Revista Arte Sesc - 2º semestre 2017

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SEGUNDO SEMESTRE

2017 ISSN 1984-056X

CIRCO: PLURAL, DINÂMICO E ENCANTADOR FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA FAZ HOMENAGEM A DEBUSSY noites no motel, conto inédito de bráulio tavares




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08

34

DIFUSÃO CULTURAL

ARTES CÊNICAS

MÚSICA

08 Atividades do Programa Arte Sesc

10 Artistas participantes do Festival Santa Maria

34 8º Festival Internacional Sesc de Música leva

realizadas em todos os munícipios do

Sesc Circo, que teve sua terceira edição

a Pelotas a harpista da Orquestra Sinfônica

Rio Grande do Sul em 2017, além de

em novembro, analisam o panorama da

do Estado de São Paulo (Osesp), Liuba

fomentar o desenvolvimento da cadeia

circulação de circo no Brasil e contextualizam

Klevtzova, discípula de Vera Dulova, que dá

cultural, contribuíram para a formação da

a pesquisa das diferentes vertentes

nome à escola russa de harpa

consciência crítica do público 18 O legado do festival de circo para a cidade de 09 Principais eventos programados para 2018

Santa Maria

37 Artigo do pianista Max Uriarte lembra os 100 anos da morte do compositor francês Claude Debussy, homenageado no 8º Festival

20 CADERNO DE TEATRO

Internacional Sesc de Música juntamente

O encontro do Coletivo As Travestidas, de

com Leornard Bernstein, cujo centenário de

Fortaleza (CE), com a diretora gaúcha Jezebel

nascimento é celebrado em 2018

De Carli, que resultou nos espetáculos BR-TRANS e Quem Tem Medo de Travesti, processos de criação e trajetórias artísticas O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

DIRETORIA Luiz Carlos Bohn

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

www.sesc-rs.com.br ISSN 1984-056X

Ouça o Sesc/RS no Spotify!

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura

COORDENAÇÃO DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Audiovisual

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

UNIDADES SESC NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Canoas  Av. Guilherme Schell, 5340  51 3463.6756 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3905.3500 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403 Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099

Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Protásio Alves  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga  R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Porto Alegre  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


39

46

54

AUDIOVISUAL

ARTES VISUAIS

LITERATURA

39 A literatura como fonte de inspiração para

46 Com a realização de exposições como as de

54 Noites no Motel, conto inédito

produções cinematográficas é o tema do

Kelvin Koubik, Felipe Povo e Marinês Busetti,

artigo de Fatimarlei Lunardelli, doutora em

o Sesc/RS intensifica sua programação

cinema pela USP, que ministra oficinas de

de artes visuais, com o objetivo

análise de filmes pelo Sesc/RS

de formar público

de Bráulio Tavares 58 Ensaio do educador social Chiquinho Divilas defende a aproximação da escola com a linguagem do aluno e define o rap como uma

43 Os realizadores do Rio Grande do Sul que

50 6º Salão Fundarte/Sesc de Arte 10x10

ferramenta de aprendizagem

tiveram seus filmes escolhidos para a seleção

concede primeiro lugar à obra

nacional da I Mostra Sesc de Cinema e suas

Dragtopografia – Pequenos Ambientes

produções Ruby, Em 97 Era Assim e Lipe,

do Vale dos Homossexuais, de Fabrízio

a experiência de circular pelo Estado de

Vovô e o Monstro

Rodrigues, uma espécie de cartografia dos

Pernambuco no Projeto Arte da Palavra

62 Escritora e poeta Telma Scherer relata

universos queer e kitsch 65 Leitura

CAPA

UNIDADES SESC/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Balneário Pinhal  Av. General Osório, 1030  51 3682-3041 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Rua Nivio Castelano, 926  54 3358.5729 Nova Prata  R. Luiz Marafon, 328  54 3242.3437 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  Av. Sete de Setembro, 1281  55 3423.5403 Santiago  Av. Getúlio Vargas, 1079  55 3251.9373 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três de Maio  Travessa da Praça Bandeira, 65  55 3535.2255 Três Passos  Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria  R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

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EXECUÇÃO E PRODUÇÃO EDITORIAL

51 3284.2000   faleconosco@sesc-rs.com.br

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Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

sescrs   Sesc_RS

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Designer e editor de arte Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Patrícia Lima   SescRS   sescrs

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.500 exemplares

Em Busca da Triple Volta, Irmãos Sabatino Foto: Martin Sabatino


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Espetáculo Varieté Foto: Ronald Mendes

AQUI A CULTURA ESTÁ EM MOVIMENTO No Sistema Fecomércio-RS/Sesc a cultura é pulsante. E promover manifestações artísticas para os gaúchos esteve no nosso dia a dia ao longo de 2017. Não faltam exemplos de ações que consolidam nosso objetivo de ampliar o acesso à cultura, com foco na formação de plateias. São apresentações de teatro, circo, música, dança, cinema, artes visuais e ações literárias que circulam pelo Estado, proporcionando momentos de reflexão e felicidade. Isso tudo se evidencia nas páginas desta Revista Arte Sesc. Entre os destaques desta edição está o Santa Maria Sesc Circo, que atraiu e encantou mais de 13 mil pessoas em seis dias, entre espectadores, participantes de oficinas e outras ações totalmente gratuitas. Realizado pelo terceiro ano consecutivo, o evento se consolida como um dos maiores do Rio Grande do Sul na área circense e levou ao Centro do Estado artistas nacionais e internacionais. Além de ressaltar grandes projetos de 2017, estamos na expectativa pelo ano que se aproxima. Os preparativos para mais um Festival Internacional Sesc de Música, também em pauta nas páginas a seguir, estão a todo vapor. Serão 12 dias de programação intensa em Pelotas, no mês de janeiro. Profissionais de 11 nacionalidades diferentes participam do Festival, que na sua 8ª edição será marcado por homenagear dois grandes nomes da música mundial: Claude Debussy e Leonard Bernstein. As atividades que realizamos demonstram que a democratização da cultura está em nosso DNA. E, a cada novo dia, reafirmamos nossos esforços em seguir disseminando a arte por todos os rincões do Rio Grande do Sul. Boa leitura!

LUIZ CARLOS BOHN

LUIZ TADEU PIVA

PRESIDENTE DO SISTEMA FECOMÉRCIO-RS/SESC/SENAC

DIRETOR REGIONAL SESC/RS


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DIFUSÃO CULTURAL

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CULTURA PARA MAIS DE 2,9 MILHÕES DE PESSOAS PROGRAMA ARTE SESC INTENSIFICA SUA PROGRAMAÇÃO EM 2017 COM ATIVIDADES SISTEMÁTICAS DE INCENTIVO À LEITURA, ARTES CÊNICAS, MÚSICA, ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL EM TODAS AS REGIÕES DO RIO GRANDE DO SUL

CIRCO

O Sesc/RS desenvolve uma programação que visa

Entre os destaques da programação de ar-

a contribuir para a formação de cidadãos críticos e

tes cênicas, que registrou um público em torno

sensíveis para as artes, a partir do contato sistemá-

de 750 mil pessoas em mais de 2,2 mil atrações,

tico com a cultura em todas as suas manifestações.

estiveram festivais, como o 12º Festival Palco Gira-

ESPE TÁCULOS

Além disso, ao manter e até ampliar seus projetos

tório Sesc, uma espécie de pouso, em Porto Alegre,

em um momento econômico desfavorável que

dos 20 grupos de todo o país que participam do

PÚBLICO DE 89.738 PESSOAS

repercute na redução de investimentos na área, a

Circuito Palco Giratório – também com apresen-

instituição promove o fomento da cadeia cultural,

tações em cidades do interior gaúcho –, além de

criando oportunidades para artistas e demais pro-

coletivos e artistas convidados. Outros eventos que

fissionais envolvidos. Em 2017, como resultado da

movimentaram a cena com atrações nacionais e

atuação focada na diversidade, na descentraliza-

até mesmo internacionais foram o 3º Santa Maria

ção e na abrangência, proporcionou apresentações

Sesc Circo, a 7ª Mostra de Teatro de Passo Fundo,

de teatro, dança, circo e música, em festivais ou

e as Aldeias Sesc Capilé (São Leopoldo), Imembuy

circulação de grupo locais ou que são referência

(Santa Maria), Ivy Pitã (Santa Rosa) e Caxias do Sul.

no cenário nacional, sessões de cinema, exposições

De janeiro a dezembro, o projeto Rio Grande no

de artes visuais e atividades de literatura, sempre

Palco promoveu o acesso a produções referenciais

vinculadas a ações educativas, e outros projetos

em dança, circo e teatro, possibilitando ainda o in-

especiais para um público de mais de 2,9 milhões

tercâmbio entre os grupos e com o público. Para

de pessoas.

estudantes das redes públicas de ensino, o projeto

240

DANÇA

415

Espetáculos Público de 116.621 pessoas

Teatro a Mil fortaleceu a ação de formação de plateia com a circulação de espetáculos infantis.

MÚSICA 1.260 APRESENTAÇÕES Público de 815.386 pessoas

O projeto Sesc Música, desenvolvido em formato de circuitos, apresentações únicas ou em grandes eventos abertos à comunidade, difundiu a pluralidade da música brasileira e internacional nos palcos do Sesc ou de instituições parceiras. No começo do ano, o 7º Festival Internacional Sesc de Música levou a Pelotas expoentes do cenário mun-


DIFUSÃO CULTURAL

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1.586 ESPETÁCULOS DE TEATRO Público de 546.212 pessoas

LITERATURA ARTES VISUAIS

707 ENCONTROS

E APRESENTAÇÕES LITERÁRIAS

Público de 464.845 pessoas

1.869

182

APRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS

EXPOSIÇÕES Público de 270.751 pessoas

Público de 189.801 pessoas

dial da música instrumental e de concerto e alunos de toda a América do Sul. O 4º Festival Kino Beat difundiu música eletrônica aliada a performance audiovisual, multimídia e arte. Consolidados nacionalmente, os projetos Concertos Banco de Partituras, que incentiva a formação de grupos de

AUDIOVISUAL 1.477 SESSÕES

PÚBLICO DE 116.219 PESSOAS

música de câmara, e Sonora Brasil – Formação de Ouvintes Musicais também contribuíram para criar uma consciência para a arte. No ano de 2017, o Sesc/RS intensificou sua programação de exposições com artistas gaúchos, integrada a oficinas e momento para troca de experiências. Outras ações de destaque nas artes visuais foram a realização do 5º Rio Pardo em Foto e do 6º Salão Sesc/Fundarte de Arte 10x10,

BIBLIOTECA

JANEIRO

8º Festival Internacional Sesc de Música, Pelotas

ABRIL

8ª Mostra de Teatro de Passo Fundo Bienal do Mercosul – Programa Pedagógico 2ª Mostra Sesc de Cinema – etapa estadual

MAIO

12ª Aldeia Sesc Capilé, São Leopoldo 13º Festival Palco Giratório Sesc, Porto Alegre

AGOSTO

4ª Aldeia Sesc Ivy Pitã, Santa Rosa 5ª Mostra Sonora Brasil, Porto Alegre

NOVEMBRO

6ª Aldeia Sesc Caxias do Sul 4º Santa Maria Sesc Circo 2º Mostra Sesc de Cinema - etapa nacional

ARTES CÊNICAS Projeto Teatro a Mil 12 circuitos, 137 sessões de espetáculos em 20 cidades Palco Giratório 9 circuitos, 82 sessões de espetáculos em 16 cidades

180.781

Rio Grande no Palco 10 circuitos, 11 cidades

489.158

LITERATURA

EMPRÉSTIMOS PA R T IC IPA N T E S

com obras de artistas de todo o Brasil. A I Mostra

O Sesc/RS deu continuidade, em 2017, aos

Sesc de Cinema traçou um panorama do cenário

seus projetos de incentivo à leitura, um dos pi-

de audiovisual brasileiro e proporcionou a novos

lares para o desenvolvimento social e cultura do

realizadores a circulação por todos os estados

país. Sesc Mais Leitura, mostras didáticas e feiras

brasileiros de seus filmes de curta e longa metra-

de livros priorizaram as ações voltadas aos alunos

gem, sem espaço no circuito comercial de exibição.

da rede pública, assim como as atividades da rede

A segunda edição do projeto está na fase estadual

de bibliotecas. A instituição investiu em um novo

de seleção das produções. Com sessões gratuitas

projeto nacional de democratização do acesso à

destinadas ao circuito alternativo, na rua ou em

leitura, Arte da Palavra, que atua na formação e

salas, algumas organizadas em mostras temáticas,

divulgação de novos escritores, na valorização das

o Cine Sesc privilegia a formação de público e o

obras e escritores brasileiros e na compreensão das

desenvolvimento artístico e cultural por meio de

novas formas de produção e fruição literária.

debates e oficinas de audiovisual.

ATIVIDADES PROGRAMADAS PARA 2018

Arte da Palavra 6 oficinas de criação literária, 16 debates, 16 apresentações artísticas, 4 cidades envolvidas, 13 escritores de estados diferentes, público de 2 mil pessoas (jovens e adultos) Sesc Mais Leitura 300 sessões de encontros literários, 5 etapas em 15 cidades, 30 mil participantes (público infantil e juvenil) Feiras de Livros 84 feiras, 200 profissionais da Literatura, 300 mil pessoas de todas as faixas etárias

MÚSICA Sonora Brasil 4 circuitos, 50 apresentações em 12 cidades


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O CIRCO EM EBULIÇÃO PARTICIPANTES DO FESTIVAL SANTA MARIA SESC CIRCO, ARTISTAS DE COLETIVOS QUE REPRESENTAM DIFERENTES VERTENTES DA MANIFESTAÇÃO, ANALISAM O PANORAMA DA CIRCULAÇÃO DE CIRCO NO BRASIL E CONTEXTUALIZAM A PESQUISA NA ÁREA

Na Esquina, Spasso Circo Foto: Athos Souza

ARTES CÊNICAS


ARTES CÊNICAS

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São seis dias de atrações de circo na cidade

ZANNI E A TRADIÇÃO DO CIRCO DE VARIEDADES

paixão pela arte circense e que tinha uma banda

Fundado em 2004, a partir da junção do Circo

por questões econômicas. E tem mais: na banda do

Amarillo, La Mínima, Circodélico e Companhia

Zanni, a trapezista é sanfoneira, a baterista é a me-

Linhas Aéreas, o Circo Zanni é um coletivo de

nina que faz o tecido aéreo, o acrobata é o cara que

artistas concebido artisticamente por Domin-

toca o trombone. Os malabaristas tocam saxofone

gos Montagner. Atualmente, conta com nove

e trompete. São as mesmas pessoas que entram na

artistas e quatro núcleos: Amarillo, La Mínima,

pista e depois vão para o palco para continuar exe-

Artinerant’s – também presente no Festival – e

cutando a música do espetáculo. Esse é o grande

Piccolo Circo Teatro de Variedades, que seguem

barato do Zanni.”

ao vivo, o que já não era usual na América Latina

com as suas trajetórias, pesquisas e repertórios

Em uma análise dos últimos 20 anos do

independentes. O Circo Zanni apresenta um es-

fazer circense mundial, segundo Lujan, torna-se

petáculo de variedades, no qual a banda é o di-

evidente que as trupes estão optando por utilizar

ferencial que vai costurando os números aéreos,

instrumentos musicais. “A música agrega e está

de palhaço, de acrobacia, equilíbrio e magia, sem

presente de maneira forte em todos os artistas,

uma dramaturgia. Foi a atração de abertura do 3º

mas na época era muito inovador voltar a ter uma

Santa Maria Sesc Circo e é um espetáculo de circo

banda para acompanhar um número de circo de

com a leitura clássica.

alto risco. As sensações, as emoções, as cores do

localizada no centro geográfico do Rio Grande do

Diretor musical e, desde a morte de Montag-

Sul. Da manhã à noite, pelo terceiro ano consecu-

ner, em 2016, também diretor artístico do Zanni,

Para Lujan, apesar de existirem em torno de

tivo, na praça, em escolas, ruas, teatro e, principal-

o argentino Marcelo Lujan chegou ao Brasil com

3 mil circos viajando pelo Brasil, o modelo tradi-

mente, no Largo da Estação Férrea – Gare, grupos

seu Circo Amarillo há 17 anos, com uma pesquisa

cional está morrendo porque as famílias não têm

e artistas que são referência no Brasil na arte cir-

relacionada ao novo fazer circense, a partir das

condições de manter sua estrutura, o governo não

cense exibem espetáculos com o resultado de suas

artes plásticas – sua formação. “Comecei a enten-

ajuda, não há terrenos, está cada vez mais difícil.

pesquisas, relacionadas às diversas vertentes do

der os movimentos artísticos e a estudar o corpo

“Os espetáculos desses circos pequenos são cada

circo tradicional e contemporâneo. E no momento

na arte e a arte no corpo, enquanto o La Mínima

vez piores porque apelam para temas da Disney,

em que nem tudo é riso no universo artístico na-

vem do teatro convencional e do teatro de rua,

não têm cultura. E não se faz arte sem cultura, sem

cional, o Festival Santa Maria Sesc Circo se conso-

que para estar vivo precisa muito da arte circen-

uma identificação própria, uma pesquisa. Estão

lida no cenário brasileiro, fomentando a produção

se e do corpo do ator mais sólido, para suportar

mais preocupados em vender a pipoca do que me-

e contribuindo para a formação de público.

as dificuldades que vai enfrentar na rua”, revela

lhorar a música, a estética, o pensamento.”

número são outras”, explica.

Com espetáculos que enfatizam o virtuosis-

Lujan. Em 2004, com uma pesquisa consistente

Ao mesmo tempo, não há mais fronteiras e o

mo acrobático, a delicadeza de palhaços com e

na área da musicalidade do palhaço, Montagner e

circo vai descobrindo lugares. “No Circos – Festi-

sem nariz ou ainda a arte da pantomima, além de

Fernando Sampaio encontraram outras 15 pesso-

val Internacional Sesc de Circo, em São Paulo, por

outras modalidades circenses, na lona, na rua ou

as na Central do Circo, um centro de treinamento

exemplo, vemos que há uma gama tão variada de

no teatro, já passaram pelo festival o Circo Arte-

em São Paulo, com a mesma vontade de comprar

produções mundo afora, o circo está explodindo de

tude, dos irmãos Ankomarcio e Ruiberdan Saú-

uma lona e serem sócios em um circo.

inovação, novas conquistas”, afirma. Lujan come-

de, o Circo Amarillo, o Circo Zanni, os coletivos

A partir da aquisição de uma lona para 400

mora a descentralização promovida pelo Sesc, com

Necitra e Na Esquina e os Irmãos Sabatino, entre

espectadores foi criado o Circo Zanni. Sucesso em

o Santa Maria Sesc Circo, o Festival Sesc Pantanal

várias outras atrações, nacionais e internacionais.

São Paulo, apesar das críticas das famílias circen-

de Circo, em Poconé (MT), e o Festival Sesc MS de

Integrantes dessas trupes que participaram da 3ª

ses tradicionais, o grupo se consolidou e desenvol-

Circo, em Campo Grande. Também cita os festivais

edição do Festival, realizada de 21 a 26 de novem-

veu um período de seis anos ininterruptos de pes-

de Recife e de Belo Horizonte, além do edital lan-

bro, ou de edições anteriores, dão um panorama

quisa, apresentações, de circo lotado. Lujan conta

çado pela prefeitura de São Paulo para realização

da circulação e contextualizam a pesquisa de cir-

que aquilo começou a fazer muito barulho, muitos

de um grande festival em 2018. “Há ainda muitos

co no Brasil, a partir da experiência em festivais

iam para conhecer o que era o Circo Zanni. “Era um

movimentos de resgate dessa arte, especialmente

no país e no exterior.

grupo de artistas com o mesmo sonho, a mesma

em São Paulo. A discussão está muito aquecida


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

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12

em torno das diferenças, das brigas, das políticas. É muito legal porque é uma coisa que está viva.”

petáculo como sendo de circo. Depois de 15 anos.” Também presente no 3º Santa Maria Sesc Cir-

O artista recorda que, no princípio, os tradi-

co, o Circo Amarillo apresentou Experimento Circo,

cionais não aceitavam o Zanni como circo, alegan-

um de seus mais antigos espetáculos, uma mistu-

do que aquilo era teatro. “Foi um confronto muito

ra de circo tradicional e contemporâneo. O grupo,

forte, porque nós representamos uma linha do

um dos núcleos do Zanni, pesquisa a linguagem

fazer circense, levando um novo estilo para a lona

do palhaço excêntrico musical. Seus espetáculos,

que não era o do Cirque du Soleil, que representou

com diversos elencos, viajam pelo mundo. “Somos

uma reinvenção. A gente concebe todo o fazer cir-

palhaços, mas não pintamos o rosto como aqueles

cense como circo: não tem definição, enxergamos

palhaços americanos, cuja influência é muito forte

várias vertentes. O circo está fazendo 250 anos,

no Brasil. Acreditamos que podemos trabalhar com

muito pouco se compararmos com outras lingua-

outras emoções e causar o mesmo efeito: o rir”, diz

gens artísticas como a música, que há mais de

Lujan. Expressão teatral, música, dança e técnicas

quatro séculos se mantém do mesmo jeito. Hoje,

como acrobacia e bambolê estão no espetáculo

os contemporâneos da música clássica estão deba-

do grupo que tem como referências Buster Kea-

tendo novas técnicas, a evolução do pensamento

ton, Chaplin e outros palhaços que seguem a linha

do fazer clássico musical. O mesmo está aconte-

da comédia física ou slapstick.

cendo com o circo, que está no teatro, na rua, não tem mais limites, cada vez ocupa mais espaços. O circo entra na música, é bem recebido na literatura, na poesia, nas artes visuais. Quando constituímos o Zanni, confrontamos com o tradicional. Atualmente, depois de 15 anos, eles aceitam nosso es-

Circo Zanni

Foto: Paulo Barbuto

Circo Zanni

Foto: Paulo Barbuto


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

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TRANSVERSALIDADES E PROXIMIDADE COM O PÚBLICO

Ramonster – O Malabareador de Ideias no festi-

zar suas edições neste ano, projetos já aprovados

val de 2016, foi esse tipo de concepção e pesqui-

pelas instituições públicas deixaram de receber

Apesar de não se auto enquadrar exclusivamente

sa que rendeu ao Necitra notoriedade entre ar-

seus recursos ou então receberam com atraso –,

na categoria circo, o Necitra (Núcleo de Experi-

tistas e pesquisadores, justamente por ser capaz

para Ramon, o Sesc aparece como uma das pou-

mentações Cênicas e Transversalidades) partici-

de criar obras originais, inovadoras, alinhadas

cas instituições que ainda se mostram capazes de

pou do 3º Santa Maria Sesc Circo com Enquanto

com as demandas contemporâneas de criação

promover esse tipo de ação cultural e de distribuir

o Novo Espetáculo Não Vem, de Diego Esteves. A

artística, ao mesmo tempo em que mantém,

esses produtos para parcelas significativas da po-

obra ilustra a pesquisa desenvolvida pelo núcleo,

desde 2009, uma pesquisa intensa e permanente

pulação. “Mas apesar da boa vontade da institui-

na qual disciplinas tradicionalmente trabalhadas

no que diz respeito ao circo contemporâneo e à

ção, ela sozinha é insuficiente para atender toda

sob a lona de circo – manipulação de objetos,

transversalidade.

a demanda de cultura imposta pela sociedade e

ilusionismo, palhaçaria, acrobacias – são ressig-

“No Ramonster, falo sobre minhas experiên-

nificadas e misturam-se à dança, ao teatro e às

cias de vida, minhas escolhas ao longo do tempo,

artes visuais. Na 1ª edição do evento, em 2015, o

meus sucessos e fracassos, tudo de uma forma

Necitra apresentou Mistureba.

divertida, em que as artes circenses ilustram a

Coordenador do grupo a partir de 2017,

fala e preenchem com muita ludicidade, gerando

o malabarista, comediante e produtor cultural

nos espectadores uma identificação com o ar-

Ramon Ortiz afirma que a pesquisa do coletivo

tista, em contraposição ao distanciamento pro-

sempre se baseou no diálogo entre as diferentes

porcionado pela fantasia ou pelo virtuosismo do

linguagens que atuam na cena, tendo as artes

circo tradicional”, explica o artista.

circenses papel fundamental nos espetáculos

Num contexto de dificuldade para fazer cir-

coletivos ou individuais dos integrantes do nú-

cular as produções em decorrência da drástica

cleo. Segundo ele, que apresentou o espetáculo

diminuição de investimento público em cultura –

híbrido de malabarismo com stand-up comedy

muitos festivais tradicionais não puderam reali-

mesmo toda a oferta dos artistas e produtores culturais.”

Ramonster – O Malabareador de Ideias, Necitra Foto: Stephanny Lótus

Enquanto o espetáculo não vem Foto: Ronald Mendes


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

14

DO CIRCO NAS PERIFERIAS À DEFESA DE UMA POLÍTICA NACIONAL

som, luz, uma pequena tela de cinema, que já leva-

teresse pessoal ou afetivo. A simpatia ou antipatia

mos a todos os Estados brasileiros”, diz Ankomar-

do prefeito ou da pessoa responsável por aquele

Moradores de Metropolitana, cidade satélite de

cio. O grupo, que participou do 2º Santa Maria Sesc

município, Estado ou distrito, vai interferir direta-

Brasília (DF), os irmãos Ankomarcio e Ruiberdan

Circo com o espetáculo Brincadeiras de Circo, tem

mente em como ele vai receber o circo.” O artista

Saúde fundaram o Circo Teatro Artetude, há 16

ainda um pequeno circo que circula pela região do

defende que o circo tenha uma política pública

anos. O objetivo era levar arte a locais como sua

Distrito Federal e que é palco do Sesc Festiclown,

nacional, para que as mesmas regras que regem

cidade, semelhante às periferias da maioria dos Es-

um dos maiores festivais de palhaço do mundo, e

um Estado ou um município valham para o outro,

tados brasileiros, que não contam com teatro ou

do Festival Mestres de Circo, além de projetos pró-

permitindo o planejamento dos artistas.

outro espaço físico onde possam ocorrer espetá-

prios de música, circo e oficinas que leva para as

culos e oficinas. Por isso, segundo Ankomarcio, o

cidades-satélite.

Outro ponto imprescindível para o desenvolvimento da arte circense, para Ankomarcio, é que,

circo costuma ser a lembrança mais recorrente das

Ankomarcio considera a burocracia um dos

assim como a agricultura, a pecuária e o setor au-

manifestações culturais e artísticas. “Isso também

maiores entraves à circulação de circo em Brasília

tomobilístico, o circo também tenha incentivo fis-

aconteceu conosco, que só tivemos contato com

e no Brasil. “Muitas vezes temos que enfrentar o

cal. “Os artistas de circo precisam conseguir impor-

a arte quando o circo ou artistas de rua passaram

mesmo ritual aplicado a um show que vai rece-

tar produtos ou mesmo comprar itens nacionais

pela nossa cidade, e nós acreditamos que ela tem

ber 20 mil pessoas, só que vamos receber apenas

com algum tipo de desconto de imposto porque,

papel importantíssimo na tradução da realidade

mil no nosso evento ou circo”, explica. Além disso,

muitas vezes, o serviço que pretendemos prestar já

dos povos, das comunidades. A arte, na verdade, é

segundo ele, os espaços nas cidades vão sendo

é uma grande contrapartida para o Estado e para

o que acaba contando a história desses povos. Nós,

preenchidos por prédios. Os lugares que sobram

a população.”

latino-americanos, precisamos muito, de alguma

para que o circo seja montado são cada vez mais

O circo dos irmãos Saúde desenvolve uma

maneira, construir e produzir arte que se relacione

afastados e de difícil acesso. “Além da burocracia

pesquisa que tem como referências a capoeira,

com a nossa vida, com as nossas necessidades e

e da falta de espaços para manifestações artísti-

que dá origem às acrobacias, os mestres de cul-

com os nossos anseios”, afirma.

cas e culturais, também não temos no Brasil uma

tura de rua, que vão desde os mestres mamolen-

O Artetude faz um pouco disso ao estudar e

política para que o Estado ou o Distrito Federal se

gueiros, os artistas de rua, vendedores de banha

desenvolver espetáculos de rua pensando em tec-

relacionem com o governo federal. Muitas vezes, o

de baleia, os busca-vidas, como são conhecidos,

nologia que permita que esta manifestação artís-

que há é um ranço político e você fica a mercê de

até a cultura popular do bumba meu boi e do rei-

tica chegue a lugares mais afastados. “Temos um

interesses locais. Não existe uma política pública,

sado. “Também utilizamos a nossa memória em

espetáculo realizado num ônibus com estrutura de

um modelo ou uma fórmula. Existe ou não o in-

relação aos circos tradicionais, que assistimos


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

15

desde crianças, e o convívio com mestres como o

mos conhecendo muito o país, já havíamos circu-

Mestre Mandioca Frita, Mestre Cobra, Mestre Ze-

lado com Na Esquina em 2013, mas apenas pela

zito. Tudo isso ajuda a compor o nosso fazer, que

região Sudeste e Recife, e agora foi uma desco-

está em permanente construção. Estamos sempre

berta do povo, das comidas, do público que tam-

nos revendo e reinventando. E nosso caminho é

bém é diferente, foi incrível”, descreve. Segundo

tentar, através da nossa arte e da nossa brinca-

ele, a expectativa e o imaginário das pessoas em

deira, contribuir com as pessoas para que possam

relação ao circo variam conforme o lugar e é in-

ter um olhar diferente sobre o mundo, sobre a

teressante confrontar. “Fazemos um circo atual

vida e sobre a arte brasileira.”

e, tanto nas apresentações no teatro como na rua, sem lona, nossa montagem acaba sendo um

NA ESQUINA: DO REENCONTRO, UM ESPETÁCULO

pouco diferente da expectativa de muita gente.

Na programação do 3º Santa Maria Sesc Circo e

criação, então convidamos o público a assistir um

do Circuito Palco Giratório Sesc 2017, o espetá-

pouco do nosso ensaio, as brincadeiras entre nós,

culo Na Esquina, do coletivo homônimo, surgiu

coisas que normalmente não são acessíveis. Foi

de um encontro de colegas que haviam estudado

surpreendente para muitos, que esperavam um

na Spasso Escola Popular de Circo, em Belo Hori-

circo mais tradicional. Foi muito legal apresentar

zonte (MG), ao longo da década de 2000. Parte do

uma novidade, algo desconhecido para o públi-

grupo foi continuar a formação em cursos supe-

co”, analisa.

A nossa proposta é falar do próprio processo de

riores da Europa e parte estava vivendo no Brasil.

Recentemente, o coletivo fez diversas apre-

Era 2012 e a escola mineira estava completando

sentações no Nordeste e, conforme o artista, o

15 anos. “Decidimos fazer uma cena curta, de

público reagiu em momentos diferentes, em

meia hora, e como gostamos muito do resultado,

comparação com a primeira apresentação, em

resolvemos transformá-la em um espetáculo”,

Porto Alegre, nos mês de maio. “O espetáculo,

conta Pedro Guerra, um dos integrantes da trupe.

que tem uma margem de improvisação e para o

A equipe formada pelos artistas circenses

inesperado bem grande, também evoluiu muito.

Clarice Panadès, Pedro Sartori, Philippe Ribeiro,

A viagem longa, essa convivência cotidiana que

Roberta Mesquita, Pedro Guerra, Liz Braga, Diogo

não é nossa realidade, já que cada um mora em

Dolabella e Pauline Hachette (os dois últimos não

um canto do mundo, foi muito positiva para o

estão mais no elenco, no qual ingressou Rafael

espetáculo”, conta. Em contato durante sete me-

Rocha) partiu para duas residências na Europa

ses com espetáculos de todo o país, não apenas

seguidas de mais um mês de criação coletiva em

pelo Palco Giratório, o grupo se surpreendeu com

Belo Horizonte, onde o espetáculo Na Esquina es-

a qualidade e a diversidade da produção cultu-

treou em 2013. Sem um diretor, o coletivo contou

ral nacional. “Tivemos a oportunidade de assistir

com o olhar exterior de Mauricio Leonard e Ro-

coisas incríveis em todo o lugar e, especialmente

gério Sette Camara. “Temos uma particularidade:

no Nordeste, foi uma experiência muito tocante

cada um mora num canto, não temos uma sede

pelos intensos intercâmbios que fizemos.”

nem uma vida de grupo. Nos vemos sempre em

Em 2015, o Na Esquina circulou pela França,

função da turnê e nos encontramos um pouco

Itália e Suíça. A trajetória europeia do espetáculo

antes para ensaiar”, diz Pedro.

teve início na Biennale International des Arts du

Juntamente com o grupo formado por ar-

Cirque de Marseille, e incluiu a Académie Fratelli-

tistas que residem na França, na Alemanha e no

ni, em Paris, e o Festival des 7 Collines, em Saint

Brasil, Pedro Guerra está tendo a oportunidade,

Étienne. Passou ainda pelo Sul Filo del Cielo, fes-

pelo projeto Palco Giratório de 2017, de ficar um

tival de circo contemporâneo na cidade italiana

tempo mais longo por aqui, após 10 anos. “Esta-

de Grugliasco, e Circus Station, em Basel, Suíça.

Circo Teatro Artetude Foto: Divulgação

Em Busca da Triple Volta, Irmãos Sabatino Foto: Martin Sabatino


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

16

No 3º Santa Maria Sesc Circo, Pedro tam-

O ESPORTE COMO PONTO DE PARTIDA

“O trabalho do Lume com a fisicalidade e

bém apresentou Oteto, ao lado da companheira

Atletas da ginástica olímpica, Martin e André

as práticas que ajudam o ator/intérprete/criador

Liz Braga e do músico Juninho Ibituruna. O espe-

Sabatino, então acadêmicos de Esporte e Edu-

a acessar, através da exaustão, o seu potencial

táculo faz parte do projeto Abasedotetodesaba,

cação Física, um na USP e outro na Unicamp,

criativo da forma mais pura me interessou. Vi

com estreia prevista para o final de 2018 no Brasil

encontraram na prática do circo uma possibi-

muita proximidade com o que eu já fazia, só que

e em 2019 na Europa. Oteto teve origem em um

lidade de dar continuidade ao que haviam de-

a fisicalidade que eu desenvolvia era muito téc-

convite para apresentação de etapa de trabalho

senvolvido no esporte – a acrobacia. Para isso,

nica e mecânica e foi preciso romper. A partir daí

no Circos – Festival Internacional Sesc de Cir-

cada um no seu ambiente, buscaram formação

nasceu a minha pesquisa do circo: como acessar

co. Os artistas do coletivo têm em seu histórico

artística em diversos grupos de circo contem-

o fluxo criativo e inclui-lo nas acrobacias e em

trabalhos realizados na rua, mais acessíveis, em

porâneo. Entre eles, Acrobático Fratelli, Grupo

todas as vivências”, conta André. Os dois artistas

comunidades e pequenas cidades, e o Oteto surge

Ares, Circo Escola Picadeiro, Galpão do Circo,

colaboraram com outros grupos até que sentiram

para preservar esta tradição. O enredo do espetá-

por parte do Martin; e Paraladosanjos, Unicamp

a necessidade de fazer sua própria história, criar

culo, base para o projeto maior, é sobre a vida de

GGU e GG-FEF e Cia do Circo, nos quais André

sua própria linguagem a partir do que gostavam

idas e vindas entre Brasil e Europa – ponte que o

se aprimorou no trapézio com Alex Brede, mo-

de fazer. Hoje, já estão completando 10 anos de

casal Pedro e Liz construiu com o Na Esquina. Fala

dalidade em que acabou se tornando referência

trajetória no circo, iniciada com Irmãos Sabatino

de saudade, de fronteira, de raiz.

nacional, e o Lume Teatro.

e o Maior Artista da Terra.


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

17

Cabaret Volant, Irmãos Sabatino Foto: Paulo Bartuto

Vaiqueuvoo, Irmãos Sabatino Foto: Paulo Bartuto

“Não são todos os grupos que têm a vontade

André salienta que poucos teatros no país

maturgia, temos os ingredientes perfeitos para

ou necessidade – não falo de coragem – de fa-

estão preparados para receber circos de médio

convidar a plateia a estar e permanecer conosco

zer espetáculos com a estrutura que usamos por

e grande porte e, por isso, é sempre um desafio

até o final. Tem ainda a diversidade do públi-

causa das acrobacias aéreas nos trapézios, no pe-

viabilizar as apresentações nesses ambientes.

co, formada por morador de rua, pessoas com

tit volant, e isso se tornou um diferencial que nos

Apesar disso, a companhia tem todas as solu-

maior poder aquisitivo, vovó, cachorro. E tem

permitiu muitas experiências nacionais e inter-

ções para viabilizar o espetáculo, o que acaba

a disputa de atenção. As crianças são o princi-

nacionais”, afirma André. O segundo espetáculo,

gerando gastos extra. O grupo normalmente en-

pal termômetro: se começam a se mexer muito,

Vaiqueuvoo, presente no 2º Santa Maria Sesc Cir-

contra as condições para montagem da estrutu-

fazer barulho, não é por que são mal-educadas

co, já com Gianfranco Di Sanzo no elenco, com-

ra em ruas e praças. Aliás, o acrobata, que tam-

ou despreparadas, é o espetáculo que não está

binou uma dramaturgia em torno dos aviadores

bém é diretor dos espetáculos, diz que é muito

comunicando”, avalia. Já no teatro, segundo ele,

dos anos 1930 com o resgate de três modalidades

diferente se apresentar no ambiente da rua ou

é preciso entrar num caminho mais sutil e poé-

raras de circo: a báscula, o quadrante aéreo e

do teatro. “Na rua, o público quer uma atuação

tico, que precisa ser bem dosado.

a barra fixa da ginástica olímpica. Os Irmãos Sa-

mais visceral, com muita potência, como os

Em relação às regiões, o artista não vê di-

batino foram convidados para o Festival Cultural

gladiadores – tem que dar tudo de si porque o

ferença significativa nas reações do público.

de Gotemburgo (2016), na Suécia, e fizeram uma

povo quer ver sangue. O circo, por natureza, já

“Quando fomos para Europa, ficamos com medo

turnê por Bélgica e Holanda. No Brasil, foram 120

tem uma índole popular e de fácil comunicação

que os espectadores questionassem ‘quem são

apresentações.

e, com as acrobacias aéreas, virtuoses e dra-

estes malucos?’ porque estávamos chegando com piadas criadas a partir da cultura brasileira, mas o espetáculo funcionou muito bem, percebemos que é universal. No Sul do Brasil foi a mesma coisa. Tínhamos na cabeça que nossas piadas eram muito fáceis e que não seríamos bem recebidos, insegurança de diretor. Porém, vimos que é a mesma vibração a partir de um canal de recepção que é universal.” Defensor de que os artistas, programadores, produtores e toda classe artística, além de prefeituras, por meio de políticas públicas, deveriam organizar mais festivais em âmbito nacional, em prol da diversidade das produções, André reconhece que o Sesc, atualmente, é um dos grandes fomentadores do circo no país. São poucos os festivais que não são promoção da instituição e, com exceções, não conseguem dar um retorno financeiro para os grupos, que acabam participando mais com o intuito de divulgação do trabalho. “O Sesc tem uma demanda cada vez maior de circo e isso é muito positivo, porque permite aos artistas viverem disso, pesquisarem o ofício. Por outro lado, por questões orçamentárias, há uma tendência de restringir o tipo de espetáculo àqueles com estrutura menor. O risco de homogeneização das produções é uma questão a se pensar no longo prazo.”


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

POR RAQUEL GUERRA

18

Professora adjunta na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde desenvolve projetos de teatro, circo e audiovisual. É também produtora cultural, atriz, palhaça, diretora de teatro e audiovisual. Suas pesquisas mais recentes são o espetáculo Circo Bambo e o documentário O Circo Passou, desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Cinecirco, do CNPq.

TEM CIRCO NA BOCA DO MONTE Pesquisadores brasileiros como Mário Bolognese,

ferrovias da cidade. Os arquivos municipais permi-

ga. Penso que é fundamental aceitar e compre-

Ermínia Silva e Alice Viveiros de Castro indicam

tem ao menos situar que a cidade, vez ou outra,

ender a interação e coexistência destes distintos

que o circo tem diversas origens. E parece-me

recebeu circos que cruzaram rumo à Santa Cata-

campos e áreas da manifestação circense. E saber

bastante prudente reconhecer e aceitar isso como

rina, Argentina ou Uruguai. A encruzilhada geo-

respeitá-los e dialogar com eles. Acredito que a

característica e potencialidade da arte circense. A

gráfica serve de rota para circos itinerantes. Essa

herança do circo de lona, que costuma ser referen-

referência a Philip Astley e Antonio Franconi como

arte espetacular e corporal que é o circo, que gera

ciado como tradicional, permanece no imaginário

os pais do circo é recorrente entre os estudos da

encanto, graça e risco, tem seus lugares em Santa

e representa parcela significativa da história do

área. Os historiadores recordam, contudo, que as

Maria. E não é apenas na circulação dos circos de

circo no Brasil, como pesquisas na área pontuam.

práticas circenses existem desde a antiguidade:

lona. Há os artistas itinerantes de sinal, os artis-

É importante respeitar esta história. O circo está

malabarismos egípcios, arenas romanas, músicos,

tas locais que atuam com diferentes modalidades

em constante interação com outras formas espe-

cômicos e acrobatas de rua demonstram isso.

circenses e o Festival Santa Maria Sesc Circo, que

taculares e de transmissão de saberes, porque ele é

Igualmente, as montagens de tendas e o viver iti-

vem consolidando e fortalecendo a cena local nos

uma arte viva. Por isso, vê-se que a formação cir-

nerante são saberes antigos de uma herança ciga-

últimos anos.

cense ocorre em diferentes lugares e modos.

na. A história do circo é viva e fluida.

Neste começo de século 21, presencia-se uma

O circo é arte, é linguagem, é estética, é téc-

Em Santa Maria (RS), o circo tem um lugar

série de manifestações circenses que não provêm

nica. O circo é engenharia, é esporte, é jogo. O cir-

sentimental: a Boca do Monte tem suas histórias

diretamente do circo de lona, ainda que indireta-

co está na lona, na rua, nas salas de espetáculo.

com as ferrovias e rodovias de fronteira sul com

mente este permaneça como memória e ancestra-

Por isso, visualizo nas manifestações circenses um

a América Latina. Acervos do Museu Edmundo

lidade. Artistas vivem outras formas de ser itine-

hibridismo, uma pluralidade, e reconheço que isso

Cardoso revelam que, no começo do século 20,

rante, pois a arte circense é múltipla e plural.

também se manifesta com o circo nas universida-

houve intensa circulação de artistas e companhias

Particularmente, interessa-me a diversidade

des, pois ele está associado a distintas áreas, tais

teatrais do Brasil e América Latina por meio das

de formas de arte e profissões que o circo congre-

como teatro, dança, educação física, pedagogia, história e áreas da saúde. Em conversas com o representante do Circo no Conselho Municipal de Cultura de Santa Maria, Lainon Willian Ribeiro, e com artistas locais, identificou-se em torno de 32 profissionais e oito grupos que atuam com alguma modalidade circense, que incluem desde a realização de espetáculos, oficinas, disciplinas e projetos na universidade até intervenções em eventos, feiras e escolas. Ao pensar


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

19

sobre os artistas que promovem o circo em Santa Maria, localizou-se pessoas cujas formações não nasceram na lona. Grande parte dos artistas locais são egressos de faculdades de artes cênicas, dança, educação física e cursos técnicos de teatro, que tiveram alguma disciplina ou buscaram suas formações de maneira autônoma em oficinas e cursos. Os circenses também atuam como artistas de sinal que, com frequência, passam por Santa Maria. E existem ainda oficinas e aulas de circo, ministradas em escolas e projetos sociais. As principais modalidades circenses desenvolvidas na cidade são palhaços, malabares, pernas de pau, acrobacias de solo, tecido, trapézio, lira, bambolê e roda cyr. A maior parte dos grupos que atuam com alguma modalidade circense vem do teatro e da dança: Ateliê do Comediante, Cia Retalhos de Teatro, Cia Sorriso com Arte, Clowns Crew, Dacaratapa, Teatro no Buraco, Teatro Saca Rolha, Teatro Vagamundo e Umbigo de Bruxa. O mapeamento do Conselho de Cultura de Santa Maria

acompanhar a programação completa das últimas

Nestes primeiros anos de existência, o Festi-

é incompleto, pois está em fase de levantamento

edições, analiso que ele promove uma curadoria

val Santa Maria Sesc Circo revelou que o circo é

de dados e coleta de informações, mas segundo o

preocupada em mostrar a diversidade das expres-

múltiplo: malabarismos intimistas, circo social, pa-

representante do circo, ele objetiva o desenvolvi-

sões do circo e apresenta ao público uma vasta e

lhaços que cantam ópera, que fazem acrobacias,

mento de um catálogo sobre a cena circense na ci-

variada formação estética.

portagens a salto alto, trajes populares, figurinos

dade. Dentre os artistas que integram estes grupos,

Para a população geral, é uma oportunidade

glamorosos, técnicas tradicionais mescladas a uni-

nenhum deles nasceu em circo – embora alguns

de estar no circo, uma arte tão democrática e aces-

versos de dança contemporânea... A diversidade do

tenham realizado vivências pelo circo de lona, a

sível. Para os artistas locais, é uma oportunidade

circo é manifestada!

formação provém de outros espaços. A maior par-

de formar-se, de renovar-se e compartilhar o tra-

Acompanhar o festival é um modo de ver a

te é de egressos da Universidade Federal de Santa

balho com outros artistas. Nessa mútua formação

multiplicidade do circo e de compreender a riqueza

Maria (UFSM) que buscam sua qualificação em

que percebi entre artistas locais e artistas de fora,

que é misturar as heranças do circo de lona com o

cursos, oficinas e intercâmbios, o que nem sempre

identifico um aspecto essencial do festival como

circo da rua, do teatro e da dança. Por tudo isso,

é fácil, dada a localização da cidade.

plataforma de conhecimento, como espaço de for-

acredito que temos a oportunidade de um apren-

Há três anos, teve início no município

mação e renovação da cena local. O evento traz

dizado intenso. Um modo de formação que é mais

um movimento de formação circense que tem

coisas novas a Santa Maria e provoca os artistas

livre, menos formal que qualquer sala de aula, mas

oportunizado diferentes reflexões e práticas nas

locais a reinventarem-se em suas próprias produ-

provavelmente mais impactante em seus resulta-

atividades profissionais – e que cresce muito a

ções. Segundo análise do representante do circo,

dos. Santa Maria renova seus fazeres circenses e a

partir do Santa Maria Sesc Circo. Como professora,

Lainon Willian Ribeiro, “o espetáculo Varieté é um

Boca do Monte sorri com alegria para a lona que se

pesquisadora e artista, tenho acompanhado nos

resultado disso, pois mostra que os grupos envol-

instala na antiga Estação da Gare. É o Santa Maria

últimos anos esse evento, que em 2017 realizou

vidos buscaram uma nova estética para seus tra-

Sesc Circo fazendo sua história na cidade!

sua terceira edição. Percebo que o Festival de-

balhos, influenciados pela programação que o Sesc

sempenha um importante papel para a formação

Circo traz para a cidade”. Além disso, em conversa

circense. De um lado, a comunidade recebe gran-

com grupos locais, percebe-se que todos compre-

des nomes da cena nacional e internacional do

endem a importância do festival como um espaço

circo, que dividem espaço com artistas locais. Ao

de troca entre artistas.

Varieté, Ateliê do Comediante Foto: Guilherme Senna

Circo Espelunca, Teatro Vagamundo Foto: Ronald Mendes


CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

20

#19 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, reportagens, depoimentos e entrevistas com artistas que participam do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. As páginas a seguir apresentam o processo criativo dos espetáculos BR-TRANS e Quem Tem Medo de

Travesti, desenvolvidos pelo Coletivo As Travestidas, de Fortaleza (CE), sob a direção da gaúcha Jezebel De Carli. Também apresenta um resumo da longa trajetória artística da diretora, bem como a pesquisa do grupo cearense liderado pelo ator e diretor Silvero Pereira. Os espetáculos integraram a programação das edições de 2016 e 2017 do Festival do Sesc.


ARTES CÊNICAS CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

21

BRASIL TRANS: DA #15 BOATE PARA O TEATRO O DISCURSO CONTUNDENTE D'AS TRAVESTIDAS ENCONTRA A DIREÇÃO DE JEZEBEL DE CARLI

Fotos: Lina Sumizono, Leonardo Pequiar, Luciane Pires Ferreira e Adriana Marchiori


CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

POR JEZEBEL DE CARLI E FRANCISCO GICK

22

TRAVESSIA BR-TRANS: UM MANIFESTO CÊNICO As Travestis são centauros urbanos. Têm orgulho de ser quem são. Há algo de clone nelas, elas nascem de dentro de si mesmas. Não é simples, não é doce, há um lado criminal. Elas vivem o terror e a glória da madrugada.[1] Segundo a ONG International Trangender Europe, o Brasil é o país onde ocorre o maior número de assassinatos de travestis e transexuais no mundo. Só no primeiro semestre de 2017 foram registrados mais de 120 casos. Em 2016, foram 127, um a cada três dias. Estou sentada à mesa de um bar, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, bem ao sul do Brasil, esperando por alguém com quem tenho um encontro. Um homem. Um ator. Uma reunião de trabalho, ou pelo menos um primeiro contato em torno de algo que pode vir a ser uma relação de trabalho. Ele tinha dito, por telefone, algo como: “Jezebel, tudo bem por você se eu for montado?”. E eu disse que sim, tudo bem, “venha montado”. O ator tem sotaque, chama-se Silvero Pereira e é de Fortaleza, no Ceará, bem ao nordeste do Brasil. Um amigo me havia dito, na Bahia, nem tão nordeste do Brasil: “Você precisa conhecer Silvero Pereira. Ele está em Porto Alegre, desenvolvendo uma criação sobre o universo ‘Trans’. Ele está em busca de um diretor ou diretora da cidade para ser seu provocador cênico. Acho que pode ser você”. Como ele demora um pouco, eu olho em volta e para o relógio e fumo sem saber que, dentro de alguns meses, não se poderá mais fumar nesse

BR-TRANS

Foto: Jorge Etecheber


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

1 Fragmento do espetáculo Quem Tem Medo de Travesti, dirigido por Jezebel De Carli e Silvero Pereira, realização do coletivo artístico As Travestidas. Transcriação a partir do texto do escritor Arnaldo Jabor – “O travesti na terceira margem do rio”. 2 Anne Bogart. A Preparação do Diretor – sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 3 Fragmento da canção Três Travestis, do cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso. 4 Judith Butler. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 5 Idem.

23

2012, na cidade de Porto Alegre e, desde então,

acontece. Lá mesmo. Lá mesmo a sociedade eli-

já foi vista por mais de 40 mil espectadores, tan-

mina o que é abjeto, diferente, ameaçador, o gay,

to no Brasil como no exterior, e foi considerada

o veado, a travesti, a lésbica, a mulher macho, a

uma das dez melhores peças de 2015 pela crítica

mulher trans, o efeminado. Postagem: “a travesti

especializada. Também foi vencedora do Prêmio

Dandara dos Santos foi espancada e assassinada

Aplauso 2016 nas categorias ator, dramaturgia e

por um grupo de jovens num bairro da periferia

espetáculo, eleitos pelo voto popular.

de Fortaleza, Ceará, Brasil, no último dia 15 de fevereiro de 2017. Vizinhos assistiram à cena em plena luz do dia, mas não prestaram socorro. Um

Três travestis

dos agressores gravou o espancamento, os pedi-

Traçam perfis na praça.

dos de ajuda de Dandara e seus últimos minutos

Lápis e giz

de vida”. Uma vez na rua, toda travesti é conside-

Boca e nariz, fumaça.

[3]

rada marginal perigosa, sem nenhuma chance lugar onde estou sentada agora. Anne Bogart[2]

Uma desgraça segue os passos de outra e

de provar o contrário. Pode ser presa a qualquer

diz que, sempre que vai a um ensaio, sente-se

tão próxima ela vem. É noite, e talvez por isso elas

momento, agredida ou assassinada, que nenhum

como se estivesse a caminho de um encontro

costumam acontecer, pois no escuro será mais

transeunte moverá um dedo em sua defesa. Algu-

romântico. Não é exatamente assim nesse caso.

fácil esquecer. Avenida Farrapos, Porto Alegre.

ma ela deve ter feito para merecer. Segundo dados

Montar-se. Uma mulher linda vem em minha di-

Carros passam em alta velocidade nas pistas cen-

do Grupo Gay da Bahia, mais antiga instituição

reção, sorrindo, eu olho pra ela que vai crescendo

trais, mas nas pistas periféricas a coisa vai mais

brasileira a defender direitos da população LGBT,

até sentar na cadeira à minha frente: “Olá Jezebel,

lentamente. Vitrines, peep show sem vidro, não

2016 foi o ano recorde em assassinatos de gays,

eu sou a Gisele”. Gisele Almodóvar, álter ego de

é Amsterdã, nada de luz vermelha. São corpos

lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Foram

Silvero, o ator que eu deveria conhecer e que me

silhuetados por luzes de poste ou farol ou, até,

347 mortes em ruas, esquinas, praças e becos de

avisou ao telefone que viria montado. Gisele – ele

no escuro, ali onde o asfalto deixa de ser cinza e

um Brasil-Trans.

não sabe exatamente onde começa um e termina

simplesmente some. É preciso reduzir bastante

Nasci com o sexo feminino, me reconheço e

a outra. Silvero-Gisele desenvolve uma pesqui-

para ver, quase parar. Corpos em pleno desvio

me identifico com o gênero feminino – o que se

sa com transexuais e travestis em uma conexão

pelas ruas escuras da cidade, cheios de próteses.

chama de cisgênero, pessoas que se identificam

Porto Alegre-Fortaleza, fruto do edital público

Corpos abjetos, como diria Judith Butler[4], filóso-

com o gênero que lhes foi determinado quando

Interações Estéticas 2012 da Funarte/Ministério

fa estadunidense e teórica dos estudos de gênero,

do seu nascimento. Todavia, nunca fui a menina

da Cultura. Conversamos e me sinto provocada,

que não poderiam existir dentro dos limites da

de vestido rosa, nem a colega que brincava so-

movida, deslocada por ele/ela. Assumo então a

normalidade, do conjunto de regras e procedi-

mente de bonecas, nem a filha delicada, doce e

direção do trabalho e inicia-se meu trânsito en-

mentos assumidos nos conceitos de um discurso

meiga. Adorava a rua e as brincadeiras no pátio

tre as duas capitais. Três meses depois, estreamos

de normalidade. Ou seja, ainda para Butler, a

de casa, colocava meus pais a serem meus es-

BR-TRANS, manifesto, narrativa documental, te-

unidade do gênero é o efeito de uma prática re-

pectadores porque fazia de uma vassoura meu

atro depoimento, performance transformista. O

guladora que pretende uniformizar a identidade

microfone para shows, andava de bicicleta, era

espetáculo busca afirmar o teatro como possibi-

de gênero pela heterossexualidade compulsória.

polícia ou ladrão no jogo de Polícia/Ladrão, fui

lidade de invenção e transformação do humano,

Corpos que não deveriam existir. Alguns dão con-

inventora como o professor Pardal, corri muito,

como um espaço de encontro e de manifestação

ta de apagá-los. Como um rio, a corrente corre

joguei bola, quase coloquei fogo na casa, subi em

da diferença. Baseado em depoimentos e vivên-

mais rápida no meio, enquanto nas bordas vai

árvore. Também brinquei de boneca, de casinha,

cias de transexuais, transformistas e travestis,

lentamente corroendo a margem, atritando, de-

fiz balé. Fui performando-me entre brincadeiras

além da transcriação de textos literários e dramá-

vorando, remoendo quem está parada na calçada,

ditas de menino e jeitos de menina. A narrativida-

ticos, reportagens e canções, a cena desliza por

encostada em uma parede, esperando. Assassina-

de da minha vida me levou ao BR-TRANS e as mi-

entre corpos/personagens/figuras que transitam

das. Assassinadas. Tua irmã se afogou, Laerte. Lá

nhas escolhas de como contar e articular outras

entre o real e a ficção, compondo a paisagem de

onde a estrada faz uma pequena curva, onde elas

narrativas. O encenador e pesquisador Antônio

um Brasil-Trans. A montagem teve sua estreia em

esperam, entram e saem dos carros, onde o amor

Araújo, em artigo sobre a encenação performa-

[5]


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

24

6 Antônio Araújo. A Encenação Performativa. Sala Preta revista de Artes Cênicas, v.8, 2008, p.253-258. p 254. 7 Óscar Cornago. “Teatralidade e Ética”. In: SAADI, F., GARCIA, S. (org.). Próximo Ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú́ Cultural, 2008. p. 25. 8 Idem, p 25. 9 Idem, p. 26. 10 Idem, p. 26. 11 Idem, p. 26. 12 Frase da modelo e atriz Roberta Close. Primeira modelo transexual a posar para a edição brasileira da revista Playboy.

tiva, aponta que a utilização da biografia pessoal no teatro não se dá somente por meio dos atores. Na medida em que a função primeira do diretor deixa de ser a passagem de um texto à cena, as experiências pessoais do encenador se abrem como possibilidades de material cênico. “Suas memórias, histórias pregressas e busca de autodesenvolvimento são convocadas para a construção do espetáculo”.[6] A encenação de BR-TRANS é também a minha vida, a vida de Silvero Pereira e de tantas e tantos outros corpos abjetos que a sociedade insiste em tornar invisíveis. Algumas palavras/dispositivos me acompanharam no processo de BR-TRANS: incompletude, inacabado, desordem, performatividade, rusticidade, corpo, cômico, inscrição, tragicidade, ética, real, ficção, tensão, provocação, revolta e desconstrução. de BR-TRANS em busca de indefinições. Inten-

embate, performar o gênero, produzir questio-

cionalmente, os materiais provocam perguntas

namentos e curtos-circuitos mentais. “A obra

O ATOR COM FOGO NOS OLHOS E OS MOVIMENTOS DA ENCENAÇÃO

ao espectador. Quais histórias foram vivencia-

expressa uma atitude cênica que remete a uma

das por Silvero e constituem uma investigação

tomada de posição ética. Torna-se, então, visí-

Não parti do vazio. Em nosso primeiro encon-

autobiográfica? Seriam narrativas cartografadas

vel um determinado tipo de relação do criador

tro de trabalho, Silvero apresenta materiais de

durante a pesquisa dramatúrgica e assumidas

e seu trabalho, do ator e o público, do eu dian-

sua pesquisa. Silvero integra o coletivo As Tra-

pelo ator como suas? Estão presentes textos

te do tu”.[11] Resistência e resiliência são o seu

vestidas, da cidade de Fortaleza, através do qual

de outros autores? Interessava-me lidar com a

cotidiano. Porque o amor é tão longe e a dor

desenvolve uma pesquisa teórico-prática desde

dúvida e a incerteza — o que é de Silvero e o

é tão perto! Carne vai bem com carne! Que as

2002 acerca do universo de travestis e transfor-

que é de Gisele, Babi, Bruna, Tyna, Dani, Mile-

carnes de Silvero sejam as carnes de Dandaras,

mistas. Seus trabalhos visam problematizar e

na, Marcelly e de outras tantas vozes presentes

Castanhas, Marcellys, Babis, todas à procura de

visibilizar a temática Trans em todas as camadas

no espetáculo? Para Óscar Cornago, as artes

um arco-íris. Quando criança, me disseram que

possíveis. Então, ao iniciar a direção do espe-

contemporâneas, no decorrer dos séculos 20 e

se passasse por debaixo de um arco-íris, virava

táculo BR-TRANS, percebo (aqui se faz o ver-

21, aproximaram-se significativamente da per-

mulher. Passei a minha infância procurando um

bo presente, intencionalmente) possibilidades,

formance, a ponto de o “ato teatral se tornar

arco-íris.[12]

identifico o lugar de um contundente discurso

uma ocasião para o encontro com o outro, um

Silvero travestido de Gisele recebe o públi-

e, mais do que tudo, me apaixono pelo ator que

devir-grupo, um devir-social, de tornar social

co. Conversa diretamente, dá instruções, como

tem fogo nos olhos. E estabelecemos o pacto.

um acontecimento aqui e agora”.[8] Corpos ab-

as que indicam o uso de celulares, que aqui são

“Tudo é bem-vindo! É o tempo do sim!”. Silvero

jetos, execrados por uma sociedade inquisidora,

permitidos para fotos e filmagens – desde que

aceita todas as interferências, sugestões, cortes,

preconceituosa e julgadora. Digo novamente: o

se use #brtrans para as postagens, de forma

delírios e devaneios. Compra todas as propos-

Brasil é o primeiro país da América Latina em

a sabermos o que andam fazendo com nossas

tas, motes e tarefas. Juntos, tecemos a escritura

assassinatos de travestis e transexuais. “Na cena

imagens por aí. Talvez pareça um show, um pro-

cênica. Na encenação, as palavras mantêm uma

contemporânea questiona-se a relação do eu

grama de auditório, um número de dublagem ou

relação indissoluta com a ação, com a luz, com

com o coletivo, do privado com o público”. Se-

qualquer dessas formas, ou todas juntas. Quem

a música e com os demais elementos que com-

guem-se os assassinatos, as humilhações, a falta

fala? É o ator Silvero com figurino de mulher? É

põem a cena espetacular. A fragmentação pro-

de trabalho, o desamor, a solidão, o preconceito

a travesti Gisele? Embaralhamento. O que é isso

duziu conteúdos. Embaralhamento de histórias,

e a violência, “aparece um compromisso antes

mesmo que estou a assistir?, talvez se pergun-

documentos e memórias. Conduzo a encenação

ético que político”.

te algum espectador, um pouco sem entender

[7]

[9]

[10]

Desejamos potencializar o


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

13 Josette Féral. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 12. 14 Márcia Arán apud Simone Ávila. FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: A emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, 2014. 2015, p. 30. 15 Beatriz Preciado. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2014. 16 Simone Ávila. Obra citada. 17 Balzer apud Simone Ávila. Obra citada. 18 Judith Butler. “Your Behavior Creates Your Gender”, entrevista concedida a Max Miller, dirigida por Jonathan Fowler, produzida por Elizabeth Rodd [versão eletrônica]. Acesso em: 22 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://bigthink.com/videos/yourbehavior-creates-your-gende>.

o que virá a acontecer. O jogo se estabelece e

Perder, desfazer, desconstruir a “montaria da

norteará a encenação. Ao cabo de uma hora, o

travesti”. Que ridícula é a minha dor. Olhando

que estará em relevo será a execução das ações

para aquela travesti cansada bebendo no bar,

do performer que canta, dança, conta, por vezes

que ridícula é a minha dor. Aliás, aquela traves-

joga personagens e, de imediato, os abandona.

ti sou eu. Maltratada, humilhada, abandonada,

O “corpo do ator, seu jogo e suas competências

cheia de dúvidas, cheia de doenças, morrendo de

técnicas são colocados na frente. O espectador

medo. Alguém aqui já sentiu isso alguma vez na

entra e sai da narrativa...”,[13] transita por ima-

vida? Que bom! Porque isso prova que somos to-

gens, gestos, ações que a voz e os movimentos

dos iguais! Movimentos na cena que desestabi-

expandem. Silvero performa e captura o público.

lizem o binômio homem-mulher, performances

Como um griô, conta histórias de suas experi-

de gênero que não reforçam identidades pre-

ências com o universo Trans, o teatro e o sur-

viamente estabelecidas, mas que se processam

gimento de Gisele Almodóvar. “A experiência

sem modelos, sem referências, performances

dita transexual traz consigo uma potencialidade

produtoras de diferença. Montar-se. Montar-se

crítica de subversão das nossas próprias crenças

pode ser construir um sentido ou uma possibi-

sobre sexo, gênero e identidade”[14] e corpos fa-

lidade de si com o agenciamento de fragmentos

lantes como travesti, bicha, drag queen, lésbica,

de si ou de outros. Montar-se é, assim, cons-

sapa, transgêneras, são imposturas orgânicas,

truir identidades. Montar-se é ação, é um gesto

mutações prostéticas, recitações subversivas

que cria subjetividade, um gesto de desterrito-

capazes de inverter e derivar práticas de pro-

rialização. Corpo-Montagem. Trans: além de,

dução da identidade sexual.

São corpos que

para além de, em troca de, para trás, travessia,

representam uma identidade de gênero que não

deslocamento, mudança de uma condição para

se encaixa em nenhum dos modelos propostos

outra, através. Assim, não se trata de tomar a

segundo as práticas discursivas do século 19[16]

noção de montagem como simplesmente uma

e optam por apresentarem-se por meio de figu-

trajetória entre dois territórios estabelecidos e

rinos, acessórios, maquiagens ou modificações

estáveis, do masculino ao feminino, por exem-

corporais diferentes das expectativas com rela-

plo, mas sim como uma ação, um movimento

ção ao seu papel de gênero que lhes é atribuído

que desestabiliza um território para criar outro

ao nascer (biologicamente).

[15]

Silvero/Gisele faz

novo, que não corresponde necessariamente a

sua primeira inscrição – registro de nomes de

qualquer modelo preexistente. Importa superar

travestis em seu corpo, ato que se repete como

os conjuntos binários como masculino-femini-

uma ação leitmotiv durante o espetáculo. Gisele,

no, heterossexual-homossexual, no pensamento

na parte interna do braço esquerdo. Cartografa

sobre o corpo. Mulher e homem são também

um caminho de identidades. Nomes reais, dores e

discursos, normas criadas e impostas ao cor-

superações reais, histórias reais confrontadas na

po da sociedade ao longo de muitos anos. São

ficção. Gisele dá espaço ao ator Silvero. Cena da

papéis construídos socialmente e jogados de

desmontagem. Inversão da travestilidade. Aqui

maneira irrefletida por bilhões de pessoas todos

o interesse se volta para a ação de desconstruir

os dias, performances com regras determinadas

a persona Gisele. A cena evidencia a corporeida-

repetidas e reencenadas a todo tempo. Para Bu-

de do performer. Um corpo que flui. Um corpo

tler[18] dizer que gênero é performativo implica

entre. Nem masculino, nem feminino. Um corpo

em afirmar que os indivíduos não pertencem

híbrido, fluido, em trânsito. No processo, solicito

a um único gênero desde sempre. Silvero não

a Silvero que crie uma sequência de ações cujo

pertence somente a Gisele e ela a ele. A cena

efeito seria a desmontagem de Gisele. Subtrair

evidência o performativo, o espaço entre ele/ela,

do corpo os adereços, figurinos e maquiagem.

a cena se constrói e se desvanece, o trágico e o

[17]

25

BR-TRANS

Foto: Lina Sumizono

BR-TRANS

Foto: Jorge Etecheber


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

26

19 Jorge Dubatti. “Teatro como acontecimento convivial”, uma entrevista com Jorge Dubatti. Revista Urdimento, v.2, n. 20 Idem, p. 259. 21 Final do espetáculo BR-TRANS.

cômico se atravessam, eles/elas se atravessam e

cantadas. Entretanto, a cena adquire status trá-

travesti que mora em Pelotas, no interior do Rio

se afirmam no espaço do entre.

gico quando se operam mudanças radicais de

Grande do Sul, seu sonho era ser atriz. Silvero/

Há também na encenação o dispositivo da

estados físicos e emocionais no corpo do perfor-

Gisele/Babi/Geni vem apenas em carne, nomes e

intertextualidade. Travestis assassinadas, a Ofé-

mer. É bem mais difícil dançar quando o demônio

botas. Botas grandes, coturnos gregos, sapatos

lia, de Shakespeare, e seu suicídio, a solidão e o

está em suas costas, então livre-se dele... Escada,

de salto alto, passos que se afirmam na resis-

campo de batalha da Ofélia, de Heiner Muller.

acesso, caminho, corredor, preparação para um

tência de um Brasil-Trans que explora, abusa,

A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem

acontecimento... O fim é o começo de algo. E o

submete e silencia – uma voz sem voz. Contudo,

ela deixou de se matar. Vidas breves e efêmeras,

que começa é cena “Mãe”; mãe de Silvero, Dona

elas gritam e se fazem voz. Joga pedra na Geni.

sejam elas ficção ou a crueza do real. Descrição

Rita, Dona Zóla, minha mãe, mães de todas elas,

Joga pedra na Babi, ela é feita pra apanhar, ela

da morte prematura da jovem e bela Ofélia. Ima-

mãe de Gisberta, Dandara, Bruna, Geni. Mães

é boa de cuspir. Ela dá pra qualquer um, maldita

gens reais de assassinatos de travestis extraídas

que acolhem e aceitam. Mães que expulsam e

Babi!

das páginas policiais. Assassinadas, violadas, es-

renegam. Silvero lê uma carta. Mombaça, 11 de

Não sei o que conseguimos provocar nessa

pancadas, desfiguradas. Uma desgraça segue os

agosto de mil novecentos e noventa e seis. Meu

travessia de BR-TRANS. Seguem-se os assas-

passos de outra. Tão próximas elas vêm. Tua irmã

querido, meu abraço. Silvero, em mim há muitas

sinatos, as humilhações, a falta de trabalho, o

se afogou, Laerte. Eu sou Ofélia, aquela que o rio

saudades. “Apenas leia, sem interpretação, sem

desamor, a solidão, o preconceito e a violência.

não conservou. Um país que registra recorde em

se preocupar com o público, como lendo para si,

Mas prosseguimos... Hoje, Babi mora em Pelotas,

assassinatos de travestis. Imagens reais em um

sem efeitos, sem técnicas, apenas se deixe levar”,

no interior do Rio Grande do Sul. Se um dia você

espaço convivial. “...o teatro é a produção e ex-

disse eu quando, no processo, criamos a cena.

quiser ligar para a casa dela e falar com ela, cha-

pectação de acontecimentos poéticos corporais

Deixe-se levar pelo instante e pelos estados que

me pelo Carlos. A família detesta que a chamem

em convívio”.[19] Com as mãos sangrando rasgo

a leitura lhe provocar. ...Silvero Deus te abençoe

de Babi.[21] Silvero apaga todas as luzes da cena.

as fotografias dos homens que amei e se servi-

meu filho. Saiba que gosto muito de você e lhe

Silêncio. Texto em projeção.

ram de mim na cadeira, na mesa, no chão. Não

quero muito, sinto muitas saudades. Não esque-

demorou muito até que suas roupas começaram

ça disso que acabo de lhe dizer. A carta não é

a ficar pesadas e arrastaram-na daquele canto

memorizada pelo ator. Ação é de ler. É movediça!

melodioso para a morte. Afogadas. Imagens de

Escorrega! É confessional. Produz um momento

meninas mortas por tiros incógnitos. Meninas

de intimidade. O espectador como companheiro

mortas, abraçadas em rios de concreto e asfalto.

para “compartilhar o pão. O convívio é justa-

Mortas por um tiro, por vários tiros, por paula-

mente a mesa, uma reunião para beber e comer”.

das, jogadas em covas, calçadas, matos e sarje-

[20]

tas. Banimento.

não estiver, mesmo pobre como eu sou lhe rece-

Meu filho, você está bem? Espero que sim. Se

A cena corre. Dublagem – performance ine-

bo de todo meu coração. Não tenho muito para

rente às artes transformistas. Como transcriar

lhe dar, mas tenho o meu amor. Não tenho nada

os números de dublagens comumente apresen-

para lhe mandar, mas mando o meu abraço de

tados em shows de transformismo? Assim como

gratidão. Compartilhamos Silvero, público,

na desmontagem, explicitamos o que está por

mães. É simples, singelo, quase ingênuo. Talvez o

trás. Os truques e efeitos de dublar uma músi-

público volte a se perguntar: É uma carta real?;

ca em outro idioma são demostrados. A canção

É a mãe de Silvero mesmo? Novamente a dúvida

Shake It Out, de Florence and The Machine, nos

se é real ou ficção. Acho que não importa muito.

possibilitou transitar entre o cômico e o trági-

O público embarca e se afeta. Mas sim, é Dona

co, movimento que marca a encenação. É risível

Rita, mãe de Silvero, das poucas narrativas que

quando o performer-dublador explica ao público

são verdadeiramente suas. De sua mãe pra você

estratégias para facilitar a dublagem, ainda que

um grande abraço. Rita.

não domine o idioma que está dublando. É tam-

BR-TRANS começa com Gisele Almodóvar e

bém risível quando revela truques que permitem

encerra trazendo Geni, personagem de A Ópera

“sincar” o movimento da boca com as palavras

do Malandro, de Chico Buarque. Vem junto Babi,

JEZEBEL DE CARLI Diretora, professora e atriz de Teatro. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DAD/UFRGS). Bacharel em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Dramáticas (UFRGS). Professora auxiliar do Curso Graduação em Teatro: Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Diretora da Santa Estação Cia de Teatro e do Coletivo Errática. Diretora colaboradora do coletivo artístico As Travestidas. FRANCISCO GICK Aluno do Curso Graduação em Teatro: Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Professor da Casa de Teatro de Porto Alegre. Dramaturgo e ator do Coletivo Errática.


CADERNO ARTES CÊNICAS DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

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FOCO NO DISCURSO E DIREÇÃO DE UM NOVO GRUPO Ramal 340 – sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora Foto: Adriana Marchiori


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

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Parada 400: convém tirar os sapatos Foto: Gabriel Schmidt

A Tempestade e os Mistérios da Ilha Foto: Luciana Mena Barreto

Diretora, professora e atriz, Jezebel De Carli ini-

no Tepa (Teatro Escola Porto de Porto Alegre) e,

Assim foi criada a Santa Estação Cia de Te-

ciou seu contato com as artes a partir da dança,

por que ao final dos cursos havia a montagem de

atro, que por 10 anos teve Jezebel na direção de

na cidade de Caxias do Sul (RS). Essa referência

espetáculos de conclusão, me percebi organizan-

seus espetáculos, alguns de grande relevância,

atravessa o teatro que vem desenvolvendo, no

do os materiais criados pelos alunos e exercendo

como o Parada 400, que trabalhava a partir da

qual o corpo está no centro do acontecimento,

a atividade de diretora e encenadora, função que,

fisicalidade e corporeidade do ator; A Tempestade

o movimento e a ação física são matrizes para

a meu ver, se atravessa à docência”.

e os Mistérios da Ilha, adaptação de Shakespeare

a criação. Como atriz, fez sua formação no De-

Da Oficina de Análise e Improvisação do Mo-

que venceu o Prêmio Brasken de melhor espetá-

partamento de Artes Dramáticas da Universidade

vimento no Tepa, e após meses de investigação

culo pelo júri popular no Porto Alegre Em Cena

Federal do Rio Grande do Sul (DAD-UFRGS), par-

sobre o corpo do ator e suas possibilidades para

2007; e Hotel Fuck: num dia quente a maionese

ticipou de coletivos de teatro como o Tear, sob a

a cena, resulta o primeiro espetáculo dirigido por

pode te matar, com 10 indicações no Prêmio

direção da professora e encenadora Maria Helena

Jezebel, Parada 400: convém tirar os sapatos. Este

Açorianos 2011 e vencedor do Brasken de melhor

Lopes, e integrou o Núcleo de Pesquisa e Treina-

foi, na verdade, um trabalho de formação de ato-

ator. “Só tenho a agradecer aos atores da Santa

mento do Ator, sob orientação dos professores

res, que percorreu um circuito “off” e, após dois

Estação por compartilharem comigo, durante 10

Irion Nolasco e Maria Lucia Raymundo. Segundo

anos, cumpriu temporada profissional e foi indi-

anos, seus desejos, crenças e sonhos. Me fiz dire-

Jezebel, são as experiências intensas que consti-

cado ao Prêmio Açorianos 2005 de melhor espe-

tora porque eles confiaram em mim e se permiti-

tuem o seu modo de operar o teatro. “A direção

táculo e direção, recebendo o prêmio de melhor

ram inventar possibilidades de criação.”

surgiu sem a intenção de me tornar diretora, as-

direção. “Foi uma das grandes e felizes surpresas

sim meio ao acaso. Em 2003 comecei a dar aulas

da vida”, diz a diretora.

Além da Santa Estação, Jezebel atuou em parceria com outros coletivos, como a Cia. Stra-


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

29

vaganza, em trabalhos de preparação corporal e

que transformaram meu olhar não apenas para

histórias reais que ele viveu? A cena da Carta da

na direção cênica de alguns espetáculos da Muo-

as travestis e transexuais, mas para o outro.

Mãe é da sua mãe mesmo? O que é do ator e o que

vere Companhia de Dança. No Tepa e no curso

As dramaturgias do BR-TRANS e do QTMT

é ficção?” Em ambos os espetáculos, misturam-

de Graduação em Teatro da Universidade Esta-

foram criadas a partir de histórias de vida de tra-

-se depoimentos pessoais do elenco com relatos

dual do Rio Grande do Sul (UERGS), cujo corpo

vestis e transexuais, depoimentos pessoais dos

de ficção, quase como uma montagem. “Além de

docente integra há mais de uma década, dirigiu

atores e fragmentos de textos dramatúrgicos e li-

histórias reais, compusemos a dramaturgia do

inúmeros espetáculos com jovens atores. A partir

terários. “Todas as histórias no BR são verdadeiras

QTMT com fragmentos de textos de outros autores

de 2012, dirigiu dois espetáculos do Coletivo As

e aconteceram, mas poucas são da vida do Silvero.

teatrais como, por exemplo, a cena final em que

Travestidas, o multipremiado BR-TRANS, com Sil-

Queríamos que o espectador se perguntasse: “São

utilizamos o monólogo da Joana de Gota D’Água

vero Pereira, e Quem Tem Medo de Travesti. O processo de criação dos espetáculos com o coletivo de Fortaleza (CE), segundo Jezebel, mudou o seu pensamento em relação à concepção de seus espetáculos, que sempre tiveram um discurso provocador em relação a assuntos que a desconfortam na vida – o que ficou muito mais acentuado e evidente a partir do trabalho com As Travestidas. “Cada vez tenho mais vontade de tocar em temas que afetem tanto o espectador quanto os criadores da obra, não somente pela espetacularidade ou pela forma dos espetáculos, mas também por um discurso capaz de provocar instantes de transformação nas relações humanas.” Jezebel admite que até mesmo a relação com o universo da travestilidade mudou. “A arte transformista não era a linguagem investigada em meus espetáculos. Também a vida das travestis não era a temática centro das criações da Santa Estação, muito embora sempre tenhamos procurado problematizar questões de gênero. Percebia o preconceito com as travestis e transexuais, mas ainda era um tema distante da minha realidade. Para a grande maioria das pessoas, o mundo das travestis se resume à prostituição, à violência e à invisibilidade. Quando eu estava em Fortaleza para montar o QTMT, fui entrevistada por uma diretora de cinema que realizava um documentário sobre o coletivo As Travestidas e que me fez a seguinte pergunta: você tem medo de travesti? Após segundos, respondi um pouco constrangida: “É muito provável que, em algum momento, o medo tenha me atravessado, sim. Mas a partir da relação com Silvero e com as meninas do coletivo, me aproximei do universo da travestilidade e, juntos, compartilhamos vivências e experiências


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

30

(peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, de 1975).

“Para além de um discurso que fomenta o

Mais uma vez, a diretora se identifica com

A voz da Joana torna-se a voz de Verônica, Alicia,

debate sobre identidade de gênero, os espetáculos

um coletivo de jovens atores e o espetáculo Ramal

Patricia, Mulher Barbada, Deydianne, Karolaynne

falam do humano, de pessoas, de ser e sentir-se

340, faz, inclusive, uma trajetória parecida com a

e Yasmim. “Eles pensam que a maré vai mas nun-

diferente, deslocado, à margem. De quem ‘está

do Parada 400, primeiro com a Santa Estação. Em

ca volta. Até agora eles estavam comandando o

fora da roda’ (texto do espetáculo Dama da Noi-

2017, o grupo estreou o espetáculo infantil Plugue:

meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando, reco-

te, de Silvero Pereira). Quem nunca sentiu-se ‘fora

um desvio imaginativo. “Minha energia está no Er-

lhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta e tão for-

da roda’ por algum motivo? BR traz também essa

rática. Encontrei novos parceiros. Jovens que me

te quanto eles me imaginam fraca. Quando eles

questão. Acho que o público se identifica com esse

revigoram e acreditam em tornar possível o impos-

virem invertida a correnteza, quero saber se eles

lugar e se deixa afetar, se emociona, torna-se cúm-

sível. Acreditam em continuidade e pertencimento.

resistem à surpresa, quero ver como eles reagem

plice. Mas BR é também prazer, humor, superação,

Estamos trabalhando duro para manter o coletivo

à ressaca!”

compartilhamento.”

em movimento. Não é fácil. Não está sendo fácil.

Desde o BR-TRANS, Jezebel procurou acen-

Professora da UERGS, em paralelo com ou-

Estamos em um momento muito delicado para as

tuar a presença em cena de um corpo fluído, um

tros trabalhos, Jezebel começou a desenvolver

artes. Precisamos resistir, e resistir passa por es-

corpo que expande os limites do masculino e do

uma pesquisa com um grupo de alunos em 2012,

tarmos juntos. E para estarmos juntos precisamos

feminino. “Silvero em cena transita por diferentes

que deu origem ao Coletivo Errática. Foram diver-

de amor, confiança, ética, tolerância, bom humor,

estados corporais e físicos, ora acentuando ener-

sas ações de ocupação de espaços públicos como

desejo de estar, aceitação das diferenças, escuta ao

gias mais femininas, ora masculinas. A diretora

ruas, galpões e barcos abandonados no município

outro, enfim. É um mundo! O coletivo é meu lugar,

havia assistido uma mostra de repertório d’As

de Montenegro, até que o grupo ganhou um edi-

foi como atriz e está sendo como diretora. Sou feliz

Travestidas e, ao ver o elenco preparando-se para

tal de incentivo à cultura. Em 2015 estreou Ramal

pelas minhas escolhas.”

uma apresentação, sentiu o desejo de dirigi-las,

340 – sobre a migração das sardinhas ou porque

dando continuidade ao trabalho iniciado com o

as pessoas simplesmente vão embora, criado nas

BR. “Queria aquela visualidade que estava pre-

ruínas de uma antiga estação ferroviária e, poste-

senciando. O ‘antes da montaria’. Os enchimentos,

riormente, adaptado para o palco. O espetáculo fez

a maquiagem ainda por terminar, as cabeças com

uma temporada em Porto Alegre e foi indicado a

toucas, as meias de nylon, partes do corpo à mos-

diversos prêmios, vencendo o Açorianos de melhor

tra, quase uma segunda pele.” E foi o que fez em

espetáculo e o Prêmio Brasken de melhor direção

Quem Tem Medo de Travesti.

no Porto Alegre Em Cena, em 2017.

Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar Foto: Luciane Pires Ferreira

Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar Foto: Luciane Pires Ferreira


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

31

UM LUGAR DE ENCONTRO E AFETO POR JEZEBEL DE CARLI

específicas, têm igual espaço de proposição e produzem uma obra de autoria compartilhada. O

AS TRAVESTIDAS

POR SILVERO PEREIRA, ator, diretor e dramaturgo

corpo é o território da pesquisa e investigação. O performer assume com o encenador a criação,

O Coletivo As Travestidas surgiu de uma pesqui-

Tem uma frase da encenadora Ariane Mnouchki-

o pensamento e os movimentos do processo. Os

sa que iniciei em 2000, quando montei o solo

ne que eu acho demais. Ao ser perguntada por

motes são os dispositivos geradores do material.

Uma Flor de Dama, inspirado no conto Dama da

que fazer teatro com um elenco estável, ela diz:

Compomos juntos.

Noite, de Caio Fernando Abreu e que participou

“Para sair em aventura, para atravessar oce-

Desde a época de aluna do Departamento

do Circuito Palco Giratório Nacional. Passei dois

anos desconhecidos. Para enfrentar tempestades

de Artes Dramáticas (DAD-UFRGS) tenho uma

anos pesquisando sobre o universo de travestis,

austrais, e descobrir ilhas salvadoras. Para estar

frase que me acompanha, e que hoje transmito

transexuais e transformistas e desse laborató-

em um barco que solta amarras com cada espe-

aos meus alunos, e que me diz muito sobre a

rio criei meu primeiro substrato de dramatur-

táculo. Para ter amigos e amores num mesmo

formação do artista. Diz Zeami (mestre do teatro

gia, encenação e atuação, partindo da relação

lugar, e ao mesmo tempo, ser nômade. Para viver

japonês): “quando o ator tem a flor da juventude

entre literatura, teatro, histórias pessoais e fatos

e lutar por e com uma família que te protege e

deve trabalhar para desenvolver a flor do ofício,

reais. O espetáculo seguiu em temporadas até

que também te liberta. Um universo encantado

porque quando a flor da sua juventude tiver de-

2008, quando decidi criar o projeto Cabaré das

em um mundo que cada vez mais te desencanta.”

saparecido, já será demasiado tarde para desen-

Travestidas, para o qual convidava atores que

volver a flor do seu ofício”.

quisessem fazer shows de transformistas no te-

Acho que desde o começo busco esse sentido de pertencimento. De estar em família. De

atro. Desse projeto, me juntei a mais dez artistas

viver uma aventura e de navegar por lugares

e criamos o Coletivo As Travestidas, um grupo

desconhecidos. Busco no teatro um lugar de

de atores, bailarinos, designer e profissionais de

encontro e afeto. De invenção, desassossego e

outras aéreas. Em 2010, realizamos a montagem dos espe-

provocação. Trabalhar em coletivo é perseguir um

táculos Engenharia Erótica-Fábrica de Travesti e

desejo de estabilidade, continuidade, tolerância e reconhecimento das diferenças. Os processos de criação dos espetáculos se caracterizaram por um espaço de colaboração em que todos os integrantes, a partir de funções

Ramal 340 – sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora

Yes, Nós Temos Bananas!. Na sequência, elabo-

Foto: May Lima

rei o projeto BR-TRANS, que visava passar seis

Ramal 340 – sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora

meses no Rio Grande do Sul, pesquisando sobre

Foto: May Lima

novas histórias e buscando formular, para o Co-


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

32

Teve muito preconceito e, no próprio meio, diziam que o Silvero só fazia esse tipo de trabalho, que estava fabricando várias drags e travestis. Como resposta às críticas, o trabalho seguinte se chamou Engenharia Erótica-Fábrica de Travesti. Hoje em dia, a drag se tornou pop com movimentos a partir do reality da RuPaul – RuPaul’s Drag Race – e com Pabllo Vittar conquistando espaço na música. Em 2008, o tema ainda era muito marginalizado, principalmente no âmbito artístico. Sempre foi visto como uma coisa menor, tanto que os únicos espaços para atores e atrizes transformistas e trans eram as boates. Com Cabaré das Travestidas, conseguimos trazer a boate para o teatro. Quem Tem Medo de Travesti proporcionou uma experiência diferente, juntamente com a Jezebel, que trouxe uma nova visão. Procuramos fugir do óbvio, tanto que todo mundo está de bege. Penso que nós temos propriedade para falar sobre o tema porque é sobre a gente, então falamos sobre esse medo, quem são essas pessoas que sentem este medo, que medo é letivo, uma metodologia mais consciente sobre criação de texto, estética de encenação e criação de personagem (atuação). Assim, no quarto mês de pesquisa, decidi buscar uma orientação

DA BOATE PARA O TEATRO POR ALICIA PIETÁ, atriz

esse? E procuramos desmistificar a imagem tão marginalizada que é a travesti. Texto e cena foram construídos durante os ensaios a partir de vivências nossas, com citações de grandes no-

para o projeto e fui apresentado, pelo artista

A entrada no grupo, em 2008, teve uma importân-

mes como Shakespeare e Clarice Lispector, que

visual Sandro Ka, à diretora Jezebel De Carli.

cia fundamental na minha vida porque foi ali que

trouxemos para essa realidade. Tudo se encaixa

“Jeze”, como a chamo carinhosamente, acres-

eu me reconheci como trans. Para além da arte,

perfeitamente: entra música, entra interpretação,

centou muito a minha pesquisa, esclarecendo

tive esta descoberta pessoal. Eu, Verônica Valenti-

entra vivência pessoal e acaba emocionando todo

e me guiando na construção desse método no

no e Patrícia Dawson somos trans no grupo. Silve-

mundo, não precisa ser trans ou travesti para se

Coletivo, até então muito intuitivo/empírico. Em

ro Pereira nos convidou para participar do Cabaré

identificar. São temas universais.

seguida, Jeze virou diretora do espetáculo e a

das Travestidas. Até então fazíamos performances,

Foi um trabalho que se seguiu ao BR-TRANS e

convidei para, no espetáculo seguinte, ser co-

eu era drag e, com o tempo, fui percebendo que

que deu continuidade a essa nova visão de estética,

-criadora em dramaturgia e encenação. Deste

não era apenas aquilo. Com o Coletivo As Travesti-

construída juntamente com a nossa vivência, já que

modo, em 2015, ela e o figurinista Antonio Ra-

das, eu vi que poderia muito bem viver e trabalhar

não faria sentido somente a vivência ou somente

badan passaram a integrar o projeto Quem Tem

como trans, tanto no âmbito profissional da arte,

o trabalho artístico estético em si, de forma isola-

Medo de Travesti (2015).

como no pessoal.

da. Esta união foi muito positiva. Atualmente, sou

Recentemente, o Coletivo, que tem nove

O Cabaré das Travestidas, meu primeiro es-

convidada para entrevistas sobre violência e sobre o

espetáculos, dois shows, duas publicações, dois

petáculo, mostra um viés festivo, essa vivência

muito que ainda é preciso avançar nesse debate. Me

curta-metragens e realizou duas edições do Fes-

mais do show, do glamour, do que de certa forma

sinto honrada em poder estar no teatro discutindo

tival das Travestidas, em Fortaleza, estreou mais

as pessoas têm como a imagem do mundo trans,

questões desse universo, e em poder tocar as pesso-

quatro trabalhos: Três Travestis, Trans Ohno,

travesti, transformista, drag. Foi importante para a

as com a arte, que é a maneira mais eficaz de se

Androginismo e As Levianas.

cidade de Fortaleza a abordagem da temática em

alcançar alguém.

uma época em que essa pauta não era nada pop.


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2017

33

O PROCESSO DE CRIAÇÃO NA DIREÇÃO COMPARTILHADA

A Jezebel é uma coreógrafa maravilhosa e o

na nossa cabeça, eram mais sérios. Ficaram engra-

Silvero é um diretor de ator incrível. O processo foi

çados, mais debochados, alguns textos que eram

bem profundo porque lidamos com questões mui-

para ser densos ficaram um pouco mais leves. No

to pessoais e, ao mesmo tempo, questões univer-

final de dez dias de encontros, manhã e tarde, e

sais. Questionamos muito o papel do coletivo nes-

nós sozinhos à noite, chegamos a um esboço do

A pesquisa do Quem Tem Medo de Travesti teve

sa discussão, inclusive, pensando no que cada um

que viria a ser Quem Tem Medo de Travesti. Cerca

início antes da minha entrada no Coletivo As Tra-

representava na condição de drag, trans, travesti,

de 90% do espetáculo estava pronto e passamos

vestidas, que ocorreu justamente a partir da ideia

gêneros fluidos, o que tínhamos a acrescentar.

mais dois meses trabalhando sem ela.

do Silvero Pereira de contar com atores de fora, que

Quando a Jezebel chegou no processo, escutou e

Chegou a vez do Silvero pegar muito mais pe-

tivessem outras experiências. Ele tinha acabado de

observou muito para entender até onde podia nos

sado no trabalho de ator, falando o texto e desco-

estrear BR-TRANS e estava em tratativas com a

levar, por outros caminhos, que não esperávamos.

brindo as entonações. A três dias da estreia, Jezebel

Jezebel de Carli para a direção do novo espetáculo.

Isso foi muito rico. Estávamos há dois meses tra-

voltou, reviu novamente o material levantado, po-

QTMT faz a conexão entre as nossas vivências pes-

balhando na dramaturgia que eles haviam criado

lido, deu uma última opinião e estreamos juntos, o

soais e alguns textos clássicos da literatura – Ham-

em imersão, encontrando outras formas de falar

que foi muito importante. A partir daí foi um pro-

let, de Shakespeare, e A Hora da Estrela, de Clarice

o texto, levantando pequenas cenas, e tínhamos

cesso de crescimento, conforme a nossa participa-

Lispector. O trabalho do Silvero e da Jezebel, que

um esqueleto de 50% do material. Ela também já

ção dentro da causa foi crescendo e o espetáculo

dividiram a direção, num primeiro momento, era de

tinha criado coisas e, quando chegou, nos virou do

tomando conta da gente.

observar e modelar as histórias. Trabalhamos dois

avesso, questionou o nosso lugar dentro do pro-

meses na criação das histórias e dos contextos até

cesso. Questionou, na verdade, onde morava nos-

que, em uma semana de imersão, em Porto Alegre,

so desejo, nossa vontade, qual seria nosso lugar

os dois criaram a dramaturgia do espetáculo.

nessa discussão. Ela reinventou alguns textos que,

POR RODRIGO FERREIRA, Ator

Quem Tem Medo de Travesti Foto: Leonardo Pequiar

Quem Tem Medo de Travesti Foto: Luiz Alves


SEGUNDO SEMESTRE

MÚSICA

2017

34

Foto: Teófilo Negrão


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

35

A BRASILIDADE DA HARPISTA RUSSA LIUBA KLEVTSOVA INTEGRANTE DA OSESP DESDE 2001, A MUSICISTA, DISCÍPULA DE VERA DULOVA, ESTARÁ NO FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA, EM JANEIRO DE 2018, PELO SEGUNDO ANO CONSECUTIVO Harpista titular da Orquestra Sinfônica do Esta-

COMO FOI A SUA FORMAÇÃO EM MOSCOU?

expoente do instrumento. Para se ter uma

do de São Paulo (Osesp), a russa Liuba Klevtsova

Eu comecei os estudos com aulas particu-

ideia da sua importância no cenário musical,

iniciou os estudos na música aos cinco anos por

lares de piano com cinco anos. Amantes da

a escola russa de harpa leva o seu nome, ou

influência dos pais, assíduos frequentadores de

música, meu pai estudou em escola de mú-

seja, quando se faz menção ao método russo

salas de espetáculos em Moscou. Era uma época

sica e minha mãe toca violão de sete cor-

do ensino de harpa, também usa-se “escola

em que a cultura na então União das Repúblicas

das, sempre tivemos piano em casa. Naquela

de Dulova”. Dois de seus grandes méritos fo-

Socialistas Soviéticas (URSS) era bastante acessí-

época, em Moscou, a cultura era muito aces-

ram a unificação do método russo/soviético

vel e a musicalização era estimulada desde a edu-

sível, então frequentávamos semanalmente

de ensino de harpa e a sua intensa divulga-

cação infantil, mesmo nas escolas públicas. No

museus, teatros, meus pais eram assinantes

ção no país, dando destaque aos harpistas

Conservatório Tchaikovsky, teve a sorte de fazer

de vários concertos, de coral, de orquestra de

formados na Rússia/União Soviética. Seus

parte da última turma de Vera Dulova, ícone na

câmara e de sinfônica. Desde a pré-escola,

alunos são chamados “discípulos de Dulova”

harpa em seu país. Liuba conheceu o Brasil em

havia muito incentivo à musicalização, no-

e existe um grande interesse no meio peda-

uma turnê com um colega brasileiro e se encan-

ções básicas do mundo do som, para todos.

gógico em buscar esses profissionais para a

tou pelo país. Encantou-se também pela Osesp,

Quando ingressei na escola primária, já ha-

formação de novos harpistas. Os músicos já

que passava por uma reestruturação sob a regên-

via a disponibilidade de estudar harpa. Pas-

formados através de outras escolas/méto-

cia do maestro John Neschling, com quem teve

sou um ano e gostei, como diversão, porque

dos também buscam a pedagogia de Dulova

a oportunidade, anos depois, de compartilhar o

eu fazia escola de arte, até mudar de bairro.

para aprofundar os conhecimentos técnicos

palco como solista em um concerto duplo de har-

Na escola de música em que ingressei, havia

da escola russa.

pa e oboé, com Joel Giseger. Foram dois testes até

uma professora de harpa jovem muito mo-

ser efetivada como harpista titular da orquestra,

tivada, que apresentava os alunos para seus

NO ASPECTO PEDAGÓGICO, DE QUE FORMA

em 2001. Liuba participou de concertos nos prin-

professores na universidade, com quem fui

VOCÊ CONTRIBUI PARA A DIFUSÃO DA ESCOLA

cipais festivais europeus, além de integrar tur-

estudar depois. Minha formação foi de sete

DE DULOVA NO BRASIL?

nê com apresentações na Salle Pleyel, em Paris;

anos na escola primária de música, quatro

O ano de 2003 marcou minha primeira

Berliner Philharmonie, a casa da Filarmônica de

anos na escola técnica e, por fim, no Con-

participação como professora de um fes-

Berlim; e no Royal Festival Hall de Londres, entre

servatório Tchaikovsky de Moscou, um dos

tival de música, no Festival de Inverno de

outras conceituadas salas de concertos. A harpis-

principais centros de formação de músicos.

Campos do Jordão. Nele, tive um contato

ta, que concedeu essa entrevista por telefone à

Um dos fatores que alavancaram a minha

mais intenso com alunos de harpa em for-

Arte Sesc, será professora no 8º Festival Interna-

carreira foi ter tido o privilégio de fazer

mação e pude avaliar melhor a realidade

cional Sesc de Música, em Pelotas, de 15 a 26 de

toda a minha graduação na última turma

do Brasil neste instrumento. Foi um grato

janeiro de 2018.

da harpista Vera Dulova (1909-2000), um

desafio para mim, apesar de um pouco de


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

36

dificuldade em me expressar em português,

muito óbvio e essa parte é legal na músi-

ter exposição, os alunos têm que ter chances

trabalhar com minha primeira turma de alu-

ca, não tem como enganar. É evidente que

de tocar. Esse festival do Sesc é bom jus-

nos e, ao final, além dos objetivos alcança-

as orquestras se interessarão em contratar

tamente por isso. Há uma competitividade

dos, perceber muitas sementes plantadas.

os bons profissionais. Que maestro não vai

saudável, não de querer puxar o tapete do

Outro trabalho pedagógico que realizei e

querer poder apresentar a obra inteira de

outro. O festival deve oferecer essa ideia de

que trouxe bastante satisfação pessoal foi

compositores, com duas harpas? Então eu

que não é concurso, não é comparativo, é

a implantação de um curso de harpa, a pe-

acredito que tudo é muito vinculado ao sis-

o aluno dar o melhor de si. Os alunos têm

dido do saudoso maestro Antonio Carlos

tema de educação.

um volume de ocupação incrível. Quando

Neves Campos, na cidade de Tatuí (SP), em

Na Rússia, tive a mesma professora em cada

termina, todo mundo fica sugado, mas ao

2006/2007. Ainda que pese o fato de não ter

fase (escola), sempre a mesma linha de en-

mesmo tempo satisfeito por ter conseguido

sido possível dar continuidade pessoalmente

sino, sem atrito entre métodos de tocar o

produzir e por perceber que, nas duas sema-

ao meu projeto na diretoria que sucedeu ao

instrumento, o que é bom. Por outro lado,

nas de exigência extrema, de muita adrenali-

maestro Neves Campos, tive o prazer de divi-

nunca tinha participado de festivais como os

na, pressão, conseguiram fazer o melhor. Os

dir recentemente o palco da Osesp com uma

do Brasil. O acesso que os alunos têm a pro-

festivais fazem um bom trabalho porque a

de minhas ex-alunas. Ou seja, o Brasil que

fessores de fora é maravilhoso. Os festivais

programação é muito intensa também para

encontrei no ano 2000 é bastante diferente

internacionais – de Campos do Jordão, de

a população local, contribuindo para a for-

do atual, já que mais alunos e mais harpistas

Brasília, de Jaraguá do Sul, de Pelotas – são

mação de plateia, assim como as escolas de

profissionais estão se destacando no meio

de extrema importância. Todos são voltados

música ou a musicalização nas escolas. Na

musical brasileiro.

para enriquecer a experiência dos alunos

harpa, entre 10 alunos, se dois se formarem

e oferecem cursos, aulas de instrumentos

e quiserem ser profissionais, é muito, mas

QUAIS AS DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS NA

individuais, práticas em conjunto, práticas

isso também forma público. O meu filho

FORMAÇÃO DE UM JOVEM HARPISTA NO BRASIL

orquestrais, tudo com grande repercussão

maior, por exemplo, comentou que não sabe

E NA RÚSSIA E COMO ISSO INTERFERE NO

na cidade. Ainda mais que os investimen-

se vai ser músico profissional, mas ele gosta

MERCADO DE TRABALHO?

tos públicos em educação são insuficientes,

de música e isso é ótimo, vai compreender e

Em qualquer processo educacional, a forma-

mesmo sendo evidente que a arte faz parte

querer levar os amigos, a família. Vai gerar o

ção de um harpista dura 10 anos. Então, se o

da formação de um bom cidadão, pois con-

interesse, logo, futuros empregos.

aluno inicia com seis ou sete anos, chegando

ta a história dos povos e une os países com

aos 17 desenvolveu a parte profissional téc-

uma linguagem universal.

ORQUESTRA DE PONTA NO CENÁRIO

nica, mas ainda tem a formação acadêmica. Caso comece com 12, 14, 15 anos, como

O QUE SIGNIFICA FAZER PARTE DE UMA

QUAL O CAMINHO A SEGUIR?

INTERNACIONAL EM UM PAÍS QUE NÃO TEM TRADIÇÃO NA HARPA?

ocorre no Brasil, depois de 10 anos, preci-

Há uma carência de bons instrumentos nas

sa se sustentar ou até já tem uma família.

orquestras e também na preparação dos

Com certeza um dos maiores destaques da

Entretanto, eu percebo, até pela participação

profissionais e isso reflete no desconheci-

minha carreira foi o ingresso como harpis-

em festivais, que os harpistas estão mais jo-

mento até mesmo da sonoridade da harpa.

ta titular da Orquestra Sinfônica do Estado

vens a cada ano. No primeiro contato que eu

É necessário romper com esse ciclo: não tem

de São Paulo, há 17 anos. Por se tratar de

tive com o Festival de Campos do Jordão, a

profissionais, ninguém quer tocar harpa.

uma orquestra de nível internacional, pos-

idade dos alunos era de 19 até 38. Agora eles

Mas por quê? Porque não tem instrumento.

sibilitou performances tanto como harpista,

não chegam a 20 anos. Em Pelotas, na edi-

Mas por que não tem instrumento? Porque

integrando o corpo da orquestra, como so-

ção de 2017 do festival, tinha quatro alunos.

ninguém procura. É fundamental que as

lista, em repertórios de altíssimo nível téc-

Em 2018, vou ter seis, com três harpas de

instituições tenham os instrumentos para

nico. Proporcionou ainda exibições nas mais

qualidade. Vai ter uma geração de bons pro-

oferecer este ensino. Tem que ser tudo em

famosas casas de concerto do mundo, nas

fissionais. E a música tem uma peculiarida-

conjunto, de forma simultânea. As orques-

diversas turnês realizadas, e o trabalho com

de: você toca bem ou não e todo mundo tem

tras têm que investir nos instrumentos, as

os mais expressivos maestros da atualidade.

ouvido, principalmente os maestros, que vão

escolas e instituições têm que investir nos

Eu vim para Brasil por causa da Osesp.

ouvir quem consegue tocar ou não. Isso é

instrumentos, tem que ter festivais, tem que


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

37

POR MAX URIARTE PIANISTA/COORDENADOR DE MÚSICA DE CÂMARA DO FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA

1 A estrutura fragmentada do texto é uma homenagem a Debussy, cujas obras foram compostas dessa forma, assim como a opção pelos subtítulos ao final de cada fragmento, precedido por reticências e associando dois elementos. São assim os títulos dos seus 24 Prelúdios para piano.

CLAUDE DEBUSSY ENFOQUES & ASSOCIAÇÕES NO CENTENÁRIO DE SUA MORTE (1918-2018) [1] Não há uma escola Debussy. Não tenho discípulos. Eu sou eu. Claude Debussy

Em plena Primeira Guerra Mundial, no dia 23 de março de 1918, Paris é bombardeada com armas de fogo de longo alcance. Desde seu leito, no qual se encontrava confinado em estado terminal devido a um câncer, Claude Debussy ouvia as bombas explodindo nas ruas. Quando faleceu, dois dias depois, em 25 de março, muitas obras incompletas ou abandonadas permaneciam sobre sua mesa de trabalho. Aos 55 anos, desaparecia um dos maiores músicos franceses, considerado um dos iniciadores da música moderna e um dos mais importantes compositores do Ocidente. (...GUERRA & MORTE ) Autor de uma obra inovadora que continua, ainda hoje, a despertar entusiasmo, sua produção parece não possuir nem antepassados nem verdadeiros sucessores. Uma obra solitária, peculiar e tipicamente francesa. Mas acima de tudo, extremamente pessoal, que não se dobra a qualquer teoria, a nenhum sistema. Debussy produziu uma obra de sonho e sutileza, uma obra de poesia sonora que nos toca, não pelas inovações harmônicas, que provocaram em sua época a estupefação, a curiosidade e mesmo o escândalo, mas por sua sensibilidade incomum e pelo seu gênio, que eram o meio de transformação dos valores poéticos em valores sonoros.

Claire de lune hr-Sinfonieorchester, Jean-Christophe Spinosi


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

38

No momento em que a ciência acabava de comercializar a primeira arte verdadeiramen-

A orquestra foi regida por Gustave Doret. O êxito

nhor Colcheia) – uma espécie de alter ego. Debus-

foi tal que a obra teve que ser bisada.

sy pôde então dizer abertamente o que somente

te realista, o cinematógrafo (1895), Debussy se

Teria o público realmente compreendido que

identificava com os poetas simbolistas e com os

Debussy dera um passo decisivo e uma porta se

pintores impressionistas para tratar de encontrar

abrira em direção ao futuro?

reservava aos amigos.

(...PERSONALIDADE & MONSIEUR CROCHE )

um realismo alternativo que reproduzisse não o

O compositor Pierre Boulez (1925-2016)

Em 30 de abril de 1902, Debussy presen-

aspecto exato das coisas, mas seu efeito aproxi-

opina: “Tal como a poesia moderna tem raiz em

ciou a estreia de sua ópera Pelléas et Mélisande

mado. Enquanto outros compositores procuram

alguns poemas de Baudelaire, há motivos para

(baseada na peça teatral simbolista de Maeter-

dar-nos fotografias musicais, Debussy nos trans-

dizer que a música moderna nasce com o Prélude

linck), no Opéra-Comique, sob a regência de seu

mite sensações.

à l’aprés-midi d’un faune ”.

amigo André Messager. O impacto causado pela

(...SONS & SENSAÇÕES )

(...MODERNISMO & FUTURO )

apresentação desta obra alteraria radicalmente a posterior evolução da carreira do compositor,

A música orquestral e a música para piano

A linguagem de Debussy é própria e incon-

que contava com 40 anos incompletos. Até en-

ocupam um lugar preponderante dentro da pro-

fundível, de escritura descontínua, na qual pra-

tão, ele era pouco conhecido fora dos círculos

dução de Debussy, que se expressou nesses dois

ticamente não existe repetição literal e a antiga

parisienses, a despeito do êxito maior ou menor

campos de maneira particularmente inovadora. O

noção do “desenvolvimento temático” é substi-

de trabalhos anteriores, e convivia bem com seu

compositor iniciou sua vida musical como estu-

tuída pela fragmentação do discurso. As velhas

quase anonimato.

dante de piano, cultivando, no princípio, a ambi-

melodias já não existem mais como antes, apenas

Após Pelléas, Debussy viu-se, a contragos-

ção de se tornar um virtuoso do teclado. Curiosa-

motivos que surgem e desaparecem em um pro-

to, transformado em celebridade. Nos anos que

mente, o seu desenvolvimento como compositor

cesso que lembra o da livre associação de ideias.

se seguiram, novas obras escritas por ele fizeram

de música para piano foi relativamente tardio. Por

O intérprete de Debussy é refém desse as-

com que o compositor se transformasse em ver-

outro lado, alcançou bastante cedo o absoluto

pecto da imprevisibilidade contida em sua músi-

dadeiro objeto de culto, adquirindo dimensões

domínio da paleta de cores orquestrais.

ca. Assim sendo, ele deve tentar constantemente

de fanatismo. Foi o apogeu do “debussyismo”.

Suas orquestrações transparentes privile-

capturar o significado desse discurso que se move

Por estranha ironia, ele, que sempre se preocu-

giam a cor instrumental, o timbre de cada instru-

continuamente e que ameaça, a todo momento,

pou em destruir mitos, viu-se, contra a vontade,

mento. Novas texturas foram criadas a partir de

escapar por uma direção completamente diferen-

como principal objeto do fervor ardente de um

combinações instrumentais inéditas e de concep-

te. Para o intérprete, não há limites na busca de

numeroso público.

ções inovadoras no campo do ritmo. A precisão

novas sensações na música de Debussy.

mecânica do metrônomo já não tem mais lugar.

(...LINGUAGEM & INTERPRETAÇÃO )

Debussy não foi menos inovador no campo pianístico. Sua escrita é fluida, variada e reple-

Uma figura humana fascinante, dono de

ta de surpresas, empregando o instrumento em

uma personalidade na qual despontam ironia,

todos os seus recursos. Ele aborda o teclado em

irreverência, mordacidade e anticonvenciona-

todas as suas regiões, das mais graves às mais

lismo. Um espírito aberto, independente e nada

agudas, ressaltando a peculiaridade de seus tim-

submisso. Dotado de uma brilhante inteligência,

bres em meio a uma enorme gama de intensida-

criticava com seu humor cáustico tudo quanto

des que variam do quase inaudível pianíssimo

fosse oficial e institucionalizado. As instituições

ao mais poderoso fortíssimo, tudo envolto numa

musicais e a música oficial eram o alvo mais fre-

aura quase irreal criada pelo uso revolucionário

quente de suas críticas. Totalmente refratário ao

dos pedais.

meio musical, buscava sempre a companhia de

(...PIANO & ORQUESTRA )

(...ICONOCLASTIA & CELEBRIDADE )

poetas e pintores. Não se interessava por política, mas era um ardente nacionalista.

Em 22 de dezembro de 1894, a Société Na-

Em 1901, por motivos financeiros, aceitou

tionale apresentou, em Paris, o Prélude à l’aprés-

escrever crônicas musicais na Revue Blanche e

-midi d’un faune (Prelúdio à Tarde de um Fauno).

inventou um pseudônimo – Monsieur Croche (Se-

DEBUSSY NO FESTIVAL DE PELOTAS Em homenagem ao centenário da morte de Claude Debussy, integrarão a programação de música de câmara do 8º Festival Internacional Sesc de Música, de 15 a 26 de janeiro de 2018, em Pelotas, recitais com obras representativas de três fases do compositor. Clair de lune para piano, que é o terceiro movimento de sua Suite Bergamasque, é, sem dúvida, a obra mais universalmente conhecida de Debussy. Reflets dans l’eau, também para piano, é a primeira peça do ciclo Images I e representa uma fase subsequente. Por fim, Sonata para violino e piano é a última obra que o compositor escreveu e também a última que interpretou publicamente. Os recitais de música de câmara ocorrem na Bibliotheca Pública Pelotense, às 19h, e o restante da programação em diversos locais da cidade.


MÚSICA AUDIOVISUAL

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39

POR FATIMARLEI LUNARDELLI JORNALISTA, CRÍTICA E PROFESSORA, DOUTORA EM CINEMA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)

apenas real, seria insuportável. A imaginação é um vasto mundo de possibilidades: infinito, insaciável, em que somos os protagonistas, atores principais de cenas, de tramas, de sensações. Na imaginação não temos interdição – podemos tudo. Os limites são impostos na realidade. Nos relatos estão nossos valores e nossa percepção do mundo. A vida é confusa e incoerente, somos

CINEMA E LITERATURA:

assaltados o tempo todo por estímulos diversos. Uma história põe ordem na desordem da vida: faz uma seleção, ordena e reconstrói a realidade, que assim ganha sentido. Toda narrativa é uma disposição de acontecimentos nas dimensões do espaço e do tempo. São as condições necessárias para o conhecimento, inatas, trazidas desde o nascimento, que

DA INTENSÃO DE REDUZIR O RISCO AO DESAFIO DA ADAPTAÇÃO

nos permitem processar a experiência humana a partir do aqui (espaço) e do agora (tempo) em que nos encontramos. Narrativas articulam dois tipos de conteúdo: os objetivos, fornecidos pela realidade concreta, dos fatos verificáveis; e os subjetivos, processados na imaginação, os estados emo-

Quando se faz a aproximação entre cinema e

uma diferença crucial que distingue a escrita da

cionais e sensíveis da mente reflexiva. Narrativas

literatura são comuns frases do tipo “o livro é

imagem. Na escrita, o código precisa ser conhe-

podem ser realistas ou fantásticas, rememorar o

melhor do que o filme”, “o filme é fiel ao livro”,

cido, decifrado, dominado. Precisamos saber ler e

passado ou projetar o futuro, descrever o mundo

“prefiro o filme ao livro” e outras tantas. Para

escrever numa língua para que o conteúdo pos-

objetivo ou expressar a subjetividade. O mistério

além de manifestações de gosto, o que interes-

sa ser compreendido. Já no caso do cinema, da

da arte é que nem sempre há justificativa para

sa são as inúmeras relações possíveis entre essas

imagem em movimento, a compreensão está ao

aquilo que escritores ou cineastas criam. No en-

duas formas de expressão artística do ser huma-

alcance de todas as pessoas – ou seja, é uma lin-

tanto, aquilo que expressam com sua arte pode se

no. Podemos investigar o que há de comum e de

guagem universal. Embora tenhamos convenções

tornar importante.

diferente entre elas. A literatura tem sido fonte

de composição da imagem que são culturais, his-

de inspiração para o cinema desde os primórdios.

tóricas e geográficas, o significado da imagem de

DIFERENÇAS DE LINGUAGEM

O material criativo para um filme vem de muitas

um ser humano é compreendido imediatamente.

A literatura conta. O estado de espírito de um

fontes: notícia de jornal, teatro, histórias originais

Por que gostamos tanto de narrativas? So-

personagem é descrito com palavras. A palavra

etc. A vantagem da literatura, especialmente no

mos, nas palavras da escritora Nancy Huston,

é a matéria com a qual o escritor cria metáfo-

caso de um best seller, é a consagração já dada

uma espécie fabuladora. Nossa vida ganha sen-

ras, substantiva, adjetiva e cria um mundo para

pelo público. Isso explica por que 80% dos filmes

tido pelos relatos que fazemos – é a linguagem

o leitor. O cinema mostra. Um estado de espírito

da indústria cinematográfica são baseados em

que ordena a experiência, que nos leva a formu-

é apresentado na forma de ações, gestos, atos,

literatura. Trata-se de uma atividade econômica

lar os sentidos da vida. “O sentido é a nossa dro-

expressões do rosto. Recorrer ao diálogo é empo-

em que a redução de riscos é uma vantagem. O

ga pesada, somos viciados em buscar significa-

brecer os recursos da imagem. Na literatura, pode

direito autoral foi instituído em 1910 e desde en-

dos”, afirma a autora. Fabular é uma necessidade

ser indiferente dizer se o dia está bonito ou se

tão, adaptação é um bom negócio.

humana que interliga todas as experiências. A

chove. No cinema, se o personagem está na rua, é

Literatura e cinema são linguagens, ou seja,

ficção surge de nossa capacidade de imaginar.

inevitável mostrar como está o dia, se a rua está

sistemas de códigos, convenções que permitem

Imaginação. Onde está? Dentro de nós? A ciên-

vazia ou pessoas caminham por ela. Ações como

a comunicação. Podemos compará-las. Existe

cia não descobriu, mas sem imaginação, a vida,

pensar, lembrar e esquecer são difíceis de expres-


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40

sar no cinema. Por isso a literatura do “fluxo de

de madeira? Como é o quarto? Como mostrar a

modelo para as experimentações de Griffith, que

consciência” é um grande desafio de adaptação.

transformação de Gregor Samsa em inseto? Qual

culminaram no longa-metragem O Nascimento

O cinema manipula cinco materiais expres-

a forma do inseto? É parecido com uma barata ou

de uma Nação (1914)[1], um filme envolvente com

sivos, agrupados por Francesco Casetti e Federico

com uma mosca? São questões de ordem artística

mais de duas horas de duração.

di Chio em Como Analizar un Film: 1. códigos de

e estética, mas também de ordem econômica.

Outro momento histórico de aproximação

imagem (planos, ângulos da câmera, iluminação,

A linguagem do cinema começou com a

do cinema com a literatura ocorreu na França,

fotografia); 2. códigos sonoros (diálogos, sons do

montagem, o domínio da fragmentação e re-

depois da Segunda Guerra Mundial. Dentro da

ambiente, música, silêncio); 3. códigos gráficos

constituição do tempo e do espaço. No início,

tradição literária e cultural dos franceses, em tor-

(conteúdos escritos: intertítulos, créditos, legen-

o cinema apenas mostrava os acontecimentos,

no da cinefilia capitalizada pela revista Cahiers

das, informações dentro da imagem); 4. códigos

inspirado pelo teatro, em que a encenação se de-

du Cinema, o cineasta passa a ser visto como um

artísticos (incorporados do teatro, da pintura,

senvolve diante do público. Mas logo abandonou

autor, um artista que cria no ambiente adverso da

da literatura) e 5. códigos culturais (conven-

essa fonte e tomou a literatura como referência

indústria cinematográfica. Como valorizar o dire-

ções sociais e culturais, símbolos). Para um iní-

para estruturar sua linguagem. O cineasta ameri-

tor dentro do sistema industrial? Comparando-o

cio literário como o de A Metamorfose, de Franz

cano David Ward Griffith inspirou-se nos roman-

ao escritor. O cineasta e escritor francês Alexan-

Kafka – “Numa manhã, ao despertar de sonhos

ces de folhetim escritos por Charles Dickens para

dre Astruc cunhou, em 1948, a expressão cáme-

inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama

aprimorar a narratividade no cinema. Os ganchos

ra-stylo (câmera caneta) que se tornou famosa

transformado num gigantesco inseto” –, o cine-

narrativos, a suspensão dos acontecimentos e a

pela ideia de “escrever o filme com a câmera”,

ma deve fazer escolhas. A cama é de metal ou

visualidade da literatura de Dickens serviram de

numa equivalência entre cinema e literatura.


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41

1

Acontece que as diferenças no processo de

O ROTEIRO ENTRE O LIVRO E O FILME

criação são imensas. Enquanto o livro é obra de

Todo filme começa literário: pelo roteiro, que

um autor que controla tudo – um solitário na

é a planificação do que será filmado. Pode ser

criação –, o filme é resultado de um trabalho de

original, adaptado de livro, peça de teatro, de

equipe coordenado pelo diretor. Processo, aliás,

conto, inspirado em notícia de jornal ou episó-

que deve ser aberto ao improviso, pois nem tudo

dio pessoal. Em qualquer circunstância, o roteiro

é controlável. Acasos de filmagem, acidentes in-

é a promessa de um filme, um vir a ser. Em A

corporados ao longo do percurso, resultam no

Linguagem Secreta do Cinema, o roteirista Jean

Lolita, de Stanley Kubrick

que se vê na tela. Uma questão é crucial: quantas

Claude Carrière afirma que “escrever para cine-

Lolita, de Stanley Kubrick

são e qual o limite das concessões que um dire-

ma me parece o tipo de escrita mais difícil de

Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola

tor aceita fazer para preservar uma ideia original

todos, porque exige a convergência de qualida-

ou melhorar a ideia inicial? Um filme é como um

des raramente reunidas.” Tendo trabalhado com

sonho, por isso nos fascina e nos absorve para

alguns dos grandes expoentes do cinema, prin-

os mundos que materializa. Tudo é possível nos

cipalmente o espanhol Luis Buñuel, ele lista es-

sonhos. No cinema, os mundos mais fantásticos

sas qualidades: talento e invenção, um mínimo

podem ser criados e tudo deve ser posto em ter-

de capacidade literária, sensibilidade para criar

O Céu que nos Protege, de Bernardo Bertolucci

mos de imagem – todas as sensações, todas as

diálogos, bagagem técnica (saber como os filmes

Obsessão, de Luchino Visconti

emoções e ideias devem ser postas visualmente.

são feitos) e humildade. O roteiro está destinado

Morte em Veneza, de Luchino Visconti

Blow Up, Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni Blow Up, Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni O Nascimento de uma Nação, de David Griffith


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a desaparecer no filme pronto e quem brilha é

bem-sucedido é a adaptação que Leon Hirszman

o diretor.

fez de São Bernardo, de Graciliano Ramos. O cine-

Eis o problema. Como fazer a transposição? Como sair da escrita para a imagética? Como

asta não escreveu um roteiro, o livro serviu como fonte de trabalho para a equipe.

transmutar papel em filme? Um roteirista precisa

Algumas das adaptações mais estimulantes

descrever seu personagem de fora para dentro,

são verdadeiras recriações que resultam em obras

como ele é visto. Coisas que parecem ótimas no

autônomas, marcadas pelo gênio criativo do dire-

papel, simplesmente não funcionam vistas na tela,

tor. Francis Ford Coppola, que já havia filmado O

podem parecer falsas, forçadas. Decisões devem

Poderoso Chefão (1972), considerado muito me-

ser tomadas no instante da filmagem e é do diretor

lhor do que o livro de Mário Puzzo, fez de Apo-

a responsabilidade de modificar ou eliminar uma

calypse Now (1979) uma reescrita de O Coração

cena, ajustar um plano. A filmagem é o momento

das Trevas, de Joseph Conrad (1902). A partir do

criação e a beleza, materializando aquilo que em

de verdade do roteiro que já sofreu uma série de

roteiro de John Milius, o cineasta transpôs o Con-

Thomas Mann é espanto e reflexão interior.

ajustes, o primeiro deles no confronto com as pos-

go do século 19, e seu contexto colonial, para a

São múltiplos os diálogos entre o cinema e a

sibilidades econômicas de sua execução, embate

Guerra do Vietnã dos anos 1960. Em Blow up, De-

literatura. Por vezes, a maior fidelidade equivale a

que se dá, via de regra, com o produtor.

pois Daquele Beijo (1966), Michelangelo Antonioni

destruir, no filme, tudo o que é literário. O melhor

Influenciada pelo cinema, a literatura se

acompanha o envolvimento acidental de um fotó-

reconhecimento do gesto de subtrair para ser fiel

tornou menos descritiva, mais voltada para a ex-

grafo num crime. Escreveu o roteiro com Tonino

foi feito pelo cineasta italiano Bernardo Bertoluc-

pressão da consciência, da intimidade dos perso-

Guerra a partir do conto Las Babas del Diablo, de

ci, que escreveu poesia e romance antes de deci-

nagens. Mas não significa que um escritor possa

Julio Cortázar. O resultado foi um filme moderno,

dir-se pelo cinema. No belíssimo O Céu que nos

escrever para o cinema, pois como enfatiza Car-

uma discussão sobre o que é a realidade.

Protege (1990), eliminou tudo o que havia de lite-

rière: “após filmado, o destino de um roteiro é a

O mestre do suspense, Alfred Hitchcock,

rário para ficar só com a história e, assim, chegar

cesta de lixo”. São muitos os casos que ilustram as

sempre usou a literatura como fonte para os

mais perto dos personagens. O livro foi o primeiro

relações complexas, às vezes difíceis e tensas, entre

filmes, mas dizia, com humor perverso, que

romance do escritor americano Paul Bowles, lan-

literatura e cinema. Exemplo são as tentativas frus-

os livros ruins, banais, eram os melhores para

çado em 1954, no qual ficcionalizou a história

tradas de adaptação dos mundos interiores sutis e

o cinema. A obra-prima literária é um desafio,

que ele próprio viveu com a mulher, a dramaturga

complexos criados pelo escritor Vladimir Nabokov.

prenúncio de fracasso. A filmografia do cine-

Jane Auer. Em 1947, eles, ambos nova-iorquinos,

O próprio cineasta Stanley Kubrick considerou sua

asta italiano Luchino Visconti, em sua maioria

decidem viver no Marrocos.

adaptação de Lolita (1962) um fracasso. O filme,

adaptada da literatura, desmente tal crença. Es-

Ao filmar o romance, Bertolucci chamou

dizia, tinha resultado numa “tímida tradução de

treou com o policial noir de James M. Cain, The

Paul Bowles. O escritor aparece no início do fil-

um romance cuja glória era sua voz narrativa sin-

Postman Always Rings Twice, que resultou no

me, quando o casal e um amigo desembarcam

gular”. Nabokov, que elogiava o filme em público –

filme Obsessão (1943) e tornou-se precursor da

no porto de Tânger e entram num bar. Eles são

de fato é um grande filme, não o considerava me-

estética neorrealista. Visconti tinha o sonho de

interpretados pelos atores Debra Winger e Jonh

díocre – dizia em particular: “não é o que escrevi”. O

adaptar Marcel Proust – os grandes da literatura

Malkovich e sua movimentação é observada pela

curioso é que Nabokov, convidado por Kubrick para

eram para ele um estímulo e um desafio. Não

figura silenciosa do escritor, no fundo do am-

escrever o roteiro, entregou um manuscrito de 400

conseguiu realizar o projeto, mas deixou duas

biente. Como num jogo de espelhos, o criador

páginas, que não foi usado.

obras-primas equivalentes à grandeza dos ori-

vê materializados os personagens ficcionais que

Então, entre o livro e o filme, existe o ro-

ginais literários. O Leopardo (1963) recria com

construiu a partir da realidade por ele próprio

teiro. A adaptação de uma obra literária para o

perfeição a decadência da aristocracia siciliana

vivida. Traz no rosto uma expressão quieta e so-

cinema pode adotar dois caminhos: obediência e

no processo de unificação da Itália no século 19.

frida, resmunga algo sobre aquelas figuras das

respeito ao texto original ou recriação. No primei-

Está no mesmo nível do extraordinário romance

quais conhece as motivações profundas. O filme,

ro caso, o conteúdo da obra literária é passado ao

de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, com o qual

um dos grandes momentos de Bertolucci, é o

espectador, mas a linguagem audiovisual é ape-

Visconti tinha em comum a ascendência aristo-

mais belo reconhecimento que o cinema poderia

nas complemento do texto. O resultado pode ser

crática. Morte em Veneza (1971) compõe em ima-

fazer à dívida que tem com a literatura.

uma leitura pobre, mas nem sempre. Um exemplo

gens a discussão sobre a arte e o artista frente a


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A VISIBILIDADE DA MOSTRA SESC DE CINEMA OS FILMES DO RIO GRANDE DO SUL SELECIONADOS PARA A MOSTRA NACIONAL CIRCULARAM POR TODOS OS ESTADOS DO PAÍS E SE DESTACARAM EM FESTIVAIS NO BRASIL E NO EXTERIOR O curta de animação Lipe, Vovô e o Monstro, o longa Em 97 Era Assim e o curta de ficção documental Ruby, junto com o documentário Central, foram as produções que representaram o Rio Grande do Sul na seleção nacional da I Mostra Sesc de Cinema, que circulou por todos os Estados brasileiros no segundo semestre de 2017. Além de serem selecionadas para a Mostra nacional, o que representa uma grande visibilidade, inclusive para uma posterior carreira comercial, as obras receberam prêmios de destaque na etapa estadual. Todas tiveram uma intensa participação em festivais. A segunda edição do projeto que contribui para o fortalecimento da produção artística visual nacional, por meio da difusão, da promoção da discussão e do inter-

descoberta da sexualidade. É uma comédia nos-

Realizada através de Edital de Baixo Orça-

câmbio entre realizadores, público e críticos, está

tálgica, sobre os anos 1990 e sobre os rituais co-

mento da Secretaria do Audiovisual do Minis-

em fase de avaliação pelas comissões julgadoras

letivos que envolviam as pessoas antes da che-

tério da Cultura, a produção, além de ter sido

estaduais. O resultado será divulgado no primeiro

gada da internet. O projeto, segundo o diretor,

selecionada para a exibição nacional na I Mostra

semestre de 2018. Foram inscritos 57 filmes no Es-

Zeca Britto, nasceu de uma ideia do roteirista

Sesc de Cinema, foi reconhecida como melhor

tado, entre curtas e longas.

Leo Garcia, um episódio que ele viveu na ado-

direção de atores na etapa gaúcha e recebeu di-

lescência, quando os amigos da escola juntaram

versos prêmios em festivais. Os principais foram

EM 97 ERA ASSIM

dinheiro para perder a virgindade. “Logicamen-

melhor diretor e melhor filme pelo júri popular no

te que tudo deu errado, mas ficaram histórias

11º Festival de Cinema dos Sertões 2016, no Piauí;

Ficção, 2016, 90 minutos

divertidas sobre os episódios da adolescência

melhor filme no The Best Film Fest (Seattle, EUA),

Direção: Zeca Britto

numa época em que não existia o politicamen-

semifinalista no Los Angeles CineFest (EUA) e no

te correto nem a oferta de pornografia da in-

JuniorFest (República Checa); prêmio especial do

Em 97 Era Assim é um filme sobre a amizade,

ternet”, diz Zeca. O filme brinca com tudo isso,

júri no Jagran Film Festival (Índia); e melhor fil-

que conta história de quatro adolescentes que

faz uma sátira da visão masculina do mundo na

me juvenil estrangeiro no American Filmatic Arts

enfrentam juntos a chegada da vida adulta e a

época da puberdade.

Awards (Nova York, EUA).


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Zeca Britto considera a Mostra Sesc uma excelente oportunidade de exibição do cinema nacional, fundamental para a formação de público, além de dar uma grande visibilidade para os filmes. “Pude participar de debates em três sessões diferentes, em cidades diferentes e foi uma troca muito bonita, todos tinham interesse em conhecer os bastidores e saber sobre o processo, assim como estavam dispostos a pensar a adolescência e as questões discutidas no filme”, conta. Segundo ele, o público do interior do Brasil tem uma sede de cultura e arte muito grande e o Sesc cumpre o papel de divulgador, propagador da cultura brasileira. “O mesmo acontece nas grandes cidades, onde muitas vezes as salas de cinema são dominadas pelo circuito comercial, geralmente estran-

to Alegre, teve a participação de alunos da Escola

geiro, e o Sesc apresenta um caminho alternativo

Municipal de Ensino Fundamental Antônio Giúdice

Os áudios serviram de guia e referência para

em suas programações, sempre com espaço para

para a elaboração do roteiro, criação do monstro

todas as etapas, desde a pré-produção da anima-

a cinematografia nacional. Para a carreira de Em

e vozes do filme. Os realizadores do curta, Felippe

ção ao storyboard, passando pelo design dos per-

97 Era Assim está sendo um estímulo maravilhoso

Steffens e Carlos Mateus (diretores) e o diretor de

sonagens e pelos cenários. “No meio disso tudo,

e uma oportunidade única de chegar em cidades

arte Bruno Seelig haviam trabalhado por três anos

Carlos e eu fomos trabalhar em um estúdio de

que dificilmente o filme chegaria em circuito co-

na produção de As Aventuras do Avião Vermelho,

animação no Rio de Janeiro, onde conhecemos um

mercial.” O filme integra o Programa dos Afetos da

de José Maia e Frederico Pinto, e, ao final, em 2012,

novo e grande grupo de ótimos animadores, que

mostra, que apresenta um recorte muito carinhoso

decidiram fazer um filme próprio a partir da ex-

acabaram sendo muito importantes para o proje-

do cinema brasileiro, de acordo com o diretor.

exercícios, com elas mais soltas.”

periência adquirida. O projeto consistia em uma

to. Já estávamos atrasados na produção do filme

Em 97 Era Assim é o terceiro longa de Zeca

história infantil inspirada na relação de Steffens

e resolvemos chamar o máximo de amigos para

Britto lançado. Antes, ele fez o drama O Guri e o

com seu avô. “Pelo menos a que eu gostaria de ter

animar, mais de 20. É algo de que gosto bastante

documentário Glauco do Brasil, ambos exibidos no

tido, já que ele faleceu quando eu era muito novo”,

no curta, animação é um processo muito coletivo”,

Canal Brasil. O diretor está lançando seu quarto

diz o diretor. A premissa era revelar o campo como

diz Steffens. O filme foi exibido para nove turmas

longa-metragem, A Vida Extra-Ordinária de Tarso

algo mágico, habitado por monstros que mantêm

diferentes da escola e também teve uma exibição

de Castro (Festival do Rio, Mostra SP 2017). O quin-

aquele lugar funcionando, as plantas crescendo, a

pública no teatro do SEST-RS, para os pais, com

to longa, Legalidade, uma ficção que se passa em

água limpa. O avô era o único que sabia disso e iria

grande repercussão.

1961 sobre um episódio liderado por Leonel Bri-

apresentar esse universo para seu neto.

O curta passou por festivais como o Ani-

zola, com Cleo Pires e Fernando Alves Pinto como

A primeira parte da produção foi o trabalho

mamundi, o Festival de Cinema Infantil de Santa

protagonistas, está em fase de montagem e tem

com as crianças. Carlos Mateus, a produtora De-

Catarina, Mostra Tiradentes, CineOP, Dia Inter-

lançamento previsto para 2018.

nise Marchi e o professor de teatro Fabio Ferraz

nacional da Animação, Festival Primeira Janela,

promoveram os encontros, em que eram desen-

entre outros. Em Gramado, recebeu os primeiros

LIPE, VOVÔ E O MONSTRO

volvidos exercícios para estimular os estudantes.

prêmios: Troféu Assembleia Legislativa de me-

“Aos poucos o roteiro base que tínhamos foi sendo

lhor curta metragem e melhor direção de arte.

contado a eles, que eram incentivados a criar, tanto

Na I Mostra Sesc de Cinema, etapa estadual,

Ficção/animação, 2016, 9 minutos

em termos de roteiro quanto em termos visuais: as

recebeu destaque de desenho de som para Thia-

Direção: Felippe Steffens e Carlos Mateus

características que o monstro teria, o que come-

go Bello e Marcos Lopes. Os realizadores estão

riam no fundo do rio etc. O resultado desse proces-

desenvolvendo um projeto de série baseado no

O curta de animação Lipe, Vovô e o Monstro, finan-

so foi algumas horas de áudios em que as crianças

curta, algo que mostre mais do universo do Lipe

ciado pelo Fumproarte, edital da prefeitura de Por-

narravam a história e outros, gravados durante os

e os monstros que habitam o sítio dos seus avós.


AUDIOVISUAL

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“Agora que finalizamos nosso primeiro curta,

objetos, videoarte, fotografia. Jorge atualmente

percebo como são importantes os festivais e mos-

vive na Alemanha e está realizando um novo filme,

tras, como a Mostra Sesc de Cinema. Depois que

que terá apresentação multimídia, além do forma-

você tem o filme nas mãos, quer mostrar para o

to audiovisual. Guilherme e Luciano trabalham em

máximo de pessoas possível, quer mostrar para o

um longa-metragem que será rodado em 2018,

público e também para profissionais, quer que ele

com direção dos dois.

seja avaliado, que falem sobre ele. Entrar em fes-

Filmado no Uruguai e no Brasil, em 2014,

tivais é muito legal, poder participar, ver seu filme

Ruby recebeu 13 prêmios nos últimos anos, en-

numa tela grande, conhecer outros artistas. E, no

tre eles: crítica, público, revelação e do cineclu-

nosso caso, como é um curta infantil, ver a reação

be no Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da

das crianças é muito gratificante.”

Feira, em Portugal (2015); contribuição artística

Lipe, Vovô e o Monstro, de Felippe Steffens e Carlos Mateus Alunos da escola Antônio Giúdice participam da produção de Lipe, Vovô e o Monstro Ruby, de Luciano Scherer, Guilherme Soster e Jorge Loureiro

pelo filme e pela atuação no Prêmio da ACCIRS

RUBY

e do júri popular no festival Diálogo de Cinema,

Ficção, 2015, 17 minutos

Filme Livre, no Rio de Janeiro (2016); e direção de

Direção: Luciano Scherer, Guilherme Soster

arte na I Mostra Sesc de Cinema – etapa estadual

e Jorge Loureiro

(2017). Ruby foi apresentado ainda nos festivais

em Porto Alegre (2016); Filme Livre! na Mostra do

de Biarritz (França), Iberodocs (Reino Unido), e Ficção em formato documental que aborda a vida

Kinoforum, Cine Esquema Novo, Panorama Coi-

de um pintor – Ruby – que vive sozinho em uma

sa de Cinema e Curta Cinema, no Brasil. O filme,

casa próxima ao mar, o filme, o primeiro dos di-

que nos festivais pelos quais passou despertou a

mais interessante, visto que é um formato com

retores Luciano Scherer, Guilherme Soster e Jor-

curiosidade sobre os limites entre documentário e

pouca propagação pelo circuito tradicional de sa-

ge Loureiro, foi realizado de forma totalmente

ficção, está terminando sua carreira de festivais e

las de cinema”, analisa Luciano. Ele salienta ainda

independente. O trio desempenhou quase todas

será comercializado para televisão.

a alta qualidade das produções selecionadas, que

as funções, desde produção, atuação, direção de

Os diretores tiveram impressões muito posi-

mostram a grande potência do cinema nacional.

arte até desenho de som, incluindo o design. Os

tivas em relação à Mostra Sesc de Cinema. “Trata-

“A mostra proporciona também uma troca entre os

três diretores vieram das artes visuais. Guilherme e

-se de um espaço importante de apresentação de

realizadores, tanto em âmbito local como nacional,

Luciano, que assinam o roteiro, dividiam atelier de

filmes, possibilitando que as produções que se

através de encontros e da própria exibição dos fil-

pintura. Com o tempo, cada um foi desenvolvendo

destacaram sejam exibidas em diferentes Estados,

mes, fomentando o circuito de distintas maneiras.”

suas poéticas por diferentes campos: instalação,

cidades e locais. Para o curta-metragem é ainda


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ARTES VISUAIS


ARTES VISUAIS

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SESC/RS INTENSIFICA PROGRAMAÇÃO COM ARTISTAS GAÚCHOS EXPOSIÇÕES DE KELVIN KOUBIK, FELIPE POVO E MARINÊS BUSETTI FORAM ALGUMAS DAS QUE ESTIVERAM NOS ESPAÇOS DA INSTITUIÇÃO EM 2017, COM O OBJETIVO DE PROMOVER A FORMAÇÃO DE PÚBLICO PARA AS ARTES VISUAIS Desenhos, ilustrações, xilogravuras, fotografias.

A trajetória de Kelvin nas artes visuais teve

um pouco incontrolável. Eu gosto muito de de-

A diversidade de técnicas marcou as exposições

início na adolescência, no contexto da arte ur-

senho de observação, um desenho bem calmo,

promovidas pelo Sesc/RS, que a cada ano in-

bana, colando cartazes, depois com o grafite,

de caneta nanquim, bem detalhado, e comecei

tensifica sua programação de artes visuais. Um

até os 20 anos, quando ingressou no Instituto

a relacionar esses desenhos de natureza com

dos destaques do cenário contemporâneo no Rio

de Artes da Universidade Federal do Rio Grande

o desenho abstrato”, explica. A exposição que

Grande do Sul, Kelvin Koubik circulou com a ex-

do Sul (UFRGS) e expandiu sua atuação. “Trouxe

circulou pelo Sesc/RS representa três etapas: a

posição Amalgamorphosis, em que apresenta sua

referências da rua, onde continuo pintando, da

morfose, na qual o artista cria formas dentro de

pesquisa em torno do desenho. Felipe Povo, na

tipografia da pichação e da escrita do grafite.

alguns limites; a amalgamorfose, em que une

mostra Povoando, exibe uma síntese do seu tra-

Dentro desse universo, comecei minha primeira

estes limites – a inspiração vem da amálgama,

balho em grafite e outras técnicas como pintura,

pesquisa, que resultou na exposição individual

liga que tem o mercúrio como principal elemen-

xilogravura, serigrafia e estêncil. Em Xilogravuras

Diagnósticos, em 2012, na Galeria Iberê Camar-

to –; e a mutação, experimentos com novas re-

– Múltiplas Versões e Inversões, Marinês Buset-

go, na Usina do Gasômetro”, conta Kelvin. A

ferências do desenho.

ti reúne uma série de trabalhos desenvolvidos a

mostra foi indicada para o Prêmio Açorianos de

Outra fase da pesquisa do artista, retratada

partir de repetição, inversão e justaposição de

Artes Plásticas do ano seguinte nas categorias

em Amalgamorphosis, é o desenho diretamente

módulos geométricos impressos no tradicional

Revelação, Melhor Exposição Individual e Me-

sobre a parede. “É um pouco como na fotografia,

papel japonês Wenzou, mas também sobre pági-

lhor Exposição de Desenho.

em que, às vezes, esquecemos que alguém es-

nas de revistas, jornais e papéis coloridos, em que

Em 2011, o artista formou, com Tereza

tava lá e registrou aquele momento. Eu sempre

utiliza colagens e interferências com desenho e

Poester, que havia sido sua professora, o Ate-

faço esse desenho in situ, que tem uma relação

pintura. As exposições são combinadas com ofi-

lier D43, coletivo de pesquisa em desenho que

com o efêmero, por ser apagado depois. Acho

cinas e bate-papos com os artistas, com o intuito

desenvolve atividades no Brasil, incluindo di-

bem legal trabalhar em contato com as pessoas

de promover o intercâmbio e consolidar a forma-

versas exposições, e que realizou um projeto de

que convivem naquele ambiente”, afirma. Kelvin

ção de público.

residência na França, em 2016, cuja pesquisa foi

desenvolve ainda o projeto Kino 23, que transita

apresentada neste ano no Museu do Trabalho,

entre design, ilustração e grafite, e tem se voltado

em Porto Alegre. Em paralelo, Kelvin entrou na

para o trabalho autoral, como a recente pintura

fase do Amalgamorphosis, trabalho resultante

da empena de um prédio de quatro andares em

da sua pesquisa individual em torno do desenho

Caxias do Sul e outras em Porto Alegre. “Venho

abstrato, com influência do D43. “Trata-se de

cada vez mais tentando juntar as pesquisas.”

Floresta, de Felipe Povo Tinta acrílica sobre tela 75x92cm

um trabalho bem expandido da relação do corpo

Natural de Porto Alegre e residente em Pe-

sobre o papel, sobre a tela, uma coisa gestual,

lotas, o artista plástico e arte-educador gradu-


ARTES VISUAIS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

48

ado pela Universidade Federal de Pelotas (UFP)

nifestação foi iniciada a partir de minha inquie-

ção, sempre com o intuito de atingir de alguma

Felipe Conceição da Silva, o Felipe Povo, iniciou

tação diante de um mundo miserável e devas-

maneira as pessoas que a observam.”

sua intervenções urbanas influenciado pela es-

tador. Minha preocupação era com as pessoas

tética dos anos 1980 e 1990, expressa em car-

de nosso país diante da desigualdade, da fome,

ARTE DA REPETIÇÃO

tazes de bandas, capas de discos, imagens de

da descrença, da desvalorização. Partindo desses

Com um percurso de 30 anos dedicado às artes

shapes de skate e fanzines. O artista, que se in-

e de diversos outros problemas sociais, políti-

visuais, Marinês Busetti transita por diversas téc-

teressou pela pintura ainda na 8ª série, quando

cos e econômicos presentes em nosso sistema,

nicas que dialogam com a xilogravura. Depois

viu obras de Van Gogh em um livro apresentado

comecei a relacionar o mundo das pessoas que

da graduação em educação artística na Feevale,

pela professora de educação artística, levou es-

circulam pelas ruas. E a pensar de que forma eu,

investiu em cursos com destacados profissionais

sas referências para o grafite e para outras téc-

através de imagens artísticas, poderia mexer de

da pintura, escultura, desenho, gravura, estética e

nicas e suportes, da cerâmica às encadernações

alguma forma com as pessoas que estavam a

história da arte, entre eles Dudi Maia Rosa, Vasco

de publicações no formato de fanzine, além de

minha volta e, principalmente, as que circulam

Prado, Hamilton Viana Galvão, Diana Domingues,

pintura, xilogravura, serigrafia, desenhos e es-

pelas ruas da cidade. Meu conceito de arte está

Anico Herkovits e Danúbio Gonçalves.

têncil. Sem uma temática específica, a mostra

plenamente relacionado com o meio social e po-

No começo, partiu da figuração, em que o

Povoando é uma síntese da sua produção dos

lítico de nossos convívios. Procuro estabelecer

tema era crianças em meio à paisagem, sempre

últimos anos.

nos desenhos e em toda a forma de expressão

envolvidas de alguma forma com o fio de suas

Em um manifesto escrito em 2007, Felipe

que apresento alguma relação com o mundo em

pandorgas, até a geometrização que deu ori-

Povo explica sua relação com a arte: “Minha ma-

que vivo. A partir disso, faço minha manifesta-

gem às dobraduras. Passou pelas pinturas sobre


ARTES VISUAIS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

49

tela e eucatex recortados, dobraduras em chapa

Marinês, que ministra workshops e oficinas

galvanizada e pinturas com colagens sobre teci-

em seu Atelier da Xilo, no interior do municí-

do voal. Assim chegou à pesquisa que desenvol-

pio de Farroupilha, na Serra Gaúcha, expôs in-

ve desde 2003, em xilogravura. Marinês explica

dividualmente, participou de salões e integrou

que, nesta técnica, a repetição, o rebatimento e

coletivas em galerias e espaços institucionais

a inversão de módulos geométricos vão criando

em cidades do Rio Grande do Sul, São Paulo,

composições inusitadas, gerando possibilidades

Rio de Janeiro e do Exterior. Nos últimos anos,

infinitas de multiplicação da imagem. “A inspira-

destacam-se o SP Stampa, em que foi selecio-

ção para essas composições surgiu da observa-

nada para exposição coletiva na Galeria Gravura

ção dos vincos formados pelas dobras dos origa-

Brasileira, em 2014, e a 1ª Bienal Sul-Americana

mis. Esse estudo gerou as primeiras xilogravuras

de Gravura e Arte Impressa Rio-Córdoba 2014,

e o seu desdobramento pode ser visto no meu

no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janei-

trabalho atual, em que utilizo a impressão das

ro, e no Museo Emílio Garaffa, em Córdoba,

próprias matrizes da época dos origamis ou cria-

Argentina. Em 2015, realizou exposição com

num jogo de entra e sai, de figura-fundo em pul-

ções geométricas atuais, imprimindo também

a paulistana Renata Basile, na Galeria Priscila

sação constante. Assim, convoco a refletir sobre

em jornais, revistas e papel camurça, onde faço

Mainieri, em São Paulo; e em 2017, participou

as relações entre a matriz e a cópia, a repetição

interferências de lápis de cor, pintura e cola-

da 3ª GlobalPrint 2017, em Portugal, além de ter

e a diferença, entre construção e desconstrução,

gens”, explica a artista, que confere uma dimen-

sido convidada para a 9ª Bienal Internacional de

o geral e o particular, o real e o virtual, razão e

são contemporânea à técnica milenar. Para ela, a

Gravura do Douro, que será realizada em 2018,

emoção. Quem sabe, sobre as várias formas de

xilogravura, além de ser usada como técnica de

também em Portugal.

ver, as várias faces que algo pode ter, uma pes-

multiplicação de cópias originais, também pos-

“Meu objetivo é provocar a sensibilização

sibilita criar trabalhos de grandes dimensões, ao

do olhar através de um processo seletivo de per-

colar uma cópia na outra.

cepção, que ora destaca uma forma, ora outra,

Detalhe da obra Amalgamorfose I, de Kelvin Koubic Acrílica, grafite e lápis litográfico sobre tela 124x124cm Prisma – variação 3, de Marinês Busetti Pintura sobre xilogravura 160 X 80 cm

soa, uma ideia. Convoco a perceber o que antes parecia oculto.”


ARTES VISUAIS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

50

ARTE EM PEQUENOS FORMATOS EM SUA 6ª EDIÇÃO, SALÃO FUNDARTE/SESC DE ARTE 10X10 REÚNE OBRAS DE ARTISTAS DE TODO O BRASIL NAS MODALIDADES DESENHO, ESCULTURA, PINTURA, FOTOGRAFIA, GRAVURA E OBJETO


ARTES VISUAIS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

51

Série Dragtopografia – Pequenos ambientes do Vale dos Homossexuais, de Fabrízio Rodrigues

Com obras que não podem exceder 10cm de largura, 10cm de altura e 10cm de profundidade, o Salão Fundarte/Sesc de Arte 10x10 é um projeto consolidado no calendário das artes visuais e, em 6ª sua edição, registrou 158 trabalhos inscritos de 68 artistas de diferentes estados do país. Destes, 24 tiveram suas obras selecionadas para a exposição itinerante que teve início no mês de outubro, em Montenegro, e tem previsão para circular em outros municípios gaúchos, com um total de 60 obras. O projeto de fomento à produção e circulação de obras de arte é realizado por meio de uma parceria da Fundação Municipal de Artes de Montenegro (Fundarte) com o Sistema Fecomércio-RS/Sesc. Para Carmem Capra, integrante da comissão de seleção e curadoria, “o Salão 10 x 10, já consolidado no calendário artístico gaúcho, inscreve-se a cada edição em uma dimensão nacionalizada de sua abrangência, que faz jus ao esforço institucional do Sesc e da Fundarte no desenvolvimento desse concurso. Em tempos de crise, é necessário celebrar todas as iniciativas de fomento à arte e aos artistas”. A comissão considera aspectos teóricos, poéticos e educativos na seleção dos trabalhos, e essa compreensão diversa, segundo Carmem, “aproxima os campos do saber e do fazer artístico, podendo, inclusive, abrir possibilidades para movimentar as fronteiras entre eles”. A obra primeira colocada no Salão de Arte, Dragtopografia – Pequenos ambientes do Vale dos Homossexuais, tem origem na pesquisa prática, poética e reflexiva do artista Fabrízio Rodrigues, vinculada ao Grupo de Pesquisa Deslocamentos, Observâncias e Cartografias Contemporâneas, em seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas. “Busco, por meio da pesquisa, questionar as minhas inquietudes artísticas através de observações, deslocamentos e devaneios de memórias”, diz Fabrízio. O meio norteador para as suas obras apresentadas no Salão foi o universo queer e kitsch, representado pelo exagero nas cores, dobras e ícones comuns dos anos 1980. Suas referências são as artistas Vaginal Davis, Mi-


ARTES VISUAIS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

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ckalene Thomas e os carnavalescos Joãozinho

tifica. As obras são uma mistura de colagens que

dos de diferentes regiões do Brasil, todos miúdos

Trinta e Clóvis Bornay.

remete a murais e guarda-roupas de adolescentes,

e potentes. Artistas já realizaram pequenos dispo-

“Apresento três obras inéditas, dentro da

com a apropriação de imagens de revistas LGBT+,

sitivos de pintura, escultura, fotografia, gravura,

minha pesquisa denominada Dragtopografia, que

como miniaturas de capas da G Magazine (revista

desenho, de som, de engrenagem, de apropriação”,

visa reconhecer as cidades a partir das drag que-

gay popular nos anos 1990), de histórias em qua-

avalia a artista.

ens. Trouxe para as obras elementos comuns do

drinhos queer, da drag queen Nani People.

Duda destaca a sua ligação com o projeto e a

meu universo de figurinista, além da representação

A outra obra premiada, com o 2º lugar, foi

importância de sua realização para os artistas e as

da minha infância, através das cabeças de bonecas

Quanto Horizonte Cabe em 10 x 10?, de Duda

artes: “já fui curadora, integrante da comissão de

queimadas”, destaca. O artista enfatiza ainda que

Gonçalves. Trata-se de um dossiê de fotografias

organização, da comissão julgadora e artista expo-

a costura e o bordado estão presentes no seu dia-

confeccionadas especialmente para o 6º Salão

sitora, premiada, e posso afirmar que nesse espaço

-a-dia desde a infância, quando aprendeu a fazer

Fundarte/Sesc de Arte 10x10, como a paisagem do

pequeno que o Salão oferece ao artista poetizar

crochê e tricô. “Nessa época eu criava vestimen-

extremo sul do país, caracterizada pela horizontali-

tem acolhida e partilha intensa. Em tempos de

tas para as bonecas que eu ‘roubava’ das minhas

dade infinita da planície pampeana, como temáti-

crise, artista considerado vagabundo, as aulas de

amigas e, em seguida, as devolvia, realizando um

ca. As imagens foram captadas no Laranjal, bairro

arte facultadas e retiradas do ensino público médio

desfile de modas, regado a chá e biscoitos.”

de Pelotas, às margens da Lagoa dos Patos. “Meu

e fundamental, o artista e sua produção se sente

Fabrízio salienta que a identidade queer e

intuito foi desdobrar em tamanho 10x10 a vasta

cuidado e prestigiado pelo Salão de Artes.”

kitsch sempre estiveram presentes no seu tra-

infinitude e horizontalidade, suscitando o con-

Para Fabrízio, “falar de arte nos dias de hoje

balho prático. “Os títulos das obras são repre-

traditório, ou seja, o quanto algo tão vasto cabe e

é ser resistente aos insultos e ameaças que os ar-

sentados pela frase Dragtopografia – Pequenos

pode ser percebido num pequeno continente. “Esse

tistas vêm sofrendo e o Salão 10x10 é um exemplo

ambientes do Vale dos Homossexuais, sempre

é um dos poucos eventos de arte que premia em

de que o moralismo não flutua em suas edições.” O

acompanhado de uma numeração romana. Como

dinheiro, portanto, é bastante visado e comemora-

artista participou de cinco das seis edições, sempre

uma espécie de relógio antigo que marca as ho-

do. Ao longo das seis edições, já premiou vários ar-

com a inscrição de obras que questionam gêne-

ras que me mantive na heteronormatividade”, jus-

tistas e promoveu a itinerância de trabalhos oriun-

ro, identidade e política. “Mesmo em tempos em


ARTES VISUAIS

SEGUNDO SEMESTRE

2017

53

que para os bons costumes falar de identidade e gênero é algo quase proibido, as comissões de seleção são imparciais e desempenham seu papel de curadores. A arte tem a verdadeira função de questionar, indagar, mostrar o outro lado do nosso cotidiano. Em tempo de retrocessos sociais, ganhar o primeiro lugar falando de questões de identidade de gênero é uma demonstração de que nós, artistas, estamos cada vez mais vivos e deixando a nossa poética do fazer fervilhar através dos nossos objetos, fotografias, pinturas, esculturas, enfim, no

O Pequeno Livro dos Grandes Mamíferos (objeto), de Giulia M. Bocchese Tributo à Dandara I, II e III (objeto), de Marina Reidel

suporte que acharmos mais adequado para gritar-

Penso, logo te convido a matearmos por aí I, II e III (pintura), de Uéslei Fagundes

mos em 10x10 centímetros.”

O Fungo (escultura), de Cleandro Tombini Extinção (escultura), de Fernando da Luz


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

POR BRAULIO TAVARES

54

ESCRITOR. CIRCULOU EM 2017 PELO PROJETO NACIONAL ARTE DA PALAVRA.

NOITES NO MOTEL


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

55

Felicidade que eu tinha uma turma no res-

quartinhos no fundo. Era ali que casais furtivos

taurante universitário. A gente comia o bandejão

formados meio às pressas iam jantar e depois,

sempre no mesmo horário e depois ficava con-

discretamente, retirar-se para a parte traseira,

versando na praça. Um dos colegas me disse: “Vai

onde perpetravam cerimônias certamente crimi-

vagar um quarto na minha república semana que

nais e pecaminosas.

vem. É pequeno, mas serve pra você.”

O folclore machista campinense era cheio de

Mudei-me, feliz da vida. Era uma casa antiga,

frases debochadas tipo “Ontem de noite eu fui no

dois andares, pé direito alto (foi quando aprendi o

Dallas, comi um churrasco e depois uma piranha”.

que quer dizer “pé direito”), uma dúzia de quartos.

“Motel”, na minha porta?! Então entendi

Os quartos eram compartilhados por dois ou por

tudo. Sendo aquele o único quarto single do ca-

três estudantes, dependendo do tamanho. Menos

sarão, era também o único quarto para onde o

o meu, que era uma espécie de quarto de empre-

felizardo poderia trazer uma colega de faculdade

gada, do lado da cozinha. Apertadinho, mas cabia

para passar uma noite privê e tranquila, conver-

a cama de solteiro, a mesinha e a cadeira, cabia

sando sobre a incomunicabilidade dos casais nos

o armário cambaio e sem espelho onde eu pen-

filmes de Antonioni. (Pelo menos foi esta a utili-

durava minhas roupas e empilhava meus livros.

zação mais frequente que eu lhe dei.)

O pessoal torcia o nariz para o quartinho,

Pensei que tinha feito um bom negócio. Os

mas eu me sentia mais à vontade ali do que di-

republicanos que me eram mais próximos – o

vidindo quarto com outros caras que talvez acor-

Bilbo, terceiranista barbudo de Medicina, fã do

dassem cedo (meu curso era noturno, meu dia

Blood, Sweat & Tears; o Jerônimo, gaúcho, magro,

começava às duas da tarde), talvez roncassem,

pose de jesuíta mas na verdade viciado em pô-

Foi muitos anos atrás, num tempo em que eu fui

talvez falassem alto, talvez inventassem de man-

quer; o Vandinho, cinéfilo e desbocado, mas ainda

estudar fora e morava numa república de uni-

gar das meias e cuecas que eu trocava uma vez

virgem até a raiz dos cabelos; o Dedé, moreno,

versitários. Se você quiser entender o conceito

por semana.

interiorano, dono do único violão da casa, pea-

de República na pátria brasileira, more durante

Mudei-me, pois. Minha vida mudou de mar-

gadê em Ataulfo e em Noel – invejavam minha

algum tempo numa república de estudantes. O

cha e avançou sem solavancos. Segui feliz, “de

sorte. Diziam: “você agora vai comer até a mulher

tempo todo tem alguém se aproveitando de al-

minerol-infante”, como dizia Guimarães Rosa: em

do prefeito”.

guém e se divertindo às suas custas.

céu de brigadeiro e mar de almirante.

A primeira-dama escapou, mas não posso

Acabei indo para lá porque estava com três

Foi só alguns dias depois que eu franzi o ce-

dizer o mesmo da sobrinha da cozinheira/faxi-

meses atrasados na pensão onde morava. Dona

nho diante da palavra rabiscada em letras gran-

neira que nos visitava semanalmente. Enfim – a

Mariá, a proprietária da pensão, me chamou uma

des na porta do meu quarto, com canivete ou

vida seguiu de minerol-infante até o dia em que

noite para uma conversa no terraço e disse:

chave: “motel”. Essa palavra era uma espécie de

o Bilbo me chamou de lado.

– O senhor me desculpe. – Ela tratava todos nós, filhinhos-do-papai imberbes, por “o senhor”.

médico-e-o-monstro, pois tinha duas definições contraditórias.

– Você vai quebrar meu galho – disse ele. – A Rosinha concordou em dar pra mim.

– Eu entendo as dificuldades do Nordeste, a seca,

A primeira, é claro, vinha do “Bates Motel”

eu já li Raquel de Queiroz. Eu perdoo os seus três

do filme Psicose (1960) de Hitchcock. Aquele fil-

Ele explicou tudo, emocionou-se, coagiu, su-

meses. Basta o senhor sair e ceder o quarto a

me tinha abalado até os alicerces minha estrutura

plicou, e o resultado é que nessa noite eu ocupei

quem possa pagar, porque eu tenho meu esposo

espiritual. Motel passou a significar um recanto

a cama dele, no quarto que ele dividia com o Je-

inválido e muitas despesas.

remoto à beira de uma estrada onde se perpetra-

rônimo, para que na madrugada a Rosinha (logo

vam cerimônias criminais e pecaminosas.

a Rosinha, de Letras, que era a cara da Joanna

Disse isso com lágrimas nos olhos, e quem

– Dar o quê? – retrucou minha inocência.

sou eu para contradizer uma mulher com lágri-

A segunda definição era de Campina Grande

mas nos olhos, principalmente em pleno ato de me

mesmo, onde motel era a “Churrascaria Dallas”,

Pettet!) desse alguma coisa a Bilbo. Não se passaram dez dias e foi a vez do Jerô-

perdoar três mensalidades que meu pai aliás me

situada num bairro limítrofe (que hoje certa-

nimo, em função da Carol (que, por sua vez, era a

remetera, mas que eu gastara com cerveja, cinema,

mente já foi engolido pelo mainstream urbano).

cópia tridimensional e palpável de Chantal Goya).

teatro, shows e pocket-books de ficção científica?

Consistia num restaurante com uma fileira de

Pensei que tinha feito um mau negócio. Se


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

56

a notícia se espalhasse pelo resto da república,

Virei uma espécie de cafetão para Berg.

– Ela traiu o Faustino, Berg?! Contigo, ain-

em breve estaria eu pulando de quarto em quarto

Duas, três vezes por mês ele apalavrava uma bel-

da por cima? Um galinha como tu?! Se ao menos

enquanto os sabichões passavam suas noites de

dade, me emboscava na biblioteca ou no corredor

fosse com um cara melhor do que ele!

núpcias em meu colchão de solteiro. Implorei ao

e me afundava um pouco mais no pântano taci-

– Para de cuidar da vida alheia e vai comer

Bilbo e ao Jerônimo que não espalhassem a no-

turno do suborno. Em minha defesa, lembro que

alguém – disse ele. – Ela sabe o que está fazendo,

vidade, sob pena de rompimento de contrato. A

meu pai estava passando por uns apertos, atrasou

e Faustino é meu amigão.

coisa se sustentou algumas semanas, até que, por

a mesada, depois mandou um bilhete datilogra-

– Rapaz, eu tou puto com você.

artes não sei de quem, a informação foi dar nos

fado dizendo: “Vou ter que pular este mês, espero

– Você é meu amigão também – disse ele. –

ouvidos do Berg, o come-quieto mais atarefado

no outro poder lhe ajudar de novo.” Me ajudar?!...

do campus.

Eu achava que era obrigação dele me manter vivo

Nem me lembro se aceitei, mas no dia se-

enquanto eu devorava a obra de Ray Bradbury e

guinte estava lendo Cem Anos de Solidão, recém-

descobria o cinema surrealista.

-lançado e custando os olhos da cara, a edição

O Berg era mais velho que nós, tinha uns 30 e poucos, uma figuraça, tinha trocado de curso

Toma aí pelo teu incômodo.

três vezes e trabalhava como camera-man numa

Até que um dia Berg partiu meu coração.

produtora de comerciais para TV. Era baixinho,

A essa altura já tínhamos uma rotina que

com capa de Carybé.

barbudo, inquieto, um sorriso permanente, fala-

dava certo. Havia um hiato no vaivém da república,

va pelos cotovelos, era feioso mas tinha aquele

quando os caras ainda estavam na rua ou já ti-

Essas coisas a gente esquece, como esqueceu

Poderoso Magnetismo Animal que atrai as mu-

nham se recolhido aos quartos. Eu esperava Berg e

milhares de outras, milhões de outras, porque a

lheres, algo que certos caras têm e eu não tenho.

sua presa no pé-sujo vizinho, entrávamos na casa

vida é uma cachoeira torrencial de pequenos fatos

(Sem a poesia e o violão, não sei o que teria sido

pelo beco lateral e pela porta dos fundos, eles cru-

que vão se derramando sobre nós, e todos passam,

de mim.)

zavam a cozinha para dentro do Motel e eu me

alguns ficam grudados na memória algum tem-

Os anos e as décadas se passaram, como nos velhos folhetins.

– Você vai me ceder o quarto – me intimou

abancava no sofá, já munido de livros, travesseiro

po, depois passam também, porque a cascata não

o Berg na cantina da faculdade. – Terça-feira à

e lençol. De vez em quando um colega surgia na

cessa nunca. Humberto Mauro dizia que cinema é

noite o marido dela vai viajar, é uma chance única

madrugada, para pegar água na geladeira, e me via

cachoeira. Pois a vida é uma Catarata do Iguaçu.

na história.

ali. Eu tinha meia dúzia de explicações aleatórias

– Melhor procês – disse eu. – Vai pra casa dela. – Ela tem dois filhos, idiota. Tás pensando o quê? Ela vai dar uma fugida. A gente chega lá na

que bastavam para encerrar a conversa. Até que um dia Berg chegou abraçado a Maria Laura.

Como se diz no romance, cresci, vivi, viajei, conheci a melancolia dos barcos a vapor e tudo o mais. Voltei para meu Estado natal, virei escritor e compositor, alcancei uma modesta notoriedade.

tua república à meia-noite. Me espera na porta.

Com quem posso comparar Maria Laura?

O cabelo foi ficando branco; a tinta dele passou

– Enfiou a mão na carteira e tirou dali algumas

Nenhuma atriz do cinema se comparava a ela.

notas, sementes da minha degradação moral. –

Era noiva do Faustino, um quartanista de Elétrica

E um belo dia estou de volta àquela cidade,

Pega, toma isso aqui, é pelo teu incômodo.

toda para as páginas.

que era um dos caras mais inteligentes do cam-

onde tanto sonhei, e menos sonhei do que vivi.

Como dessa vez não havia quarto para onde

pus. Apaixonadíssimos os dois, e, na linguagem da

Fui fazer uma palestra num evento literário e,

ir, dormi no sofá da cozinha. A cozinha era es-

época, muito atuantes na resistência estudantil à

depois de tudo, à noite, o pessoal me levou para

paçosa e tinha esse sofá velho, enorme, todo

ditadura. Quantas vezes, no vasto apartamento

jantar num belo restaurante, que aliás nem existia

manchado de café e bebida, que foi arrastado

dos pais dela, sentado no tapete entre uma roda de

naquela minha época remota de pindaíba, cafés

para lá quando um “presidente” mais dinâmico

amigos, vendo-a a um braço de distância, toquei

no balcão e doce de leite cortado em losango.

organizou uma vaquinha para comprar um móvel

ao violão: Este seu olhar, quando encontra o meu,

decente para nossa sala de estar. O que acabou

fala de umas coisas que eu não posso acreditar...

Estávamos na sobremesa quando me virei, nem sei por quê, e vi a cinco mesas de distân-

sendo ótimo. O sofá novo era uma contrafação

Vi-a chegar com ele, discreta, evitando meus

cia um casal grisalho que conversava tranquilo,

modernista coberta com napa cor-de-laranja, e

olhos. Cumpri o ritual, engoli o ódio, no dia seguin-

diante de taças de vinho rubro. Antes de poder

duro que só um patíbulo. O velho, que foi para

te catei o Berg na saída de uma aula de Filmologia.

pensar, ergui o braço. Eles me viram, titubearam,

a cozinha, era aconchegante, fofo, hospitaleiro, e

– Você não pode fazer isso com o Faustino

seus rostos se iluminaram de reconhecimento e

me ajudou a dormir minimizando o fato de que Berg passou uma noite em claro extraindo arquejos da sua casada infiel.

– disse eu. – Com ele eu não fiz nada – disse Berg. – Vai cuidar da tua vida.

sorriso largo. Pedi licença e fui até a mesa dos dois, e Faustino e Maria Laura (porque eram eles) me deram abraços demorados e saudosos.


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

57

Pediram outro vinho, e parecia que a noite estava começando, e a vida junto com ela. Sim,

ia ficar mais um pouco, tinha reencontrado velhos amigos.

eles não tinham me esquecido, e mais até: me

Quando retornei à mesa, Maria Laura estava

acompanhavam à distância. Faustino tinha lido

sozinha, e disse que Faustino tinha ido fumar um

um ou dois dos meus livros, Maria Laura lembrou

cigarro da calçada.

algumas músicas minhas gravadas por aí. – Sempre que vejo alguma coisa sobre a Paraíba vou olhar se fala em você – disse ela. – Quando fala, eu mostro a todo mundo: “Ele é amigo meu!”.

– Ele não largou esse vício, hem? – perguntei, já num tom de pré-despedida. – Não – disse ela. – E tem uma coisa que eu quero te falar sobre Berg. – É mesmo? O que? – disse eu.

Os dois continuavam na Universidade, onde

– Eu já tinha até esquecido, mas de repen-

ele era pró-reitor de alguma coisa e ela era pro-

te voltou tudo. Tudo que não foi resolvido acaba

fessora titular. Filhos. Um netinho. Publicações

boiando de novo, não é?

acadêmicas. Uma bela casa num bairro tranquilo

– Claro – disse eu, só para dizer alguma coisa.

(“você tem que ir um dia almoçar com a gente”).

– Você nunca me perdoou por eu ter pas-

Sorrisos e mãos dadas. E eu só olhando. Uma vida

sado aquela noite com Berg lá no seu quarto, no

inteira que poderia ter sido e não foi.

seu Motel.

A inveja foi tanta que quando estávamos em pleno capítulo do “Por onde andam Fulano e Sicrano?...” eu dei um jeito de tocar no nome do canalha. – E o velho Berg, hem? Ainda está mexendo com cinema?

– Que noite? – disse eu, miseravelmente, olhando para dentro da taça de vinho. – Puxa vida, você convivia comigo e com o Faustino. Sabia que a gente tinha uma relação

Eu olhava para o vinho, esperando acontecer ali alguma coisa. Ela riu e pegou na minha mão. – Eu nunca vi que você gostava de mim. Ergui os olhos. Ela tinha cabelos totalmente grisalhos, pele flácida no pescoço, rugas em volta dos olhos, do sorriso. Quantos anos tinha agora? Cinquenta, cinquenta e cinco, quinhentos? Estava mais linda do que nunca. Imaginei como seria acordar todos os dias e ver aqueles olhos se abrindo, sempre mais luminosos do que na véspera. – Seu bobo – disse ela, e suspirou. – Bobagens de velha. Mas foi bom te ver e poder dizer isso. – Vocês estão felizes, pelo que eu vejo. É isso que conta. – Sim, é isso que conta. Ela pediu a conta, fomos encontrar Faustino na calçada, fumando e conversando com amigos. Trocamos emails, endereços, telefones. Despedimo-nos com abraços apertados. O porteiro do restaurante parou um táxi para mim. Ela me beijou no rosto.

aberta. Era uma bobagem, claro, mas era coisa

– Foi tão bom te rever – disse. – E deixa de

da época, a gente vivia sonhando com Saint-Ger-

ser importante, José, quando tiver um livro novo

Houve um silêncio que durou uma fração de

main-des-Près, com Woodstock. Faustino dava

manda pra gente, autografado.

segundo, mas couberam ali trinta anos de expec-

umas saídas com outras garotas. Eu tinha vinte e

Mandarei, sim, mandarei o livro onde venha

tativa. Faustino franziu a testa com uma expres-

dois anos, queria ter experiências. E depois daqui-

um dia a publicar esta crônica banal, na qual os

são de desalento, tomou um gole de vinho e disse,

lo você deixou de falar comigo. E logo depois, no

nomes de todos os envolvidos foram trocados,

com um suspiro:

fim do ano, voltou para a Paraíba.

para que a bolha de sabão do nosso passado per-

– Olha, o velho Berg não está mais entre nós. Um acidente de carro, já faz muitos anos.

– Que é isso, Maria Laura – falei. – Eu não sei do que você está falando.

Filho da puta, pensei, você sabotou as pas-

– Eu gostava de você, sabia disso? Mas

tilhas de freio do carro do velho Berg, do meu

achava que você era apaixonado pela Selminha

amigão.

– disse ela. – Pelo menos ela já tinha me dito

– Puxa, que pena – falei, num tom mais neutro do que a Suíça na ONU. – Como foi?

que teve uma noite tórrida de sexo com você, naquele quarto.

– Estava filmando o rally Paris-Dakar – disse

Comigo?! Eu broxei com a Selminha. Dor-

Maria Laura. Os olhos dela estavam tristes de ver-

mimos, no outro dia fiz café para ela e ficamos

dade. – Foi um choque pra todo mundo.

escutando Jefferson Airplane na sala. Puxa vida,

Nesse instante eu percebi que na minha

Selminha.

outra mesa já havia umas pessoas de pé e o gar-

– Saí com Berg somente aquela vez, e pra

çom estava do lado, empunhando a maquininha.

mim o local não tinha importância – continuou

Pedi licença aos dois, fui até lá, examinei a con-

ela. – Pra mim eu era somente uma amiga sua,

ta, o pessoal disse que eu era convidado, insisti,

uma a mais, uma daquelas pra quem você tocava

passei meu cartão, guardei o recibo no bolso da

violão. Não pensei que deixasse de falar com a

camisa, despedi-me de todos, agradeci, falei que

gente por causa disso. Não precisava.

maneça intacta, pelo menos aos olhos do mundo.


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

POR CHIQUINHO DIVILAS

58

RAPPER E EDUCADOR SOCIAL, GRADUADO EM RELAÇÕES PÚBLICAS PELA UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL (UCS), COM ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO ESTRATÉGICA DE PESSOAS. FAZ MESTRADO EM DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO SOCIAL NA FEEVALE. EM 2018, CIRCULARÁ POR VÁRIOS ESTADOS BRASILEIROS PELO PROJETO NACIONAL DO SESC ARTE DA PALAVRA.

RAPENSANDO A EDUCAÇÃO: O RAP COMO APRENDIZADO EDUCACIONAL

Foto: Fabiano Knopp

Meu interesse pela temática rap na educação

geral obtido por alunos do 8º ao 9º ano do ensino

ocorreu pela minha proximidade com a comunida-

fundamental. Com 4,3, ficou distante um ponto do

de e com a escola de Marechal Floriano, um bairro

estimado para este ano pelo governo federal.[1]

pobre da cidade de Caxias do Sul (RS), contornado

Fui criado pelos meus avós e acredito que é

pelos altos índices de violência, criminalidade e

por isso que estou vivo. Minha avó era faxineira da

drogadição. A escola Dante Marcucci, que aten-

maior escola estadual de Caxias. Por ser um pré-

de aquela comunidade, amarga um dos piores

dio grande e com muitas grades, apelidávamos de

desempenhos no Índice do Desenvolvimento da

Carandiru, casa de detenção de São Paulo demo-

Educação (Ideb) 2015, divulgado pelo Ministério da

lida em 2002. Mesmo com três filhos, minha avó,

Educação em 2016. É a última colocada da cida-

obesa e cega de um olho, deu segmento aos estu-

de e tem como maior deficiência o índice médio

dos e, com muita dedicação, concluiu o segundo


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

59

1

2 Playboy: o cara que tem muito dinheiro. Riquinho. Mimado.

grau, prestou vestibular, graduou-se em Letras e

cias, bebidas, namoradas, noites nas ruas, festas e

(MC dos Racionais) cantava, mas cujo significa-

logo passou a exercer outras funções, na mesma

aproximação com os jovens infratores, que eram

do eu não sabia. Fiz até parceria com o dicioná-

escola. Ela conseguiu uma bolsa escolar para mim

os meus amigos e vizinhos. Evasão. Eu batia ponto

rio Aurélio. Voltei aos estudos e concluí o ensino

e eu iniciei minhas atividades escolares em uma

na frente da escola estadual da quebrada e minha

fundamental. Cantava rap, mas não tinha show.

instituição privada. Eu odiei. Queria subir o morro e

identidade foi resgatada. Ali eu me sentia em casa,

Sabia que precisava estudar e trabalhar. O rap me

estudar com praticamente todos os meus amigos,

era eu mesmo. A escola Carandiru. Outro capítu-

fez voltar a sorrir, acreditar em um futuro. Logo

vizinhos que foram para a escola da quebrada. Mas

lo da minha biografia. Uma página em branco da

comecei a trabalhar como garçom, domingo a do-

acabei estudando no centro da cidade, onde fui

qual eu mesmo seria o autor dali para frente. Não

mingo, com um salário medíocre. Em 2000, ganhei

discriminado e sinônimo de chacota para os alunos

demorou muito para o rap chegar de vez na minha

uma bolsa integral do Sindicato dos Trabalhadores

brancos e ricos. Isso gerou revolta e muitas dúvidas

vida e, simultaneamente, os convites para os ata-

de Bares, Restaurantes e Hotéis para concluir o se-

sobre quem eu era, além da limitação do aprendi-

lhos na busca de um pseudossucesso.

gundo grau em um supletivo. Na sequência, prestei

zado, fruto de um bloqueio e da baixa autoestima.

Conheci o rap no início dos anos 1990, mas

vestibular. Sabia das minhas limitações, mas tentei.

Tive que fazer novas amizades. Quando en-

iniciei minhas experiências com a música em 1997,

trava nos apartamentos dos meus colegas play-

quando conheci o MC Paulista (Marcelo dos San-

E deu zebra. Passei.

boys[2], via tudo muito diferente. Apesar de nun-

tos), que veio de São Paulo tentar vida nova com a

A EXPERIÊNCIA UNIVERSITÁRIA

ca ter faltado comida na minha casa, a realidade

sua família. Junto com seus trapos, trouxe vinis dos

Um menino confuso, que amava rap, trabalhador,

era outra. O chão da cozinha da minha casa era

grupos Racionais MC’s, Gog, Sistema Negro, DMN

sem espaço para cantar, mas com a esperança

comprometido pela umidade do porão, já que não

e outros. Fiquei hipnotizado com tudo aquilo.

de que a música poderia salvar muitas “almas” e,

batia sol nos fundos do terreno. Cada pisada forte

O rap dialogava comigo muito mais do que os

inclusive, apontar alternativas. Vai vendo. Eu não

dada no centro da cozinha balançava a geladeira,

professores. As batidas mexiam com meu coração

tinha a menor ideia para onde o rap poderia me

o fogão e a mesa. Como levar meus colegas até lá?

e era como se as mensagens das músicas fossem

levar. Entre trâmites de matrículas e tentativa de

Seria um motivo a mais para piadas. Então nun-

direcionadas para a minha vida. Precisei escolher

bolsa na universidade privada de Caxias do Sul,

ca os convidava. A casa dos meus colegas era um

caminhos, já que recebia inúmeros convites dos

consegui ingressar no curso de Relações Públicas.

luxo só, com direito a torrada e chocolate quente

meus amigos para cometer pequenas infrações no

No primeiro dia, tomei um choque, um baque que

durante os trabalhos em grupo. Nunca quis levar

centro da cidade. Decorei dezenas de músicas dos

mexeu muito comigo. A primeira reação foi tentar

ninguém na minha casa.

discos e cantava na esquina do bairro e na frente

entender o que eu estava fazendo em uma uni-

Passaram-se oito anos nesse clima e nesse

da escola. Não demorou muito para iniciar as mi-

versidade. Percebi que o tempo perdido faria falta.

sentimento. Embora isso não fosse muito frequen-

nhas próprias composições. Muitas vezes, éramos

Entrei na universidade sem ter o hábito da leitura,

te, meu avô, negro e motorista de um carro fúne-

abordados pela polícia e tínhamos que explicar o

sem conhecer a história, apenas com alguns ma-

bre, me buscava na frente da escola às vezes. Ali eu

que estávamos fazendo na esquina.

cetes e orientações das letras de rap que diziam

percebi que o preconceito era uma manifestação

Meu apelido, Chiquinho, tem origem no meu

para optarmos por um rumo e que a avenida das

cultural na cidade. Pais, alunos e colegas riam da

segundo nome: Francisco, em homenagem ao meu

drogas e crime nos leva para um caminho quase

situação. Recebi o apelido de Todynho e Kid Mumu.

avô, Francisco Camargo. Esse apelido também con-

sem volta. E foi por essas dicas que eu estava lá.

Isso me deixava muito abalado. Porém, meu avô

tribuiu muito para a minha identidade na quebra-

No ônibus com destino à universidade, en-

sempre me transmitia uma lição de igualdade. Fa-

da, pois não gostava do meu nome. Hoje, ninguém

contrei um amigo de infância, que estava indo

lava que era necessário acreditar nos nossos so-

mais me chama de Jankiel, exceto em situações

para o presídio, bem próximo da universidade. Ele

nhos, que a cor da pele não influenciava em nada.

formais e indispensáveis correspondências.

estava em semiliberdade e tinha que assinar um

Muito humilde, acreditava que racismo não existia

Eu e o Paulista escrevíamos e cantávamos

documento obrigatório por ter cometido uma

e que nunca havia sofrido preconceito racial. Até

para a galera, mas show que era bom, nada. Nin-

infração. Sentamos juntos, conversarmos e, re-

hoje, acredito que falava apenas para que eu ti-

guém contratava o grupo, ninguém sabia sequer

miniscências à parte, cheguei à conclusão de que

vesse mais coragem de encarar as adversidades da

que existíamos. Queria porque queria rimar melhor.

eu tive sorte de me apaixonar pelo rap e optar por

vida. Comentava muito que eu deveria ter orgulho

Toda a minha limitação pela falta de vontade na

outros caminhos. “Salve, irmão! Estou indo para a

da minha origem.

escola, no primeiro grau incompleto, motivou meu

universidade. Quem diria, né?!” Ele ficou feliz por

A reprovação, a perda da bolsa e a expulsão

retorno aos estudos. Nesse processo, enriqueci

mim e desejou boa sorte. Eu também desejei sorte

da escola geraram revolta. Vieram as imprudên-

meu vocabulário com palavras que Mano Brown

a ele. Uma pena que este irmão, hoje, não está mais


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

60

vivo. Morreu baleado quando já estava distante do

bombou. A sonoridade do rap me apaziguou. Foi me

trabalhava, com algumas empresas vizinhas da

crime. Muitas vezes, o crime é uma bola de neve.

acalmando e eu fui soltando o verbo. Lauda na mão

comunidade e alguns parlamentares do município,

Cobranças voltam. Situação costumeira que viven-

trêmula. Cantei duas vezes a letra e, quando acabou,

realizamos a minha festa de formatura dentro da

ciamos no nosso cotidiano.

falei “esse é o meu trabalho”, aguardando a rejei-

quebrada. Uma festa diferente. Foi a 1ª Festa de

No primeiro dia de faculdade, a professora

ção de todos. Foi aí que, de repente, ouvi aplausos,

Formatura com a Comunidade. Guloseimas, grafi-

entregou uma folha para que preenchêssemos

aplausos. Aplausos. A professora deu nota máxima

tes, shows e artes cênicas para 400 crianças. Qua-

com nossos dados, principalmente e-mail. Eu não

e os colegas também gostaram da música. Quebrei

tro ônibus chegaram das comunidades vizinhas.

tinha e-mail, nem computador eu tinha. Isso em

mais uma muralha. E arranquei a primeira nota má-

Festa e festa na minha própria formatura. Fiz um

2001. Pensei: vou passar vergonha no primeiro dia

xima na universidade. Graças ao rap.

discurso breve de formatura e disse para todos os

de aula. Não vou perder para esses playboys. E se

O rap me ajudou muito na vida. Vem me aju-

meninos e meninas que quando retornassem para

eu sair correndo? Mas o que a minha filha vai pen-

dando até hoje. Fiz amizade com os caras que eu

suas residências comentassem com pais e mães

sar quando eu falar que desisti no primeiro dia?

chamava de playboys e aprendi a trabalhar com

que eles participaram de uma festa de formatura

Não posso. Fui sincero e falei para a professora

power point, entre outros programas. Aprendi a

na própria comunidade. Muitos pais também esta-

que eu ainda não tinha e-mail. Ela não titubeou

reservar livros na biblioteca online, fiz parceria com

vam presentes. Até o prefeito da cidade apareceu

e perguntou a todos “tem mais alguém que não

o dicionário e nunca mais parei de estudar e de

na festa, já que a divulgação estava na capa do

tem e-mail?”, com um semblante de insatisfação.

cantar. Comecei a pensar mais alto, acreditar mais

principal jornal da cidade. Como sou um cara bem-

Ninguém respondeu. Apenas eu não tinha e-mail.

no meu potencial e voltei para a comunidade de

-educado, o recepcionei. Pensei em reivindicar uma

Ela falou “quem não tem e-mail vai ficar prejudi-

cabeça erguida. Muito mais feliz.

educação de maior qualidade, mais cultura dentro

cado, pois eu passo matérias complementares das

Iniciamos a organização de oficinas de hip-

aulas presenciais, via internet. Portanto, o contato

-hop na quebrada. Isso foi fortalecendo a cena.

das comunidades, mais políticas públicas etc. Mas

é necessário”. Ao final da aula, fui diretamente ao

Até que um dia recebi o convite para realizar uma

Quem pensa que a juventude da periferia usa

laboratório de tecnologia. Pedi encarecidamente

palestra na escola, além de entrevistas para um

canudo apenas para cheirar cocaína, engana-se.

para o instrutor me auxiliar. Acho que ele ficou

programa de rádio e para o jornal. A liderança co-

Agora nosso canudo é outro, pensei comigo, fiz

com pena de mim e ajudou. Isso tudo demorou

munitária cedia espaços para cantarmos nas festas

uma retrospectiva na minha cabeça, como se fos-

três minutos. Quebramos uma muralha. O primeiro

de Natal, Páscoa e Dia das Crianças. No começo, o

se uma fita rebobinando. Esta história me incen-

obstáculo de vários que viriam pela frente. Ano-

espaço no palco era de três minutos e, logo depois,

tivou a continuar acreditando no rap dentro das

tei senha, login (aprendi o que isso significava) e

estávamos ajudando a organizar a festa. Tornamo-

escolas. Se possível, aproximar mais das escolas e

pensei que na próxima aula poderia gritar bem alto

-nos também líderes comunitários, além de educa-

comunidades, gerando um empoderamento e res-

para a professora, quando eu fosse questionado

dores sociais, adolescentes e rappers.

significando identidades na busca de uma geração

o dia era de festa.

sobre o e-mail. Ledo engano. Na aula seguinte, ela

Troquei de emprego, fui parar em uma mul-

protagonista.

já estava separando os alunos para um trabalho

tinacional, mudei de cargo, o rap comigo, eu com

Enfim, esse foi, mais ou menos, o caminho

em grupo. Apresentação em power point. Eu não

o rap. Porém, a música ainda não gerava renda,

trilhado até chegar ao mestrado. É também em

sabia mexer no power point e resolvi fazer sozinho.

apenas muita autoestima. Eu estava estudando,

função desse caminho que tomei, como foco de

Peguei a apostila, entendi o trabalho, mas não iria

lendo livros e rimando cada vez mais. Prestes a me

pesquisa, o hip-hop. E, sendo educador social,

conseguir de jeito nenhum produzir os slides. En-

formar, em meados de 2010, fui pioneiro ao de-

interessei-me pelo cruzamento com a temática da

tão eu fiz o que eu sabia realmente fazer: uma letra

senvolver a primeira monografia sobre hip-hop na

educação. Agora, apresento sumariamente esses

de rap baseada na matéria. Levei a base (batida) de

Universidade de Caxias do Sul (UCS). Um semestre

dois campos: hip-hop e educação.

um cd e escrevi a letra em uma folha de caderno.

antes da formatura, um moleque que participava

Meus colegas de aula dando show nas apresen-

de uma atividade de hip-hop que eu coordenava

MINHA PESQUISA

tações, dicções e posturas corporais. Eu não tinha

perguntou o que era se “formar”. Ele não sabia. Ali-

Em Hip Hop: da rua para a escola (SOUZA, FIALHO

condições para fazer sequer parecido.

ás, ninguém sabia.

E ARALDI, 2005), as autoras refletem a educação

Quando chegou minha vez, contive o medo

Fiquei com uma pulga atrás da orelha até que

musical na contemporaneidade, apresentando

de falar em público e disse que iria cantar um rap.

surgiu a ideia de fazer uma festa de formatura e

propostas práticas com o hip hop para a sala de

Ninguém sabia muito bem o que era. Mas fica-

convidar todos os jovens das favelas da zona oes-

aula. Outra referência que contribuiu na cons-

ram curiosos. Coloquei o cd no radinho e a base

te da cidade. Em parceria com a empresa que eu

trução do pensamento acerca desse movimento


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

61

foi organizada por Andrade (1999) no livro Rap

o aluno para o reconhecimento e proporcionando

para escola com a ideia de mudar um pouco o

e Educação, Rap É Educação. Essas duas obras

autoestima. Minha justificativa teórica para o tema

ambiente em que vive. Infelizmente, não é isso

retratam e auxiliam novas didáticas para serem

tem o sentido e a proposta alinhados com a refe-

que acontece.

utilizadas com o hip-hop.

rência teórica de Paulo Freire (1981).

Buscaremos agora compreender as práticas

A mudança da percepção da realidade pode dar-

musicais face aos novos processos de segrega-

O visual que os (as) jovens adotam, o

-se “antes” da transformação desta, se não se em-

ção urbana, pois sabemos que o hip-hop tem

modo como se expressam e utilizam seu

presta ao termo antes a significação de dimensão

uma importante representatividade para jovens

corpo, bem como o modo como falam,

estagnada do tempo, com que lhe pode conotar a

e adolescentes das periferias. A música fala o

demarca a identidade de quem pertence

consciência ingênua (FREIRE, 1981).

mesmo dialeto desses adolescentes, dentro da própria escola. O hip-hop é a voz de quem não

ao movimento, construindo uma imagem e uma concepção do que significa

A ressignificação propriamente dita. Com-

tem voz. Abordar a importância de uma mudança

ser do hip-hop. O que foi possível ob-

preendendo o hip-hop como uma ferramenta de

no sistema educacional, hoje, é muito importante

servar é que essas marcas de mulher no

expressão, canalizando discussões sobre o coti-

para pensarmos num futuro mais democrático

movimento, refletindo, em sua maioria,

diano vivido pelos jovens da periferia. O mesmo

e igualitário. Desta forma, a educação amarra-

no comportamento e no trabalho desen-

quadro escolar isolado na frente de uma sala,

da às artes e à cidadania pode e deve ter espaço

volvido pelas jovens participantes pres-

aliás, o mesmo quadro do tempo em que minha

na escola. Sendo assim, é possível acreditar que

crevendo padrões aceitáveis de imagens

avó era aluna. O quadro não é o problema, mas o

o hip-hop poderá contribuir para o aprendizado

e ações (ANDRADE, 1999).

que se faz com o quadro ainda continua sendo

educacional, além de ressignificar a identidade do

o mesmo que se fazia no tempo da minha avó.

jovem pobre e despertá-lo para o engajamento

O movimento poderá levar para dentro da sala

As mesmas ferramentas educacionais e, por ve-

no combate às violações aos direitos humanos.

de aula manifestações importantes para a produ-

zes, didáticas. O mesmo prédio, a mesma goteira.

ção de novos saberes e novos conceitos, além de

O jovem sai da sua comunidade com inúmeros

formar uma geração mais participativa, chamando

problemas sociais e de falta de infraestrutura, vai

Chuiquinho Divilas Foto: Vanessa Falcão


SEGUNDO SEMESTRE

LITERATURA

2017

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POR TELMA SCHERER ESCRITORA E POETA. CIRCULOU EM 2017 NO CIRCUITO DE ORALIDADES DO PROJETO NACIONAL DO SESC ARTE DA PALAVRA

A VIGÍLIA DO POEMA E O SONO DE CRONOS NA MINHA BARRIGA


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

63

1 “Entre o vento e o peso da página” é o título da pesquisa, realizada como estágio de pós-doc dentro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC, universidade onde atualmente trabalho como professora substituta na área de pintura. A pesquisa é supervisionada pela artista e professora Raquel Stolf e propõe um processo artístico calcado nos contágios, diferenças e assimilações entre a palavra-vento e o livro-fardo.

Em julho desse ano, estive em Pernambuco em

à vida, mas também para que, nesse intervalo,

sentação com maior aderência e envolvimento do

função do circuito de oralidades do projeto Arte

nesse lapso, pudesse ainda renascer outra devo-

público teve na plateia principalmente jovens. Os

da Palavra, apresentando o trabalho “O sono de

ração: a dos antropófagos cantantes e dançan-

textos mais experimentais e não lineares foram os

Cronos na minha barriga”, uma performance de

tes louvados por Oswald de Andrade e até hoje

mais comentados por eles, que fizeram questão de

poesia falada, construída a partir de experimen-

vivos nas selvas verdes que ainda nos restam e

tocar, ao final, nos objetos cênicos e sonoros utili-

tações literárias em campo expandido. Entre es-

nas selvas de pedra das nossas comunidades, re-

zados durante a performance.

tas, um conjunto de vídeos exibidos como aber-

sistentes pela força da sua estratégia poética, de

Esse tema da poesia falada vem me acom-

tura do trabalho ao vivo; e também o exercício

sua presença corporal. Então Cronos, esse deus

panhando aqui e ali desde que eu tinha a idade

de construção poética em ‘outras’ linguagens

greco-latino e masculino, poderia dormir “na mi-

do público adolescente, que foi quando come-

artísticas, como a pintura. Foi principalmente a

nha barriga”, aludindo, no trabalho ao vivo, ao

cei a me aventurar a praticá-la. Realizei diversas

partir dessas experimentações que o conceito da

corpo feminino que gera a vida e à poesia como

leituras e, no doutorado, abordei a relação entre

performance se formou e que alguns dos textos

“mãe das Artes / & das armas em geral” (Tor-

vocalizados foram escritos e rearranjados para

quato Neto). Uma reflexão sobre a voz poética

serem apresentados à viva voz.

acabaria, então, por trazer consigo um questio-

Encarei como um desafio e também como

namento sobre o que é propriamente o tempo,

uma responsabilidade falar poesia em um Estado

se ele é neutro ou se traz consigo determinações

que é o ventre de tantas manifestações culturais

das especificidades culturais, de raça, classe, gê-

importantes, especialmente na área das poéticas

nero e ancestralidade.

orais, levando um trabalho cuja forma é diver-

Em duas das quatro apresentações (que

sa das práticas de matriz folclórica, apesar de

aconteceram em Triunfo, Serra Talhada e Petro-

partilhar com estas muitos elementos comuns.

lina), esses temas foram levantados pelo próprio

“O sono de Cronos na minha barriga” também

público que, além de inferir elementos pouco

trazia consigo as marcas de uma pesquisa sobre

explícitos no trabalho, formulando uma série de

modos de escrita e de escuta empreendida no

perguntas, também me brindou com suas leitu-

âmbito das artes visuais , a qual o contaminou

ras e sugestões, motivando-me a repensar o meu

com a vontade de colocar em contato a palavra-

trabalho através desse desvio proporcionado pela

-vento, leve e passageira, plena de sonoridades,

escuta ativa do outro. O resultado dessa experiên-

e o livro-fardo, ou seja, a tradição erudita, que

cia foi a confirmação de que a diferença da forma

apesar de, de fato, pesar em nossos hábitos li-

final, o contraste dos hábitos de fala, dos sotaques

terários com a densidade de um cânone muitas

e dos modos de apresentação da poesia, no fundo,

vezes questionável, pode ter também a leveza de

jogam mais a favor do que contra a identificação

uma biblioteca infinita, plena de novas leituras

do público com a performance literária. A palavra-

e descobertas. Logo pensei que Cronos, o deus

-vento da oralidade, não importa se apresentada

do tempo, devorador dos seus próprios filhos,

nas roupagens do livro-fardo ou da tradição fol-

pudesse pegar no sono, um sono pesado, não

clórica, tem a capacidade de unir escutas e promo-

apenas para que Zeus restituísse os seus irmãos

ver pontes também entre gerações, já que a apre-

[1]

ALALIA Vídeo, 2014, 46 segundos Sinopse: O livro como peso e a repetição como programa. NO INÍCIO ERA EDITADO Vídeo, 2014, 26 segundos Concepção, captação e edição: Telma Scherer Sinopse: No início, era o Verbo (sabemos desde João), o sopro da vida insuflado em nós. Mas mesmo este começo não é isento de lapsos. O vídeo procura tratar daquilo que escapa entre um instante e o outro. ADD AD INFINITUM Vídeo, 2014, 3 minutos e 12 segundos Concepção, captação e edição: Telma Scherer Sinopse: A adição de infinitos a uma jornada definida pode às vezes causar certo enjoo; no entanto, não deixamos de recorrer aos objetos transcendentes sempre que o presente é pouco.


LITERATURA

SEGUNDO SEMESTRE

2017

64

2 Fotografia realizada em baixa velocidade, no escuro, na qual se “pinta” com a luz.

poesia e performance a partir da obra de Ricardo

performance quanto pela da publicação. Depois

consequente morte de Iracema. O fidalgo mame-

Aleixo. Aprendi que as hibridizações são próprias

da Água (Nave, 2014) já foi realizado em para-

luco está misturado com a própria fundação da

da poesia, desde suas origens; que a expressão

lelo com esse estudo e contém um conjunto de

brasilidade. Desse fascículo, saíram duas páginas

“literatura oral” comporta algo de redundante

fotopoemas realizados em light painting . A per-

que acompanham o vídeo que deu origem à per-

(Walter Ong), e que a própria leitura de poesia,

formance “O sono de Cronos na minha barriga”,

formance “O sono de Cronos na minha barriga”.

ainda que silenciosa, contém uma experiência

posterior a esses processos, também é, de certa

Nele, utilizo também o volume da enciclopé-

que é da ordem da performance (Paul Zumthor).

forma, uma continuidade deles. São vocalizados

dia. “Cronos” é uma performance orientada para

A ideia de uma poesia “em campo ampliado” (Ro-

poemas desses três livros, além de um conjunto

vídeo, de pouco mais de três minutos, em tempo-

salind Krauss), por sua vez, vem acompanhando

de textos cujo processo de escrita é também de-

-real, sem edição, na qual eu rasgo e literalmente

tentativas de compreensão da poesia contem-

sentranhado das experiências de pesquisa sobre a

como as suas páginas. Esse trabalho foi inspirado

porânea, na qual a intermidialidade é um dado

poesia no campo expandido. A própria ideia mo-

em uma performance de Paulo Herkenhoff, de

recorrente. A performance poética ao vivo com-

triz do trabalho surgiu de experimentações desse

1975, na qual ele realiza a mesma ação com pági-

porta um grande número de camadas fruídas ao

tipo, incluindo apropriação de impressos.

nas de jornal sobre a censura no Brasil, em plena

[2]

mesmo tempo (texturas vocais, uso de imagens,

Foi com o objetivo de angariar material para

ditadura. Assim, repensei essa ação para os dias

presença corporal, objetos cênicos e sonoros, de-

uma série de pinturas-poema de 2013 e 2014

de hoje, abordando também a ausência de uma

terminações do espaço da ação, interação etc.),

que comecei a coletar, nos balaios, um conjunto

deglutição efetiva daquele manifesto oswaldiano,

o que faz com que esse evento não seja apenas

de publicações “decaídas”, ou seja, que não têm

ou seja, a falta de uma problematização das prá-

um modo mais atrativo de apresentação do texto

valor comercial quase nenhum, e de cujas pági-

ticas aqui consideradas eruditas, além da preca-

escrito, mas também um trabalho artístico que

nas eu me apropriava para criar situações que,

riedade das instituições literárias em nosso país.

tem consistência própria, sem perder os laços

nas telas, pudessem desviar e redimensionar os

A enciclopédia fala do que está e do que não está:

com o que há de propriamente literário em seu

sentidos de origem dessas publicações. São livros

é tanto o livro-fardo de origem europeia que ti-

acontecimento.

que se tornaram obsoletos por algum motivo: di-

vemos que deglutir para criar uma cultura letrada

Os três livros de poesia que publiquei fo-

dáticos ultrapassados, romances obscuros, fascí-

no país quanto a ausência desse objetivo efetiva-

ram antecipados por performances, de modo

culos, volumes soltos de enciclopédia. Encontrei

mente cumprido, dado o analfabetismo funcional

que esta se configurou, no decorrer dos anos,

preciosidades em um baú de R$1,00 de um sebo.

e as baixas médias de livros lidos pelos brasilei-

numa espécie de modo de escrita, para mim.

Foram produzidas cinco telas com a participação

ros. Ela fala também de um outro tempo, no qual

Nas múltiplas oficinas que ministrei, muitas de-

desses materiais, entre grossas camadas de tinta,

havia a pretensão de reunirmos em uma mesma

las para o Sesc/RS e o Sesc/SC, percebi que esse

objetos e formas acumuladas umas sobre as ou-

publicação todos os assuntos sobre os quais se

método criativo pode funcionar como um facili-

tras no suporte.

tinha curiosidade. Em tempos de Wikipédia, de

tador da comprensão de elementos próprios do

Entre os impressos que coletei, chamou a mi-

Google e de fragmentação da realidade e dos sa-

poema, inclusive no seu aspecto técnico, como

nha atenção uma série de fascículos que abordam

beres, não surpreende que esses lindos volumes

o trato rítmico da linguagem. Em Desconjunto

a história brasileira, seus “heróis” e as disputas do

ilustrados tenham parado nos balaios de R$1,00.

(IEL, 2002) e Rumor da Casa (7 Letras, 2008), en-

período colonial, com o título de “Grandes Per-

A devoração de um nosso “lado doutor, lado

tretanto, apesar do cuidado e do apuro dos pro-

sonagens da Nossa História”, além de um grosso

citações” pode continuar sendo uma estratégia

fissionais envolvidos no design gráfico, senti um

tomo da Enciclopédia Britânica. O fascículo “Je-

de resistência às novas dominações impostas

certo descontentamento com a materialização do

rônimo de Albuquerque” trazia a trajetória do pa-

pelo retorno do recalcado que hoje vivemos, e

objeto livro, que eu sentia não traduzir de modo

triarca mameluco, o primeiro a ganhar o título de

também à compulsão bacharelesca que fundou

eficiente esse conjunto de dados presenciais que,

“cavaleiro fidalgo”, que me remeteu diretamente

muitas de nossas instituições culturais. Estratégia

nas performances, compõe uma complexidade de

a Oswald e seu Manifesto Antropófago. Os Albu-

que inclui a presença do corpo e a consciência

camadas. A falta que eu sentia podia ter relação

querques foram uma família fundadora, comen-

de suas potencialidades. “O sono de Cronos na

com a formulação do poema por escrito e com

tada por Paulo Prado no Retrato do Brasil. José

minha barriga” é ainda a reivindicação da parti-

elementos pré-determinados do campo livresco

de Alencar, no final de Iracema, anuncia a vinda

cipação do feminino na construção de um tempo

(o livro-fardo). A partir de um determinado ponto,

do Albuquerque que seria ajudado por Martim e

de poesia, que é sempre tempo de vigília, ou de

senti a vontade de estudar o campo das artes vi-

Poti na expulsão dos invasores não portugueses

despertar.

suais, relacionado com a poesia tanto pela via da

daquelas terras, após o nascimento de Moacir e a


LITERATURA LEITURA

SEGUNDO SEGUNDO SEMESTRE SEMESTRE

2017 2017

65

O LIVRO DO AMOR – VOL. 1 E 2

RUÍNA Y LEVEZA Júlia Dantas

MIM, MANUAL DE INTERAÇÃO MONSTRUOSA

OS SONHOS DE EINSTEIN (1993)

Regina Navarro Lins Best Seller

Não Editora

Milene Barazzetti e Christina Dias

Companhia das Letras

Alan Lightman

Selo da Kombina

Nesses tempos bicudos, é

A euforia dos três segundos em que

MIM – uma história de arrepiar

Em tempos cada vez mais velozes, é

importante refletir sobre as

se decide pelo apaixonamento ou

os cabelos e deixar até gato

um convite ao prazer real da leitura

relações humanas e, nestes dois

passar ao largo. É com essas palavras

escaldado. O MIM – Manual

e à capacidade de nos transformar

volumes, Regina Navarro Lins nos

que a autora define o momento de

de Interação Monstruosa é

e estimular a imaginação. É dessa

dá muito material para entender

se apaixonar ou não por alguém.

um dicionário de monstros

forma que percebo esse livro que

como a humanidade ama (ou não),

Pego-as emprestadas para explicar

misturado com um mostruário

fala sobre diferentes tipos de

dos primórdios até os dias de hoje.

a relação que se estabelece com

de sustos e uma galeria de

“Tempo” e “Mundos” que passam a

O livro mostra como a religião, a

Ruína y Leveza. A euforia está

medos. Milene Barazzetti,

existir a partir dele. Através de 30

política, o poder e o medo vêm

posta desde as páginas iniciais,

escritora e contadora de

histórias, conhecemos um mundo

determinando os relacionamentos

quando começamos a acompanhar

histórias, e a escritora Christina

onde o tempo congela e descongela

através da história, numa estreita

a trajetória da gaúcha Sara – não

Dias construíram esse livro a

ou, então, fica completamente

relação com a questão da mulher

apenas a que ela traça sobre solo

quatro mãos e muitos sustos.

parado. Imaginem um mundo onde

e o seu papel nas diversas

peruano e boliviano, mas a que

Cada página, uma letra; cada

ninguém é feliz? Como perceber

sociedades. Leitura fácil, agradável

começa a se desenhar dentro dela.

letra, um susto; cada susto, uma

um mundo onde as pessoas

e direta, mas o difícil vem depois:

Mais do que aventuras de viagem, a

gargalhada, com ilustrações

vivem apenas um dia? Um livro

é impossível não repensar nossa

obra narra o momento em que a vida

divertidíssimas da Yris Tanaka.

provocador e sempre surpreendente,

vida amorosa depois dessa leitura.

se mostra insatisfatória e é preciso

Tem até um a bruxa distraída

como quando o autor descreve

redescobrir, redefinir o sentido do que

que solta pum e personagens

o mundo em que todos sabem

fazemos, pensamos, amamos. Entre

de lendas e mitos do folclore

quando vai acabar “...um dia antes

albergues e ruas de cidades arenosas,

brasileiro, como o Saci e a

do fim, as ruas explodem em

a protagonista conhece pessoas,

lagartixa gigante Teiniaguá.

gargalhadas. Vizinhos que nunca se

histórias e culturas e reconhece

falaram cumprimentam-se como

suas raízes latino-americanas, em

amigos, tiram as roupas e nadam

uma narrativa pela qual é impossível

nas fontes...” O que faríamos se essa

passar ao largo: é inevitável

informação estivesse realmente

apaixonar-se.

disponível?

DEDÉ RIBEIRO

MÁRCIA SCHULER

ALICE URBIM

LEANDRO SELISTER

PRODUTORA, DRAMATURGA E COLAGISTA

JORNALISTA

GERENTE DE PROGRAMAÇÃO DA RBS TV

ARTISTA VISUAL





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