Revista Arte Sesc - 2º semestre 2016

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segundo sEMESTRE

2016 ISSN 1984-056X

música, experiência e oportunidades CADERNO DE TEATRO: O PIONEIRISMO DA BALANGANDANÇA CIA. CERVANTES E A MAIOR OBRA DA LITERATURA MUNDIAL




08

38

10

difusão cultural

artes cênicas

música

08 Ações do programa Arte Sesc democratizam

10 O papel do mediador no acontecimento

38 Integrante da Orquestra Filarmônica de

o acesso às artes, incentivando a formação

teatral

Berlim, o oboísta Christoph Hartmann será

de público e o desenvolvimento da cadeia

professor no 7º Festival Internacional Sesc de 17 A arte circense na contemporaneidade

cultural

Música, no mês de janeiro, em Pelotas, pelo quarto ano consecutivo

20 Reflexões acerca da crítica de dança 40 O impacto do Festival Internacional Sesc de 23 O mundo-corpo e o corpo-mundo de Dudude, artista de dança

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

A dança contemporânea para crianças da

registro da canção Pelo Telefone na Biblioteca

Balangandança Cia.

Nacional em 27 de novembro de 1916

DIRETORIA Luiz Carlos Bohn

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento www.sesc-rs.com.br

Gerente de Cultura

coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Cinema

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

sociais e de escolas de música 42 O samba completa 100 anos; data se refere ao

25 CADERNO DE TEATRO

Música para jovens estudantes de projetos

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Canoas  Av. Guilherme Schell, 5340  51 3463.6756 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403

Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga  R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


45

54

62

AUDIOVISUAL

ARTES VISUAIS

literatura

45 Projeto Gema, idealizado por Lucas Luz,

54 4º Rio Pardo em Foto realiza mostras

62 Artigo “Miguel de Cervantes e Dom Quixote,

apresenta 10 mestres da cultura popular 48 Cineastas Gilka Vargas e Iara Noemi lançam

sobre o tema Identidades, fazendo um

duas vidas em reflexo”, de Michele Savaris e

recorte da diversidade cultural e étnica

Tiago Pedruzzi, revela detalhes da biografia

do povo brasileiro

do autor da obra literária que é considerada a maior de todos os tempos, cuja morte

um olhar humanista sobre a obra de Akira 56 Guarani mbyá Vherá Poty publica

Kurosawa

completa 400 anos

livro de fotografias e faz exposição, ao lado do fotógrafo Danilo Christidis,

52 Com sessões destinadas a crianças e adultos, o festival Cine Caramelo proporciona

apresentando a cultura de seu povo a

momentos de fruição artístico-cultural de

partir de registros do cotidiano

67 Guto Leite analisa o alvoroço em torno do Nobel de Literatura para Bob Dylan 69 Leitura

qualidade e reflexão sobre temas da infância 58 Exposição encerra as comemorações

e da juventude

do Biênio Simoniano

BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Balneário Pinhal  Av. General Osório, 1030  51 3682-3041 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  R. Luiz Marafon, 328  54 3242.3437 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  Av. Sete de Setembro, 1281  55 3423.5403 Santiago  Av. Getúlio Vargas, 1079  55 3251.9373 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos  Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria  R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

execução e produção editorial

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51 3284.2000 www.pubblicato.com.br  51 3013.1330  POA/RS

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Diretora de Criação e Atendimento

sescrs

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Sesc_RS

Vitor Mesquita

Greice Zenker

Revisão de Texto

SescRS CADERNO DE TEATRO: O PIONEIRISMO DA BALANGANDANÇA CIA.

Ideograf

Impressão de 1.500 exemplares

sescrs CAPA

Flávio Neves

CERVANTES E A MAIOR OBRA DA LITERATURA MUNDIAL


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Imagem da mostra Vestígios 4º Rio Pardo em Foto Foto: Jô Nunes

Cultura parA refletir e multiplicar Encerrando 2016 e já de olho no novo ano que se aproxima, conseguimos realizar, mesmo com as adversidades político-econômicas, nossos projetos culturais com maestria. Falando em maestria, estamos nos preparando para o 7º Festival Internacional de Música, que acontece neste próximo janeiro, conduzido por maestros, músicos, estudantes e corpo técnico do Sesc/RS. Um festival de música de concerto que chega a diversos recantos da cidade de Pelotas, levando toda sua sonoridade também a um público que, muitas vezes, não tem acesso à cultura, como integrantes de projetos sociais, pacientes de hospitais públicos, moradores da zona rural e asilos. Há muitas formas de tocar as pessoas com a música, independente do estilo. Do clássico ao popular, o ritmo nos guia por lembranças até o momento atual. Por isso, como não falar de samba em seu país natal? Em 2016 comemoraram-se os 100 anos desse gênero que percorre as veias da nossa cultura, desde o primeiro registro do samba carnavalesco Pelo Telefone. Quem nunca se pegou tamborilando por aí? E nesta rica história brasileira, é preciso lembrar o Biênio Simoniano, que encerra o ano com a exposição Simões Lopes Neto – Onde não chega o olhar prossegue o pensamento. A mostra, apresentada em Porto Alegre, traz uma ampla visão da trajetória do escritor gaúcho, com registros de seu legado cívico, jornalístico, dramatúrgico, literário e pedagógico. Nas próximas páginas é possível conferir mais sobre a exposição, além de outros conteúdos sobre produção audiovisual e literatura. Em 2017, nossos esforços seguirão a favor da disseminação da cultura por toda parte, da Capital aos confins do Rio Grande do Sul. Boa leitura!

Luiz Carlos Bohn

Luiz Tadeu Piva

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Diretor Regional Sesc/RS


segundo SEMESTRE

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DIFUSÃO CULTURAL

segundo SEMESTRE

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1. Dados obtidos até outubro de 2016.

A democratização da cultura como estratégia de desenvolvimento cidadão Com uma programação[1] sistemática de artes cênicas, música, AUDIOVISUAL, artes visuais e literatura, o Arte Sesc chegou a todas as regiões do Estado do Rio Grande do Sul Reconhecida como uma das principais institui-

de objetos, de bonecos, circo e dança, faz do

abertos à comunidade. Entre outros projetos já

ções promotoras de cultura do Estado, o Sesc/RS

projeto Rio Grande do Palco uma das prin-

consolidados na área estão o Concertos Ban-

contribui para a formação de cidadãos mais

cipais ações culturais realizadas no Estado.

co Sesc de Partituras, que visa o estímulo à

conscientes para as manifestações artísticas e

Além de facilitar o acesso a produções com

formação de grupos de música de câmara, e

também fomenta o desenvolvimento da cadeia

referencial entre as artes cênicas, promove a

o Sonora Brasil – formação de ouvintes musi-

cultural, gerando oportunidades para artistas

troca de experiências entre os grupos e com

cais, com uma programação identificada com

e demais pessoas envolvidas. A programação

o público. Com uma programação de teatro

o desenvolvimento histórico da música nacio-

sistemática realizada de janeiro a dezembro

infantil dirigida a estudantes da rede pública

nal. O tema apresentado em 2016 foi Cantos

inclui festivais de teatro e de música e outros

de ensino, o projeto Teatro a Mil fortalece o

de Trabalho. Um dos maiores eventos da músi-

projetos especiais, circulação de espetáculos e

objetivo de formação de plateia em diversos

ca instrumental e de concerto da América La-

apresentações de grupos locais, a ações de lite-

municípios. O Circuito Palco Giratório leva a

tina, o Festival Internacional Sesc de Música,

ratura, sessões de cinema e exposições de artes

diversas cidades do interior espetáculos que

em sua sexta edição, trouxe a Pelotas, no mês

visuais. As atividades, definidas a partir de uma

participam do Festival Palco Giratório e que

de janeiro, professores que são expoentes no

curadoria atenta ao contexto atual das artes,

são referência nacional.

cenário mundial e contou com a participação

contemplam o público de todas as idades, prio-

de alunos de todo o continente.

rizando sempre a fruição de bens culturais que

A pluralidade da música brasileira e também

não estão nos espaços tradicionais, de caráter

internacional circula pelos palcos do Sesc e de

Nas artes visuais, o destaque foi a consolida-

mais comercial.

instituições parceiras por todo o Rio Grande

ção do Rio Pardo em Foto no calendário cul-

do Sul, por meio do projeto Sesc Música. A

tural do Rio Grande do Sul. A partir do tema

A programação consistente e sistemática de

difusão ocorre em formato de circuitos, com

Identidades, as exposições da sexta edição

teatro adulto e infantil, teatro de rua, teatro

apresentações únicas ou em grandes eventos

espalhadas pela cidade gaúcha apresentaram


DIFUSÃO CULTURAL

segundo SEMESTRE

2016

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CURSOS, MÚSICA OFICINAS E 995 Espetáculos PALESTRAS

1.845 at i v ida des for mat i vas

CIRCO, DANÇA e TEATRO 1.422 SESSÕES

MOSTRAS LITERÁRIAS E DE ARTES VISUAIS 3.397 Mostras a diversidade cultural e étnica formadora do povo brasileiro. O Cine Sesc, projeto que privilegia a formação de público e o desenvolvimento artístico e cultural, promove a exibição de filmes em praças e em salas, a realização de mostras, como a de Akira Kurosawa, Ópera na Tela e Ciclo de Cinema Infantil, além de debates e oficinas de audiovisual. Com sessões gratuitas, o projeto é destinado ao circuito alternativo de exibição.

AUDIOVISUAL 1.446 Sessões

Com destaque para as atividades do projeto Sesc

Atividades programadas para 2017 Janeiro 7º Festival Internacional Sesc de Música, Pelotas Abril 7ª Mostra de Teatro de Passo Fundo 5º Abril Cultural, Farroupilha Maio 12º Festival Palco Giratório Sesc, Porto Alegre 11ª Aldeia Sesc Capilé, São Leopoldo Junho 7ª Aldeia Sesc Imembuy, Santa Maria Agosto 4ª Mostra Sonora Brasil, Porto Alegre 3ª Aldeia Sesc Ivy Pitã, Santa Rosa 2º Agosto Cultural, Erechim

Mais Leitura, destinado a alunos da rede pública, mostras didáticas e feiras de livros, o Sesc deu continuidade às ações de incentivo à leitura, em 2016. Outras atividades são realizadas, principalmente na rede de bibliotecas com a mediação de escritores, professores e contadores de histórias, sempre com o propósito de despertar o prazer pela leitura e contribuir com o acesso à diversidade de gêneros literários.

LITERATURA 1.739 Ações Literárias 44 Feiras de Livros

Setembro 3º Santa Maria Sesc Circo, Santa Maria 5º Rio Pardo em Foto, Rio Pardo Setembro 4ª Mostra de Arte Sesc para Crianças, Porto Alegre Novembro 5ª Aldeia Sesc Caxias do Sul


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

POR VIVIANE JUGUERO E JOÃO PEDRO ALCANTARA GIL

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Viviane Juguero é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAC-UFRGS); artista, coordenadora-geral, produtora e professora no Bando de Brincantes (www.bandodebrincantes.com.br). João Pedro Alcantara Gil é professor convidado do PPGAC-UFRGS.

ESPETÁCULO E PROCESSOS DE APRENDIZAGEM:

O PAPEL DO MEDIADOR QUANDO A ESCOLA VAI AO TEATRO

Profissionais de teatro comprometidos com o desenvolvimento da criança buscam encontrar encenações que dialoguem com este público a partir de sua reação Foto: Anderson Balhero

A educação estética das crianças depende de suas

discursos espetaculares que respeitem a criança,

oportunidades de fruição artística. O professor tem

sem subestimá-la, oportunizando desafios senso-

papel determinante como mediador no aconte-

riais, perceptivos, afetivos e cognitivos. É preciso

cimento teatral, desde a escolha das peças, até o

que haja embasamento artístico e pedagógico

acompanhamento das obras durante apresenta-

para que as vivências teatrais possam contribuir,

ções. O envolvimento real do adulto com o acon-

profundamente, no processo educativo de sujeitos

tecimento teatral é fundamental na percepção que

autônomos, críticos e éticos.

a criança terá dessa vivência. A reincidente falta de

No teatro para crianças contemporâneo, em

critérios na escolha de espetáculos para crianças

caráter profissional, existem muitas linguagens

é resultado de uma educação falha, no que con-

e propostas estéticas diferenciadas em cena. Por

cerne ao desenvolvimento da sensibilidade e da

um lado, muitos artistas pesquisam distintas pos-

avaliação crítica. Um artista adulto é avaliado por

sibilidades de encenação, valorizando a ludicidade

um espectador adulto, resultando no fato de que,

e buscando uma forma de comunicação efetiva

muitas vezes, peças cheias de discursos moralizan-

com a criança, sem subestimá-la; por outro lado,

tes ou de conteúdos didáticos apresentados em

há herdeiros do “teatro escolar”, com montagens

textos abstratos podem agradar pais e professores,

didatizantes. Reproduzem formatos de propos-

sem dialogar, de fato, com o público infantil. O te-

tas teatrais nas quais a criança deve aprender

atro para crianças exige conhecimentos específi-

as normas sociais estabelecidas para obedecer a

cos sobre a lógica lúdica do pensamento infantil,

elas, sem que tenha o incentivo de desenvolver o

os quais são fundamentais para a construção de

pensamento crítico e a autonomia criativa para


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

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buscar suas próprias conclusões. Segundo Gil,

de mais nada, reproduzir o sistema social vigen-

seria certo ou errado se comportar ou pretender

na década de 1970, nas escolas, “o tecnicismo se

te e não se interessa em salientar o potencial de

passar algum conhecimento específico a partir

apropria do teatro para aplicar métodos de ensi-

questionamento presente nas manifestações ar-

do discurso. No entanto, quando os artistas es-

no eficientes e produtivos” (1999, p. 123).

tísticas” (1991, p. 40). Em sua análise de textos

colhem uma maneira de falar, de se mover, vestir,

Na educação tecnicista, a criança é excluída

teatrais destinados à infância, a autora afirmou

cantar, utilizar a luz e o cenário, todos esses ele-

do processo criativo e passa a ser treinada para

que “o didatismo simplista acaba triunfando so-

mentos trazem consigo inúmeras significações.

estar condicionada a ver o mundo a partir de

bre uma visão da arte teatral enquanto possibili-

Tudo o que está em cena comunica e precisa ser

verdades pré-estabelecidas, sem ser convidada a

dade específica de conhecimento” (1991, p. 101).

criado com arte e responsabilidade. Infelizmente,

repensar, a avaliar e a transformar. Assim, multi-

Por sua vez, Clarice Cohn alerta que “as crian-

em minha experiência como jurada de prêmios

plicam-se cenas teatrais com discursos e lições de

ças não apenas se submetem ao ensino, mesmo

infantis, constatei que há espetáculos definidos

moral em linguagens repletas de abstrações, em

em suas faces mais disciplinadoras e normatiza-

como “só pra divertir” que reforçam padrões de

uma forma de comunicação bastante alheia ao

doras, como criam, constantemente, sentidos e

comportamento e preconceitos disfarçados no

modo de pensar da criança.

atuam sobre o que vivenciam” (2009, p. 41). Des-

riso alienado, mas politicamente comprometido,

No pensamento infantil, fantasia e realidade

sa forma, é também, e prioritariamente, a partir

que ratifica verdades prontas do senso comum

convivem harmoniosamente, pois é por meio da

das reações das crianças, que os profissionais de

sem instigar a autonomia de pensamento para a

ludicidade que a criança encontra as bases para

teatro, comprometidos com o desenvolvimento e

análise crítica do público.

compreender o mundo. Maria Lúcia Pupo, a partir

o prazer infantis, buscam encontrar encenações

de entrevistas com autores e diretores que tra-

que dialoguem de fato com os pequenos.

Abordar ou não conteúdos educativos específicos não determina a qualidade artística da

balham com teatro para crianças, concluiu que,

Um espetáculo para crianças pode não ter

obra e é uma opção dos artistas. No entanto, ter

“segundo eles, a instituição escolar busca, antes

intenção de dar lições de moral, de ensinar como

uma concepção pedagógica não é uma opção. Di-


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

12

zer que um espetáculo não tem um caráter peda-

adulto demonstra dificuldade em entender o pro-

sesperançado de que não adianta tentar chegar a

gógico é uma inverdade. Quem afirma isso revela

cesso de pensamento infantil, a criança percebe

um entendimento comum” (2012, p. 171).

eximir-se de qualquer responsabilidade nesse

que não será valorizada se não repetir o discurso.

Bettelheim declara ainda que, onde há rea-

sentido. Como afirma o psicólogo Lev Vygotsky, “a

Ao ouvir a reprodução da decoreba, esse adulto

lismo excessivo, existe uma oposição às experi-

ausência de filosofia é em si mesma uma filosofia

se satisfaz, uma vez que acredita estar contri-

ências íntimas da criança. Segundo o autor, “as

bem definida” (2007, p. 89).

buindo na formação da criança. A esse respeito,

experiências e reações mais importantes da crian-

Assim, ainda que a peça não elucide um

Bettelheim afirma que a criança reconhece que o

ça pequena são em sua maior parte subconscien-

conteúdo específico, não cite informação precisa

adulto é quem detém o poder e se subjuga a ele,

tes e devem permanecer assim até que ela atinja

e não conte história determinada, sempre terá um

concordando, mesmo sem compreender, sendo

uma idade e compreensão mais maduras” (2012,

caráter pedagógico e educativo, independente de

forçada a buscar seu caminho sozinha. O autor

p. 27). Em relação ao teatro, é preciso que os

o criador ter a dignidade de assumir suas opções

afirma que “isso dá à criança um sentimento de-

artistas tenham conhecimento sobre o univer-

ou de estar ciente delas. Todos os signos que são colocados em cena serão apreendidos pela criança. Ao mesmo tempo, se ela percebe uma movimentação extracotidiana, passará a buscar essas possibilidades em seu corpo; se aprecia uma can-

so infantil para que possam fazer opções claras O universo infantil é lúdico e é por meio da simbologia da brincadeira que a criança descobre e constrói as diferentes significações Foto: Bruno Gomes e Kati Wichinieski

e realizar espetáculos que realmente dialoguem com a criança. A psicanalista Alba Flesler (2012) lembra que Freud situa o nascimento da criança como um lugar no Outro. Ou seja, é quando um

ção, será incentivada a cantar; se percebe que um

adulto reconhece que aquele ser merece cuidados

ator se transforma em diferentes personagens ou

especiais e que está em um momento diferencia-

figuras, poderá se identificar e buscar transfor-

do da vida que ele passa a ter o direito de exercer

mações em si mesma.

a infância e de ser criança.

O universo infantil é lúdico e é por meio da

O reconhecimento de que a criança atua a

simbologia da brincadeira que a criança se rela-

partir das relações que o sistema possibilita deixa

ciona com o mundo, descobrindo e construindo

evidente a responsabilidade da sociedade em re-

as diferentes significações. Segundo Vygotsky, “o

lação ao desenvolvimento infantil. Um ambiente

pensamento da criança aproxima-se mais de um

comunitário favorável possibilita que a criança

conjunto de atitudes ligadas ao mesmo tempo à

desenvolva sua individualidade, reconhecendo-

ação e à fantasia do que do pensamento adulto,

-se enquanto parte integrante e fundamental no

que é um pensamento consciente de si próprio”

movimento social. É com base nos distintos re-

(2007, p. 243). Realizando uma minuciosa análi-

ferenciais culturais que a criança tem acesso que

se dos diversos estágios de desenvolvimento do

ela constrói a sua atuação no mundo. Por meio

pensamento, o autor conclui que, somente na

desses referenciais, as crianças passam a ser pro-

adolescência, o ser humano passa a pensar por

dutoras de cultura, elaborando sentidos, valores e

meio de conceitos. Assim, somente nesse perío-

percepções. Como diz Cohn, “elas não ‘ganham’ ou

do as explicações abstratas podem ser realmente

‘herdam’ simplesmente uma posição no sistema

compreendidas. Vygotsky explana que crianças e

de relações sociais e de parentesco, mas atuam na

adultos usam as mesmas palavras para se refe-

criação dessas relações” (2009, p. 30). A partir do

rirem aos mesmos objetos. No entanto, o autor

exposto, evidencia-se a necessidade de qualifica-

alerta que essas palavras “referem o mesmo cír-

ção estética e pedagógica dos adultos que, respon-

culo de fenômenos. Contudo, não correspondem

sáveis pelas crianças, atuam como mediadores de

no plano do sentido” (2007, p. 188).

suas relações com os espetáculos teatrais.

Dessa forma, a criança está apta a decorar

Já tive a oportunidade de assistir a peças des-

palavras e discursos. Ela poderá repetir algumas

tinadas a todos os públicos, as quais se comunicam

frases que perceba que agradam os adultos ou

com as distintas faixas de idade, por meio da plura-

que evitem represálias. No entanto, a distância

lidade de percepções que seus recursos despertam,

entre repetir e compreender é enorme. Quando o

resultando em distintos níveis de comunicação. Na


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

13

maioria das vezes, os bons espetáculos realizados

claramente previsíveis, deixam sua mente tão

para o desenvolvimento da autonomia de pen-

para crianças, encantam pessoas de todas as ida-

ocupada em atender comandos, que não sobra

samento da criança e para o desenvolvimento de

des, podendo acontecer de um espetáculo voltado

espaço para a sensibilidade atuar. A autora enten-

sua expressividade pessoal? Nesse tema, é uma

ao público adulto agradar às crianças por seu co-

dia que quando a peça incita uma participação

questão importante perceber como os pais ou

lorido, sua movimentação e sua musicalidade. No

desenfreada, ocasiona um excitamento excessivo

educadores encaram o que seja participar ati-

entanto, é preciso saber avaliar se essa realidade

que impossibilita o exercício da compreensão e

vamente de um espetáculo. Uma criança em si-

está em cena ou somente no texto do programa.

da fruição. Esse “clima de histeria” impede o de-

lêncio ou se manifestando em alguns momentos

Constatei em minha experiência como es-

senvolvimento da “verdadeira comunicação poé-

em relação à cena demonstra um envolvimento

pectadora, e em declarações de outros artistas e

tica, linguagem dos sentidos, meios de cultura, de

profundo com o espetáculo. Sua mente, seus

espectadores, que diversas peças infantis apresen-

emoção e de prazer” (1986, p. 47).

sentidos, todas as suas possibilidades de per-

tam narrativas adultas, repletas de discursos abs-

Como pode esse tipo de trabalho contribuir

mento infantil. Como a criança não tem condições de entender o que acontece e reivindicar uma adequação, a avaliação do trabalho é feita por outros adultos que, em geral, privilegiam discursos mora-

cepção estão entregues àquele acontecimento, em plena atividade.

tratos e conceituais, sendo inacessíveis ao pensaA importância do envolvimento do adulto nos espetáculos para as crianças não está somente na escolha, mas também no acompanhamento da obra durante a apresentação Foto: Christian Benvenuti

A importância do envolvimento do adulto nos espetáculos para as crianças não está somente na escolha, mas também no acompanhamento da obra durante a apresentação. Infelizmente, em

lizantes e conteúdos didáticos impositivos. Mesmo

tantos anos de atividade teatral, muitas vezes vi a

em espetáculos não realistas, segundo Maria Lú-

mesma cena: um grupo de alunos assiste ao es-

cia Pupo, existem textos que utilizam referenciais

petáculo. Acontece algo em cena que entusiasma

adultos para criar efeitos cômicos, trazendo men-

a criança. Ela faz um comentário em voz alta, fala

sagens subliminares que não serão compreendidas

para o colega ao lado ou apenas se movimenta

pelo pensamento infantil. Para ela, a pretensão de

no lugar e é veementemente repreendida por um

atingir todas as idades “transforma seguidamente

adulto. Depois de deixar a criança subjugada em

os textos teatrais infantis em uma mensagem que

sua cadeira, o adulto volta a cochichar com o co-

contém alusões passíveis de serem decodificadas

lega ao lado, com sua consciência tranquila, pois,

apenas pelo indivíduo adulto” (PUPO, 1991, p. 36).

na sua visão, aquela atividade é para entreter as

Ao lado de espetáculos com mensagens e

crianças, e ele não precisa se envolver com isso.

narrativas inacessíveis, o mercado de Artes Cê-

Quantos equívocos! A repreensão de uma

nicas infantil, servindo a interesses econômicos,

manifestação genuína da criança faz com que ela

produz montagens que subestimam a criança e

compreenda que é errado se expressar. É neces-

reproduzem sempre as mesmas fórmulas, in-

sário refletir também sobre o excesso de silêncio

citando uma participação mecânica, na qual as

que muitas vezes é exigido das crianças. Nem gri-

crianças respondem a perguntas óbvias, geral-

taria, nem repressão são os meios adequados de a

mente incentivadas a gritar o tempo todo. Essa

criança usufruir de um espetáculo artístico. Nesse

questão é de tamanha relevância para a área, que

sentido, Maria Clara Machado alertava que é na-

está presente nas discussões de artistas, reitera-

tural que uma criança expresse as suas emoções

das vezes, há muitos anos. Sobre esse assunto,

em voz alta, conforme a cena proposta, como a

Maria Clara Machado, diretora e dramaturga que

perseguição de um bandido ou o perigo de um

desenvolveu, no Rio de Janeiro, o trabalho de dra-

herói. Para ela, “o que não deve ser permitido é

maturgia infantil mais significativo do Brasil, já

uma provocação gratuita dos atores para criar

declarava que o que deseja e exige “é sensibilida-

um ambiente de excitação” (1986, p. 47).

de e não histeria” (1986, p. 19).

A melhor maneira de professores e pais pro-

Machado defendia que os espetáculos que

moverem uma boa conduta das crianças é dar o

fazem com que a criança participe o tempo in-

exemplo. No entanto, o adulto que repreendeu a

teiro, respondendo a perguntas com respostas

criança, na descrição que fiz acima, não está pres-


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

14

tando atenção e faz ruídos que atrapalham a con-

no Grazioli expõe a necessidade de uma educa-

Nessas ocasiões, os trabalhos que reproduzem

centração dos demais. Essas atitudes interferem

ção estética que viabilize critérios de seleção dos

fórmulas fáceis têm diversas vantagens, pois as

na entrega da criança ao espetáculo e inviabilizam

produtos culturais para crianças, para que sejam

pessoas, em geral, e as crianças, em especial, têm

que ela perceba a real importância daquele acon-

escolhidos “aqueles que realmente contribuam, de

a tendência de buscar o que já conhecem. Assim,

tecimento, já que o adulto é sempre um modelo

algum modo, para o seu crescimento” (2007, p. 31).

as vantagens mercadológicas de reproduzir per-

para o pequeno aprendiz. A psicanalista Simone

O adulto não pode se eximir da responsabili-

sonagens e histórias de conhecimento da grande

Moschen alerta para a enorme responsabilidade de

dade de orientar e, para orientar, precisa se quali-

massa viabilizam uma probabilidade maior de

quem trabalha com crianças, visto que essas apre-

ficar, ser um companheiro alegre e presente, tanto

retorno financeiro, o que faz com que esse tipo

sentam uma colagem discursiva ao outro. Confor-

para apreciar um espetáculo, como para assistir a

de iniciativa se multiplique de forma vertiginosa.

me ela, é extremamente importante que o adulto

um filme, ler um livro ou escutar um CD. O en-

Se os adultos querem que a criança parti-

reflita sobre o que é antecipado como possibilida-

volvimento completo do adulto, em qualquer tipo

cipe na escolha do espetáculo, podem oferecer a

des, demandas e sentidos às crianças, pois, “o que

de fruição artística, valoriza essa experiência para

ela algumas opções que considerem adequadas.

esse lhes disponibiliza tem um impacto que não é

a criança. Pode-se valer, no teatro, do que diz Bet-

A segurança e a alegria com as quais os pais ou

de se negligenciar” (2011, p.93).

telheim sobre a leitura de contos de fadas quando

professores apresentarão as propostas às crian-

O envolvimento real do adulto com o aconte-

ele explana que “o senso de participação ativa do

ças é que determinarão a receptividade ao con-

cimento teatral é fundamental na percepção que a

adulto ao narrar o conto dá uma contribuição vital

vite. A falta de critérios de determinados respon-

criança terá dessa vivência. Ao mesmo tempo, se

e enriquece muito a experiência que a criança tem

sáveis adultos, na escolha dos espetáculos para

o espetáculo for bom, será um momento de de-

dele” (2012, p. 219). Para o psicanalista, o fato de

crianças, é o resultado de uma educação falha, no

leite também para os responsáveis e, se for ruim,

o adulto compartilhar a experiência com a criança,

que concerne ao desenvolvimento da sensibilida-

possibilitará uma avaliação melhor em próximas

apreciando seus sentimentos e suas reações, acar-

de e da avaliação crítica. Ao verificar ocasiões nas

oportunidades. A esse respeito, aponta Pupo que

reta uma afirmação da sua personalidade.

quais peças sem qualidade são apresentadas às

“o adulto em geral possui também a prerrogativa

Certas vezes, pais e professores acreditam,

crianças, Machado questionava a formação dos

de decidir quando levar a criança ao teatro e a qual

erroneamente, que possibilitar que a criança es-

pais, dizendo que, como não tiveram nenhuma

espetáculo assistir” (1991, p.19).

colha é uma maneira de respeitar a sua opinião.

educação para o teatro, “PENSAM que aquilo que

Existe um equívoco reincidente nesse sentido. Em certos casos, as crianças são submetidas a trabalhos de péssima qualidade, e os pais ou professores justificam com a declaração: “Mas eles gostam!” O que se esperava? Que as crianças nascessem com senso estético e apuro crítico? Sobre esse tema, Machado alertava que a criança é muito receptiva, mas que não tem as ferramentas necessárias para discernir, captando tanto as coisas boas como as ruins. Ela afirmava que “por isso, é preciso fazer as coisas o mais bem feito possível, realmente o melhor, ainda mais porque as crianças não têm senso crítico. Criança é como radiografia, bate e fica” (1986, p. 18). A criança precisa ser orientada nesse belo processo, que deve lhe dar muito prazer e alegria e que, ao mesmo tempo, é fundamental na sua formação estética, emocional, cognitiva e social. O adulto precisa possibilitar que a criança tenha acesso a trabalhos de qualidade. Afinal, quem gosta do que não conhece? Nesse sentido, Fabia-


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

15

dão aos filhos são coisas que realmente SÓ SER-

rísticas são valorizadas, em detrimento de outras.

VEM para crianças, porque muito enfadonho e

Na via oposta, as propostas criativas apresen-

desinteressante” (1986, p. 46).

O envolvimento real do adulto com o acontecimento teatral é fundamental na percepção que a criança terá dessa vivência

tam inúmeras possibilidades de transformação e

Foto: Bruno Gomes e Kati Wichinieski Foto: Christian Benvenuti

Nessa direção, refletir sobre as diferenças

convidam o espectador a participar sensorial, sen-

entre propostas que reproduzem fórmulas fáceis

sitiva e cognitivamente, despertando, dessa forma,

e propostas que procuram incitar a criatividade

a criatividade de cada um. Aqui, não existe o obje-

pode ser um dos critérios relevantes na avaliação

tivo de provocar o desejo de atingir um resultado

artística e pedagógica dos espetáculos. Os traba-

final pré-determinado. Nesse caso, o que importa

lhos que reproduzem fórmulas fáceis partem da

é multiplicar as percepções da criação, resultando

lógica do desejo do universo capitalista, venden-

na desmistificação do resultado ideal. Assim, iden-

do uma imagem idealizada que deveria ser alcan-

tificado com o processo criativo e não com a sua

çada por todos. Ao valorizarem a reprodução au-

formatação final, o receptor é instigado a usar de

de criação espetacular reafirma o status rebaixa-

tomática de personagens, narrativas, linguagens

sua própria criatividade. Dessa maneira, acontece a

do do teatro para crianças em relação ao teatro

e movimentações, propiciam a padronização dos

valorização da diversidade, possibilitando que cada

adulto. Os professores de licenciatura, eviden-

comportamentos, sufocando as autênticas ex-

um busque a sua expressividade pessoal, a partir

temente, abordam o tema, enfocando o ensino,

pressões individuais. Desse modo, acontece um

de suas características individuais e da cultura de

mas, e a qualificação para a composição estética?

distanciamento do ato criativo, visto que o que

seu povo, sua família etc. Portanto, as limitações

E o estudo necessário às especificidades de cria-

importa é reproduzir o resultado final, criando

são vistas ao lado das potencialidades, em um pro-

ção do teatro infantil feito por profissionais? Com

uma multidão de réplicas, sem expressividade

cesso que propõe um permanente movimento de

certeza temos fecundo e importante campo a ser

individual. Ao mesmo tempo, ocorre uma sen-

transformação, de forma colaborativa.

explorado.

sação de tristeza e impotência naqueles que não

A necessidade de qualificação dos conheci-

Por sua vez, o mercado de atividades lúdicas

conseguem estar dentro do padrão imposto. As

mentos relativos ao teatro para crianças também

com escolas, nas últimas décadas, tem sido uma

diferenças entre as pessoas aparecem em uma re-

está presente no ensino superior, nível em que a

alternativa econômica, por vezes, perigosa. Multi-

lação competitiva, na qual determinadas caracte-

ausência de estudos sobre essa forma específica

plicam-se as pecinhas cuja qualificação da equipe


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

16

é duvidosa. Conforme Nazareth, “essa falta de pro-

Pupo (1991) denuncia que a ausência de espaços

Com certeza, é necessário chamar a atenção

fissionalismo e, mais do que isso, de ética, é um

adequados acarreta em muitas dificuldades para

para uma área que ainda é carente de reflexão. Seja

dos baluartes da estética perversa do teatro infan-

os realizadores de teatro infantil, impedindo uma

classificando como teatro infantil ou como teatro

til” (2012, p. 86). Para Maria Clara Machado, a falta

realização artística plena das obras dedicadas às

para crianças, o importante é afirmar que os espe-

de conhecimentos artísticos resulta em “cenas mal

crianças, as quais ficam condicionadas aos espe-

táculos para a infância devem ser uma expressão

ensaiadas nas quais os atores, muitas vezes, ape-

táculos adultos encenados à noite.

das Artes Cênicas, realizada com o mesmo rigor

nas estão procurando sobreviver economicamente,

Por mais óbvio que pareça, ainda é neces-

estético que qualquer outra obra destinada a di-

sem se empenharem realmente nos papéis que re-

sário reafirmar que teatro para crianças é tão

ferentes públicos. A responsabilidade pedagógica

presentam” (1986, p. 46).

arte quanto teatro para adultos. As exigências

precisa andar de mãos dadas com a diversão e a

Assim, certas produções de baixa qualidade

técnicas, formais e de produção são as mesmas,

alegria. Realizar ou escolher um bom espetáculo

reafirmam o preconceito de pensar que o teatro

independentemente da faixa etária do público ao

para as crianças é também um gesto de amor.

para a infância é uma arte menor, feita para en-

qual o espetáculo está destinado. Os profissionais

Na última década, diversos professores e pais

sinar alguma coisa de útil ou, na via inversa, um

qualificados para realizar teatro para crianças

têm demonstrado grande interesse em compreen-

momento de pura descontração, sem nenhuma

precisam ter o mesmo aprimoramento técnico

der o potencial educativo do teatro, no desenvol-

característica educativa. Além disso, determinadas

que atores, diretores, produtores, dramaturgos,

vimento estético, ético, cognitivo, afetivo, social,

práticas atuais exigem um questionamento sobre

figurinistas, cenógrafos e iluminadores qualifica-

perceptivo e sensorial das crianças. A qualificação

a facilidade com que algumas pessoas decoram

dos para realizarem teatro para adultos. O fato

dos adultos mediadores é fundamental na constru-

discursos artístico-pedagógicos que não apa-

de o espetáculo ser destinado a crianças, jovens

ção de uma cena teatral que apresente espetáculos

recem no resultado estético de seus trabalhos.

ou adultos não é uma questão qualitativa, mas,

que instiguem as crianças, dialoguem com a lógica

Infelizmente, em certos casos, os adultos respon-

sim, classificatória. Ou seja, um espetáculo não é

lúdica de seu pensamento, possibilitem momentos

sáveis pelas crianças não estão preparados para

melhor ou pior por ser para crianças, para adoles-

de prazer e oportunidades de elaboração a temas

avaliar e seguem reproduzindo o mesmo discur-

centes ou para adultos.

genuinamente presentes no universo infantil.

so, sem perceber que são palavras ao vento, sem

Há muitos artistas e pesquisadores interessa-

nenhuma relação com o que aconteceu em cena.

dos na qualidade dos trabalhos artísticos destina-

Com base em décadas de experiência, Maria Clara

dos às crianças. Foi como uma reação à falta de

Machado reclamava que a aparente facilidade de

qualidade e à negligência com a área, que profis-

realizar teatro infantil atraiu muitos profissionais

sionais seriamente dedicados à infância passaram

que banalizaram a cena para crianças. Para ela,

a reivindicar a utilização do termo teatro para

a realização de péssimas montagens, repletas de

crianças e não mais teatro infantil, defendendo

distribuição de brindes para compensar a falta de

que infantil é o público e não a obra. No entan-

qualidade artística, resulta no aumento das doen-

to, essa não deixa de ser uma afirmação que traz

ças da sensibilidade e na perda da “maravilhosa

consigo uma percepção preconceituosa do termo

oportunidade de desenvolver na criança a capaci-

infantil, ao procurar refutá-lo. O artista e professor

dade de captar, através do espetáculo, o mistério

de teatro Marco Camarotti afirma que a troca do

da vida” (1986, p. 65).

termo não atinge a raiz do problema, que é “o tom

Pode parecer desnecessário afirmar que o te-

pejorativo e minimizador que o adjetivo ‘infantil’

atro para crianças é arte e que precisa da mesma

infelizmente adquiriu em nossa cultura”. Para ele,

qualificação que o teatro para adultos. Alerto, no

o que precisa ser combatido é “a visão distorcida

entanto, para o fato de que o preconceito ecoa de

que a sociedade em geral e o homem de teatro em

inúmeras formas nos trabalhos da área, seja pela

particular têm da criança e do que lhe é pertinen-

aceitação de peças de péssima qualidade, seja pelo

te” (2005, p.13). Nesse sentido, Augusto Nazareth

espaço secundário que os trabalhos para crianças

expõe que “etimologicamente, infantil tem, sabida-

ocupam nas pautas de casas de espetáculos pro-

mente, origem no latim infantile e infantil é o ad-

fissionais ou pela ausência de editais de fomento

jetivo que se refere a tudo que é relativo à infância

e patrocínio específicos. Nesse sentido, Maria Lúcia

(próprio para crianças)” (2012, p. 84).

REFERÊNCIAS bibliográficas BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. São Paulo: Paz e Terra, 2012. CAMAROTTI, Marco. A linguagem no teatro infantil. Recife: UFPE, 2005. COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. FLESLER, Alba. “As intervenções do analista na análise de uma criança”. O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.18-30, jan./jun. 2011. GIL, João Pedro Alcantara. Para além do jogo. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de PósGraduação em Educação, Santa Maria, 1999. GRAZIOLI, Fabiano Tadeu. Teatro de se ler: O texto teatral e a formação do leitor. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2007. MOSCHEN, Simone. “A infância como tempo da iniciação à arte de produzir desobjetos”. O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.89-98, jan./jun. 2011. NAZARETH, Carlos Augusto. Trama: Um olhar sobre o teatro infantil ontem e hoje. Rio de Janeiro: Lamparina, 2012. PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. No reino da desigualdade: Teatro infantil em São Paulo nos anos setenta. São Paulo: Pespectiva, 1991. STEIN, Maria Lúcia Müller. “Infantil, Eu?” In: O infantil na psicanálise: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, n. 40, p.09-17, jan./jun. 2011. VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. Lisboa: Relógio d’água, 2007.


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

Por Lara Rocho e Tainá Borges

17

Lara Rocho é artista e professora circense, graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); pós-graduada em Dança pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); atualmente, cursa o mestrado em História na UFRGS. Tainá Borges é produtora, artista e professora circense; graduada em Psicologia pela Unisinos; pós-graduada em Dança pela PUCRS. As duas artistas são do grupo Circo Híbrido, de Porto Alegre/RS. Mais sobre o grupo: circohibrido.com.br

O circo na contemporaneidade A reflexão que propomos neste escrito teve início no 2º Festival Santa Maria Sesc Circo, em setembro de 2016, especificamente a partir do convite de participação em um dos bate-papos promovidos pelo evento, o qual se propunha a dialogar sobre o circo contemporâneo. A partir dessa provocação, iniciamos com uma reflexão acerca do termo contemporâneo; inicialmente, do contemporâneo enquanto regime de historicidade. Nesse contexto, lembramos que para a história disciplinada a contemporaneidade seria o período atual da história ocidental inaugurado em 1789 com a famigerada Revolução Francesa. Ou seja, o período contemporâneo, o que vivemos ainda, teria nascido no final do século 18, momento em que, coincidentemente, o circo surge como produção artística e atividade de entretenimento, nessa formação clássica que figura no senso comum: lona, picadeiro, artis-

Espetáculo Desencanto, Circo Híbrido Foto: Sal Fotografia


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

18

tas mambembes, domadores de animais, mestre

o segmento militar, além das novas mídias (rádio,

râneo, utilizados enquanto adjetivo para carac-

de pista, tudo bem costurado em um enredo e

televisão etc.).

terizar diferentes gêneros de produção artística

apresentado como espetáculo. Então, podemos

A contemporaneidade da arte circense pode

dentro da arte circense ou, noutras palavras, di-

dizer que, no sentido histórico, o circo já nasceu

ser apreendida, por exemplo, por meio da obser-

ferentes estilos. Vale ressaltar que essa distinção

contemporâneo.

vação da significativa multiplicidade de técnicas

passou a ser feita muito recentemente, no Brasil

De outro modo o termo contemporâneo, no

artísticas presentes dentro de um mesmo espe-

e no exterior, por volta da década de 1970, com

sentido presente nos dicionários, é definido como

táculo: mágicos, equilibristas, palhaços, bailarinos,

o surgimento das escolas de circo, inicialmente

um adjetivo que faz referência ao que é do mes-

atores, malabaristas, músicos, domadores de ani-

para diferenciar a formação do artista circense

mo tempo, que viveu na mesma época; designa

mais etc. – multiplicidade pouco vista, ao menos

e não para qualificar sua produção artística em

quem/o que partilha/partilhou o mesmo tempo/

não nesses moldes, em outros produtos culturais,

termos de dramaturgia, por exemplo. Atualmente,

período; faz referência também à época presen-

como espetáculos de teatro, dança e música. A

esses termos têm sido utilizados recorrentemente

te, o tempo atual e ao indivíduo do nosso tempo.

contemporaneidade circense também pode ser ob-

para diferenciar os estilos artísticos de produções e não somente a formação do artista.

Neste contexto, Ermínia Silva falando sobre o

servada através do estudo da história do circo no

circo no Brasil, ressalta o caráter diverso e híbri-

Brasil, no que se refere ao seu frequente envolvi-

Nesse contexto, a denominação circo tra-

do da constituição das artes circenses desde sua

mento com as demandas sociais de sua época: es-

dicional refere-se ao estilo de espetáculo que

origem, sempre em contato com diversas lingua-

cravidão, epidemias, desenvolvimento urbano, etc.

se configurou dentro daquela estrutura clássica

gens artísticas (ou não) contemporâneas à sua

Uma outra reflexão por nós proposta, é

originada no século 18. O que parece predomi-

produção, tais como o teatro, a dança, a música,

acerca dos termos tradicional, novo e contempo-

nar nesse estilo de espetáculo até os dias de hoje

[1]


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

1. Ver sua dissertação de mestrado, publicada sob o título Respeitável público... (2009 – com a participação de Luís Alberto de Abreu); e, sua tese de doutorado, publicada sob o título Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil (2007). Ambos os trabalhos se encontram disponíveis em: <http://www.funarte.gov.br/edicoes-on-line>.

19

2. Disponível em: http://www.panisecircus.com.br/carta-aberta-ao-circo-de-bauke-lievens-dramaturga-belga-e-um-convite-areflexao-diz-a-artista-erika-stoppel-do-zanni/ Acesso em: 05/11/2016.

é o domínio das técnicas. O domínio do homem sobre seus aparelhos e sobre a própria natureza. O elemento central do circo tradicional é a forma, o virtuosismo. O que não exclui completamente a existência de conteúdo, uma vez que o circo tradicional, sendo contemporâneo da Revolução Industrial, acabou por reproduzir em seu espetáculo a lógica capitalista de forma bastante poética, ou seja: o artista enquanto trabalhador exímio, operário. Tal como ressaltou a dramaturga Bauke Lievens, em sua primeira carta aberta ao circo, intitulada A necessidade de uma redefinição: “Moldado dessa maneira pelo comércio e pela cultura, as formas do Circo tradicional não eram inocentes, nem tão pouco desprovidas de conteúdo. Elas funcionavam como um quadro reforçando uma maneira particular de ver e experimentar o mundo. “[2] No Brasil, o circo tradicional também é re-

cional das Artes do Circo (CNAC), em Châlons-

também são discursos de poder utilizados por

ferido pelas denominações circo família e circo

-en-Champagne, que aliou narrativa teatral e

grupos distintos que, se não estão em disputa

teatro. Trata-se de uma organização fundamen-

técnicas circenses. A partir desse momento, o

direta, estão no mundo e lutam para nele se

tada na tradição da transmissão oral, familiar e

artista circense passa a ser também personagem

manter. Cada qual com seus discursos defendem

coletiva dos saberes, cujo conteúdo envolve des-

dramático. Para além de dominar as técnicas

tradições e criticam a produção alheia. O que ul-

de a prática do armar e desarmar o circo, pas-

circenses e enfrentar os riscos inerentes – sua

timamente não tem sido tão produtivo quanto é

sando pela formação e capacitação do artista,

realidade – no novo circo, o artista ainda tem

motivo de fortes embates, discussões ferrenhas e

até as questões da vida cotidiana e itinerante.

de honrar com a ficção, com a representação,

desavenças. Fragmentação. Falta de unidade de

Segundo a historiadora Ermínia Silva (2009),

com o faz-de-conta, com a história, como dita o

classe, para assim dizer, posto que tratamos de

a organização circense existiu até o momento

enredo. Tarefa difícil de cumprir.

trabalhadores e trabalhadoras da arte, posto que

em que se delegou à geração seguinte a tarefa

Quando falamos de circo contemporâneo,

de ser depositária dos saberes, continuadora e

falamos de uma outra forma de se fazer circo. Di-

mantenedora daquilo que era necessário à ma-

ferente do circo tradicional e do novo circo. Uma

nutenção do espetáculo circense e dos negócios

outra forma de se fazer arte. Algo que surge me-

de família.

diante a crise de um modo de produção artístico

Já o termo novo circo tem origem na Fran-

cujas obras apenas acabam por reforçar uma vi-

ça, a partir de um movimento iniciado por um

são de mundo e de estar no mundo que também

grupo de diretores de teatro que estava buscan-

está em crise. O circo contemporâneo sofre influ-

do, em meados dos anos 1970, tornar o teatro

ência de novas escolas dramáticas, menos afeitas

mais popular e mais acessível. Utilizando-se

a narrativas lineares ou à mera reprodução da

tanto da lona quanto de espaços públicos para

realidade ou pior, de uma realidade ultrapassada,

apresentar suas produções, acabaram por alterar

de forma não refletida. O circo contemporâneo se

o modo de se fazer teatro na França, como tam-

questiona, pensa sobre o que faz, porque faz e

bém influenciaram a arte circense em termos de

como faz. Não apenas reproduz.

dramaturgia. Ao mesmo tempo, tal como ocorre

Todavia, é importante ressaltar que tradi-

no Brasil, na mesma década de 1970, nasce a

cional, novo e contemporâneo, esses adjetivos

primeira escola de circo francesa, o Centro Na-

que diferem os estilos de produção circense

estes devem se unir em prol da manutenção de seus direitos de classe e da conquista de novos.

O circo contemporâneo se questiona, pensa sobre o que faz, porque faz e como faz; e não apenas reproduz. Foto: Sal Fotografia

Espetáculo À salto alto - entre gentilezas e extermínios, da Cia. Circo no Ato (RJ) Foto: Aline Macedo


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

POR Carlinhos Santos

20

jornalista e crítico de dança, organizador da quinta edição da Coleção Húmus.

Húmus para a crítica de dança

indústria da comunicação impressa no mundo. Assim, o quinto volume da Coleção Húmus promove reflexões à luz mais do que de uma perda de espaço, mas de uma perda de consciência e ousadia e, como causa e efeito, uma perda de influência, como reflete o jornalista Daniel Piza em seu livro Jornalismo Cultural (São Paulo: Contexto, 2003) no apontamento que faço em meu texto do livro. Ter crítica e contar com ela para ampliar os sentidos de uma obra é a coreografia desejada pesando que dança é, o tempo todo, um movimento

A crítica mente, é necessária, foi parcial, desapa-

Sobre, como, quando e porquê se faz crítica,

de troca: entre o que se faz no linóleo, o contexto

receu. São muitas as nuances e os contextos que

e em especial crítica em dança, são questões que

que a assiste, os criadores que a produzem e as

potencializam o debate sobre a crítica de arte na

atravessam esse novo Húmus. Há desde reflexões

metáforas derivadas desse ambiente do qual ela se

contemporaneidade. No contexto da dança e no

teóricas a exercícios de escrita quase concretista.

retroalimenta. A perspectiva da Teoria do Corpo-

ambiente do jornalismo cultural, essa é uma crise

Há relatos de artistas que fazem da crítica o seu

mídia, de Christine Greiner e Helena Katz, saúda,

que vem sendo enfrentada há algumas décadas no

mote e há registros entorno das atividades de dois

portanto, a crítica como mais uma instância que

Brasil. É destes contextos que trata a quinta edição

críticos que marcaram a história da dança brasilei-

redimensiona a experiência da dança. Uma dança

da Coleção Húmus.

ra: a contribuição de Roberto Pereira, do Rio de Ja-

“como um fluxo de interações e não de essências

Passados cinco anos de sua quarta edição,

neiro, é analisada por Beatriz Cerbino e o trabalho

eternas” como escreve Helena Katz em Um Dois

o quinto livro da Coleção Húmus foi lançado em

de Marcelo Castilhos Avellar, de Belo Horizonte, é

Três: a dança é o pensamento do corpo (Belo Ho-

junho, em Caxias do Sul. A publicação foi feita

revisitado em depoimentos lapidados por Arnaldo

rizonte: FID, 2005).

através de recursos captados através da Lei Muni-

Alvarenga.

Assim, a crítica também se fortalece na pers-

cipal de Incentivo à Cultura de Caxias do Sul, com

Roberto Pereira foi um obstinado. Cerbino

pectiva de sua permanência na mídia, rearticu-

apoio cultural da Faculdade da Serra Gaúcha e da

fala de um caráter irrequieto e investigativo que,

lando a perspectiva de outras possibilidades de

Randon. A coleção foi idealizada pela pesquisadora

além de atuar no Jornal do Brasil de 1999 a 2009,

comunicação e do reforço, sim, de sua importân-

Sigrid Nora em 2006.

assinou publicações pontuais sobre figuras da

cia. O alarde da crise da crítica seria, segundo o

A proposta é comprometida com a fertiliza-

dança, fez curadoria do festival Panorama, do Rio,

pesquisador Luiz Camillo Osório, uma tentativa de

ção de ambientes e a disseminação da pluralidade

lançou os Seminários de Dança, o Festival de Join-

dissuadir sua relevância, como escreve em Razões

de pensamentos relacionados com a dança, seu

ville, e organizou, com Silvia Soter, cinco volumes

da Crítica (Ed. Jorge Zahar, 2005): “a crise da crítica

entorno e o emaranhado de associações que ocor-

do Lições de Dança. Na metáfora sobre um cris-

ressoa na crise da política, de um espaço comum,

rem a partir dela. Após quatro edições, a crítica é

tal de muitas faces, Marcelo Castilhos Avelar teve,

múltiplo e pautado pelas diferenças, onde se ne-

o eixo temático das discussões dos 14 textos que

segundo Alvarenga, a tenacidade que revelava a

gociam expectativas e anseios. É como se as obras,

compõem o Volume 5. Eles trazem relatos pontuais

resistência que o mineral oferece ao ser rompido,

em nome de uma falsa liberdade, não fossem mais

de trabalhos artísticos ou críticos entorno da críti-

esmagado, curvado ou rasgado, mantendo um

passíveis de ser julgadas. Não havendo mais nada

ca, além de posicionamentos teóricos a respeito do

grau de coesão interna, além da densidade, que

a ser julgado, tudo é possível e ninguém deve ficar

tema pelos quais esse texto percorre.

apresenta um nível de compactação pelo que tem

ditando regras”.

No contexto da crise dos formatos de produção e veiculação do jornalismo cultural e, em

de denso e intenso. Isso ele fez escrevendo sobre quadrinhos, cinema, teatro e, obviamente, dança.

Na contramão da ausência de espaços para a crítica e do seu exercício, artistas e grupos pro-

especial da crítica, uma das questões em debate

A memória da atuação desses dois críticos

blematizam o tema em ações pontuais. A bailarina

é, justamente a perspectiva de sua sobrevivência,

pontua, até de forma subliminar, a importância da

Cláudia Müller criou a performance Precisa-se Pú-

da criação de alternativas ou modelos de escrita,

figura do crítico e de suas contribuições que po-

blico, que transita do espectador crítico ao crítico

notadamente quando a pauta é a crítica de dança.

dem trazer ao ambiente da dança. É atravessada

espectador, fazendo com que essa figura assuma

Aqui, a conjuntura é ainda mais adversa no cenário

pelo contexto da crise dos espaços para a produ-

o lugar do crítico, “vendendo” seu texto crítico ao

brasileiro.

ção de jornalismo cultural, no contexto da crise da

artista. Assim, problematiza-se a hierarquia do


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

21

discurso na arte contemporânea, atravessado por

dança em condição de arte. Somado ao fazer da

questões sobre a autoria e discurso: “quem pode

crítica, esse ofício gozava de credibilidade no meio

falar? a quem interessa essa fala?”.

artístico, sendo uma voz a ser ouvida, quando não,

Também elegendo a potência da crítica como

literalmente seguida. É este poder de autoridade,

vetor da produção de novos pensamentos para

conferido à crítica de dança no passado recente,

uma obra, o coletivo paulista Tá Crítico criou uma

que se encontra ameaçado no presente” – pela di-

ação que trata da experiência de “estar” crítico, di-

minuição desses espaços, registre-se .

ferente do entendimento de “ser” crítico. A ativida-

Memória e registro de um determinado

de objetivou desenvolver ferramentas que possam

contexto de produção também perpassam a es-

gerar ambientes críticos junto ao público após es-

crita que Sandra Meyer faz sobre sua produção

petáculos. O intuito desse projeto foi estender o exercício crítico a todas as instâncias e etapas que envolvam a produção em dança, podendo incluir e confrontar nessa prática artistas, teóricos, curadores e público. Nesta perspectiva também se insere o projeto 7x7, de Sheila Ribeiro, plataforma virtual que fomenta a produção de textos num projeto artístico conectivo cuja metodologia (ou dramaturgia) foi a de criar reverberações, em dança, em rede, a partir do trabalho de artistas – que poderiam aparecer em “forma” de texto escrito, imagens, audiovisuais ou outras performances. Já o Fanzine de Crítica de Dança concebido por Daniel Kairoz se faz poético, anárquico, concretista e experimental ao conjugar, escrever, publicar e fazer circular a necessidade de multiplicar as vozes críticas da dança, em variações ad infinitum (et necessárias!) desse “jogo insensato de escrever”, apud Mallarmé. Historicamente, a existência e permanência da crítica contribuiu para o fortalecimento de trajetórias de companhias de danças brasileiras tal é o caso do Ballet Stagium, Grupo Corpo e Cisne Negro, como pesquisa e registra o historiador Rafael Guarato em seu artigo O fenecimento da crítica de dança ou a extinção de um ofício, no qual anota: “é notável a expansão da produção artística em dança no Brasil, após a segunda metade da década de 1970. Uma das variáveis que interferiram para essa crescente foi a existência ininterrupta de críticos de dança desde então, que garantiu espaço midiático em grandes veículos de comunicação impresso, ao mesmo tempo em que fomentava debates e acirrava reflexões entre os fazedores de

A.N.J.O.S., da Cia. Cênica Nau de Ícaros

Foto: Claudio Etges


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

22

crítica feita especialmente no caderno Anexo, do

que foi visto, porque acredita que vai dar conta

buscas para desativar o que há de normativo na

jornal A Notícia, de Joinville (SC), no período de

do que foi apresentado. Isenta de comentários

norma que afiança a necessidade de a crítica ser

1998 a 2006. Outro apontamento desse contex-

que potencializem algum posicionamento críti-

um discurso especializado e proferido por alguém

to é o da pesquisadora Roberta Ramos Marques,

co. Esse tipo busca ainda moralizar o espetáculo

que é publicamente reconhecido como um espe-

que, frente ao fato de que a crítica de dança no

como uma historinha a ser contada, como uma

cialista por ser um grande conhecedor do objeto

Recife nunca existiu como uma atividade con-

lição de vida que se autojustifica. De outro lado,

sobre o qual escreve. E se o faz em mídia impressa

tínua e especializada, discute como o projeto

temos uma crítica punitiva, de caráter persona-

convencional (jornal e revista), o prestígio ainda

Contracorpo, idealizado por Marcelo Sena e rea-

lista, que apenas mede condutas e méritos, que

parece maior”.

lizado pela Cia. Etc., procurou estimular a produ-

privilegia erros e acertos, que busca a satisfação

Evidentemente, ressalta a crítica do jornal O

ção crítica na cidade, assumindo como nortes a

(ou não) de expectativas. Restrita ao bom ou ao

Estado de São Paulo, tal situação vai mudar, não

plurivocalidade, a multimodalidade e a potência

ruim e ao “gostei” ou ao “não gostei”, mantém-

somente por conta da crise que atinge as publica-

disso para a cena local.

-se fiel a modelos estéticos preestabelecidos,

ções impressas, mas sobretudo porque o exercício

repleta de juízos de valor.

da crítica vai encontrar os seus espaços na cultura

É, portanto, para combater esta ameaça da morte da crítica que se articulam diferentes

Por isso, Joubert defende uma escrita coim-

digital. Nesse momento, vive-se uma transforma-

instrumentos, argumentos e procedimentos. Ex-

plicada, passando a compreendê-la não mais

ção que parece inevitável. Por isso, “a dança e sua

-bailarino do Grupo Cena 11, Anderson do Carmo

como uma reação ao que é dançado, nem a obra

crítica, bem como o jornalismo cultural, não po-

defende a ocupação de espaços ou a abertura de

como alvo da crítica, mas como um fator coe-

dem ser investigados sem se levar em considera-

outras instâncias para a produção da escrita crí-

volutivo de transformação que se correlaciona a

ção as mudanças cognitivas que vêm ocorrendo”.

tica. Em cinco tópicos, cinco variações da crítica,

partir da mesma pergunta feita pelo corpo que

Mas todo este contexto da emergência de no-

argui e mapeia possibilidades verificáveis do acon-

dança. Assim, considera que a crítica cumpre um

vas possibilidades de escrita sobre dança precisa

tecimento crítico para além da materialidade tex-

papel mediador de tradução que dá visibilidade

ser relativizado: “quem faz e quem assiste dança

tual de uma redação realizada por um especialista

a outros modos de existência e a outros saberes.

age no mundo com a percepção que as trocas cor-

após a apreciação de uma obra.

A tarefa da escrita crítica toma muitas nuan-

po-ambiente produz e hoje, esse ambiente ainda

Para tanto, o autor descreve ações formati-

ces, percorre alternativas e novos formatos, expe-

está povoado por telas. E como as transformações

vas, estruturas de produção de discurso e mesmo

rimenta exercícios artísticos, mas, sobretudo, tem

são cognitivas, não se restringem ao momento do

obras de dança contemporânea que são apresen-

um lugar que lhe cabe e ainda se anuncia como

contato com elas, escorrendo para a vida off-line,

tadas como pistas para a compreensão da crítica

resistência: ocupar os espaços ainda que exíguos

agora regulada pela autoautorização”.

na contemporaneidade. Parte deste processo pode

ou em transformação das mídias tradicionais.

Sim, continua a reflexão, “cada um pode pos-

ser sintetizado no ato de criticar a própria crítica

Olhando para este panorama de experimentos,

tar, publicar, comentar, classificar, elogiar, qualifi-

como campo de potência coreográfica e territó-

inovações e plataformas de possibilidades, a vete-

car, deletar, compartilhar, curtir o que quiser pelo

rio que flerta com certa autofagia intelectual ao

rana crítica Helena Katz diz que vivemos tempos

tempo que lhe aprouver, dizer qualquer coisa sobre

desgrudar sua produção escrita e/ou discursiva do

de Me, Myself and I.

qualquer assunto. Me, Myself and I tornou-se a

atento contato com os fazeres da dança. Assim,

Helena fala de uma incessante interlocução

bússola do modo de existir, tanto on quanto off-

diz que “as mil faces que a crítica pode assumir

com “outros” – obras, artistas, movimentos e ten-

-line”. Mas, para a atividade crítica, o ambiente da

na contemporaneidade não podem, no entanto,

dências que a mídia não divulga e que não atraem

autoautorização não é favorável. A autoautoriza-

tornarem-se sinônimos de qualquer coisa. Elas

os pesquisadores ou os artistas. O fato deles mal

ção é irmã da autocomplacência e a combinação

guardariam entre si uma mesma potência – ocu-

ou nunca serem contemplados pelo discurso crí-

de ambas não precisa de atividades críticas.

par artista e público com o contínuo refazimento e

tico de dança em espaço dedicado à crítica profis-

O que a crítica ainda carece e no que ela se

a intensificação das intenções e leituras das quais

sional na mídia tradicional faz com que mais pes-

afirma, e sempre se afirmará, é na capacidade de

o projeto artístico está cheio – que se articularia

soas comecem a se interessar em pensar a crítica

provocar convulsões ou estrondos. Essa é a tarefa

em cada uma das materialidades em questão de

de dança. Daí o surgimento de sites, blogs, plata-

do discurso crítico agora. Essa é, também, a vonta-

modos distintos”.

formas e outros experimentos em torno da crítica.

de, a potência e a pertinência dessa fertilização do

Na perspectiva do pesquisador Joubert de

Mas essa transformação quase inevitável

Albuquerque Arrais, de um lado, temos uma

promovida pela cultura digital exige uma refle-

crítica descritiva que relata, minuciosamente, o

xão: “pode-se ler as muitas iniciativas (...) como

debate sobre a crítica a que se destina o Volume 5 da Coleção Húmus.


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

POR DUDUDE

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artista de dança www.coisasdedudude.blogspot.com.br dudude@dudude.com.br

Mundo corpo Corpo mundo De uns tempos para cá, estou às voltas com um pensamento de conexão e ao mesmo tempo de extensão.

A Projetista

Foto: Roberto Siqueira


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

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Fazer ressoar pelo espaço afora as ideias que

caminho que traço e risco nesta trajetória. Árvo-

camos, destruímos aquilo que nos guarnece, ali-

atravessam meu, talvez, ser corpo. É certo que

res, rios, céus, terras, mares, animais, grandes e

menta, acolhe.

trabalho na porosidade, na imagem da espuma, e

pequenos, coabitam este lugar, e vivemos, todo o

Penso muito nessas questões e sabe o que

no corpo como filtro e transmissor de potências.

tempo, cheios de interferências, de ressonâncias,

faço? Faço o que posso no movimento pequeno

Tais potências estão na vontade, no desejo, na

independendo de suas frequências.

de gente: cuido. Cuido das coisas, do espaço per-

ação, e acredito que ela aparece quando estamos

A curiosidade que tenho serve de alimento

to de mim, assim, desta maneira, escrevo, danço,

vivendo no tempo presente. Por falar em presen-

para o entendimento das ações futuras que se-

converso, faço espetáculos, escolho as coisas,

te, observe como é linda a forma da palavra “pre-

guem adiante, para a compreensão das ações de

leio livros, agradeço todos os dias. Isto pode até

sente”: antes de sentir, estou presente na ação,

ontem, e para me colocar em cima de meus pés

parecer “piegas”, mas para mim não é, trabalho

estou dentro do tempo. E que tempo é este que

que conversam com aquilo que os apoia: a Terra.

com arte trabalhando com a subjetividade dessas

gosto tanto de falar e discorrer sobre? Certamen-

Quando me percebo, penso onde me encontro,

impressões.

te não é o do relógio. Talvez seja um tempo pa-

vejo ao redor, novamente penso, sinto como este

Procuro tocar, talvez, em um campo de ima-

recido ao de Marcel Proust, em seu romance Em

planeta me acolhe e me nutre. Sem este chão não

nências do mundo por meio do movimento da

Busca do Tempo Perdido. Esse tempo está sempre

teríamos este corpo. Perceber a importância de

vida e tenho esperanças de mudanças sutis.

passando, em um devir constante de aceitação e

tudo que nos rodeia é fundamental para termos a

Não quero classificar nada. Mas quero muito

transformação.

sensação de cuidado e de respeito para com este

ver, sentir, cuidar desta conexão Mundo-corpo e Corpo-mundo.

Justamente por falar desse tempo dilatado

mundo. Deixar ressoar o mundo em nós: sabemos

é que me encontro aqui, impressa em palavras,

que estamos aqui de passagem. Insisto em falar

que começam com o agrupamento de letras e,

disto. Creio que o mundo só está assim hoje por-

Olhe para uma árvore florida, em uma rua

uma vez mais agrupadas, constroem frases. Fra-

que tiveram pessoas que cuidaram e conversaram

cheia de carros, barulho, asfalto. Olhe como ela

ses com sujeito, substantivo e adjetivo, sempre

com aquilo que já estava como a água, o ar, a

conversa com a paisagem e, depois de um breve

acompanhadas de verbos, pois nesta vida preci-

terra, as plantas, os animais.

silêncio, observe. Respire com todo seu corpo-

Porque vale a pena.

samos de ação. Nascer é uma ação: penso sempre

Tempo para o silêncio.

-casa essa paisagem que não faz força nenhuma

na continuação deste fato, então, todos os dias,

Vazio.

para acontecer, simplesmente porque as coisas já

continuo. Mas é fato também que estou me de-

Quero muito escrever sobre, mas me extra-

estão no devir desta imanência.

longando para chegar a uma questão que muito

vaso e extravio o meu querer de apenas ser sim-

me interessa. Há um tempo comecei a pensar e

ples. Será que estou me fazendo entender?

sentir as ressonâncias através do movimento

Abranger a substância do mundo para.

produzido pela ação do dançar, ação que levava

Ser.

meu pensamento. Comecei a escutar os ecos des-

Quando escrevo já estou sendo alguma

se e refletir sobre. Foi então que cheguei nesta

coisa, exercendo através do meu ser que se dilui

ampliação de Corpo-mundo e Mundo-corpo. O

em palavras e constrói ideias como a de Mundo-

que significa isto para mim, para você? Mundo

-corpo e Corpo-mundo.

grande e pequeno, mundo vasto e miúdo. Pois

Hoje penso desta maneira, do pequeno para o

o que acontece dentro está acontecendo fora.

grande e, inversamente, do grande para o pequeno.

Nosso corpo habita este mundo e também é ha-

Você já imaginou como somos imensos para

bitado por ele. Acho esta ideia maravilhosa! Traz

uma formiga, e como somos formigas dentro do

para mim uma sensação de plenitude, de mais um

universo?

no redemoinho do vir a ser, de pertencer a algo

E somos massa do planeta Terra, juntamente

maior do que eu mesma. Traz tudo que está ao

com a água, a terra, as coisas grandes e pequeni-

redor, compartilhando os efeitos e os afetos cir-

nas. De longe é tudo uma coisa só e, no entanto,

cundantes e circulares. E deste modo me faz en-

aqui, temos nossos territórios, guerreamos por

tender que o mundo está para o meu corpo-casa

isso e aquilo, até a água está sendo comprada e

assim como meu corpo-casa está para o mundo,

ela, a água, nem sabe disso. Ela está existindo

o que implica a noção de cuidado e atenção no

generosamente e nós, em conjunto, sujamos, se-

Portanto, coragem é o que desejo hoje para todos nós que fazemos e somos a massa do mundo humano. Portanto, cuidado é o que desejo hoje para todos nós que fazemos e somos a massa do mundo humano.


ARTES CÊNICAS CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

25

Por Clarissa Eidelwein Jornalista

Balangandança Cia. Dança contemporânea para crianças #15

#17

O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que, nos últimos anos, participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. As próximas páginas apresentam a trajetória e os processos criativos da Balangandança Cia., de São Paulo, a partir da edição da transcrição da fala e de textos da coreógrafa Georgia Lengos, bem como do criador-intérprete Alexandre Medeiros. A companhia pioneira em dança contemporânea para crianças esteve presente nas edições de 2008 do festival, com o espetáculo O Tal

do Quintal, e de 2016, com Brincos & Folias e Ninhos – Performance para grandes pequenos. Fotos: Gil Grossi e Cuia Guimarães


segundo SEMESTRE

2016

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ARTES CÊNICAS


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2016

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Brincos & Folias

Foto: Cuia Guimarães

A essência do brincar e a dança contemporânea Do pioneirismo da Balangandança Cia., que completa 20 anos em 2017, aos processos criativos a partir da “fala-escrita” da coreógrafa e fundadora Georgia Lengos Várias coisas levaram ao surgimento da companhia.

rânea que fosse para crianças, no sentido artístico.

Eu era bailarina de dança contemporânea, forma-

Nesse sentido, a dança que faço para crianças é

da dança na Unicamp, e sempre tive um olhar bem

a mesma que faria/faço para adulto. E que dança,

curioso e observador para o movimento da crian-

que especificidade seria essa então? Esta é a pes-

ça. Na minha observação, aquela movimentação, a

quisa que eu tenho na vida.

forma como brincava e usava os espaços era dança

Ao mesmo tempo em que eu tinha esse

contemporânea. No brincar da criança, tinha a mes-

olhar, eu dava aula de dança contemporânea para

ma essência, as mesmas “bases” que eu tinha como

crianças, mas o nome era dança criativa ou dança

bailarina de dança contemporânea. Via no corpo da

educativa. Eu percebia que os alunos – e seus pais

criança algo que eu buscava no meu preparo técni-

– não tinham referencial dessa dança. Eles tinham

co para a da dança contemporânea que eu fazia, é

de balé clássico, de hip-hop, de forró. E na época a

claro, pois podem ser muitas...Por exemplo, a relação

dança contemporânea era mais hermética do que

de jogo e improvisação que está presente na brin-

é hoje. Ela tinha – e acho que ainda tem – um lado

cadeira era algo que tinha na dança que eu fazia. O

muito intelectualizado, muito da arte-conceitual,

risco, a precisão, a disponibilidade para o movimen-

que à criança não interessava ou comunicava. Em

to, a relação com a gravidade, o jeito que a criança

certo sentido, o objetivo era que a criança pudesse

encontra soluções diferentes para resolver o movi-

conhecer mais e democratizar a dança contempo-

mento no espaço e com os objetos eu intuía que era

rânea. Criar uma linguagem de dança que a criança

igual ao que eu fazia.

percebesse que a dança fazia parte da vida dela,

Essa semelhança me despertou o interesse em pesquisar uma linguagem de dança contempo-

que a brincadeira podia ser uma forma de se pensar e fazer a dança.


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

28

1. Estúdio criado em São Paulo (1994-2007), que eu fiz parte desde o início, como professora e como integrante do grupo Nova Dança e do Nova Dança 8. Trouxe muitos bailarinos de fora do Brasil que trabalhavam com a dança contemporânea na Europa e nos Estados Unidos. Além de aglutinador, foi um propulsor para a formação de várias companhias.

Chamei parceiros que já haviam trabalhado

vo. No primeiro espetáculo, Brincos & Folias (1997),

dos sonhos. No sentido corporal, traz uma relação

comigo – Lilian Vilela, Dafne Michellepis e Ander-

as crianças estão brigando pelo controle remoto,

com o espaço físico da casa e como a criança se

son do Lago Leite, também da Unicamp; e Cristian

cada um quer assistir uma coisa, até que a TV ex-

relaciona com ele e com a coluna vertebral, já que

Duarte, que era meu parceiro no Estúdio Nova

plode e eles precisam redescobrir o corpo e as brin-

é um lugar-corpo que se tem alturas diferentes.

Dança[1], e propus fazermos um trabalho para

cadeiras. Isso acontece na primeira cena e depois

Fizemos muitos exercícios do desenvolvimento

criança. Eu criei a companhia, mas na verdade eu

disso, não se fala mais nisso! As cenas vão se de-

motor em relação a essas mudanças de níveis

aglutinei, porque criamos juntos. Desde o início

senrolando, uma puxando a outra por ligações por

do espaço, desde enrolar, rolar, puxar, empurrar,

os processos foram coletivos.

vezes objetivas, mais concretas – do movimento ou

rastejar até ficar de pé como prática para desen-

Parti para pesquisa de campo, na qual eu

do objeto cênico – e por vezes, mais sutis e sub-

volver a movimentação.

observava crianças brincarem espontaneamente

jetivas. Então o trabalho da Balangandança não

Ao entrarmos num campo mais subjetivo,

em parques e nos intervalos de uma escola. Mi-

tem uma dramaturgia que se baseia numa história

buscamos uma assessoria de psicologia para en-

nhas proposições para o grupo para criarmos o

ou numa narrativa. A dramaturgia se forma no en-

tender como era a relação de medo e de sonho

espetáculo vinham daí. As brincadeiras e o que eu

cadeamento que é levado pelo movimento disso

para a criança. Neste percurso, descobrimos que os

via das crianças eram transformados em jogos ou

tudo. Isto vem através das memórias de infância

medos dela são os do ser humano: o abandono, o

fazíamos os mesmos jogos que elas faziam, trans-

dos bailarinos e também das memórias corporais.

ficar sozinho, mas as representações são diferen-

formando a brincadeira em dança. Embora sejam

Brincar é um treino nosso que evoca a memória

tes. O escuro, as bocas grandes, o fantasma, que na

diferentes entre si, os processos criativos de todos

corporal de um bailarino que foi criança e tem a

verdade é o desconhecido. Fomos orientados a não

os espetáculos da Balangandança sempre têm a

brincadeira no corpo. Quando falo “brincadeira no

banalizar esse medo, mas ir na direção de olhar o

participação da criança, da pesquisa ao resultado.

corpo”, levo em consideração que essa é recheada

medo e enfrentá-lo. Este tipo de apoio teórico ou

pelo imaginário também, não só das brincadeiras

de assessoria é uma fonte que buscamos para en-

concretas, mas das simbólicas.

contrar soluções que tenham a ver não só com a

Nosso embasamento teórico envolve as ciências cognitivas e as técnicas de educação somática. Técnicas usuais em dança contemporâ-

Em O Tal do Quintal (2006), espetáculo que

gente, mas de trazer algo para o desenvolvimento

nea, como o contato-improvisação, a nova dança,

ganhou o Prêmio APCA de dança para criança, eu

da criança. Nesse sentido, temos um percurso de

Klauss Vianna, BMC – Body-Mind Centering, fi-

queria fazer um trabalho que trouxesse o quintal,

pesquisa, não há uma repetição de fórmula. Como

zeram e fazem parte do nosso treinamento e do

porque sempre o que me move é algo que, na mi-

em O Tal do Quintal, em todos os processos criati-

nosso pensamento.

nha visão, está fazendo falta para a criança. Cadê o

vos temos um tema mais poético, o simbólico, e o

Sobre os temas dos espetáculos, tenho uma

quintal? Onde está o espaço privado da criança ao

corporal para pesquisarmos sobre o que a dança se

visão analítica do depois de criados. A primeira

ar livre para ela brincar? Isso quase não existe mais

propõe. Tudo interligado.

coisa que surgiu da companhia foi o nome e os

nos grandes centros urbanos.

O Entranças – Descobrindo e redescobrindo o

espetáculos seguem um pouco esta onda. Surge o

Nesse espetáculo, o quintal no sentido sim-

Brasil (1998) é da época da ‘boquinha da garrafa’, É

nome junto com um motivo ou tema e ele vai se

bólico traz esta coisa do imaginário da criança,

o Tcham!... e de repente, toda a criança dançava! E

fazendo, se descobrindo durante o processo criati-

das brincadeiras, de dia e à noite, dos medos e

dança brasileira foi reduzida a essa dança popula-


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

29

rizada pela grande mídia. Então fizemos um traba-

pesquisa e ao mesmo tempo divulgar o trabalho,

lho com as danças brasileiras, trazendo o que elas

porque não tínhamos interlocutores. Conversáva-

têm de lúdico – não é à toa que os artistas popula-

mos com as pessoas que faziam teatro para crian-

res são chamados de brincantes –, buscando uma

ça e com os educadores.

O Tal do Quintal Fotos: Gil Grossi

Entranças – Descobrindo e redescobrindo o Brasil Fotos: Gil Grossi

releitura. Uma entrada pelas danças populares bra-

A Balangandança Cia. sempre esteve conecta-

sileiras e uma relação com o imaginário. Eu via que

da com questões que tinham a ver com a infância

faltava às crianças terem outro referencial de dan-

e, às vezes, até antecipando questões que depois

ças populares. O espetáculo tem frevo, caboclinho,

começaram a aparecer. Como as danças populares,

moçambique, a dança do lelê. E aí vem a pesquisa.

que hoje são trabalhadas inclusive nas escolas; a

Por exemplo, no caboclinho tem uma preaca, tipo

questão da TV, que se somou a outras mobiliza-

Sobre esta antena para estas questões, é a

um arco e flecha que faz um estalinho, um som. Na

ções. Por exemplo, em 2007 – 10 anos depois de

preocupação com a infância no mundo e as pes-

construção do espetáculo, essa dança vem depois

criado o Brincos -, fomos fazer o espetáculo no

soas que estão ligadas nisto acabam formando

da brincadeira de pular elástico, porque a dinâmica

Desligue a TV, evento internacional encabeçado

uma rede e as coisas vão nascendo. Fomos para

de puxar a flecha e soltar tem a ver com o elástico.

aqui pelo Instituto Alana de ficar uma semana com

muitos lugares disseminando isso. Tem muitas

Quando falo unir o lado lúdico da dança popular,

o aparelho desligado, pensando no homem con-

companhias que surgiram de pessoas que fize-

não é só da dança popular pura, mas também rela-

temporâneo e na criança.

ram parte do Balangandança ou que nos assisti-

cionar com alguma brincadeira ou a um elemento da dança: dinâmicas, espaço, partes do corpo.

Pioneirismo constante

O Ninhos – Performance para grandes pe-

ram em lugares onde apresentamos espetáculos,

quenos (2013) fala da relação entre a criança e

demos palestras, conversamos. Na última década,

a necessidade de termos um ninho, um apoio,

o interesse em fazer dança contemporânea para

uma estrutura para poder voar, poder sair. Essa

criança aumentou e percebemos que temos uma

estrutura pode ser o espaço físico ou o afeto. Essa

influência nisso. Sempre foi uma preocupação da

questão da primeira infância, o contato com a

companhia incentivar e dividir suas inquietações

A companhia, no começo, não tinha espaço. Não

mãe, ter uma estrutura, o contato do corpo, deu

com outros profissionais e o público adulto em

existia programação de dança para criança e fo-

uma explodida nestes últimos três anos. Ao mes-

seus projetos. Em 2007, lançamos o livro Põe o

mos cavando buracos. Apresentamos muito os

mo tempo, o cenário é composto por troncos de

Dedo Aqui!, resultante de pesquisa e encontro

espetáculos, pois a ideia dos trabalhos era poder

árvores cortadas. Árvore é um símbolo, que para

com outras pessoas que trabalham com dança

ir para qualquer lugar. O corpo é o principal e os

além de ser o local onde os pássaros fazem os

contemporânea para crianças.

objetos cênicos e os cenários são simples para dar

ninhos, representa a natureza, que é o ninho do

Os processos criativos sempre foram fonte de

versatilidade. Nosso pioneirismo, de começar, de ir

homem, e que está sendo devastada. Nosso cor-

pesquisa para desenvolvermos estratégias de ensi-

desbravando e de ir para muitos lugares, sempre

po, em certo sentido também. É uma relação sim-

no de dança contemporânea para crianças, porque

esteve ligado à ideia de levar para criança esse

bólica, não falamos em nenhum momento sobre

não há um modelo pronto, uma técnica de como

referencial de dança contemporânea, continuar a

isso, mas está embutida no trabalho.

as crianças podem vivenciar os exercícios feitos


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

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pelos bailarinos. Isso realizamos em forma de ofi-

pra crianças. Mas não era só para nós, queríamos

cinas dadas pelo grupo ou por mim e se reflete nos

compartilhar. Às palestras, ao livro, ao grupo de

trabalhos pessoais de cada bailarino. Outra forma

estudos que deu origem ao livro se somou o fó-

de comunicar e multiplicar o trabalho é por meio

rum Forinho: o brincar, a improvisação e a dança,

da capacitação de professores na educação infantil

juntando essas pessoas desde 2010, ampliando o

que teve uma programação específica no Itaú Cul-

ou ensino fundamental: O corpo na escola ou A

alcance da discussão. Queríamos que as pesso-

tural em 2010 e esse projeto ganhou um prêmio

linguagem da dança na escola.

Ninhos – Performance para grandes pequenos Fotos: Gil Grossi

as que trabalham com educação começassem a

APCA. A reverberação disso foi que o Rumos Itaú

Em 2009, entramos numa pesquisa mais

entender o que era dança para crianças e que os

Cultural, na edição seguinte, abriu uma carteira de

vertical sobre “qual o procedimento de dança que

bailarinos de dança contemporânea entendessem

dança para criança, em nível nacional. Vai como

tem mais a ver com o brincar?” A improvisação. A

e pudessem valorizar a dança para criança. Para

um dominó, uma coisa vai influenciando a outra.

ideia foi criar um espetáculo totalmente improvi-

muitos, dança para criança é uma questão assim

A escuta e sensibilidade dos que articulam as pro-

sado, que é o Dança em Jogo (2010), sem nenhuma

como para o teatro infantil, em que se paga menos

gramações dentro das instituições é fundamental

coreografia e trilha sonora, tudo criado na hora,

pelos espetáculos ou até que é um trabalho menor.

nisso. E quando o Rumos, que é um forte referen-

a partir da relação com a plateia. Tínhamos uma

A ideia foi também ampliar esse pensamento. Acho

cial de dança contemporânea, abre uma carteira de

playlist de músicas, que iam sendo escolhidas du-

que tem dado muito resultado.

dança para criança, quase que legitima que isto é

rante o espetáculo, e como na companhia também

Quando estávamos com o projeto Dança em

tem músicos que dançam, tínhamos instrumentos

Jogo, que incluía o Forinho, a divisão de educação

para a música ser compostas na hora, assim como

do Itaú Cultural nos chamou não só para fazer o

Atualmente, estamos num caminho da rela-

a dança. É lógico que fizemos uma pesquisa e um

evento, apresentar o Dança em Jogo e fazer ofici-

ção de crianças com a natureza. Crianças que vi-

treinamento de improvisação, todo um processo

nas, mas também para pensar uma curadoria para

vem em diferentes culturas e habitats: indígenas

anterior que durou um ano e o contato com mais

o ano inteiro de espetáculo de dança para criança.

de aldeias, crianças caiçaras, crianças da cidade

de 200 crianças.

A primeira programação do gênero em São Paulo

de São Paulo. O corpo na relação com a natureza,

uma coisa legal. A gente se sente fazendo parte dessa história.

Chamamos pessoas para nos alimentarem,

aconteceu pela via da educação, e não pelas ar-

como se relaciona com o espaço e seus espaços

especialistas, pessoas que trabalham apenas com

tes cênicas. Isso me faz pensar que realmente o

nos dias atuais é o nosso foco de pesquisa. Conti-

improvisação, pessoas que trabalham somente

trabalho da Balangandança navega nestas duas

nuamos cavando.

com o brincar e pessoas que trabalham com dança

direções, numa interface. Fiz então esta curadoria


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

POR Georgia Lengos

31

coreógrafa

Articulações da Balangandança Cia.: o corpo, o movimento, a criança “É pelo movimento que a criança entra

nossas experiências quando crianças. Elas são de-

envolvidas, referentes não só a conceitos e conteú-

em contato com o ambiente que a cerca,

terminantes na formação do indivíduo.

dos específicos dessa arte, mas também relativos à

explora os objetos do mundo físico e se

Segundo Jorge Larrosa (2004, p.37), “Experi-

formação e educação da criança no contexto atual.

comunica com os outros.”

ência é o que nos passa, ou o que nos acontece, ou

Partindo do pressuposto que: (a) o desenvol-

(Tizuko Morchida Kishimoto)

o que nos toca. Não o que passa, ou o que aconte-

vimento motor, o raciocínio e os processos cogniti-

ce, ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos

vos, a percepção e a emoção, são interdependentes

acontece ou nos toca.”

e integrados; (b) que têm seus alicerces na infân-

No mundo contemporâneo, as crianças, principalmente as dos centros urbanos, têm cada vez menos

Na infância que se constroem as possibilida-

cia; (c) e que a dança é a linguagem artística do

espaço físico para seu desenvolvimento sensório-

des de futuro, quando se estabelecem os princípios

movimento no espaço e tempo; podemos afirmar

-motor, menos convívio com outras crianças sem a

da ética, do respeito, da veneração, da fantasia.

que discutir o ensino e produção de dança para

interferência do adulto, pouco tempo e espaço livre

Do ponto de vista sensório-motor, é nessa

crianças é de importância fundamental para a sua

para brincar e exercitar sua imaginação e inven-

fase que os gestos e padrões de movimento são

formação individual e para o próprio desenvolvi-

tividade. Muitas vezes já esperam um brinquedo

construídos para mais tarde se desenvolverem na

mento da dança e da arte contemporânea.

pronto, a ajuda ou a ordem do adulto.

forma de movimento expressivo e/ou de dança.

A Balangandança Cia. nasceu diante da la-

Ao mesmo tempo, o contato com a televi-

Conscientes ou não, nossas memórias encontram-

cuna existente no que se refere ao ensino e à

são e outras mídias eletrônicas faz parte da vida

-se inscritas em nossa musculatura mais profun-

produção artística de dança contemporânea para

da criança cada vez mais cedo. A quantidade de

da: gravitacional. Segundo Godard (2002), no pré-

crianças no Brasil e de uma pesquisa contínua e

estímulos imagéticos é constante e, na maior par-

-movimento.

aprofundada sobre o assunto. Com o objetivo de

te das vezes, seus conteúdos não estimulam um pensar ativo, com criatividade própria, interferindo

Como diz Walter Benjamin, “A criança é o pai do adulto”.

investigar, refletir e produzir dança contemporânea para crianças, a companhia desenvolve,

no espaço anímico da criança, podendo modificar

Por outro lado, vivemos em um momento

desde 1997, um trabalho pioneiro e singular no

sua capacidade de imaginar, estabelecer relações,

de efervescência na discussão corpo e arte con-

país, comprometido com a realidade da criança no

inventar. Movimentos, brincadeiras e imaginação

temporânea. A dança, incluída neste contexto,

mundo atual.

perdem cada vez mais “espaço” no tempo em que

encontra-se em um momento único de produção

O trabalho da companhia tem como foco a

vivemos.

de pensamento. Pesquisas e estudos diversos sobre

pesquisa da linguagem corporal e estética, articu-

A infância é o período em que as estruturas

processos criativos, memória, produção artística,

lada à proposta educacional/didática, que resulta

física, psíquica e cognitiva do ser humano são

trabalhos corporais, ensino, interfaces com outras

em uma proposta específica de dança contempo-

construídas. Nosso modo de estar no mundo, nos-

linguagens nos levam a refletir e geram outros/

rânea para crianças.

sa capacidade de desenvolver uma identidade e

novos movimentos.

de nos colocarmos de forma autônoma e livre no

Quando se trata de dança contemporânea

espaço social está intimamente relacionado com

para crianças, todas essas questões citadas estão

Como um dos resultados deste trabalho, os espetáculos propõem uma visão construtiva e contemporânea de dança para crianças.


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

32

1. Consideração da psicóloga Patrícia Getlinger em palestra apresentada ao Grupo de Estudos “Põe o dedo aqui”, em 13/06/2007.

Na contramão da maioria das concepções

A pesquisa, fundamental no processo, per-

experimenta, arrisca, se lança, descobre e revela

oferecidas pela mídia, em geral com modelos

mite essa articulação a partir do desenvolvimento

movimentos. Além disso, Brougère (2004) colo-

de corpo “ideais”, danças padronizadas, erotiza-

de eixos articuladores que se alimentam sem hie-

ca que a brincadeira é espaço de socialização, de

das muitas vezes, sem nenhum vínculo com a

rarquia ou ordem linear. São eles: a brincadeira,

exercício de decisão e da invenção, de domínio

linguagem corporal da criança, os espetáculos

o brincar, a improvisação, a educação somática,

da relação com o outro e que o jogo/brincadeira

possibilitam o contato da criança com um uni-

a cultura popular, os objetos, a autoria, a inte-

“possui uma dimensão aleatória de acaso ou a

verso de dança criativo e original, conectado com

ratividade.

indeterminação” (2004, p.23), características re-

a infância atual, a partir de interesses, realidade e

A brincadeira é elemento essencial, funda-

fantasias infantis, ampliando a visão/vivência de

mental e primeiro no trabalho da companhia.

Portanto, se pensarmos a dança como a arte

dança, e contribuindo para formação artística e

É fonte de pesquisa, tema poético, trabalho de

do corpo em movimento no espaço/tempo e o ato

cultural desta criança-cidadã.

base/treinamento corporal, procedimento para a

de brincar como uma manifestação criativa, que

pesquisa de criação e estrutura para composição

tem o corpo e o movimento como veículo de co-

coreográfica.

municação, poderemos estabelecer paralelos e co-

Intencionalmente ou não, neste momento, somos também educadores.

correntes da dança/arte contemporâneas.

Os estímulos sensório-motores, as possibi-

Apesar de vivermos uma cultura da imagem

lidades de movimento, os modelos corporais e

e, segundo Brougère (2004), a televisão ter in-

No trabalho da Balangandança Cia., a trans-

as propostas estéticas apresentadas às crianças

fluenciado diretamente a cultura lúdica infantil,

formação de brincadeiras em dança, a partir da

tornam-se referências e influenciam na constru-

transformando suas referências, inclusive cor-

exploração dos elementos constituintes do movi-

ção de seu movimento/pensamento.

porais, podemos afirmar que o ato de brincar é

mento, de sua descontextualização e ressignifica-

intrínseco ao universo infantil.

ção, e a ludicidade inerente à experimentação do

Além disso, o espetáculo traz um discurso

nexões entre criança – dança – brincadeira/jogo.

com valores embutidos que a criança apreende

O brincar tem suas raízes na interação pre-

de uma maneira mais aberta do que o adulto, que

coce entre mãe e bebê. Conceituado por Winni-

possui mais recursos e crítica para filtrar infor-

cot (1975) como “espaço transicional”, esta zona

O simples exercício do brincar é também par-

mações recebidas.

intermediária da experiência, na qual ocorre essa

te do trabalho de base/treinamento dos dançari-

relação, é “um espaço fecundo de relação amoro-

nos. A brincadeira pressupõe um corpo atento e

sa que contém nele o potencial de virar coisas”.

entregue, presente para lidar com qualquer novo

Torna-se imprescindível pensar responsavelmente nos vários elementos da criação artística

[1]

movimento constroem a dança da brincadeira e a brincadeira da dança.

comprometida com a formação da criança, o que

Entre a realidade e a fantasia, esse espaço

elemento que possa aparecer de forma imprevi-

requer não só criatividade, mas uma pesquisa

potencial possibilita o brincar na criança e pos-

sível. Assim, desperta um corpo disponível para o

maior e mais profunda.

teriormente o potencial criativo no adulto/artista.

movimento, trabalhando com diferentes estados

Os elementos que fazem parte do trabalho

Também é na brincadeira que a criança se

corporais, muitas vezes contrastantes em curtos

da Balangandança Cia. são articulados e cada um

apropria dos códigos culturais e, poderíamos ain-

espaços de tempo. O fluxo de movimento/fluên-

é igualmente importante. O “como” eles se articu-

da acrescentar, que ela se apropria de seu corpo e

cia livre e a(s) qualidade(s) de tônus e disposição

lam é fundamental para criar o todo.

imprime o movimento desse no espaço. A criança

para lidar com o risco, com o imprevisto, a es-


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

33

pontaneidade resultam em um treinamento físico e energético peculiar à construção desta linguagem, semelhante ao da criança. A confiança nas técnicas corporais já inscritas, fruto da história daquele intérprete, dá suporte para seu exercício. Além disso: “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo pode ser criativo e usar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre seu eu (self)” (Winnicott, 1975, p. 80). Para que o criativo possa acontecer, Winnicott acrescenta, ainda, que é necessário um estado de relaxamento, resultante das relações de confiança no ambiente, o qual é representado pela relação com o outro e o meio. Esse estado de relaxamento se associa, no caso do processo criativo em dança, à construção da intimidade com relação ao movimento do(s) outro(s) dançarino(s); à apropriação de seu próprio movimento e, também, à confiança com relação à direção, o olhar “de fora”. À direção cabe criar um ambiente e proposições facilitadoras da exploração do movimento e das experiências durante o processo sem pré-conceber o “resultado” ou a cena, deixando que apareçam elementos sem conexão aparente. O processo criativo da direção manifesta-se, neste exemplo, não só ao compor coreografias, roteiros e fechar cenas, mas ao criar orientações que possibilitem aos criadores-intérpretes acessarem a confiança, a disponibilidade e encaminhamentos que cheguem a um resultado que pode já ter sido intuído ou vislumbrado.

Mulheres insones Foto: Claudio Etges

Novena à Senhora da Graça Foto: Marco Peres

Dança em Jogo

Foto: Gil Grossi

Álbum das Figurinhas Foto: Gil Grossi


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

34

A partir dessa descrição não fica difícil perce-

a singularidade de cada um pode se expressar e é

ber como o improviso está totalmente presente

valorizada. A ideia não é criar um código, mas um

na criança/movimento/brincadeira-jogo, e como

corpo consciente e permeável que comunique e, ao

tal processo é extremamente próximo à improvi-

mesmo tempo, possibilite a invenção, o reagrupa-

sação na dança.

mento de elementos, a descoberta, sua elaboração

A improvisação é o procedimento contempo-

e construção, apoiado na estrutura física.

râneo que dá respaldo para que a criação aconte-

O respeito à diversidade de corpos e de for-

ça. “Tanto para produzir outro vocabulário, quanto

mação dos integrantes da Balangandança Cia.

para buscar conexões inusitadas com o vocabu-

reflete essa proposta. A participação autoral de

lário já estabelecido” (Helena Katz, 2001, p.20), e

cada intérprete e a função da direção como um

ainda, não somente no processo, mas, também,

provocador e organizador de elementos faz com

como produto/espetáculo que necessita do espaço

que o trabalho criativo seja coletivo. A estrutura

de improvisação, quando se trata da construção de

de improvisação em cena permite o exercício do

linguagem de dança para criança.

criador a cada vez, construindo e ressignificando

Sua utilização na condição de linguagem cê-

a obra a cada momento para o intérprete, que se

nica para crianças traz consigo um corpo percep-

apropria do trabalho como um todo e, também,

tivo espontâneo e, ao mesmo tempo, a vivacidade

para o expectador.

do momento da criação em si, efêmero, compartilhado na hora com a plateia. Isto provoca um envolvimento único, tão rico, intenso e significativo quanto no momento da brincadeira. Cria a experiência no expectador.

Faz parte desse processo o resgate da memória da infância de cada um, acessando um universo rico de inspiração e significação em suas mentes/ corpos/ emoções. Na concepção dos espetáculos não são utilizados grandes cenários, com o intuito de abrir

O movimento do outro coloca em jogo

espaço para imaginação e interpretação, para per-

a experiência do movimento, própria ao

mitir que a improvisação ofereça novas imagens

observador: a informação visual provoca

e ressignifique objetos cênicos, para valorizar a

no espectador uma experiência cines-

linguagem e a plasticidade corporal e possibilitar

tésica (sensações internas dos movi-

a realização destes em espaços variados, com ou

mentos de seu próprio corpo) imediata.

sem recursos técnicos.

(GODARD, 2002, p.24)

Diferentes maneiras de coautoria das crianças fazem parte da pesquisa. Nos processos que sem-

Essa experiência modifica o corpo do espec-

pre envolveram a participação de crianças – seu

tador e a produção do que sente, gerando um

olhar e corpo –, e nos produtos: tanto nas cenas

estado corporal que vai interferir no sentido e na

intencionalmente interativas quanto como parte

interpretação do que é visto.

do treinamento dos intérpretes no que tange à es-

A abordagem somática vem de encontro a

cuta e permeabilidade com relação a movimentos,

este trabalho, abrindo novas trilhas perceptivas

reações e comentários das crianças durante os es-

para dar suporte a essa disponibilidade que o cor-

petáculos que acabam por compor, complementar

po precisa e, ao mesmo tempo, propor outras/no-

e modificar cenas, construindo junto.

vas possibilidades motoras para o intérprete e para criança. Um trabalho híbrido, que soma elemen-

Assim, entendo que a Balangandança não faz dança para crianças, mas sim para, com, junto.

tos de diferentes métodos da Educação Somática associados às práticas corporais de cada criador intérprete, às brincadeiras, ao repertório de danças populares brasileiras cria um “corpo” em que

Texto na íntegra em: Põe o Dedo Aqui! São Paulo: Terceira Margem, 2007. p. 36-52.

REFERÊNCIAS bibliográficas BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. Cortez Editora, 2004. GODARD, Hubert. Gesto e percepção. Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: Editora UniverCidade, 2002. GOEBEL W e GLÖCKLER, M. Consultório Pediátrico. São Paulo: Antroposófica, 2004. LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. LENGOS, Georgia. “Dança”. In: BRIOSCHI, G. Arte Hoje. São Paulo: FTD, 2003. LENGOS, Georgia. A Balangandança Cia: Uma proposta artístico-educacional. In: ANAIS da Conferência Continentes em Movimento – New Trends in Dance Teacting. Lisboa: Faculdade de Motricidade Humana, 1999. KATZ, Helena. O Coreógrafo como DJ. In: Lições de Dança 1. RJ: UniverCidade, 2000. KISCHIMOTO, Tizuko. Jogos Tradicionais Infantis. Petrópolis: Vozes, 1993. WINNICOTT, D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

POR Alexandre Medeiros

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criador-intérprete

Dança em Jogo: exercícios cênicos Este texto surgiu do desejo de dialogar com o trabalho Dança em Jogo – exercícios cênicos, que a Balangandança Cia. criou em 2010, quando contemplada pelo prêmio Klauss Vianna em 2009.

Foto: Gil Grossi


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

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1. AMARAL, Lilian, BARBOSA, Ana Mae (Orgs). Interterritorialidades: mídias, contextos e educação. São Paulo: Editora Senac/Edições Sesc SP, p. 43, 2009. In: Caderno - Processos Artísticos, tempos e espaços. Encontro sobre formação artístico-cultural na cidade de São Paulo. São Paulo, 2014.

Um exercício cênico apoiado na linguagem da

cluindo na cena a diversidade dos corpos e suas

um investimento científico que busca

dança e nas relações entre a composição e a im-

movimentações.

aperfeiçoar a representação dos espa-

provisação em cena. Pesquisa esta que nos levou a

Ao nos ocuparmos desta questão da inte-

ços do mundo, preocupada com a pre-

questionar o modo de se pensar a dança contem-

ratividade a cada exercício cênico, estávamos

cisão e as características formais. Mas,

porânea para crianças, compreendendo o corpo

propondo a mobilidade entre os desejos que, em

na contemporaneidade, configura-se

como disparador de afecções e imagens, buscando,

trânsito, ocupam um espaço e um tempo instau-

na busca de soluções de representação

por meio do jogo cênico e da pesquisa, explorar

rado para esse acontecimento criativo; um exer-

para resolver problemas espaciais e re-

a espontaneidade e a ludicidade, para assim nos

cício artístico coletivo que convoca e acolhe os

lacionais. (AMARAL, 10:2014)[1]

aproximarmos daquilo que interessasse à criança.

corpos e os dizeres.

Tal proposta nos levou ao risco e ao mergu-

A linguagem da dança para crianças é algo

Lançar mão de diferentes maneiras de apre-

lho em estruturas já pesquisadas pela companhia

que está constantemente em processo de criação

sentar e apreender tem a ver com deixar que

desde sua fundação em 1997, como é o caso da

na Balangandança Cia., contudo, apoiada em uma

diversas linguagens favoreçam as leituras das

interatividade; nesse trabalho deixávamos em

compreensão que investe no corpo, no gesto, na

intensidades postas em jogo, as quais dizem

aberto a relação com a plateia, estabelecendo

dança e no brincar que os mescla, colocando a

respeito às crianças e aos intérpretes nesse en-

a partir daí situações de trocas que forjavam a

questão lúdica como fundamental.

contro. Retomando os princípios de que corpo,

constituição da própria ação cênica, a qual, apoia-

Aqui, o lúdico está imbricado à improvisação

movimento, gesto e dança são inerentes à vida

da em estruturas de jogos, na dança, na compo-

cênica, a qual, enquanto escolha estética, abre

e vivos no brincar, percebemos que as crianças

sição, em brincadeiras do universo da infância e

à visão política, no que toca a um pensamento

se reconhecem nos movimentos dançados e os

outras criadas na hora, propiciava um encontro

daquilo que se está oferecendo às crianças, no

reconhecem pela proximidade com o universo

que a cada vez punha em evidência uma criação

sentido de que há posicionamento nas escolhas

que a brincadeira abre; o que na Balangadança

coletiva e aberta a seus participantes.

a serem feitas, e que essas dizem respeito e in-

Cia. é o encadeamento de imagens, movimentos,

Nesse sentido, o exercício cênico improvisa-

fluenciam as culturas, pois é fácil detectar estru-

ideias, gestos, dramaturgias etc., simbolicamente

do abria para nós intérpretes-criadores, direção e

turas de pensamento e ações que conduzem a

representativos e derivados das ações envolvidas

público, a oportunidade de criar algo novo, jun-

indústria que produz/induz/maquina desejos para

no brincar.

tos, ali no momento em que toda atenção con-

essa camada da população. Compreendemos que

Hoje, com 20 anos de pesquisa, sete obras

fluía para e na ação cênica. Íamos exercitando

o artista está completamente implicado com suas

cênicas e muitas outras ações em seu repertório,

a todo tempo a escuta para o que surgia como

escolhas e o que delas advém, bem como com

reconhecemos no “Dança em Jogo – exercícios

um possível texto, dando vazão à composição,

aqueles com quem compartilha sua história em

cênicos” o olhar aberto que a Balangandança

aos temas corporais, às sensações e sentimentos,

um determinado território de criação cênica.

Cia. projeta em seu percurso, pois dá-se como

à dança e às dramaturgias, atentos à plateia e à

Desse modo, mapear as ações da pesquisa é

um modo de ler as infâncias a partir dos corpos

possibilidade de incluir sua leitura instantânea

ter olhos para o próprio fazer. Compondo, enfim,

e suas relações com seus meios e nas situações

dos acontecimentos.

uma maneira de ler os desejos e colocá-los em

sociais de cada lugar que pesquisamos, que, no

A partir deste movimento de perscrutar pelo

ação. A pesquisa é ela mesma ação de apresentar

decorrer destes dois decênios, mudaram ininter-

interesse das crianças, fomos entendendo que

e apreender, estruturando-a colaborativamente.

ruptamente.

sua expressão não precisa ser verbal; há que se

Daí que tal modo de pesquisar vai se constituindo

Por isso investimos na proposta de articular

encontrar e desvendar os modos como a criança

como um mapeamento, uma cartografia inacaba-

a experiência estética criativa em dança no con-

expressa seu modo de ver e sentir o mundo.

da, pois viva e mutante, porém contínua, dos in-

tato com a experiência vivida pela criança; seu

É aí que, ao presenciarmos os modos corpo-

teresses da criança para os mais variados assun-

olhar anuncia os direcionamentos dos processos

rais de expressões das crianças, após terem assis-

tos nas culturas da infância. Com isso temos que,

criativos, enfim, a própria obra. É assim que a interatividade vista de maneira ampliada se consti-

tido a um ensaio ou apresentação, fica explícito que nossa tarefa é oferecer espaços para os afe-

Os mapas são processuais. Mais que

tui na Balangandança Cia., como diálogos dentro

tos acontecerem; por isso compor, expor, capturar

objetos, são eventos. São uma mate-

e fora dos exercícios e das obras cênicas; como

e lançar mão dos recursos que interessam para

rialidade inacabada. Não representam

um olhar para a infância e para as crianças com o

dar corpo ao que se quer dizer abrem possibili-

uma verdade. Nesse sentido, a carto-

respeito que elas merecem.

dades de dizer mais e de maneiras múltiplas, in-

grafia não é apenas entendida como


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2016

POR Georgia Lengos

37

coreógrafa

Para um mundo sedento de infâncias

Há quanto tempo você não brinca? Tem tempo de sobra para o ócio, para fazer nada, para divagar? Para ser devagar... Há quanto tempo não se esquece de fazer outra coisa por estar tão envolvido com algo... Tempos contemporâneos brindam-nos com muitas ações, imagens e informações. Pouco corpo, pouco movimento e conexão interna. Neste mundo pouca importância tem sido dada à presença, à integridade, ao estar junto, ao criar. Ao perceber e sentir a si mesmo. A reconhecer eu-corpo. A investigar outras maneiras de estar no mundo, com o outro e no espaço físico. A nossa natureza. Mundo do adulto que se manifesta nas crianças que chegam para sacudir nossas cadeiras! Que lançam ideias disparatadas, fantasias loucas, imagens inusitadas. Sentem e percebem a todo tempo. Que arriscam e se reorganizam constantemente. Prontas para estar no tempo presente. Para se conectarem com o que existe de mais essencial na humanidade, para além de conceitos. Na contramão, as crianças surpreendem, insistem e, por que não, resistem? A Balangandança Cia. brinca, pensa e pesquisa para criar sua trilha. É um convite – e uma provocação – a todos: a cada criança existente/ inscrita em nossos corpos de adultos e às que estão por aí, desmontando brinquedos prontos para inventar outra coisa. Assim, criamos nossas danças, reinventamos nossas vidas e ideais. Escutar e enxergar as crianças para além de ouvir e vê-las. E nos alimentar de nossos poucos espaços e tempos de brincar é fundamental, num mundo tão sedento de infâncias.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2016

38

O oboé e a bicicleta A sinergia entre o oboísta Christoph Hartmann, professor do 7º Festival Internacional Sesc de Música, e os músicos brasileiros trouxe o músico da Filarmônica de Berlim três vezes ao país durante o ano de 2016

Integrante da Orquestra Filarmônica de Berlim,

– ciclismo e corrida – são a outra paixão de Hart-

uma das mais tradicionais e premiadas do mundo,

mann e, segundo ele, auxiliam a manter a forma

o oboísta Christoph Hartmann será professor no 7º

exigida para tocar o exaustivo instrumento e are-

Festival Internacional Sesc de Música, no mês de

jam a mente para outros pensamentos.

janeiro, em Pelotas, pelo quarto ano consecutivo.

Há 19 anos, Hartmann fundou, com alguns

Natural da Bavária, na Alemanha, o músico que

colegas de orquestra, um festival de música de

começou a tocar o instrumento incentivado a par-

câmara em sua cidade natal, o Landsberger Som-

ticipar da primeira turma de oboé da sua escola, es-

mermusiken. “Eu convido meus amigos para to-

tudou com Georg Fischer e depois com o professor

carmos música de câmara juntos por uma sema-

Günther Passin na Academia de Música de Muni-

na no verão numa atmosfera muito intimista. São

que. Ainda antes de concluir os estudos, Hartmann

dois ou três concertos e temos total liberdade nas

entrou para a Filarmônica de Stuttgart como solista

decisões do programa. Não é um evento grande,

em 1991 e no ano seguinte já estreava na presti-

somos em torno de 17 músicos a cada ano, mas

giosa orquestra de Berlim. De lá para cá colecionou

é muito bom para nós.” O festival deu origem ao

inúmeros prêmios em competições internacionais,

grupo Ensemble Berlin.

como a de Toulon, de Genebra e de Tóquio.

Foto: Divulgação Christoph Hartmann

Hartmann é um entusiasta do Festival Inter-

Além de atuar na Filarmônica de Berlim,

nacional Sesc de Música, muito pela capacidade

Hartmann excursiona como solista de concertos

de organização do seu diretor artístico, Evandro

com outras orquestras, na Europa, na Ásia e na

Matté. “Eu amo vir a Pelotas, principalmente por

América, e se dedica à música de câmara, uma

Evandro, o melhor coordenador que já conheci,

de suas paixões e objeto de seus estudos acadê-

nunca apressado, mesmo quando parece que de-

micos. Também ministra aulas uma vez por mês

veria ser, e um excelente músico; e também pela

para uma pequena turma de estudantes na Itália,

disposição de todos os alunos em aprender, o que

país onde encontrou manuscritos durante pes-

sempre gera uma boa atmosfera nas aulas”, diz.

quisa em uma biblioteca do até então esquecido

Outro ponto positivo do festival do sul do

Antonio Pasculli (1842-1924), o mais virtuoso

Brasil destacado pelo músico alemão é a realização

compositor, segundo ele. Em sua homenagem,

de concertos de alunos e de professores todos os

o músico batizou sua marca de bicicletas pro-

dias na Bibliotheca Pública Pelotense, um espaço

duzidas artesanalmente de Pasculli. Os esportes

que considera fantástico. “A qualidade dos outros


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2016

39

professores é muito elevada, o que possibilita fazer excelente música de câmara.” Por todos estes motivos, além do caráter histórico da cidade e da gastronomia local, o oboísta considera o festival do Sesc um de seus favoritos. “Eu participo de muitos festivais e, às vezes, você tem música de câmara de muita qualidade, às vezes o local é especial, os alunos são ótimos ou o festival conta com uma grande orquestra. Mas eu penso que apenas em Pelotas você tem tudo isto junto”, justifica. A participação no festival tem estreitado o contato de Hartmann com os músicos brasileiros. Apenas em 2016, ele esteve no país em outras duas ocasiões. Em Caxias do Sul, foi solista no Concerto para Oboé e Orquestra em Dó Maior, de Joseph Haydn, com a Orquestra da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Depois, foi convidado para tocar com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) duas peças de Pasculli. “Foi incrível!” “Um dos meus músicos brasileiros favoritos, Fernando Deddos, me fez um dos mais felizes oboístas: ele compôs um concerto para mim.” Com Evandro Maté, a estreia mundial do concerto ocorreu em Tübingen, no verão europeu. “Vamos tocar o concerto também no próximo festival de Pelotas. A peça é maravilhosa e só tenho a agradecer ao Fernando”, afirma o músico, um apreciador da música brasileira.


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Experiências que transformam Festival Internacional Sesc de Música, evento realizado em Pelotas no mês de janeiro, que, em sua 7ª edição, já se destaca no calendário cultural brasileiro, é uma oportunidade para os jovens alunos de escolas de música e de projetos sociais de aprender com músicos conceituados do mundo inteiro e de conviver com estudantes de toda a América Latina Desde a reabertura da Escola de Música da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), no primeiro semestre de 2013, a participação de nossos alunos no Festival Internacional Sesc de Música tem sido constante. O festival, que já é um dos mais importantes da América Latina, possibilita aos nossos alunos muitas experiências que eles não têm no seu dia a dia. Um aspecto importante é o contato com grandes nomes do cenário musical internacional. É emocionante ver nossos alunos, muitos dos quais oriundos de famílias carentes, tendo aulas, assistindo a concertos e convivendo com músicos da Filarmônica de Berlim e de outras importantes orquestras, universidades e conservatórios de todo o mundo. Com certeza essa é uma experiência transformadora, não apenas em nível musical, mas também cultural e pessoal. Além dos professores, o festival possibilita também um contato e intercâmbio com alunos de alto nível de toda a América Latina. Isso é muito importante, pois dá a nossos alunos uma ideia do que está acontecendo e do nível musical em outros lugares, fora de Porto Alegre. Some-se a tudo isso o excelente nível dos concertos e recitais que acontecem em grande número durante o evento e que dão aos alunos a oportunidade de assistir ao vivo um repertório que, muitas vezes, não é executado na Capital gaúcha. O festival já faz parte da vida de nossos alunos, sendo realidade para aqueles que já participam e sonho para muitos outros que também gostariam de participar no futuro. Diego Grendene de Souza Diretor da Escola de Música da Ospa – Conservatório Pablo Komlós

Eu desde cedo fui incentivado a tomar classes de pessoas de fora, de outras escolas e estilos, esperando sempre uma soma de tudo pra crescer tecnicamente. O Festival Internacional Sesc de Música foi responsável pelo meu primeiro contato com esses mestres. Tive aula com professores do mundo todo em diversos festivais da América Latina (Venezuela, Argentina e Uruguai), mas o de Pelotas foi o primeiro e um dos grandes responsáveis por isso. A organização é magnífica e a escolha dos professores me leva a participar todos os anos, desde a 4ª edição. Dhouglas Umabel, 18 anos Estuda na Escola de Música da Ospa – Conservatório Pablo Komlós, spalla (1º violino) da Ospa Jovem

Eu iniciei meus estudos de violino muito nova, no projeto Orquestra Villa-Lobos. Era como uma brincadeira que era feita no turno inverso da escola. Anos se passaram e nunca me cansei dessa brincadeira, até o dia em que fui ao meu primeiro festival de música. Era em São Paulo, e com isso vieram algumas preocupações: era outro estado, pessoas que eu nunca tinha visto de nível de musicalidade muito alto. No momento em que subi no palco para tocar pela primeira vez com uma orquestra sinfônica, achei que meu coração ia sair pela boca. A partir disso, eu não tinha dúvida sobre o que eu queria fazer profissionalmente. Quando eu tinha 15 anos, ganhei uma bolsa para o 3º Festival Internacional Sesc de Música. Minha professora de violino na época disse que era muito bom e interessante para o meu aprendizado. No primeiro dia fiquei um pouco assustada, exatamente como no festival anterior. Eu tinha de fazer uma audição na frente de todos os alunos de violino, para que os professores pudessem dividir as turmas e definir quem tocava na orquestra. Um dos professores do festival me abraçou, e mostrou que eu

podia muito mais, que bastava ter dedicação e paciência que o resultado viria. Estudar em projetos sociais proporciona muitas oportunidades, porque as pessoas responsáveis por eles sempre buscam o melhor para o aprendizado dos alunos. Nos projetos, não temos tanta visão de como é o mundo musical lá fora, e os festivais mostram a realidade, dão experiência. Tocar em orquestra sinfônica, conhecer outros músicos, se estressar com o colega de estante, esquecer o lápis e a borracha, estudos diários extensivos, são coisas que, para quem quer ser músico, vai vivenciar praticamente todos os dias. Tudo que acontece no Festival fica guardado na memória, porque, além de estar aprendendo, conhecemos pessoas para a vida inteira, mesmo que sejam de outro estado ou até mesmo de outro país. Todas essas sensações o festival do Sesc me proporcionou, por isso faço questão de todo ano querer voltar. Daniela Luz de Oliveira, 19 anos Estuda na Orquestra Villa-Lobos e Escola de Música da Ospa – Conservatório de Música Pablo Komlós


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Entrei para o projeto Vida com Arte em 2009, no qual passei a ter um contato mais direto com a percussão. Participei de diversas atividades com o projeto e, em 2014, surgiu a oportunidade de participar do 4º Festival Internacional Sesc de Música. Eu não tinha noção de sua grandiosidade. Foi uma experiência única, na qual tive contato com grandes músicos, de diferentes nacionalidades. Não esperava encontrar músicos com nível profissional e logo percebi que, pelo contrário, o festival não é lugar para amadores, e sim para quem estuda e se dedica à música. Isso foi um incentivo, uma motivação para estudar muito mais e poder encarar os próximos festivais de uma maneira mais tranquila, com o nível mais próximo dos outros alunos/músicos. Émerson dos Santos Machado, 19 anos Integrante do projeto Vida com Arte

Participei de duas das seis edições do Festival Internacional Sesc de Música, em Pelotas, e fui selecionado para a edição de 2017. O festival auxilia no crescimento pessoal e musical dos instrumentistas, que têm a oportunidade de conhecer e ter aulas com professores reconhecidos internacionalmente, participar de masterclasses e palestras ministrados por eles, participar de prática musical em conjunto, como orquestras, assistir a magníficos concertos executados pelo corpo docente do festival, além da troca de experiência e contatos com estudantes de música de diferentes partes do Brasil e exterior.

Fui selecionada para participar da 7ª edição do Festival Internacional Sesc de Música e este será o segundo festival do qual irei participar. Assim como o primeiro que fui, estou certa de que este evento me trará uma experiência incrível, uma bagagem musical enorme, além de incentivar ainda mais a ser uma grande instrumentista e, é claro, por meio da música, fazer a diferença e levar a paz para este mundo caótico. Brenda Daniely Silva de Souza, 15 anos Aluna de violoncelo do IPDAE

O Festival Internacional Sesc de Música é uma grande oportunidade de aprendizado. Tive a chance de participar durante dois anos como bolsista, fui contemplado por aulas com professores renomados de outros países a ainda tive a experiência de participar das orquestras, sendo conduzido por maestros de alto nível. Luciano Gularte Corrêa Ex-aluno do IPDAE e formando do curso de bacharelado em música pela UFRGS, integrante da Orquestra de Flautas Transversas

Participar de um festival internacional como o de Pelotas possibilita aos jovens instrumentistas a construção de novos paradigmas, pois se deparam com outros músicos, outras realidades, outros patamares musicais, impulsionando-os a estudarem cada vez mais.

O Instituto Popular de Arte-Educação (IPDAE) propõe o acesso à arte e à cultura por meio da música, da leitura e da história como instrumentos de formação e transformação individual e social de jovens crianças e adolescentes que vivem no Bairro Lomba do Pinheiro e arredores, na cidade de Porto Alegre. A Escola de Música Joan e Donald Sandberg, com 250 crianças, tem um programa de ensino de oito anos de duração, com aulas individuais e por grupos de instrumentos. Hoje, a escola mantém a Orquestra Jovem, a Orquestra de Flautas Transversas, o Conjunto de Flautas Doce “In Nomine”, o Coro Jovem “Vox Habilis” e as Crianças Cantoras do IPDAE, que fazem parte do Coro Infantil. Sempre que existe a possibilidade de os alunos participarem de festivais como o do Sesc, eles se inscrevem, porque sabem da oportunidade que lhes é oferecida em um festival que congrega momentos importantes de aprendizado e difusão, com a possibilidade de intercâmbio entre jovens músicos e professores renomados, possibilitando assim redimensionar e ampliar seus horizontes.

Fátima Flores Jardim Diretora-presidente do IPDAE

Elenice Zaltron Produtora Cultural no IPDAE

Thiago De Souza Pinto Ex-aluno do IPDAE, professor de Viola na instituição

Meu gosto pela música começou ainda criança pelos desenhos animados que via na TV e pelos concertos que eu assistia juntamente com meu pai. Eu ouvia nos desenhos animados as músicas clássicas e isso me fascinava. Ouvindo e conhecendo cada vez mais a música, comecei a gostar e a me apaixonar pelo som do violino, por ser um instrumento diferente, refinado, bonito e atraente de se ouvir. Como meus pais não tinham condições de pagar aulas particulares de violino, eu comecei a participar do projeto Vida com Arte, da Unisinos, em janeiro de 2010. Desde quando comecei a tocar violino, tive e ainda tenho o sonho de me profissionalizar como músico. Neste ano me despedi do projeto para me preparar para o vestibular de música. Desejo, um dia, ter a oportunidade de receber uma bolsa para poder estudar no exterior e fazer uma carreira profissional. Quero aprimorar meu talento e um fator que me auxiliou bastante foi o Festival Internacional Sesc de Música. Participei da 5ª e da 6ª edições e foi uma experiência incrível e totalmente nova para mim. Conheci músicos de outras regiões do Brasil e do mundo. Tive aulas com grandes professores de várias nacionalidades. Aprendi novas técnicas e descobri novas visões no mundo da música. Embora seja um momento de curta duração, são circunstâncias incríveis de transmissão de experiências de músico para músico, em que há novos vínculos de amizades, de conhecimentos, de culturas e idiomas. Em janeiro de 2017 estarei lá novamente! Emanuel Luiz Müller da Silva, 17 anos Ex-integrante do projeto Vida com Arte


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Richard Serraria

1. https://soundcloud.com/tarrafa-produ-es/10malandrotario?in=tarrafa-produ-es/sets/batacla-fcmastigadores-de-poesia 2. Disponível em http://uol.com.br/atualidades/100-anosde-samba-conheca-as-raizes-do-genero-musical-que-setornou-simbolo-nacional.htm

cancionista, poeta, músico, doutorando em Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Samba: o pai da MPB faz 100 anos “Pra cantar samba não preciso da razão

Nasci na Serraria, em 1971, e desde bem peque-

A questão histórica indiscutível é que, com

pois a razão está sempre dos dois lados

no ouvia o samba na eletrola de casa, onde sob

essa música, a palavra samba foi grafada pela pri-

(...)

um braço mecânico imantado se grudavam LPs

meira vez no selo de um disco de vinil. Isso tudo

Pra cantar samba vejo o tema na

de Jovelina Pérola Negra, Clara Nunes, Luiz Ayrão

numa pré-era do rádio, sendo que tais encontros

lembrança

e outros que eram jogados automaticamente ao

proporcionavam a importante divulgação de no-

cego é quem só vê aonde a vista alcança.

toca-discos logo abaixo. Uma educação pelo vinil,

vos sambas. O termo samba era sinônimo de fes-

Mandei meu dicionário às favas

apr(e)ender dos discos a fina gramatura das can-

ta, e depois de Pelo Telefone passou a indicar um

mudo é quem só se comunica com

ções: educanção.

gênero musical. Todavia, a palavra “samba” é de

palavras.” Candeia, Filosofia do samba (1971).

O samba, por sua vez, foi gerado bem antes,

origem africana. Seu primeiro registro no Brasil

sendo considerado como seu nascimento o ano de

foi no ano de 1838, na revista O Carapuceiro, de

1916 com o lançamento da canção Pelo Telefone,

Pernambuco. [2]

“Vou contar para você, a minha

registrada por Donga (1890-1974). A lenda diz que

A canção Pelo Telefone é entendida por mui-

história (...)

esse samba foi composto coletivamente na casa

tos críticos como um maxixe (ritmo miscigenado

Sou de 1971: noves fora, sou um sete

de Tia Ciata no Rio de Janeiro, num procedimen-

que tem em seu DNA a polca europeia com o lun-

um.”

to comum ainda hoje nas rodas de partido alto,

du vindo da África, trazido pelos negros escraviza-

Canção Amor Malandrotário (Bataclã

a saber, o desafio em forma de invenção poética

dos no período colonial). Apesar disso, a história

FC & Mastigadores de Poesia, 2015)

com entonação melódica e ritmo marcado na pal-

a considera como o primeiro samba oficial. Certo

ma da mão. A casa de Tia Ciata, uma negra baiana

é que outros sambas foram compostos antes de

do recôncavo que chegou ao Rio e fixou moradia

Pelo Telefone.

[1]

numa casa na Praça Onze, foi importante espaço

O samba contribuiu ainda de forma decisi-

de integração cultural. Por lá circularam, ainda,

va para o amadurecimento do gênero canção no

além de Donga, João da Baiana, Pixinguinha, Sinhô

Brasil. Pode-se dizer que a base da canção como

e muitos outros músicos/compositores na Pequena

conhecemos hoje, no século 21, tem seus primór-

África, como era chamada aquela parte da capital

dios nesse útero carioca à medida que a canção,

nacional à época.

ao longo do século 20, traz consigo, em certa


MÚSICA

segundo SEMESTRE

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3. Muitos pensadores avançaram buscando entender o “ser brasileiro”. Poderia se citar Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Damatta. Mais recentemente Astréia Soares, em Outras conversas sobre os jeitos do Brasil, afirma haver consenso em relação ao papel estruturante da MPB nessa construção. (SP: Anablume: Fumec, 2002.) 4. Trecho daquele que é considerado o primeiro sambaenredo, Homenagem, composto por Carlos Cachaça em 1934.

43

5. Christopher Dunn, Prof. da Tulane University. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104-93131996000200016. 6. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. 7. Mateus Mapa Berger em Suingue, samba-rock e balanço: músicos, desafios e cenários, Porto Alegre: Editora Medianiz, 2013. A obra fala do suingue gaúcho, o samba-rock paulistano e o balanço carioca – termos usados para designar ritmos semelhantes mas com diferenças sutis, ambos ligados ao samba em suas intersecções com o atlântico negro.

medida, o adjetivo “radiofônica”. Junto ao sam-

arque e o apuro nas letras; Jorge Ben e o samba

princípio de novembro de 2016, na entrega do

ba se criou, ainda, uma das imagens mais fortes

esquema novo; Lupicínio Rodrigues e seu samba

Prêmio Açorianos de Música, no Teatro Renas-

de Brasil, a música representando um papel fun-

bipolar com ritmo brasileiro e temática de tango

cença, destacou-se a obra de Nélson Coelho de

damental nessa construção coletiva do modo de

platino nas letras, e assim por diante.

Castro como expoente do samba praticado no

ser brasileiro e, dentro disso, o rádio tendo papel determinante.[3]

Sendo o samba tão rico e variado, mesmo

Estado. Poderia-se citar ainda Rubens Santos,

com os nomes geniais mencionados, não se es-

parceiro de Lupicínio Rodrigues, também gravado

Para falar do samba nas décadas seguintes

gota em tais artífices cancionais a expansão do

por Jamelão, Túlio Piva, assim como Grupo Pau

do século 20, é importante ainda salientar o Rio

gênero. Nisso é possível pensar ainda no samba-

Brasil, Giba Giba, Carlos Medina, Paulão da Tinga,

de Janeiro na condição de centro político e cultu-

-enredo que passa a caracterizar os desfiles com-

Zilá Machado, Luis Wagner, dentre inúmeros ou-

ral do país. A Rádio Nacional afirma, a partir de

petitivos no Rio de Janeiro e que chega ao Rio

tros praticantes do gênero.

1936, nomes como Donga, Linda Batista, Orlando

Grande do Sul por volta da década de 1930 nas

No século novo, especificamente no Rio

Silva etc. Enquanto se solidifica o desfile compe-

cidades de Rio Grande e Pelotas. Nesse ambiente

Grande do Sul, o samba, como é parte de seu

titivo das escolas de samba na capital federal, já

cultural, destaca-se o sopapo, tambor grande e de

DNA, mostra-se ativo e se miscigenando em

trazendo em si parte do ideário modernista di-

grave absoluto porque inconfundível, fazendo a

inúmeras facetas. O suingue[7] porto-alegrense,

fundido em São Paulo a partir da década de 1920,

função do surdo de terceira e conferindo caracte-

a forma como o samba-rock aparece denomi-

permanecem desconhecidos do público sam-

rística única ao samba sul-rio-grandense.

nado na Capital, tem representantes fortes nas figuras de Xandele, Casa da Sogra, Tonho Croc-

bistas notáveis como Paulo da Portela, Cartola,

co, Kaubi Tavares e muitos outros. Também no

compositores, gravados posteriormente por Fran-

O samba contemporâneo e sua vertente gaúcha

cisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Araci de

Outras dimensões do samba seguem paralela-

Tribo Brasil etc.

Carlos Cachaça, Armando Marçal dentre outros poetas que viviam cantando na verde colina.

[4]

O

poder transformador do samba se aplicaria a tais

âmbito do rock, em seus desdobramentos junto ao pop, vislumbra-se o samba em grupos como Ultramen, Bataclã FC, Zumbira & Os Palmares,

Almeida... E o poder contestador também pode-

mente seu curso e o samba de partido alto tam-

Por último, a “educanção” se fazendo ho-

ria ser pensado aqui, à medida que esses compo-

bém permanece ativo, revelando grandes expo-

menagem, via Bataclã FC, que em 2015 lançou

sitores não gravaram suas canções. A discussão

entes até a atualidade. Aí se poderia citar Zeca

o disco A Teimosia da Felicidade, no tema Samba

sobre mestiçagem se estabelecia também via Gil-

Pagodinho, Arlindo Cruz e ainda Fundo de Quin-

da Aranha, uma homenagem a um velho griô pe-

berto Freyre, mas parece inegável que quem mais

tal, tendo o pagode do fim do século 20 como um

lotense construtor de sopapos, Mestre Baptista.

se beneficiava da entronização do samba como

derivado dessa vertente. Outra faceta do mesmo

Eis aqui uma ilustração de um samba-rock com

entidade nacional eram os intérpretes brancos.

berço é o samba de breque, no qual se desta-

DJ de hip-hop e, claro, sopapos em posição de

Hermano Vianna,[6] por sua vez, falou do mistério

caram Bezerra da Silva, Dicró, Kid Morengueira,

destaque no arranjo da canção. Nos moldes da

do samba, sua passagem do morro para o asfalto,

dentre muitos outros improvisadores que fazem

poesia que veio de longe, ao mesmo tempo que

da periferia para o centro da cultura brasileira e,

do humor a marca desse tipo de samba.

se comemoram 100 anos do primeiro samba, Pelo

[5]

a partir disso, pode-se expandir a ideia de que é

Saindo do Rio de Janeiro e imediatamente

parte de um processo de privilégio e seleção, tra-

pensando São Paulo como contraponto geográ-

zendo consigo significados raciais.

fico-histórico, pode-se citar Geraldo Filme, De-

Nesse contexto apareceram figuras funda-

mônios da Garoa, parte da vanguarda paulistana

mentais no fortalecimento do samba e que são

oitentista e, ainda mais recentemente, Clube do

alicerces da canção como expressão de brasili-

Balanço, como capazes de desconstruir a expres-

dade. Pode-se citar Noel Rosa e sua forma pe-

são do poeta, e porque não, o sambista carioca

culiar de narrar o cotidiano; ainda Ary Barroso e

Vinícius de Moraes, de que “São Paulo é o túmulo

sua ideia do samba orquestrado; Dorival Caymmi

do samba”.

com a temática praieira materializando o recôn-

O maranhense João do Vale dizia ainda que

cavo afro baiano; Tom Jobim e o samba jazz; João

o samba era a voz do povo e muitos outros sam-

Gilberto definindo contornos aos intérpretes de

bistas seguem se expressando junto dessa matriz

canção; Cartola e o samba de morro; Chico Bu-

musical tão brasileira. No Rio Grande do Sul, no

Telefone, em 2016, o samba segue vivo também pelo Iphone.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2016

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O Sopapo

expansão para a música popular gaúcha por meio

“Instrumento musical de aproximadamente

2000, em Pelotas. Nos anos de 2013 e 2014, o Ala-

Foto: Joel Vargas

bê Ôni, grupo centrado na valorização do grande

Dança de Negros. aquarela de Hermann Rudolf Wendroth, pintada na região de Pelotas na metade do século 19

150cm de altura e 60cm de diâmetro, dono de um grave absoluto, esculpido originalmente com tronco de árvore e couro animal, cavalo ou gado preferencialmente. Elo de ancestralidade com a Mãe África, ritual de permanência, objeto de eternidade: sopapo, enquanto instrumento profano, exige apenas mãos para ser tocado. Enquanto instrumento sagrado, ligado ao batuque gaúcho, exige apenas a devoção das mesmas mãos que faziam a carne de sal e ainda hoje fazem o carnaval.” Texto transcrito do documentário O Grande Tambor (Coletivo Catarse/Iphan; 2010). Chega ao desfile de carnaval em Porto Alegre por meio da Academia de Samba Praiana, fundada em 1960 por intermédio de Giba Giba junto com outros pelotenses. Depois ocorreria a “carioquização” do samba gaúcho na década de 1970, acentuando-se na década de seguinte, influenciada pela televisão que divulga para todo o país o desfile “oficial” das escolas de samba do Rio de Janeiro. Assim, o sopapo perde espaço nas baterias para os instrumentos sintéticos, numa tentativa de cópia do modelo carioca. No final do século, começa sua

do Projeto Cabobu, que teve duas edições no ano

tambor negro gaúcho, circulou por todo país no Projeto Sonora Brasil (Sesc), apresentando a faceta religiosa do sopapo.

Em conformidade histórica com a aquarela, Serraria (com as duas mãos no tambor), no Museu Joaquim Felizardo, em Porto Alegre, 2016


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Lucas Luz

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idealizador e proponente do projeto Gema (projetogema.com.br)

Cada mestre é uma gema Tem gente que estuda para ser mestre. Alguns fazem imersões, residências, desenvolvem teses e teorias. Outros persistem e, como se subissem uma escada, se tornam. Tem aqueles que encontram na porrada dos dias e em seus virtuosismos “quase jogos-de-cintura” a sua formação. E tem também aqueles que simplesmente nascem em um ambiente permanente de aprendizado, no qual os cuidados e o carinho dos mais velhos são os conteúdos essenciais, endossados pelos seus sistemas sensoriais e afetos que os presenciam e admiram. Assim, filhos de uma ecologia singular, nascem os mestres populares, de tantas culturas tradicionais que nesse imenso território criativo, chamado planeta Terra, habitam e cultivam suas raízes, seus troncos, suas folhas e seus frutos.


AUDIOVISUAL

segundo SEMESTRE

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Rainha Ginga e Rei do Congo do Maçambique de Osório, Sra. Severina Dias (in memorian) e Sebastião Antônio Foto: Lucas Luz

Regional do Ibicuí Foto: Lucas Luz

Um mestre da cultura popular é alguém

Em Gema, projeto que idealizei e que, du-

que tem em sua palavra uma pedra preciosa, um

rante todo o ano de 2016, realizei com a colabo-

brilho, uma eternidade. É, acima de tudo, um co-

ração de uma equipe de amigos e profissionais,

municador. Desses que se comunicam principal-

tive, mais uma vez, a possibilidade de vivenciar

mente de forma não verbal, silenciosa, com um

estes mestres, algo que desde 2002 já me pro-

Foto: Mario Neto

olhar ou um gesto. Ainda antes de se expressa-

ponho a fazer. Dessa vez, dentro do próprio es-

Bonitinho

rem, possuem ouvidos atentos, são como satéli-

paço do Rio Grande do Sul. Já havia percorrido

tes captando sinais que ao redor se manifestam.

algumas capitais e cidades do interior das regiões

Foto: Mario Neto

Analisam, avaliam, aproveitam o que podem e o

Nordeste e Sudeste, tenho relações afetivas com

Adelar Bertussi

que não lhes servem, deixam de lado. Respeitam.

o Maçambique de Osório já faz um bom tempo (o

Trazem consigo conhecimentos ancestrais e ge-

grupo inclusive batizou minha filha em uma Festa

nuínos, aprendizados que sustentam o presente

do Rosário), mas ainda não tinha tido coragem de

e que podem ser as respostas mais puras para o

penetrar o nosso Estado de forma tão profunda.

futuro, que cada vez mais se anuncia assustador.

Profundidade essa que facilmente se descobre

Não espere de um mestre de cultura tradicio-

rasa, sendo apenas um fio de uma superfície que

Cacique Afonso da Costa e Vherá Poty

Foto: Francisco Cadaval

Luis Vagner

Foto: Mario Neto

nal o conhecimento dos livros, acadêmico. Pode ser

encobre ainda muitos mistérios.

que encontre, mas essa não é a busca. Um mestre

Foram feitos registros com 10 diferentes

tradicional não legitima seus saberes nas paredes

protagonistas, sendo assim gerados conteúdos

da universidade ou no diploma, que pendurado na

multiplataformas, como textos, fotos, vídeos do-

parede se transforma em um elemento decorativo.

cumentários em curta-metragem, podcasts, site

O seu saber é vivo, orgânico. Não propõe verdades

e revista. A partir de visitas e gravações itineran-

absolutas, mas se constrói de várias delas. Tem a

tes, registramos os índios guarani mbyá da Aldeia

riqueza dos detalhes da oralidade, mesmo que eles

Tekoa Guaviraty Porã, em Santa Maria; Maçambi-

não sejam os mesmos dados precisos e estatísticos

que de Osório, grupo com no mínimo 144 anos de

das páginas dos livros de história. Traz um ponto

atividades ininterruptas; Bandinha Típica Alemã

de vista crucial para uma comunidade, para uma

Goela Seca, da cidade de Feliz; Mestre Paraque-

família, para um ecossistema e, principalmente,

das, sambista com quase 80 anos de história no

para a sua vida, o seu sujeito coletivo.

Carnaval de Porto Alegre; Luis Vagner, guitarreiro

São em seus convívios e territórios que cole-

de Bagé que é um dos responsáveis pelo que hoje

cionam os instantes que formam suas essências e

se conhece como samba-rock; Bonitinho, o guitar

seus caracteres. Não precisam ir para fora e nem

hero dos pampas; Adelar Bertussi, um dos mais

manter olhares distantes para entender as ciên-

icônicos e importantes acordeonistas do Brasil;

cias artesanais que dão luz e compõem as suas

Regional do Ibicuí, um grupo formado por qui-

paisagens. Seus conhecimentos são de dentro

lombolas do Quilombo Ibicuí da Armada e seus

para dentro, lá que a diferença que fazem é ges-

vizinhos, lá de Santana do Livramento; Antônio

tada, nasce e é muito bem cuidada, sendo alimen-

Carlos de Xangô, um dos mais antigos alabês e

tada, acalentada, protegida da força do tempo e

pais de santo do Rio Grande do Sul; e, por último,

suas mudanças e, sobretudo, amadurece. Mas,

lá na Linha Solidão em Maquiné, Mestre Renato,

como diz o ditado, “um filho é algo que a gente

mestre de terno de reis e luthier de rabecas, violi-

cria para o mundo…”. Não à toa, hoje, no mundo

nos, cavaquinhos e violões.

todo, a cultura popular é um fenômeno, ocu-

Dentro desse recorte de 10 protagonistas,

pando dissertações, espaços na televisão ou na

nem todos são considerados ou se consideram

indústria cultural. De dentro para fora, preenche

mestres, o que também pode ser muito subjeti-

e ressignifica a vida de muitas pessoas, encontra

vo. Vherá Poty, jovem liderança mbyá, entende-se

novos sentidos.

muito mais como um mediador entre sua tribo e


AUDIOVISUAL

segundo SEMESTRE

2016

47

os giruás (não índios) do que como um detentor dos grandes conhecimentos de seu povo. Como ele mesmo escreve na apresentação de um livro de fotografias em que é coautor, “é aquele que escuta quando os mais velhos falam”. Paraquedas é mestre griô, contador de histórias, tem em sua palavra o poder do ensino e de um caminho alternativo para muitos jovens; Faustino Antônio é o Chefe do Tambor do grupo Maçambique de Osório, o que o torna, de certa forma, o mestre do grupo: a tradição está com sua família há gerações, já foi dançante (o último da fila), guia e, se precisar, será o Rei, função hoje ocupada por seu pai. Mestre Renato recebeu em 2009 o Prêmio Culturas Populares Dona Isabel do Ministério da Cultura, em reconhecimento ao seu trabalho; Romeo Mário Braun, da Goela Seca, diz que é o seu “dirigiente”; Antônio Carlos de Xangô segue formando alabês e tem filhos de santo mundo afora; Nilton Vaqueiro, da Comunidade Quilombola Ibicuí da Armada, é trovador, locutor de rodeios, tem o dom da palavra: é ele quem conhece e conta a saga de sua família e ensina sobre as tradições locais, como o preparo

até eles – a maior parte delas desconhecíamos –,

do café tropeiro.

mas são elas que agora fazem com que os quei-

Adelar Bertussi e Bonitinho, embora nasci-

ramos por perto, para sempre. Contam histórias,

dos no interior do Estado, imersos em suas cul-

guardam os conhecimentos de seus antigos e

turas locais, estavam sintonizados nas ondas do

com muito respeito transmitem aos mais novos,

rádio ou nos fluxos da fronteira, percorreram

são mediadores, vivem naquilo que para muitos é

com seus ônibus boa parte do chão gaúcho e

apenas exótico, realizam trocas, respeitam o tem-

brasileiro, acumulam trocas e experiências, têm

po e o espaço.

muito para ensinar. Luis Vagner, com toda a sua

Dentro desta perspectiva, e dentro do que

espiritualidade e generosidade, emociona aqueles

propomos em nosso projeto, cada um deles é uma

que o acessam, seja através de sua música, seja

vida, um embrião para que novos nascimentos –

através de seu abraço. Se oferece e se entrega por

de ideias, de arte, de cultura – aconteçam, sem

inteiro, somando na vida de quem lhe procura e

prazo ou data de validade. Em cada nascimento,

permite novas amizades.

os mesmos traços dos seus antepassados, ou mis-

Assim, todos os protagonistas do projeto

turados, como o povo e a história que se fundem

Gema constroem e afirmam suas identidades,

e se envolvem. Para nós, são como gemas, das

por mais tortos que os seus caminhos e proces-

quais podemos esperar um alimento (para alma)

sos possam ter sido. Identidades, deles e de suas

ou uma vida, que nasce e que faz nascer. Ou essas

comunidades e/ou coletivos, que precisam ser tão

duas coisas em uma só. Tal qual as culturas, his-

respeitadas como a atriz da telenovela em horário

tórias e tradições que personificam, são eternos.

nobre ou o craque do seu time do coração. Não

São mestres, e cada mestre é uma gema.

foram as características citadas que nos levaram


AUDIOVISUAL

segundo SEMESTRE

2016

Por Gilka Vargas e Iara Noemi

48

Gilka Vargas é cineasta, pesquisadora e educadora; mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); bacharel em Artes Plásticas e em Psicologia; licenciada em Artes Visuais. Iara é cineasta e pesquisadora.

A mostra de cinema Jidaigeki: viajando com Kurosawa ao Japão feudal, organizada pelo Departamento Nacional do Sesc, está em circulação pelos município gaúchos desde o segundo semestre de 2016.

Um olhar humanista sobre a obra de Akira Kurosawa “Não há nada que diga mais sobre

sentido para o público japonês, eu – como artis-

conhecido por sua teimosia e perfeccionismo, era

um criador que o próprio trabalho

ta japonês – simplesmente não estou interessado

taxativo quanto ao controle artístico de seus fil-

que realiza.”

nele” (KUROSAWA apud RODRIGUES, 1968, p. 17).

mes. Observador tenaz da realidade social de seu

Ao todo, realizou 32 filmes, e os produzidos

país, mostra ao mundo o Japão em diferentes mo-

Akira Kurosawa

entre os anos 1950 e 1965 obtiveram êxito de

mentos: feudal, em guerra e pós-guerra, enfren-

Falar sobre Akira Kurosawa é falar sobre um artista

bilheteria no Japão e sucesso no cinema interna-

tando primeiro a rigorosa censura dos militares

completo e complexo que proporcionou ao Oci-

cional. Diretores estrangeiros foram influenciados

japoneses e, depois, a dos aliados macarthistas.

dente vislumbrar o Japão e sua riqueza cultural nas

diretamente por seu trabalho: foi realizado o re-

Mantém suas raízes na tradicional cultura

telas a partir dos anos 1950. Desde o Leão de Ouro

make de Os Sete Samurais (1954) por John Sturges

japonesa e torna-se o mais universal dentre os ci-

recebido por Rashomon (1950) no Festival Interna-

(Os Sete Magníficos, 1960); Sergio Leone rodou

neastas asiáticos justamente por tratar de temas

cional de Cinema de Veneza em 1951, Akira e sua

seu spaguetti wersten Por um Punhado de Dólares

universais: transporta Shakespeare (Ran) para

obra invadiram o mundo ocidental que se rendeu,

(1964) baseado em Yojimbo (1961); A Fortaleza Es-

o Japão feudal a fim de mostrar o ser humano

reconhecendo seu valor artístico. Entretanto, no

condida (1958) tornou-se referência do cinema ja-

por inteiro, com suas limitações, suas ambivalên-

Japão, foi acusado de se ocidentalizar: sua paixão

ponês de aventuras, sendo fundamental para Star

cias, seus conflitos. Em Rashomon, brinca com a

pelo cinema norte-americano (especialmente por

Wars (1977), de George Lucas. Em Coração Valente

mentira e a verdade detrás das quais o homem se

John Ford) e pelo europeu (expressionismo alemão,

(1995), Mel Gibson dirige suas cenas de batalha

esconde e se protege, e deixa clara sua capacida-

Eisenstein) foram alguns dos argumentos utiliza-

seguindo a estética das sequências de Kagemusha

de em penetrar na alma humana. Suas indaga-

dos para isso. Porém, ao visitar sua obra e ler sua

– A sombra do samurai (1980) e Ran (1985). No

ções humanistas o aproximam de Dostoiévski e

autobiografia, percebe-se claramente seu desejo

rol dos diretores que o reverenciam encontram-se

apresenta O Idiota (1951), ambientado no Japão

de trabalhar as tradições culturais e artísticas de

Fellini, Coppola, Kitano, Scorsese, Orson Welles, Ta-

pós-guerra, trazendo para a tela os dilemas e tor-

seu povo, ao mesmo tempo em que assimila esté-

rkovski e Spielberg, dentre outros.

mentos dos três protagonistas.

tica e técnica ocidentais. “Eu nunca faria um filme

Akira, chamado O Imperador por seus admi-

Seu olhar humanista proporciona ao espec-

para um público estrangeiro; se o filme não tiver

radores, amava o que fazia; de personalidade forte,

tador uma obra densa na qual mescla o espírito


AUDIOVISUAL

segundo SEMESTRE

2016

1. “Meu modo de utilizar a música é diferente: não a coloco onde a maioria o faz [...] comecei a pensar em termos de contrapontos Fotos: Frames extraídos do filme Cidadão Kane de imagem e som em lugar da união de imagem e som” (KUROSAWA, 1990, p. 298). 2. Kendo significa “caminho da espada”. Esgrima tradicional japonesa baseada nas técnicas de luta empregadas pelos samurais. 3. Shodo significa “caminho da escritura”. Caligrafia japonesa que exige tanto destreza como disciplina em sua execução. 4. Benshi deriva de ben (narração) e shi (mestre, samurai). Era um narrador de filmes mudos, dava voz aos personagens, além de explicar a trama e falar sobre o país de origem do filme antes da projeção.

49

rio, e após as aulas, praticava shodo.[3] Yutaka ti-

mirava o irmão e sua profissão; para ele, “[...] o

nha o hábito de levar os filhos às tradicionais nar-

narrador não apenas contava a trama do filme,

rações de contos em salões musicais, e para ver

mas também intensificava seu conteúdo emocio-

filmes em uma sala que exibia, em sua maioria,

nal com a voz e os efeitos sonoros; proporcionava

produções americanas e inglesas. Para Kurosawa,

descrições evocadoras dos acontecimentos e das

a atitude de seu pai frente ao cinema o fortaleceu

imagens da tela” (KUROSAWA, 1990, p. 123).

e o animou a tornar-se um cineasta: “[...] ele nos

Em 1928, aos 18 anos, prestou exame para

levava a vê-lo com frequência. Constantemente

a Academia de Arte de Tóquio, não sendo aceito.

defendeu sua convicção no valor educativo do

Continuou estudando e pintando em casa, tendo

cinema, inclusive mais adiante, em tempos mais

um trabalho selecionado para exposição na con-

japonês e os valores universais, ao mesmo tempo

reacionários, nunca mudou de opinião” (KURO-

ceituada galeria Nitten. Neste momento históri-

em que cria imagens de intenso senso plástico.

SAWA, 1990, p. 26).

co, o Japão encontrava-se com sérios problemas

Suas indagações sobre o homem e seus conflitos

Ao ingressar na escola, Akira era tímido,

econômicos e sociais; sua família enfrenta restri-

psicológicos, seus dramas éticos e morais, vêm

chorão e franzino. Surge, então, o professor Sei-

ções financeiras e o jovem Akira constrangia-se

acompanhados pelo domínio técnico: roteiros

ji Tachikawa, considerado por ele como um dos

em gastar com material de pintura, dedicando-

bem escritos; storyboards detalhados; movimen-

pilares de sua formação. Mestre inovador, pos-

-se, então, à literatura, ao teatro, à música e ao

tos de câmera e enquadramentos bem planeja-

suidor de métodos pedagógicos avançados para

cinema, atividades possíveis ao parco orçamento

dos; técnica primorosa de montagem; beleza e

sua época, foi por seu intermédio que o menino

familiar. Comprava livros em sebos, ouvia música

precisão nos cenários; uso expressivo do preto e

conheceu o universo da pintura. A relação esta-

clássica na casa de amigos, frequentava concer-

branco e das cores; impecável direção de atores; e

belecida entre ambos, os incentivos dados pelo

tos, exposições. Como seu irmão Heigo, escrevia

trilha sonora que multiplica a imagem.

professor e o reconhecimento da qualidade de

programas de cinema, especialmente sobre filmes

seus próprios desenhos fizeram com que Akira se

estrangeiros, recomendava quais ele deveria as-

Artes visuais e luta samurai

sentisse seguro, elevando sua autoestima, o que

sistir e lhe conseguia entrada gratuita. “Eu mes-

Akira traz em seus filmes as influências de sua

teve como resultado uma melhora geral em seu

mo estou surpreso pelo número de filmes que

infância. Cresceu entre o campo e a cidade em

desempenho escolar. Quando Tachikawa saiu da

vi em minha juventude; filmes que marcaram a

um momento em que esta começava a absorver

escola, o menino visitava-o diariamente após as

história do cinema, e devo isto ao meu irmão”

ideias do mundo exterior; simbolismo, vanguar-

aulas, agora como seu amigo.

(KUROSAWA, 1990, p. 123).

[1]

da e tecnologia conviviam com as filosofias mais

Com Heigo, seu irmão mais velho, apren-

Em 1929, acreditando ser urgente se expres-

tradicionais. Seu pai, Yutaka Kurosawa, era um

deu a admirar importantes escritores ocidentais,

sar perante a vida, ingressou na Liga de Artistas

orgulhoso descendente de samurais e fez com

como Dostoiévski, Gorki, Tolstoi e Shakespeare.

Proletários, de inspiração marxista, permanecen-

que o pequeno Akira, seu caçula, tivesse uma ro-

Heigo Kurosawa não era apenas leitor entusias-

do até 1932. Distanciou-se ao perceber que o

tina rígida e disciplinada: pela manhã, antes de ir

mado dos clássicos russos e cinéfilo: era um im-

grupo tendia a um estilo realista, julgando que

para a escola, treinava kendo, orava no santuá-

portante benshi em Tóquio. O jovem Akira ad-

isto limitaria seu potencial artístico, e por sentir

[2]

[4]


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segundo SEMESTRE

2016

50

5. O teatro No se desenvolveu por volta do século 15 e traz temas ligados à religião e à mitologia. Em suas representações utiliza música, dança, canto e um figurino rebuscado. 6. O teatro Kabuki tem por base lendas populares e se caracteriza pela refinada atuação dramática, realizada por um elenco exclusivamente masculino (KUROSAWA, 1990, p. 221).

que “[...] minha própria febre de esquerda nunca

Soltei todas as minhas críticas acumuladas e me

amizade além da profissão. Ao lado de Yamamoto

havia sido real” (KUROSAWA, 1990, p. 130).

diverti bastante fazendo isto” (KUROSAWA, 1990,

por sete anos, tornou-se um primeiro assistente de

Em 1933, para ajudar no sustento dos pais

p. 144). Surpreendeu-se ao ser chamado para as

direção dedicado, disciplinado, criativo, assumindo

após a morte de seus dois irmãos, passou a traba-

etapas seguintes: descrever o cenário de uma de-

por diversas vezes a direção da segunda unidade

lhar com ilustrações para revistas femininas, histó-

terminada cena e ser entrevistado por dois exami-

de gravação, aprendendo todos os passos neces-

rias em quadrinhos para revista de beisebol, dese-

nadores. Com sua experiência na pintura, resolveu

sários à produção de um filme – desde o roteiro,

nhos para escolas culinárias e cartazes de filmes.

com facilidade a questão do cenário. Quanto à en-

passando pela elaboração e construção dos cená-

trevista, foi uma conversa longa e agradável que

rios, pela revelação da película, pela montagem até

O cineasta dos storyboards impecáveis

abordou música, pintura e cinema. Akira nunca ha-

a finalização do som.

via pensado em trabalhar com cinema; entretanto,

Em 1943, Akira dirigiu seu primeiro filme,

O jovem Akira cresceu conhecendo e admirando

“[...] havia me dedicado à pintura, à literatura, ao

Sanshiro Sugata – A saga do judô. Trata-se da ini-

indistintamente clássicos ocidentais e japoneses

teatro, à música e a outras artes; havia quebrado a

ciação física e mística nas artes marciais de um

da literatura, do cinema, da música, da pintura;

cabeça com todas essas questões que, afinal, a arte

famoso campeão de judô do início do século 20. Já

assistindo a narrações de contos, a representações

do cinema reúne. [...] tudo o que posso dizer é que

neste filme imprimiu algumas de suas influências:

do teatro No, e tornou-se campeão de kendo e

a preparação foi totalmente inconsciente” (KURO-

as cenas dos vários duelos foram coreografadas de

aficionado do golfe. É com esta bagagem cultural

SAWA, 1990, p. 145).

modo original, o progresso interior do noviço foi

[5]

que, aos 25 anos, respondeu a um anúncio para

Em seu segundo trabalho para o PCL foi de-

mostrado. É possível reconhecer aqui o pequeno

participar da seleção para o cargo de assistente de

signado a fazer assistência para Kajiro Yamamoto,

Akira: aprendiz esforçado de kendo e aluno con-

direção no Photo Chemical Laboratory (PCL), futu-

um dos seus entrevistadores, importante diretor

fiante do professor Tachikawa.

ra produtora Toho.

e “[...] o melhor professor que tive em toda a mi-

A partir deste filme, muitos outros se segui-

Como primeira parte do processo de sele-

nha vida” (KUROSAWA, 1990, p. 145). Yamamoto

rão sem que se prendesse a apenas um gênero;

ção, foi solicitado um texto sobre as deficiências

era um homem flexível, de caráter agradável e

eclético, explorou os filmes de época (jidaigeki),

fundamentais do cinema japonês. “Não lembro do

mente aberta, permitindo aos seus assistentes ex-

contemporâneos (gendaigeki), realizou adapta-

conteúdo exato de meu ensaio [...] como era um

pressarem suas opiniões, e com ele Akira reviveu

ções de clássicos da literatura ocidental: O Idiota

fanático por cinema, havia encontrado muitas

a relação que teve com o professor Tachikawa, na

(1951), Trono Manchado de Sangue (1957), Ralé

coisas no cinema japonês que não me satisfaziam.

qual havia a liberdade criativa, o respeito mútuo, a

(1957), Céu e Inferno (1963), Ran (1985); adap-


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51

tou o teatro Kabuki [6] (Os Homens que Pisaram na

realizar seu trabalho. Para Ran (1985), levou cinco

Cauda do Tigre, 1945); flertou com a comédia, o

anos preparando as pinturas, que trazem clara-

drama psicológico, o cinema noir; homenageou

mente sua visão do filme. Serviam, também, como

o cinema mudo. A cada filme, uma nova pesqui-

registro de suas intenções, caso não conseguisse

sa abordando temas fundamentais de sua época

produzir os filmes.

sob uma perspectiva crítica objetiva voltada para

Qual a unidade de sua obra? A cada filme

a revelação dos múltiplos caminhos que se abrem

histórico pode-se ver os movimentos do pequeno

para o homem. Para ele, um constante exercício de

lutador de kendo; a cada fotograma, a precisão e

determinação, pois “[...] para um diretor, cada tra-

a disciplina exigidas pelo shodo; a cada harmo-

balho que finaliza supõe uma vida por inteiro. Vivi

nização das cores, o jovem pintor dedicado; em

muitas vidas diferentes em cada um dos filmes que

vários filmes, a relação professor-aluno: Cão Da-

fiz. Por isto, a preparação de um novo requer um

nado (1949), Os Sete Samurais (1954), A Saga do

esforço tremendo para poder esquecer o universo

Judô (1943), Sanjuro (1962), Barba Ruiva (1965) e

anterior” (KUROSAWA, 1990, p. 202).

Madadayo (1993).

Ao iniciar um novo projeto, utilizava-se de

Shakespeare e Dostoiévski lhes eram caros

velhos e bons conhecidos: o desenho e a pintura.

porque, assim como eles, preocupava-se com o

Enquanto escrevia os roteiros, desenhava as cenas,

homem e sua incapacidade de convivência pacífi-

os enquadramentos, a atmosfera, a composição, a

ca, sua ambição pelo poder, as constantes e recor-

perspectiva, a textura, a iluminação, o figurino, os

rentes disputas entre o bem e o mal, a prevalência

acessórios; tudo com extrema riqueza de detalhes.

da vaidade, do egoísmo, do mentir para si mesmo.

Minucioso, a cada filme pesquisava sobre a época,

Quando seus assistentes lhe pediram que explicas-

os objetos, a arquitetura, o vestuário – e o resul-

se o roteiro de Rashomon (1950), “[...] respondeu

tado aparece em seus desenhos e pinturas. Para

que o roteiro era ininteligível porque tratava do

a realização de Os Homens que Pisaram na Cauda

espírito ininteligível do ser humano [...]” (NOGAMI,

do Tigre, estudou com afinco o teatro Kabuki: seus

2010, p. 77).

cenários, seus figurinos, o movimento dos atores no palco.

Sua filmografia carrega o seu rigor, sua disciplina, sua exigência consigo mesmo e com sua

Desenhava seus storyboards para refletir so-

equipe; o modo como colocou na tela a cultura de

bre o ambiente, a personalidade e as emoções dos

seu país, cultura essa que assimilou ao longo de sua

personagens, qual o melhor ângulo da câmera para

vida, integrando-a a cultura ocidental. Akira era

determinado movimento. Sentia a necessidade de

um homem do mundo e seus filmes mostram isto.

capturar a imagem de cada cena para visualizá-

“Nunca me sinto deslocado no estrangeiro, mesmo

-la com clareza e montar mentalmente o filme

que não fale nenhum outro idioma. Acredito que

que desejava fazer. Em alguns de seus storyboar-

meu lugar é a Terra” (KUROSAWA, 1990, p. 103).

ds, como de Kagemusha – A sombra do samurai (1980) e Sonhos (1990), percebe-se a mescla da pintura impressionista – Van Gogh, Renoir, Cézanne – e da complexa iconografia japonesa. Os storyboards faziam parte de seu processo criativo. Entretanto, tinham também outras funções: eram um elemento a mais quando da captação de recursos para realizar o filme. Além do roteiro, mostrava para as produtoras como pretendia

REFERÊNCIAS bibliográficas KUROSAWA, Akira. Autobiografia (o algo parecido). Trad. Raquel Moya. Madrid: Fundamentos, 1990. MUSEO ABC. Los dibujos de Akira Kurosawa. La mirada del samurái. Madrid: Fundación Colección ABC y Tf. Editores, 2011. NOGAMI, Teruyo. À Espera do Tempo – Filmando com Kurosawa. Trad. Diogo Kaupatez. São Paulo: Cosac Naify, 2010. RODRIGUES, Jaime. Kurosawa. FILME Cultura. Rio de Janeiro: INC, Ano II, n. 9, 30 abril, 1968, p.02-19.

Storyboards feitos por Akira Kurosawa


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Infância e juventude na tela Festival Cine Caramelo, com sessões para adultos e crianças, possibilita a reflexão sobre temas como diversidade cultural, meio ambiente, amizade e afeto O audiovisual é uma janela das relações sociais do

pais e educadores, diretamente envolvidos em sua

Caramelo oferece, para educadores que levam seus

mundo e um importante instrumento formador de

formação. Uma das propostas inéditas desta últi-

alunos às sessões, um material educativo intitula-

opinião e de comportamento. Ao proporcionar cul-

ma edição foi o Encontro Brincante para adultos,

do Possibilidades Pedagógicas, com propostas para

tura cinematográfica de qualidade, o festival Cine

que aconteceu na Sala Redenção, em Porto Alegre,

serem trabalhadas antes e depois de ver o filme.

Caramelo, que teve sua terceira edição realizada de

com o intuito de estimular os adultos a reencon-

Para Andreia, um projeto como o Cine Carame-

7 de outubro a 8 de novembro, estimula a criativi-

trarem a capacidade criadora e transformadora

lo também tem como resultado a formação de pla-

dade, a convivência entre diferentes, a formação

que muitas vezes é encoberta pelas armadilhas da

teia, já que o público infanto-juvenil será o expecta-

de valores e a construção da cidadania e da éti-

vida contemporânea.

dor adulto de amanhã e os futuros pais de família

ca. Com sessões destinadas a crianças e adultos, o

Com as itinerâncias, o festival promove ações

que poderão usufruir de bens culturais mais tarde.

projeto proporciona momentos de fruição artísti-

de democratização do acesso no que concerne ao

Segundo a curadora, as crianças que frequentam

co-cultural de qualidade e reflexão sobre temas da

consumo qualificado de produções audiovisuais

o cinema hoje também influenciam suas famílias.

infância e da juventude.

em locais onde normalmente não há exibição. As

“Mais importante ainda é a formação qualificada de

“Nossa preocupação é promover o cuidado, o

sessões comentadas foram realizadas nos municí-

expectadores, com referência em cinematografias

respeito e a preservação da fase da infância para

pios de Campo Bom, em escolas indígenas da etnia

diferenciadas, seja esteticamente ou pelo fato de

um mundo melhor, a partir da circulação de pro-

guarani mbyá, em Viamão, e numa comunidade

apresentarem outros universos culturais.”

dutos culturais de excelência produzidos para este

quilombola de Montenegro, levando uma progra-

Ao longo das três edições, o festival teve um

público, promovendo seu reconhecimento e va-

mação especial de filmes que promovem a autoes-

público de 7.384 pessoas, entre crianças e adultos,

lorização”, explica a curadora e diretora geral do

tima e a valorização da identidade étnico-cultural

que assistiram a 60 filmes exibidos em 90 sessões

Cine Caramelo, Andreia Vigo. Além da exibição de

das comunidades, além de realizar vivências que

de cinema, participaram de 9 sessões comentadas,

filmes, que ocorre em Porto Alegre e na região me-

visam à troca de conhecimentos e saberes.

9 oficinas, além de exposição de cartuns, Feira

tropolitana – em 2014, o projeto teve uma edição

“Nos alinhamos com instituições como o Ins-

de Troca de Brinquedos, Encontro Brincante para

especial, o Caramelo Itinerante, que circulou por

tituto Alana, o festival Ciranda de Filmes, o projeto

Adultos e Contação de Histórias. O festival também

Pelotas, Bento Gonçalves, Campo Bom e Bagé –, o

Criança e Consumo, e o Programa de Alfabetização

realizou uma palestra para artistas e produtores

festival abre espaço para oficinas, sessões comen-

Audiovisual, desenvolvido pela Prefeitura de Porto

culturais sobre produção de conteúdo de qualida-

tadas e contação de histórias.

Alegre, iniciativas que buscam estimular o desen-

de para crianças e adolescentes.

Para adultos, o festival apresenta filmes sobre

volvimento mais consciente de crianças e jovens,

questões da infância e da juventude, promovendo

para que cresçam mais preparados para a vida”, diz

Filmes do 3º Cine Caramelo

uma reflexão mais aprofundada sobre a relação

Andreia. Para potencializar a ida ao cinema e apro-

A curadoria busca oferecer uma seleção criteriosa

com as crianças e os jovens, com a participação de

fundar os conteúdos trazidos pelos filmes, o Cine

de filmes clássicos e contemporâneos que pro-


AUDIOVISUAL

segundo SEMESTRE

2016

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porcionem diversão e entretenimento, ao mesmo

Tempo do Verão, documentário produzido no Acre

tempo em que abrem espaço para a reflexão sobre

por Wewito Piyãko, é fim de semana e as crianças

questões como diversidade cultural, cuidados com

ashaninka deixam a escola e partem, rio acima,

o meio ambiente, valorização da amizade, afeto

para acampar com os pais e aprender a vida na

e amor à família. Para adultos, são selecionados

mata.

As atividades do Cine Caramelo contribuem para a formação de público, a valorização étnico-cultural, como nas sessões realizadas em escola da aldeia guarani mbyá, e reflexão acerca de temas do universo infanto-juvenil Fotos: Leonil Junior

filmes de ficção e documentários, que trazem im-

Na comunidade Quilombola de Montenegro,

portantes temas do desenvolvimento de crianças

os filmes exibidos foram: Disque Quilombola, do-

e jovens, seja no nível do indivíduo ou do coletivo,

cumentário de David Reeks, no qual crianças do

como a obesidade infantil, a importância da pri-

Espírito Santo mostram como é a vida em uma

meira infância, os desafios da passagem da ado-

comunidade quilombola e em um morro na cidade

lescência para a vida adulta, o drama da alienação

de Vitória e, por meio de uma genuína brincadeira

parental, a relação consumo x infância, a publici-

infantil, revela-se o quanto a infância tem mais se-

dade dirigida para o público infanto-juvenil, as po-

melhanças do que diferenças; Balé de Pé no Chão,

líticas públicas assistenciais para menores infrato-

documentário de Lilian Solá Santiago e Marianna

res, novas possibilidades para uma educação mais

Monteiro, que acompanha a singular trajetória da

próxima da participação cidadã, da autonomia e

bailarina Mercedes Baptista, considerada a princi-

da Noite, de Michel Ocelot; Piconzé, animação

da afetividade. Além de filmes sobre a cultura da

pal precursora da dança afro-brasileira; Mulheres

realizada no Brasil por Ypê Nakashima; O Mundo

infância, o brincar e o espírito lúdico.

Bordadas – Fios do Passado, com direção de Li-

de Ulim e Oilut, curta de ficção do brasileiro Carú

Nas escolas indígenas, os filmes exibidos fa-

lian Solá Santiago, aborda aspectos da história e

Alves de Souza; os documentários brasileiros Terri-

zem parte do projeto Vídeo nas Aldeias, que inte-

da subjetividade das mulheres negras na cidade

tório do Brincar, de David Reeks e Renata Meirelles,

gram a coleção Cineastas Indígenas para Jovens

paulista de Salto; e Sou, registro histórico-poético

Jonas e o Circo sem Lona, de Paula Gomes e Ernes-

e Crianças, realizado com o apoio da Convenção

de Andreia Vigo sobre a identidade afro-gaúcha,

to Molinero, A Morte Inventada – Alienação Pa-

sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das

tendo como base a vida e a obra do poeta gaúcho

rental, de Alan Minas, Tarja Branca – A Revolução

Expressões Culturais da Unesco. No documentário

Oliveira Silveira (1941-2009), um dos idealizadores

que Faltava, de Cacau Rhoden, A Alma da Gente,

Das Crianças Ikpeng para o Mundo, de Kumaré

da proposta de criação do Dia Nacional da Cons-

de Helena Solberg e David Meyer, e O Começo da

Ikpeng, Karané Ikpeng e Natuyu Yuwipo Txicão,

ciência Negra.

Vida, de Estela Renner; além de Brincante – O

quatro crianças Ikpeng apresentam sua aldeia, no

Os demais filmes foram O Mundo dos Pe-

Mato Grosso, mostrando suas famílias, suas brin-

queninos, animação japonesa de Hiromasa Yo-

cadeiras, suas festas, seu modo de vida. Em No

nebayashi; o filme francês de animação Contos

Filme, de Walter Carvalho; e de Ponto Zero, filme gaúcho de ficção de José Pedro Goulart.


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Identidade e miscigenação

ARTES VISUAIS


ARTES VISUAIS

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Imagem da exposição O Mundo É minha Pátria: a migração haitiana e senegalesa no Brasil, realizada pela Aliança Francesa de Porto Alegre, Consulado Geral da França em São Paulo e Fecomércio-RS/Sesc Foto: Mateus Bruxel

O 4º Rio Pardo em Foto, realizado de 6 de outubro a 6 de novembro em diversos pontos do município, consolidou o evento no cenário das artes visuais do Rio Grande de Sul. Com o tema Identidades, as mostras expressaram a formação cultural do povo brasileiro em sua riqueza e pluralidade de costumes, hábitos e bens legados. “Identidades de Rio Pardo”, mostra coletiva com trabalhos de moradores espalhados pelas ruas da cidade, partiu da reflexão provocada a partir de um workshop; Os Guarani Mbyá, de Vherá Poty e Danilo Christidis, apresentou o cotidiano desse povo em suas aldeias; em O Mundo É minha Pátria: a migração haitiana e senegalesa no Brasil, Diego Vara, Tadeu Vilani e Mateus Bruxel propõem um olhar diferente para a realidade desses imigrantes que chegam ao Estado em busca de um futuro melhor; Vestígios, de Jô Nunes, mostra uma seleção de fotos que expressam os traços e as hibridizações da colonização alemã em terras brasileiras; enquanto a mostra coletiva dos alunos do Curso de Fotografia da Unisc Os Intocáveis trouxe imagens de identidades fragmentadas, pessoas quase esquecidas, registradas em ruas, praças, asilos, hospitais e aldeias da região.


ARTES VISUAIS

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Fotos: Vherá Poty e Danilo Christidis

Por dentro da cultura guarani mbyá

dele com uma comunidade guarani foi no Ar-

lidade do povo guarani mbyá para a cidade,

roio Conde, em Eldorado do Sul, alguns meses

de pensar que o indígena é apenas aquele

antes de visitar a minha aldeia. Ele cobriu um

adornado, com cocar, pintado, exótico. Um

despejo de algumas famílias guarani que es-

dos pontos foi de descontruir esta concepção,

tavam às margens da BR-116. Uma empresa

de trazer essa realidade, tanto que no livro

As fotografias de Vherá Poty,

havia pedido a retirada, alegando que esta-

não tem nenhuma foto que alimenta essa

ex-cacique da aldeia Terra Indígena

vam em sua propriedade. O coletivo acabou

imaginação de que o indígena anda com arco

do Cantagalo, integram um livro e

ganhando o processo contra o Estado, já que,

e flecha, pelado. A primeira orientação é que

na verdade, estava em uma área da União, às

os termos “indígena” e “índio” não existem

margens da rodovia. Então, a nossa aproxi-

para nós, são extintos. O que existe hoje são

mação teve uma história muito complexa.

povos: povo guarani, povo kaingangue, povo

uma exposição do 4º Rio Pardo em Foto

charrua, choquin, povo pataxó, e assim por

O guarani mbyá Vherá Poty, cuja tradução é Relâmpago Florido, é natural do Rio Grande do Sul e

Como foi criado o projeto que resultou

diante. Sendo que hoje são mais de 280 po-

cresceu na aldeia indígena mais antiga ainda exis-

na publicação do livro Os Guarani Mbyá e

vos diferentes no Brasil, com costumes, pin-

tente na região metropolitana de Porto Alegre, a

na exposição que esteve recentemente no

turas e rituais totalmente diferentes. E mais

Terra Indígena do Cantagalo, na divisa da capital

4º Rio Pardo em Foto?

de 30 línguas diferentes; o guarani é apenas

com o município de Viamão, e em outras aldeias.

Num primeiro momento, o Danilo foi visitar

uma. O povo guarani é um dos maiores po-

Aos 14 anos, começou a se envolver com a política

minha aldeia apresentado por outro amigo

vos indígenas do Brasil, abrangendo Paraguai,

na defesa de seu povo, incialmente com projetos

meu, o Luiz Fagundes, que tem uma atua-

Argentina, Bolívia, Uruguai e Brasil. No Bra-

de canto e danças guarani. Com 19 anos, foi al-

ção voltada para os povos indígenas e que

sil, o território tradicional reconhecido por

çado pela comunidade à condição de liderança

fazia trabalhos de audiovisual na época. Foi

nós mesmos começa no sul do Rio Grande

principal da aldeia, tornando-se o cacique. Junto

quando construímos, pensamos, e esse ami-

do Sul e vai até o Espírito Santo. Toda a faixa

com o fotógrafo Danilo Christidis, lançou o livro de

go fez umas exposições para apresentar a

litorânea, toda a Mata Atlântica, é guarani.

fotografias Os Guarani Mbyá, em 2015, e está em

linguagem guarani. Eu comentei um pouco

Enquanto que muitos outros povos ocupam

circulação com a exposição homônima, que inte-

sobre nosso povo, propondo que pensásse-

uma área mais específica, de regiões localiza-

grou o 4º Rio Pardo em Foto, evento que teve como

mos um projeto que envolvesse mais as co-

das. Tal etnia é daquela região e o guarani não

tema Identidades. Atualmente, aos 29 anos, Vherá

munidades do Estado, e não algo pontual. O

tem muito isso, é o povo que mais circula, é o

Poty vive na Aldeia Taquari, em Eldorado, municí-

lado oculto do olhar da cidade em relação

que mais tem território reconhecido por nós.

pio localizado ao sul do estado de São Paulo.

ao povo indígena. Foi assim que começamos

Na linha da questão de estudo mais aca-

a pensar o projeto. Inicialmente, o Danilo

dêmico se tornou muito popular que tem

Como foi a tua aproximação com a arte

pensou em visitar aldeias mais para me en-

vários subgrupos guaranis. No termo tupi-

da fotografia?

sinar a parte técnica da fotografia. Fiz aula

-guarani, tupi é o tronco linguístico. Eu sou

Minha história de envolvimento com a fo-

na escola dele e isso me ajudou um pouco

guarani mbyá, tem o guarani kaiowá, tem

tografia de forma mais profissional foi com

na questão técnica, mas, por outro lado, eu

o guarani andeva, e assim por diante. Vá-

o Danilo Christidis. Porém, desde os 14 anos

tive que ensinar ele a fotografar os lados

rios grupos falam uma língua próxima, mas

eu acompanho a luta do povo guarani, que é

mais simples da vida guarani. Esse olhar um

não é igual. Pertencem ao mesmo tronco

o meu povo, e, por isso, participei de outros

pouco desconhecido de uma pessoa de fora.

linguístico. Talvez o guarani seja o povo que

projetos na aldeia de canto e danças guara-

Ele pensava em fotografar coisas que eram

mais tem tempo de contato com a socieda-

ni. Até os 17 anos, fiz vários projetos volta-

muito bonitas do ponto de vista fotográfico,

de. Muita gente nos pergunta: vocês nunca

dos para a questão da integração da comu-

mas, dentro de um contexto mais cultural,

andaram pelado? Não, o guarani sempre

nidade com a cidade, interações culturais, e

ele não conseguia fotografar.

teve um tipo de roupa confeccionada pelas mulheres, claro que não eram muitas rou-

já gostava na época de fotografar, registrar e tentar entender um pouco a linguagem da

Qual era a orientação do projeto?

pas, mas o homem usava tanga e as mu-

fotografia. Em 2007, 2008, conheci o Danilo,

Um dos focos do projeto, sobre o qual dialo-

lheres uma espécie de saia, sempre feitas

que também teve uma experiência de apro-

gamos e discutimos muito quanto ao que era

pelo coletivo. A vestimenta, pelo menos

ximação não muito boa. O primeiro contato

importante de trabalhar, foi a grande invisibi-

pro guarani mbyá, não tem um momento


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específico, não tem relevância. A espiritu-

nas de viver na comunidade, mas de mos-

convidar. Que as pessoas que forem ver o li-

alidade que é muito forte. Tem o momen-

trar por meio desses projetos de orientação,

vro sintam-se convidadas a vivenciar um dia

to de nominação das crianças, o ritual de

de conscientização e de manifestação.

nessas comunidades. Então as fotos mostram um pouco isso: tem o despertar, a entrada na

purificação das sementes. O pessoal do sul usa mais roupa por causa do frio. Não afe-

Que tipo de cena vocês buscaram

aldeia, as afinidades, as rodas de conversa, o

ta em nada. Nas fotos, tratamos muito de

mostrar?

chimarrão, o mato, apresentar o cotidiano, as

trazer essa realidade, e que usarmos roupas

A simplicidade da nossa espiritualidade, a re-

riquezas, a alimentação e a comunidade de

e termos acesso à tecnologia são fatos que

sistência – de que forma resistimos até hoje –,

uma forma geral.

não interferem em nada. A sociedade ima-

mostrando toda a questão das práticas e dos

gina que perdemos a cultura. Mas não. E se

valores culturais, em qual ponto forte ela se

Qual a tua avaliação sobre o resultado

começarmos a andar de tanga e arco e fle-

baseia. Na comunidade mesmo, na reunião,

do livro e da exposição?

cha na cidade, seremos presos. É preciso se

tivemos de realizar três encontros por aldeia.

Já levamos a exposição para Porto Alegre,

adaptar a esta realidade da cidade, e vamos

Primeiro, eu tinha de ir sozinho e apresentar

para o Uruguai, para o Rio de Janeiro e ago-

costurando isso sempre.

o projeto; depois que a comunidade enten-

ra para o Rio Pardo em Foto. Cada situação é

desse aceitasse o projeto, eu levava o Danilo

um pouco diferente. O objetivo da exposição

De que forma projetos como este

para que aprovasse. Por isso levou sete anos

não é só apresentar o livro, é buscar sempre

contribuem para o entendimento e

para ser concluído. O desafio maior foi essa

o diálogo, possibilitar uma roda de conversa

o consequente respeito por parte da

construção, no diálogo com a comunidade.

sempre com a intenção de orientar principal-

sociedade?

Era preciso deixar claro que não queríamos

mente as pessoas que já têm algum contato,

O objetivo dos projetos, seja de fotogra-

mostrar nenhum tipo de teatro para a cida-

algum trabalho com as comunidades indíge-

fia, audiovisual ou qualquer outro, sempre

de. Queremos mostrar a nossa vida, a forma

nas. A intenção é que as pessoas tenham al-

tem uma maior direção de conscientização.

como somos, a forma simples de resistir a

gum conhecimento básico de quem são esses

Conscientizar a população de fora, mas ao

este grande impacto, que é a invasão. Então,

povos, qual sua resistência, suas espirituali-

mesmo tempo mostrar também à juventu-

a preocupação maior foi mostrar que tem

dades, os valores que seguem, apesar do con-

de das comunidades de que isso também é

todo um processo de conhecimento de regra

tato com a cidade. Sempre buscamos levar

uma ferramenta de comunicação de trans-

natural que até hoje seguimos. Por exemplo,

isso nas exposições. E o livro circula como um

missão de conhecimento e de nossos valo-

não podemos simplesmente acordar e olhar

transmissor de conhecimento básico sobre

res para a sociedade. É também uma forma

um ao outro apenas. É preciso entender o ou-

esse povo. Quais são os maiores conhecimen-

de se comunicar para transmitir o conhe-

tro, a natureza do despertar, do amanhecer,

tos, os maiores valores que temos em nosso

cimento necessário para que nossa cultura

do entardecer e do anoitecer. O livro meio

cotidiano e em nossa vida.

seja compreendida e respeitada. Não ape-

que tem esta concepção de apresentar, de


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Foto: FGFotografia

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Simões Lopes Neto: onde não chega o olhar prossegue o pensamento A maior exposição já realizada sobre o escritor é o ponto máximo e encerra o Biênio Simoniano, que comemorou os 150 anos de nascimento, em 2015, e 100 anos da morte do autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, em 2016. São fotografias, manuscritos, primeira edição de livros, bem como colagens, croquis, painéis, ilustrações e documentos diversos que retratam a vida e a obra de João Simões Lopes Neto, enaltecendo seu legado cívico, jornalístico, dramatúrgico, literário e pedagógico. Com curadoria de Ceres Storchi, a exposição termina em 18 de dezembro de 2016 no Santander Cultural, um dos realizadores, junto com a Fecomércio-RS/Sesc e o Instituto João Simões Lopes Neto.


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1. A Viuva Pitorra. Souza Lima & Meira Editores – Livraria Commercial. Acervo Fausto J. L. Domingues 2. Anúncio de Fumos e Cigarros da Marca Diabo. Acervo Instituto João Simões Lopes Neto 3. Artinha de Leitura. Manuscrito de 1907. Acervo Fausto J. L. Domingues 4. Brincadeiras na Estância da Graça. Fotógrafo desconhecido. c.c. 1906 5. Contos Gauchescos. 1ª edição. PelotasEchenique & Cia, 1912. Acervo Fausto J. L. Domingues 6. Trabalho artesanal de Normando Bresolin. Acervo Fausto J. L. Domingues 7. Família Simões Lopes na Casa do Estaleiro. Arquivo pessoal de Luiz Simões Lopes. Acervo CPDOCFGV

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8. Crianças na Estância da Graça, em 1906. Arquivo pessoal de Luiz Simões Lopes. Acervo CPDOCFGV 9. Exemplar de Lendas do Sul encontrado na mala azul (Baú de Simões). Acervo Fausto J. L. Domingues 10. Manuscrito Bujuru encontrado na mala azul (Baú de Simões). Acervo Fausto J. L. Domingues 11. Frames do filme da instalação composta para a exposição. Captura por Estação Filme 12.Painel Farroupilha - elaborado por João Simões Lopes Neto. Acervo Fausto J. L. Domingues 13. Manuscrito de Terra Gaúcha encontrado na mala azul (Baú de Simões). Acervo Fausto J. L. Domingues

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Por Michele Savaris e Tiago Pedruzzi

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professores de Língua Portuguesa, Literatura e Língua Espanhola do Instituto Federal Catarinense. Michele é doutoranda em Literatura Comparada e mestre em Literatura Espanhola pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pedruzzi é doutorando em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e mestre em Literatura Comparada pela UFRGS.

Miguel de Cervantes e Dom Quixote, duas vidas em reflexo Imagine uma silhueta: um indivíduo magro, tra-

sete filhos de Rodrigo de Cervantes, um cirurgião

jando pesada armadura medieval, montado em

modesto, e Leonor de Cortinas. A família nunca

um magro cavalo, portando as armas como se

desfrutou de boas condições, passando, muitas

estivesse pronto para uma batalha. Ao seu lado,

vezes, por situações próximas da miséria.

um fiel escudeiro baixote e retaco, montado em

Cervantes teve acesso às primeiras letras,

um burro, igualmente disposto a acompanhar

realizando, segundo informações pouco seguras,

seu amo nas mais improváveis aventuras. Ao fa-

seus primeiros estudos em Valladolid, Córdoba ou

zer este exercício de imaginação, muito provavel-

Sevilha, talvez em algum colégio da Companhia

mente, configurou-se na sua mente um conjunto

de Jesus. Com mais segurança temos notícias de

de episódios ligados à maior obra da literatura

seus estudos em Madri, onde a família se encon-

mundial: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de

trava estabelecida já em 1566. Nessa cidade, sob

la Mancha.

a batuta do catedrático de gramática Juan López

O homem responsável por plasmar essa ima-

de Hoyos, Cervantes provavelmente ensaiou suas

gem na mente de milhões de leitores é Miguel de

primeiras produções literárias que já aparecem

Cervantes Saavedra, escritor espanhol que, após

publicadas três anos após na obra de seu mes-

400 anos de sua morte, continua atraindo indi-

tre dedicada à morte da Rainha Isabel de Valois.

víduos que (re)leem seu grande romance. No que

Essas, que foram as primeiras manifestações de

diz respeito ao autor, vida e obra parecem não se

Cervantes nas letras, nem de longe seriam capa-

dissociar. Como afirma Otto Maria Carpeaux, “Cer-

zes de adiantar o êxito que alcançaria a sua obra.

vantes é tão exclusivamente o autor do Dom Qui-

Porém, antes da literatura imaginativa que seria

xote que autor e obra quase se confundem. Cer-

a marca de sua passagem pelas letras, a própria

vantes só parece ter vivido a sua desgraçada vida

trajetória de Cervantes parece ser fruto da pena

de soldado, cativo dos mouros e literato pobre para

de algum criativo escritor em busca de uma per-

acumular as experiências das quais aquela grande

sonagem capaz de conjugar, ao mesmo tempo,

obra é o resumo, o julgamento e a transfiguração”.

feitos medíocres e grandiosos. Esta experiência

Nesse sentido, Dom Quixote não é apenas resulta-

vivida pelo escritor complutense não é transposta

do da criação do manco de Lepanto, mas a exten-

ipsis literis a sua obra; porém, como bem apre-

são de sua vida e, porque não, de si mesmo.

senta o filósofo francês Paul Ricoeur, em seu livro

Esta vida tão ingrata não parecia ser o des-

Teoria da Interpretação, ela permanece privada,

tino do pequeno Miguel de Cervantes nascido em

mas sua significação e seu sentido tornam-se pú-

Alcalá de Henares no ano de 1547, o quarto de

blicos, na medida que são comunicados.


literatura

segundo SEMESTRE

2016

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Se a vida do escritor espanhol foi bem paca-

nhoso escritor. A embarcação em que viajava é

No entanto, um episódio marcaria para sempre o

ta até certa altura, depois dos seus 22 anos passa

capturada por corsários e, por estar de posse das

ínterim entre a publicação da primeira e a segun-

a ter as emoções dignas dos livros de ficção. Em

cartas de recomendação, Cervantes é feito cativo

da parte da obra-prima do soldado de Lepanto:

1569 (em um episódio nebuloso como muitos da

em Argel, que pensa ter sob seu poder um va-

um indivíduo que optou por esconder-se atrás do

sua biografia), após ferir em duelo um adversário,

lioso nobre, cuja liberdade pode ser uma ótima

anonimato e acabou imortalizando-se à sombra de

um tal Antonio Sigura, recebe a pena de amputa-

fonte financeira. Depois de cinco anos na prisão

Cervantes.

ção da mão direita e desterro de 10 anos. Não se

e algumas malogradas tentativas de fuga, o es-

pode afirmar com segurança que o Miguel de Cer-

critor é resgatado com o dinheiro de sua família

vantes descrito na sentença era o mesmo que, anos

(mergulhando-a em mais dívidas) mais o valor

depois, daria ao mundo uma das obras inigualáveis

arrecadado pelo frei Juan Gil, o que possibilita o

Um tal Alonso Fernández de Avellaneda

em número de leitores e permanência, poderia

seu retorno à Espanha, encerrando as peripécias

Numa época em que a continuação de obras es-

simplesmente ser um homônimo. Contudo, se rela-

vividas fora da pátria.

critas por diferentes autores era bastante comum,

cionarmos tal passagem a outras conhecidas como

Depois de algum tempo de retorno à Pe-

não espanta o fato de Dom Quixote de Cervantes

sua ida à Itália em data posterior ao juízo realizado

nínsula Ibérica, teve uma única filha, Isabel, que

ter sido “vítima” dessa prática. O que surpreende,

à revelia, não se pode descartar este episódio de

alguns estudiosos afirmam ser resultado de um

talvez, seja o fato de o escritor esconder-se atrás

sua biografia. Na terra de Dante, foi camareiro do

caso que viveu com Ana Franco Rojas. Posterior-

de um pseudônimo que impossibilitou completa-

Monsenhor Acquaviva que logo seria ordenado

mente, casou-se com Catalina de Salazar, com

mente a descoberta da verdadeira identidade do

cardeal. A função exercida, que não era mais do

quem conviveu até o final da vida.

autor, embora muitas tenham sido as tentativas de

que o nome supõe, um criado responsável pelas

iluminar essa informação com amplas pesquisas e

tarefas mais simplórias relacionadas aos aposentos

Uma vida em livros

do monsenhor, quiçá tenha desagradado ao jovem

Entre 1581 e 1583, Cervantes inicia sua produção

de 1614 quando Cervantes tomou conhecimento

espanhol, que logo a abandonou em busca, talvez,

literária escrevendo Galateia, uma novela pastoril

da publicação da segunda parte da obra O Enge-

de experiências mais vibrantes e ousadas.

levantamento de inúmeras hipóteses. Foi no ano

publicada no ano de 1585 em Alcalá de Henares e

nhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha escrita

Assim, ainda na península itálica, alista-se

dividida em seis livros, prometida como uma pri-

por um indivíduo de nome Alonso Fernández de

como soldado que conhecerá o batismo de fogo

meira parte, já que o autor anunciava sua continu-

Avellaneda. Os que leram o primeiro volume de

na última grande batalha da cristandade contra

ação, a qual, no entanto, nunca foi publicada. É no-

Dom Quixote cervantino sabem que o autor en-

os mouros, a Batalha de Lepanto (1571). Nesse

tada sua forte ascendência italiana, talvez fruto de

cerra a narrativa com um verso em italiano de

episódio, Cervantes é ferido na mão esquerda,

leituras feitas na Itália quando fora soldado, como

Orlando furioso: “Forse altro canterá con miglior

motivando um de seus famosos epítetos: “El

bem pontua Martín de Riquer, uma das maiores

plectro” (Talvez outro cantará com melhor plectro),

manco de Lepanto”. Se fugira ao destino de perder

autoridades em Cervantes e sua obra.

deixando clara a possibilidade de continuação da

a mão direita na pena imposta pelo suposto crime

Em 1605, o mundo conheceria a primeira

obra por outro autor. Avellaneda, que mais tarde se

cometido na Espanha, ironicamente, o destino lhe

parte da maior obra cervantina, O Engenhoso Fi-

confirmam as hipóteses de que é um pseudônimo,

reservou um castigo semelhante no exercício das

dalgo Dom Quixote de la Mancha, romance pro-

embarca nessa empreitada e, em tom provocativo,

armas. Importante é pontuar que sua participa-

tagonizado por um cavaleiro e seu fiel escudeiro

retoma a figura de Cervantes dirigindo-se a ele,

ção nesta batalha nunca foi utilizada pelo escri-

que desenharam as aventuras mais peculiares da

no prólogo de sua mais nova obra, de maneira um

tor de maneira a vangloriar-se dos fatos por ele

ficção literária. Na sequência, publicaria As Novelas

tanto ofensiva.

vividos, ao contrário, nas vezes que se refere ao

Exemplares (1613), Viagem do Parnaso (1614), Oito

A resposta oficial e, no mínimo, elegante do

ocorrido é em tom de autocomiseração.

Comédias e Oito Entremeses Novos (1615), nunca

verdadeiro autor viria um ano depois, por meio

Depois do retorno à Itália e de um período

representados, a segunda parte da obra O Enge-

da publicação da segunda parte d’O Engenhoso

de recuperação e participação em algumas no-

nhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha (1615)

Fidalgo Dom Quixote de la Mancha de Miguel de

vas campanhas militares, decide voltar à Espa-

e, por fim, Persiles e Sigismunda (1617), postuma-

Cervantes. O complutense não só dá continuidade

nha levando em seu alforje algumas cartas de

mente.

a sua verdadeira narrativa como insere na ficção o

recomendação. Ao sair de Nápoles com destino

Dentre toda a produção cervantina, o ro-

personagem dom Álvaro Tarfe, cavaleiro da obra

a Barcelona, desenvolve-se mais um dos eventos

mance que narra as peripécias do cavaleiro e seu

de Avellaneda e, por meio de um diálogo, afirma

com sabor à aventura livresca da vida do enge-

escudeiro é, indubitavelmente, a mais conhecida.

que o verdadeiro Dom Quixote e seu escudeiro


literatura

segundo SEMESTRE

2016

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são muito superiores aos que aparecem na obra

que, transformado pelas leituras, perde o juízo e

Para ganhar a vontade do povo que go-

do Quixote apócrifo. Com isso, Cervantes, literaria-

passa a habitar um outro patamar, cuja fantasia

vernas, entre outras hás de fazer duas

mente, oferece uma resposta ao anônimo escritor,

o impulsiona para além da realidade, e isso o sus-

coisas: uma, ser bem-criado com todos,

demonstrando, pela boca de outras personagens, a

tenta como indivíduo que vai construindo suas

conselho este que já te dei antes; e a ou-

insignificância da falsa continuação, utilizando-se

experiências.

tra, procurar a fartura dos mantimentos,

da ironia e do escárnio.

Poderíamos dizer que as duas margens opos-

pois não há coisa que mais fatigue o

tas mais aparentes que se unem no grande roman-

coração dos pobres que a fome e a ca-

ce de Cervantes são a loucura e a razão. Após tan-

restia. Não faças muitas pragmáticas e,

tas discussões já feitas acerca da obra, estrutura e

se as fizeres, trata de que sejam boas, e

Dom Quixote é imune à passagem do tempo, pois

temas, essa afirmação nos soa um tanto superficial

sobretudo de que guardem e cumpram,

trata de inúmeros temas, alcançando indivíduos de

quando os dois termos são analisados, simples-

pois as pragmáticas que não se guardam

todas as idades por meio de suas reflexões. Cada

mente, sob a ótica da diferença semântica e con-

é como se não existissem, antes dão a

leitor pode encontrar-se um pouco nas dezenas de

ceitual e são muitas vezes associados, nesta ordem,

entender que o príncipe que teve discri-

episódios e acontecimentos que selam a grande

a dom Quixote e a Sancho Pança. Com certeza, tal

ção e autoridade para as fazer não teve

obra cervantina. É inevitável rir diante das cômicas

relação não é aleatória e tampouco descabida. No

valor para fazer que se guardassem; e as

discussões entre Dom Quixote e Sancho. É impos-

entanto, cabe ressaltar que, por vezes, ocorre uma

leis que intimidam e não se executam,

sível não simpatizar e não se envolver nas aventu-

subversão, permitindo que se observe no Cavaleiro

vêm a ser como o tronco, rei das rãs,

ras e na relação que se estabelece entre o Cavaleiro

da Triste Figura a predominância da razão no modo

que de princípio as espantou, mas com

da Triste Figura e seu fiel escudeiro.

de pensar e de agir.

o tempo o menosprezaram e montaram

Abrangência e vulto de um cavaleiro andante

sobre ele. Sê pai das virtudes, e padrasto

É sabido que o grande Alonso Quijano “en-

Em prol de seguir de maneira fiel à tradição

louquece” após realizar longas e intensas leituras

dos cavaleiros andantes, dom Quixote se despe de

das novelas de cavalaria. Vendeu terras, investiu

toda e qualquer vaidade, colocando em prática,

na compra de livros e os leu avidamente nos seus

racionalmente, tudo aquilo que é inerente a sua

Diante disso, cabe afirmar que a loucura atri-

(diversos) períodos de ócio. Admirava Palmerín de

condição de cavaleiro, sem se deixar levar pela

buída ao cavaleiro não o aparta das atitudes que

Inglaterra e Amadis de Gaula, grandes cavaleiros

vontade, pelo instinto ou pela necessidade: “(…)

considera virtuosas e os imbróglios que protago-

nos quais buscava inspiração. Desse modo, toma

se não me queixo da dor é porque não é dado

niza são, na maioria das vezes, decorrentes do seu

a decisão de ser um deles e, sem muita hesita-

aos cavaleiros andantes queixar-se de ferimento

senso de justiça.

ção, agarra a velha armadura do bisavô, escolhe

algum, ainda que por ele lhes saiam as tripas”, ou

Esse romance cervantino pode ser entendido

um nome para si, um escudeiro que lhe seja fiel

então: “Faço-te saber, Sancho, que é honra dos

como um grande trânsito em que personagens e

e imagina uma linda donzela para chamá-la de

cavaleiros andantes nada comer em um mês, e,

leitores movem-se constantemente de uma mar-

sua. Esta é a grande porta de entrada para O En-

em comendo, que seja daquilo que encontram

gem a outra a partir das situações apresentadas.

genhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, que

mais à mão.” Trechos como esses mostram o

Além da ponte que se constrói entre a realidade e a

há mais de 400 anos carimba sua marca no ima-

quanto o engenhoso fidalgo vai contra suas von-

ficção ou o sonho e a fantasia, tão mencionados e

ginário dos leitores de todas as partes do mundo.

tades físicas para atender aos princípios a que se

analisados pelos críticos, também é possível obser-

É a partir desse contexto que podemos entender

dispôs, enquanto Sancho queixa-se quando tem

var que há constantes passagens de um extremo

a leitura como transformação. Quiçá, nesse pon-

dor, come quando tem fome e dorme quando o

para o outro no que se refere às situações que vão

to, reside um pouco de Cervantes que, como se

sono o atinge, agindo sempre de acordo com o

desde o cotidiano até o extraordinário. Ousamos

sabe, era grande leitor e, certamente, contribuiu

seu instinto e refutando qualquer possibilida-

afirmar que, por isso, talvez, o grande romance es-

de forma decisiva para que fosse um escritor

de de imitar o seu amo no que diz respeito aos

crito pelo Manco de Lepanto apresente tanta ver-

mundialmente conhecido. A leitura permite ele-

princípios dos grandes cavaleiros. Além dessas

satilidade com relação às temáticas, ultrapassando

var o indivíduo a outros níveis, fazendo-o alcan-

situações expostas, também é possível observar

os séculos e permitindo discussões a qualquer

çar patamares que só são possíveis a partir de um

o quanto dom Quixote age com límpido juízo ao

época. Quando na primeira parte de Dom Quixote

impulso gerado pela fantasia e imaginação. O ato

aconselhar Sancho sobre o modo como deveria

de La Mancha, por exemplo, se conta o episódio

de ler modifica a forma de enxergar as pessoas

portar-se e agir na condição de governador da

do Curioso Impertinente, é possível levar a cabo

e as relações. Assim ocorre com Alonso Quijano,

ilha Baratária:

o debate a partir da oposição entre amor e razão.

dos vícios.


literatura

segundo SEMESTRE

2016

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Também são notórias as diversas situações em que

daquele que lhe é dado na primeira parte d’O Enge-

ferno, no último quartel do século 17 em pelo me-

o recente cavaleiro atua em favor da justiça. Na

nhoso Fidalgo. Essa conduta legitima a figura de

nos dois poemas. No século seguinte, Antônio José

primeira saída, após tornar-se cavaleiro, escuta,

Sancho e corrobora a posição que ocupará como

da Silva, O Judeu, nascido no Rio de Janeiro e autor

em meio à mata, os gritos de um garoto cujo

governador da Ilha Baratária, situação na qual

da famosa peça Guerras do Alecrim e da Manjero-

patrão o açoitava. Imediatamente, dom Quixote

reafirma sua condição de indivíduo analfabeto,

na, criou a sua versão das aventuras do cavaleiro

toma conhecimento da situação e pede para que

mas não incapaz de ouvir as situações, avaliá-las

andante intitulada Vida do Grande D. Quixote de

o menino seja libertado, pois entende ser injusta

e dar a sua sentença. Essa imagem heterogênea

la Mancha e do Gordo Sancho Pança, uma ópera

aquela atitude por parte do homem. Ademais, se

resultante das peculiaridades de Quixote e San-

de marionetes que teve estreia no teatro do Bairro

percebe o quanto preza pelas atitudes corretas

cho, na realidade, confere à narrativa o equilíbrio

Alto em Lisboa. Já no século 19, temos na obra de

quando, na carta que envia a Sancho enquanto

adequado de modo que cavaleiro e escudeiro não

Machado muitas referências ao texto de Cervantes.

governador da ilha, aconselha “Amicus Plato, sed

se excluem, completam-se.

No século 20, Bilac e sua capacidade de aglutinar

magis amica veritas” (amigo Platão, porém mais

seguidores para as suas ideias põe, mais uma vez,

preocupação de dom Quixote com relação aos in-

Um cavaleiro andante que fala muitas línguas

divíduos que devem seguir a verdade, pois, sendo

Dom Quixote foi, à época, o que chamamos hoje

de dom Quixote no imaginário brasileiro tenha sido

assim, se evitam as injustiças.

amiga a verdade), ou seja, é preciso agir de acordo com aquilo que é verdadeiro. Isso expressa a

o fidalgo que lia novelas de cavalaria na pauta de muitos de seus colegas parnasianos. Talvez, o maior responsável pela popularização da imagem

de um best-seller. Seu êxito na Espanha fez com

Monteiro Lobato e seu Dom Quixote das Crianças,

E possível constatar, também, o movimento

que logo aparecessem novas edições e que a obra

capaz de gravar em muitas gerações posteriores as

que se dá de uma margem a outra e os consequen-

superasse as fronteiras nacionais e recebesse, logo

aventuras do fidalgo e de seu fiel escudeiro.

tes intercâmbios quanto aos saberes. Diante dos

em 1612, sua primeira tradução ao inglês (se hoje

lampejos de loucura (ou sanidade) que permeiam

os sete anos que separam a primeira edição da tra-

as atitudes dos protagonistas, muitos ensinamen-

dução inglesa parecem demasiado tempo, à época

Quixote e Sancho pelas estradas do mundo

tos são mostrados através de inúmeros ditados

era um feito que demonstrava o rápido alcance da

A capacidade de permanência de Quixote foi se

proferidos por Sancho, que se declara analfabeto.

obra no cenário estrangeiro). Além da tradução

desdobrando com o passar dos dias. Ensaístas, filó-

Enquanto Quixote empreende suas ações a partir

ao inglês realizada por Thomas Shelton, apareceu

sofos e artistas das mais variadas épocas enxerga-

do conhecimento que adquiriu pela palavra escri-

também uma tradução ao francês realizada por

ram nele novos valores e ideias a serem revelados

ta, Sancho, que não sabe ler, guia a si mesmo e

Cesar Oudin em 1614, ainda antes da publicação

e representados. Miguel de Unamuno, José Ortega

aconselha seu amo a partir da palavra oral, ou seja,

da segunda parte. Quanto à tradução para a lín-

y Gasset, Francisco de Ayala, Francisco Rico, Martín

os ditados nos quais tanto se ancora o escudeiro

gua portuguesa, o cenário foi um pouco diferente

de Riquer, Jorge Luis Borges, Mario Vargas Llosa,

nada mais são do que marcas de uma sabedoria

devido ao fato de a língua espanhola ser conside-

Vianna Moog, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux

popular, bastante salientes na segunda parte: “(...)

rada uma língua de cultura no território lusitano,

e outros de tão alta estima, dedicaram inúmeras

e considere que se costuma dizer que bom coração

adiando o aparecimento de uma versão na língua

de suas páginas ao mais diferentes olhares sobre

quebranta má ventura, e não são mais as nozes

de Camões para tão somente o ano de 1794, em

o famoso fidalgo dom Quixote e suas aventuras.

que as vozes; e também se diz ‘donde menos se

tradução anônima atribuída por alguns estudiosos

Pintores como Pablo Picasso, Salvador Dalí, Paul

espera, daí é que salta a lebre’”; “(...) diz-me com

ao editor Francisco Rolland. Além das rápidas tra-

Cézanne e Cândido Portinari foram alguns dos que

quem andas , dirte-ei quem és”; “a bom pagador,

duções a outras línguas que se sucederam na es-

enriqueceram sua produção plasmando nas telas

não dói o penhor”, “obreiro pago, braço quebrado”;

teira do sucesso que alcançou a obra, temos notí-

a imagem do grande cavaleiro de La Mancha. Na

“mais vale pássaro em mão que abutre voando”.

cia do envio de exemplares a este lado do Atlântico

gravura, as imagens de Gustave Doré se tornaram

Se o saber que o cavaleiro aporta vem das leituras

no ano de 1605 e de sua venda em Lima já no ano

uma espécie de representação oficial das aventu-

que realizou ao longo da vida, o modesto escudei-

de 1606, comprovando o alcance da obra tão logo

ras do engenhoso fidalgo e seu fiel escudeiro, sem

ro aprendeu-o por meio das próprias experiências.

fora publicada. Se foi lido em Portugal na sua lín-

contar as anônimas representações que povoam as

Sua sabedoria é resultado daquilo que não se en-

gua original, podemos supor que o mesmo ocorreu

infindáveis feiras de artesanato ao redor do mun-

contra nos livros, mas num contexto que preza pela

nas suas colônias, dentre elas o Brasil. Em terras

do, testemunhando a popularidade do livro escrito

aprendizagem ancorada no popular. Nesse sentido,

brasileiras, sua ressonância já pode ser observada

no princípio do século 17. No entanto, seu percur-

a figura de Sancho ganha um destaque diferente

na literatura de Gregório de Matos, o Boca do In-

so não esteve preso às artes plásticas e às letras,


literatura

segundo SEMESTRE

2016

66

a inconfundível dupla de aventureiros deixou seus

humanidade, com os grandes princípios, a justiça,

insólita é. No entanto, no ano de 2016, um pes-

rastros de notas musicais nos pentagramas. Há

a verdade... tudo dito de uma maneira não intelec-

quisador espanhol, imbuído da tarefa de encontrar

um sem-número de obras musicais inspiradas em

tualizada, a partir de um diálogo entre Dom Qui-

elementos verídicos transpostos à narrativa de

dom Quixote em todos os gêneros possíveis; des-

xote e Sancho. Temos que pensar que, no fim das

Cervantes, encontra um documento no qual um

de as populares zarzuelas espanholas até óperas,

contas, essa obra é um amplo diálogo entre esses

fidalgo empobrecido de uma região próxima a El

passando pela música sinfônica e de câmara, che-

dois protagonistas: um intelectual e um analfabe-

Toboso arremete também contra um moinho de

gando no século 21 à canção. Nomes conhecidos

to”. Talvez, à ideia quase irretocável da pesquisado-

vento e faz em pedaços uma cruz, vindo a ter pro-

como Maurice Ravel, Félix Mendelssohn, Richard

ra brasileira, podemos acrescentar que a beleza e

blemas com a Inquisição. Neste momento, vemos

Strauss e Manuel de Falla buscaram dar formas

a perenidade do romance estão no diálogo entre

que talvez a genialidade de Cervantes não está em

rítmicas às peripécias engendradas pelo filho do

dois homens com todas as suas idiossincrasias,

criar algo desconhecido de suas experiências, se

pobre cirurgião na hoje denominada música erudi-

guardando, no entanto, o devido respeito à palavra

considerarmos que ele teve acesso a esse episódio

ta. Já na canção, talvez fique um pouco mais difícil

do outro. O próprio Sancho, nas vezes que deso-

ocorrido entre os anos de 1595 e 1596, mas sim

mapear a produção que tenha alguma referência

bedece ao Quixote, tem por razão o desejo de não

recriar com os fragmentos de realidade circundan-

direta à obra cervantina dada a grande quantidade

o decepcionar, como ocorre no episódio em que o

te um mundo ficcional, que confunde os planos da

de produções; porém, para situarmos duas com-

cavaleiro solicita ao escudeiro que leve uma carta

realidade e da narrativa, que coloca Quixote lendo

posições próximas no tempo e sucesso recente das

a Dulcineia. Após seu retorno, ao ser interrogado

Dom Quixote em um episódio, como bem observou

rádios FMs, temos a do grupo Coldplay, intitulada

sobre as reações da amada diante da carta, Sancho

Borges. Que é realista, pois seu mundo real de pe-

Don Quixote (Spanish Rain) e, no Brasil, a música

inventa boas respostas a fim de satisfazer o amo,

quenas tragédias se torna maravilhoso na medida

do grupo Engenheiros do Hawaii que leva o nome

já que, de fato, mentiu-lhe quando afirmou ter ido

que está presente numa obra ficcional. A Espanha

do protagonista da obra-prima cervantina. Na sé-

até ela. O embuste, nesse contexto, ganha uma

de Quixote é real, os historiadores não cansam de

tima arte, talvez, as adaptações mais conhecidas e

dimensão que não é entendida como maldade ou

encontrar indícios do livro em suas pesquisas. Mas

emblemáticas sejam a versão sem finalizar deixada

traição, mas uma espécie de cumplicidade (pessoal

não é o que importa. Para o leitor comum, para

por Orson Wellles (1955/1992) e depois monta-

e amorosa) que visa ao bem-estar do amo. É essa

o leitor que busca maravilhar-se com uma obra

da por Jesús Franco e a esperada versão de Terry

humanidade e, ao mesmo tempo, dimensão do

literária, o que importa é que o magro Quixote e

Gilliam, The Man Who Killed Don Quixote, cujos

outro, arriscamo-nos a dizer, um dos motivos de

o gorducho Sancho permanecem vivos até hoje

problemas já foram suficientes para rodar um do-

permanência da obra. Do ponto de vista literário,

na imaginação daqueles que leem o romance e se

cumentário, Lost in La Mancha, e a conhecida ver-

o romance Dom Quixote cumpriu um papel fun-

maravilham com o sonho de Cervantes. Um sonho

são de Arthur Hiller, com Sophia Loren no papel de

damental ao colocar dois indivíduos em situações,

capaz de mover um velho fidalgo por terras des-

Dulcineia e Peter O’Toole como Quixote. O século

muitas vezes, comezinhas no centro de uma nar-

conhecidas, fazendo acompanhá-lo uma legião de

21 ainda viu nascer uma nova forma narrativa, a

rativa literária, dando espaço aos problemas mais

leitores de todos os quadrantes do globo.

história em quadrinhos ou arte sequencial, como

prosaicos de um velho fidalgo que pensa ser um

preferia Will Eisner, ele também autor de O Último

cavaleiro andante, inaugurando um gênero vivo

Cavaleiro Andante, uma adaptação do romance

até hoje.

espanhol, com seu lugar especial ao lado de outras narrativas do criador das graphic novels.

Um Quixote para cada século

Para finalizar, façamos novamente o exercício de imaginação do início do texto: imaginemos agora a silhueta de um velho nobre que, encomendando-se de todo coração a sua amada Dulcineia, arremete contra um moinho de vento, pensando

Cada época tem uma leitura distinta da obra-pri-

ser ele um gigante e atingindo com a lança uma

ma cervantina e acaba por impregnar as outras.

das pás do engenho mecânico. Ele acaba por ferir-

Maria Augusta da Costa Vieira, talvez a maior bra-

-se e, atirado ao chão, recebe a ajuda do fiel amigo

sileira viva especialista na obra do escritor espa-

e brada contra ele ao lembrar que já recebera o

nhol, parece aglutinar em algumas linhas um dos

aviso de que os gigantes não passavam de moi-

motivos de permanência do romance cervantino:

nhos de vento. Ao refletir sobre a cena tirada do

“Dom Quixote mexe com os grandes valores da

romance, pensamos na genialidade dela e no quão


literatura

segundo SEMESTRE

2016

Por Guto Leite

67

poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Eo Nobel para o Dylan? O alvoroço foi grande quando a Academia Sueca decidiu premiar pela primeira vez um cancionista – este que faz canção popular no formato que se estabeleceu nas primeiras décadas do século 20 – com o cobiçado Prêmio Nobel de Literatura. Aqui, temos já um pressuposto a esclarecer: Bob Dylan foi premiado por suas canções, e não por suas crônicas ou por seus poemas. Dentre nós brasileiros, além dos que saudaram, aceitaram ou ignoraram a notícia – afinal, o que significa mesmo um Nobel aqui na periferia do mundo e no atual estado de exceção? –, houve quem investisse tempo e linhas objetando a escolha do júri, em especial, com o argumento de que canção popular não é literatura e, portanto, não merecia esse prêmio. Houve, também, quem dissesse que o artista laureado não precisava do Nobel, leitura que aparentemente se fortaleceu em razão do desdém demonstrado inicialmente – duas semanas depois, no entanto, o compositor telefonou aos organizadores do prêmio e se disse honrado em recebê-lo. Como houve ainda quem lamentasse o desperdício da oportunidade para valorizar um escritor, particularmente um poeta, e o eventual impacto dessa desvalorização no mercado de livros. Este pequeno texto, que espero levar em tom de conversa, pretende objetar esses três argumentos, além de apresentar algumas boas razões que justifiquem a escolha do compositor como vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2016. Como em tudo na vida, é importante termos um pouco de perspectiva para avaliar o primeiro ponto, qual seja: canção é ou não é literatura. Há

200 anos, Walter Scott, autor de Ivanhoé, já então célebre romancista, recebeu a condecoração de Sir por seus serviços prestados à Literatura. Como romance não era considerado “literário”, justificou-se a partir de um desconhecido livro de poemas de sua juventude. Um século mais perto, em 1928, Drummond publicou “No meio do caminho” na Revista de Antropofagia e muitos disseram que aquilo não era poesia, bradando publicamente contra aquele que se tornaria o maior poeta da história da literatura brasileira. Há também casos como o de Shakespeare ou de Gregório de Matos, para mantermos o paralelo britânico-brasileiro, em que a crítica de uma época é responsável pela construção do modo como se leem esses autores no seu tempo e nos tempos seguintes; isto é, a maneira como entendemos esses dois escritores – ambos, vale dizer, mais distantes do livro do que gostara a crítica purista – depende da leitura que estudiosos de um certo momento fizeram sobre eles, neste caso, estudiosos do Romantismo. É bastante óbvio o que vou dizer, mas me arrisco: o que se define ou não como literatura e os pesos que damos para este ou aquele autor dentro da história literária variam com o tempo e estão sempre em disputa. Os romances foram tão definitivos ao longo do século 19 que seria impossível continuar considerando-os literatura de segunda linha. A lírica moderna é tão exuberante e integrada ao espírito de seu tempo que seria constrangedor seguir dizendo que poema mesmo é só o que se fazia nos séculos anteriores. De mesma forma, temos uma visão romântica, literalmente, de Shakespeare e de Gregório; visão essa que vem sendo alterada nos últimos 50 anos. Os contos, também se poderia citar, só conheceram a maturidade nos últimos 150 anos e não faz duas ou três gerações que passaram a ser considerados incontestavelmente literatura. Pois bem, não é difícil defender que a canção é um dos gêneros definidores do século 20 e que parte importante de sua composição é letrada. Ou seja, canção é letra entoada e essa combinação inextricável entre texto e entoação constrói seus sentidos. Não significa dizer que canção é poesia, pois não é – não é mais do que poesia, nem menos do que poesia, são simplesmente objetos

estéticos distintos –, mas significa dizer que canção é gênero letrado, como o romance, a poesia, o conto, o teatro, este também completamente inseparável da performance. Uma anedota vem a calhar: Molière alertava que, para se ler teatro, era necessário ter olhos para imaginar a cena, pois não havia teatro dentro do livro – quando o dramaturgo francês começou a se celebrizar, ele não permitia que suas peças fossem publicadas, então copistas assistiam repetidamente às sessões para lançar clandestinamente edições com as comédias do autor. De mesma forma, para se ler canção, é preciso ter ouvidos para ouvir a letra entoada, pois não há canção somente dentro da folha. Por isso faz tanto sentido dizer que uma letra de canção é pior do um poema quanto dizer que uma peça de teatro é pior do que um romance. Teatro não é literatura? Por que, então, canção não seria literatura? Também seria possível indagar: por que consideramos teatro literatura? Resposta: porque quando começamos a organizar a literatura em manuais, compêndios e histórias literárias, o teatro lograva de enorme prestígio, quer como uma das origens fortes da literatura de livro, quer como presença marcante no campo da cultura nos séculos 18 e 19. Às vezes razões simples acarretam conjunturas complexas. Não significa, que fique claro, que o crítico deva postular que tudo é literatura, mas que sua postura deve ser mais includente do que excludente, sempre com um olhar atento à história das formas estéticas e à maneira como essas formas dialogam com a sociedade. Que canção possa


literatura

segundo SEMESTRE

2016

68

ser entendida como literatura? Evidente que sim. Que o cinema (como as telenovelas ou as séries de TV) possa eventualmente ser entendido como literatura? Acho bastante razoável também. Nos dois casos, canção e cinema, é bom dizer, obras de produção coletiva, formadas sob a égide da indústria cultura, a partir de componentes letrados e não letrados e que, a rigor, não precisam ser chamadas de literatura, isto é, têm uma circulação muito mais vasta do que a dos livros, também pelo analfabetismo e pelo analfabetismo funcional presente no Brasil e em outros países. Apesar das produções em altíssimo nível, talvez seja mais ousado chamar quadrinho, charge, publicidade etc. de literatura – embora eu não transformasse isso numa grande questão. Dito isso, Bob Dylan tem motivos de sobra para ganhar um Nobel de Literatura: tem carreira sólida há 50 anos, versando sobre um mundo em rápida transformação e sofrendo também essas transformações em sua dicção; virtuoso, compôs canções líricas, narrativas e até mesmo religiosas com desempenho notável; é responsável por um enriquecimento sensível do patrimônio da língua inglesa, o que implica também atuar no horizonte de reflexão dos falantes dessa língua, expandindo seu imaginário; é influenciado por outros gêneros letrados e influencia artistas de outros gêneros letrados; interpretou e representou a experiência humana de seu tempo, seu lugar e sua classe social. Ao lado de outros artistas, inclusive cancionistas – como Chico Buarque, por exemplo, para citar um dos nossos –, não são muitos a alcançar essas proezas. Vale dizer, mais uma vez, que não se trata de comparar as letras das canções de Dylan com os poemas de Eliot, ganhador do prêmio em 1948. Canção popular é, pelo menos, letra e melodia. Isso nos leva ao segundo ponto que prometi considerar, sobre a justiça do prêmio e a hipótese de que Dylan não precisasse de um Nobel. Todos conhecem as motivações políticas desse prêmio em particular, e talvez esta seja a pergunta mais importante: por que a Academia Sueca premia em 2016 um artista contracultural estadunidense? Mas é da natureza dos prêmios sua falta de acurácia, seus equívocos mais ou menos históricos, sua falta de imparcialidade. São notórios os escritores brilhantes que jamais receberam prê-

mios e, igualmente, são inúmeros os escritores reiteradamente premiados que não ficaram para a história da literatura. Da outra ponta da corda, nem o valor simbólico nem o valor monetário do prêmio modificarão a vida do compositor. Lembro-me de Saramago comentar, numa entrevista, que depois do Nobel passou a viajar muito, pelo mundo todo, de feira do livro em feira do livro. Duvido que Dylan cancele suas turnês. Mas isso seria um problema? Concretamente, o que remete à terceira objeção com que introduzi este artigo – de que ele estaria no lugar de um escritor de livro, tirando seu espaço –, creio ser muito difícil arbitrar e erguer muros sobre esses limites. Quando um escritor, como Leminski, por exemplo, logra sucesso no mundo da canção, ele deve ser repreendido por estar tomando o lugar de um cancionista? Ou, para voltarmos ao Chico, quando começou a escrever regularmente seus livros, alguém deveria ter lhe dito: pô, Chico, você já é o maior cancionista do Brasil, assim vai tirar o lugar de um romancista? Por princípio, acho que tal trânsito é mais saudável quando frequente e quando o que se separa um campo do outro é de natureza mais porosa. Os prêmios, físicos ou simbólicos, reconhecem o desempenho do artista em um determinado campo. Seria muito bem-vindo, por exemplo, que um CD de poemas gravados ganhasse prêmios de canção, se fosse o caso, mas para isso o declamador precisaria ter também sua vivência mental naquele outro espaço, dedicando-se mais às melodias, arranjos, interpretações etc., tal como Dylan tem no universo da literatura de livro. Ademais, o argumento de que o mercado a reboque do laureado movimenta uma malha ramificada de novas publicações, novas traduções, novos autores e tudo o mais requer dados mais consistentes. Pelo que converso com editores e tradutores, o Nobel aquece o mercado somente do escritor premiado – e como se altera de ano a ano, nominalmente, é um nicho delineado. Assim, ao que parece, não conhecemos novas autoras ou autores canadenses por causa de Alice Munro. O único lugar que um vencedor de Nobel tira é o de outro indicado a receber o prêmio. Abstratamente, o que um grande artista ganha com o Prêmio Nobel? Parece uma pergunta tola, mas questiono no sentido de que as gran-

des obras artísticas da humanidade estão para além dos prêmios. No caso específico de Dylan, com carreira sólida, reconhecimento internacional, êxito financeiro, nem mesmo pra isso “serve” o Nobel, para consolidar um escritor. Em contrapartida, e aqui para mim está a maior importância dessa indicação, Bob Dylan ganhar um Nobel de Literatura significa muito para a canção popular. Não se trata de decreto, veja bem: a partir de agora canção é literatura. Mas se trata, sim, dialeticamente, de um gesto no sentido de reconhecimento do gênero como parte do patrimônio letrado. Dessa forma, é provável que as forças estejam cada vez mais a favor do entendimento literário da canção popular – aqui, na UFRGS, temos cadeira própria na graduação, criada pelo professor Luís Augusto Fischer, há pelo menos 15 anos e, recentemente, indicamos um disco como leitura obrigatória e publicamos uma coletânea com os últimos 10 anos de pesquisa na universidade. Espero que em 20 anos não precisemos mais dar entrevistas justificando a existência da canção popular num curso de Letras e sua incidência nas provas de vestibular. No ano de um golpe jurídico-parlamentar no Brasil e da eleição de Trump para a Casa “Cada Vez Mais” Branca, leio com muito otimismo a vitória de Dylan. Concordando com Hermeto e não com Caetano, acredito termos a canção popular mais rica e plural do planeta – por diversas razões históricas, atrozes, inclusive – e o prêmio não deixa de ser uma espécie de reconhecimento a séculos de decantação da produção oral de incontáveis comunidades. Dylan é a ponta branca de uma enorme linhagem negra de predecessores. Paradoxalmente, ficam mais distantes as chances de outros cancionistas receberam o prêmio por ora: Joni Mitchell, Paul McCartney, Charles Aznavour, Chico, Caetano, Gil, Paulinho da Viola – e embora o Nobel só premie vivos: Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui, Jim Morrison, David Bowie e Lou Reed. Uma lista pessoal, arbitrária, irresponsável, eu sei. Faça a sua. Para quais cancionistas você daria o Prêmio Nobel de Literatura? E pensar que seria possível essa pergunta...


literatura LEITURA

SEGUNDO segundo SEMESTRE

2016

69

O Duelo

Enclausurado

Americanah

bagagem

Anton Tchekov

Ian McEwan

Chimamanda Ngozi Adichie

Gervasio Troche

Amarilys

Companhia das Letras

Companhia da Letras

Lote 42

Laiévski é um jovem de 28 anos,

Acabo de terminar Enclausurado,

A escritora nigeriana Chimamanda

Os traços singelos de Gervasio

funcionário negligente do Ministério

de Ian McEwan. Li de uma enfiada,

Ngozi Adichie é um dos grandes

Troche provocam mudanças no

das Finanças lotado no sul da Rússia,

durante uma viagem mais longa

nomes da literatura contemporânea.

semblante de quem observa,

para onde fugiu com Nadejda,

que o esperado. Há várias maneiras

Em seu último livro, Americanah,

seja um sorriso espontâneo,

uma mulher casada que deixou o

de ler este livro singular, contado

publicado em 2014 no Brasil,

seja um olhar contemplativo.

marido em Petersburgo. Dois anos

em primeira pessoa por um feto

a autora aborda questões que

Troche molda a linha como se

depois, ambos estão entediados.

a partir do ventre materno. Pode

envolvem gênero e raça. Ifemelu,

fosse um arame e mostra a

Laiévski resolve então abandonar

ser lido com o suspense com que

protagonista, se envolverá com

beleza inusitada de uma escala

Nadejda, mas, cheio de dívidas,

se lê uma história policial, já que a

Obinze, filho de uma professora

de cinzas. Com seu pincel fino

procura o médico Samóilenko, seu

gestante e seu amante planejam o

universitária. A narrativa é

e trabalho minucioso, ele nos

amigo, conta seu dilema e pede

assassinato do pai do bebê. Pode ser

ambientada na Nigéria, Inglaterra

leva a um lugar onde emoções

dinheiro emprestado para voltar

lido como um drama shakesperiano,

e EUA e, com suas descrições

verdadeiras ganham espaço.

à “civilização”. Acaba, por razões

pois o amante é irmão da futura

culturais bastante precisas, a

Troche nos deixa entrar em seu

fúteis, se desentendendo com von

vítima, amante da cunhada e

narração conduz o leitor a refletir

mundo particular e, generoso,

Koren, que, por odiá-lo, desafia-o a

tio do narrador. Pode ser lido

sobre o choque entre culturas na

nos empresta suas cenas e seus

um duelo. Na noite que antecede o

com espírito de detetive cultural,

contemporaneidade, sobre política

personagens mudos para que

momento em que terá de enfrentar

caçando as numerosas citações

atual, sobre a sexualidade feminina

criemos novos sentidos. Ele

seu adversário, Laiévski compreende

ocultas e manifestas. Pode ser lido,

e sobre as diversas formas de

nos mostra que o silêncio, às

a futilidade de sua existência e

como eu fiz, com olhar de escritor,

racismo. Em todos esses aspectos

vezes, pode ser mais eloquente

decide se deixar matar. Na última

admirando a impecável construção

Chimamanda acerta a mão. O que

que as palavras. Em Bagagem,

hora, no entanto, é salvo pelos gritos

da narrativa, o brilho da linguagem,

talvez mais encante no livro é a

segunda coletânea dos seus

do diácono Pobédov, que assistia a

a ousadia, a capacidade de

capacidade que Chimamanda tem

desenhos, aparece um Troche

tudo escondido. Laiévski torna-se

seguidamente surpreender. Ou pode

em construir uma história de amor,

um tanto mais denso, com

outro homem: perdoa as traições de

ser lido como o será pela maioria

de denúncias e conflitos identitários,

questionamentos sobre raízes,

Nadejda, assume seu trabalho com

dos leitores, por puro prazer.

através de um texto bem escrito e

identidade e tudo aquilo que

tocante.

carregamos ao longo da vida.

afinco, e, para sanar seus débitos, passa a viver “pior que um mendigo”. Luiz Ruffato

Marina Colasanti

Jeferson Tenório

Cecilia Arbolave

Escritor

ESCRITORA

Escritor

jornalista


primeiro SEMESTRE

2015

70



7º Festival Internacional Sesc de Música Pelotas-RS

De 16 a 27 de janeiro de 2017, recitais e concertos ocuparão diversos locais na cidade. sesc-rs.com.br/festival

Apoio Cultural

Apoio Institucional

Realização


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