Dantes é preso, e levado perante o procurador Villefort. Este condena-o, embora saiba que é inocente, pois a carta em poder de Edmond coloca em risco o pai do próprio Villefort, bonapartista ferrenho numa altura em que Napoleão está no exílio. Por este motivo, Villefort "junta-se" ao trio de conspiradores, e prende Edmond Dantes numa masmorra do terrível Castelo d'If, destinado a presos políticos, onde este permanecerá 14 anos, sem direito a julgamento nem sentença, e ignorante dos fundamentos por que o condenaram. É no cárcere que conhece outro prisioneiro político, o fascinante e erudito abade Faria, que lhe ensina tudo o que Dantes jamais aprendera, e lhe fala do enorme tesouro escondido dos Spada, de que conhece a localização na insuspeita ilha de Monte Cristo, e a ensina a Edmond. O abade Faria nunca verá o seu mirabolante tesouro, porque entretanto morre na prisão, e acaba por ser essa morte a libertação de Dantes, pois, numa fuga espectacular, e em completo desespero, toma o lugar do morto dentro da sua mortalha e assim é lançado ao mar. Edmond Dantes encontra o fabuloso tesouro dos Spada e torna-se o Conde de Monte

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Cristo. Quando regressa a Marselha, apercebe-se de que o seu pobre pai morreu de fome. A sua noiva, Mercedes, depois de anos à sua espera, tinha acabado por ceder à vontade do primo e com ele se casou, sendo agora a Condessa de Morcef. Danglars é barão e um rico banqueiro. Villefort foi promovido na sua carreira até se tornar procurador do Rei. De Edmond Dantes, o infeliz e inocente prisioneiro, já ninguém se lembra. A partir daí, ninguém escapará da sua implacável e maquiavélica vingança. Danglars, Caderousse, Fernand, e Villefort, todos terão o que merecem. Esta é, sem dúvida, uma das histórias mais cativantes e poderosas de todos os tempos, e tão relevante que ainda hoje serve de inspiração, não fosse o seu tema tão universal e primitivo como a vingança. [Por exemplo, em "Prision Break", num dos episódios em que Michael Scofield se encontra na prisão sul-americana de Sona, este contempla a hipótese da evasão segundo o "método Dantes": fazer-se passar por morto. Mas os guardas, conhecendo ou não a obra de Dumas, certificam-se de dar uns tiros aos cadáveres antes de estes saírem da prisão. Scofield abandona o plano, mas a sombra de Dantes permanece.] Comentarei as partes que achei mais curiosas nesta obra impregnada do Romantismo da época em que foi escrita. Para começar, esse mesmo Romantismo, tão agradável mas ao mesmo tempo tão irrealista, prova-nos que o leitor do século XX (e muito mais o do século XXI), já não se satisfaz sem uma análise psicológica das personagens. E depois há aqueles maneirismos que na altura eram altamente vanguardistas mas que hoje me fazem ranger os dentes. Diz o narrador, assim no meio da narrativa: "Deixemos Madame Fulana de Tal entregue ao seu boudoir e penetremos na sala de Monsieur de Sicrano, já antes apresentada ao leitor..." Ora, talvez seja de uma cultura demasiadamente formatada pela linguagem cinematográfica, mas a verdade é que para o leitor se acaba ali toda a ilusão em que tão confortavelmente estava instalado. Ou, como se diria noutras andanças, "I want to believe". Não quero narradores a lembrarem-me que estou a ler um livro. Para a realidade tenho o telejornal, obrigada. Compreende-se, portanto, sob um prisma totalmente novo, este vanguardismo Romântico, a cruzar-se com uma certa linguagem teatral: não tinham telejornal a estragar tudo. Como eram ingénuos esses tempos, em que Dumas afirma que a carruagem de Monte Cristo atinge a velocidade de "um estonteante meteoro"! Seria quanto, 20, 30km/hora? Era puxada por chitas? Nem por isso, apenas quatro cavalos. Isto de fazer metáforas com a tecnologia, principalmente nos tempos que correm, pode sair muito perigoso. Mas este era o século XIX, e Dumas não fugiu ao seu século, nem o leitor deste clássico tal deve esperar. Não é o estilo, mas a obra, o que se tornou imortal. Estava lá, em Edmond Dantes, o que se revisita em "A Fuga de Alcatraz" e "Prison Break", e tudo o resto o que há-de vir. Passarei, pois, às surpresas e reflexões que me inspiraram a sua leitura. A história de Rita e Carlini Antes ainda de comentar a história de Edmond Dantes propriamente dita, não consigo evitar referir esta "história dentro da história", que por lá aparece de modo algo surreal. Aqui, Dumas foi verdadeiramente genial, porque até o leitor moderno se questiona se a história de Rita e Carlini, que o mordomo de hotel conta a Albert de Morcef e Franz D'Epinay para os convencer da existência dos bandidos de Roma, é de facto "real", ou duplamente ficcional: uma ficção inventada pelo próprio Monte Cristo para melhor exercer a sua terrí9

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vel vingança. Nunca se chega a descobrir. O que é inegável é que Dumas a queria contar, a esta pequena história, e o fez de modo bastante habilidoso. Nem de propósito, ainda há bem pouco tempo comentava com alguém que a violação, como tema, não era coisa de que o Romantismo gostasse, e que a donzela nunca chegava a ser violada porque entretanto o herói aparecia para a salvar. Esqueci-me da história de Rita e Carlini. Rita era namorada do bandido Carlini, mas por azares desastrosos foi parar às garras do chefe deste, Cucumetto, que a raptou, violou, pediu ao pai dela resgate pela sua vida, e se preparava para a entregar, às sortes, ao resto do bando. O facto de Carlini ser um deles não bastou para intervir de outra forma. (Não há honra entre ladrões.) Carlini, vendo-se impotente para impedir os acontecimentos, aproveita o facto de a rapariga ter desmaiado para a matar. E, assim, a "salva". Ou, pelo menos, não conseguindo salvar a sua honra, consegue impedir que a desonrem mais. Quando chega o pai de Rita com o resgate, e encontra morta a sua filha, junto do homem que a chorava, e que a matara, justifica Carlini: “Cucumetto violou a vossa filha. Eu amava-a, e por isso a matei, para não servir de diversão ao bando inteiro. Agora, se fiz mal, vingai-a.” E Carlini oferece ao velho pai o próprio punhal com que tinha morto a sua filha. O que é que este faz? Diz-lhe que fez bem, e ajuda-o a enterrar o corpo. De seguida, para isto tudo não parecer demasiado grotesco, o pai enforca-se numa árvore junto à sepultura da filha. De alguma forma, eu acabo por ter razão. O Romantismo não sabe abordar o tema. Isso são contas para rosários do realismo do século XX, e se calhar só depois da chamada "libertação feminina". Repare-se que enquanto tudo isto acontecia, a vítima está desmaiada. Não tem vontade nem sequer uma palavra a dizer. É apenas uma criatura passiva, entregue aos desígnios dos homens que a protegem: o pai e o futuro marido. São eles que decidem, é a eles que parece importar a violação. A vítima é segunda vez violentada, nesta perfeita anulação do seu "ser". Infelizmente, não é caso único nesta obra, espelho da mentalidade da época, e tratarei disso mais à frente. “Número 34 e número 27” «Um novo governador chegou; seria muito fastidioso decorar os nomes dos prisioneiros; aprendeu em vez disso os seus números. Este sítio horrível continha cinquenta celas; os seus habitantes eram designados pelo número da sua cela, e o infeliz rapaz deixou de se chamar Edmond Dantes – era agora o número 34.» Confesso não saber se Dumas foi o primeiro escritor a mencionar numa obra o horror da despersonalização do indivíduo e a sua transformação em mero número – mais tarde tão cara aos escritores de ficção científica do século XX, senão mesmo ainda mais cara aos inventores dos campos de concentração, que nada tinham de ficcional – mas não deixa de ser curioso encontrar aqui, já no Romantismo do século XIX, esta preocupação tão moderna. É preciso ter sorte Nas primeiras páginas de "O Conde de Monte Cristo" encontrei algumas das cenas mais comoventes que já li, mas esta em particular deu-me que pensar.

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Edmond Dantes tinha acabado de fugir de forma espectacular do seu cárcere, encontrava-se agora numa ilha deserta onde chegara a nado sob grande esforço, mas estava enfraquecido pela fome, e o seu aspecto de fugitivo seria suficiente para atrair sobre si fatais atenções. Nesse momento, volta-se para o Céu: "Ò meu Deus, eu já sofri certamente o suficiente. Tem pena de mim, e faz por mim o que não sou capaz de fazer por mim próprio." Dantes avista então no mar uma embarcação de contrabandistas que acaba por lhe fornecer um meio de escapar. Esta singela ficção recordou-me de um facto que interessa muito a muita gente fazer por esquecer. O engenho não basta. Às vezes, é preciso mesmo ter sorte. Como Dantes, que avistou um barco. Edmond Dantes apresentado como vampiro Devo dizer que não esperava de todo esta descrição do Conde de Monte Cristo por Alexandre Dumas em que o autor, pelas palavras de uma personagem, o assemelha a um vampiro, nomeadamente Lord Ruthven, muito provavelmente o primeiro vampiro "romântico" precursor do mito do sedutor anti-herói bebedor de sangue como o conhecemos agora, por exemplo, através de Anne Rice. Dumas, contudo, incorreu no erro da época de atribuir Lord Ruthven, isto é, a história "The Vampyre", a Lord Byron, quando esta se veio a revelar de facto obra do amigo deste último, John Polidori, confusão que muita tinta fez correr nos meios literários. Não deixa, no entanto, de ser curioso notar este facto, como as ficções se podem graciosamente cruzar de forma tão bem conseguida. Valentine Valentine é a típica heroína romântica: loira, pálida, inocente, apaixonadíssima pelo seu amado, obediente à família, pronta a tornar-se mais uma fada do lar, um anjinho para ser adorado, não uma mulher a sério e muito menos para levar a sério. É mais um exemplo de um "não-ser" em que um certo Romantismo era tão pródigo. Tal como todas as heroínas românticas, a esta não falta também a pincelada doentia (a bem da verdade, não estaria doente se a madrasta não lhe desse veneno todos os dias ao pequeno almoço). Quase morre, mas não morre, finge-se que morre, nem a sua morte é real. O que não é de estranhar, porque nenhuma Valentine é real. Nem nenhuma Valentine, nem nenhuma Rita, e certamente nenhuma Mercedes. A Mercedes, deixo-a para o fim. Eugenie “Reparou na notável beleza da rapariga, M. Lucien?”; perguntou Eugenie. “Nunca conheci uma mulher tão pronta a fazer justiça aos encantos de outra mulher como a menina”, respondeu Lucien, colocando o seu monóculo. “Uma rapariga lindíssima, direi mesmo!”, foi o seu veredicto. Depois de tudo isto, ninguém vai acreditar no que vou dizer a seguir, mas lede por vós mesmos. Ao contrário de tudo o que se podia esperar, Alexandre Dumas apresenta-nos

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uma lésbica! Uma lésbica, se bem que disfarçada, reconhecível apenas para os conhecedores (e especialmente "conhecedoras"), que contraria todas as outras personagens femininas. A Eugenie, filha do barão Danglars, e grande "amiga" da sua jovem professora de música, Monte Cristo envolve no seu esquema preparando-lhe um casamento escandaloso com o seu meio-irmão. Mas sosseguem, o casamento nunca foi planeado para se concretizar de facto; era apenas um meio para atingir um fim. (Incesto é mais coisa do nosso Eça de Queirós.) Na verdade, Monte Cristo torna-se um protector de Eugenie e ajuda-a a realizar os seus maiores sonhos: fugir com a amiga e tornar-se uma artista. Repare-se com que subtileza Dumas aborda o tema, tão explícito para nós, leitores modernos, e no entanto tão opaco (ou não?...) para os espíritos da época, numa conversa entre Maximilian e Valentine em que este diz que falta a Eugenie "o charme indefinível da mulher", “o que o perfume é para a flor e o paladar é para o fruto”. Ao negar a Eugenie "o charme indefinível da mulher", Maximilian retira-lhe, assim, a feminilidade, e faz-nos questionar quais são as ideias de Dumas acerca da sua própria personagem. Maximilian acrescenta ainda que não percebe como algum homem a poderia amar. Nenhum homem a pode amar, diria Alexandre Dumas se pudesse exprimir o que pensava na altura, porque vê, nesta mulher, um homem. Interessante e curiosa análise do subconsciente da época. A conversa continua, e Valentine relata que Eugenie lhe confidenciou como despreza a ideia de se casar, pois a única coisa que deseja é ser uma artista, livre como a sua amiga Louise. Maximilian sorri (mas não comenta com a inocente e pura e ingénua Valentine) porque se confirmam as suas suspeitas que Eugenie e Louise não são "apenas" amigas. Alexandre Dumas diz-nos isto neste sorriso de Maximilian, e depressa muda de assunto, para voltar a pôr os pombinhos a confessar mutuamente o seu amor conforme as normas morais da altura. Mais tarde, quando Eugenie e Louise são apanhadas a meio da fuga, dormindo no mesmo quarto, na mesma cama, onde são surpreendidas pelo noivo da primeira, que se tornara também um fugitivo à justiça, é-nos dito que saem da estalagem envergonhadas sob os olhares de uma multidão. O que não se explica, jamais, é porque estão envergonhadas. A razão plausível para tal é que o noivo de Eugenie, um suposto príncipe italiano, não passa de um reles criminoso. Nada é revelado se a multidão também sabe que dormiam ambas na mesma cama. Tenho para mim que era por isso que as olhavam, mas Alexandre Dumas é inteligente e não o diz claramente. Afinal, não se quer chocar as Valentines desse tempo, que perante o escândalo não tocariam sequer no livro. Cabe aos Maximilians da época o sorriso esclarecido... e silencioso. Mercedes Mercedes, deixei-a para o fim porque nunca compreendi, e ainda hoje não compreendo, o que raio se passou naquele final. Mercedes não faz sentido. Julguei que ler o livro me esclareceria, mas fiquei na mesma. Mercedes é descrita como uma mulher forte, corajosa e orgulhosa. Nada faz adivinhar que seja uma das tais criaturas passivas descritas acima, mais um "não-ser" igual às outras. E no entanto, quando Mercedes reconhece Edmond Dantes, o grande amor da sua vida, a quem julgava morto, na figura de Monte Cristo, porque é ela a única a reconhecê-lo de

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imediato, pela voz, é-nos dito, finge que de nada se apercebe. Ora, estamos a falar de uma mulher tesa, espanhola, ainda por cima!, que acaba por casar com um homem que não ama porque foi também vítima da conspiração que destruiu o seu noivo, e de repente vê-o aparecer, ao fim de vinte anos, podre de rico, rodeado de todos os luxos, e ainda por cima acompanhado por uma rapariga com idade para ser sua filha, e não lhe faz uma cena?! Eu, que não sou espanhola, fazia-lhe uma peixeirada de que Edmond Dantes jamais se esqueceria: "Mas por onde andaste, desgraçado, que me abandonaste quase no altar?!" E se descobrisse todo o enredo, então, partia um vaso na cabeça do primo/marido, e de seguida enfeitava-lha com uma bela armação! Nem era preciso andarem Fernand e Edmond a desafiarem-se para duelos. Mercedes, se fosse mulher, tratava da saúde aos dois! E ainda por cima espanhola! Em vez disto, que faz Mercedes? Resigna-se. Renuncia. Anula-se. Na sua última conversa com Edmond, este ainda lhe pergunta se deseja algo dele. E o que responde? Que está velha. Que tem cabelos brancos. Que lhe pesam os anos. Claro que lhe pesam os anos. Uma mulher não pode esperar 14 anos que o homem que ama arranje maneira de fugir da prisão. Uma mulher, por imperativos biológicos, tem que se despachar. Porque é mesmo assim, não há volta a dar-lhe. Mas uma mulher não deixa de ser mulher, muito menos na presença de um amor tão mal resolvido. E era tão fácil para Dumas resolver isto de outra maneira. Bastava-lhe pôr Mercedes a dizer: "O tempo passou, e eu mudei, e se te amava dantes, agora já não te amo." Je ne t'aime plus. Isto sim, era o que uma mulher diria. Se fosse o caso. Não parece que fosse o caso, e Dumas não soube resolver. Dumas é um autor viril, e curioso, e intelectual, mas as mulheres são para ele um mistério. Tenta adivinhá-las, e falha. Dá-lhes voz, mas não falam. E quando falam, dizem disparates, como Haideé (a suposta escrava de Monte Cristo) que lhe declara o seu amor afirmando que o ama como a "um marido, um irmão, um pai". Como se tal coisa fosse possível. Freud, ò divino, que falta fazias tu à literatura!

(...) Devo dizer que não esperava de todo esta descrição do Conde de

Monte Cristo por Alexandre Dumas em que o autor, pelas palavras de uma personagem, o assemelha a um vampiro, nomeadamente Lord Ruthven, muito provavelmente o primeiro vampiro "romântico" precursor do mito do sedutor anti-herói bebedor de sangue como o conhecemos agora, por exemplo, através de Anne Rice. (...)

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Hieróglifos Existênciais Labirintos Prosaicos

O Cego

Dark Lovers—Sue Ana Joe

A ti, que nada mais conheces para além do espectáculo que te deleita o olhar, digote que espreites todos os pássaros do jardim; que vejas o esplendor das plumagens, a vivacidade das cores e a exuberância das danças. Certamente não deixarás de reparar, também, no melro, com as suas vestes negras, quase austeras, sem brilhos nem cores, tão deslocadas da jovialidade primaveril e florida que nele reina. Julgá-lo-ás, talvez, indigno de pertencer a esse quadro mas, tendo-o feito, peço-te que ali regresses na madrugada, quando começarem a raiar os primeiros luzeiros de dia e ouças a melodia de boas-vindas que as aves ecoam ao astro rei que se avizinha. Então, talvez voltes a recordar aquele pássaro pequeno, de vestes singelas e ar carregado. É dele a mais bela das vozes que se elevam da vegetação. Frankie http://os-meus-pequenos-nadas.blogspot.com/

(...) quando começarem a raiar os primeiros luzeiros de dia e ouças a melodia de boas-vindas que as aves ecoam ao astro rei que se avizinha (...)

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Hieróglifos Existênciais Ensaios Filosóficos

«O

Objectivo da Filosofia é Purificar a Vida Humana» Humana

As escolas filosóficas da Grécia Antiga além de se situarem numa dimensão teorética entendiam a filosofia como modus vivendi. Assim, o despojamento surge como uma possibilidade ou via ascética que o homem deveria exercitar para atingir um bem superior do qual os bens materiais afastam mais do que aproximam. Na República Platão concebe uma cidade em que não existe propriedade privada, até mesmo as mulheres e os filhos devem ser comuns a todos. Platão considera que a unidade da cidade é a qualidade que torna os seus habitantes felizes e a multiplicidade é o que a torna menos perfeita. Ora, a origem da multiplicidade está no desejo de posse ou na cupidez. Para Platão, é o individualismo, mormente nas posses, que introduz na cidade o princípio da sua desintegração. Todos os habitantes devem estar de acordo quanto ao que designam por seu e por não seu. Ou seja, a propriedade comum deve ser preferida à privada, pois é esta que origina o desequilíbrio na harmonia na cidade: «Logo em qualquer cidade em que a maior parte dos habitantes estiver de acordo em aplicar estas expressões “meu” e “não meu” à mesma coisa – será essa a mais bem organizada? – Sim, e muito». Platão considera ainda que a riqueza tem muitos inconvenientes. Aquele que quiser acumulá-la terá de necessariamente passar por muitas penas, dificuldades e preocupações, sobretudo na administração dos bens. A avidez pelas riquezas provoca um estado de constante ansiedade e irrequietude no homem que padece deste desejo desmesurado. O desprendimento está assim na base de uma vida de bem-aventurança: «De todos esses trabalhos eles se libertarão e viverão uma vida de maior bem aventurança do que os bem-aventurados vencedores dos Jogos Olímpicos». No âmbito da metafísica a existência de um mundo inteligível, onde o Bem é a ideia suprema, para o qual o homem deve tender, implica que este inicie um processo de ascese em direcção às camadas mais elevadas da dialéctica. Processo este durante o qual o homem se apercebe do carácter transitório das coisas do mundo sensível e, por isso, se vai desprendendo delas. O filósofo é, para Platão, aquele que possui uma visão intelectual das realidades eternas e imutáveis, aquele que tem perante os olhos da mente os paradigmas de perfeição dos quais se podem derivar critérios de valor, permitindo-lhe extrair regras e normas apropriadas para a organização da vida social e política. O amor que o filósofo sente pela verdade é absoluto e ilimitado. Ao não sentir avidez pela riqueza nem por possuir coisas, e ao ver que as realidades materiais e a existência corpórea são transitórias, o filósofo fica isento de temer a morte; daqui segue-se que consiga exercer acções corajosas e decididas que se exigem ao verdadeiro orientador. O filósofo, enquanto liberto dos cuidados mundanos, é, assim, o único que está apto para conduzir a alma do mundo sensível para o inteligível (psicagogê).

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A alegoria da caverna reproduz uma nítida descrição da ascensão desde o reino das puras sombras até alcançar, finalmente, a intuição intelectual do bem em si mesmo. Ascensão difícil (kalépos), mas não impossível (adynatê). Esta dificuldade decorre do processo de desabituação das sombras; da subida ser gradual (a verdade está relacionada com a temporalidade); e da própria subida, pois a condição humana é tender para os níveis éticos inferiores. Ao nível da política, a riqueza também provoca instabilidade. Quando Platão aborda as causas da degradação dos regimes políticos, mais uma vez acentua o perigo do desejo das riquezas. A oligarquia é um estado em que devido à propriedade privada se estabelece uma divisão na polis, de um lado os ricos e do outro os pobres, em que “os ricos são soberanos” e na qual os pobres não têm direito de participar. É bem conhecida a influência que doutrinas órfico-pitagóricas exerceram no pensamento de Platão, por isso não é de estranhar que a sua metafísica esteja imbuída de ideias ético-religiosas, que incluem a defesa do desprendimento dos bens materiais. As práticas de técnicas de purificação que eram comuns entre os órficos pressupõem um certo desprezo pelos bens materiais. Também os pitagóricos viviam sem propriedade privada, conforme se pode depreender do lema: «O que pertence aos amigos é propriedade comum». No Fedro, livro VIII, podemos ler: «Ora, quando os mais jovens foram ter com ele [Pitágoras] com o desejo de a ele se juntarem, não esteve logo de acordo, mas disse que os seus haveres deviam ser tidos em comum com quem quer que viesse a ser admitido como membro. Depois,após muitos assuntos de permeio, diz: E foi por causa deles que pela primeira vez se disse em Itália: O que pertence aos amigos é propriedade comum». O neoplatónico Hiérocles de Alexandria, que comentou os Versos de Ouro, refere que estes têm como objectivo delinear o caminho que o homem deve percorrer se quiser tornarse semelhante a Deus. Sobre a riqueza, nos Versos de Ouro, podemos ler: «Mas lembra-te que a morrer destinados são os homens e conclui por tão bem saber adquirir fortuna como perdê-la».

(...) Na República Platão concebe uma cidade em que não existe propriedade privada, até mesmo as mulheres e os filhos devem ser comuns a todos. Platão considera que a unidade da cidade é a qualidade que torna os seus habitantes felizes e a multiplicidade é o que a torna menos perfeita. Ora, a origem da multiplicidade está no desejo de posse ou na cupidez. Para Platão, é o individualismo, mormente nas posses, que introduz na cidade o princípio da sua desintegração. (...)

Patrícia Joana do ascimento Calvário

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Época de Indigência: Técnica e Ausência de Deus

«Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem, Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo. Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar Se estamos vivos, tanto nos querem poupar. Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los, O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina. Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros, Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem, Até que haja suficientes heróis, criados em berço de bronze, De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais, Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros, Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto, Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de indigência? Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho, Que em noite santa vagueiam de terra em terra». (Friedrich Hölderlin) O tempo de indigência foi tematizado por Hölderlin na sua elegia Pão e Vinho, retomada por Rilke e pensada por Heidegger. É o tempo de idolatrias, em especial da idolatria do dinheiro e do poder que corrompem o homem, afastando-o da sua essência, como viu Marx, onde as mediações elevam-se a finalidades e o desejo atomiza-se em necessidades, e onde tudo começa e acaba no princípio da acção, do qual não escapa

(...) É o tempo de idolatrias, em especial da idolatria do dinheiro e do poder que corrompem o homem, afastando-o da sua essência, como viu Marx, onde as mediações elevam-se a finalidades e o desejo atomiza-se em necessidades. (...)

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a dor que atravessa a Terra. Em vez de despertar uma mudança, uma viragem, a dor do mundo é experimentada como um objecto que se oferece à acção que a socorre, à acção humanitária ou à assistência que pensa a penúria como defeito do seu próprio sistema assistencial, esquecendo e ocultando a dimensão ontológica da indigência: a indigência como ausência de Deus, tal como a tematizou Hölderlin. Para Heidegger, a técnica como organização da indigência oculta e encobre a ausência de Deus, cuja falta aconteceu desde que Herácles, Dionísio e Jesus abandonaram o nosso mundo, cavando um abismo sobre a Terra, cuja devastação é poetizada por T.S. Eliot: o a-bismo da ausência de sentido e de carência. Com a partida de Cristo, acontece o crepúsculo do Ocidente e inicia-se uma outra cronologia no decurso da qual não surgiu até hoje um único Deus novo, com excepção do deus-milhão poetizado por Guerra Junqueiro, o poeta português que cantou melhor do que qualquer outro a conexão essencial entre o céu e a terra, entre o divino e os mortais. O desaparecimento dos celestiais, o a-Deus de Lévinas, implica o desaparecimento da mediação e da ponte estendida entre o Céu e a Terra, entre a verticalidade e a horizontalidade: a conexão crucial entre o divino e o mortal. O deserto das zonas industriais e comerciais avança a um passo de tal modo acelerado e devastador que faz dos homens seres apátridas ou seres estrangeiros e estranhos à sua terra de origem, a terra natal. O interregno entre o já-não dos deuses foragidos e o ainda-não dos deuses vindouros é o tempo da "morte de Deus", vislumbrada por Rilke e anunciada por Hölderlin, Hegel e Nietzsche: "O tempo da noite do mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta" (Heidegger). Carente de fundamento e de fundo, a partir do qual possa enraizar-se e erguer-se, a noite do mundo encontra-se suspensa no abismo e, sem experimentar e suportar o abismo do mundo, entregue ao tempo do declínio, os mortais não estão preparados para operar a

(...) O deserto das zonas industriais e comerciais avança a um passo de tal modo acelerado e devastador que faz dos homens seres apátridas ou seres estrangeiros e estranhos à sua terra de origem, a terra natal. (...)

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viragem e banhar-se no fulgor da divindade regressada: a viragem só pode ocorrer "quando os mortais encontrarem a sua própria essência", isto é, chegarem primeiro ao abismo. A poesia autêntica de Rilke, as Elegias de Duíno e os Sonetos a Orfeu, experiencia claramente a indigência do tempo: "O tempo permanece indigente, não apenas porque Deus está morto, mas também porque os mortais já não conhecem nem dominam a sua própria mortalidade. Os mortais ainda não estão em posse da sua essência. A morte retira-se para o enigmático. O segredo da dor permanece velado. O amor não se aprendeu. Mas há mortais. Há-os na medida em que há linguagem. Demora-se ainda o canto sobre a sua terra indigente. A palavra do cantor retém ainda o vestígio do sagrado" (Heidegger). O "louco" de Nietzsche anuncia à multidão que "Deus está morto", mas a morte de Deus já tinha sido anunciada por Hegel. A consciência infeliz é "a dor que se expressa nas duras palavras: Deus morreu": "A morte é o sentimento dolorido da consciência infeliz de que Deus mesmo morreu". O homem deve afirmar a morte de Deus, protegendo-se de um niilismo estéril que alarga as sombras da meia-noite a todos os cantos do mundo. Os valores que guiaram a história do Ocidente radiavam do valor supremo de Deus. Com a morte do divino, toda a axiologia que se fundava nesse valor supremo é derrubada, ameaçando precipitar o próprio homem na voragem da a-narquia, do sem princípio, sem origem. Para Nietzsche, a afirmação da morte de Deus deve ser acompanhada pela tentativa de "transmutação de todos os valores": os valores já não descem do Céu, mas são instaurados pela "vontade de poder". Heidegger viu nesta instauração dos valores pela vontade de poder o culminar da metafísica, um novo gesto do subjectivismo ocidental, a terrível noção de que o sujeito "cria" valores. A morte de Deus é, para Heidegger, a morte do Deus da tradição judaico-crista ou do Deus pensado como valor supremo: o Deus como fundamento e causa de todos os entes, o Deus como ente

(...) Os mortais ainda não estão em posse da sua essência. A morte retira-se para o enigmático. O segredo da dor permanece velado. O amor não se aprendeu. (...)

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supremo que, situado no mais-além, despotencia e fagocita a vida neste mundo terreno e temporal, o Deus moral da ascética que se alimenta do desprezo pelo mundo sensível e pela carne do mundo. Sim, este Deus morreu e, tanto Hegel, Feuerbach, Marx e Bloch, como Nietzsche e Heidegger, cantam o seu requiem. E, no seu lugar, emergiu o capital e a sua nova ordem económica, o capitalismo, que, a partir da expropriação generalizada, o seu pecado teológico original (Marx), se apropria desumanamente da natureza, devastando-a. A transformação do homem em sujeito e do mundo em objecto, já operada por Descartes, é, segundo Heidegger, consequência do estabelecimento da técnica: o querer instaurou o mundo como totalidade dos objectos elaborados e, como tal, define a essência do homem moderno que encara a terra e a atmosfera como matéria-prima, entregando a essência da vida à elaboração técnica e colocando o próprio homem, enquanto funcionário da técnica, ao serviço dos objectivos propostos, de modo a vedar-lhe o caminho para o aberto (Rilke). O domínio técnico da natureza não só coloca todos os entes como algo elaborável no processo de produção, como também distribui os produtos através do mercado. Porém, nesta noite de declínio, Heidegger considera que, na fossa do Deus sepultado, se abre novamente, quando cavada até ao fundo, como exige a poesia hermética de Paul Celan, espaço para o divino. Na morte de Deus manifestam-se, na sua ausência, os vestígios da divindade. Para pensar essa divindade, é necessário um outro tipo de pensamento, completamente distinto do pensamento instrumental e calculista. Em vez de abrigar-se no Deus conhecido, representável e representado, o pensamento essencial abisma-se no divino de Deus desconhecido e, como poesia, procura realizar o itinerário traçado por Mestre Eckhart: o caminho que nos (re)conduz a Deus é o caminho que, com a sua ajuda, nos "livra de Deus", portanto, o caminho que nos despoja de nós mesmos e nos desnuda da vontade, do querer ter e do querer fazer, renunciando-a, aniquilando-a e conformando-a à vontade divina

(...) Na morte de Deus manifestam-se, na sua ausência, os vestígios da divindade. (...)

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que nos permite tudo, de modo a fruirmos das coisas apenas como emprestadas, deixando-as ser, e não como dadas, como propriedade ou como posse. Nessa entrega completa a Deus, "eu e Deus somos uno". Mas o homem sem-Deus, prisioneiro da sua vontade de poder, ainda não é capaz de experimentar a ausência de Deus como uma ausência e, por isso, não reconhece nas dores do mundo os vestígios do divino, o inteiramente-outro de Horkheimer. Somente alguns poetas possuem agudeza de ouvido para escutar o chamamento do divino, isto é, para prestar atenção aos vestígios dos deuses foragidos: "Os poetas são os mortais que, cantando com seriedade o Deus do Vinho, sentem os vestígios dos deuses foragidos, permanecendo sobre estes vestígios e assim apontando aos seus irmãos mortais o caminho da viragem" (Heidegger). Entre os poetas, Heidegger destaca Hölderlin: o testemunho da ausência de Deus e da indigência do mundo. Ao retomar e transformar a experiência pré-metafísica do Deus da tragédia grega, Hölderlin garante a possibilidade de uma teologia que, no tempo da retirada de Deus, se abriga sob a invocação e a convocação do divino: "O éter, no entanto, onde somente os deuses são deuses, é a sua divindade. O elemento deste éter, no qual a própria divindade ainda se essência, é o sagrado. O elemento do éter para a chegada dos deuses foragidos, o sagrado, é o vestígio dos deuses foragidos. Quem será, porém, capaz de sentir tal vestígio? Os vestígios são geralmente pouco visíveis, sendo sempre o legado de um aviso mal pressentido. Ser poeta em tempo indigente significa: cantar, tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos. É por isso que, no tempo da noite do mundo, o poeta diz o sagrado. É por isso que a noite do mundo é, no idioma de Hölderlin, a noite divina" (Heidegger). Para Hölderlin, Deus é o desconhecido e, como tal, constitui a medida para o poeta. O seu aparecer mediante o céu consiste num desvelar que deixa ver aquilo que oculta. Este manifestar-se velado é a medida na qual se mede o homem: "Enquanto a amabilidade

(...) Ser poeta em tempo indigente significa: cantar, tendo em atenção o vestígio dos deuses foragidos. (...)

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pura habitar no seu coração não será uma atitude infeliz o homem medir-se pela divindade. Será Deus desconhecido? Será manifesto como o Céu? Antes isso creio. É a medida do homem. Cheio de mérito, mas poeticamente, vive o homem sobre esta Terra" ("No Ameno Azul"). O poeta que recebe a medida mede a sua palavra poética ou a palavra que escuta. Elevando o olhar e permanecendo na ausência de Deus, o poeta, neste caso Rilke, descobre na ausência o vestígio que o notifica sobre o divino e sobre o homem. O ser do homem constitui o tema da poesia de Rilke, pelo menos do seu poema "Versos Improvisados", e trata da sua mortalidade como sendo a sua essência, embora o homem tenha desejado esquecer a própria morte que constitui a sua essência, talvez porque a imposição da objectivação técnica nega a morte, tornando-a algo negativo: o morto, o cadáver, já não passeia o esqueleto e não se abastece nas grandes áreas comerciais, enfim, já não consome mas é consumido pela terra e pelos vermes que reiniciam novos ciclos vitais. Quando se interroga "O que é o homem?", Hipérion é assaltado pela ideia do nada. O homem não pode falar da determinação humana, porque sente-se atingido pelo nada que sobre ele reina: "nascemos para nada", "amamos um nada", "acreditamos em nada", cansamo-nos para nada e, gradualmente, "desaparecemos no nada". Estes pensamentos afundam quem neles pensa. O homem que habita o abismo da noite do mundo não consegue dominar esta verdade gritante: "Quando olho para a vida, qual é a última realidade? Nada. Quando me elevo em espírito, qual é a realidade mais alta? Nada." O homem é simplesmente mortal, o ser efémero, que, quando deixa de sentir a ausência de Deus como falta, festeja na companhia da morte aniquiladora: sobre ele e diante dele vigora o vazio e o deserto, porque nele "há vazio e deserto". Sem a medida da divindade, o homem é nada: a morte de Deus e a morte do homem correspondem-se. O homem vazio e deserto, indigente e atrofiado mental e cognitivamente, entregue aos cuidados da sua mera animalidade desalmada e desumanizada, é o nosso contemporâneo que se abastece nas praças da alimentação, sem medida e sem saber donde vem, onde está e para onde vai.

J Francisco Saraiva de Sousa http://cyberdemocracia.blogspot.com/2009/05/epoca-de-indigencia-tecnica-e-ausencia.html 22

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Hieróglifos Existênciais Circo Escarlate

“Efectivamente, disse uma palavra de sábio aquele que afirmou que as escolas são oficinas de humanidade, contribuindo, em verdade, para que os homens se tornem verdadeiramente homens, isto é (…): I. criatura racional; II. criatura senhora das outras criaturas (e também de si mesma); III. criatura delícia do seu Criador. O que acontecerá se as escolas se esforçarem por produzir homens sábios na mente, prudentes nas acções e piedosos no coração.” (Coménio, Didáctica Magna) Entendam-se as palavras de Coménio à luz da época em que as escreveu, ou não fosse este o maior pedagogo do séc. XVII, fundador da Didáctica Moderna. Sim, porque hoje já ninguém quer ser como o “Criador”, já que, afinal de contas, quem é esse? Será de bom senso conceber um criador para tudo? Um princípio único a partir do qual surgiriam coisas múltiplas? 1 x 1 é sempre igual a 1. Se apenas houvesse o um, nunca poderia haver o dois. A ciência não vai nessa do “Criador”. Ideia interessante, pois deixamos de ter a quem deitar as culpas de vivermos num mundo torto. Quem sabe um dia não percebamos que a falta de harmonia começa em nós mesmos e nos responsabilizemos pelos nossos próprios actos. Mas com esta ideia de “Criador” apagada, ou, pelo menos, relativizada, perde-se também um modelo… que podia não ser grande coisa, mas sempre era um modelo. Como já tenho ouvido dizer, o “ser” deixou de ter importância. Agarramo-nos a estereótipos, encaixamo-nos em grupos, mas isso só acontece porque na verdade andamos perdidos à procura de nós mesmos. Creio, contudo que, na verdade sempre andámos, e talvez andássemos até mais perdidos de nós mesmos, quando aceitávamos modelos de deuses impostos do exterior, uma imposição que alguns aceitavam de bom grado, afinal de contas sempre se escusa de se estar a ter trabalho a pensar e a questionar, coisa que angustia e com propriedade. Mas mesmo assim, a ideia de Coménio carece apenas de uma pequena adaptação para continuar actualizada; alteremos então o ponto III e vamos substituir este modelo de perfeição pelo defendido pelos pedagogos mais modernos: criatura que seja um bom cidadão, consciente, responsável, solidário, enfim. Eu acrescentaria até qualquer coisa mais: ser que se conhece a si mesmo, que sabe minimamente o que faz neste mundo (ambição desmedida, a minha). O professor deve guiar o seu aluno no seu processo de auto-descoberta, assu23

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Hieróglifos Existênciais Circo Escarlate

mindo uma posição de espectador que apenas intervém quando é necessário, no sentido de deixar tudo o que o outro traz dentro de si, à partida, manifestar-se, para depois procurar harmonizar a sua natureza com as exigências da vida em sociedade; sem desconsiderar o empirismo de John Locke, sem pôr em causa a necessidade de garantir que todos têm oportunidades iguais, há que ser realista e perceber que, logo à partida, somos diferentes, merecendo portanto diferentes tratamentos, que sendo diferentes, não têm necessariamente de ser discriminatórios. Mas é isso que se pratica hoje nas nossas escolas? Ficaria aqui horas infinitas a enumerar factores que atentam contra este princípio tão fundamental, ao qual já ninguém liga propriamente, tantas são as solicitações em sentido contrário. Que interessa que formemos cidadãos não pensantes e acríticos, consumidores compulsivos de tudo quanto é rápido e imediato? É mais fácil e barato conceber programas a nível nacional, negligenciando as particularidades de cada escola e do meio onde se insere, e caminhando por cima daquilo a que os alunos estão receptivos ou prontos a interiorizar. Valha-nos a liberalização da informação; assim pelo menos a escola não detém a hegemonia do saber, como se apenas aqueles saberes que veicula fossem importantes… não digo que não o sejam; a questão é que a construção de conceitos é algo único, pessoal e intransmissível, e para uma aprendizagem verdadeiramente eficaz esta deve decorrer da curiosidade natural do aluno… mas como dizem as minhas alunas de 79 anos, quando eu pergunto se querem fazer assim ou assado, respondem rapidamente, quase ofendidas “Então, a Sra. Professora é que sabe!”; curiosamente, os que têm menos 70 anos não me dariam resposta muito diferente, só não me dariam tanto crédito. Mas também não saberiam o que queriam, não sentiriam grande curiosidade por nada em especial. Nas sociedades dos países ditos “desenvolvidos”, as crianças, crescem sem grandes objectivos, sem ter pelo que lutar. É, quanto a mim, solo fértil para lhe criar novos objectivos, mais interessantes do que propriamente trabalhar em funções estupidificantes para ganhar 3 tostões e esticá-los para que cheguem ao essencial, como seria trabalharem-se como pessoas, moldarem a sua individualidade, descobrirem-se, perceberem-se… mas infelizmente são também terreno fértil para engolir a patranha uniformizada que os ministérios lhes convém que engulam… mas depois também não engolem, porque já estão cheios com a patranha 24

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que a TV veicula (muito mais fácil de consumir) e os jogos de vídeo e sei lá mais o quê. Depois têm maus resultados e os professores batem com a cabeça nas paredes a questionar-se por que demónios as patranhas não entram nas cabecinhas das criancinhas… a culpa? Não existe. Creio que, na verdade, nem sequer é dos políticos. Existe sim a responsabilidade e o poder de mudar e esse é de todos nós. “Prestar atenção ao aluno tal qual ele é; reconhecê-lo no que o torna único e irrepetível, recebendo-o na sua complexidade; tentar descobrir e valorizar a cultura de que é portador; ajudá-lo a descobrir-se e a ser ele próprio em equilibrada interacção com os outros - são atitudes fundadoras do acto educativo e as únicas verdadeiramente indutoras da necessidade e do desejo de aprendizagem.” (Projecto Educativo da Escola da Ponte)

Doll Of Porcelaine

(...) Como já tenho ouvido dizer, o “ser” deixou de ter importância. Agarramo-nos a estereótipos, encaixamo-nos em grupos, mas isso só acontece porque na verdade andamos perdidos à procura de nós mesmos. Creio, contudo que, na verdade sempre andámos, e talvez andássemos até mais perdidos de nós mesmos, quando aceitávamos modelos de deuses impostos do exterior, uma imposição que alguns aceitavam de bom grado, afinal de contas sempre se escusa de se estar a ter trabalho a pensar e a questionar, coisa que angustia e com propriedade. (...)

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Captações Imaginárias Desenho

Catwoman - João Diogo http://www.kingdompeas.com/

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Captações Imaginárias Banda Desenhada

Happy Halloween Everyone, Ervilha Estátua João Diogo http://www.kingdompeas.com/

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Captações Imaginárias Ilustração

Venomous Tongue Borus Aura

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Captações Imaginárias Ilustração

Tentacle Eyes Borus Aura

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists I http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists II http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists III http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists IV http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists V http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists VI http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Arte Digital

Murmurists VII http://murmurists.blogspot.com/

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Captações Imaginárias Escultura

Hybrid Eve - Albano Ruela http://neoartes.blogspot.com/

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Apogeus Espirituais Dissipar a Névoa

(...) O que os cínicos fazem é uma aplicação quase directa da ontologia Eleata. Para esta escola não existem graus de ser, existe um absoluto, o Ser, imutável, simples, impassível. (...) W. D. Desmond A escola cínica representa, na linha de Platão, embora com algumas especificidades, a valorização da pobreza. Contrariamente aos platónicos, eles consideram que as ciências como a aritmética, a geometria e a dialéctica são supérfluas e distraem o homem do que verdadeiramente conduz ao conhecimento de si. As ciências discursivas são apenas uma forma de vaidade e servem para intimidar. Para os cínicos tudo para além do próprio homem está envolto na incerteza da Fortuna, por isso de nada vale ao homem preocupar-se com o dia que virá, restando-lhe apenas viver o momento e confiar na providência da Natureza. Este abandonar-se à Natureza é um processo de libertação e é a demanda da vida do homem. Quando consegue libertar-se completamente o homem obtém o perfeito conhecimento e domínio de si, que constitui a única forma possível de conhecimento certo e posse. Uma vez que a única coisa verdadeira é ele mesmo, também é auto-suficiente e concentra em si mesmo a riqueza. Como refere W. D. Desmond, o cínico opta assim por uma vida mendicante e itinerante, impassível perante os acontecimentos externos. E, ainda que rejeitando todo o tipo de posses, família e lar, o homem sábio sente-se em todo o lado como se estivesse em casa. Ele é o rei de si mesmo e o seu reino está dentro dele: «Ele não teme a pobreza, o exílio, a derrota, a tortura ou a morte, mas permanece inexpugnável pela Fortuna contra quem ele luta nas suas guerras verbais». Para ser feliz o homem não necessita de nada para além da simplicidade da natureza. O cínico renuncia também ao conhecimento aparente dos conceitos e teorias para alcançar a única verdade: a afirmação “Eu sou”. Compreender isto é a verdadeira riqueza do cínico que vive na pobreza, mendicidade e itinerância e que simultaneamente gera nele uma abertura para o acolhimento de qualquer caminho que a Fortuna lhe apresente.

Patrícia Calvário

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Âmagos Teatralizados Um Olhar na Noite de S. João (a menina dentro d'«A Menina Júlia» de Strindberg)

Untitled, Gottfried Helnwein, 2005

Júlia – Há um sonho, que tenho de tempos a tempos, e de que me recordo neste momento. Tendo trepado até ao cimo dum pilar, vejo-me aí sentada sem qualquer possibilidade de descer; quando baixo os olhos, sinto vertigens, e tenho de voltar para o solo mas não tenho coragem de me atirar; não posso conservar-me ali e estou ansiosa por cair, mas não caio. Contudo, não conheceria a paz, nem conheceria o repouso senão quando estivesse lá em baixo, absolutamente lá em baixo, no chão […]. Para a menina Júlia, as paredes impossíveis do casarão oblíquo, das divisões descomunais aos espartilhos febris da moral católica, sempre foram um pesadelo pendurado em pétalas de lilases. O mundo é um aborrecimento sobre si mesmo desde o dia em que o inspirou pela primeira vez, vinte e cinco anos antes, já, ainda, à guarda da Velha Morte. No cimo do monte dourado, onde a vida é um entrançado de inferno em horas de marfim cortante e canoas partidas de, em madrepérola, gargareja o sufoco seguro da protecção parental, no viril abismo oitocentista, que desafia.

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Âmagos Teatralizados Um Olhar na Noite de S. João (a menina dentro d'«A Menina Júlia» de Strindberg)

Lá em baixo, no chão de terra suada, os abutres farejam os céus: aguardam impacientemente um pedaço de Júlia, de menina, da menina Júlia, as sanguessugas já lhe devoram a alma, ora inquietas com o demasiado lento desabrochar das consequências cardíacas, ora aquietadas pela certeza da inevitabilidade das gotas escarlates, serpenteando imparáveis do ninho de ouro, aos espinhos metálicos da realidade humana. A menina Júlia sempre gostou de beber cerveja entre copos de vinho. Nunca se importou com os devaneios das gentes da terra, que a delambiam de putéfia, selvagem e provocadora, a indecorosa e ultrajante filha do senhor Conde, que se rebaixa dançando nas noites de S. João com a criadagem, ordenando aos homens de pés rotos e enegrecidos que lhe beijem os seus de prata. A sede indomável do seu espírito em luta contra a imagem idealizada da mulher casta e angelical impingida, as múltiplas faces, verdades, desta personagem, são a ponte entre gritantes disparidades de classe que se assumem contraditórias, ainda dentro do seu próprio leito, pela mão de Strindberg: a menina deseja conciliar a sua natureza demoníaca, primordial, com a necessidade de paz e serenidade, libertando-se das amarras da moral puritana da época, saltando definitivamente do pedestal onde sempre se encontrou, directamente para o útero infernal, que ao mesmo tempo receia e deseja morbidamente. A necessidade de libertação desta personagem, a par com o desejo de poder de quem nada possui de verdadeiramente seu e o desprezo que nutre pelos homens, que seduz para brincar entre as labaredas do desejo que instiga e que posteriormente nega, revelam a intenção de Strindberg em contar e questionar uma sociedade exageradamente estratificada, que esquece as incongruências da natureza humana, os abismos e a complexidade da pessoa por trás da persona, construída sobre placas de desejos, sentimentos, sensações, instintos e impulsos recalcados e que se vai reciclando, reinventando e repetindo sobre estes mesmos recalques, ignorante das consequências desta mesma castração do Homem, no Homem.

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Âmagos Teatralizados Um Olhar na Noite de S. João (a menina dentro d'«A Menina Júlia» de Strindberg)

A vida, este circo de lunática perdição, a multiplicidade travestida e metafórica das horas e dos Seres, néons e coito, o palco gritante da exposição dos enchidos e das almas, das ofertas carnais e dos truques dos ilusionistas, ainda consegue segurar o Amor, entre a sede que nasce do grito no poço e o nevoeiro das ruas desertas e geladas. O mordomo João passeia-se nas imediações da alma de Júlia desde que ela era apenas uma criança. É o que dormita ao lado dos abutres, encostado à […] árvore enorme, numa floresta sombria. Quero subir, subir até à extremidade superior, para ver límpida a paisagem brilhante de sol, e descobrir o ninho onde dormem os ovos de ouro. E trepo, trepo, mas o tronco é tão grande, tão liso, e o primeiro ramo está tão longe! A terra degolada em horas desesperadas de sacro sacrifício fazem calos no Ser, e ainda que não pela raiz, a esperança é cortada pelo tronco, como quando se corta uma árvore muito antiga e alta. Deseja dançar com os pés dentro de sapatos finos e luzidios, deixar a condição de criado e alcançar o ouro do cume da montanha. Strindberg enlaça duas personagens que se encontram irremediavelmente desencontradas, não apenas por representarem classes distintas, mas pela sede que os move, os levar para campos opostos. No entanto, encontram-se a meio caminho, entre a queda e a subida, pelo amor cruel, cru e limpo que lhes arranha a carne e o espírito. Neste amor real, espelhado de igual para igual, cada um pretende superar o outro, ultrapassá-lo para que seja o próprio a decidir se pretende ou não voltar atrás para salvar este sentimento ou fugir, para sentir que possui esse poder ou o controlo da relação, para conquistar o papel de herói na peça, o herói das dissertações de Nietzsche e que Strindberg relembrou. O mordomo degola o canário da menina Júlia.

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Âmagos Teatralizados Um Olhar na Noite de S. João (a menina dentro d'«A Menina Júlia» de Strindberg)

Os relógios param e espetam os ponteiros nos dois corações desencontrados, consequências mútuas, anulam-se. A menina Júlia mendiga pelas ruas vertiginosas o desassossego da sua própria contradição. Um casarão oblíquo com paredes impossíveis, divisões descomunais, espartilhos febris, pesadelos que emolduram pétalas de lilases, será sempre insuficiente o peso do sonho sobre os pilares da desgraça? O mundo é um aborrecimento sobre si mesmo desde o dia em que o inspirou pela primeira vez, vinte e cinco anos antes, já, ainda, à guarda da Velha Morte. Paradoxos de mundos que se cosem em realidades urbanas, rotativas, cíclicas, realidade? Menina Júlia, para onde foram as tuas mãos de mármore escarlate? O mordomo João regressa à nula aquiescência caseira, da rotina de canários degolados. Quem era o mordomo João entre as incontáveis meninas Júlia? Onde estariam as meninas Júlia num espaço-tempo sem uma noite de S. João?

Antígona

Meia-Noite: www.comboiodameia-noite.blogspot.com

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Coliseu dos Assinantes Uma Caneta Chamada Noite

There Was a Time, Babalith

É durante a noite que aves sinistras Sobrevoam a carcaça do meu pensamento, A sua espera, atenta e voraz inquietude São os nós que unem as correntes do tormento, Nocturnas euforias de espectros diligentes Que não têm voz, alma, nem tempo. Os pratos da balança dançam desordenados Em macabros festins de insónias moldados. Subitamente, os primeiros raios de silêncio fazem-se convidados E um velho relógio vai soando a madrugada Pelos velhos minutos do nada cansados.

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Coliseu dos Assinantes Uma Caneta Chamada Noite

Lust in the Absence of Light, Babalith

Presbitérios abandonados… Deuses destronados… Beijos exilados… Planos alterados… A metamorfose dos condenados… As glórias são mitos desfocados. … E os incensos da utopia vão formando a sua cinza Na catarse de uma caneta chamada Noite.

1. 2.

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Emanuel R. Marques http://www.myspace.com/emanuelrm

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Trans Missões Murmurantes Minha palavra O próxima, , vagarosa, , inexperiente.... .... Enquanto escrevo, , um peão luta no limite da corda. . Ela sabe que sou com os purificadores e que facetamos estas requintadas Cinderellas umapor-uma. . Aqui escrevo a esse respeito, , atento às varas de pele que labutam no exterior no seu molho de dinheiro. . A sua vitalidade é incessante e envolvente, , enquanto a mal aprendem no ritmo da insistência. . São alguns eviscerados de direita, , de unGeni - histo-afagados e isolados do mundo e das suas situações. . Multiplicam-se como a escumalha arrepiada brota do dinheiro, , esfregando-o nos rostos ... ...Poderoso excitante. . Éter, , a investida demencial, , descobre-se divisível, , como superfície, , encontrase sísmico, , como contenção. . Éter é comestível, , por Deus!, , é probabilizado, , é refresco. . O Éter já foi engendrado, , agora novamente trabalhado como Lydon Be Rotten. . O meu carro ilumina em foco inteiro. Ama-me, depois, em frente a mim. Eu faço coisas. Segundos depois, faço mais. Por ai fora. A recapitulação aponta-me. Sou em sessões, nas minhas não-crises. Sobre habilidades, digo isto... Adapta-te a coisas, espalha-te sobre o quarto, sorriso cozido, e impessoal. Nada armazenado senão pequenos portfolios de desconforto. O meu corpo: o teu corpo. Eu compreendo e não me esqueci mas ainda não sei. Abre as pernas. Meia noite afiada eu vou tomarte.

Retransmiti-o para seguir, , via sinédoque, , como numa re. . figuração, , entre re. . metonímia, , como re. . distância. . Eu teclo ... uma substituição conceptual, , como se restringido a uma incerta interpretação de não / não / não. .

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Trans Missões Murmurantes

Banalidade +1 , como os olhos. . Assim: : vê. . + ... uma única parte do corpo, Caracterização +1... um eu coerente. . Assim: : Sê. . + A minha amada é muitas vezes descrita parte a parte. . Assim: : Torna-te. . (Tão transfigurante, , sim.) .) A primeira coisa que precisa saber sobre mim é que tenho memória de quão estranho foi olhar em primeiro sobre o desenvolvimento do processo cognitivo como um processo necessário, que é tanto humano e psíquico nas suas mais mansas formas, mas, via dissociação ou via inclusão, pode-se tornar numa espécie de sonhar acordado, dentro do que o sonhador vive como que dentro de um livro, ou uma película, ou um qualquer outro lado da concentração, onde os sinais do corpo se orientem totalmente, a todo o custo, direcção à fome pela imaginação, ou para dentro das capacidades até agora descobertas de cessar as relações, ou para dentro do que o pensamento ele próprio se substitui por intuição não desenvolvida. Eu sou com as letras do alfabeto. Eu estou deduzido no limite de um circulo, inteligível para os aglomerados agora sofridos por intervenção. Aos meus bióticos e amórficos limites, eu contraponho todos os casos não reportados, para os caixões vazios da sua própria epistemologia regada. Em ti tenho de me perder, como foi por ti dito, e esta escavação é a única forma de dividir como requeres. Vê como te atendo. Vê como coordeno o meu banco de imagens fecais, cuja frequência descreve a perfeição dos teus rituais. Os teus sintomas são os meus 15 minutos de fama.

Murmurists http://murmurists.blogspot.com/ Tradução de André Consciência

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Trans Miss천es Murmurantes

My O word near, , ambling, , raw.... .... As I type, , pawn struggles on the end of my tether. . She knows I' 'm with the refiners and that we facet these exceptional Cinderellas one-by-one. . I write here in that regard, , attentive to the sticks of skin toiling outside in their marinade of money. . Their vitality is unceasing and surrounding, , as they learn the hard way at their own insistence. . They are some eviscerated right-wing, , of unGeni - histo-pampered and insulated from the world and its situations. . They accrue as flesh crawl scum from money, , shoving it in faces ...Such a ... turn on. . Ether, , the onset dementian, , is divisible, , as surface, , is seismic, , as contention. . Ether is edible, , for God' 's sake, , is probablised, , is slake. . Ether is already begotten, , now re-worked as Lydon Be Rotten. . My car lights full beam. Love me, then, in front of me. I do things. Seconds later, I do more. Onwards and on. Recollection points me. I am sessional, in my non-crisis. About abilities, I say this... fit into stuff, be strewn across the bedroom, smile-boiled, and impersonal. Nothing garnered but small portfolios of discomfort. My Body: your body. I understand and I have not forgotten but I still don't know. Open your legs. Midnight sharp I will take you.

Relayed this to follow, , via synecdoche, , as if re. . figuration, , along re. . metonym, , as re. . distance. . I type ... conceptual substitution, , as if restricted to an uncertain interpretation of no / no / no. . Commonality +1 , as the eyes. . Thus: : see. . + ... a single body part,

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Trans MissĂľes Murmurantes

Characterisation +1... a coherent self. . Thus: : Be. . + My beloved is often described part by part. . Thus: : Become. . (So becoming, , yes.) .) The first thing you need to know about me is that I remember how strange it was to first look upon the developmental cognitive process as a necessary process, which is both humane and psychic in its mildest forms, but, via dissociation or via overt inclusion, can be some kind of daydream, within which the daydreamer lives as if inside a book, or a motion-picture, or some other site of concentration, where the body's signals become wholly orientated towards a hunger for imagination at all costs, or within which any hitherto accepted capabilities cease to make connections, or within which thought itself is replaced by an undeveloped intuition. I am with the letters of the alphabet. I am inferred across a circle’s edge, intelligible to the now thronging intervened. To my biotic dysmorph confines, I counterpart all your unreported cases, into the shallow graves of their own soiled epistemol. I must lose myself in you, as you said, and this digging is the only way I can divide as you require. See how I attend you. Please see how I time my bank of defective images, whose frequency describes the flawlessness of your rituals. Your symptoms are my 15 minutes of fame.

Murmurists

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Escreva-nos para abismohumano@gmail.com A revista Abismo Humano reserva-se o direito de publicar os melhores poemas e artigos de opinião na secção Coliseu dos Assinantes.

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