Revista Arte Sesc - 1º semestre 2017

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PRIMEIRO sEMESTRE

2017 ISSN 1984-056X

palco giratório: 20 anos de estrada Mostra Sesc de Cinema exibe produção nacional inédita A distância entre leitores e vencedores de prêmios literários




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08

33

artes cênicas

caderno de teatro

música

08 Os 20 anos do Palco Giratório:

22 A trajetória de 25 anos de encontros,

33 35 anos sem Elis Regina: artigo do músico

a diversidade da produção nacional

trocas e aprendizagens do Núcleo de

e jornalista Arthur de Faria relembra os

acessível ao público de todo o país

Investigação Usina do Trabalho do Ator

bastidores da gravação do antológico

(UTA), que participa do 12º Festival

álbum Elis e Tom (1974) e o jornalista Juarez

Palco Giratório com os espetáculos

Fonseca imagina como seria a artista hoje,

Histórias Negras para Crianças de Todas

aos 72 anos

12 A experiência dos grupos gaúchos que circularam pelo projeto Palco Giratório

as Cores, Dança do Tempo e Eu Não 36 Crítico João Luiz Sampaio analisa os sentidos

15 Parlapatões, grupo do mestre da palhaçaria

Sou Macaco!, exposição fotográfica e

Hugo Possolo, é uma das atrações do 12º

intercâmbio com o coletivo boliviano

da música a partir da programação

Festival Palco Giratório em Porto Alegre

Teatro de Los Andes

do 7º Festival Internacional Sesc de Música e sua interação com a comunidade

18 A Cia. do Tijolo, que apresenta O Avesso do Claustro e Ledores no Breu no 12º Festival

38 Com os temas “Na pisada dos cocos” e

Palco Giratório, reflete sobre o Brasil atual a

“Bandas: formações e repertórios”, Sonora

partir de pensadores do século 20

Brasil chega à 20ª edição

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. ISSN 1984-056X

www.sesc-rs.com.br

DIRETORIA Luiz Carlos Bohn

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura

coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Audiovisual

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Canoas  Av. Guilherme Schell, 5340  51 3463.6756 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403

Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga  R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


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44

50

AUDIOVISUAL

ARTES VISUAIS

literatura

40 Projeto Mostra Sesc de Cinema

44 Em “Os caminhos e descaminhos da

50 A distância que separa os leitores dos

possibilita uma oportunidade

curadoria”, Francisco Dalcol reflete

livros vencedores de prêmios de literatura

para novos realizadores exibirem

sobre a banalização do termo a

em um país que não conta com políticas

seus filmes e traça um panorama

partir da análise da sua origem e

consistentes de leitura é o tema do artigo

da produção nacional em curtas

dos antecedentes da atividade até

de Henrique Rodrigues

e longas metragens; além disso,

chegar às artes visuais 52 “Por que não conhecemos as escritoras

contribui para a formação de plateia

negras gaúchas?” é a reflexão da jornalista

para o cinema brasileiro

e escritora Priscila Pasko 59 Leitura

BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Balneário Pinhal  Av. General Osório, 1030  51 3682-3041 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  R. Luiz Marafon, 328  54 3242.3437 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  Av. Sete de Setembro, 1281  55 3423.5403 Santiago  Av. Getúlio Vargas, 1079  55 3251.9373 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos  Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria  R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

fale conosco

execução e produção editorial

51 3284.2000   faleconosco@sesc-rs.com.br   sescrs   Sesc_RS

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Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

SescRS

Greice Zenker

Revisão de Texto

Ideograf   sescrs

Impressão de 1.500 exemplares

CAPA

O Amargo Santo da Purificação, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz Foto: Claudio Etges


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PRIMEIRO SEMESTRE

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Espetáculo O Avesso do Claustro, da Cia. do Tijolo Foto: Alécio Cezar

uma edição para comemorar a cultura Em 2017, celebramos os 20 anos do Circuito Nacional Palco Giratório Sesc e, ao mesmo tempo, chegamos ao 12º Festival Palco Giratório Sesc/POA, um evento que traz à Capital dos gaúchos mais de 100 sessões artísticas e proporciona um verdadeiro intercâmbio cultural. Embora o cenário político-econômico siga conturbado, acreditamos que a valorização da cultura se faz cada vez mais necessária. O acesso à cultura abre janelas e portas para a educação e enriquece a população; assim, poder alcançar pessoas em todos os cantos do país é um estímulo para seguirmos com essa missão. Nas próximas páginas, você poderá conferir os relatos de grupos que circularam por cidades distantes do nosso Brasil e, com sua arte, puderam tocar a vida destas comunidades. Por falar em tocar as pessoas, os projetos musicais também figuram nesta edição: o artigo do jornalista e crítico musical João Luiz Sampaio sobre o Festival Internacional Sesc de Música traz uma visão única e sensível do evento que reuniu mais de 250 alunos e 30 mil espectadores no início deste ano em Pelotas. Ainda na área musical, a nossa cultura não pode deixar de ser exaltada ao lembrar as mais de três décadas sem um ícone da música popular brasileira, Elis Regina, e os temas da Mostra Sonora Brasil Sesc, que dá voz a manifestações ricas e pouco conhecidas do público. O audiovisual também tem destaque nesta edição da Revista Arte Sesc, com a Mostra Sesc de Cinema. Da mesma forma, as artes visuais, com artigo de Francisco Dalcol sobre curadoria, e a literatura, com temas que permeiam os projetos Arte da Palavra e Sesc Mais Leitura. Continuemos disseminando a cultura por toda parte, da Capital aos confins do Rio Grande do Sul, pois este é o nosso papel no cenário cultural do Estado.

Luiz Carlos Bohn

Luiz Tadeu Piva

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Diretor Regional Sesc/RS


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Duas décadas de Palco Giratório Maior circuito de artes cênicas do país, em sua 20ª edição, em 2017, faz homenagem à Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre Reconhecido no cenário cultural brasileiro como uma das maiores iniciativas de difusão e intercâmbio das artes cênicas, com importante repercussão na formação de plateias a partir da circulação de espetáculos dos mais variados gêneros, o projeto Circuito Palco Giratório completa 20 anos em 2017. Neste período, levou a um público também diversificado, das capitais e do interior de todos os estados do país, 9.526 apresentações de grupos de teatro, circo, dança, entre outras linguagens artísticas, em instalações do Sesc e de parceiros, praças e outros espaços urbanos. Além de espetáculos para todas as faixas etárias, o Palco Giratório tem uma extensa programação de oficinas, mostras e encontros locais de arte e cultura, idealizada com o objetivo de promover


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e incentivar as manifestações artísticas regionais,

em 144 cidades de 26 estados e do Distrito Federal.

com Kassandra in Process, aos que Virão Depois de

fomentando a troca de experiências com os artis-

Também serão realizadas 1.188 horas de atividades

Nós / A Saga de Canudos; e 2010, com O Amar-

tas que circulam por todo o país, em cada edição,

formativas e seminários, nos quais serão discutidos

go Santo da Purificação – destaca-se no cenário

divulgando seu trabalho. O projeto também pro-

aspectos relevantes das artes cênicas e políticas

nacional por promover a abertura de renovadas

move o Pensamento Giratório, um espaço aberto

públicas para o teatro, entre outros temas. A pro-

perspectivas para o teatro na rua e a ocupação do

ao público para reflexão e discussão sobre o traba-

gramação 2017 teve início em Campina Grande,

espaço público como potencializador de reflexões

lho e a pesquisa dos grupos itinerantes.

na Paraíba, com a exibição do novo espetáculo da

políticas e estéticas.

A capilaridade do Sesc possibilita que não só

Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto

todos os estados brasileiros recebam o projeto, mas

Alegre, que está completando 39 anos de atuação

que especialmente os pequenos municípios do in-

e, como grupo homenageado desta edição, fará

terior, com mais dificuldades para a população ter

circulação especial por 19 cidades ao longo do ano.

acesso a uma produção diversificada e continuada,

Releitura da obra de Shakespeare, feita por

possam assistir a espetáculos que são referência

Augusto Boal (1931-2007), Caliban – A Tempestade

nas artes cênicas em nível nacional. Descentralizar

de Augusto Boal apropria-se da peça do dramatur-

a arte e estabelecer novas redes de circulação e in-

go inglês e do pensamento do poeta, ensaísta e crí-

tercâmbio é uma estratégia de fomentar a produ-

tico literário cubano Roberto Fernández Retamar

ção cultural e a formação de plateia, contribuindo

para questionar a exploração da América do Sul

para o desenvolvimento da cidadania.

pelo colonialismo europeu e para discutir a pos-

Na 20ª edição, o Palco Giratório conta com

tura neocolonialista dos Estados Unidos. O grupo

a participação de 20 companhias e artistas, que

– que já participou da circulação nacional do Pal-

farão 685 apresentações artísticas e intercâmbios

co Giratório 2002, com A Saga de Canudos; 2003,

Caliban, a Tempestade de Augusto Boal, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, abriu a edição 20 do projeto, em Campina Grande/PB Foto: Pedro Isaias Lucas


ARTES CÊNICAS

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O OLHAR ATENTO DA CURADORIA Uma curadoria descentralizada realizada por membros do Sesc de todas as regiões possibilita uma programação plural, com diversos sotaques – uma amostra do que está sendo produzido em todo o território nacional. Nesta edição, os 20 espetáculos contemplam teatro adulto, teatro de rua, teatro para infância e para juventude, dança, circo e intervenções urbanas, sendo que muitos destes dificilmente encontrariam, sem o apoio do Sesc, viabilidade de circulação para apresentações nas diversas regiões do país. Entre os destaques estão os espetáculos Caranguejo Overdrive, da Aquela Cia. de Teatro, montagem vencedora do Prêmio Shell em três categorias, e a intervenção urbana DNA de DAN, de Maikon K, Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. Em São Luís existem muitos grupos teatrais em formação e expansão. Eles regularmente estão nas programações do Sesc, então fica menos difícil fazer um acompanhamento mais próximo. Não existem temporadas para os espetáculos na cidade. As apresentações de estreia acontecem normalmente por um final de semana e, depois, ficam aguardando os poucos eventos que acontecem. É importante que os trabalhos entrem na programação do Sesc, mas também que eles sobrevivam para além desta. E sem uma política pública e investimentos privados para as artes cênicas, alguns espetáculos não sobrevivem, não adquirem maturidade suficiente. Raras vezes conseguem fazer circulações, nem pelo interior ou fora do Estado. Poucos grupos conseguiram chegar a um nível de profissionalização.

Caranguejo Overdrive, Aquela Cia. de Teatro Foto: Claudio Etges

Maikon K em DNA de DAN Foto: Lauro Borges

Considerando todas as limitações pelos

assistidos presencialmente pelo curador

quais os grupos cênicos passam em nos-

local, no entanto sem o compromisso de

sa região, para nós, é de extrema alegria

indicação, e assim é. Para alguns proje-

fazer parte da história dos 20 anos do

tos elaboramos o edital de credencia-

Palco Giratório, projeto pelo qual circu-

mento de propostas artísticas, o que nos

laram quatro espetáculos do Maranhão:

permite mapear boa parte da produção

Pai e Filho, da Pequena Cia. de Teatro;

e acompanhar o desenvolvimento dos

O Miolo da História, da Santa Ignorância

grupos ao longo dos anos. Analisamos

Cia. de Artes; O Divino, do Núcleo Atmos-

os aspectos conceituais da pesquisa

fera; e A Carroça é Nossa, do Xama Teatro.

e a linha de trabalho do grupo; se há

Todos esses trabalhos já possuíam um

diálogo entre os diferentes gêneros,

currículo bastante extenso. Alguns dos

tendências e estilos; os aspectos ino-

artistas tinham uma relação muito

vadores e diferenciados do espetáculo;

próxima com o projeto Palco Giratório,

a possibilidade para desdobramento de

como participantes de oficinas e apre-

ações formativas; a relação profissional

ciadores de espetáculos ao longo dos

que se estabelece a partir das contrata-

anos. Mas cada espetáculo foi indicado e

ções no Sesc; a capacidade de gestão e

entrou na circulação do palco no tempo

manutenção dos grupos; a repercussão

certo que deveria entrar.

gerada do espetáculo e a proximidade

Para além dos critérios do processo de

com os grupos nos permite, de vez em

curadoria nacional, também conside-

quando, esclarecer dúvidas e dificulda-

ramos que os espetáculos deverão ser

des sobre uma grande circulação.


ARTES CÊNICAS

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Acredito que iniciamos uma nova fase,

observo sempre o compromisso do gru-

que é o compartilhamento e as trocas

po com a cena local, as possibilidades de

ESPETÁCULOS DA 20ª EDIÇÃO

de experiências entre os grupos que já

contribuição com outras atividades do

A programação do Circuito Palco Giratório 2017

circularam. Assim, observo que natural-

projeto (oficinas, Pensamento Giratório

está no site www.sesc.com.br/palcogiratorio/

mente eles se aproximaram ainda mais

e intercâmbio). O grupo precisa estar

e novos grupos ampliaram seus desejos.

amadurecido para a “empreitada” que é

É o sonho de todos os grupos, mas isso

circular esse país continental. Além dis-

acontece sem pressão e como conse-

so, sempre que um grupo sergipano está

quência de um trabalho qualitativo de

em circulação pelo país, faço questão de

todos os envolvidos.

avisar ao curador daquele Estado para

Isoneth Almeida

assistir também o espetáculo. Assim,

Curadora do Palco Giratório – Sesc/MA

podemos dividir impressões. É maravilhoso poder contar com um curador em

Para ser curador do Projeto Palco Gi-

qualquer região do país! Eu desconheço

ratório é preciso estar atento à pro-

uma curadoria com essa capilaridade.

dução cênica do nosso Estado. Não dá

Busco sempre, na medida do possível,

para assumir essa função sem ter esse

estar próximo dos artistas, visito proces-

comprometimento. Cada curador pode

sos de construção de espetáculos; é uma

indicar até cinco propostas. Sergipe é

tarefa que me dá prazer! É como se fos-

pequeno, a produção cênica também.

se um “cuidar” para no futuro distribuir,

Às vezes nem alcançamos esse número,

oportunizar, proporcionar encontros por

porque, além de primar pela qualidade,

meio desse projeto que, muito mais que uma turnê, é uma troca afetiva que já dura 20 lindos anos! André Santana

CALIBAN – A TEMPESTADE DE AUGUSTO BOAL Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS) WOMEN’S Experiência Subterrânea (SC) CARANGUEJO OVERDRIVE Aquela Cia. de Teatro (RJ) ABRAZO Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN) FUI! CiaSenhas de Teatro (PR) DILÚVIO MA Ecopoética: Arte e Sustentabilidade em Intervenções Urbanas (RS) NA ESQUINA Coletivo Na Esquina (MG) DNA DE DAN Maikon K (PR) MAIÊUTICA Raquel Mützenberg (MT) PALAFITA Grupo Fuzuê (CE)

Curador do Palco Giratório – Sesc/SE

À BEIRA DE... Silvia Moura (CE)

O projeto Palco Giratório impulsionou a

FINITA Denise Stutz (RJ)

política cultural no Sesc/BA ao ampliar sua ação para o interior. Constata-se a contribuição que tem dado para o desenvolvimento cultural local tanto em Salvador como no interior, onde existem unidades do Sesc. Quando o projeto foi implantado, em 2003, não realizávamos grandes eventos nem festivais no Estado, essas ações vieram após a realização das Aldeias. Ao fazer circular espetáculos da cena brasileira (de diversas linguagens), acompanhados de oficina ou palestras, painéis, intercâmbios, Aldeias, por onde cada etapa passa, vamos formando plateias e transformando cidadãos. Ana Paolilo Curadora do Palco Giratório – Sesc/BA

RUÍNA DE ANJOS A Outra Cia. de Teatro (BA) LETE Beradera Cia. de Teatro (RO) OS MEQUETREFE Parlapatões (SP) HAMLET – PROCESSO DE REVELAÇÃO Coletivo Irmãos Guimarães (DF) LEDORES NO BREU Cia. do Tijolo (SP) CINZAS AO SOLO Alexandre Américo (RN) O QUADRO DE TODOS JUNTOS Pigmalião Escultura que Mexe (MG) NINHOS Balagandança (SP)


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A diversidade da produção gaúcha no Palco Giratório

Louça Cinderella, teatro de objetos da Cia. Gente Falante Foto: Vilmar Carvalho

O Lançador de Foguetes, Grupo de Teatro DePernasProAr Foto: Odair Fonseca

Nas 19 edições do Circuito Palco

com esse povo nosso! Nascemos para amar esse

Giratório, os coletivos que

povo brasileiro, temos fé nele! Eles são sensíveis;

representaram o Rio Grande de Sul

com eles esse país logo fará jus ao seu tamanho”.

na circulação nacional tiveram

Essa fé fica inabalável quando pensamos o quan-

participações destacadas com teatro

to de gente acredita nesse encenar gigante; foi

de bonecos e de objetos, teatro de rua,

fácil derramar paixão por essa máquina Palco Gi-

teatro infantil, circo, entre outros

ratório, azeitá-la e fazer muito bem feito o nosso

gêneros e manifestações.

papel e algo mais! Ficar com muita saudade, sentimento que só a nossa língua brasileira compre-

Mosaico brasileiro vivo

ende, nesses momentos foram imprescindíveis de

Paulo Martins Fontes e integrantes da Cia.

compreender.

Gente Falante – Teatro de Bonecos

A luz sempre constrói por onde passa um mais estruturado ou mais atento às necessidades

rastro de consciência; muitas luzes virão, com

Fazendo uma retrospectiva da nossa experiência

de adaptação e superação, para deixar história da

prismas giratórios da diversidade. Temos fé que

“Palco Giratório”, desde o nosso primeiro circui-

nossa tessitura cultural, construindo a Identida-

os nossos governantes vão aprender e enxergar

to com o Circo Minimal (2008), já percebíamos o

de Brasileira – isso é Palco Giratório. Tanta gente

o seu papel na hora de criarem novas políticas

quão abrangente esse projeto nacional se tornava

envolvida, tanta gente abnegada e estudando ar-

públicas, se espelhando nesse colossal misturador

nas nossas vidas, um rito de passagem instigante

duamente por onde as linhas que costuram esse

de arte que chega a todos os cantos do Brasil. Te-

e com um menu cultural incrível, plataforma de

tramado diverso vão fiar, construindo um tapete

nho fé, também, que os cidadãos compreenderão

autoconhecimento, conscientizador da grande

que sobrepõe a nação com uma promessa de “mais

o quão de direito eles têm para tomar posse do

extensão territorial; e vislumbramos o tal gigante

uma vez!!!” chegar aos ribeirinhos, às favelas, aos

conteúdo que um projeto como o Palco Giratório

Brazuca e o quanto de riquezas possuímos!

vilarejos esquecidos pelos governantes, aos assí-

tem a oferecer, querendo mais e mais arte e nesse

Descentralizar, diversificar, apresentar um pa-

duos de artes, aos desconhecedores, a todos, com

movimento: “ter um espaço de ver e ter liberdade

norama de produção artística nacional, estabelecer

grandiosidade, mesmo que o espetáculo seja pe-

de expressão” garantido!

elos entre as tribos, compreender-se como núcleo

queno em escala.

Cremos na essência pura e boa brotando

artístico neste universo, deliciar-se com as diferen-

E como se fosse pouco, voltar ao circuito

nesses momentos de encontro; 20 anos de conso-

ças, comunicar-se, universalizar-se... Ficaríamos uma

novamente, revigorar a relação com os que têm

lidação promovendo integração é o papel de um

tarde inteira enumerando as joias que nos agracia-

fome de arte; nós que temos fome de dialogar,

grande sol; temos muito orgulho de fazer parte

ram ao participar dessa colossal rede de cultura, mas

de trocar figurinhas... de aprender, vendo o brilho

desse desbunde nacional, que é a permanência de

ainda seria pouco, pois haveria a citar alguns milhões

nos olhares negros, castanhos, azuis, verdes. Com

20 incríveis aniversários de um projeto no qual

de “pérolas que esse projeto distribui aos povos”, to-

Louça Cinderella (2014), foi mais incrível ainda;

sempre se presenteia a todos, sem distinção, é do

dos eles, conhecedores de teatro ou não, ampliando

foram emoções admiráveis, tínhamos que possuir

que precisamos para ter orgulho do Brasil.

seus horizontes por meio da arte disposta em “Mo-

nervos de aço para não nos contaminar e desa-

saico Brasileiro”. Sim, Mosaico Brasileiro Vivo, pul-

guar durante a encenação; depois, se esvair em

sante, cada vez mais surpreendente, a cada ano com

lágrimas com tanta gente delicada a nos acari-

o olhar mais atento, misturado, mais apreendido,

nhar e vinha a sensação de “queremos ficar mais

Parabéns aos fazedores do Palco Giratório; em todas as instâncias desse feitio! Parabéns, Palco Giratório – nosso grande orgulho nacional!


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

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Viver a experiência de conhecer e ser conhecido

sam e aprofundam seu trabalho tenham a mes-

ali mais perto; dentro do espetáculo, uma grande

ma oportunidade de viver este sonho de ter suas

festa, menino montado no burrico, bocas abertas,

Grupo de Teatro DePernasProAr

obras espalhadas por todos os cantos.

adultos ao longe espiando pelas portas entrea-

Dentro das atividades formativas que o Pal-

bertas. E no meio da apresentação algo inusitado

Foram tantas rodas, milhares de olhares, ali, nas

co Giratório proporciona, como Pensamento Gi-

acontece: é a chuva que vem abrandar um calor

ruas e praças deste Brasil, diferentes e ricas cul-

ratório, Intercâmbio, destacamos as oficinas, que

de quase 40 graus, as crianças começam a gritar

turas se misturaram com o nosso fazer num cons-

nos trouxeram um arremessar-se num universo

ainda mais, o Lançador com um nó na garganta,

tante devir. O Palco Giratório exige coragem, força

de novas possibilidades criativas. Oficineiro e

resolve continuar até o fim. A chuva como che-

no trabalho, generosidade e nos oferece uma outra

oficinandos juntos, rompendo barreiras, recons-

gou foi embora num piscar de olhos, o sol voltou

dimensão a nossa arte, é um sonho possível e nós

truindo técnicas, encontram-se um no outro, e

a reinar, o Lançador com seu triciclo repleto de

o vivemos com toda intensidade.

neste deslocar-se germina o ator inventivo.

engenhocas astrológicas e malabares ilusionistas

O Palco Giratório é a maior rede de intercâm-

Entre tantas histórias que vivemos, quere-

conduz todos a uma jornada para lançar fogue-

bio e difusão das artes cênicas do nosso país. Pos-

mos compartilhar uma em especial. Foi em Bu-

tes-ideias ao ar. Dentre as muitas frases que se

sui uma estrutura logística com profissionais incrí-

íque, no agreste de Pernambuco, um solo semi-

sucederam no final do espetáculo, algumas não

veis, que, com carinho, dão todo o apoio e suporte

árido, com escassez de água, e de tantas outras

saem da nossa cabeça. Uma menina de 6 anos me

necessário para a circulação, construídos em 20

coisas, numa rua com calçamento de pedra, esgo-

abraçou no final e disse “Obrigado por você ter

anos de experiência, uma rica teia que liga as artes

to a céu aberto, onde crianças com as latas pen-

chegado até aqui”; e outro menino que, gritando,

cênicas do Brasil a um público diversificado, prin-

duradas nos ombros se enfileiravam para pegar

disse “Você é o homem que traz a chuva né?”. Pois

cipalmente a lugares e cidadãos com acesso muito

água no único lugar onde existe um reservatório,

fica a reflexão: aonde o teatro chega com o proje-

restrito a equipamentos culturais e à arte, e nós

na escola da vila. Ali, pela primeira vez um espe-

to Palco Giratório, levando outras formas de arte,

tivemos a felicidade de ver e viver esta experiência.

táculo de teatro, algo a se somar nesta paisagem

sonhos e possibilidades acontecem.

O Grupo de Teatro DePernasProAr completa,

forte, verdadeira, sofrida, mas extremamente re-

Esse acúmulo de vivência e experiências rea-

neste ano, 29 anos do seu fazer artístico (apre-

ceptiva e alegre. É neste cenário que surge O Lan-

firma nossa busca de novas formas de se comuni-

senta esta alquimia entre as linguagens do tea-

çador de Foguetes: irreverente e sem uma palavra,

car com o público e o espaço urbano. Hoje, temos

tro de animação, do circo, do teatro de rua, da

vem entre as casas do pequeno povoado; mais

certeza de que estamos no caminho certo… o ca-

música e das máquinas engenhosas, elementos

de 300 crianças largando da escola se deparam

minho da construção, da arte… do lúdico… da ge-

que constituem nossa linguagem); levamos na

com algo inusitado, não sabem muito bem como

nerosidade… da vida, que propõe novos caminhos

bagagem a experiência de ter circulado em 2015

reagir, mas vão se misturando, gritando, rindo,

para que consigamos andar distintos.

no Palco Giratório com os espetáculos O Lança-

olhares curiosos, conversas, todos querendo estar

dor de Foguetes e Mira. Foram 24 estados, com 46 apresentações d’O Lançador de Foguetes, 11 apresentações do Mira, 22 oficinas, 2 encontros da atividade Pensamento Giratório e 2 intercâmbios. Um projeto necessário, que nos proporcionou diferentes olhares sobre nosso trabalho, do Sul ao Norte, do Sudeste ao Centro-Oeste e o Nordeste, das capitais às cidades pequenas e esquecidas do interior do nosso Brasil. Nosso palco é a rua, o Palco Giratório reafirma a cada edição seu compromisso com a arte pública, rico espaço urbano de vivências e carências, cumprindo assim uma de suas premissas, a disseminação e o fomento do teatro no Brasil. Desejamos que ele cresça e seja exemplo de política pública para as artes, e que um dia todos os grupos de teatro que pesqui-

Vida longa ao Palco Giratório do Sesc!


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2017

14

Lembranças de vivências fantásticas

terrestre e nos permitiu assim um contato mais

o impacto desse projeto na cultura do país e na

Giancarlo Carlomagno, ator e produtor

próximo com a população. Foram vivências fan-

vida dos artistas de teatro. Mas o que me dá ganas

do Oigalê

tásticas principalmente nas cidades mais “singelas”

de compartilhar, ao pensar no “Palco”, é justamen-

no que diz respeito ao número populacional.

te a sua capacidade de chegar a um público que,

Falar do projeto Palco Giratório do Sesc é exercitar

Diversas são as histórias, os acontecimentos e

muitas vezes, por estar fora dos grandes centros

um resgate de boas e significativas lembranças na

os encontros com profissionais da área e população

do país, fica distanciado da possibilidade de entrar

história da Oigalê. Há mais ou menos 10 anos, mais

em geral. Muitos desses encontros transformaram-

em contato com diversas linguagens, entre elas o

especificamente no ano de 2006, tivemos o privi-

-se em grandes amizades que perpetuam até os dias

teatro. Levar o teatro a cidades do interior deste

légio de participar com dois espetáculos de nosso

atuais. Para nós, participar do Palco Giratório foi

imenso país é algo de extrema importância. Des-

repertório de teatro de rua: Deus e o Diabo na Terra

uma confirmação da grande extensão do Brasil e da

centralizar é vital e necessário.

de Miséria e O Negrinho do Pastoreio.

sua imensurável diversidade cultural. As diferentes

Outra coisa que também quero ressaltar é a

Nas dezenas de apresentações teatrais e ofi-

espécies de fauna e flora, a incrível generosidade da

beleza da troca, do encontro. A aprendizagem que

cinas pelo Brasil afora (Paraná, Amazonas, Ama-

população, a possibilidade de acesso às cidades do

se estabelece é riquíssima. Tenho lições que leva-

pá, Pará, Pernambuco, Bahia, Ceará...), circulando

interior, descentralizando e possibilitando o contato

rei comigo pra sempre: são encontros com jovens

bastante pelo Norte e Nordeste, aliás algo muito

com outras culturas, climas e, acima de tudo, do ser

cheios de ânimo ou os velhos mestres da cultura

característico desse projeto, nossa maior “perna”

humano incrível que habita este país.

popular. É um grande intercâmbio de experiências.

foi no Estado de Pernambuco, onde pudemos vi-

Vida longa ao Palco Giratório!

Enfim, é um privilégio participar desse projeto que é, de fato, uma grande celebração do encontro.

venciar uma circulação terrestre por grande parte das cidades e seus diferentes biomas. Neste estado,

A celebração do encontro

iniciamos pela zona do Rio São Francisco (Petroli-

Tânia Farias, Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui

na), passamos pelo agreste (Bodocó e Buíque), pelo

Traveiz – grupo homenageado no Circuito Palco

sertão (Caruaru, Arcoverde e Triunfo) finalizando

Giratório 2017

E, pra mim, o encontro é a essência do teatro.

na zona da mata (Recife e Olinda). Esta circulação ficou marcada em nossos corações pela riqueza

O Palco Giratório é, sem dúvida alguma, o maior

das cidades e pela incrível recepção do público.

e mais importante projeto de intercâmbio e circu-

Provavelmente porque todo o deslocamento foi

lação do Brasil. Poderia falar durante horas sobre

Deus e o Diabo na Terra de Miséria, Oigalê Foto: Kiran

O Amargo Santo da Purificação, Ói Nóis Aqui Traveiz Foto: Claudio Etges


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2017

15

O ativismo do palhaço Hugo Possolo, do grupo Parlapatões,

Palhaço, ator, dramaturgo, cenógrafo, figurinista,

dramaturgia própria e premiado pela Jornada Sesc

mestre da palhaçaria, tem uma

diretor e produtor cultural, Hugo Possolo é dos

de Teatro em 1993, que deu projeção nacional ao

importante atuação na articulação de

fundadores do grupo Parlapatões e, além dos es-

Parlapatões. A versão de 2001, dirigida por Possolo,

políticas para o desenvolvimento da arte

petáculos, eventos e atividades de formação, atua

faz parte do repertório até hoje.

circense no país

fortemente no desenvolvimento das políticas na-

Em Piolim, lançado no ano do centenário

cionais de teatro e circo. Foi em 1991 que o grupo

do famoso palhaço, em 1997, o circo, sempre

começou passando o chapéu ao apresentar seus

presente nas montagens do grupo, virou tema

números circenses, que aos poucos foram ganhan-

principal pela primeira vez. O evento Vamos Co-

do uma forma teatral, gerando os dois primeiros

mer o Piolim, que reuniu o repertório do grupo e

espetáculos: Nada de Novo e Bem Debaixo do

ainda uma exposição sobre a vida do palhaço, foi

Nariz. No ano seguinte, o espetáculo Parlapatões,

indicado a diversos prêmios, vencendo o Grande

Patifes e Paspalhões, que batizou o grupo, foi a

Prêmio da Crítica Associação Paulista de Críticos

primeira tentativa de utilizar elementos do teatro

de Arte (APCA). Um reconhecimento pela manu-

de rua e do circo dentro da sala de espetáculo. Po-

tenção dos espetáculos em repertório, um dos

rém, foi a montagem seguinte, Sardanapalo, com

objetivos do grupo.

Stapafúrdyo

Foto: Luiz Doro Neto


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2017

16

Entre outros trabalhos de destaque do Parlapatões estão U Fabuliô (1996), representante oficial do Brasil na Expo 1998, em Lisboa; PPP@ WllmShkspr.br (1998), que se firmou como grande sucesso de público do grupo com mais de 50 mil espectadores; do mesmo ano, Farsa Quixotesca, com direção de Possolo e participação do grupo Pia Fraus, recebeu o Prêmio Panamco de melhor autor e melhor espetáculo e o APCA de melhor espetáculo; e Não Escrevi Isso deu o Prêmio Shell de cenografia a Possolo, que também fez o texto e dirigiu o espetáculo. Em 2001, o grupo encerrou o Projeto Pantagruel, cuja pesquisa sobre a obra de François Rabelais durou dois anos, resultando na encenação do espetáculo homônimo no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O ambicioso projeto marcou o fim do ciclo de montagens baseadas em pesquisa sobre comédia, carnaval e humor na Idade Média.

Mequetrefe, com roteiro, cenografia e figurino de

pojada de lidar com o improviso e a palhaça-

No ano de 2006, o espetáculo Stapafúrdyo,

Possolo, que também atua no espetáculo dirigido

ria, para juntos traduzirmos em cena o que

com roteiro e direção de Possolo e em parceria

por Alvaro Assad, da Cia. Etc e Tal. Na montagem,

queríamos do non sense, tanto humor quanto

novamente com Pia Fraus, o grupo inaugurou o

quatro palhaços que, não por acaso, se chamam

elemento poético. Também nos empenhamos

Circo Roda, lona que abrigou quatro grandes pro-

Dias, vivem a jornada de um longo dia, do des-

conjuntamente – e foi muito divertido – em

duções circenses. No mesmo ano, tiveram início

pertar à hora de ir dormir, revelando como a des-

usar a cenografia, composta por barris e es-

as atividades do Espaço Parlapatões, no contexto

construção da lógica cotidiana pode abrir espaço

cadas de metal, para que se tornassem for-

de ocupação da Praça Roosevelt por coletivos de

para outras maneiras de encarar a vida. Também

mas animadas que pudessem estimular a

teatro, impulsionando a revitalização do Centro

apresentam Parlapatões Clássicos do Circo, com

imaginação do público. Acredito que foi uma

de São Paulo. O Espaço Parlapatões produz e sedia

roteiro e direção de Possolo, um grande show de

parceria, esperada pelos dois grupos há muito

anualmente, desde a inauguração, mostras, fes-

variedades que celebra o repertório do grupo. Em

tempo, que resultou em um espetáculo sin-

tivais e eventos, como o Festival de Cenas Cômi-

60 minutos, os quatro palhaços – interpretados

gular e muito divertido.

cas, o Festival de Peças de Um Minuto, a Mostra

por Raul Barretto, Alexandre Bamba, Fabek Capreri

de Solos, Palhaçada Geral – Encontro Nacional de

e Possolo – passam das mais clássicas reprises aos

O grupo Parlapatões completou 25 anos,

Palhaços, o Concurso de Poesia Falada e a mos-

números mais inovadores em sua linguagem.

e de 1991 pra cá houve uma grande

tra anual do repertório dos Parlapatões: Sortidos

evolução em relação à democratização

& Variados. Também realiza, desde 2009, a Festa

ARTE SESC – O Parlapatões está no 12º

da arte, ao desenvolvimento do circo.

do Teatro, que, em suas três últimas edições, dis-

Festival Palco Giratório em Porto

Fale sobre este movimento do grupo na

tribuiu gratuitamente mais de 100 mil ingressos de

Alegre com o espetáculo Os Mequetrefe,

articulação das políticas de teatro e circo.

teatro para a população paulistana. Em 2013, ano

resultado do intercâmbio com a Cia.

Muitas coisas aconteceram neste período,

que o grupo encerrou as atividades do Circo Roda

Etc. e Tal. Qual a pesquisa contida neste

em especial, na formulação e, por vezes, efe-

e que o monólogo Eu Cão Eu, de e com Possolo,

trabalho?

tivação de políticas culturais para as artes

foi indicado ao Prêmio Shell de melhor texto, foi

HUGO POSSOLO – O mais interessante do

cênicas, com crescimento do teatro e entra-

aberto o Galpão Parlapatões, na Lapa, que passou

processo de criação de Os Mequetrefe foi

da em cena do circo, que sempre foi tratado

a abrigar cursos, oficinas, ensaios e um centro de

mesclar as visões de encenação entre o tea-

com muito preconceito, como se fosse mero

treinamento circense.

tro físico que Alvaro Assad, da Cia. Etc e Tal,

entretenimento. No fundo, o fato de as artes

No 12º Festival Palco Giratório Sesc em Por-

trabalhou com precisão, enquanto nós, os

circenses constituírem um saber popular e

to Alegre, no mês de maio, o grupo apresenta Os

Parlapatões, trouxemos uma forma mais des-

por ter uma tradição nômade, que não cria


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2017

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Clássicos do Circo Foto: Luiz Doro Neto

Os Mequetrefe

Foto: Luiz Doro Neto

Parlapatões: Claudinei Brandão, Henrique Stroter Raul Barreto e Hugo Possolo Foto: Divulgação

ganhasse o sentido público que deveria ter

as pessoas pelo prazer que o riso promove e

pela simples presença do cidadão e iluminando

faz pensar o mundo de outra maneira. Se o

mais o local. Fizemos o lugar se valorizar e, por

palhaço conquista um pouco disso, já con-

vezes, alguns teatros dali se tornaram reféns

quistou muito como artista.

da especulação imobiliária, pois os alugueis subiram de preço em razão da melhora que

O Parlapatões tem uma atividade muito

vínculos urbanos de relacionamento social

a praça recebeu. A importância da ocupação

intensa, atuando em diversas frentes...

mais fixos, muitas vezes a linguagem foi

de espaços com finalidade cultural e artística

Como conciliam tudo isso e ainda se

colocada à margem, sem o prestígio que

visa alterar o significado de cidadania por uma

dedicam com tanto afinco à pesquisa?

merece. Nos últimos 30 anos, graças à mo-

apropriação maior da população aos locais que

Nossa! São tantas coisas. De fato, conciliar

bilização constante de artistas, produtores e

devem ser para seu convívio.

tudo faz parte de um trabalho de insistência e

pesquisadores da área, alguns setores pú-

resistência permanente. Foram mais de 60 es-

blicos e privados foram sensibilizados a en-

Você é um mestre da palhaçaria e formou

petáculos nestes 25 anos, dos quais 12 perma-

tender melhor o potencial do circo. Há ainda

muitos artistas. O que prioriza passar

necem em repertório; a inauguração e manu-

muito que se fazer.

para eles?

tenção do Espaço Parlapatões, há 11 anos em

Acredito que a experiência do artista não ga-

atividade; o Circo Roda, que em 8 anos criou

Como foi o processo de ocupação da Praça

rante que ele seja uma referência, pois tanto

e circulou com 4 grandes produções circenses

Roosevelt, onde, em 2006, foi inaugurado

um novato quanto um veterano partem do

por diversas cidades; além de circularmos com

o Espaço Parlapatões, um marco na

mesmo lugar desconhecido para criar uma

nossos espetáculos pelo país e mundo afora,

revitalização do centro de São Paulo?

obra. Procuro difundir o que penso sobre

realizar eventos, festivais e mostras, que mal

O começo do processo de revitalização se deu

a importância do palhaço, que revela a in-

conseguimos pensar no que vem adiante.

com o grupo irmão, Os Satyros. Nossa chegada

capacidade humana de acertar sempre, ou

No momento, estamos estudando a obra de

na praça, já com 15 anos de estrada, somou

melhor, a capacidade de errar muito, para

Oswald de Andrade, O Rei da Vela, que tão bem

forças e gerou um processo de convivência,

mudar o olhar das pessoas. O palhaço coloca

fala sobre o Brasil em crise. Um prato cheio

pela arte e pela boemia, em um lugar onde an-

lentes, de aumento, diminuição e distorção,

para nosso humor encontrar o biscoito fino da

tes reinava a violência, o tráfico e a prostitui-

que faz o público se enxergar por outro ân-

ironia do poeta modernista.

ção de rua. Conseguimos que o espaço urbano

gulo. Sua popularidade permite transformar


primeiro SEMESTRE

2017

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O Brasil atual pela lente de pensadores do século 20

ARTES CÊNICAS


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

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Espetáculos da Cia. do Tijolo

Criada em 2008 a partir do desejo do ator Dinho

mineiro Guimarães Rosa com o olhar do nordesti-

inspirados no legado de

Lima Flor de encenar a obra do poeta cearense Pa-

no. E foi justamente o grande poeta Geraldo Alen-

tativa do Assaré, a Cia. do Tijolo é uma das atrações

car, primo do Patativa, quem escreveu o texto do

do 12º Festival Palco Giratório em Porto Alegre,

espetáculo”, conta o ator. A partir disso, Lima Flor

pensamento e na prática

no mês de maio. O grupo apresenta o espetáculo

passou a comprar todos os livros de Patativa, mer-

de Paulo Freire para refletir

Ledores no Breu – este também na programação

gulhando na sua literatura. “Eu comecei a enten-

nacional do Circuito Palco Giratório –, com texto

der a importância deste homem diante do Brasil,

que revisita a obra do poeta paraibano Zé da Luz

a luta que ele deixou com sua militância poética,

para refletir sobre a alfabetização. O espetáculo

sua trincheira pela reforma agrária, pelas liberda-

programação do 12º Festival

O Avesso do Claustro leva ao palco o legado de

des, contra a ditadura militar, pelas Diretas. Fiquei

Palco Giratório em

Dom Helder Câmara, arcebispo de Recife e Olinda,

abastecido com tudo isso e decidi que precisava

personagem fundamental nas históricas lutas de

fazer um trabalho sobre Patativa.”

Dom Helder Câmara e no

sobre a emancipação a partir da leitura integram a

Porto Alegre

Ledores no Breu Foto: Alécio Cezar

O Avesso do Claustro Foto: Alécio Cezar

resistência política contra a ditadura militar e na

Logo, juntaram-se a Lima Flor artistas vindos

construção do ideário da igreja progressista enga-

de outros grupos de São Paulo, especialmente do

jada nos movimentos sociais.

Teatro Ventoforte, liderado pelo argentino Ilo Kru-

Foi durante uma imersão de um mês no Ser-

gli, do qual Dinho fez parte por 13 anos, junto com

tão do Cariri, Ceará, com a equipe de O Homem

Rodrigo Mercadante, que embarcou na vontade de

Provisório, espetáculo com direção de Cacá Carva-

levar a obra de Patativa, sua história, sua poesia,

lho, cujo ponto de partida é Grande Sertão Vere-

para o teatro. “Um poeta que fala ‘talequá’ seu

das, que Lima Flor conheceu o universo de Patativa

povo canta, ‘talequá’ seu povo fala, uma poesia

do Assaré. “O objetivo era se embrenhar naquele

matuta, muito fincada nas questões sociais, polí-

lugar, com suas mitologias, para traduzir a obra do

ticas, na alegria”, salienta o ator.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2017

20

Cante Lá que Eu Canto Cá, show musical

to da fome”. “Neste contexto, o Padre Cícero ga-

do poeta Zé da Luz e do ficcionista Guimarães

até hoje em repertório, foi o primeiro trabalho

nhou uma terra com um olho d’água – por isso,

Rosa, que o grupo estuda novamente o universo

da Cia. do Tijolo e inaugurou o Teatro Patativa

Caldeirão –, e entregou para o beato José Lou-

de Patativa. “Como um homem que frequentou

do Assaré, no Sesc Juazeiro do Norte. “Pegamos

renço, que construiu uma alternativa econômica,

apenas a escola formal, durante seis anos, mas

um cancioneiro brasileiro que vai discutindo o

um sistema no qual todos trabalhavam, tudo era

que leu compulsivamente, ganhou essa autono-

corpo de um poeta – Patativa era cego e tinha

de todos, nada era de ninguém. Eram chamados

mia literária, política e social?” Lima Flor explica

poemas belíssimos sobre os olhos –, os pés do

de ‘comunistas primitivos’. E o beato recebia os

que o espetáculo é acerca da emancipação: a pes-

poeta, as mãos do poeta, onde está a cabeça do

miseráveis naquela comunidade, bombardeada

soa, mais do que ler as letras, precisa ler o mundo,

poeta na construção desse corpo físico-social-

em 11 de setembro de 1936”, conta Lima Flor. Os

ter conjuntura de mundo, entender o mundo.

-metafísico?” O show, entretanto, não dava

escombros ainda existem e sediam um evento

Resultado de um ano e dois meses de pes-

conta de revelar a poesia do artista e o grupo

anual com debate e celebração. “Tivemos a opor-

quisa, o segundo espetáculo do grupo, Cantata

decidiu alargar a pesquisa para fazer Concerto

tunidade de colocar o Patativa nestas condições

para um Bastidor de Utopias, indicado ao Prêmio

de Ispinho e Fulô, com direção de Rogério Ta-

ao apresentar o espetáculo naquele local onde

Shell em três categorias e também dirigido por

rifa. “Patativa é a grande estrela do Sertão do

houve uma possibilidade de luta real pela igual-

Tarifa, junto com Mercadante, parte de um texto

Cariri, apenas o Padre Cícero ganha dele em po-

dade, em um dos momentos mais importantes e

do poeta espanhol Federico Garcia Lorca sobre

pularidade, mas em outro campo; nas artes, ele

emocionantes das nossas vidas.”

Mariana Pineda, republicana assassinada no fi-

é imbatível, porque olhou o seu homem e tra-

Cia. do Tijolo é uma homenagem a Paulo

nal do século 18 por não ter delatado os colegas.

duziu como esse homem vive, sem fugir desse

Freire, educador que difundiu a importância de

“É muito emblemático nos dias de hoje. Tem um

sofrimento.”

colocar as questões em sala de aula a partir da

momento em que ela fala: ‘se eu delatasse como

O espetáculo conta um episódio ocorrido

realidade dos trabalhadores. “Tijolo é o sentido

que seria meu nome? Ela pensa no futuro dela,

em uma localidade do Crato cearense, Caldeirão

real daquelas pessoas, serventes, pedreiros, que

no futuro do país, um país mais justo, um país de

de Santa Cruz do Deserto, região que enfrentou

estavam aprendendo a ler e este é o tema que

palavra, de dignidade. Se eu delatasse como que

uma das maiores secas entre 1932 e 35. Alguns

abordamos em nosso mais recente espetáculo”,

meus filhos iriam viver, como a sociedade, como

pesquisadores descrevem a existência de valas

explica Dinho. Em Ledores no Breu, monólogo do

meus companheiros iriam viver, qual futuro que

coletivas para enterrar as pessoas que morriam

ator, é pelas lentes de Paulo Freire, pela pedagogia

eu deixo sendo alcagueta de revolucionários?’”

de fome e até denominam a época de “holocaus-

do oprimido, com inspiração também nas obras

Em um momento do espetáculo, o elenco convida


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2017

21

ao palco uma pessoa do local que padeceu na di-

Festival de Recife, nesta cena em que o Rodrigo

tadura militar para contar a sua história. “A escola

Mercadante faz o personagem que funde esses

do Brasil não fala sobre isso e há uma geração

discursos, 600-700 pessoas queriam expulsá-lo

inteira que vive no apagão, sem a dimensão his-

do palco: ‘Fora, fascista!’ A gente provoca. Com

tórica do que é o país, por isso os grupos de teatro

muita poética, a gente faz as pessoas refletirem

comprometidos com esta linguagem, com a esté-

o que eu, como um poeta, uma professora, um

tica de descobrir e mostrar os escombros, trazem

bancário, podemos fazer minimamente pra não

o tema para discussão. Patativa deu a vida pela

cair no buraco fundo e morrer todo mundo com

reforma agrária, contra a ditadura e pelas Diretas;

esse pensamento.”

Dom Helder é um dos homens mais corajosos do

A Cia. do Tijolo é um grupo que fala pela po-

século 20, um religioso que não se apequenou

esia, poesia com endereço, não uma poesia meta-

diante desta multinacional que é a Igreja Cató-

física. Em seu cotidiano de pesquisa, está cercada

lica; Garcia Lorca foi assassinado e até hoje seu

por pessoas que pensaram o século 20, especial-

corpo não foi encontrado.”

mente o Brasil, e que permanecem atuais (entre

O Avesso do Claustro, uma celebração da

eles, Carlos Drummond de Andrade, Nise da Sil-

utopia e da canção, é construído a partir da tra-

veira, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Eduardo

jetória de três personagens cheios de questio-

Galeano). Para resumir a temática dos trabalhos

namentos e perplexidades diante do momento

do grupo, Dinho cita um trecho do poema Mãos

histórico atual do país: um pesquisador em visi-

Dadas, de Carlos Drummond de Andrade – Não

ta ao Recife, uma moradora que caminha pelas

serei o poeta de um mundo caduco / Também não

ruas de São Paulo e uma cozinheira que vive aos

cantarei o mundo futuro. (...) / O tempo é a minha

pés do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, en-

matéria, do tempo presente, os homens presen-

contram-se para ouvir novamente a voz do Bis-

tes, a vida presente. – para concluir: “vamos fin-

po Vermelho. Um encontro inusitado no espaço

car o presente e discutir isso, que é a partir daqui

e no tempo, só possível no teatro, para discutir

que a gente se enxerga, para trás e para frente”.

novos mundos possíveis em tempos obscuros. O espetáculo tem orientação teórica de Frei Betto. “A gente faz o espetáculo em um momento triste do país, em 2015, com as pessoas abastadas querendo diminuir minimamente as pequenas conquistas que os pobres tiveram. Estávamos estudando sobre o Manifesto Integralista de 1932, e na saída do ensaio nos deparamos com aquela juventude sexista, que defende o fascismo, gritando contra negros, feministas, homossexuais, pedindo a volta do Regime Militar. Reforçamos a convicção de que nosso caminho era o Dom Helder e estreamos a peça num momento muito tenso. O espetáculo, que chama para a tensão todo o tempo, tem uma dialética muito grande, como em uma cena na qual as pessoas gritam, e fundimos o discurso integralista e a votação do impeachment na Câmara dos Deputados – ‘pela minha mãe, pela Lucimara...’ –, uma das coisas mais horrorosas, que a gente não vai esquecer. Durante o

Concerto de Ispinho e Fulô Foto: Alécio Cezar

Concerto de Ispinho e Fulô Foto: Alécio Cezar

Ledores no Breu Foto: Alécio Cezar

Ledores no Breu Foto: Alécio Cezar


CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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Myra Gonçalves

#18 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que participam do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. As próximas páginas apresentam a trajetória e os processos criativos do Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator (UTA), de Porto Alegre, desde o início dos treinamentos em 1992. O grupo, que participou, em 2012, da 7ª edição do Festival com os espetáculos A Mulher que Comeu o Mundo e Cinco Tempos para a Morte, na 12ª edição, em maio de 2017, apresenta exposição fotográfica em

Fábio Zambom

Usina do Trabalho do Ator 25 anos de encontros, trocas e aprendizagens Por Ana Cecília de Carvalho Reckziegel (Ciça Reckziegel) Atriz integrante do Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator desde 1996 e professora no Departamento de Arte Dramática da UFRGS – área de Interpretação Teatral –, no qual se graduou Bacharel em Artes Cênicas, com Habilitação em Interpretação Teatral. É mestre em Ciências do Movimento Humano e Doutora em Educação, também pela UFRGS.

comemoração aos 25 anos do UTA, os espetáculos

Histórias Negras para Crianças de Todas as Cores Macaco!, além de integrar atividade de intercâmbio

Foto ao lado: Anna Fuão, Ciça Reckziegel, Dedy Ricardo e Celina Alcântara (em cima); Thiago Pirajira, Gisela Habeyche, Shirley Rosário e Gilberto Icle (embaixo)

com o coletivo boliviano Teatro de Los Andes.

Foto: Thiago Lazeri

e Dança do Tempo, a performance Eu Não Sou


ARTES Cร NICAS CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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Myra Gonรงalves

#15


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

24

1 A reconstituição do primeiro momento de vida do UTA foi efetuada durante a pesquisa realizada no curso de Doutorado em Educação, com realização de Estágio Sanduíche, na Université Paris XI, com bolsa da CAPES, que resultou na tese intitulada A Função Criação no trabalho coletivo teatral – um estudo com a Usina do Trabalho do Ator. A reconstituição dá-se a partir de documentos do Arquivo do grupo, de entrevistas realizadas com os atores e da bibliografia já disponível, Icle (2002). 2 Alice Guimarães e Claudia Machado cursaram Graduação em Teatro, com Gilberto e Celina. Alice desde 1996 integra o Teatro de los Andes, na Bolívia. Claudia Machado é professora da Educação Básica em Porto Alegre. 3 Maurício Guzinski é diretor teatral, foi diretor do Grupo Pés na Terra, e coordenador da Oficina Teatral Carlos Carvalho, um setor da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, já extinto, por meio do qual foram organizadas as oficinas do LUME em Porto Alegre, em janeiro e junho de 1991.

Em maio de 2013, o Núcleo de Investigação Usina

(FERNANDES, 1998), e também pelo crescimento

orientadas por Burnier e Simioni, em Porto Ale-

do Trabalho do Ator (UTA) completou 21 anos, sua

das pesquisas acadêmicas no campo teatral. As

gre. Além disso, Alice participa de um estágio no

maioridade. Naquele ano, eu estava desenvolvendo

práticas do UTA não deixarão de ser atravessadas

grupo Lume, e, juntamente com Gilberto, integra

pesquisa para fins de doutoramento, cujo objetivo

por tais acontecimentos.

o II Retiro para Estudo do Clown e do Sentido do Cômico, ministrado por Burnier, em Campinas.

era compreender de que forma o UTA se constituiu,

os atores do UTA, a permanecermos juntos por

Novas possibilidades de atuação

tanto tempo? Como é viver-criar-trabalhar com as

A trajetória do grupo, iniciada em 1992, dá-se,

O projeto previa espaço físico e recursos financei-

mesmas pessoas por um período tão longo, e de

justamente, a partir da inquietação de alguns es-

ros para viabilizar o funcionamento de um núcleo

que forma esse tempo de convivência influi no tra-

tudantes de teatro quanto a sua formação aca-

de pesquisa para a formação do ator, cujo preen-

balho? Como o grupo desenvolveu seus processos

dêmica, sobretudo devido ao engajamento desses

chimento de vagas ocorreria por meio de concur-

de aprendizado e de criação?

mesmos estudantes em atividades artísticas e de

so público. O grupo de colegas inscreveu-se, foi

Seguimos juntos, e chegamos aos nossos 25

formação extracurriculares, e a partir das redes

selecionado, e o Núcleo de Investigação, com um

anos, com novos espetáculos e novos projetos.

de relações daí provenientes.[1] Foi neste período

total de 12 participantes, iniciou suas atividades

O desejo de festejar e compartilhar um pouco de

que Gilberto Icle e Celina Alcântara, ao lado de

no mesmo ano (ICLE, 2002).

e de que forma construiu suas práticas teatrais, sobretudo a formação de seus atores e processos de criação de espetáculos. Na ocasião, fazia-me perguntas muito simples, tais como: O que nos levou,

O grupo de colegas segue tentando desenvolver um trabalho sistemático, quando, em 1992, Guzinski concebe o projeto Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator (UTA) junto à Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.

nossa trajetória se concretiza em mais uma bela

Alice Guimarães e Claudia Machado

organi-

Com o início dos trabalhos, os problemas

parceria com o Sesc, no ano do 12º Palco Girató-

zaram um grupo de estudos com o objetivo de

também começaram, sobretudo a suspensão dos

rio Sesc, em Porto Alegre, e nesta breve narrativa.

trabalhar novas técnicas de atuação e investigar

recursos financeiros, o que, num primeiro mo-

Narrativa de desejos, de encontros, de trabalho

novas possibilidades de se constituírem como

mento não desestimulou o grupo. Porém, a maior

árduo, de lutas – que se fazem cada vez mais

atores. A motivação para a criação desse grupo

necessárias – e de alegrias, pois se a alegria não

de estudos deveu-se ao encontro com Luis Otávio

existisse, com certeza não teríamos chegado até

Burnier e Carlos Simioni, respectivamente diretor

aqui. Um viva aos aniversariantes, e vamos à nar-

e ator do Lume, Núcleo Interdisciplinar de Pesqui-

rativa, à história do Núcleo de Investigação Usina

sas Teatrais – Universidade Estadual de Campinas

do Trabalho do Ator.

(Unicamp).

[2]

Optei por relatar os primeiros anos de vida

Em outubro de 1990, durante o Festival de

do grupo, quando seus integrantes, a partir das

Teatro de Canela, Gilberto e Celina, juntamente

influências recebidas, tomaram para si a res-

com Maurício Guzinski[3] e Alice Guimarães, par-

ponsabilidade sobre sua formação como atores.

ticiparam do Workshop para Atores e Diretores,

A maneira como se organizaram enquanto gru-

ministrado por Burnier, e da Oficina de Atuação,

po, como construíram seu treinamento, e como o

ministrada por Simioni. Trabalhar com as técni-

realizavam, a meu ver, foram fundamentais para

cas de treinamento corporal e vocal para atores,

sua constituição, e mesmo para sua permanên-

desenvolvidas pelo Lume naquela época, e a ideia

cia em atividade até os dias atuais. A narrativa

de um trabalho investigativo, contínuo e discipli-

se dará ora a partir das práticas do grupo e seus

nado, entusiasmou o grupo de amigos, e o Lume

integrantes, ora a partir de minha própria experi-

se tornou sua grande referência.

ência como integrante.

A partir de então, a ideia do projeto que for-

O UTA iniciou suas atividades na década de

maria o UTA começou a ser gerada, e, com o apoio

90 do século passado, quando os grupos teatrais

de Maurício Guzinski, o grupo se organiza para

recomeçavam a proliferar no Brasil. Esse período

seguir com o trabalho desenvolvido nas oficinas

foi marcado pelo enfraquecimento do chamado

em Canela. O contato com o Lume prossegue,

“teatro de diretor”, em alta na década de 1980

com orientações periódicas, e através de oficinas


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

4 O exercício denominado “lançamentos” consiste em lançar uma bola ou outros objetos; o “samurai” tem como base três passos básicos que objetivam compor a figura de um guerreiro, sendo a “gueixa” sua versão feminina; e a “dança dos ventos” consiste num passo em ritmo ternário, semelhante ao de valsa. Todos os exercícios, bem como sua origem, estão descritos detalhadamente em ICLE (2002).

25

dificuldade era “[...] a estrutura anárquica e a falta

organização para o desenvolvimento do traba-

de objetivos em comum” entre os atores-pesqui-

lho, sobretudo devido à falta de uma pessoa para

sadores (ICLE, 2002, p. 21). Em julho do mesmo

conduzi-los, cogitaram em encerrar as atividades.

ano, dois meses após o início do trabalho, metade

Foi então que Gilberto se propôs a assumir a fi-

dos atores desiste do projeto, e os demais – entre

gura de diretor. A partir daí, o treinamento come-

Klaxon: o primeiro espetáculo

os quais, Gilberto, Celina, Alice e Silvana Stein –

çou a solidificar, o que significou, em um primeiro

Durante o ano de 1993, o grupo inicia os trabalhos

seguiram trabalhando sem muitas perspectivas,

momento, aprofundar os próprios exercícios que

para a criação de seu primeiro espetáculo, deno-

até que, em setembro de 1992, Gilberto, Alice e

vinham trabalhando: os lançamentos, o samurai,

minado Klaxon, e no decorrer desse mesmo ano

Celina participaram de uma oficina-montagem

a gueixa, a dança dos ventos (ICLE, 2002).

realiza performances em espaços da prefeitura e

oferecida pelo Festival Internacional de Teatro de

[4]

Em dezembro, após o retorno do curso em

promove cursos, oficinas e demonstrações.

Campinas, os atores que ainda permaneciam

Em Klaxon, o grupo trabalha com o tema do

A oficina, ministrada pelo ator espanhol Toni

no núcleo apresentaram publicamente uma

carnaval e com o modernismo brasileiro, a par-

Cotz, que fora integrante do Odin Teatret, dirigido

demonstração técnica com os primeiros resul-

tir do estudo da obra de Oswald de Andrade – em

por Eugenio Barba, tinha um conteúdo bastan-

tados da investigação realizada nesse primeiro

especial, Macunaíma e A Morta – e da Semana de

te semelhante ao que os atores do UTA estavam

ano de atividades, sob a orientação de Burnier.

1922. No processo de criação, o ponto de partida

tentando desenvolver. Conforme Icle (2002), a

As figuras e as cenas trabalhadas pelo grupo, e

oficina lhes possibilitou a compreensão de uma

retrabalhadas e organizadas por Burnier, foram

série de princípios para a continuidade das ativi-

construídas a partir do treinamento, e do apro-

dades do grupo no retorno a Porto Alegre, a per-

fundamento dos exercícios. Após a demonstra-

ceberem a importância de estabelecer uma linha

ção, o grupo teve um período curto de férias; no

de condução para o trabalho, e de alguém que

retorno ao trabalho, os atores decidem montar

os orientasse. Ao perceberem sua fragilidade de

um espetáculo.

Campinas.

Klaxon

Fotos: Divulgação


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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5 Sobre O Mestre Ausente e a trajetória artística do UTA, ver Lisboa (2012).

foram as ações e as partituras dos atores, para as

to que tinha no trabalho físico de cada ator um

um grupo – o que na realidade já ocorria – e man-

quais o grupo dava especial atenção. Os atores

degrau para sua constituição como um ser criador.

tendo para o grupo o mesmo nome do projeto:

escolhiam figuras ligadas ao tema, e as trabalhavam

Tal espetáculo era como uma foto do caráter iden-

Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator

individualmente para criar as figuras. Cada um

titário daquele grupo. Sujeitos-atores se colocando

(UTA). Na verdade, segundo Gilberto, o UTA não foi

criava seus materiais e se dedicava a fazer suas

de uma forma responsável, séria e sensível diante

“fundado”, o que houve foi a continuidade de um

partituras de ações, que depois Gilberto ressignifi-

do espectador, que era convidado a compartilhar

trabalho que vinha sendo realizado por um mesmo

cava por intermédio do processo de montagem.

o conhecimento construído, e que era verdadeira-

grupo de pessoas, que, de forma independente, se-

mente tocado pelo trabalho.

gue seu caminho. E é por isso que o UTA considera

Em 1994, o grupo cria o espetáculo-demonstração intitulado O Mestre Ausente,[5] no qual

Seguindo a trajetória do UTA, em setembro

apresenta, de forma didática, os principais ele-

de 1994, o grupo participa do I Porto Alegre em

Este primeiro período de vida do grupo ca-

mentos do treinamento sistematizado pelo UTA, e

Cena, no qual promove um ensaio aberto de Kla-

racterizou-se pela dedicação total ao treinamen-

o qual tive oportunidade de assistir.

o ano de 1992 como o de sua criação.

xon, realiza a primeira e única apresentação do

to, e pelo desprendimento financeiro por parte

A minúcia, o cuidado e o respeito ao trabalho

espetáculo, e ministra uma oficina. No final do

dos integrantes do grupo – todos jovens estu-

e ao colega, a forma como foi realizada a apresen-

ano, o vínculo do núcleo, iniciado em 1992, com a

dantes universitários –, que seguiram trabalhan-

tação diante do público, como cada ator narrava

Secretaria Municipal de Cultura foi encerrado, uni-

do mesmo sem bolsas de estudo. Após a redução

sua própria trajetória e oferecia sua cena à plateia

lateralmente. Os atores decidem seguir com suas

do número de participantes no Núcleo de Investi-

eram o testemunho de um sério e profundo traba-

pesquisas, buscando condições que viabilizassem a

gação, as duas bolsas existentes eram repartidas

lho cotidiano. Era o testemunho de um treinamen-

continuidade dos trabalhos, e assumindo-se como

igualmente entre os seis integrantes. Em nenhum


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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momento o não pagamento da bolsa foi motivo

do Lume, o grupo era bastante rigoroso com o

Em sua discussão sobre o termo training, Fé-

para desistências daqueles que permaneceram.

cumprimento das regras. O silêncio era o grande

ral (2000) lembra que o mesmo surge, entre outros,

Para a alimentação, os atores contavam com os

“orientador” do trabalho e da disciplina, pois con-

com mais intensidade nos livros de Grotowski, Bar-

restaurantes universitários, para as viagens, a fim

duzia o ator a outra qualidade de relação consigo,

ba, Brook e Oida. A noção de treinamento, lembra

de fazer as oficinas, muitas vezes dependiam de

a outra forma de comunicação com os colegas, e

Féral, está ligada às transformações que ocorreram

auxílio financeiro de amigos; para poderem se

para um estado criativo mais sensível e aguçado.

no campo teatral, as quais envolveram igualmente

sustentar, tentavam trabalhar fora dos horários

o ator e sua formação. As práticas de treinamento

proveniente da opção por um trabalho artístico

Bases pedagógicas para o aprendizado do ator

diferenciado, em vez de uma rentabilidade que

Antes de prosseguir, gostaria de trazer uma bre-

para o ator, mas também “[...] uma educação mais

talvez pudesse ocorrer com a produção comercial

víssima discussão sobre a noção de “treinamen-

completa capaz de desenvolver o corpo, o espírito

de espetáculos (AUTANT-MATHIEU, 2013).

to”, a qual, ao longo dos anos, ainda se mantém

e o caráter desses artistas” (FÉRAL, 2000, p. 15).

De outro lado, a organização do grupo e do

bastante controversa, embora a grande maioria

Esses reformadores objetivavam, ainda, permitir

trabalho já vinha se firmando nos dois primeiros

dos grupos que surgiu nas décadas de 1980 e

ao ator, por intermédio do treinamento, “[...] um

anos. Gilberto havia assumido a direção e o tra-

1990, e mesmo o UTA, não o pratique mais da

estado de criatividade sobre a cena” (FÉRAL, 2000,

balho se realizava a partir de regras para garantir

mesma forma. Mas tanto naquele período, como

p. 16). Assim, para o trabalho do ator, a noção de

o comprometimento e repartição das atividades

ainda hoje, atores e coletivos teatrais oscilam

treinamento se confunde com a de pedagogia, um

entre todos os integrantes. Uma das principais

entre uma aceitação cega e apaixonada, e uma

espaço que possibilite a exploração e a construção

regras era a proibição de conversa entre os in-

negação total e absoluta. O importante, aqui, é

de novas formas para criar. E era nesta linha de

tegrantes do grupo, mesmo durante o intervalo.

esclarecer o leitor da noção, e sobretudo do sen-

compreensão de treinamento que, a meu ver, Bur-

As conversas eram permitidas apenas ao final

tido do treinamento para aquele momento, e para

nier conduzia seus estudos.

do encontro, para tecer comentários ou planejar

aquele grupo de atores.

destinados ao grupo. Em sua convivência, os integrantes do grupo pareciam privilegiar aspectos cultivados nas comunidades artísticas: a relação de amizade em vez da competição; a perseverança e a coragem em vez do desânimo e da acomodação; e a aceitação de uma vida com parcos recursos financeiros,

romperam com a formação dada nas escolas, por intermédio do trabalho de numerosos diretores pedagogos como Stanislavski, Meyerhold, Vakhtangov, Craig, Copeau, Jouvet, Decroux, Lecoq, entre outros. Esses diretores pedagogos, desde o início do século 20, ofereceram novas bases pedagógicas para o aprendizado do ator, incluindo, nessa nova pedagogia, não apenas uma preparação física

Em suas pesquisas, tinha como objetivo de-

trabalhos futuros. As regras garantiam também

senvolver técnicas de representação para o ator,

a rigidez e o cumprimento dos horários durante

e nesse sentido, defendia a necessidade de um

o trabalho – de chegada, saída e de intervalo – e,

espaço no qual o ator pudesse se trabalhar. Com-

também, a limpeza da sala, por meio de um esca-

preendia que o treinamento deveria “[...], além de

lonamento entre os atores. Ao lembrarem dessa

trabalhar o aspecto físico e mecânico, trabalhasse

época, os atores que participaram desse primeiro

também o universo interior do ator e, sobretudo,

momento do UTA espantam-se com o nível de

os canais de comunicação entre eles. Isso de ma-

exigência e a dura disciplina que se impuseram.

neira sistemática e disciplinada” (BURNIER, 2009,

Compreendem, porém, que, para a consolidação

p. 63). E sob essa visão, do treinamento como um

do grupo e da organização do trabalho de pes-

espaço onde o ator pudesse se trabalhar, criando

quisa e artístico, foi de fundamental importância.

sua própria pedagogia, é que o UTA balizou suas

Desde o início do projeto da Prefeitura de

práticas teatrais.

Porto Alegre, quando permaneceram no grupo

A partir do trabalho desenvolvido nas ofi-

de pesquisa apenas os atores que vieram a com-

cinas com o Lume, o UTA encontrou o caminho

por o UTA, e até o encerramento do projeto pela

para a organização de seu próprio treinamento.

Prefeitura, o treinamento se realizava das sete da manhã à uma da tarde. Por forte influência

O Mestre Ausente Foto: Divulgação

Os atores prosseguiram a partir dos exercícios trabalhados com Burnier e Simioni, e também


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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6 Ver Icle, 2002.

incluindo diferentes técnicas corporais, já conhe-

cia do “bobo da corte europeu”, e do “bugio”, um

e de retomar sua própria pesquisa. Nesta fase, o

cidas pelos integrantes do grupo, as quais eram

macaco típico do Rio Grande do Sul, que vive em

aprendizado dos exercícios dava-se por imitação.

compartilhadas com os demais. Cada ator era

bandos e cujo nome denomina o único ritmo mu-

Gilberto conduzia o treinamento da forma mais

responsável por dirigir a parte do treinamento

sical genuinamente gaúcho, e a história de Antônio

econômica possível, falando apenas o necessário,

em que tivesse maior domínio técnico e conheci-

Chimango, inspirada no poema de Amaro Juvenal.

enquanto Alice e Celina treinavam normalmente

mento sobre a técnica a ser trabalhada. Alice, por

A oficina foi aberta à comunidade, com dura-

conosco. Elas tomavam a iniciativa de auxiliar de

exemplo, era responsável por conduzir o treino do

ção de três meses e contou com 20 participantes,

alguma forma, quando algum dos atores tinha

exercício do samurai; Celina e Gilberto, o treino

além dos quatro atores que integravam, naquela

muita dificuldade em executar o exercício pedido,

do exercício da batalha; e Silvana, técnicas de

ocasião, o UTA. Numa primeira fase, os participan-

mas em nenhum momento explicavam verbal-

dança contemporânea. Assim, cada um foi as-

tes experimentaram elementos do treinamento

mente, apenas executavam o exercício.

similando, tanto os exercícios, como a forma de

sistematizado pelo grupo. Após, vivenciaram uma

transmiti-los, trabalhá-los e aperfeiçoá-los. Mes-

proposição de trabalho que buscava abordar téc-

mo quando Gilberto assumiu a direção do grupo,

nicas para a constituição de uma figura bufonesca

essa forma de proceder, com o rodízio da con-

na sua relação com a figura do bugio. Por fim, uma

dução dos exercícios, vigorou por muito tempo.

etapa em que o espetáculo foi construído a partir

Durante o treinamento, Gilberto trabalhava como

do processo de improvisação.

[6]

os demais atores; no entanto, programava-se

Ao término do projeto, ainda em 1996, a atriz

para, ao mesmo tempo, observar e estimular os

Silvana Stein resolveu sair do grupo e transferiu-

colegas, quando houvesse uma estagnação so-

-se para Minas Gerais. Houve uma reestruturação

bre um mesmo trabalho ou mesmo a direção, se

da composição do grupo, e foram convidados para

assim fosse necessário. Assim, ora atuando, ora

ingressar no UTA os atores Leonor Melo, Xico de

coordenando o trabalho e dirigindo os espetácu-

Assis, Raquel Carvalhal, e esta que vos fala, todos

los, apoiado nas vivências de direção de Burnier,

remanescentes do processo de criação do espetá-

Gilberto dirige o grupo em seus dois primeiros

culo O Ronco do Bugio.

trabalhos, e o UTA chega ao momento de sua primeira grande reestruturação.

A identidade gaúcha Em 1994, o UTA passou a trabalhar no Centro Cultural Cia. de Arte; dois anos depois, em 1996, o grupo criou um espetáculo intitulado O Ronco do Bugio, primeiro espetáculo do UTA pensado e estruturado para o espaço da rua. Esse espetáculo originou-se do projeto Oficina-Montagem, que teve um duplo objetivo: artístico e administrativo. No âmbito administrativo, o grupo precisava reorganizar-se estrutural e financeiramente. Para isso, o grupo inscreveu o projeto Oficina-Montagem no edital de financiamento do Fumproarte, com o qual foi contemplado. Artisticamente, o objetivo era investigar as relações possíveis entre técnicas de atuação estrangeiras e uma identidade gaúcha, utilizando as figuras do bufão, a partir da referên-

Nesse momento, o grupo retoma seu treinamento, com o objetivo de transmiti-lo de forma mais aprofundada para os novos integrantes

O Ronco do Bugio Foto: Divulgação


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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Treinamento como processo criativo

foi constituindo um espaço de formação, criação

para a Bolívia e passou a integrar o grupo Te-

e autonomia do ator.

atro de los Andes, no qual permanece até hoje,

As regras de pontualidade, do silêncio, da divi-

Quando os novos atores atingiram um nível

e cujo espetáculo Mar teremos a oportunidade

mais avançado em termos de assimilação e do-

de assistir durante esta edição do Festival Palco

mínio técnico e expressivo, o grupo retomou seu

Giratório. Mundéu permaneceu no repertório

modo de trabalhar, com cada ator conduzindo e

do UTA de 1998 a 2002; durante esse período, a

responsabilizando-se pelo próprio treinamen-

atriz Raquel Carvalhal transferiu-se para Brasí-

to, com a liberdade de escolher sua sequência de

lia, dando lugar para Elisa Pierin. Após um ano,

são de tarefas eram cumpridas à risca por todos

exercícios, como desenvolvê-los, e também com a

Elisa e Xico deixaram o grupo, e a atriz Dedy Ri-

os participantes. Havia uma sequência de exer-

opção de introduzir novas práticas. Embora exe-

cardo passou a integrar o UTA, permanecendo

cícios que iam se encadeando uns nos outros, e,

cutado individualmente, o treinamento continua-

até hoje.

assim, podíamos seguir sem parar, sem quebrar

va inserindo o ator no grupo, uma vez que todos

a atmosfera do treinamento. Com o passar das

trabalhavam juntos, na mesma sala, num procedi-

horas de treinamento, essa grande dança das

mento que é utilizado pelo UTA até hoje, e durante

energias, oriunda da sequência dos diferentes

o qual uns auxiliam os outros quando solicitados,

exercícios, era direcionada para improvisações

tanto por meio da observação e do comentário do

dos atores sobre apenas um dos exercícios, tor-

trabalho, como ensinando novos exercícios, ou tra-

nando-o vivo, dinâmico e pleno de possibilida-

balhando em dupla com os colegas.

des expressivas.

Nesta nova etapa, com nova constituição, o

Embora, aparentemente, o treinamento não

grupo iniciou uma pesquisa sobre a codificação de

fosse um momento de criação, impulsionou um

ações e suas possibilidades narrativas, a partir do

modo de criar no interior do trabalho do grupo,

estudo da dança indiana Baratha Nathyam. A pes-

por meio do improviso. Seja na preparação dos

quisa culminou com a montagem do espetáculo

atores ou no transbordamento que os exercícios

Mundéu, o Segredo da Noite, cujo processo deu-se

tiveram, indo da preparação para sua paulatina

de forma acentuadamente colaborativa.

transformação em cena, seja na disciplina, desde

Durante o processo de Mundéu, o Segredo

a mais rígida até a mais flexível; o treinamento

da Noite, a atriz Alice Guimarães transferiu-se

Mundéu, o Segredo da Noite Foto: Divulgação

Cinco Tempos para a Morte Foto: Myra Gonçalves


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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A reinvenção do grupo A partir de um prolongado estudo sobre másca-

A pesquisa com as máscaras e o processo

integrantes com cenas criadas a partir de literatura

ra, em especial a máscara expressiva, em 2006,

completamente anárquico, lúdico e transgressor

sobre o tema da morte, e por meio do qual o UTA

o grupo estreou o espetáculo A Mulher que Co-

de A Mulher que Comeu o Mundo começou a

começou a explorar novas possibilidades de atua-

meu o Mundo, que permanece no repertório até

revigorar o grupo e transformar o treinamento,

ção e processo de criação. Em 2015, estreiou Dança

o presente momento. Entre o término de Mundéu

que assumiu a atmosfera lúdica do jogo teatral

do Tempo, que mergulha na cultura e religiosidade

e o início desta nova pesquisa, vieram completar

inerente ao trabalho com máscara. Desde então,

afro-brasileiras, e propõe a concreta participação

a formação do grupo os atores Gisela Habeyche

o treinamento não se dá da mesma forma, e, por

do público no espetáculo.

e Thiago Pirajira, e também Shirley Rosário, como

determinados períodos, não é diário, devido aos

colaboradora artística e assistente de direção. O

vários compromissos do grupo ou de seus atores.

UTA, desde então, é composto por Gilberto, Celina, Ciça, Dedy, Gisela, Thiago e Shirley.

O que podemos dizer desses 25 anos de vida? Em se tratando do primeiro período de existência

Em 2010, o grupo estreou Cinco Tempos para

do grupo, no qual mais me alonguei, o que mais

a Morte, cuja montagem mescla vivências de seus

salta aos olhos é a procura de um caminho, do que


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

31

e de como fazer, que resulta na invenção do pró-

mos também nossa amiga Anna Fuão, que se jun-

prio fazer, e na construção dos próprios conheci-

tou a nós para assumir a produção, que até então

mentos técnicos. Principalmente, o grupo constrói

era uma das atribuições exercidas pelos atores do

estratégias de como relacionar-se entre seus inte-

grupo. Anna Fuão foi alguém especial e impor-

grantes durante o trabalho, e de como se relacio-

tante para a trajetória do UTA. Anna nos brindou

nar com Gilberto na função de diretor e, ao mesmo

com sua alegria, com sua verdadeira ânsia de vi-

tempo, de ator. O grupo constrói sua própria forma

ver, de ser, de fazer, mas, ao mesmo tempo, para

de trabalhar em grupo, de saber fazer-se grupo, e

nossa tristeza, nos deixou muito cedo. Saudades

reinventar-se a cada dia de trabalho.

eternas, Anna. Amor eterno. A ti, querida Anna,

Antes de encerrar esta narrativa, gostaria de

todos nós, do UTA, dedicamos este breve relato.

deixar aqui, em nome do UTA, nossa homenagem e

Construíste conosco a nossa história, e tua cons-

agradecimento a todos que participaram e partici-

trução ainda reverbera.

pam de nossa trajetória: especialmente aos nossos

Referências Bibliográficas

AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine. Oeuvres Communes. In: AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine (Org.). Créer, Ensemble. Points de vue sur les communautés artistiques (fin du XIXeXXe siècles). Montpellier: L’Entretemps, 2013. P. 13-22. BURNIER, Luís Otávio. A Arte de Ator: da técnica à representação. Campinas: UNICAMP, 2009. FÉRAL, Josette. Vous avez dit “training”? In: MÜLLER, Carol (Org.). Le Training de l’Acteur. Arles: ACTES SUD-PAPIERS, 2000. P. 7-27. FERNANDES, Silvia. A Criação Coletiva do Teatro. Urdimento: revista de estudos em artes cênicas, Florianópolis, n. 2, p. 1321, 1998. ICLE, Gilberto. Teatro e Construção de Conhecimento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002. LISBOA, Eliane Tejera. Usina do Trabalho do Ator: reconhecimento de uma identidade. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 479-501, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/30132>. Acesso em: 10 fev. 2013.

Evoé para todos nós.

maravilhosos colaboradores, Marlene Goidanisch, Flávio Oliveira e Luciana Prass; aos nossos amigos do Lume, e a Burnier, in memoriam, por terem nos apontado o caminho. Ao Augusto, “nosso nenê”, filho de Gilberto e Celina, nosso maior fã, que rodou milhares de quilômetros conosco pelo Brasil afora. Mais uma vez, agradecemos imensamente ao Sesc, por nos acolher e festejar conosco nossos 25 anos. Por fim, com muito carinho, gostaríamos de

Cinco Tempos para a Morte Foto: Myra Gonçalves

Cinco Tempos para a Morte

lembrar que naquele momento em que Gisela,

Foto: Myra Gonçalves

Thiago e Shirley ingressaram no grupo, convida-

Cinco Tempos para a Morte Foto: Myra Gonçalves


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

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Por Arthur de Faria Músico, jornalista e produtor fonográfico. Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, tem seis CDs lançados – cinco com o Arthur de Faria e Seu Conjunto –, e uma dezena de publicações sobre a música do Rio Grande do Sul. Produziu 27 discos e assinou 35 trilhas sonoras para cinema e teatro. Publicou dezenas de ensaios, artigos, livros e fascículos sobre música popular e dedica-se há três décadas à pesquisa sobre a história da música de Porto Alegre. É autor do livro Elis: uma biografia musical (2015, Arquipélago). *Texto originalmente escrito em 2014 para a “Coleção Folha O Melhor de Elis Regina”, editada por Carlos Calado, sobre o disco Elis e Tom (1974).

Elis E Tom (1974) Elis tinha trauma com Jobim.

via falado nada nem sobre churrascos nem sobre

lou com Tom (ou, ao menos, disse que falou) e

Aos 19 anos de idade, com quatro discos lança-

seus odores.)

acertaram que tudo seria feito em Los Angeles,

dos, tinha batido no teto das suas possibilidades

onde o Antonio Brasileiro estava morando.

morando em Porto Alegre. Com fome de Brasil,

***

ela chegara ao Rio de Janeiro, acompanhada do

Segundo depoimento do produtor, velho amigo

(com o filho de Elis, João Marcello), mais seu em-

pai, dia 28 de março de 1964. Antes mesmo do

e parceiro de Elis, Armando Pittigliani, tudo co-

presário Roberto Oliveira (que também trabalha-

Golpe Militar de três dias depois, sofreria uma

meçou quando André Midani, diretor da Philips/

va com televisão e documentaria tudo para um

pancada e tanto.

Phonogram, quis homenagear sua cantora pre-

especial da Bandeirantes).

“Esta gaúcha é muito caipira. Ainda está cheirando a churrasco.”

Detalhes acertados, lá se vão Elis e Cesar

ferida pelos seus 10 anos de casa. A proposta era simples: peça o que você quiser.

Tudo certo, tudo lindo. Exceto pelo fato de que Tom não tinha en-

A frase teria sido dita por Antonio Carlos Jo-

Midani, Pittigliani e Roberto Menescal (outro

tendido exatamente o que ia acontecer (ou fez-se

bim, como argumento para vetar a menina como

amigo próximo e grande parceiro de palcos e es-

de desentendido – jamais saberemos). Aloysio sa-

protagonista feminina do disco que ele estava

túdios da baixinha) eram os cabeças da gravadora

bia que um projeto como aquele poderia ou não

arranjando: Pobre Menina Rica, o musical escrito

que, naquele momento, tinha em seu cast nada

agradar o amigo cheio de manias. Resultado: dei-

por Vinícius de Moraes e Carlos Lyra.

menos que Chico Buarque, Caetano Veloso, Os

xou para contar tudo só quando um “não” fosse

Mutantes, Erasmo Carlos, Jorge Ben, Gilberto Gil

quase impossível.

Essa é a versão consagrada da história – só que não foi bem assim. A própria Elis contou, em mais de uma entrevista, a sua versão dos fatos:

e muitos, mas muitos outros.

A cena: aeroporto de Los Angeles, sete da

Elis podia pedir um carro, uma viagem, qual-

manhã, depois de longa viagem. Na descida do

“Cheguei à rodoviária, o Umberto Contar-

quer coisa. O que ela quis? Estrutura para gravar

avião, lá está Jobim, elegantíssimo, vestido à Bo-

di (engenheiro de som da CBS) estava me espe-

o disco que quisesse, do jeito que quisesse, onde

gart – gabardine e chapéu –, com uma rosa na

rando. Me levou pra conversar. (...) Tremia feito

sonhasse... e com Tom Jobim!

mão. Leva a equipe direto para sua casa, para um

uma besta. Porque, de repente, você entra no céu

Sim. O mesmo Tom que ela tanto odiara no

e conhece Deus! (…) Cheguei hoje, amanhã tem

episódio de Pobre Menina Rica. O compositor das

Tom, Vinícius, Carlinhos e eu… Estado de choque,

canções do álbum Por Toda a Minha Vida, grava-

né?(…) Me disse depois um simpático cidadão que

do em 1959 por Lenita Bruno, que Elis e Cesar

eu não poderia fazer o disco porque o Tom não

ouviam sem parar, fantasiando em um dia fazer

– E vocês, vieram fazer show aqui na América?

queria fazer arranjo pra ser cantado com gosto de

um disco-songbook como aquele sobre a obra

Elis, Cesar e Roberto gelaram. Aloysio viu

churrasco! (…) Fiquei com esse troço entalado du-

jobiniana.

rante anos.”

Os chefes toparam na hora, e já saíram defi-

café da manhã antes do check in no hotel. Lá pelas tantas, entre uma xícara e outra, pergunta:

que aquela era a hora de usar toda a sua diplomacia. Aparentemente, foi dando certo.

(Só depois de Elis e Tom ela teve coragem de

nindo o produtor: Aloysio de Oliveira era perfeito.

Mas depois de muita explicação, quando Tom já

tirar a história a limpo, com o próprio Jobim. Pra

Parceiro de Jobim em algumas canções, ex-dire-

parecia quase convencido, veio a pergunta:

sua surpresa, era tudo mentira. No final das con-

tor do Bando da Lua de Carmen Miranda, desde

– Quem vai escrever os arranjos?

tas, ele nem ao menos arranjara o disco. Apenas

os anos 1940 ele circulava com desenvoltura pelo

Aloysio:

estava no estúdio naquele momento, e não ha-

showbizz e mundo do disco nos EUA. Aloysio fa-

– O Cesar.


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

33

A impressão que ficou em Cesar é de que,

De qualquer forma, terminam o disco. No

nesse tempo todo, nem ele nem Jobim dormiram

dia seguinte, ânimos serenados, despedida no

uma única hora.

aeroporto. É quando Tom, à guisa de pedido de

Mas, enfim, ficou tudo pronto. Hora de gra-

desculpas, profere a frase que ficou clássica:

var (todos juntos no estúdio – como Elis sempre gostou). O projeto todo ocupou pouco mais de duas

– Sabe o que é Mariano? É que enquanto eu tomo banho de banheira, vocês tomam banho de chuveiro. Você me entende?

semanas – 22 de fevereiro a 9 de março de 1974

Silêncio e pânico. Tom pega o telefone e, sem nenhuma explicação, passa a ligar para os arranjadores “oficiais” da Bossa Nova; os maestros que, nos discos gravados pela sua turma nos EUA, tinham vestido de orquestra a sonoridade que Jobim e João Gilberto haviam inventado: Claus Ogerman, Nelson Riddle, Johnny Mandel… Cesar conta, em sua autobiografia, Solo: “Eu me encolhia tanto, me sentia tão pequeno que, se me sentasse numa gilete, balançaria as pernas; Elis contava os tacos do assoalho, com cara de quem ia começar a chorar. Tom seguia andando pela sala… (…) E não olhava para mim.” O acaso trabalhou a favor: nenhum arranjador deste calibre estava disponível naquele momento. Era já o final da tarde quando terminou aquele café da manhã de pesadelo. Chegando ao hotel, tinham o repertório quase definido, e Cesar havia ganho alguma confiança de Jobim. Alguma. Os dias seguintes ele passou trancado no quarto do hotel escrevendo os arranjos, enquanto Elis e Roberto inventavam passeios para distrair João Marcello e deixá-lo tranquilo frente ao maior desafio de sua vida.

– entre viagens, preparação, gravação e mixagem.

***

Mas dentro do estúdio mesmo, foram entre dois

O show de lançamento aconteceu em São Pau-

a três dias (as versões variam).

lo, e foram apenas duas apresentações: Elis, sua

Na primeira sessão, registraram os arranjos

banda, Tom e uma orquestra regida pelo mesmo

mais camerísticos: Tom no piano, Elis na voz, sex-

maestro do disco de Lenita Bruno que inspirara

teto de cordas e flauta. Tudo certo, tudo lindo,

tudo: Leo Peracchi.

todos felizes.

Conforme ia ouvindo disco e show, a crítica

Aí, dias depois, para gravar o resto, chega

se rendia definitivamente à cantora que se sofis-

a espetacular banda de Elis. E aí, segundo Cesar,

ticara a olhos vistos nos últimos três. Seu prestí-

Tom surtou novamente: trazer instrumentistas do

gio, aos 29 anos, tinha finalmente encostado na

Brasil para o lugar onde, segundo ele, estavam os

sua popularidade.

melhores músicos do mundo? Mais de uma pessoa já escreveu sobre essa “crise”, o que é estranho: em seus discos america-

O DISCO

nos, Jobim sempre fez questão de músicos brasi-

Comecemos pelo fato de que Elis e Tom foi ma-

leiros na base: violão, bateria e percussão. Não há

ravilhosamente gravado e mixado por Humberto

como, hoje, ter a real medida do que aconteceu,

Gatica, engenheiro de som que estreara naquele

mas o que parece inequívoco é que ele não gos-

ano de 1974, e logo se tornaria o que é hoje: um

tou nada do trio baixo, guitarra e piano... elétricos

dos maiores e mais requisitados profissionais do

– o que também é curioso, porque Tom já havia

ramo no planeta.

tocado piano elétrico em seus LPs gringos.

Depois, o repertório, dividido em três blocos.

Elis, por sua vez, alternava euforia com desa-

Há quatro canções de câmara, escritas até

bafos ao telefone para Menescal – que ligava to-

1958 por um Jobim ainda com ambições erudi-

dos os dias do Rio, preocupado:

tas, pré-Bossa Nova, parceiro do então apenas

“Está uma merda, não tem nada bom! O

poeta Vinícius de Moraes: Modinha, O Que Tinha

Tom (…) é um chato, reage contra os aparelhos

de Ser, Por Toda a Minha Vida e Soneto de Sepa-

eletrônicos (…). A gravação está babaca, parecen-

ração. Boa parte delas havia sido estreada nos

do Bossa Nova.”

dois songbooks anteriormente dedicados à obra

Bossa Nova nunca foi predileção de Elis – o

de Jobim: o já citado disco de Lenita Bruno e

– Ô, Mariano, em que música você está?

que explica o número significativo de não bossas

Canção de Amor Demais, o marco zero da Bossa

Tom ligava uma, duas, dezenas de vezes por dia.

em Elis e Tom.

Nova, da Elizeth Cardoso (que de Bossa Nova ti-

– Ô, Mariano, quantos dedos você tem nas mãos? Você não gosta de acordes de três notas? – Ô Mariano, estou aqui na minha banheira,

Pouco tempo depois, ela comentaria:

nha só duas canções).

“Foram momentos vividos por duas pesso-

Cronologicamente, o segundo bloco é o

as muito tensas, que só conseguem descontrair

Jobim da Bossa Nova, o Jobim internacional, de

através da música. Ficou a saudade de um pas-

canções lançadas basicamente por João Gilberto

tenso, meus rins doem… como é que anda o

sado recente, em que as cores eram outras e as

e regravadas à exaustão por músicos e cantores

trabalho?

pessoas, mais felizes.”

de todo mundo. Há seis delas ali: Só Tinha de Ser


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

34

Com Você, Triste, Corcovado, Brigas, Nunca Mais,

de pequenos improvisos com Cesar, ao final, a

Fotografia e Inútil Paisagem.

apatia se desmancha.

Por fim, as novidades de um compositor que,

E então o disco muda de clima, para a pri-

nos últimos cinco anos, em vez de deitar na fór-

meira de suas tantas canções de câmara, Modi-

mula que o consagrou, se reinventava. É onde o

nha. O piano e o arranjo de cordas e flautas é o

disco mais luze: Águas de Março, Pois É, Retrato

único de Jobim no disco. Elis está impecável, e

em Branco e Preto e Chovendo na Roseira.

emite um dos graves mais bonitos da sua fono-

A primeira delas abre o disco, Elis superando

grafia: o “Ah”, antes de “não seja a vida sempre

sua própria versão anterior (do disco Elis de 1972).

assim...” E há ainda, nos compassos finais, uma

Leonard Feather, um dos críticos mais respeita-

embargada de voz que só um grande intérprete

dos do jazz, coloca esta na lista das 10 melhores

não deixaria emergir na cafonice.

gravações da história. E é essa mesma versão que,

Triste, de 1967, é bem a Bossa amada pelos

quanto mais passam os anos, mais frequentemen-

americanos. Novamente a polirritmia armada

te aparece no topo das mais variadas listas. Qual

entre as levadas de violão e piano (como em

o segredo? Além da obra-prima de composição

Águas de Março) dá uma leveza que quase em-

sono de assovio e piano que já havia marcado

em letra e música (um dos pontos altos do Jobim

polga Elis. Quase.

Águas de Março. Na base, seu violão enrosca-se

letrista), a interpretação luminosa e descontraída

Na sequência, outro clássico: Corcovado, de

com o de Oscar Castro-Neves e Elis enfrenta a

nos coloca quase como voyeurs da intimidade de

1960. Tom na voz e violão; arranjo de cordas de

dificílima melodia com um sorriso na cara. Nou-

dois imensos artistas, brincando, cantando, rindo

Cesar em nítida paleta jobiniana; Jobim colocan-

tro paralelo com Águas..., por trás da aparente

e inventando, como se aquilo fosse a coisa mais

do um sutilíssimo piano por cima. Impecáveis,

singeleza, esconde-se genial complexidade. O

simples do mundo. A Bossa Nova possível de 1972,

trazendo novidade e sentimento para uma can-

disco poderia acabar aí, sorrindo.

sol em meio aos temporais.

ção já então massacrada em centenas de versões.

Mas então se recolhe. Inútil Paisagem é no-

E com aquela banda.

E então outro grande momento íntimo:

vamente a menor formação possível: voz de Elis,

Depois de dois anos juntos, Cesar Camargo

O Que Tinha de Ser. Voz de Elis e piano do autor,

piano – onde sobram em ideias o que se econo-

Mariano (piano), Luisão Maia (baixo elétrico), Pau-

uma infinidade de sutilezas. Seguida de, no mes-

miza em notas – de Tom. E fim.

linho Braga (bateria) e Chico Batera (percussão)

mo clima, uma recriação de Retrato em Branco e

Muitos consideram Elis e Tom o melhor tra-

tinham encontrado uma sonoridade tão moderna

Preto sem baixo nem bateria: “apenas” o tão dra-

balho de sua intérprete. Outros tantos, a obra-

quanto particular, agora com Hélio Delmiro no

mático quanto econômico piano de Jobim emol-

-prima de seu compositor. Há quem o elenque

violão e na guitarra. O som partia da Bossa Nova

durado pelo arranjo de cordas idem, de Cesar.

como o melhor disco da música brasileira.

para definir uma nova levada e um suingue únicos.

Praticamente uma nova canção.

Luisão, em especial, era um gênio. Tocou com Elis

E volta o sutil suingue da banda, mais impres-

até o fim, e é considerado o definidor do que seria

sionante do que nunca, em Brigas, Nunca Mais. Elis

o baixo elétrico na música brasileira. Somando-se

está solar, solta, quase como em Águas de Março.

a eles, reforços de peso – como o violão de um dos

Muito diferente de Por Toda a Minha Vida: voz e

maiores músicos brasileiros emigrados para os

cordas, arranjo de Cesar, tudo é contenção.

EUA nos anos 1960: Oscar Castro-Neves.

Segue-se uma versão absolutamente ino-

O segundo tema do disco é Pois É. Com letra

vadora de Fotografia, num típico arranjo do Ce-

de Chico Buarque, muda tudo de cor: Elis é serena

sar naqueles anos, ideias originais se sucedendo

tristeza, num arranjo totalmente com a cara do

em desfile. Dava pra fazer uns quatro arranjos

quinteto de Cesar. Bossa novística até na duração

com elas.

de menos de dois minutos.

Então Soneto de Separação, novamente

Formação que se repete em Só Tinha de

piano e voz de Tom, cordas arranjadas por Cesar.

Ser Com Você, onde a pequena transgressão é

E vem a segunda canção que mais se eternizou

o piano elétrico. Visivelmente, é a faixa em que

do disco: uma radiante versão de Chovendo na

Elis menos parece divertir-se. Nem quando divi-

Roseira, valsa-jazz com Jobim repetindo o unís-

PARA LER FARIA, Arthur de. Elis: uma biografia musical. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2015. FARIA, Arthur de. As Origens, da série A Música de Porto Alegre (CD e fascículo). Porto Alegre, Unidade Editorial Porto Alegre / SMC, 1995. KIECHALOSKI, Zeca. Elis Regina, da coleção Esses Gaúchos. Porto Alegre, Editora Tchê, 1984. MARIANO, Cesar Camargo. Solo: Memórias. São Paulo: Leya, 2011. CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias de Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CABRAL, Sergio. Antônio Carlos Jobim, Uma Biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1997. PARA OUVIR Canção do Amor Demais – Elizeth Cardoso (Festa, 1958) Por Toda a Minha Vida – Lenita Bruno (Festa, 1959) Chega de Saudade – João Gilberto (Odeon, 1959) O Amor, o Sorriso e a Flor – João Gilberto (Odeon, 1960) João Gilberto – João Gilberto (Odeon, 1961)


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

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Juarez Fonseca Jornalista, colunista de Zero Hora

Como seria Elis hoje? Em março passado, Elis teria completado 72 anos.

Assim era Elis, que às vezes estava ótima, fe-

de Sangue, de Jerônimo Jardim e Ivaldo Roque,

A mesma idade de Chico Buarque e Ivan Lins. Edu

liz, e às vezes ficava áspera, amarga. Ainda mais

ambas em 1980. Na última vez, pediu que eu lhe

Lobo tem 73, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Milton

naquele momento, em que o casamento de 9

enviasse fitas e que passasse aos compositores o

Nascimento, 74. Projetados por Elis, João Bosco

anos e dois filhos com César Camargo Mariano

seu endereço em São Paulo.

e Aldir Blanc estão com 70. Belchior, que faleceu

naufragara e ela buscava apoio no advogado/na-

Vitor Ramil foi dos raros que mandou uma

recentemente, também estava. Grandes cantoras

morado paulista que estava ao lado dela no hotel

fita e (pasmem!), ela passou um telegrama para

da geração dela, Gal está com 71 e Bethânia, 70.

e no Gigantinho. Quatro meses depois, a morte

ele, pedindo que enviasse outra fita, pois aquela

Exceto Belchior, todos seguem em plena e criativa

absurda, por overdose acidental, pois não era

estava com áudio ruim. Além de Vitor, imagino

atividade. Como estaria hoje Elis, que morreu há

consumidora habitual de drogas. Nos muros do

que em sua “pesquisa” logo entrariam Nei Lisboa,

35 anos, em 19 de janeiro de 1982? Antes de mais

país espalha-se a frase “Elis vive”.

Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, Kleiton &

nada, ela tinha apenas 36 anos e estava exercendo

Os argentinos costumam fazer uma brin-

Kledir, Antonio Villeroy, Mário Barbará, Nico Nico-

a plena potência de seus papéis de mãe, mulher,

cadeira quando alguém fala na morte de Carlos

laiewsky, Humberto Gessinger, para ficar em al-

artista, cidadã. Como estaria hoje?

Gardel. “Ele não apenas não morreu, como canta

guns novos da época. Ao lado de Itamar Assump-

Cabe recapitular setembro de 1981, quando

cada vez mais”, retrucam. O mesmo podemos di-

ção, Luiz Tatit, Marina, Arnaldo Antunes, Cazuza,

esteve pela última vez em Porto Alegre, com o

zer de Elis. Seus discos são a prova disso. Ouça-

Renato Russo, Nando Reis, depois os novos dos

show Trem Azul. Era sua primeira apresentação no

-os. Ela continua cantando demais. E certamente

anos 90, Ed Motta, Chico César, Zeca Baleiro, Van-

Gigantinho e o público, pequeno para as dimen-

ainda há interpretações por descobrir – não faz

der Lee, os dos anos 2000, e assim por diante.

sões do ginásio, no máximo 3 mil pessoas (onde

muito, saiu um álbum com gravações inéditas, ao

Quer dizer: ela seguiria fazendo o que sem-

cabem 15 mil). Ela estava tensa na entrevista do dia

vivo, no Festival de Montreux. Mas o que gravaria

pre fez, também gravando os nomes de sua gera-

anterior no hotel; queixava-se daquele momento

se continuasse aqui?

ção e os mais antigos. Claro que tudo isso é teoria,

em que vivia uma situação maluca entre gravado-

Apoiado em seus últimos discos e na dispo-

mas a homenagem que eu poderia prestar a Elis

ras. Devia um disco para uma (Warner), que deixou

sição que manifestava, pedindo que lhe mandas-

é esta. Imaginando a continuidade do trabalho,

por se sentir explorada, havia recém-lançado um

sem fitas, acredito que sem comprometimentos

com os acréscimos naturais de sua personalidade

disco por outra (EMI) e assinado contrato com uma

provincianos, mas como atenção de novidade,

inquieta, e concluindo que continuaria na frente.

terceira (Som Livre). Difícil entender como teria se

nos anos 80 ela se voltaria para os novos autores

Além disso, a maior cantora brasileira de to-

metido naquele imbroglio muito mais jurídico do

gaúchos. Sabia da força da movimentação local

dos os tempos também seria uma estrela interna-

que artístico. Depois da entrevista, me contou que

e me pedia informações. Estava querendo novas

cional, eu não tenho a menor dúvida.

no auge do rolo não podia nem ouvir as palavras

expressões para lançar, como fizera nos anos 60

“música” e “gravadora”, pois lhe davam erisipela.

com Edu Lobo, Milton, Gil; nos 70 com Bosco e Al-

Que chegou a pensar em não fazer mais discos, em

dir, Ivan Lins, Belchior... Já havia gravado Peque-

abrir um bar e cantar só para os amigos...

no Exilado, no disco de Raul Ellwanger, e Moda

Elis Regina em 1977 Foto: Juarez Fonseca


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

36

por João Luiz Sampaio, Jornalista e crítico musical, autor de Ópera à Brasileira, Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção e Guiomar Novas do Brasil, entre outros livros. Assina o blog cultura.estadao.com.br/blogs/joao-luiz-sampaio.

Sentidos da música A formação de músicos no Brasil tem passado, nos

e não tão dependente das grandes instituições

Nas comunidades carentes, em geral, faltam

últimos 20 anos, por uma profunda transforma-

musicais que, em tempos de crise, preocupadas

saúde, educação de qualidade, emprego, sanea-

ção. O crescimento da vida musical – com o proje-

com a própria sobrevivência, deixaram de lado a

mento. Do jovem, no entanto, é tirado ainda um

to da nova Orquestra Sinfônica do Estado de São

possibilidade de, como pontos irradiadores do va-

outro direito fundamental, o direito de sonhar, o

Paulo colocando a possibilidade de novos paradig-

lor da música, desenvolver um papel mais amplo

direito à individualidade. Em outras palavras, a

mas de qualidade artística e de gestão – deu força

no diálogo com a sociedade e com outros proje-

questão que esses projetos se colocam é: como

à ideia de que era preciso investir na preparação de

tos menores e regionais.

acreditar em si mesmo em um contexto no qual se

músicos de qualidade, capazes de abastecer o novo

Seja como for, nessa transformação pela

vive à margem, apartado dos bens compartilhados

mercado que se desenhava à luz de um renasci-

qual passou a formação de músicos no Brasil, há

por uma sociedade? A música é uma resposta. Ao

mento da vida sinfônica do país.

pelo menos um aspecto que sugere uma percep-

tocar um instrumento, devolve-se ao jovem à pos-

Com o passar do tempo, porém, apesar do

ção mais ampla do fazer musical: o desenvolvi-

sibilidade de se expressar. E essa expressão aconte-

surgimento de novos projetos e da reestrutura-

mento de projetos sociais ligados à música. Eles

ce no espaço da coletividade. Afinal, o som de um

ção de outros antigos, os cortes em orçamentos

são muitos e diversificados, tanto do ponto de

conjunto, seja ele uma orquestra ou um quarteto

e a influência nociva das trocas políticas nos pro-

vista artístico como no que diz respeito às rea-

de cordas, é a soma do som de cada instrumento

jetos artísticos, talvez seja necessário reconhecer

lidades institucionais. Mas carregam um ponto

que, ao se combinar com os demais, tem como ob-

que o tal renascimento ainda sucumbe perante a

em comum: a ideia de que a arte pode ser uma

jetivo não apenas a reafirmação do seu valor indi-

frágil situação institucional de muitas orquestras.

ferramenta de transformação social. Isso se dá

vidual como também a harmonia do todo.

Por conta disso, é possível criticar o foco quase

não apenas porque, ao ensinar ao jovem um ins-

Não é preciso muito para entender o para-

exclusivo dos projetos de formação na vida or-

trumento, dá-se a ele uma possibilidade de cami-

lelo possível entre o ato de fazer música e o de

questral, que poderia abrir espaço para a música

nho profissional. Há outro sentido, talvez ainda

construir uma nova sociedade, tendo como pon-

de câmara e outros formatos que pudessem levar

mais importante do que a inserção no mercado

to de partida a aproximação entre as diferenças

a um mundo artístico ainda mais descentralizado

de trabalho.

em busca de um bem-estar comum. Ainda assim,


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

37

persiste a crítica de que, ao se acoplar à arte um sentido, ou uma missão, tira-se dela o seu valor intrínseco. Uma sinfonia de Beethoven, em outras palavras, seria importante como manifestação do gênio artístico ocidental, independentemente da função que se dá a sua interpretação que, antes de mais nada, precisa se fundamentar na qualidade da execução. É uma falsa polêmica. Entender que a arte pode ser uma ferramenta não significa necessariamente abrir mão da qualidade, e identificar nela um sentido não é o mesmo que abrir mão de outros, pelo contrário: atualizar, a partir de dilemas contemporâneos, a relação que se tem com a música é um elogio a seu valor intrínseco e formal. Tudo isso vem à mente à luz da experiência de acompanhar, durante alguns dias, a programação do Festival Internacional Sesc de Música, realizado em janeiro em Pelotas, com direção artística do maestro Evandro Matté. De cara, ele oferece a uma grande quantidade de jovens músicos a possibilidade de estudar com grandes professores, o que pode ser uma experiência definidora na trajetória de cada um desses alunos. Esse trabalho individual reafirma a necessidade de trabalho e estudo, de

imaginação na formatação de recitais e a abertura

fora que ela gostaria de conhecer. Como musicis-

dedicação ao instrumento, do refinamento da téc-

na hora de escolher repertórios são características

ta? Não necessariamente. Se for para fazer músi-

nica, da construção de uma personalidade musical.

fundamentais para a formatação de uma carrei-

ca, ótimo, mas o importante é que agora ela tinha

Mas há um outro aspecto, simbólico. Um festival

ra. E, em segundo lugar, que quando se estabelece

aquela vontade. Pouco depois, eles falavam sobre

como esse é um ponto de encontro de músicos de

com a comunidade um diálogo direto, tornando-

seus compositores preferidos. Um grupo defendia

diferentes origens, nacionalidades, situações eco-

-se referência para um grupo de pessoas, não há

Mozart, outro grupo falava em Beethoven. Mozart

nômicas, técnicas, estéticas. E o compartilhamento

gênero menos popular ou inviável – as longas filas

é claro; Beethoven, dramático. E a dramaticidade

de experiências não se limita aos horários livres, às

para os recitais, todos esgotados, são prova disso.

não era uma qualidade? Os argumentos eram os

festas, às conversas. Ele se dá também no palco.

Se a música clássica deixou de ser um gênero

mais diversificados, e a resposta importa menos do

É desse diálogo com o outro, afinal, que resultam

presente no debate cultural, cada vez mais se fe-

que a simples existência da discussão empolgada.

as apresentações espalhadas pela programação,

chando em um nicho, isso tem menos a ver com

A música, talvez, não precise ter uma “utilidade”.

o desafio de conhecer quem está ao seu lado por

a música em si do que com o modo como ela é

Mas é especial vê-la fazendo parte do dia a dia das

meio do fazer musical.

feita e compreendida por aqueles que a fazem. No

pessoas, sendo assumida como um patrimônio a

Nesse sentido, é particularmente importante

penúltimo dia de festival, me deparei com alunos

ser compartilhado de maneira tão descontraída,

que, além da prática orquestral, seja impulsiona-

de um projeto parceiro do Festival Sesc, a Orques-

divertida, emotiva, racional – e essencial.

da a música de câmara, não apenas pelo campo

tra Areal, que fizeram apresentações e puderam

que abre ao intérprete, mas pelo caráter essen-

acompanhar como ouvintes as aulas. Eram oito

cial do diálogo de sensibilidades que ela propõe.

jovens, com uma idade média de 16 anos. Uma das

Com curadoria do pianista Max Uriarte, a série

alunas me disse que nunca pensou na possibilida-

traz algumas outras lições importantes. Primeiro,

de de deixar Pelotas, mas que, ouvindo um pouco

a ousadia na escolha dos programas, aberta a di-

da experiência do violinista Emmanuele Baldini,

ferentes períodos e formações, lembrete de que a

chegou à conclusão de que havia um mundo lá

7º Festival Internacional Sesc de Música Fotos: Flávio Neves


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

38

Sonora Brasil difunde a autêntica música brasileira Maior projeto

práticas e novos hábitos de apreciação musical,

“Bandas: formações e repertórios” traça um

de circulação musical

promovendo apresentações de caráter acústico

panorama das tradicionais bandas que, espalhadas

por essência, que valorizam a autenticidade sonora

por todo o Brasil, são reconhecidas como importan-

das obras e de seus intérpretes. Para os artistas que

tes instituições formadoras de músicos, responsá-

se dedicam à construção de uma obra de funda-

veis pela base da educação musical de um grande

“pisada dos cocos”

mentação artística não comercial, o maior projeto

número de instrumentistas que hoje integram or-

e “Bandas: formações

de circulação musical do país contribui para a difu-

questras e conjuntos de câmara. São identificadas

são do trabalho, consequentemente, estimulando

como parte da história de uma infinidade de cidades

suas carreiras.

brasileiras, ocupando lugar de destaque na memória

do país, na 20ª edição, apresenta os temas Na

e repertórios”

Coco de roda, samba de coco, coco de zambê,

das pessoas. Têm origem no meio militar, do qual as-

coco de pareia, coco furado, coco de embolada...

similaram características marcantes, como o uso de

são muitas as variantes que justificam a denomi-

uniforme, o repertório de marchas e a instrumenta-

nação “cocos”, sempre no plural. “Na pisada dos

ção, e são responsáveis pela criação de um gênero

cocos” apresenta variantes desta expressão lítero-

musical tipicamente brasileiro: o dobrado. Mesmo

cênico-musical típica da região Nordeste do Brasil

tendo esta força como expressão cultural, com o

Levar ao público de todo o país a pluralidade das

trazendo dois grupos que praticam cocos do litoral

passar do tempo, a necessidade de adequação de

expressões musicais pouco difundidas fora do am-

e dois do interior. É uma prática coletiva que envol-

repertórios ao gosto popular e às possibilidades téc-

biente onde são populares é o objetivo do Sonora

ve, na maioria das vezes, grupos mistos, formados

nicas e interesses dos seus integrantes, fez com que

Brasil – Formação de Ouvintes Musicais, que, no

por homens e mulheres, que são encontrados nas

repertórios tradicionais, compostos para formações

biênio 2017-2018, promove a circulação de gru-

áreas urbanas e na zona rural, inclusive em aldeias

originais, fossem desaparecendo, dando lugar aos

pos que representam diversas variantes de “cocos”

indígenas e comunidades quilombolas, onde a

arranjos de clássicos da música popular, de temas

nordestinos e de bandas tradicionais que fazem

dança e a música, integradas, estão presentes nos

de filmes de cinema e de outras vertentes populari-

parte da memória cultural das suas cidades de ori-

terreiros, nas festas populares e em ritos religio-

zadas nos meios de comunicação. Recuperando es-

gem. Quatro grupos que são autênticos represen-

sos. Cantadores e dançadores são acompanhados

ses repertórios originais, históricos ou recentemente

tantes de cada tema circulam pelas cinco regiões

ora por instrumentos de percussão como bumbo,

compostos, o Sonora Brasil traz quatro formações

brasileiras, realizando aproximadamente 450 con-

ganzá, pandeiro, caixa e outros, ora por palmas

distintas, sendo três representando os grupos tradi-

certos em mais de 100 cidades, a maioria distante

ou pela batida dos pés que marcam o andamen-

cionais que se apresentam nas ruas e praças, e um

dos grandes centros urbanos.

to, simulando a pisada que prepara o chão batido,

representando o segmento da música de concerto

Ao proporcionar às populações o contato

atividade praticada nos mutirões e à qual se atribui

com repertório inspirado na sonoridade das bandas.

com a qualidade e a diversidade da música bra-

esta característica da dança. Circulam pelo Sonora

São eles: Corporação Musical Cemadipe (GO), ABan-

sileira, o Sonora Brasil busca despertar um olhar

Brasil os grupos: Coco de Zambê (RN), Samba de

dinha (AM), Sociedade Musical União Josefense (SC)

crítico sobre a produção e sobre os mecanismos

Pareia da Mussuca (SE), Coco do Iguape (CE) e o

e Quinteto de Metais da UFBA (BA).

de difusão da música no país, incentivando novas

Coco de Tebei (PE).


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2017

39

Sociedade Musical União Josefense Coco do Iguape Quinteto de Metais da UFBA Corporação Musical Cemadipe ABandinha Coco de Tebei Samba de Pareia da Mussuca Fotos: Divulgação


AUDIOVISUAL

primeiro SEMESTRE

2017

40

Oportunidade para novos realizadores A Mostra Sesc de Cinema, além de

Em um momento no qual a cultura sofre uma

documentos, seguida de seleção, com critérios de

promover a exibição de filmes que

retração de investimentos, um novo projeto do

curadoria, para realização das mostras estaduais.

não entram em circuitos comerciais

Sesc contribui para o fortalecimento da produção

O edital do projeto não limitou os filmes em ter-

e programação de TV, faz um raio X

artística audiovisual nacional, por meio da difu-

mos de categoria, gênero ou estilo, apenas de-

da produção audiovisual no Brasil e

são e promoção da discussão e do intercâmbio

terminou que as obras fossem curta-metragem –

contribui para a formação de público

entre realizadores, público, estudantes e críticos.

até 30 minutos de duração – ou longa-metragem

para o cinema nacional

A Mostra Sesc de Cinema, projeto realizado em

– duração superior a 70 minutos.

HORAS Ficção, 2016, 15 minutos Direção: Boca Migotto

um esforço conjunto do Departamento Nacional

Em todo o Brasil, foram inscritos 1.246 traba-

(DN) com as administrações regionais, e que em

lhos entre filmes documentários e de ficção. Após a

breve terá o edital da 2ª edição lançado, é uma

validação, o número ficou em 848. No Rio Grande

oportunidade para novos cineastas apresenta-

do Sul, foram 56 curtas e 4 longas, sendo 25 docu-

rem filmes que não tiveram espaço no mercado

mentários e 35 filmes de ficcção. A Mostra Estadu-

exibidor. Também busca traçar um panorama da

al gaúcha, de 5 a 9 de junho no Sesc Centro e na

produção nacional que não chega ao circuito co-

Sala Redenção, em Porto Alegre, terá 17 curtas e 2

mercial, nem alternativo, e identificar os gargalos

longas. “Temos interesse em abrir o maior espaço

e as demandas dos artistas, a fim de promover

possível para que esses materiais sejam vistos e

DIÁRIOS DALTÔNICOS Documentário, 2014, 17 minutos Direção: Patrícia Monegatto

ações específicas para o desenvolvimento técnico

discutidos, mas não temos capacidade de absorver

e criativo na área cinematográfica e do audiovi-

uma programação muito grande, porque tem que

EM 97 ERA ASSIM Ficção, 2016, 90 minutos Direção: Zeca Brito

sual nas diversas regiões.

funcionar bem como mostra”, salienta a assessora

LIPE, VOVÔ E O MONSTRO Ficção/animação, 2016, 9 minutos Direção: Felippe Steffens e Carlos Mateus DAS URHAUS – A CASA PRIMORDIAL Documentário, 2015, 15 minutos Direção: Hopi Chapman e Karine Emerich A RUA DAS CASAS SURDAS Ficção, 2015, 8 minutos Direção: Gabriel Mayer e Flávio Costa

O projeto ocorre em três etapas: estadual,

de Cinema do Departamento de Cultura do Sesc,

regional e nacional. Na primeira, os filmes inscri-

Nadia Moreno, coordenadora para implantação do

tos são avaliados por uma comissão para sele-

projeto nos Departamentos Regionais.

ção dos filmes, composta por membros do Sesc e

Os filmes selecionados para as mostras esta-

convidados (no caso do Rio Grande do Sul, Gus-

duais seguem na disputa para representar os seus

tavo Spolidoro, cineasta, e Tânia Cardoso, coor-

estados na etapa regional. Cada estado indica no

denadora e curadora da Sala Redenção – Cinema

máximo 2 longas e 4 curtas, e a comissão regio-

Universitário). Nessa fase, ocorreu a validação dos

nal, formada por membros do Sesc nos estados


AUDIOVISUAL

primeiro SEMESTRE

2017

41

que pertencem à região e do Departamento Na-

que não aparecem nas estatísticas. “Tem uma

Para subsidiar o planejamento das ações na

cional, seleciona novamente até 2 longas e 4 cur-

cadeia de objetivos que vão se estruturando no

área audiovisual, o Sesc realizou uma pesquisa na

tas. O prêmio principal é a participação na Mostra

apoio a estes artistas, entremeada no decorrer da

ficha de inscrição com a perspectiva de identificar,

Nacional, no segundo semestre, e um contrato de

Mostra”, salienta a coordenadora.

a partir do cruzamento de todos os dados, o perfil

licenciamento com o Sesc, em âmbito nacional,

O motivo de o edital não incluir a opção da

de inscrição, tanto dos filmes quanto dos artistas, o

para exibição dos filmes nos projetos da área de

inscrição de filmes média-metragem, optando por

que é interessante oferecer como oficina ou outras

audiovisual da instituição por dois anos. Após este

estender a categoria curta até 30 minutos, mais

inciativas que contribuam para o crescimento do

período, os trabalhos permanecem no acervo do

extensa que a classificação da Agência Nacio-

audiovisual nas regiões ao longo do ano. “Também

Sesc e ficarão disponíveis para pesquisa. O anúncio

nal do Cinema (Ancine), foi filtrar obras inéditas

a mostra organizada em cada estado, que inclui

dos selecionados para a etapa regional será du-

das que já tenham alguma carreira de exibição.

debates, abertos ao público, com os realizadores e

rante as mostras estaduais, quando também serão

“A maior faixa de produções é aquele tamanho que

outros convidados para discutirem suas obras com

reconhecidos os destaques nas áreas de atuação

as pessoas fazem para TV, entre 30 e 55-60 mi-

as pessoas, e não apenas com a finalidade de exibir

– fotografia, direção de arte e roteiro – com certifi-

nutos. Ainda assim identificamos alguns materiais

por exibir, já tem este viés de promover o desen-

cados tanto para a produção do filme quanto para

que já tinham sido exibidos, que eram claramente

volvimento técnico e criativo, além de fortalecer

o profissional que assina aquela função. No evento

coprodução com canais de TV, então já sabe que

a atuação do Sesc na área audiovisual”, destaca a

nacional, haverá entrega de troféus.

tem exibição agendada”, diz Nadia, que acompa-

coordenadora.

nhou a triagem de cerca de 50% dos filmes, como

MAPEAMENTO DOS ARTISTAS

representante do DN nas comissões estaduais.

Os curadores

Fomento, colaboração, desenvolvimento da arte

Sobre as temáticas das obras, segundo a

A iniciativa do Sesc em organizar uma mostra de

cinematográfica e apoio ao lançamento de no-

coordenadora, destacaram-se as relacionadas à

cinema que é ao mesmo tempo regional e nacio-

vos talentos são os desdobramentos do projeto.

sexualidade e gênero. “Também os espaços ur-

nal se faz importante por várias razões. Primeiro

“A ideia não é apenas possibilitar aos realizado-

banos, algumas questões interessantes que não

porque ela cria condições de se fazer um mape-

res um espaço de exibição local de seu material

foram muitas em volume, mas que apareceram

amento das produções de cada região do Brasil e

e intercâmbio com os artistas locais, mas tam-

de forma muito significativa, de ficção científica,

também possibilita a troca e o intercâmbio entre

bém de uma circulação nacional, com um quan-

tem uma geração pegando carona nas séries de

essas produções; incentiva a produção e realiza-

titativo mais equânime por região geográfica do

zumbi, vídeo arte, instalação, registros de inter-

ção sobretudo de novos realizadores que, muitas

país”, explica Nadia. O Sesc pretende ainda iden-

venção urbana, filme de gênero tradicional, docu-

vezes, encontram dificuldade para a distribuição

tificar quem são estes artistas, dar visibilidade nos

mentário de personagens que têm algum signifi-

e exibição de seus filmes. Hoje se sabe que está

projetos da instituição ao que estão produzindo,

cado na cultura do local, tem o personagem que é

mais fácil realizar filmes de baixo orçamento, mas

como uma forma de colaborar com seus currícu-

o homem comum, e uma variedade interessante.

a distribuição continua sendo complicada. Mesmo

los, além de trazer para o público, por meio das

Mas o que mais me chamou a atenção, pelo signi-

que existam os festivais e os filmes circulem en-

obras, os temas que estão mais prementes e que,

ficado e não pela quantidade, foram as questões

tre eles, ainda assim, para ser exibido fora de tal

em princípio, ficam nas gavetas. Outro desdobra-

de identidade e de gênero, principalmente na ver-

circuito, ainda é bem complicado. E a Mostra Sesc

mento é fazer um mapeamento desses artistas

tente da afetividade.”

de Cinema é uma oportunidade que pode atingir


AUDIOVISUAL

primeiro SEMESTRE

2017

42

todas as pontas da cadeia. Classificar-se em um

bem definidas mesmo, mas chama a atenção como

festival, ganhar um prêmio, um reconhecimento e,

cada vez mais esse questionamento se faz. Talvez

também, ter o filme exibido em vários lugares do

pela consciência cada vez maior de que realidade

Brasil. Sem contar que a iniciativa surgiu em um

filmada não é exatamente realidade, e que cada

momento de grande crise no país. E sabemos que

vez que algo é filmado, pensado, editado, temos

o primeiro corte acontece nos projetos culturais.

outra coisa.

ÀS MARGENS Documentário, 16 minutos Direção: Boca Migotto

Infelizmente. Então um novo projeto como esse é

Tânia Cardoso

de fato uma boa notícia, ainda mais que é para ter

Coordenadora e curadora da Sala Redenção –

ÁGUA Ficção, 2014, 15 minutos Direção: Giulia Góes

outras edições.

Cinema Universitário

RUBY Ficção, 2015, 17 minutos Direção: Luciano Scherer, Guilherme Soster e Jorge Loureiro FREQUÊNCIAS DO INTERIOR Documentário, 2015, 25 minutos Direção: Neli Mombelli LUNA 13 Ficção, 2016, 17 minutos Direção: Filipe Barros CENTRAL Documentário, 2016, 86 minutos Direção: Tatiana Sager Codireção: Renato Dornelles O CAÇADOR DE ÁRVORES GIGANTES Ficção, 2016, 10 minutos Direção: Anttonio Pereira

Muitos dos filmes enviados são documentários e ficções, mas interessante notar que as

O júri para a seleção dos filmes no Rio Grande do

margens estão cada vez mais apagadas a ponto

Sul procurou trabalhos bastante ecléticos, que

de haver uma certa interrogação a respeito daqui-

pudessem se diferenciar e dar uma amostra bem

lo que é narrado, contado. É como se tivéssemos

diversificada da produção gaúcha. Temos docu-

personagens e atuação nos documentários. Muito

mentários de longa-metragem, temos ficção de

mais construção do que representação, de certa

longa-metragem, documentários sociais de con-

forma. E os filmes de ficção muitas vezes também

teúdo muito forte em curta-metragem, animação

brincam com a questão da representação. E talvez

infanto-juvenil... Um filme que ganhou o Festival

uma das questões que levam a esse estranhamen-

de Gramado, sensacional, que é Lipe, Vovô e o

to seja porque as narrativas são construídas a par-

Monstro. Temos ficções também. Tentamos dar

tir da memória, de alguma situação vivida de for-

uma abrangência e mostrar que o cinema gaúcho

ma muito particular. As margens nunca são muito

tem uma relevância de animação, seja na ficção


AUDIOVISUAL

primeiro SEMESTRE

2017

43

seja em documentário, e acho conseguimos isso

produzidos não são assistidos pelo público. Nesse

com essas escolhas, e espero que o público tam-

contexto, o Sesc com sua capilaridade pode, por

bém se agrade ao deparar com este tipo de filme.

meio da Mostra Sesc de Cinema, colaborar para

Filmes como Ruby, que apesar de dialogar um

que o público tenha acesso e conheça a produção

pouco mais com uma ideia experimental, foi uma

cinematográfica do país.

grande unanimidade entre os jurados. Então temos de tudo um pouco.

Participar de um processo curatorial dessa natureza é sempre complexo, mas muito en-

Buscamos fazer uma curadoria que pudesse

riquecedor, pois envolve aprendizado, trocas e

ser bem representativa do que é realizado no Rio

conhecimento. Foi um trabalho exaustivo, pois

Grande do Sul e acredito que a mostra vai agradar

cada escolha significou abrir mão de algum tra-

aos diversos tipos de expectadores.

balho, visto que a qualidade dos filmes inscritos

Gustavo Spolidoro

foi muito interessante. A composição foi além dos

Cineasta

elementos estéticos de uma produção, lançou-se um olhar sensível sobre assuntos e temáticas im-

O edital contribui significativamente para o in-

portantes como arte, memórias, prostituição, sis-

centivo da linguagem audiovisual, possibilitando

tema carcerário, entre outros. Enfim, o resultado

visibilidade e janelas de exibição a produções lo-

foi bastante satisfatório e o público poderá as-

cais, que muitas vezes não são contempladas nos

sistir na Mostra um belo panorama da produção

circuitos de exibição alternativo e comercial. Atu-

audiovisual no Estado.

almente existem diversos mecanismos de fomento

Anderson Mueller

para a produção; entretanto, na cadeia de exibi-

Coordenador Estadual da Mostra Sesc de Cinema

ção existem gargalos e, em sua maioria, os filmes

OBJETOS Ficção, 2015, 16 minutos Direção: Germano de Oliveira DOMÉSTICAS Documentário, 2016, 15 minutos Direção: Felipe Diniz “N” DE VANESSA Documentário, 2015, 14 minutos Direção: Maria Carmencita Job O CORPO Ficção, 2015, 16 minutos Direção: Lucas Cassales TEMPORAL Ficção, 2016, 13 minutos Direção: Gabriel Honzik PISKA Documentário, 2016, 19 minutos Direção: Nelson Brauwers e Andruz Vianna


ARTES VISUAIS

PRIMEIRO primeiro SEMESTRE

2017

44

por Francisco Dalcol, Jornalista, crítico de arte, curador independente e doutorando em Teoria, Crítica e História da Arte (UFRGS). Em suas pesquisas, investiga relações entre crítica e curadoria.

Caminhos e descaminhos da curadoria

Curador “Aquele que é encarregado, pela justiça, de cuidar dos interesses das pessoas que estão impedidas de fazê-lo / Pessoa que faz parte do Ministério Público, sendo responsável pela defesa de incapazes, ausentes ou massas falidas / Aquele que atua no cumprimento das vontades da pessoa que faz um testamento, assegurando que suas vontades sejam mantidas: curador de resíduos / Pessoa encarregada pela defesa da

Já faz algumas décadas que as palavras “cura-

“responsável pelo cardápio”, ou “curador de casa

família e das relações matrimoniais: curador de

dor” e “curadoria” circulam no meio artístico.

noturna” em vez de “gerente de programação”.

família / Quem se responsabiliza pelos casos de

Contudo, ampla difusão não necessariamente

O mesmo vale para o clássico trabalho do “edi-

menores abandonados ou de crianças infrato-

se reverte em maior compreensão, tendo em

tor”, responsável por selecionar, organizar e dar

ras: curador de menores / Encarregado de zelar

vista que os delineamentos dos termos nun-

forma a determinados conteúdos, tarefa que

pelos direitos e deveres de um órfão, além de

ca cessaram de se definir. Se no começo apa-

agora também tem passado a ser chamada de

tratar de todos as ações que lhe dizem respeito:

receram para designar um profissional e uma

“curadoria”. Não é por acaso que a mania de lis-

curador geral dos órfãos”.

atividade estrita ao campo dos museus e das

tas-sobre-qualquer-coisa é acompanhada pela

exposições de artes visuais, atualmente o

expressão “curadoria de conteúdo”.

Os mesmos dicionários de nossa língua também

que se vê é uma profusão das expressões nos

Um bom modo de se tentar entender os

mais variados setores, e não só da cultura.

caminhos e descaminhos percorridos tanto pelo

É bastante comum ouvirmos falar em curador

profissional em curadoria como pelo trabalho

de arquitetura, de moda, de design ou em cura-

curatorial é investigar as origens das palavras

Curador

doria de programação e seleção em festivais de

e os antecedentes da atividade. E, com sorte,

“Aquele que cura; que ajuda na recuperação de

teatro, cinema e literatura, mas também — e até

esboçar-se um breve panorama de contextua-

um doente”.

mesmo — em curadoria gastronômica, de festa

lização histórica, política, social e estética que

e de decoração.

convergem ao apontar o curador no sentido mesmo de cura física, remetendo ao campo da medicina:

ajude a melhor situar os contornos assumidos

A compreensão de “curadoria de arte” vai apare-

Ao mesmo tempo em que os termos se po-

pelo “curador” e pela “curadoria”, desde sua

cer apenas como um entre os diversos itens que

pularizam nas mais diversas áreas, esse maior

emergência até a crescente valorização ainda

encontramos no verbete “curador”, e somente nos

alcance parece mais confundir seus reais signi-

em curso.

dicionários que o apresentam em versões atuali-

ficados e competências. E, ademais, a difundir

zadas. O Michaelis diz o seguinte:

clichês empobrecedores. A dificuldade se torna

As origens dos termos

ainda maior porque a proliferação das expres-

No latim, encontramos expressões como “cura-

Curador de artes

sões ainda está em curso, nomeando novas ati-

re” e “curator”, as quais, no tempo dos romanos,

Aquele que tem a incumbência de organizar, pro-

vidades e até mesmo antigas tarefas que não

eram empregadas para designar o trabalho dos

videnciar a conservação de obras de arte em mu-

eram assim chamadas. A questão que se impõe é

altos funcionários encarregados de supervisio-

seus, galerias de arte etc.

que a banalização, nos piores casos, tem levado

nar obras públicas. Aqui, já aparece o atributo

também à vulgarização da atividade curatorial.

da responsabilidade de zelar. É uma noção muito

Mas quando se refere a “curadoria”, o próprio Mi-

O que ajuda a explicar a apropriação é ba-

semelhante às que constam em nossos dicioná-

chaelis retoma os significados médico e jurídico

sicamente uma tentativa de atribuir distinção

rios de língua portuguesa, mas com uma cono-

em detrimento ao emprego no campo artístico.

simbólica a determinadas funções com o obje-

tação endereçada ao campo jurídico, referente

tivo de conferir um caráter enobrecedor à ativi-

à aquele que trata das questões do Direito em

Curadoria

dade daqueles que passam a se valer dos termos.

nome de alguém. Vejamos uma pequena compi-

1 Ato ou efeito de curar.

Afinal, pode sempre parecer mais bacana alguém

lação de exemplos de significados que encontra-

2 (JUR) Cargo, poder, função ou administração de

ser chamado de “curador de menu” em vez de

mos em diferentes dicionários:

curador; curatela.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2017

45

1

2

Se prosseguirmos na aventura histórica das palavras, ainda na Idade Média, já cristianizada, encontraremos a noção de “curatour” como o sacerdote encarregado do cuidado — e cura — das almas. Ou seja, aqui a igreja atribui um papel específico do campo religioso ao que antes, com os romanos, voltava-se ao zelo do bem público. O colecionismo e os museus Os antecedentes de uma atividade curatorial como compreendemos hoje no campo da arte podem ser situados no Renascimento, quando, por volta do século 16, o hábito e a mania pelo colecionismo dão origem aos chamados “gabinetes de curiosidades[2]”. Como se sabe, são acervos que reuniam objetos zoobotânicos adquiridos nas conquistas territoriais, mas também descobertas e resgates de artefatos arqueológicos do passado e relíquias da antiguidade pagã grega, romana e de eras remotas, advindos dos intercâmbios comerciais no contato com povos distantes. Mantidos pela realeza e pela aristocracia, esses gabinetes de curiosidades, também chamados de “quartos das maravilhas”, logo demandaram um encarregado por organizar as coleções com vistas à conservação e à apresentação das peças. Aqui, ressalte-se, ainda em ambientes privados e domésticos, apontando para critérios e interesses baseados conforme um gosto de ordem pessoal. Esse ponto é importante para situar a transição ao momento seguinte, que se dá com a criação dos primeiros museus abertos ao público. Convoquemos novamente a etimologia: “museu” vem do grego “mouseion” e do latim “museum”, significando a ideia de templo das musas, as deusas da memória. Desde a antiguidade, há registros de certo pendor dos povos a guardar relíquias do passado e objetos de culto, mas será de fato com a era das grandes navegações do século 16 e a filosofia iluminista e enciclopedista a partir do século 17 que surgirão os primeiros museus como conhecemos hoje. As coleções reunidas por esses templos da razão e do esclarecimento, voltados a temas como história natural, arqueologia e antropolo-


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2017

46

3

gia, farão com que surja a necessidade de um

nos até a metade do século 20, inclusive no Brasil,

profissional responsável por conservar, orga-

prevalecendo sobre “comisario” (espanhol), “cura-

nizar e apresentar artefatos e documentos. E

tore” (italiano), “Ausstellungsmacher”/“Kurator”

também a comandar a ampliação dos acervos,

(alemão) e até mesmo “curateur” (francês) e

propiciando a elaboração de metodologias que

“curator”/“curatorship” (inglês).

os abordem enquanto campo de conhecimen-

É importante ressaltar que o binômio cura-

to. Essa tarefa de seleção, estudo, salvaguarda

dor/curadoria como se emprega hoje surge da

e comunicação das coleções no ambiente dos

confluência de duas expressões que dizem res-

museus designará uma atividade que oferece os

peito a dois papéis distintos, ainda que comple-

princípios para as pioneiras práticas curatoriais,

mentares: o responsável pelo acervo e o respon-

neste momento ainda mais próximas ao papel

sável pela exposição. E, em ambos os casos, dando

do conservador de acervo.

conta de dois profissionais que se tornam espe-

Os museus de arte surgirão posteriormente,

cialistas pelo saber notório em suas áreas, o que

trazendo as questões que envolvem as coleções

também convoca outra expressão que se difundiu

dos museus científicos. Também terão a mesma

a partir da França, o “connaisseur”, aquele que é

função: educar e ilustrar o público. Um dos prin-

conhecedor, que tem a qualidade de perito.

cipais marcos desse período é o Museu do Louvre, em Paris, institucionalizado em 1793 com a ta-

O artista como curador

refa de exibir publicamente as coleções artísticas

As expressões permanecerão restritas ao ambien-

reunidas pela família real e pela aristocracia. Com

te museológico por algumas décadas, mesmo que

o desenvolvimento da História da Arte enquanto

se verifiquem eventos históricos que bem podem

disciplina, a arte do passado ganha um tratamen-

ser entendidos como antecedentes da curadoria,

to científico que a explica a partir de um esque-

a exemplo de exposições comandadas por artis-

ma temporal fundamentado no desenvolvimento

tas. Basta lembrarmos de Gustave Courbet, quan-

de estilos e gêneros (vem daí a cronologia que

do, em 1855, organizou o Pavilhão do Realismo

começa na arte da antiguidade, passa pela arte

promovendo uma histórica exposição individual

medieval e renascentista e segue com os conhe-

ao mostrar seus trabalhos fora do Salão de Paris.

cidos “ismos” da era moderna). E a compreensão,

Outro momento se deu com o Salão dos Recusa-

o estudo e a difusão do conhecimento artístico

dos (1863), o mesmo no qual a obra Almoço na

enquanto ciência serão tarefa de especialistas em

Relva, de Édouard Manet, causou tremendo es-

por inteferências no ambiente. Na primeira de-

História da Arte. Nesse movimento, o Louvre ofi-

tranhamento e polêmica. E também com a mos-

las, houve, por exemplo, apresentação de perfor-

cializa, em 1826, o que seria o primeiro cargo de

tra independente do Salão em que Claude Monet

mance e uma intervenção no teto com sacos de

curador em museu de arte, mas ainda voltado ao

apresentou Impressão, Nascer do Sol (1872), junto

carvão. Já a segunda se tornou célebre pelo ema-

cuidado das coleções.

a pintores como Pierre-Auguste Renoir, Camille

ranhado de fios brancos que praticamente invia-

Aqui, é válido novamente se ater às palavras.

Pissarro, Paul Cézanne e Edgar Degas, grupo este

bilizavam a circulação do público pelo ambiente,

As expressões empregadas em francês nesse mo-

que após a exposição seria chamado de impres-

ao mesmo tempo em que obliteravam a visão das

mento são “conservateur de musée” e “conserva-

sionista.

obras. É preciso lembrar que até então era ha-

teur du patrimonie”, que dizem respeito ao con-

Algumas décadas mais tarde, Marcel Du-

bitual os quadros de pintura estarem presos à

servador de museu e de patrimônio. É também

champ faria às vezes de curador ao organizar duas

parede e as esculturas serem apresentadas em

no ambiente museológico da França que logo

mostras hoje emblemáticas e que também forne-

pedestais. Outro marco da ideia de artista-como-

surgirá o antecedente do curador de exposições

cem antecedentes para a atividade curatorial: a

-curador, no caso de si mesmo, é a exposição em

como entendemos hoje: o “commissaire de expo-

“Exposição internacional do surrealismo” (1938 )[3],

que Yves Klein apresentou O Vazio (1958) em Pa-

sitions”, encarregado da exposição. Tanto é que a

em Paris, e a mostra “Primeiros documentos do

ris. O artista esvaziou a galeria de qualquer obra,

expressão francesa será o nome dado internacio-

surrealismo” (1942), em Nova York. Em ambas,

mantendo apenas uma cortina que, ao ser aberta

nalmente ao organizador de exposições pelo me-

Duchamp foi o responsável pela montagem e

pelo público, revelava a ousadia logo na entrada.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2017

47

4

A obra era a própria exposição, ou a não exposição.

guagens, materiais, processos criativos e até mes-

maior parte das grandes mostras pelo mundo se

E o gesto envolvendo um modo de apresentação

mo a desmaterialização do objeto artístico. Eram

organizavam em torno de critérios formais, estilís-

conceitual aponta para aspectos que permeiam a

artistas que transitavam nos desdobramentos do

ticos ou cronológicos. Com essas duas exposições,

ação curatorial.

minimalismo e dos conceitualismos, todos hoje

Szeemann não só lançou premissas de autoria e

fundamentais para a História da Arte contempo-

viés conceitual/temático para grandes exposições

O curador independente

rânea, como Carl Andre, Giovanni Anselmo, Joseph

no campo da atividade e do pensamento curato-

É com a arte contemporânea que irá se difundir o

Beuys, Walter de Maria, Hans Haacke, Michael Hei-

rial, como também se projetou ao posto de mais

termo “curador independente” que permanece nos

zer, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Richard Long, Bruce

importante curador independente do sistema ar-

dias de hoje. Atribui-se a expressão às experiências

Nauman, Claes Oldenburg, Richard Serra e Robert

tístico internacional de então.

do suíço Harald Szeemann, notadamente por duas

Smithson. Três anos mais tarde, Szeemann se tor-

exposições suas que são consideradas marcos da

naria célebre ao assinar a curadoria da Documenta

atividade e do pensamento curatorial. Em 1969,

5 de Kassel[4] (1972), que, por ser configurada como

na Kunsthalle de Berna, Szeemann foi responsável

um evento atrelado a uma proposição lançada pelo

pela emblemática “When attitudes become form”,

curador aos artistas, lançou as bases sobre as quais

mostra que se notabilizou por trazer a público

grandes mostras e eventos artísticos se inspirariam

tendências artísticas que enfatizavam novas lin-

a partir dali, a exemplo das bienais. Até então, a

Primeiros documentos do surrealismo, 1942 Marcel Duchamp O vazio, 1959 Yves Klein When attitudes become form, 1969 Szeemann


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2017

48

5

Szeemann ainda delineou a atividade de um profissional que não está ligado ou trabalhando diretamente com uma coleção de museu. Na condição de curador independente, passou a frequentar os ateliês de artistas e, em vez de privilegiar obras já prontas, a estimular a proposição de novos trabalhos, ainda inexistentes. É preciso ressaltar que essa passagem acompanha também as mudanças operadas pelas próprias práticas dos artistas no campo da produção contemporânea. Dito de outro modo, novos entendimentos artísticos, que desafiavam convenções de exposição e apresentação da arte, são acompanhados por uma nova compreensão da atividade curatorial. Ao mesmo tempo, os

sentando-se como um curador que dava espaço e

cem antecedentes para se pensar sobre o papel

museus passavam a valorizar o modelo de exposi-

estímulo para que os artistas criassem novas pro-

do curador e a atividade curatorial em ambientes

ção temporária, dentro de estratégias de comuni-

posições, intervenções, situações e performances,

institucionais.

cação entre instituição e público. E o responsável

todas elas efêmeras. “Do corpo à terra” ficaria mar-

A Bienal de SP seguiria pautando a discus-

por elas, muitas vezes um curador independente

cada por duas das mais contundentes manifesta-

são sobre o papel do curador no Brasil, agora com

convidado, começou a assumir importância fun-

ções assumidamente políticas por parte dos artis-

alta carga polêmica. Em 1985, a crítica Sheila

damental nesses processos de mediação.

tas visuais em tempos de ditadura militar no Brasil:

Leirner assumiu a curadoria e realizou uma edi-

Mesmo com o pioneirismo, o saldo das ini-

a intervenção Trouxas Ensanguentadas, de Artur

ção que ficou conhecida como a “Grande tela”[5].

ciativas de Szeemann não foi tão harmônico, pois

Barrio, e a ação Tiradentes: totem-monumento ao

O motivo foi o modo de apresentar um extenso

muitos acusaram-no e a seus seguidores dali em

preso político, de Cildo Meireles. Morais também

conjunto de pinturas ao longo de três corredores

diante de serem impositivos, por demais autorais,

sinalizou o crítico que toma para si o engajamen-

de cem metros de extensão, praticamente cola-

a ponto de rivalizarem com as obras e os artistas.

to junto aos artistas e passa para a ação: no texto

das lado a lado, embaralhando noções de autoria,

Questões que estimulam inflamados debates até

mimeografado e distribuído no evento, ele lançou

procedência e geração. Foi um gesto de curadoria

hoje sobre o poder e a autoridade do curador.

a expressão “arte de guerrilha”.

radical enquanto crítica, pois o argumento cura-

No Brasil, o termo curadoria se difundiu de

torial se articulava a serviço de um comentário

Curadoria no Brasil

fato somente a partir dos anos 1980, quando

sobre a profusão, à época, de uma pintura de viés

No mesmo período em que Szeemann apontava

Walter Zanini assumiu as edições da Bienal de São

expressionista que, na visão da curadora, seguia

para novos entendimentos sobre curadoria, no

Paulo de 1981 e 83 na condição de curador-geral.

o rastro internacional da transvanguarda italiana

Brasil também surgiam experiências pioneiras, ain-

Até então, o responsável era chamado de diretor

e do neoexpressionismo alemão com intenções e

da que seus responsáveis não fossem chamados de

artístico, quando não era o próprio presidente

consequências mercadológicas. Muitos artistas

curadores. Foi o caso de Frederico Morais em suas

assessorado por especialistas e jurados. Como

participantes protestaram em desagrado, apon-

ações no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de

curador da Bienal, Zanini desmontou o esquema

tando o caráter impositivo da curadoria, e alguns

Janeiro e quando organizou, em Belo Horizonte, a

de apresentação das obras em espaços separados

chegaram a pedir a retirada de suas obras. A dis-

mostra “Do corpo à terra” (1970). Na condição de

conforme as representações de cada país, pas-

cussão sobre o poder dos curadores frente aos

responsável pelo evento expositivo, convidou di-

sando a agrupá-las pelo critério conceitual/te-

artistas avançaria nas décadas seguintes, virando

versos artistas a apresentarem trabalhos no espaço

mático de “analogia de linguagens”. A trajetória

o milênio.

público. Como crítico e agitador cultural, Morais já

pregressa do professor, crítico e historiador como

Um aspecto importante colocado pela Bie-

havia organizado diversas mostras e escrito textos

diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC)

nal da “Grande tela” foi a relação entre discurso

que são manifestos das vanguardas brasileiras dos

da Universidade de São Paulo (USP) entre 1963 e

crítico, projeto curatorial e expografia. Ou seja,

anos 1960 e de uma virada da arte contemporânea

78, quando estimulou e deu espaço à pesquisa de

de uma argumentação crítico-teórica articulada

no Brasil. Mas foi em “Do corpo à terra” que ele

novas práticas e linguagens artísticas e a reno-

ao manejo de obras e ao modo como são apre-

radicalizou os modelos expositivos no país, apre-

vados modelos de apresentação, também ofere-

sentadas no espaço de exposição. Essa tarefa


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2017

49

6

7

Trouxas ensanguentadas[6], Artur Barrio

Álvaro Siza, projeto pelo qual ganhou o Leão de

ículos de comunicação ou para a universidade ou

Tiradentes: totem-monumento ao preso Político[7], Cildo Meireles

Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, passaram

para as instituições artísticas. Neste último caso,

a ser convidados curadores externos à instituição

encontrando espaço nas curadorias.

para propor mostras sobre Iberê Camargo e outros

Ao mesmo tempo, há uma complexificação

artistas. Começaram a atuar nas duas instituições

do pensamento curatorial que leva a atividade

curadores vindos de fora, destacadamente de São

ao divã. Talvez os melhores exemplos de projetos

Paulo e Rio de Janeiro, logo passando a nomes do

curatoriais hoje sejam os que colocam em discus-

cenário internacional. Houve momentos em que

são os seus próprios modelos e as circunstâncias

os mesmos curadores transitaram entre a Bienal

em que são realizados, preferindo propor a incer-

do Mercosul e a Fundação Iberê Camargo, como

teza da abertura de uma experiência em lugar do

foram os casos de Gabriel Pérez-Barreiro, José

fechamento em torno da defesa de uma tese. São

Roca e Luis Pérez-Oramas. Em relação à atividade

muitos os exemplos, e quase todos passam pelo

curatorial do Rio Grande do Sul, também deve ser

entendimento de que o papel de um curador e a

intelectual e criativa, que alia aspectos técnicos

destacada a atuação do Santander Cultural com

missão de um projeto curatorial estão para além

e simbólicos, acompanha os desdobramentos da

seu programa expositivo.

de uma exposição bem acabada acompanhada de

A circulação de curadores internacionais

texto crítico. Nesse sentido, têm surgido iniciati-

Seria também na Bienal de SP que se irradia-

aponta para a centralidade que a figura passa a

vas que se aliam à chamada virada educacional e

ria a vitalidade de um projeto curatorial que parte

exercer no sistema artístico globalizado. Passando

social da arte, priorizando projetos interdiscipli-

de uma concepção que extrapola as narrativas es-

de um projeto a outro, entre diferentes institui-

nares que se desenvolvem por meio de progra-

tabelecidas da História da Arte como modo pos-

ções, muitos dos profissionais se transformam em

mas e plataformas. Um marco foi a 6ª Bienal do

sível de oferecer uma diferenciada leitura sobre a

grife por conta da influência e da rede de contatos

Mercosul (2007).

arte. Foi o caso da edição de 1998, em que Paulo

que desenvolvem, emprestando assinatura, prestí-

Para ser curador, não é preciso formação,

Herkenhoff se valeu da noção de antropofagia, de

gio e legitimação às iniciativas a que se associam

mas é certamente necessário que se tenha conhe-

Oswald de Andrade, como mote conceitual para se

temporariamente. Um dos maiores exemplos de

cimentos em teoria, crítica, História da Arte, mu-

pensar a condição e a produção artística a partir de

um curador que se tornou superstar é o suíço Hans

seologia, expografia e gestão. E também aptidões

uma matriz genuinamente brasileira, desatrelada

Ulrich Obrist, dado o alto poder de circulação e in-

para liderar e trabalhar em equipe em contextos

de modismos e tendências internacionais. E aqui

fluência que detém.

institucionais. Mas, acima de tudo, é preciso co-

atividade curatorial no mundo todo.

deve ser ressaltada a potencialidade que a curado-

Há ainda que se alertar para os perigos das

nhecer e entender a arte como esfera do sensível

ria reserva enquanto pesquisa e atitude reflexiva

exposições curatoriais do tipo blockbuster, que

com repercussão e implicações reais. Trata-se do

que questiona cânones e estimula um renovado

mais parecem ter como compromisso índices de

entendimento de que o curador deve se posicionar

debate e uma nova experiência com a arte. Afinal,

audiências que fornecem dados que atendem a

criticamente na contemporaneidade, convocando

o curador enquanto crítico lida diretamente junto

estratégias de marketing. Outro aspecto que muito

a curadoria como um dispositivo que colabora a se

às obras com as quais articula um discurso que se

se discute é que o chamado curador independente

pensar e intervir na dimensão complexa com que

dá não só no texto, mas também no espaço.

não é tão independente assim, pois está a serviço

a realidade se apresenta, produzindo novas experi-

de um projeto e uma instituição atendendo a fi-

ências e formas de encontro, afeto e conhecimento

O curador e o sistema da arte

nalidades e intenções. Uma vez que está a “serviço

— tanto do meio da arte quanto do campo social-

No Rio Grande do Sul, a figura do curador começou

de e para algo”, seria melhor chamá-lo de “curador

-político. Em lugar dos modelos e das convicções,

a ser de fato difundida pela mesma época, com a

freelancer”. Também por essa questão são feitas di-

apostar nas hipóteses e nos possíveis, não sem o

primeira edição da Bienal do Mercosul (1997), que

ferenciações entre as atividades do curador e a do

risco de se adentrar no desconhecido. Talvez esse

destacou Frederico Morais como curador. As edi-

crítico, pois este último estaria “mais distanciado”

seja um papel conscientemente crítico que o cura-

ções seguintes teriam outros responsáveis à frente,

das instituições e “menos comprometido” com suas

dor possa tomar para si diante da atividade curato-

mas sempre nomeados como curadores. A Funda-

estratégias. As aspas aqui, contudo, são necessárias,

rial. E também um modo de oferecer uma resposta

ção Iberê Camargo também reforçou o investi-

dadas as condições de elaboração e circulação do

à banalização e ao empobrecimento em curso dos

mento na atividade e no profissional. Com a aber-

discurso crítico na contemporaneidade. Ademais, a

termos “curador” e “curadoria”.

tura em 2008 do prédio assinado pelo português

atividade crítica há tempos vem migrando dos ve-


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

POR Henrique Rodrigues,

50

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1975. É especialista em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestre e doutor em Letras pela PUC-Rio. Trabalha na gestão de projetos literários no Sesc Nacional. Participou de várias antologias literárias e é autor de 12 livros, entre os quais o romance O Próximo da Fila (Record). www.henriquerodrigues.net

Os prêmios e o feijão com arroz literário Na ausência de políticas consistentes de leitura no país, quem afinal lê os nossos escritores premiados?

Na última cerimônia de entrega do Prêmio São

muito aquém do que escrevem. Mas isso é um de-

Paulo de Literatura, o escritor Marcelo Maluf, ao

bate para outro momento. Ou talvez nem mereça.

ser anunciado vencedor na categoria estreantes

O que Maluf trouxe de diferente foi, em ple-

acima de 40 anos pelo livro A Imensidão Íntima

na celebração por um feito à primeira vista indi-

dos Carneiros, me surpreendeu. Dedicou sua vi-

vidual, ter oferecido a premiação ao coletivo, ao

tória “aos professores, bibliotecários, mediadores

universo fora do umbigo, às figuras invisíveis que

de leitura e a todos que trabalham pela constru-

contribuem, com todas as dificuldades, para que

ção do pensamento crítico, pela compreensão da

se forme o leitor literário num país com índices

diversidade, da liberdade e da sensibilidade, aos

tão vergonhosos.

seres humanos que têm fome e sede de fabulação e do saber”.

Quando o vi recebendo a premiação, falando para uma plateia na qual o governador Geraldo

A surpresa veio pelo fato de que o belo ro-

Alckmin figurava na primeira fila, e que logo em

mance tem pitadas da – muitas vezes erronea-

seguida a Beatriz Bracher iria anunciar o prêmio

mente criticada – autoficção: o autor mergulhou

principal, não pude deixar de enxergar como um

nos seus antepassados árabes para construir uma

ato de ousadia e transgressão. Sob os flashes de

bela narrativa lírica. Há quem critique esse recur-

um dos principais prêmios literários na maior ca-

so de escrita, muitas vezes associando a figura do

pital do país, o jovem (ou seminovo, como digo

escritor que usa algum elemento da própria vida

sobre nós que beiramos os 40) autor não nos

como elemento de fabulação a um ególatra in-

deixou esquecer do que é realmente importante:

veterado. Não que eles inexistam, pelo contrário.

a leitura e os leitores.

São muitos os casos, na cena cultural e midiática

Por um tempo voltei para pouco mais de um

brasileira, de personas literárias cuja imagem fica

mês, na Bienal do Livro de São Paulo. Participava


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

51

de um debate sobre a importância dos prêmios

E também não se deve esperar que os escri-

literários e a sua participação na formação de

tores sejam performers do palco. Vale lembrar o

leitores. Havia representantes do Jabuti, Oceanos,

caso do escritor Rafael Gallo, que também venceu

do próprio Prêmio São Paulo e eu sobre o Prê-

o Prêmio São Paulo na categoria estreante com

mio Sesc. Do lado de fora da sala onde falávamos,

menos de 40 anos com o romance Rebentar. De-

uma multidão gritava para ouvir – e tirar selfies

pois de conversar com leitores numa Bienal, rece-

– um youtuber, e por vezes nosso debate teve de

beu um bilhete no qual era sugerido que fizesse

ser interrompido até que o barulho diminuísse.

mais stand up, provavelmente porque sua fala

Mas na hora lancei para os colegas de mesa umas

não era circense como se esperava.

perguntas que até agora me instigam: por que há

Daí a importância também dos modelos de

uma distância tão grande entre os dois mundos?

divulgação, esse assunto que também é um nó.

Como fazer para que esses jovens interessados

As editoras investem pouquíssimo para divulgar

pelo objeto livro, que vêm lotando esses eventos

as obras nacionais que não tenham grande po-

de grande porte, possam conhecer os autores que

tencial de venda. Há muito vigora uma linha de

descobrimos e celebramos nos prêmios literários?

pensamento segundo a qual o lucro advindo dos

Algumas respostas simples poderiam surgir.

best-sellers é que torna viável a publicação dos

Inclusive uma primeira, mais simples: está bem

livros que vendem menos. Essa regra coloca os

assim, porque se tratam de dois extremos incom-

autores brasileiros num status de resignação co-

patíveis com a “alta literatura” premiada sendo

tista, como se fosse um grande favor ter o seu

complexa demais para ser lida pela choldra, que

livro publicado. Quando o título é premiado, pode

segue as leis do mercado em busca dos livros da

no máximo voltar às livrarias com uma tarja de

moda – e, no caso, a bola da vez são os youtu-

vencedor, mas por pouco tempo, já que a fila das

bers. Esse pensamento, além de preconceituoso,

gôndolas anda rápido e os best-sellers estão es-

seria frívolo demais para quem já lidou tanto com

perando.

soas os leriam nos transportes públicos e exem-

livros de premiados quanto com os jovens que

Por outro lado, não podemos nos esquecer

plares permaneceriam nas vitrines das livrarias

estão lendo mais hoje. Ser um leitor fã de deter-

das campanhas de formação de leitores. Ainda

durante longo período. E não é o “mercado” que

minado tipo de livro não significa que o indivíduo

que existam muitos projetos de pequeno e alguns

vai mudar essa situação.

seja fechado para novas ideias e formatos. Pelo

de médio porte de norte a sul, não há hoje no

Por isso vale repetir a dedicatória de Mar-

contrário, tenho participado de muitos eventos

país uma grande política de leitura em execução.

celo Maluf. Paralelamente aos grandes prêmios

literários com jovens e o que percebo é um desejo

Educação e leitura são palavras muito bonitas em

e eventos literários, precisamos olhar seriamente

grande por novas leituras. Em muitas ocasiões,

campanhas políticas, mas remodelar o formato

para o trabalho cotidiano da formação de leito-

basta um papo com grupos de leitores para que

do ensino de literatura e instituir o livro como um

res, o feijão com arroz que possa dar sustância

nossas certezas sejam revistas e atualizadas.

bem cultural desejável no âmbito familiar é tarefa

na formação de consumidores de cultura livresca.

Outra resposta seria pela aproximação dos

para muitos anos. E o resultado, depois de grande

São ações regulares, sistemáticas e pouco visíveis

autores premiados com o público em bate-papos.

investimento e trabalho, começaria a ser perce-

que, aplicadas em escala, podem fazer a necessá-

Bem, essa etapa é cumprida de certo modo pela

bido em mais tempo do que dura um mandato

ria ponte entre os grandes livros e os potenciais

maioria dos prêmios. O São Paulo, Oceanos e Sesc

de governo. Seria fundamental a implantação de

leitores deles.

promovem encontros dos seus finalistas ou pre-

política de Estado, que se sustentasse em todos

miados, sendo que o último os leva para diversas

os governos, ou apesar deles.

atividades literárias em diversos lugares do país.

Com esse quadro, vivemos um boom lite-

Mas ainda assim isso não significa que os encon-

rário no Brasil, de qualidade e quantidade, cuja

tros se revertam em leitura efetiva. Em muitos

explosão tem alcance ainda muito restrito. Num

casos o público quer apenas saber sobre a rotina

mundo perfeito, os livros vencedores de prêmios

do escritor e seus “processos criativos”, ou apenas

literários, pela divulgação que recebem, entrariam

tirar fotos. E quase não compra os livros.

rapidamente para as listas de mais vendidos. Pes-


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

52

Por Priscila Pasko, Jornalista, escritora e editora do blog Veredas Texto originalmente publicado no blog Veredas, do site Nonada, e financiada por seus leitores (nonada.com.br/veredas) Agradeço o apoio, os esclarecimentos de todos os entrevistados e aqueles que, de alguma forma, me auxiliaram na produção desta matéria: as pistas e conversas apontadas por vocês foram fundamentais. Fernanda Oliveira, Camila Petró, Matheus Marçal, Jeferson Tenório, Alfeu Sparemberger, Vitor Diel, Nonada (Rafael Gloria e Thaís Seganfredo), muito obrigada.

Por que não conhecemos as escritoras negras gaúchas?


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

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Quem são as escritoras negras gaúchas?

Optei por fazer um recorte sucinto, buscando

blicações próprias, tendo em vista as dificuldades

A pergunta foi feita durante meses por

informações na tentativa de traçar um panora-

financeiras, como é o caso da maioria das acadê-

mim a dezenas de pessoas do circuito li-

ma das escritoras publicadas ou reconhecidas

micas da ALFRS. “Para buscar [informações sobre

terário e acadêmico do Rio Grande do Sul.

a partir dos anos 1980. Ainda que tenha sido a

escritoras negras gaúchas], só indo muito a sebos

Como resposta, quase sempre, enxergava

minha intenção inicial, não foi possível resgatar

e buscando por manuscritos, talvez. Não é sempre

uma expressão reticente da interlocutora

toda a trajetória das autoras negras do Estado.

que encontramos uma Carolina [Maria] de Jesus

ou do interlocutor. Percebi com espan-

Justamente porque não encontrei especialistas

[1914-1977] por aí, com livros publicados de ma-

to – e certa dose de ingenuidade – que a

que pudessem traçar um panorama da escrita

neira formal”, diz Camila, explicando que outras

pergunta correta a ser feita era por que

das primeiras mulheres negras na história da

fontes viáveis de consultas são revistas, jornais,

não conhecemos as escritoras negras

literatura gaúcha. Contatei pessoas ligadas às

“coisas soltas e esparsas”.

gaúchas?

áreas de Letras e História, e os dados são quase inexistentes.

Taiasmin Ohnmacht, Ana dos Santos e Lilian Rocha Foto: Maia Rubim | Nonada

É difícil encontrar até mesmo reportagens na internet a respeito das autoras negras gaúchas

Foram inúmeras as consultas que fiz à mes-

e as suas obras, o que certamente indica certo

tra em História (UFRGS) Camila Petró, que já pes-

descaso ou desconhecimento da mídia e crítica.

quisou sobre a Academia Literária Feminina do

As informações que localizei constavam em blogs

RS (ALFRS). Segundo ela, a dificuldade em se lo-

pessoais ou então naqueles pertencentes a movi-

calizar escritoras negras está na ausência de pu-

mentos negros.


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

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A poeta Lilian Rocha foi a primeira entrevis-

ção à escravidão. “Mas poesia negra não é só isso.

estreou o seu primeiro livro, Flor (2009). Ela tam-

tada com quem me encontrei. Ela pontuou que

Existem outras que não são contestatórias e que,

bém participou de diversas antologias – a mais

existem, sim, muitas mulheres negras escreven-

por isso, muitas vezes deixam de ser reconhecidas

recente delas é Sopapo Poético: pretessência (Li-

do; no entanto, um dos motivos de parte delas

como poesia negra”, adverte Eliane. “Que espaço

bretos, 2016).

não publicar está no bolso. “A questão da publi-

terão os negros que não se encaixam neste perfil

Lilian Rocha destaca que a temática da poe-

cação – não só das mulheres negras, mas princi-

da categoria de poesia em geral e na própria poesia

sia negra trata sobre o que é ser mulher, e mulher

palmente – delibera dinheiro, o que muitas vezes

negra?”, pergunta-se Eliane.

negra, das dificuldades no trabalho, do compa-

essas escritoras não possuem”, explica.

Para a poeta e professora de Literatura Brasi-

nheiro que a abandona sozinha com os filhos,

Sendo assim, a divulgação do trabalho das

leira na rede pública estadual Ana dos Santos, ain-

restando a ela o papel de provedora da família.

poetas concentra-se na oralidade, ou seja, em

da se faz necessário ressaltar a cor de quem escre-

“Mas claro que a poesia fala sobre outros aspec-

espaços culturais e em eventos nos quais as mu-

ve. “Se tu olhares o cânone literário, vais enxergar

tos. O amor está muito presente na escrita das

lheres negras produzem. “A maioria não tem nada

apenas escritoras brancas. A Clarice Lispector é

mulheres negras. Negro também ama”, brinca,

publicado. Guarda em seu caderninho, em sua

escritora, mas a Veralinda Menezes é uma escri-

mencionando outros assuntos tratados pelas po-

agenda, exibe em clubes sociais negros”, comenta

tora negra”, fala Ana. “Eu preciso dizer que ela é

etas, como o cabelo e a beleza da mulher negra,

Lilian, que participa ativamente do Sopapo Poé-

negra porque esta palavra sempre foi ligada a uma

a sua ancestralidade, a religiosidade, as crenças, a

tico – Ponto Negro da Poesia, sarau promovido

questão negativa, pejorativa que a gente precisa

cultura, o erotismo e o preconceito racial.

mensalmente em Porto Alegre. Além de integrar

ressignificar, trocar de lugar”. Conforme a profes-

diversas antologias, Lilian publicou A Vida Pul-

sora, a cor precisa ser enfatizada “para que um dia

AS PORTAS TOMBADAS DA ACADEMIA

sa (Editora Alternativa, 2013) e Negra Soul (Edi-

ela não precise mais ser usada e que se possa dizer

Bem se sabe que, durante séculos, a literatura foi

tora Alternativa, 2016).

‘Veralinda é uma escritora brasileira’”.

um espaço de tradição e dominação masculina,

Mesmo que a escritora consiga lançar um

Entre os concursos nos quais Ana foi pre-

reflexos que são sentidos até hoje. No caso da

livro, encontrará outros entraves. Lilian diz que,

miada como poeta, está o Ministério da Poesia

mulher negra, além do gênero, ela enfrenta outro

para vender, é preciso que a obra esteja disponível

– World Art Friends (Porto, Portugal), no qual

preconceito, o de raça e, por vezes, o de classe.

em uma livraria – considerando que não são todas que manifestam interesse na literatura de autoria negra. “E, se tiver, geralmente [o livro] está lá atrás. O vendedor nem sabe onde é a prateleira da literatura negra ou se existe aquele escritor. Até conseguimos escrever, mas como vender a obra?”, indaga Lilian. Quando perguntei à poeta Eliane Marques sobre a produção das escritoras negras gaúchas, ela me devolveu outros questionamentos, como “o que os complementos mulher e negra acrescentam à poesia? Para que os textos sejam aceitos é necessário este acréscimo? Será que nós estamos sendo lidas ou procuradas por uma curiosidade e não por um valor que poderíamos acrescentar e trazer à literatura?”. Essas foram as reflexões lançadas por Eliane, vencedora na categoria Poesia do Prêmio Açorianos de Literatura 2016, com o livro e se alguém o pano (Escola de poesia, 2016). A poeta lembra que, normalmente, é dito que a poesia negra cobra os direitos de seu povo e o pagamento de uma dívida histórica em rela-


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

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Poeta Eliane Marques venceu o Prêmio Açorianos de Literatura Foto: Lidiane Bach, Nonada

Livros publicados por autoras negras Fotos: Divulgação

Faz sentido, portanto, que tal contexto influencie

brasileiras ou estrangeiras. O que não consegui

“Não é nenhuma crítica à academia, mas ao fato

diretamente na produção literária de mulheres

identificar foi um número significativo de pesqui-

de sermos promotoras da nossa própria posição

negras, não apenas no Rio Grande do Sul, como

sas e pessoas dedicadas a investigar as autoras

na sociedade. Não vou ficar dizendo ‘ah, não sou

no Brasil inteiro.

negras gaúchas e suas particularidades.

recebida na academia’. Nós precisamos saber em

A escritora, pesquisadora e coordenadora de

Para a professora de Comunicação Da-

quais lugares queremos entrar. Parece que a mu-

fomento às Ações Inclusivas do IFSUl (Instituto

niela Santos, que também atua no projeto de

lher negra fica numa posição passiva de esperar

Federal Sul-Rio-Grandense/Pelotas), Olga Perei-

extensão Aruanda, da Feevale, ainda há pouca

que seja reconhecida”, adverte Eliane. Ela destaca

ra, explica que o período escravagista no Brasil

representatividade da população negra no con-

que é possível construir os próprios espaços e que

“proliferou o vírus perverso” da depreciação do

texto acadêmico e, consequentemente, poucos

a mulher negra seja protagonista da sua própria

negro e de sua intelectualidade. Com quatro li-

trabalhos produzidos sobre a literatura criada

história. “Não vamos esperar que nos abram as

vros publicados, entre eles Cicatrizes da Escra-

por ela. Segundo a professora, enquanto a pre-

portas. Iremos abri-las; e, se necessário, arrombá-

vidão: da história ao silenciamento (Um2, 2015)

sença da raça negra na universidade for tímida,

-las”, conclui.

e Reinterpretando Silêncios: reflexões sobre a

dificilmente serão apresentados estudos acerca

Sendo legitimada ou não, o fato é que a

docência negra na cidade de Pelotas (Nandyala,

da realidade dessa população, que inclui a litera-

literatura negro-brasileira (termo cunhado pelo

2015), Olga diz que reconhecer a ausência de re-

tura. Daniela esclarece que os frutos da política

escritor e pesquisador Cuti) como um todo se-

ferenciais escritos por mãos negras é admitir o

de cotas demorarão algum tempo para serem

gue um caminho à parte do universo acadêmi-

racismo como fator preponderante de negação

colhidos, já que se trata de uma década frente a

co. Ações promovidas por bibliotecas públicas ou

da intelectualidade desses sujeitos. “Em se tratan-

500 anos de história.

comunitárias, seminários, livrarias mais plurais,

do da mulher negra, velhos pré-conceitos equivo-

Contudo, Daniela não acredita que o escas-

projetos de resgate ou de promoção de autoras

cados tendem a se duplicar com velocidade, uma

so debate da escrita de autoria negra deva-se à

negras multiplicam-se pelo Brasil. “Penso que é

vez que a cor da pele, historicamente conceituada

simples falta de interesse em estudar esses au-

fundamental contar com obras de escritoras ne-

pela erotização, relega a intelectualidade dessas

tores e autoras. O interesse sequer é possibilita-

gras em nossas livrarias e bibliotecas”, diz Márcia

mulheres e, como consequência, suas produções

do, em função da hegemonia cultural. “Uma vez

Cavalcante, professora e fundadora da ONG Ci-

literárias”, pontua.

que a produção acadêmica e cultural ainda tem

randar, que atua no fortalecimento de bibliotecas

Enquanto a reportagem era produzida,

como referência e como enunciador legítimo o

comunitárias em Porto Alegre e outras cidades do

18 universidades/instituições foram contatadas.

homem heterossexual branco de classe média,

RS. “Primeiramente porque temos boa literatura,

Solicitei a indicação de nomes de pesquisadores

as vozes de outros grupos sociais seguem sendo

de muita qualidade e que não são conhecidas,

que pudessem comentar a respeito da escrita

tidas como dissonantes, logo, são abafadas”, ex-

pois não há interesse ou esforço em reconhecê-

produzida por autoras negras gaúchas. Daque-

plica a professora.

-las como importantes. Segundo, porque quando

las que retornaram, apenas cinco apontaram um

De outro lado, Eliane Marques pensa que

isso não acontece revela uma grande falha em

nome – nenhum deles pertencente à faculdade

a mulher negra deve se questionar sobre os lu-

relação à equidade de nossa cultura, história e

de Letras da universidade em questão. Isso não

gares que quer ocupar. A poeta diz que não é

arte brasileira.”

revela, entretanto, que não estejam sendo apre-

pelo fato de ser “a academia” que deseja se in-

A cidade de São Paulo conta com uma

sentados trabalhos a respeito de escritoras negras

serir ou ser reconhecida como tal nesse espaço.

iniciativa bastante focada: a Livraria Africani-


literatura

primeiro SEMESTRE

2017

56

dades, espaço que dialoga com matrizes afro-

ce? E quando consegue, como se inserir em um

sidero revolucionário dentro da literatura juvenil

-brasileiras e feministas. A proprietária, Ketty

mercado editorial majoritariamente masculino

afro-brasileira, por quebrar o padrão das prince-

Valêncio, enfatiza: “quem não é visto não é lem-

heterossexual branco de classe média, tanto na

sas”, explica Ana. Ela se refere ao livro Princesa

brado” e, para ela, quem aponta este holofote é

concepção das obras legitimadas quanto no ge-

Violeta, lançado em 2008, que conta a história de

a academia. Porém, ressalta Ketty, para muitos,

renciamento das editoras? Difícil.”

uma princesa que sofre ao descobrir que seu pai

fazer parte deste universo não é importante.

Taiasmin Ohnmacht, psicóloga e escritora,

preferia ter um filho homem. Então, com ajuda de

“Felizmente, a literatura afro-brasileira sempre

concorda com Daniela. “É um bom apontamento,

um apaixonado, ela se prepara, transformando-se

sobreviveu por meio do boca a boca, da militân-

mas talvez não seja o único. O mundo dos ro-

em uma guerreira. A primeira edição foi indepen-

cia e de uma mídia independente que ajuda a

mancistas é bem masculino, mesmo que a gente

dente; a segunda e terceira foram lançadas pela

divulgar, mas, mesmo assim, algumas obras so-

tenha alguns nomes femininos”. Profissional libe-

Editora dos Príncipes Negros, que também publi-

frem injustamente o apagamento pela história”,

ral, Taiasmin trabalha em seu consultório. Mãe de

cou outra obra de Veralinda, Lilinda, Minha Amiga

pondera. Ketty conta ainda que, ao participar de

dois filhos e casada, diz que produzir não é tarefa

Rosinha (2009).

um evento como expositora, realiza um trabalho

fácil. Acorda às 6h para escrever. “Sentar para es-

A poeta Lilian Rocha menciona o nome da

de abordagem. Precisa apresentar as obras e fa-

crever é uma loucura. E olha que minha rotina de

romancista e também poeta Maria do Carmo dos

lar um pouco sobre a biografia de cada escritor.

horários é superflexível. É uma criança pedindo

Santos, natural de Cruz Alta (RS) e que atualmente

“É notável o desconhecimento desses escritos.

colo, é outra procurando algo que não encontra.

reside em Florianópolis (SC). Tem em seu currículo

Algumas obras literárias enegrecidas são ven-

Preciso dizer ‘agora não, estou escrevendo’”.

o livro de poesia Coisa de Negro (1988), o infantil

didas em grandes livrarias, mas o seu acervo

A autora criou a sua primeira poesia aos dez

O Sonho de Benedito (2003) e, com sua filha Dan-

eurocêntrico as engolem. No entanto, o público

anos de idade. Mas foi quando Taiasmin começou

dara Yemisi dos Santos, o romance Século XIX,

cativo de literatura afro-brasileira e feminista

a se interessar de fato pela escrita literária que ela

Uma história recuperada, este lançado em 2012.

consegue resgatá-la”.

optou pela prosa. “Eu não produzo poesia para ser literatura. Por outro lado, eu faço esta busca na

...

POR ONDE ANDA A PROSA NEGRA GAÚCHA?

prosa”, diz. Em 2012, Taiasmin publicou três con-

Durante os meses em que produzi esta reporta-

tos em uma coletânea, resultado de uma oficina

A proposta desta reportagem, em sua ori-

gem, todas as escritoras negras com quem con-

literária com o escritor Alcy Cheuiche. Em 2016,

gem, era bastante simples e objetiva: falar sobre

versei eram poetas. Foi então que, de imediato,

em parceria com Carlos Alberto Soares, lançou

as escritoras contemporâneas negras gaúchas.

surgiu outra dúvida: quem são e onde estão as

o livro Ela Conta, ele Canta (Cidadela, 2016), no

Contudo, infelizmente, em se tratando de mulhe-

prosadoras negras gaúchas? Elas existem, porém

qual ela escreveu contos, e Soares, os poemas. No

res escritoras – e escritoras negras – quase nada

são raras – não apenas no Rio Grande do Sul – e

momento, Taiasmin está trabalhando no projeto

se mostra tão revelador, justamente porque du-

praticamente desconhecidas do mercado edito-

de seu primeiro romance.

rante muito tempo o cânone literário tentou es-

Foi a poeta e professora Ana dos Santos

conder seus nomes, suas obras, seu talento e sua

Daniela Santos da Silva, do Projeto Aruanda,

quem me apresentou algumas prosadoras negras

história. Posso encerrar a reportagem sem muitas

da Feevale, diz que não há como pensar a pro-

gaúchas – resultado de uma pesquisa empírica

respostas, mas, ao menos, já sei quais perguntas

dução artística da mulher negra sem considerar

e intensa que ela fez. Uma delas é Maria Hele-

devem ser feitas.

a sua trajetória histórica e as suas condições de

na Vargas da Silveira (1940-2009), romancista,

existência na sociedade atual. A herança escravo-

contista, cronista e poeta, natural da cidade de

crata, explica, é evidente no trabalho doméstico,

Pelotas, no Sul do Estado. A autora, que também

especificamente: a maioria das empregadas do-

foi educadora e ativista da valorização da cultu-

mésticas brasileiras é negra e, dentre essas pro-

ra negra, denuncia em suas obras o preconceito

fissionais, as brancas recebem um salário quase

racial. Maria Helena publicou cerca de 12 títulos,

rial, da crítica e da academia.

20% maior. Além disso, Daniela esclarece que grande parte das mulheres negras é chefe de família, cui-

entre eles É Fogo (1987), O Sol de Fevereiro (1991), Negrada (1994), As Filhas das Lavadeiras (2002) e Helena do Sul (2007).

da e sustenta sozinha os filhos. “Que condições

Veralinda Menezes foi outra escritora citada

tem esse sujeito de sentar e produzir um roman-

por Ana. “Veralinda escreveu um livro que eu con-

_ Durante as conversas, as entrevistadas citaram nomes de poetas negras gaúchas, como Delma Gonçalves, Isabete Fagundes Almeida, Fátima Farias e Pâmela Amaro. _ A historiadora Camila Petró concedeu as imagens do Cadernos literários 6 (Edição Caravela), publicado em 1982, pelo do Instituto Cultural Português. Ali constam poemas da poeta Alsina Alves de Lima. São mencionadas outras três escritoras negras (poetas e cronistas) no Cadernos Literários 19 – Poetas Negros do Brasil, uma homenagem do Departamento de Assuntos Africanos-Instituto Cultural Português, de Porto Alegre, publicado em julho de 1983. Nele, poemas de Gloria Terra (1962), Mirna Rodrigues Pereira (1955) e Naiara Rodrigues Silveira (1969).


literatura LEITURA

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2017

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LINHA M

A VIDA DAS SOBRAS

SUBMISSÃO

CIVILIZAÇÃO

Patti Smith

Carlos Caramez

Michel Houellebecq

Niall Ferguson

Companhia das Letras

Editora Leitura XXI

Alfaguara/Objetiva

Crítica/Planeta

Linha M é um movimento

Curtos, vigorosos, proféticos.

Lançado em 2015, mas

Para entender o domínio

constante entre o passado e o

Inquietantes e marginais, os poemas

ambientado na França de

ocidental. No século 15, as

presente de Patti Smith, que

falam das sobras, do que aí está a

2022, o livro acompanha as

civilizações do Oriente dominavam

amadurece o inebriante espírito

nos dilacerar num “país sem pátria”.

transformações na vida de um

o mundo. A China Ming se

jovem de Só Garotos (2010).

Imprescindíveis em tempos de

professor universitário após

desenvolvia e os otomanos

Recordações da vida com Fred

desmanche, falam de uma geração

um acirrado segundo turno

tomavam Constantinopla.

Sonic Smith, viagens inusitadas

que sonhou, se desesperou, lutou para

nas eleições presidenciais, que

A Europa Ocidental era só miséria

da Guiana Francesa ao Japão,

voltar a sonhar, e vê a desesperança

têm por desfecho a vitória de

e pragas. Nações como Inglaterra,

obsessões literárias, perdas

minar o sonho. O que sobrou? A leitura,

Mohammed Ben Abbes, candidato

França e Portugal tentavam

dilacerantes, faíscas de novos

aos sobressaltos, vai sinalizando.

da Fraternidade Muçulmana.

reverter o quadro com ações

planos e a melancolia do presente

É preciso resistir, mesmo com o pouco

O polêmico escritor francês,

colonizadoras. O historiador

solitário em Nova York constroem

que sobrou. O livro A Vida das Sobras,

que se posiciona publicamente

escocês Niall Ferguson com

uma poderosa atmosfera sensível

que o poeta Carlos Caramez, jornalista

à direita no espectro político,

Civilização – Ocidente x Oriente

em Linha M. Intercalada por

e produtor cultural, acaba de lançar,

aponta como a ascensão do

nos traz à luz como a Europa e

referências de livros, filmes e

fecha a trilogia “poemas incuráveis”.

regime islâmico impacta na vida

o Ocidente todo reverteram o

seriados, a narrativa é regada a

Antes vieram Última Safra do Silêncio

do acadêmico de uma forma

quadro e sobrepujaram o Oriente.

café e coberta pela afetividade que

(Mercado Aberto), Prêmio Açorianos de

inesperadamente positiva. No

A premissa é a explanação sobre

Smith destina a insólitos lugares e

Literatura em 1999, e Construção das

entanto, tais transformações

seis “aplicativos” do Ocidente:

objetos, completando assim uma

Ruínas (Leitura XXI). Há, neste tecido

sociais impressionam menos do

competição, ciência, direito de

leitura comovente sobre a vida

poético, vozes de quem não desiste.

que a presença de Marine Le Pen

propriedade, medicina, consumo

dessa artista fascinante.

Vozes que são sintetizadas pelo poema

como a candidata presidencial

e ética do trabalho. Na conclusão,

que abre o livro (tudo o que eu tenho

derrotada.

Niall, que virá a Porto Alegre,

/ é meu corpo / o que faço / é minha

em outubro, para o Fronteiras

vida / nada é mais veloz / que a minha

do Pensamento, questiona se o

pressa) e pelo último (preciso firmar

Ocidente pode manter o domínio

meu ponto / nunca ficar pronto).

ou se decai pela perda de fé da

A resistência está na coragem de dar

geração atual nesta civilização.

vida às sobras.. Isabel Waquil

Lelei Teixeira

Bruna Fetter

Luiz Gonzaga Lopes

Jornalista e produtora cultural

jornalista

Pesquisadora e curadora independente

jornalista


primeiro SEMESTRE

2015

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