Revista Arte Sesc - 1º semestre 2016

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PRIMEIRO SEMESTRE

2016 ISSN 1984-056X

palco giratório além da cena Também nesta edição

Caderno de Teatro: maria alice vergueiro música instrumental em evidência



acessibilidade DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


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08

46

artes cênicas

caderno de teatro

música

08 O 11º Festival Palco Giratório Sesc/Porto

34 Maria Alice Vergueiro, homenageada

46 Movimento de bandas com repertório

Alegre, seus espetáculos e encontros,

no Festival Palco Giratório Sesc com

autoral revitaliza o cenário instrumental

na visão de três críticos de teatro

o espetáculo Why the horse?, fala da

na Capital gaúcha

experiência de encenar a própria morte 20 O seminário Práticas Políticas

como um ensaio, e seu parceiro artístico de

49 O desafio de mobilizar público para shows

da Cena Contemporânea como campo

décadas, Luciano Chirolli, conta detalhes da

em tempos de streaming é o tema do artigo

de convergência entre práticas e discursos

carreira desse ícone do teatro alternativo

de Daniela Ribas

diversos, por Patricia Fagundes 24 O palhaço e a eterna contemporaneidade do circo 27 A arte como provocação e o senso comum 28 Alexandre Vargas decifra a crise dos festivais de teatro

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

DIRETORIA

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL

Luiz Carlos Bohn

Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento www.sesc-rs.com.br

Gerente de Cultura

coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Cinema

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


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CINEMA

ARTES VISUAIS

literatura

51 A boa fase do cinema produzido no Interior

54 O curador da exposição Elemento

56 A literatura sempre atual de Edgar Allan Poe,

do Rio Grande do Sul remete a uma tradição

Urbano, que integrou a programação

secular: o primeiro longa de ficção do Brasil

do 11º Festival Palco Giratório Sesc, Francisco Dalcol, analisa a arte engajada do artista Dione Martins

por Vinicius Rodrigues 63 Artigo de Paula Taitelbaum aborda a ocupação do espaço urbano para atividades de literatura infantil 65 Leitura

ISSN 1984-056X

BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Balneário Pinhal  Av. General Osório, 1030  51 3682-3041 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B  54 3242.3302 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  R. Baltazar Brum, 617 3º andar  55 3423.5403 Santiago  Av. Getúlio Vargas, 1079  55 3251.9373 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

coordenação, execução e produção editorial

www.pubblicato.com.br  51 3013.1330  POA/RS

Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Greice Zenker

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.500 exemplares

CAPA

Espetáculo Circo do só eu do Grupo Barracão Teatro Foto: Claudio Etges


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Xadalu Ritmo do tempo Colagem e pintura sobre madeira 110 x110cm 2016

o poder de transformação da cultura Em 2016, numa sequência que vem acontecendo ano a ano, o Sistema Fecomércio-RS/Sesc manteve solidificada a estrutura de um dos maiores festivais de artes cênicas do Estado, que faz parte de um grande movimento nacional: o Festival Palco Giratório Sesc/POA. Foram mais de 100 sessões artísticas, com representantes de 16 estados brasileiros em mais de 10 locais da Capital, totalizando um atendimento de 54 mil espectadores. O tamanho e a importância do evento, que tem braços pelo interior com o Circuito Nacional, podem ser conferidos nas páginas a seguir, através das palavras dos críticos Ruy Filho, Renato Mendonça e Michele Rolim, bem como em outros artigos e na reportagem com Esio Magalhães, um dos principais nomes do teatro circense no Brasil. Sem esquecer a homenageada Maria Alice Vergueiro, que, no alto de seus 80 anos, e diante de uma saúde frágil, encontra forças para rodar o país inteiro com suas apresentações. Não por menos, foi escolhida a homenageada dessa edição do Palco Giratório. Na revista também é possível conferir matérias sobre música, produção audiovisual, artes visuais e literatura. Esta é uma das formas de reforçar nossa crença no poder de transformação da cultura e seguiremos a apoiá-la e disseminá-la nos quatro cantos do Rio Grande do Sul. Boa leitura!

Luiz Carlos Bohn

Luiz Tadeu Piva

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Diretor Regional Sesc/RS


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1 Os textos foram publicados no site Agora Crítica Teatral (agoracriticateatral.com.br)

Recortes do 11º Festival Palco Giratório [1]

Os textos assinados pelos críticos do site Agora Crítica Teatral Michele Rolim, Renato Mendonça e Ruy Filho analisam seis espetáculos da edição gaúcha do festival, realizada de 4 a 25 de maio, em Porto Alegre, bem como o Seminário Práticas Políticas da Cena Contemporânea, que teve oito encontros temáticos, em paralelo à programação artística. O evento cumpriu uma maratona de 22 dias, com 53 espetáculos de teatro, dança e circo de grupos representantes de 16 estados brasileiros.

Entre a dança, o circo e a performance, surge o tango Crítica sobre o espetáculo Corpobolados, com direção de Paola Vasconcelos Por Ruy Filho A experiência teatral se realiza no espectador

exemplo; apresentar, por sua vez, utiliza-se do per-

por diversos caminhos. É preciso fazer escolhas,

former para, por ele mesmo, trazer algo ao outro.

entender aquilo que se propõe, os códigos apre-

Parece demasiadamente difícil tudo isso, é certo.

sentados ao outro, sustentando seus símbolos

No entanto, ainda que tais considerações circulem

e, consequentemente, suas narrativas. De modo

mais entre teóricos e acadêmicos do que entre ar-

outro, a absorção pode simplesmente não se efe-

tistas, espetáculos surgem a todo instante dando

tivar e permanecerá o público minimizado em sua

conta de problematizar e validar tais questões.

função de observador distante. Cabe, portanto,

É o caso de Corpobolados, em que dança,

estabelecer precisamente um diálogo na constru-

circo e performatividade se reúnem por uma es-

ção de alguns valores fundamentais. Dentre eles,

trutura cênica de modo eficiente e, por vezes, até

o corpo como instrumento de discurso, o gesto

muito simples. São jogos calculados entre os par-

como linguagem de representação de tudo aquilo

ticipantes, cujo olhar e reconhecimento da pre-

subjetivo, a presença como estado performativo,

sença do outro determinam os pontos de acesso

além, é claro, de todos os demais aspectos tra-

entre dois ou três deles. As respostas são sempre

dicionais que permeiam a criação de uma cena.

físicas e gestuais, estabelecendo rapidamente um

Essa complexidade trazida pelo teatro contempo-

tempo particular em cada instante de ação. Sem

râneo é tanto causa quanto resposta às intersec-

que se perca a naturalidade da presença, os dois

ções entre as linguagens artísticas. Unindo-se à

atores e a atriz sustentam com pleno domínio as

dança, ao circo, à performance, às artes visuais,

partituras e seus riscos. São malabarismos que fa-

o teatro rompeu com sua dimensão excessiva-

lham, movimentos provocados nos outros que se

mente literal de representação para se configurar

interrompem antes de ocorrerem. Isso aproxima a

Foto: Rafael Silva

como mecanismo de apresentação. Rapidamente,

ação mais do circo, caracterizado pelo imponde-

Dona Flor e seus dois maridos (Casa de Teatro de Porto Alegre)

diferenciando-as, representar significa estar em

rável, do que do teatro, treinado exaustivamente

cena a serviço de ser outro, um personagem, por

para ser impecável. E é, exatamente na presença

Corpobolados

Foto: Adriana Marchiori


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do imponderável, que o teatro e a dança ganham

ção. É como se os olhos dos jogos agora fossem

cena para tudo isso sem que se perca o conquis-

sabores de presentificação. O nenhum incômodo

expandidos para todo o corpo e depois para os

tado, sem que se caia na narrativa literal, e sem

aparente com o erro faz com que este seja as-

objetos. Existe na repetição da coreografia igual

que a palavra, caso venha a existir, seja a afirmação

sumido narrativamente, e isso é saboroso e inte-

perspectiva do movimento circense em sua me-

da própria cena. A direção de Paola Vasconcelos já

ressante descobrir, pois se destitui a máscara da

canicidade. Leva-se tempo até surgir o primeiro

se mostra provocativa, inteligente e interessante o

perfeição para assumir a face de exposição dos

esboço de sorriso em cada um deles. Talvez por

suficiente para esperarmos muito mais.

limites momentâneos e circunstanciais. Essa qua-

não reconhecer o quanto é pertinente. Talvez

lidade é fundamental e ilustra bem o trazido an-

porque se leva tempo para encontrar o outro e

tes aqui. Sem máscara, não há personagens. Limi-

se reconhecer no outro. Fato é que o espetácu-

tados, são principalmente eles mesmos em cena.

lo sugere a narrativa entre as aproximações e os

Por outro lado, a racionalização não é nega-

desencontros mais triviais do nosso cotidiano, e

da, como se as ações fossem casuais e inconse-

ainda assim radicalmente determinantes sobre

quentes. Pelo contrário. A geometrização cênica

quem seremos depois.

Somos todos vadinhos Crítica sobre Dona Flor e seus dois maridos, espetáculo do coletivo Casa de Teatro de Porto Alegre

do palco, constantemente reordenado para man-

Ao reunir os elementos de tantas linguagens,

ter-se preciso, inclui os corpos de início. Também

Corpobolados dialoga com as esferas mais atu-

o indivíduo é esteticamente estruturado em li-

ais de cada uma. Moderniza, no melhor sentido

Foi em 1966 que Jorge Amado (1912-2001) lançou

nhas e verticais junto à clave e às bolas de mala-

do termo, a perspectiva de inclusão do circense à

o romance Dona Flor e seus dois maridos. Já

bares. Como se fossem desenhos em cena, os três

cena, assim como da dança como vocabulário de

havia cerca de 15 romances anteriores, também

tridimensionalizam a cartografia dos objetos e

exposição narrativa do corpo. Nada no espetácu-

biografias e poesias, e sua importância para a

lhes emprestam movimentos espaciais ao tempo

lo é absolutamente inovador. Mas nem por isso

literatura brasileira era então indiscutível. O escritor

sublimado. Dançar impõe-se como gesto maior,

deixa de encantar a singeleza e a perspicácia em

baiano é um dos nossos mais traduzidos em outros

então. E a dança surge insistente e repetidamente

trabalhar com tantos elementos. As coisas chega-

países; com o passar dos anos, o respeito com sua

sustentada no tango, que descobriremos, passo a

rão certamente ao tempo. E o próximo passo a ser

obra se expandiu para além de nossas fronteiras.

passo, como a única necessidade de movimenta-

investigado é como construir uma dramaturgia de

Hoje, Jorge Amado é referência a literatos na

Por ruy filho


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produção em português, aos pesquisadores pela

batido. Suas ideias sobre a liberdade, portanto,

modernidade de suas narrativas e ao imaginário

permeiam no romance o existir pleno apenas no

popular, visto que muitas de suas escritas continuam

submundo dos cassinos, dos bares, das casas de

adaptadas ao cinema, à televisão e ao teatro. Com

prostituição, das ruas e vielas reservadas ao ina-

Dona Flor e seus dois maridos não seria diferente.

propriado. E por que não, nas camas das famílias

A versão em minissérie, adaptada do romance por

mais tradicionais, quando escondidas da socieda-

Dias Gomes, e a em filme, dirigida por Bruno Barreto,

de? Na montagem do espetáculo, no entanto, tais

marcaram definitivamente a obra por gerações.

questões se limitam ao papel de fazer o público

Se na Globo a ótima presença de Giulia Gam no

rir do que poderia ser um desconforto, tratando

papel principal dialogava de forma precisa com

as cenas de sexo e nudez com ironia e caricatura.

Vadinho (marido morto que retorna em espírito para

Acaba o espetáculo assumindo, em estética, os

oferecer os prazeres que o atual não lhe provoca)

mesmos valores que a obra tenta combater e des-

de Edson Celulari, nada supera o brilhantismo da

mitificar. Ainda que os personagens tenham sido

dupla interpretada nas telas por Sônia Braga e José

escritos para serem divertidos, há, neles, a dubie-

Wilker, referências maiores quando pensado o livro.

dade da explosão dionisíaca cujo descontrole é

Arriscar-se, portanto, a trazer ao palco o romance é

o elemento de sustentação do viver. Nada disso

dar conta de expectativas e de comparações, o que

existe no espetáculo, porém. E sobra ao público

torna tudo um tanto mais complexo. Todos trazemos

somente uma comédia com ares menos apaixo-

as referências ainda vivas em nossas lembranças.

nados pela vida e mais próximos à artificialidade

Poucos, é verdade, propriamente pela leitura.

das pornochanchadas banais.

apropriação para a construção de produtos vol-

Com a direção tríplice de Zé Adão Barbosa,

O desprendimento da profundidade também

tados ao entretenimento, quando se oferece ao

Carlota Albuquerque e Larissa Sanguiné, surge

se verifica nas escolhas de encenação. Abstendo-

livro a facilitação do seu entendimento e o prazer

nova adaptação para o teatro, após a montagem

-se de ser político, de ser metafórico, de ser re-

de um bom entretenimento. A plateia, ao término,

carioca que iniciou temporada com Carol Castro

presentativo ao nosso tempo atualizando os

urrava, delirava de satisfação. Mas não percebeu,

e teve algumas substituições durante o percurso.

contextos da obra, a literalidade estabelece o pa-

talvez, a embriaguez deliciosa que a falta de ver-

Por ser o palco espaço radicalmente diverso às

radoxo de ter ora elementos transformados em

ticalidade oferece e provoca. Jorge Amado pos-

condições dos estúdios e das gravações, compa-

outros, ora janelas que se insistem como tais para

sivelmente estaria assistindo à televisão e teria

rar os resultados seria exercício inútil. Cabe per-

demarcar os ambientes onde as cenas acontece-

desistido das salas de espetáculo. Enfim, não foi

ceber o que a versão musical gaúcha se realiza

riam. Nenhum dos dois mecanismos de constru-

dessa vez. De novo.

mais próxima à perspectiva de Jorge Amado. E é

ção narrativa chega a surpreender ou supera as

nesse movimento de volta ao escritor que algu-

estruturas cênicas mais básicas. O espetáculo, ao

mas questões surgem fundamentais.

se querer ser apenas um musical com a história,

Nós somos a floresta

Quando o escritor optou por incluir o uni-

deixa de ter a musicalidade da prosódia do escri-

verso das putas, dos amantes, dos casamentos,

tor, tão própria e especial. A tonalidade baiana se

dos desejos, confrontando-o ao conservadorismo

perde, por fim. Não bastam roupas de baianas ou

das situações corretas e controladas, dos bons

toques de candomblé para dar conta da profundi-

modos e dos valores sociais que se esperaria das

dade com que Jorge Amado utilizou-se da Bahia

pessoas decentes, dos vizinhos controladores,

para falar do Brasil mais profundo e popular.

trouxe o prazer como instrumento de libertação

Ainda que o acompanhamento musical seja em

ao homem e à mulher, o gozo como única impor-

alguns momentos interessante, este se faz, nes-

Assistir ao espetáculo A floresta que anda no

tante satisfação em uma sociedade despudorada

sa estrutura de um espetáculo musical, nos raros

momento histórico que estamos vivendo ganha

e fracassada, porém mascarada pela ordem. Não

momentos em que é menos ilustrativo e mais dia-

outra potência. A montagem, da Cia. Vértice de

nos esqueçamos de o romance ter sido escrito em

lógico com o que está ocorrendo no palco.

Teatro, do Rio de Janeiro, com direção de Chris-

Espetáculo A floresta que anda funciona como uma galeria de arte, abrigando uma videoinstalação com relatos de pessoas Por Michele Rolim

plena Ditadura Militar, que tinha Jorge Amado

Dona Flor e seus dois maridos ainda carece

tiane Jatahy, fecha a trilogia começada por ela

como um comunista a ser perseguido e com-

no teatro de um espetáculo que vá além de sua

com Julia (2012), que já esteve em Porto Alegre,


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A floresta que anda (Cia. Vértice de Teatro) Fotos: Claudio Etges

seguido de E se elas fossem para Moscou? (2014),

chegar ao poder antes do tempo faz com que

pessoas que não representa o povo e seus inte-

com apresentações durante o 11º Festival Palco

Macbeth atropele os acontecimentos e mate o rei.

resses. Os vídeos que vimos na montagem certa-

Giratório Sesc/POA. Entre os pontos em comum

O texto foi escrito entre 1605 e 1606, mas parece

mente serão multiplicados.

das três produções estão as fronteiras entre o

feito sob encomenda para o século 21.

Todos temos, sem exceção, as mãos sujas

teatro e o cinema, a “adaptação” de textos clássi-

O espetáculo nos mostra que todos nós so-

de sangue e estamos representados por Lady

cos da dramaturgia teatral, o atravessamento da

mos Macbeth: estamos inseridos em um sistema

Macbeth quando diz “Sai, mancha amaldiçoada!

linha tênue entre a ficção e o real, e a presença da

capitalista e, em diversos momentos, atravessa-

Sai!” Mas ela não sai e não sairá.

atriz Julia Bernat.

mos a linha tênue da ética para colaborar com

Para levar o público a tal questionamento,

A floresta que anda funciona como uma ga-

os abusos de poder, seja efetivamente tomando

Jatahy radicaliza a experimentação. Se em Julia,

leria de arte, abrigando uma videoinstalação com

partido de governos autoritários, ou nos eximindo

que tem cenas pré-gravadas e outras filmadas

relatos de pessoas que tiverem suas vidas altera-

de um posicionamento. Assim, somos cúmplices

ao vivo durante a apresentação do espetáculo, o

das pelos sistemas político e econômico brasileiro

das tragédias que vimos nos vídeos. Passamos por

espectador é editor da obra, já que ele escolhe

e mundial. Dentre os relatos está o de Michelle,

elas todos os dias e acostumamos o nosso olhar.

se observa a cena ou o vídeo, em E se elas fos-

sobrinha de Amarildo Dias de Souza, que foi tor-

Julia Bernat, atriz da montagem, fica perambu-

sem para Moscou? – composta de uma peça e de

turado e morto após ter sido detido por policiais

lando no espaço da galeria e, mais ao final da

um filme que ocorrem simultaneamente em sa-

militares. Outro é do estudante Igor Mendes, pre-

peça, lança questionamentos à plateia: “por que a

las distintas –, cabe ao público escolher qual das

so em dezembro de 2013, durante as manifesta-

gente não faz nada?”

duas experiências, ou ambas, gostaria de ter, e em

ções na capital do Rio de Janeiro. Também o de

A impressão é que estávamos tão ocupados

que ordem isso se dará. Já em A floresta que anda,

Prosper, imigrante do Congo que teve sua família

com nossas vidas ordinárias que não deu tempo

o espectador recebe algumas instruções antes de

assassinada. E de Ismael, integrante do movimen-

de olhar para o lado. E agora? Estamos sem um

ocupar o espaço, mas está livre para circular por

to de acampamento de famílias desapropriadas.

governo democraticamente eleito e, em conse-

ele e escolher o que e como vai assistir. Também

Para realizar essa montagem, Jatahy buscou

quência disso, em menos de 24 horas, tivemos

tem a possibilidade de ficar no bar bebendo e co-

inspiração em Macbeth, de William Shakespeare.

extintos secretarias e ministérios tão importantes

mendo, ou fazer as duas coisas, ou nada. Ele é,

Macbeth é um general do exército escocês do

como o da Cultura; e o das Mulheres, da Igualda-

portanto, o maior responsável pelo que vai captar

rei Duncan que recebe a aparição de três bruxas.

de Racial e dos Direitos Humanos. A presidenta

da obra. Fica-se com uma sensação de que algo

Estas revelam que ele será rei. A ganância por

foi deposta e, em seu lugar, ficou um grupo de

está acontecendo o tempo inteiro, mas não se


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sabe o quê, já que os mecanismos teatrais não

momento que vivemos, farão com as nossas vi-

atravessa. Mudança pessoal é o centro de E se elas

estão postos de maneira convencional. Soma-se a

das se não os detivermos. O título do espetáculo

fossem para Moscou?; os mecanismos de domina-

isso o fato de a peça romper com uma história li-

faz referência à previsão das bruxas sobre a perda

ção inspiram A floresta que anda (ambas de Chris-

near e não apresentar uma personagem tal como

da coroa do rei Macbeth. Ele não deveria temer

tiane Jatahy); a afirmação da sexualidade está em

tradicionalmente a conhecemos.

as tropas inimigas até que a floresta de Birnam

BR-Trans (de Jezebel de Carli); a alienação é tema

Essa sensação é de fato condizente com

subisse contra o monte de Dunsinane. Macbeth

de Concentração (Ana Paula Zanandréa)... A ence-

a realidade brasileira e com as sequências de

pensou que isso fosse impossível; mas Malcolm,

nação do texto de Bertolt Brecht, A Santa Joana

imagens com que somos bombardeados duran-

filho de Duncan, liderou um exército camuflado

dos Matadouros (RJ), entra nessa lista como uma

te a apresentação. Não sabemos direito, ou não

com galhos das árvores de Birnam e retomou a

das montagens mais contundentes e como aquela

queremos saber, o que está por trás dos jogos de

posse da coroa de seu pai. A floresta está dentro

que encerra decisivas sutilezas políticas.

poder. A verdade é relativa, e quem detém o po-

de nós. Nós somos a floresta.

em meio à crise capitalista mundial do crack da

der escolhe qual dizer. Jatahy, no entanto, inverte essa lógica e nos traz histórias já conhecidas, porém contadas a partir da perspectiva do oprimido, e não mais segundo a versão do opressor. E assim nos questiona: “qual o comprometimento de cada um no mundo?” O poder e a cobiça levaram Macbeth a pro-

Brecht escreveu o texto entre 1929 e 1931,

Ninguém é santo Trama ambientada por Brecht nos anos 1930 segue questionando compromissos pessoais e de classe Por Renato Mendonça

Bolsa de Nova York. Basicamente, é uma aula de como funciona o capitalismo predador. Em Chicago, o inescrupuloso Mauler lidera uma horda de endinheirados que manipula preços, salários e bens de modo a maximizar o lucro. O outro polo é Joana, missionária sincera e engajada no movimento assistencialista Soldados de Deus,

tagonizar a maior tragédia escrita por Shakespeare. Com o distanciamento do tempo, veremos

Comemoremos: o teatro está refletindo e discu-

para quem é preferível ser o número 1 no Céu

o que o poder e a cobiça, tão implacáveis neste

tindo o transe político, ético e social que o Brasil

do que na Terra.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

13

A exploração segue em relativa paz até que sobrevém uma daquelas tantas crises cíclicas do

Lição política dada, o público aplaude de pé e exige a volta do MinC.

Capital: Mauler erra a mão nas manobras; fábricas

No fundo de A Santa Joana, entretanto, resi-

fecham; matéria-prima some; trabalhadores estão

de um conflito não resolvido desde antes de nossos

a ponto de se revoltar. Joana toma a iniciativa de

governos interinos. Brecht passa a peça toda pulan-

procurar Mauler, e se inicia uma espécie de ma-

do do plano social para o individual. Joana toma a

logrado Romeu e Julieta: Joana pertence ao clã

iniciativa de conhecer seu opressor, mesmo desa-

dos Capuleto proletários e Mauler representa os

conselhada por outros Soldados de Deus. Algumas

Montecchio capitalistas. Ao longo da peça, num

poucas atitudes mais humanizadas de Mauler pare-

tom didático, somos instruídos, com uma atuali-

cem ser tomadas por influência de Joana. Em algu-

dade impressionante, sobre como funciona o po-

ma medida, afirma-se que a iniciativa pessoal pode

der: dumping, etapas de produção, manobras na

causar transformação. Mas o final da peça contradiz

Câmara, a manipulação da fé e das Igrejas para

cruelmente essa conciliação possível. Morta, Joana

garantir a paz na Terra, até uma fala sobre um em-

é tachada por um popular como apenas mais uma

presário que, por ganância, causou a inundação de

moça, por não ter entregue a carta decisiva. Faz-se a

vasta área no rompimento de uma represa...

defesa canina da submissão do individual à consci-

Os diretores Marina Vianna e Diogo Liberano propõem uma encenação afinada com o que que-

ência de classe – se você não fizer sua parte, a causa toda pode fracassar.

ria Brecht. O principal elemento em cena são cami-

Atenção: para Brecht, só existem dois opo-

setas, dezenas delas, que são vestidas e desvestidas

nentes no ringue. Não por acaso, a classe média,

ao longo das duas horas de espetáculo como se

elemento decisivo em qualquer contenda social,

fossem as cascas resultantes do amadurecimento.

está ausente na trama de A Santa Joana dos Ma-

As luzes são frias, os sons têm timbre eletrônico,

tadouros. Dessa forma, ganha importância uma das

o cenário é construído com caixotes de plásticos

melhores cenas da peça quando Joana, paralisada

– tudo como uma grande engrenagem, uma as-

por suas contradições, é manipulada por outro ator

sepsia cirúrgica, nos forçando a focar nas relações

como se fosse uma marionete. Quem a opera? A luta

de poder. Os fundamentos épicos tão valorizados

política é vital e urgente, mas o indivíduo também é

por Brecht, como atrair o espectador para a cena e

ele próprio um campo de batalha e deve decidir a

logo em seguida quebrar esse encanto com música

todo o momento se prefere alinhar-se numa bata-

(o elenco canta muito bem), ou mudança no regis-

lha de slogans, conformar-se no possível ou encarar

tro do texto, ou mesmo com fala dos personagens

a complexidade de sua inserção na sociedade. Joana

se dirigindo diretamente ao público, estão presen-

é destruída nesse embate. É só uma moça, e isso pa-

tes com talento e oportunidade, driblando o texto

rece não bastar para os tempos de luta.

por vezes maçudo. O final, claro, não é feliz. Em meio a uma convocação de greve geral, Joana é encarregada de entregar uma mensagem e não o faz – morre sozinha na neve, soterrada por camisetas com estampa do Mickey e da Nike, e por seus conflitos internos. Mauler abre mão de sua fortuna, sabe que não é inocente, mas está arrependido. Os outros personagens continuam onde sempre estiveram – o proletariado

Teatro político se reinventa pela forma Espetáculo Caranguejo overdrive, da carioca Aquela Cia. de Teatro, propõe uma reinvenção do ser político em cena Por michele rolim

na miséria, os capitalistas no bem-bom. E os Soldados de Deus, disciplinadamente, estão perfilados

Nas décadas de 1960 e 1970, praticou-se um

prestando continência aos comandantes do Capital.

teatro político decisivo para o Brasil, e parte da

A Santa Joana dos Matadouros Foto: Claudio Etges

Caranguejo overdrive (Aquela Cia. de Teatro) Fotos: Claudio Etges


ARTES CÊNICAS

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produção teatral dos últimos anos, talvez inspirada

ção na narração, o que leva o público a outro es-

guaia (Carolina Virgüez) narra a Cosme sua visão

pelas manifestações de 2013, constitui-se em uma

tado de reflexão.

sobre os acontecimentos no Brasil até os tempos

renovação desse gênero. Isso está muito evidente

São basicamente três eixos que se cruzam

atuais. As falas, no entanto, só são potentes por

na programação do Festival Palco Giratório Sesc/

de maneira quase orgânica. Um deles é o tema

conta da fisicalidade em cena, que nos oferece cor-

POA deste ano. Caranguejo overdrive (RJ), por

da fome, que teve como ponto de partida o livro

pos políticos, constantemente atravessados pelos

exemplo, d’Aquela Cia. de Teatro, não é apenas

Homens e caranguejos, publicado em 1967 pelo

acontecimentos sociais, algumas vezes incorpo-

mais um espetáculo que trata sobre a situação

geógrafo pernambucano Josué de Castro e que

rando os movimentos truncados dos caranguejos.

política no país: ele propõe uma reinvenção do

serviu de base para o movimento manguebeat,

O cenário inclui uma caixa de areia e lama

ser político em cena.

na década de 1990. Nele, o autor defende que

na qual um dos atores (Fellipe Marques) reveste

Preocupado sobretudo com a forma de dizer,

a fome não é um fenômeno geográfico, e sim

todo o seu corpo dessa mistura e fica imóvel na

o texto (de Pedro Kosovski) e a encenação (diri-

social. O segundo eixo está relacionado com a

posição do crustáceo por 10 minutos. Infelizmen-

gida por Marco André Nunes) andam de mãos

Guerra do Paraguai (1864-1870), quando Brasil,

te, em Porto Alegre, não foi permitida a presença

dadas; um não está vivo sem o outro. E é isso

Argentina e Uruguai se uniram para aniquilar o

de caranguejos reais em cena, e os animais foram

que torna a peça tão contundente. Em cena, estão

país que dá nome ao conflito. Por fim, temos a

substituídos por pedras. A proibição se deu com

os velhos problemas do Brasil: diferenças sociais,

cidade do Rio de Janeiro e suas transformações e

base em lei municipal que veda o uso de animais

abusos de poder, concentração de riqueza etc. No

disputas territoriais, muitas delas sob o “pretexto”

silvestres em apresentações artísticas. O espetá-

entanto, a maneira de falar sobre eles não é a do

das Olimpíadas de 2016.

culo perdeu em contundência com essa restrição.

velho conhecido teatro político: há uma reinven-

Caranguejo overdrive (Aquela Cia. de Teatro) Fotos: Claudio Etges

Hamlet - Processo de revelação (Coletivo Irmãos Guimarães) Foto: Claudio Etges

Tudo isso se concentra em torno da figura

Na montagem original, os caranguejos iniciam a

de “um caranguejo que um dia foi um homem

peça dentro de uma gaiola e, no decorrer da ação,

chamado Cosme”. Cosme é um catador de caran-

são libertados pelos atores.

guejos forçado a deixar o mangue para servir na

O espetáculo garante a vitalidade também

Guerra do Paraguai. Quando retorna devastado ao

por conta do caráter performativo e explosivo,

Rio, não reconhece mais a cidade, especialmente o

com o qual a banda ao vivo (composta por Felipe

Mangal de São Diogo, local onde nasceu e que está

Storino, Maurício Chiari e Pedro Kosovski) flerta

sendo transformado para dar lugar à Cidade Nova.

com o manguebeat, contribuindo significativa-

A mistura de planos temporais, que no pri-

mente com a encenação.

meiro momento pode parecer inusitada, funciona

Aquela Cia. De Teatro, que completou uma

muito bem, como quando uma prostituta para-

década de existência no ano passado, já passou


ARTES CÊNICAS

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por Porto Alegre com as peças Edypop e Cara de cavalo, repetindo a parceria de Pedro Kosovski e Marco André Nunes. Em Caranguejo overdrive, avança sua proposta de investigar as possíveis ressignificações das relações entre cena, música, espetacularidade e narratividades da memória do espaço urbano. Que esse novo modo de fazer teatro político, que entende que o estar no mundo já é um fato político, continue resistindo, como profetiza a última fala da peça, “(...) a música dos trovões se aproxima, e eu sairei da toca, e junto comigo uma cambada de caranguejos”. Estaria aqui representada a minoria descobrindo que é a maioria neste país? Os oprimidos reivindicando maior participação política e melhores condições sociais? Precisamos de novos procedimentos teatrais para novos tempos. Falar de política é necessário, mas também é fundamental que não nos limite-

à encenação, à relação entre performance e atu-

no público pode ser exemplificado pelo comen-

mos a purgar nossas culpas, sentindo aversão aos

ação e à mediação da obra de Shakespeare, que

tário de uma espectadora, imaginando como se-

que estão no poder e compaixão dos que perten-

garantem a relevância da montagem do Coletivo

ria proveitoso apresentar consecutivamente em

cem à base da pirâmide social. Que seja possível

Irmãos Guimarães (DF).

duas noites seguidas o Processo de revelação e

provocar outro estado de reflexão, uma catarse

Basicamente, trata-se de uma conversa so-

o texto original de Shakespeare. De lambujem, o

que nos faça realmente adentrar a lama na qual

bre Hamlet. Acompanhado em cena apenas de

público toma conhecimento dos questionamen-

o contexto político brasileiro está enterrado até o

uma poltrona e de 800 tijolos amontoados a um

tos que acompanham a montagem de um texto

pescoço. Quando a política é uma grande ence-

canto, Aragão recebe o público sentado à beira do

dramático, entre eles a tentativa de descobrir as

nação, o teatro deve responder à altura, em alta

palco e avisa que as luzes ficarão acesas para que

intenções do autor e, principalmente, como se dá

performance, em overdrive.

ele possa ver o rosto de todos. Percebe-se a busca

a integração entre a obra a ser encenada e a ba-

pela intimidade: o ator exercita sua empatia, põe

gagem emocional dos artistas.

Ser ou não ser Hamlet?

abaixo os tijolos da quarta parede, assume uma

Nesse ponto, a montagem desperdiça uma

atitude de quem está disposto a debater com o

grande chance. Aragão começa a peça observan-

público, especialmente quando oferece à aprecia-

do que, naquele exato momento, um velho, na

ção dos espectadores sua tradução do solilóquio

China, pensa em se suicidar. A rotina faz o ancião

que inclui a célebre pergunta “Ser ou não ser?”. Na

esquecer o plano. Ao final, num espelhamento

sessão do dia 24 de junho, o público aderiu à pro-

evidente, o ator afirma que uma chinesa de 30

Por Renato Mendonça

posta com tais intensidade e insistência, que um

anos está indo visitar o túmulo da mãe no cemi-

dos diretores chegou a interferir, pedindo que o

tério. Nada disso é gratuito: a peça também é um

Já quase ao final das quase duas horas e meia de

ator superasse aquele instante e seguisse adiante.

processo de revelação do próprio artista em cena.

apresentação do monólogo Hamlet – Processo de

A contribuição em termos de mediação é elo-

Por entre a descrição das agruras de Hamlet, Ara-

revelação, o ator Emanuel Aragão lê uma lista de

giável, e Hamlet de fato é revelado ao público.

gão lembra a morte do pai 11 anos atrás, de como

coisas que não teria coragem de falar em público.

Aragão tem o cuidado de narrar uma sinopse da

hesitou ao entrar no quarto onde estava o cadá-

Entre seus desejos ocultos está o de que a peça

trama, e ao longo da peça vai encaixando trechos

ver, de como ele e seu irmão cumpriram calados

que ele estrela mude radicalmente a vida de to-

de algumas cenas e solilóquios de Hamlet, trafe-

uma viagem de carro até a cidade onde seria feito

dos que estão na plateia – e a dele também. No

gando sutilmente entre a atuação e a performan-

o enterro. Essas situações encontram eco em ce-

caso deste que escreve, infelizmente não. Mas o

ce, valorizando o texto de Shakespeare com uma

nas da peça original: a hesitação do herói shakes-

espetáculo levanta uma série de questões, ligadas

paixão pessoal evidente. O interesse despertado

peariano, o trajeto silencioso de Hamlet e de seu

Montagem dos Irmãos Guimarães mistura performance e atuação para mediar obra de Shakespeare


ARTES CÊNICAS

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amigo (quase irmão) Horácio para conferirem a aparição do fantasma do pai do príncipe da Dinamarca. Nesses momentos, não por acaso quando

Pesquisadora da área de educação e referên-

o Aragão exibe sincera emoção, Processo de re-

cia no tema, Guacira Louro abriu o debate contex-

velação exibe potencial a ser melhor explorado.

tualizando o momento em que a questão de gê-

Da mesma forma, os tijolos. O entulho pro-

nero aparece de forma mais efetiva na sociedade.

mete estrelar uma ação dramaticamente con-

Ela contou que, no final dos anos 1960, assuntos

tundente, mas serve apenas para que Aragão o

de cunho privado começaram a ser discutidos pu-

estilhace durante alguns minutos, como a sugerir

blicamente, abalando a certeza de que a sexuali-

que talvez só a exaustão física encaminhe um dos

dade e o gênero são determinados pela natureza.

tantos dilemas que Hamlet (e o ator) enfrenta.

“Gênero não é uma coisa que se nasce, mas que

A intenção seria talvez reforçar a ponte entre a

se constrói ao longo da vida”, segundo ela. Isto é,

ficção e a vida real – o tijolo destruído por força

enquanto construção social, a pesquisadora pro-

dos conflitos de Hamlet e da aflição do ator vira pó, que vira tijolo, que vira sala de espetáculo, que abriga Hamlet e Aragão – e a todos nós. Entre tantos elementos e intenções postos, numa encenação que corajosamente se propõe ao risco de ceder parte do controle do resultado final ao público, Processo de revelação mantém com o texto original uma semelhança de propósitos que é fundamental: o amor pelo teatro e a crença de que o palco pode evocar, elaborar e até

REFLEXÕES PARALELAS Gênero e sexualidade, uma construção Por Michele Rolim

encaminhar conflitos humanos. É da loucura (ou

vocou um desassossego na lógica binária de entender sexualidade e gênero. Para ela, na medida em que se evita uma polaridade rígida, cria-se a possibilidade de transitar nesses terrenos, ultrapassando fronteiras ou/e permanecendo nelas. Guacira apontou que o desafio é promover a desconstrução da heteronormatividade, mas sem necessariamente construir a homonormatividade. Podemos entender que a identidade do sujeito é complexa e não pode ser rotulada segundo regras. No entanto, para ela, é importante que as minorias

da atuação) que Hamlet se vale para dizer as ver-

Nos últimos anos, há um movimento de pro-

sexuais e de gêneros se apropriem de denomina-

dades; é através da companhia de teatro que vi-

dução ou, talvez, de maior visibilidade das te-

ções e façam “alianças provisórias” para lutar por

sita o palácio real que ele finalmente se convence

máticas de gênero e sexualidade nas práticas

direitos, percebendo que essas amarrações não

da culpa de seu tio Cláudio; é encenando Hamlet

artísticas. Trabalhos como o longa documentário

podem ser fixas.

que Aragão faz sua transição entre o velho que

DziCroquettes e as peças Luis Antonio-Gabriela,

Falando do lugar da cena artística, Silvero

esquece o suicídio e a mulher que cria coragem

Avental todo sujo de ovo e BR-Trans vêm contri-

Pereira, ator/performer da peça BR-Trans, do cole-

para reverenciar sua mãe morta. E é assistindo ao

buindo efetivamente para essa reflexão. Em um

tivo As Travestidas, que esteve em cartaz no Palco

Processo de revelação que o público pode apren-

momento em que um Congresso conservador

Giratório nos dias 11 e 12 de maio, apontou a arte

der a diferença entre entretenimento e arte de

está no poder e em que se aprova um Estatuto

como uma ferramenta de extrema importância

transformação pessoal.

da Família em que esta é formada unicamente

para combater a discriminação e a violência no

Em uma das últimas falas, Aragão diz “Acho

a partir da união de homem e mulher, discutir

Brasil, país que ocupa o primeiro lugar no mundo

que não foi o suficiente”. Talvez nunca seja, e nos-

o papel da arte na reflexão dessas questões é

em assassinatos de travestis e transexuais.

sos tormentos assumam a forma de fantasmas

urgente. O seminário Práticas Políticas da Cena

Silvero lembrou que, cada vez mais, a pro-

que nos acompanharão ao longo da vida, insis-

Contemporânea, que aconteceu dentro da pro-

dução de arte com esse viés tem-se ampliado,

tindo em cobranças tal como fazia o espectro do

gramação do 11º Festival Palco Giratório Sesc/

porque a sociedade necessita falar sobre isso.

pai de Hamlet. Parece que a morte, e não a reso-

POA, propôs um debate sobre esse tema. Dia 9

A questão fundamental seria “que corpos temos

lução dos conflitos, é o destino final da viagem.

de maio, Felipe Matzembacher (RS), Silvero Pe-

hoje e onde eu me identifico?”. A arte vem para

E o teatro é um bom companheiro nesse processo

reira (CE) e Guacira Lopes Louro (RS) integraram

contribuir com essa discussão. Ele declarou que

de revelações.

uma mesa de discussão que ocorreu no Teatro de

ainda enfrenta preconceito de setores da própria

Arena, acompanhada por cerca de 100 pessoas.

classe artística. Segundo esses segmentos, o ator


ARTES CÊNICAS

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que faz travesti no teatro não consegue se assumir travesti na vida real, ou seja, estaria usando a arte para enganar a si mesmo. Já Matzembacher, que dirigiu com Marcio

Negritude foi a protagonista do debate

Reolon Beira-mar (2015), longa que recebeu boa acolhida na programação “alternativa” do Festival de Berlim, apontou que o desafio da arte é desestabilizar a norma. As obras mais interessantes, segundo ele, não são aquelas que respondem a perguntas, mas, sim, aquelas que fazem perguntas, que provocam. Matzembacher relatou sua experiência em um seminário com realizadores do cinema queer, que tentaram visualizar qual seria o futuro desse tipo de cinema. Entre as questões levantadas, estava o tensionamento entre representação e representatividade, ao se proporem

performer e o dramaturgo, o palco era a periferia, o público era todos. Entremeando versos dos rappers Thayde e do Racionais MC’s em suas falas, resumiu: “O negro não está em cena. Ele é sentido por sua ausência em cena”. E mais: “No Brasil, a gran-

Por Renato Mendonça A escalação dos convidados que integraram a mesa garantiu o sucesso do encontro Negritude em Cena, realizado no dia 10 de maio, no Teatro de Arena de Porto Alegre, dentro do seminário Práticas Políticas da Cena Contemporânea. A coordenadora do ciclo, Patricia Fagundes, escalou três criadores negros que apresentaram estratégias diferenciadas para a superação do racismo, para a firmação de uma estética e para a construção de um Teatro Negro.

de disputa é pela narrativa. A narrativa está sendo subtraída dos narradores”, “Todo teatro é político. Mas como levar à cena? De toda maneira, a forma e a estética já são um discurso político em si”. Lima descreveu como foi a ação Em legítima defesa, uma série de intervenções que atores negros realizaram durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), em março passado. A polêmica se iniciou quando a peça Exhibit B, do sul-africano branco Brett Bailey, foi desconvidada pelo festival depois de acusada de racista pelo

deslocamentos, como, por exemplo, escalar uma

Jessé Oliveira, diretor do grupo Caixa-Preta,

movimento negro. A explicação oficial foi falta de

travesti para o papel de um cisgênero (pessoas

que se caracteriza por seu elenco majoritariamente

verbas. Os atores ficaram num fogo cruzado – cri-

cujo gênero é o mesmo que aquele designado

de negros e por montagens que releem clássicos do

ticados por ativistas negros, apoiados por racistas

a elas no nascimento). No entanto, o realizador

teatro ocidental a partir da cultura afro-brasileira,

brancos. A solução foi criar intervenções dirigidas

destacou que o principal sujeito nesse processo

questionou onde estaria a negritude em cena. Na

por Lima ao final de três espetáculos do festival,

é o público: “para quem estamos falando? Não

temática das peças? Na cor da pele dos artistas? No

em que os atores negros escalados para Exhibit B

podemos apenas falar para nossos pares”, disse

gestual? O gaúcho condenou a arte cuja narrativa

provocavam o público sobre a questão racial. A in-

Matzembacher.

está sujeita à supremacia branca europeia e que

tervenção chegou até o vetusto Theatro Municipal

Entre outras questões que permearam a

resume o negro a estereótipos, mas alertou para o

de São Paulo, expondo que havia apenas 14 negros

discussão de abertura do seminário, coordenado

risco de o engajamento interferir no resultado ar-

em um público de mais de mil pessoas.

pela diretora e pesquisadora Patricia Fagundes,

tístico: “Em sua maioria, o Teatro Negro é ativista, e

A atriz, professora e diretora gaúcha Celina

estavam estas: como as travestis, transexuais e

assim deve ser, mas por vezes acaba colocando as-

Alcântara, do grupo Usina do Trabalho do Ator

transformistas conseguem ter maior visibilida-

pectos estéticos em segundo plano”. Segundo ele, é

(UTA), registrou seu pioneirismo como primeira

de, com as políticas públicas avançando a passos

necessário estar atento ao binômio forma/função

aluna negra a se graduar em Teatro na UFRGS e

lentos? Como marginalizamos essas pessoas e

da arte: “não adianta ser politicamente relevante e

de ser a primeira professora negra no Instituto

depois as julgamos? Como a arte responde a tudo

não ser cenicamente cativante”.

de Artes da UFRGS. Ela lembrou que várias mon-

isso? Como trabalhar para que a arte trans seja, de fato, representativa?

Eugênio Lima, DJ, ator-MC, coreógrafo, in-

tagens da UTA têm temas ligados à negritude –

tegrante dos coletivos paulistanos Núcleo Barto-

uma discutia a presença dos negros nos antigos

As questões são muitas, mas ainda podem

lomeu de Depoimentos e Frente 3 de Fevereiro,

carnavais de Porto Alegre, outra a relação entre

ser pensadas ao longo do Festival Palco Girató-

defendeu ações artístico-políticas contundentes.

mulheres brancas, negras e índias no RS. Disse que

rio, a partir de espetáculos que estão na progra-

Lima começou lembrando de seus contatos ini-

sua militância tem se dado pelo trabalho artístico

mação e que tratam desse assunto, como B’day

ciais com o teatro: não havia negros nem no palco

e como professora. Na primeira peça infantil em

[ureday!?] (Luiz Manoel, diretor da montagem,

nem na plateia, inexistia temática ou estética li-

que trabalhou, afirmava sua identidade quando

realizou uma intervenção durante o debate),

gadas a sua raça. Naquele momento, para ele, o

sua personagem cantava que era negra e era linda.

Adaptação, BR-Trans, Até o fim, Castanha remix

hip-hop era uma via mais consequente e natural,

Além disso, “só o fato de os alunos terem uma ne-

e Bailinho da Laurita.

pois subvertia a supremacia branca: o negro era o

gra como professora já é um fato novo”.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

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O debate aberto ao público, inclusive com a

A atriz e professora da Universidade Federal

Segundo ela, a gestão de Gilberto Gil no

participação de parte do elenco de Qual a diferen-

do Maranhão Gisele Vasconcellos, que atua no

MinC (entre 2003 e 2008) foi um marco decisivo

ça entre o charme e o funk?, montagem dirigida

grupo Xama Teatro (MA), começou sua fala ex-

para que a cena fora do eixo se movimentasse.

por Thiago Pirajira e orientada por Celina, atração

plicando que, além do fator geográfico, o teatro

“Pela primeira vez, o dinheiro chegou, foi possível

do Palco Giratório, buliu com vários aspectos tão

maranhense é periférico também por conta da

durante uma década se viver de teatro”, excla-

sensíveis como complexos. Existe um Teatro Negro?

inexistência de editais culturais no Estado. Des-

mou. Para ela, houve um reconhecimento, princi-

Ser classificado como Teatro Negro é uma limitação

sa forma, resta a alternativa de disputar editais

palmente durante os governos Lula (2003-2010),

estética? É também uma redução de origem racis-

federais. Mesmo enfrentando um contexto ainda

dos grupos que estavam à margem, batalhando

ta? Quem pode se juntar à luta contra a hegemonia

dominado pela “política dos coronéis”, os artistas

e resistindo pela cultura. Com esse dinheiro, os

branca? De que maneira o lugar de quem se coloca

já conseguem sustentar uma série de iniciativas,

grupos puderam circular, aproximar-se de outras

interfere na sua compreensão e até na forma de

como a Semana de Teatro no Maranhão. O Xama

produções do Nordeste e buscar públicos que até

participação? A restrição a que só negros façam

Teatro integra a programação do Palco Giratório

então nunca haviam visto teatro. O coletivo da

Teatro Negro não significa introjetar uma estraté-

com o espetáculo de rua A carroça é nossa.

Paraíba está na programação com o espetáculo

gia de exclusão? Lima ofereceu sua solução: a vida

O coordenador do Centro Municipal de Dan-

Flor de Macambira. No entanto, para ela, a preo-

é maior, não se deve fugir à complexidade dessas

ça de Porto Alegre, Airton Tomazzoni, citou como

cupação agora é com o que restará para o futuro.

questões, as soluções se alternam e se renovam.

exemplo de “ser fora do eixo” Jean-Georges No-

“Estamos correndo o risco de um retrocesso his-

O encontro terminou com Celina convocan-

verre (1727-1810), bailarino e professor de balé

tórico”, alertou. Afirmou que ainda não é possível

do as mais de 70 pessoas presentes ao Arena a

francês que começou a carreira de forma perifé-

viver dos mecanismos de autossustentabilidade

cantarem com ela uma canção criada pelos ne-

rica e acabou mudando os rumos da dança. Para

e fez um apelo: “Precisamos arrumar formas de

gros sul-africanos durante o Apartheid. A letra

Tomazzoni, “estar fora do eixo é significativo para

continuar fazendo teatro, porque não vamos dei-

pregava “Vamos seguir em frente”. Foi o resumo

produzir coisas experimentais”. Em Porto Alegre,

xar nada para a próxima geração”.

emocional do encontro.

ele destacou o Grupo de Dança Experimental, que

Acompanhando a fala de Christina, a atriz

existe há 10 anos, e apontou que a dificuldade

e professora da UFRGS Mirna Spritzer citou os

de recursos financeiros aliada ao não reconheci-

avanços de Porto Alegre no setor cultural e apon-

mento local do que está sendo produzido contri-

tou que o amadurecimento do teatro gaúcho co-

buem para manter as produções gaúchas no eixo

meçou com a criação do Curso de Arte Dramática

periférico. Conforme Tomazzoni, a cultura precisa

(atualmente DAD – Departamento de Arte Dra-

estar sempre se reinventando para não ser nor-

mática) dentro da UFRGS, em 1957, atendendo a

matizada pelo sistema capitalista.

uma demanda das classes estudantil e intelectual.

Resistir, resistir, resistir Por Michele Rolim Três estados periféricos – Maranhão, Paraíba e

Christina Streva, professora da Universi-

Nas décadas de 1970 e 1980, e no início dos anos

Rio Grande do Sul – estiveram representados no

dade Federal do Rio de Janeiro e encenadora

1990, houve uma proliferação de grupos teatrais

dia 16 de maio, no Teatro de Arena, no seminário

do Coletivo Teatral Ser Tão Teatro (PB) fez um

na cidade – Grupo Teatro Vivo, Grupo Tear, Cia.

Práticas Políticas da Cena Contemporânea, com o

discurso acalorado sobre a situação política pela

Teatral Face & Carretos, Cia. de Teatro di Stra-

tema A cena fora do eixo. O título faz referência ao

qual passa o país. Como ponto de partida, des-

vaganza, entre outros –, alguns deles ainda em

livro do porto-alegrense Fernando Peixoto (1937-

creveu como a extinção do MinC interfere de

atividade.

2012), Um teatro fora do eixo, lançado nos anos

forma direta nos grupos fora do eixo. Quando

Mirna afirmou que, no Rio Grande do Sul,

1990, sobre a produção teatral realizada fora do

Christina começou a fazer teatro, no princípio

ainda é considerado um artista de sucesso quem

eixo Rio-SP. No encontro foram levantadas as se-

dos anos 1990, iniciava-se a criação de meca-

constrói uma carreira em outro Estado e depois

guintes questões: o que é estar fora do eixo? Quais

nismos de incentivo à indústria cultural do país,

retorna à cidade. Lembrou que, nos anos 1960,

as possibilidades para quem não faz parte do cir-

como a Lei Rouanet, mas eram poucos os pri-

o RS exportou uma geração de muitos talentos,

cuito? Como e quando essa cena dita marginal é

vilegiados que conseguiam ter acesso a esses

mas que agora não é preciso sair porque é pos-

reconhecida?

financiamentos.

sível circular nacionalmente com os espetáculos.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

19

Convidada e plateia destacaram a oportunidade

de rua não percebe por completo a cena”. Mas

Farina, Tiago Lopes e Lenara Verle, que recupera

de assistir a espetáculos oferecida pelos festivais

Carreira não encara isso como problema: “Quero

o rastro de personagens urbanos. Com o vídeo

Porto Alegre Em Cena, Festival de Teatro de Rua e

produzir espaço no espectador. Ele tem de lidar

Descanso do faquir, de Stéphane Argillet e Gil-

Palco Giratório. “Precisamos resistir. O que faze-

com o incompleto. Mais ou menos como um

les Paté, Mesquita tentou evidenciar o quanto a

mos é uma arma não partidária. O teatro nasce

atropelamento, quando ninguém tem acessos a

cidade é avessa à participação criativa e mesmo

político porque ele se reconhece no outro”, disse

todos os detalhes. A incompletude é o que pro-

física de quem mora nela.

Mirna. Em seguida, fez uma performance can-

voca e que transforma”.

Como nas outras etapas do seminário, hou-

tando uma canção dos espetáculos de Brecht. A

Vargas trouxe a crise para o campo institu-

ve uma intervenção durante o debate quando

plateia e os convidados aplaudiram longamente

cional. Depois de ler um manifesto pela manu-

Gabriela Schultz, do elenco de Cidade proibida,

ao final do encontro ao som de Apesar de você,

tenção do MinC redigido pela Rede de Festivais

dirigido por Patricia Fagundes, dançou hip-hop.

de Chico Buarque.

de Teatro do Brasil, apontou o que seria uma

Cidade proibida, por sinal, propõe seu modelo

ameaça à renovação da estética do teatro de

de ação urbana ao estabelecer espaços de con-

rua: os artistas moldarem seus trabalhos para

vivência e arte em pontos da cidade considera-

serem mais competitivos na disputa por recur-

dos perigosos à noite. A discussão com o público

sos públicos de editais e prêmios. “Isso leva a

de cerca de 80 pessoas tocou ainda em pontos

que manifestações de rua do Interior do Amazo-

como o procedimento de passar o chapéu ao

nas pareçam com as do Interior gaúcho. Existem

final das apresentações, a manifestação agres-

corredores culturais que ajudam a forjar um tipo

siva de alguns espectadores em relação à arte

O teatro de rua está em crise. Ou melhor: o teatro

de produção. Critico a agenda colocada nos últi-

e aos artistas, a imposição dos editais de exigir

de rua só manterá sua vitalidade caso se man-

mos anos que definiu ou influenciou um tipo de

contrapartidas quase invariavelmente na forma

tenha em constante crise. Essa foi a tônica da

produção artística.”

de oficinas, o atraso no pagamento de verbas de

As boas e as más crises Por Renato Mendonça

etapa A cena na rua, realizada no dia 17 de maio,

O coordenador do Fitrupa apontou um des-

no Teatro de Arena. A escalação dos convidados

virtuamento no processo curatorial de vários

garantiu multiplicidade de focos: André Carreira,

festivais ao proporem grades que não refletem

Focos de crise não faltam, mas Carreira de-

professor da Universidade do Estado de Santa Ca-

sobre si: “Baseiam-se no clichê ‘vamos levar arte

fendeu ser isso inevitável e desejável. Ele lembrou

tarina (Udesc) e diretor do grupo de rua Experiên-

onde o povo está’. Isso é arrogância. Há inteli-

uma ação na Cracolândia de São Paulo, quando

cia Subterrânea (SC) trouxe exemplos práticos e

gência nesses lugares onde alguns creem que

alternadamente experimentou a sensação de

afirmou conceitos; Alexandre Vargas, cofundador

não há”. Vargas preparou o terreno para Mesqui-

apoio aos craqueiros, na condição de artista, e

do grupo Falos & Stercus e criador do Festival de

ta ao afirmar que prefere a expressão “manifes-

depois de medo, como cidadão comum. “Aceite-

Teatro de Rua de Porto Alegre (Fitrupa), fixou-se

tações cênicas de rua” a “teatro de rua”, devido

mos a crise. Às vezes estamos do lado dos pe-

no aspecto curatorial e na estética dominantes na

à multiplicação de formatos dos últimos anos.

riféricos, às vezes dos hegemônicos. Temos de

cena de rua brasileira; Vitor Mesquita, designer e

“Surgiram propostas como colocar um tapete

ter consciência disso”. Vargas observou que o

criador do projeto Urbe, que inclui uma revista

numa vaga de automóvel, promover piqueni-

capitalismo é hábil ao instrumentalizar a arte e

sobre arte urbana, representou o contraponto a

ques noturnos, várias maneiras de ocupação de

sugeriu uma estratégia: “Precisamos ter astúcia

partir de outra área artística.

espaços urbanos”, registrou.

para não nos deixarmos cooptar, porque o sis-

editais, as restrições burocráticas para ocupar a rua, a crispação política atual...

Carreira fez questão de desfazer o mito de

Mesquita usou projeções para comparti-

tema estimula e induz alguns modelos e depois

que as ruas são uma ágora pacificada e confes-

lhar expressões gráficas de arte urbana, como

muda tudo”. A cena na rua enfrenta vários tipos

sou sua ojeriza a expressões-chavão como “res-

grafites e murais, mas lembrou da ação Ecopo-

de crise – algumas bem ruins, mas o encontro no

gate urbano” ou “a cidade é um palco”. Segundo

éticas, dos gaúchos Marina Mendo e Rossendo

Arena reafirmou que a boa crise do permanente

ele, “a rua é espaço de conflito constante. O vín-

Rodrigues, que em uma das performances fica-

autoquestionamento é indispensável para um

culo do espectador na rua é mais tênue do que a

vam suspensos em meio a lixo sobre o arroio Di-

bom artista.

ligação que se estabelece na sala. O espectador

lúvio, e do projeto Cidade Transmídia, de Camila


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

POR Patricia Fagundes

20

Encenadora, pesquisadora e docente no Departamento de Arte Dramática e no Programa de Pós-Graduação da UFRGS. Diretora da Cia. Rústica de Teatro.

PRÁTICAS POLÍTICAS DA CENA: UM SEMINÁRIO FESTIVO

Intervenção cênica de Jackson Brum no encontro Fronteiras, trânsitos e cruzamentos da arte Fotos: Claudio Etges

Um festival de artes cênicas compõe um campo de ações e encontros que pode ser definido por diferentes concepções, como uma obra artística: nada está dado, não há um modelo universal, cada festival é um projeto a inventar. O Palco Giratório do Sesc/POA manifesta, desde o início, um desejo pedagógico, uma vontade de expandir seu campo para além da exibição de espetáculos, promovendo atividades paralelas e relacionadas à programação. Nos últimos anos, tive a oportunidade de colaborar algumas vezes nesse desejo de campo expandido, em seminários, debates, oficinas e encontros[1]. A ideia do seminário Práticas Políticas da Cena Contemporânea parte dessas experiências para desenvolver e arriscar uma nova proposta, que se estendeu durante duas semanas de festival, em oito encontros motivados por diferentes eixos temáticos, relacionados de modos diversos às montagens da programação: questões de gênero, negritude, fronteiras da cena, olhares sobre o real, a cena fora


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

21

1 Em 2012, Circuito Universitário e Seminário Cena Contemporânea e Universidade: Conexões; em 2013, associação na produção da 14ª edição do Simpósio da International Brecht Society, que incluiu oficina e performance com La Pocha Nostra e Gomez-Peña; em 2015, mediando Pensamentos Giratórios e Discutindo a Cena.

do eixo, cena na rua, corpo em dança e práticas

outras realidades possíveis. Durante esses dias, o

historicidade do fenômeno, “a arte sempre foi re-

coletivas. Temáticas e ações que, longe de estarem

vice-presidente passou a ser presidente do país:

lacional em diferentes graus, ou seja, elemento do

isoladas em si mesmas, compõem sentidos do po-

um de seus primeiros atos foi extinguir o Minis-

social e fundadora de diálogo” (ibid:14).

lítico na cena contemporânea, em diálogos e atra-

tério de Cultura, entre outros, como o Ministério

Se compreendemos o teatro como um fe-

vessamentos, compondo constelações.

das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos

nômeno que só acontece em um espaço-tempo

O próprio seminário se propôs como um

Humanos. Mobilizados por esse e outros desmon-

compartilhado entre atores e espectadores, que

campo de convergência entre práticas e discur-

tes, artistas de todo país ocuparam as sedes do

depende da presença física no aqui-e-agora, a

sos diversos: aberto ao público em geral, mas

MinC e do Iphan, em ações conjuntas que reno-

associação entre a dinâmica cênica e a estética

também disciplina especial do Programa de Pós-

vam o sentido e impulso de coletivo, colocando

relacional proposta pelo autor se torna evidente.

-Graduação em Artes Cênicas e atividade para

perspectivas de micro e macropolítica frente a

Parafraseando N. Bourriaud, podemos dizer que

alunos de graduação do Departamento de Arte

frente, questionando e fortalecendo-se mutua-

o teatro é um estado de encontro; um processo

Dramática da UFRGS; formato seminário, mas

mente. Estar juntos, pensar juntos, atuar juntos,

artístico que gera eventos que só acontecem em

também incluiu apresentações cênicas; dentro da

protestar juntos, são ações que se relacionam

relação. Através dessa condição, a cena pode as-

agenda de um festival nacional de artes cênicas e

com a dimensão do social e, portanto, com uma

sumir um papel importante como “laboratório idô-

também parte das atividades do projeto de pes-

perspectiva política da arte.

neo para o estudo dos novos modos e maneiras da

quisa acadêmica Prática de Encontro: o Político

Em Estética relacional, Nicolas Borriaud de-

cultura como processo de comunicação” (Cornago,

na Cena Contemporânea (do qual sou coordena-

fende que a tendência da arte contemporânea é

2005:24); oferecendo um espaço especialmente

dora). Uma tentativa de borrar fronteiras entre

trabalhar na esfera das interações humanas e seu

potente para os desafios contemporâneos.

teoria e prática, reflexão e ação, universidade e

contexto social, mais que na afirmação de um

O teatro se mostra como uma maquinaria de

produção artística, ética e estética, entre outras

espaço simbólico autônomo e privado. “A arte é

experimentação com os modos de relacionar-se,

velhas dicotomias forjadas. Simultaneamente, o

um estado de encontro” (2006:17), afirma o au-

não apenas os evidentes, as convenções aceitas

seminário se afirmou a cada dia como importan-

tor, “um lugar de produção de uma sociabilidade

por uma sociedade ou um teatro, e apresentadas

te exercício político. No meio da turbulenta crise

específica” (ibid:15), que favorece os intercâmbios

como naturais, mas sim as escondidas, as não

do país, justamente nesse período de maio de

humanos e tem como tema central o “estar-junto”

aceitas, as utópicas [...]. Através da criação teatral

2016, estávamos reunidos para pensar práticas

e a elaboração coletiva do sentido, de maneira que

se faz visível o tecido invisível que nos vincula

políticas da cena, nosso papel como artistas no

“uma obra pode funcionar como um dispositivo

com o outro. O espaço cênico se converte em um

mundo, nossas percepções e diálogos com a so-

relacional que contém certo grau de variações

campo de provas onde se define uma ética, ou

ciedade, nossos desejos de transformação e ação.

aleatórias, uma máquina que provoca e administra

seja, um modo de situar-se frente a quem está

Um momento de escuta, troca e questionamento,

os encontros individuais ou coletivos” (ibid:31-33).

diante. (Cornago, 2008:26-27)

em um espaço histórico de resistência cultural, o

Ainda que identifique a ascensão desse aspecto

H. Lehmann define “o teatro como compor-

Teatro de Arena. A cada dia éramos dezenas (uma

relacional na produção artística a partir dos anos

tamento e como situação específica, e particu-

média de 70 pessoas), pensando e imaginando

1990, Bourriaud considera que, independente da

larmente comunitária”, uma situação social que


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

22

2 Conceito desenvolvido pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela (1999) para designar a organização dos sistemas orgânicos, que foi posteriormente aplicado a várias outras áreas do conhecimento. Segundo os autores, o que define os sistemas vivos é sua organização autopoiética, que supõe a capacidade de autoprodução e auto-organização, em processos de contínua interação com o meio. Mesmo mantendo um intercâmbio constante de matéria e energia, que provoca transformações incessantes, os processos operacionais se conservam autônomos. De acordo com essa perspectiva, os seres vivos são organismos que combinam autonomia e relação; sendo caracterizados pela rede de relações que estabelecem e não por seus componentes específicos (tudo que vive é feito de relações, somos uma associação de moléculas, células, órgãos; nossos corpos necessitam de alimento, calor, água, outros corpos).

não é política; ainda que “o que é político está

os tempos que ela recorta e as formas de

Uma comunidade teatral não é apenas

inscrito nele, do princípio ao fim, estruturalmen-

ocupação desses tempos e espaços que

temporária, tão transitória e efêmera

te e de modo totalmente independente de suas

ela determina interferem com o recorte

como qualquer performance. [...] Enquan-

intenções” (Lehmann, 2009:2). Para Ranciere, o

dos espaços e dos tempos, dos sujeitos

to dura a apresentação é capaz de esta-

aspecto político da arte está ligado a formas de

e dos objetos, do privado e do público,

belecer um vínculo entre indivíduos com

ocupação do espaço-tempo:

das competências e das incompetências,

os mais diversos backgrounds biográfi-

que define uma comunidade política.

cos, sociais, ideológicos, religiosos, que

Ela é política antes de mais nada pela

(Ranciere, Jacques. Política da Arte, in

permanecem indivíduos que estabelecem

maneira como configura um sensorium

Urdimento 15 – pág. 46)

suas próprias associações e percebem diferentes significados. A performance

espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora

E. Fischer-Lichte (2008) define a cena como

não os força a uma confissão comum,

ou dentro, face a ou no meio de… Ela

uma atividade entre seres vivos em constante

ao contrário, permite experiências com-

é política enquanto recorta um determi-

inter-relação, que se transformam mutuamente

partilhadas. Através dessas experiências,

nado espaço ou um determinado tem-

sem perder a autonomia, em ciclos de retroali-

a identidade das pessoas não se dissolve

po, enquanto os objetos com os quais

mentação, condicionados por mecanismos da au-

necessariamente, ainda que não possa

ela povoa este espaço ou o ritmo que

topoiesis: “A retroalimentação, como um sistema

ser concebida como algo estável, perma-

ela confere a esse tempo determinam

autorreferencial e autopoiético que permite um

nentemente fixado ou rígido. (Fischer-

uma forma de experiência específica,

processo fundamentalmente aberto e imprevisí-

-Lichte, 2005:58)

em conformidade ou em ruptura com

vel, emerge como princípio definidor do teatro”

outras: uma forma específica de visi-

(Fischer-Lichte, 2008: 39). É a autopoiesis[2] que

É a experiência e a relação com o outro que

bilidade, uma modificação das relações

possibilita a formação da comunidade teatral,

nos formam e transformam, sem que estejamos

entre formas sensíveis e regimes de sig-

um tipo de comunidade de natureza temporária,

forçados a uma conexão permanente ou unifor-

nificação, velocidades específicas, mas

que se estabelece entre atores e espectadores en-

mizadora. Tendo como base princípios estéticos,

também e antes de mais nada formas

quanto dura a apresentação, a partir do encontro

a comunidade teatral constitui uma experiência

de reunião ou de solidão. [...] Se a arte

presencial, da circulação de energias e do inter-

social significativa, em uma perspectiva na qual a

é política, ela o é enquanto os espaços e

câmbio de experiência.

ética e estética estão em plena sinergia.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

23

A trajetória do seminário ofereceu a experiência de várias comunidades temporárias, na qual escutamos, conversamos, brindamos, cantamos, criamos e pensamos juntos. Cada encontro suscitou múltiplas questões, em torno dos complexos temas abordados e à relação arte-política de forma geral: em que medidas e formas a cena contemporânea se relaciona com questões sociopolíticas relevantes no contexto em que se produz, articulando-se com os desafios de nosso tempo? Como inventar e manter um mecanismo criativo/ relacional em funcionamento (processo/criação/ espetáculo), sem reproduzir os parâmetros de comunicação e discurso hegemônicos? Como compor um microterritório social onde outras realidades são possíveis e a invenção compartilhada de mundos se torna viável? Como mobilizar canais de comunicação entre o teatro e a sociedade? Não há respostas definitivas ou únicas para estas e outras questões levantadas, qualquer resposta totalizadora seria uma tentativa de verdade – e sabemos que a verdade é arma dos poderosos. Já as perguntas constituem matéria fundamental para a criação artística, impulsionam desejos de voo. Mesmo em tempos movediços, perigosos e incertos como os que vivemos. Encontrar-nos. No meio da tempestade, de espetáculos, de tanto movimento, respiramos e conversamos, reconhecendo-nos como artistas, cidadãos, colegas, parceiros de navegação nas águas turbulentas do existir e resistir. Que o fes-

Seminário Práticas Políticas da Cena Contemporânea Módulo I

Módulo II

Trans versões – questões de gênero Conversa sobre a ressonância de temáticas de gênero e sexualidade nas práticas artísticas e sociais contemporâneas. Com Felipe Matzembacher (RS), Silvero Pereira (CE) e Guacira Lopes Louro (RS). Intervenção cênica de Luiz Manoel.

A cena fora do eixo Sobre a criação cênica fora do eixo cultural ainda centralizado do país: como produzimos, criamos, compomos redes de relações. O sentido político de estar fora do eixo. Com Airton Tomazoni (RS), Gisele Vasconcellos (MA), Christina Streva (PB) e Mirna Spritzer (RS). A cena na rua A arte que se lança além dos espaços fechados e especializados, ocupando ruas, parques, praças, reivindicando o aspecto público do espaço urbano. Com André Carrera (SC), Vitor Mesquita (RS) e Alexandre Vargas (RS). Intervenção cênica de Gabriela Chultz.

Negritude em cena A cena problematiza a visibilidade e o espaço do negro na sociedade atual, colocando em foco o racismo e a discriminação na composição de poéticas da negritude. Com Celina Alcântara (RS), Eugênio Lima (SP) e Jessé Oliveira (RS). Fronteiras, trânsitos e cruzamentos da arte Os limites da arte estão constantemente sendo expandidos, provocados, reinventados. Borram-se fronteiras entre linguagens, perspectivas, dimensões como arte e vida, estética e ética, ação social/política e criação artística, teoria e prática. Com Fernando Villar (DF), Sandra Rey (RS) e Eros Pereira Galvão (RJ). Intervenção cênica de Jackson Brum. Olhares sobre o real Poéticas que bebem das fricções entre real e ficcional, teatro documentário; memória, realidade e autoficções como matéria da cena. Com Henrique Fontes (RN), Janaina Leite (SP) e Patricia Leonardelli (SP). Intervenções cênicas de Silvana Rodrigues e do grupo de pesquisa Práticas de Encontro (DAD – UFRGS): André Varela, Iassanã Martins, Lauro Fagundes, Matheus Melchionna, Naomi Luana e Vitoria Titton.

Corpo em dança O corpo como espaço ético e político, discursos do corpo na dança. Com Monica Dantas (RS), Dudude Hermann (MG) e Rosa Primo (CE). Intervenção cênica de Paola Vasconcelos e Giovanni Vergo. Práticas coletivas De formas plurais, a experiência política da arte se reinventa em práticas de encontro, que afetam processos, obras, redes de produção, formas de ação e associação. Com Fran Teixeira (CE), Rudifran Pompeu (SP), Simone Rasslan (RS) e Vera Bertoni (RS).

tival continue abrigando esse tipo de ação em campo expandido, que a reflexão e o encontro

agradecendo a todas as pessoas e instituições

sejam parte da festa cênica que a cidade rece-

que participaram dos encontros, já que o que é

be. Que nós, artistas, pesquisadores, professores,

feito no mundo depende de associações, relações,

alunos, criadores, continuemos tentando colabo-

colaborações. É necessário reconhecer, agradecer

rar para uma sociedade menos injusta e violenta,

e celebrar nossas cooperações.

através de nossas ações artísticas e pessoais.

E assim, nesse encontro de pessoas, pensa-

Considerando o material produzido

mento e ação, teoria e prática, ética e estética,

durante o seminário, com tantas falas signifi-

arte e política, reflexão e criação, brindes e pala-

cativas e consistentes devidamente registradas

vras, corpos e perspectivas, o festival se faz festa.

em áudio e vídeo, esperamos que seja possível viabilizar uma publicação em breve, ampliando a ressonância da prática política que foi o próprio evento. Gostaria de finalizar esse breve relato

Fotos: Claudio Etges

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. CORNAGO, Óscar. Éticas del cuerpo. Madrid: Fundamentos, 2008. . Políticas de la palabra. Madrid: Fundamentos, 2005. DIEGUEZ CABALLERO, Ileana. Escenarios liminales: teatralidades, performances y política. Buenos Aires: Atuel, 2007. FAGUNDES, Patricia. O processo de ensaios como mecanismo de relações: um dispositivo festivo. Abrace, 2012. . La ética de la festividad en la creación escénica. Tese de doutorado, Universidade Carlos III de Madrid, 2010. FISCHER-LICHTE, ERIKA. Theatre, sacrifice, ritual. Exploring forms of political theatre. London: Routledge, 2005. . The transformative power of performance. London and New York: Routledge, 2008. LEHMANN, Hans-Thies. (2002). Escritura política no texto teatral. São Paulo: Perspectiva, 2009. MATURANA, Humberto, e VARELA, Francisco. El árbol del conocimiento. Las bases biológicas del conocimiento humano. Madrid: Debate, 1999. RANCIÈRE, Jacques. Ética, estética e política. In Revista Urdimento, vol1, número 15. Florianópolis: UDESC/CEART, 2010.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

24

O palhaço e a contemporaneidade da arte circense Para o ator e diretor Esio

Depois de passar por um momento de baixa ini-

Magalhães, do grupo

ciado na década de 1940 e que se estendeu até o

Barracão Teatro, de Campinas

final dos anos 1970, a partir de um movimento que começou na Europa e no Canadá, onde, em 1984,

(SP), o circo, que incorpora

foi criado o Cirque du Soleil, o novo circo ressur-

outras linguagens artísticas

giu em uma outra proporção. Esio Magalhães, ator

e passa constantemente por inovações técnicas,

e diretor do grupo Barracão Teatro, de Campinas (SP), explica que o circo tradicionalmente se reinventa. Antigamente, por sua natureza nômade, ele

experimenta atualmente uma

também cumpria um papel de noticiário, levando

inédita equiparação ao teatro,

informações dos lugares por onde tinha passado

à dança e às artes visuais, no

para os locais onde iria desempenhar suas funções artísticas. O circo era uma novidade forasteira

Brasil, através de editais e

que encantava os espectadores com suas atrações

incentivos específicos

inéditas e desafiadoras para o público em geral. Segundo ele, com o advento da televisão, essa atribuição se relativizou bastante, uma vez que ela também fazia este papel. Chegou a se ter medo que o circo acabasse. Mas o circo, por ser uma arte eternamente contemporânea, sempre busca uma atualização. Com o surgimento do cinema, por exemplo, os donos de circo logo levaram a novidade para dentro do picadeiro. A TV começou e também foi colocada dentro do circo. Para se aliar e continuar. O circo tem essa preocupação com o processo de formação e socialização. Tem que estar em contato todo tempo com a realidade. Caso con-

O pintor

Foto: Neander Heringer

WWW para FREEDOM Foto: Jorge Etecheber

trário, há perdas, de público e de recursos. Com o novo circo, surgem as escolas de circo possibilitando uma abertura no processo de for-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

25

mação e ingresso de novos artistas circenses. Tal

canadense Sue Morrison, com quem fez um cur-

abertura contribuiu com o progresso no sentido

so de clown antes de criar o espetáculo A Julieta

Eu acho que muitas vezes somente os

técnico, não só da estrutura, mas da própria arte

e o Romeu, em 1999, ao lado de Andréa Macera,

palhaços conseguem atingir determina-

circense. “Até um tempo atrás, jogar três malaba-

com o Barracão Teatro. Diz a frase: “O palhaço

dos pontos de uma tragédia. Eles são os

res era incrível, quatro era surpreendente e cinco

revela a beleza do ridículo humano ou o ridículo

maiores exemplos de pureza e inocência

era fenomenal. Atualmente, jogar malabares é o

da beleza humana.” Então, afirma, a função do

que existe, por expressar tão brilhante-

beabá, todo mundo faz, então a expectativa do

palhaço é nos fazer rir para que possamos nos

mente as tragédias da vida.

público é algo além do já conhecido e, assim, o

ver refletidos nesse ridículo. “O palhaço carrega

Roberto Benigni, em entrevista à Folha

artista cria outras relações com o fazer. Agora

o riso com ele dentro de sua mala para possi-

(5 de fevereiro de 1999).

tem o contato, as figuras no espaço, uma série

bilitar a interação. Sua função é refletir o que

de virtuoses que vão sendo inventadas e incor-

somos através de um olhar risonho. Neste senti-

poradas, porque popularizando-se a arte circen-

do, tem muito material para se pensar humana,

se, mais gente pode contribuir com seus avanços

social e politicamente a nossa presença neste

técnicos. O resultado são as inovações, a evolução

mundo.”

da técnica circense, da técnica artística”, analisa.

O palhaço revela, através das suas bobagens

O circo começa a juntar a questão dramatúrgica,

e das suas ações gratuitas, com muita profun-

utilizar uma temática para falar de alguma coisa,

didade, o potencial das pessoas. Pensando na

como faz muito bem o Cirque du Soleil, seguido

perspectiva do útil, Magalhães fala em ações gra-

por vários outros grupos. A arte circense incorpo-

tuitas, pois: de que forma jogar três bolas para o

ra uma interdisciplinaridade. Magalhães destaca

ar contribui com a humanidade? Girar um piano

que o próprio WWW para FREEDOM, espetáculo

nos pés faz o mundo ser melhor? “Somos capazes

apresentado recentemente no 11º Festival Pal-

de fazer tantas coisas magníficas, de nos supe-

co Giratório Sesc/POA e que está circulando no

rarmos, mas ao mesmo tempo criamos o mundo

Palco Giratório 2016, foi proposto como teatro e,

como ele é: com fome, miséria, injustiça, enfim...

depois, passou a ser classificado como circo ou

Acho que o palhaço está neste lugar: represen-

circo-teatro. É um espetáculo que não tem uma

ta a figura do perdedor, do fraco, do menor, do

grande virtuose circense, nada brilhante. Porém,

imperfeito; entretanto, não sucumbe à derrota.

tem a figura do palhaço, que é uma figura circen-

O palhaço cai, mas se levanta e segue adiante,

se, e essa interdisciplinaridade do circo.

investindo em seu potencial. O palhaço não é

Este momento de retomada também ocor-

um herói. Um revolucionário, um herói, seja his-

re no Brasil. Atualmente, circo se destaca como

tórico seja mitológico, não é um palhaço, que é

uma linguagem artística, assim como o teatro, a

um desajustado. E justamente por ser este fra-

dança, as artes visuais. Tem editais públicos espe-

co, inofensivo, as pessoas o recebem com mais

cíficos e outros incentivos, e instituições como o

abertura, mais desarmadas.” É aí que o palhaço,

Sesc estão dando prioridade de circulação em seu

na avaliação do ator, consegue uma penetração

programa de cultura. Então, o circo está num mo-

em ambientes mais limítrofes, mais conflitantes,

mento de muita efervescência, com suas diversas

mais hostis, como hospitais, zonas conflagradas,

especificidades: o circo de virtuosidades, o circo

campos de refugiados.

de variedades, o circo-teatro. O que mistura um e outro e, ainda, o que apresenta esquetes.

Magalhães, ou o palhaço Zabobrim do Circo do só eu (também do repertório exibido no Festival Palco Giratório, assim como O pintor), explica

O riso que desarma

que, através do riso, abre-se a possibilidade de

A definição de palhaço para Esio Magalhães é

uma imagem muito clara disso: duas pessoas que

muito bem traduzida por uma frase da mestre

se amam brigam. Nesta hora, falam-se coisas que

uma comunicação com mais cumplicidade. “Tem


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

26

nunca seriam ditas. Se um dá uma ‘patada’, o outro se defende. Na defensiva não adianta, pode falar o que quiser, pode ter a razão total da histó-

Esio Magalhães com Andréa Macera, em A Julieta e o Romeu Foto: Michelle França

ria que a comunicação não se faz, pois não existe a escuta. Por outro lado, associados no riso, numa cumplicidade da imperfeição, podemos tocar em outros pontos, mais profundos, delicados, pois há escuta. Isto é muito forte no palhaço, que, justamente por ter a chave do riso, pode entrar nestas zonas mais conflitantes e ser ouvido.”

Subjetividade provocada por uma concretude Magalhães já trabalhava com o que chama de “a menor máscara do mundo: o nariz de palhaço” desde 1995 – inclusive integrou o Doutores da Alegria de 1998 até 2003 –, mas duas experiências vividas na Europa em 2004 reforçaram o caminho de um teatro popular que suplanta e até

leva a lugares que não são óbvios nem concre-

dade do trabalho e este novo pensamento sobre

surpreende pela possibilidade de trabalhar com

tos. Ele tem a sua subjetividade provocada por

o trabalho.”

diversas camadas de compreensão. “No Barracão,

uma concretude.”

No Circo Ercolino, outro episódio fez o ator

apesar de gostarmos de transitar pela erudição,

Na mesma viagem, mesmo com apenas

repensar a função do palhaço. O ensaio para o

isto não é o primeiro convite, não é preciso ter

algumas lições de italiano na bagagem, teve a

espetáculo que começava às 20h teria início às

lido Goethe ou questões da metafísica para com-

oportunidade de atuar sob a direção de Leris Co-

17h. “Pensei, caramba, o Leris é muito seguro

preender nosso teatro, que é pão com ovo.”

lombaioni, contracenando com seu filho Barry

com o que faz. Ele me explicou cinco esquetes,

A primeira experiência foi com Eugenio

no espetáculo Um giro nel cielo e também com o

dando algumas orientações do tipo ‘quando eu

Barba, do Odin Teatret, da Dinamarca, na XII

próprio Leris no seu Circo Ercolino. “No primeiro

girar a vassoura, você abaixa’ etc.; no final da

Sessão da Universidade do Teatro Eurasiano, um

espetáculo, aconteceu uma coisa maravilhosa,

explicação, perguntou: entendeu? O meu italia-

encontro internacional de pesquisadores de tea-

que foi compreender que o palhaço é palhaço

no não era de primeira e respondi: a-acho que

tro de diversos países realizado na região italia-

mesmo sem a máscara. Ensaiamos por uma se-

sim. Ele disse: ótimo, o resto é intuição. Foi in-

na da Calábria. “Levei o WWW para FREEDOM e

mana sem o nariz vermelho, sem maquiagem e,

crível ver o quanto o Leris jogava com a minha

imaginei que Barba, aquele mito, não ia gostar,

no dia da apresentação, quando cheguei carac-

ignorância e desorientação. Eu não entendia, ele

por ser um espetáculo tão simples de palhaço.

terizado com minha maquiagem e o nariz, Leris

brincava com isso e o público gargalhava. Ele

Porém, ao final da apresentação, ele veio me pa-

me perguntou: O que é isso? Estou pronto, disse.

sabia que eu não entedia, mas sabia, ao mesmo

rabenizar no camarim e aquilo me surpreendeu

Mas o que é isso na tua cara? Insistiu Leris e me

tempo, que estava ao lado de um palhaço. Ele ti-

sobremaneira”, conta o ator. Mas foi durante um

mandou tirar tudo. Tirei a maquiagem e voltei só

rava sarro e dizia: Gente quem é que trouxe esse

exercício de improvisação, quando foi proposto

com o nariz, ao que ele determinou: Mas o que

brasileiro, leva ele de volta pro Brasil. O tempo

aos participantes que contracenassem com um

é isto, vai tirar este nariz, pois com esta cara de

todo uma coisa de jogar com a minha cara de

tijolo, que Magalhães, vendo as possibilidades

tonto, você não precisa de mais nada. Foi muito

tonto, e as pessoas morriam de rir do aprovei-

subjetivas trabalhadas pelo grupo, deu-se conta

instigante entrar como palhaço completamen-

tamento que ele fazia disso tudo. O palhaço se

da obviedade da sua criatividade. Ao levar esta

te sem nada, de cara limpa. Há de se pensar, o

diverte, assumindo o seu ridículo a serviço do

preocupação para Barba ouviu: “Vendo seu tra-

que o público vê é o que define o palhaço. Este

divertimento do outro”, conclui.

balho, realmente ele é óbvio, concreto, mas nos

encontro foi muito importante para a continui-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

por Paulo Amaral

27

Agente de Cultura e Lazer do Sesc/RS – Unidade Operacional Alegrete.

A arte como provocação e o senso comum No ano de 2014, em um dos nossos encontros

ri de Culturas, geram tanta polêmica. É verídico que

indígena etc. São as “interdições” de que fala Fou-

técnicos da Cultura, realizado em Porto Alegre,

o principal motivador das críticas, no meu entendi-

cault (aquilo que precisa ser silenciado, proibido). A

nossa coordenadora, Jane Schöninger, organizou

mento, é fruto daquilo que todos os dias se prolifera

provocação também movimentou a arte no século

uma palestra/bate-papo com o professor Flávio

nas redes sociais, a opinião baseada no senso co-

20, com as vanguardas artísticas: surrealismo, da-

Desgranges, autor do livro Pedagogia do teatro:

mum. A qual invariavelmente vem acompanhada da

daísmo, cubismo etc., que ajudaram a transformar

provocação e dialogismo. Meses antes, recebemos

descontextualização da parte a ser criticada.

o olhar artístico, muitas vezes sendo odiadas por

a obra para leitura prévia, a fim de fundamentar

Um exemplo já vivido: “O professor de Histó-

certos setores da sociedade. Na Semana da Arte

com maior propriedade o momento com Des-

ria está exibindo para seus alunos O nome da rosa

Moderna (1922), o público queria bater na pintora

granges. De imediato, já nas primeiras páginas,

(filme de 1986, dirigido por Jean-Jacques Annaud,

Anitta Malfatti devido ao estranhamento que seus

apresenta-se uma provocação da educadora Sonia

baseado no romance de Umberto Eco), quando de

traços provocavam. Vaiaram Villa-Lobos e por aí vai.

Kramer: Para ser educativa, a arte precisa ser arte e

repente adentra a sala de aula a diretora para dar

Toda vez que a arte desacomodar o interlocu-

não arte educativa. O capítulo todo faz uma abor-

um aviso e se depara justamente com a única cena

tor e provocá-lo, ela será consequentemente educa-

dagem praticamente catártica (pelo menos para

de sexo do filme. Baixa as vistas, incomodada, e sai.

tiva. Pois a educação não repousa exclusivamente

mim) sobre a experiência artística como processo

Minutos depois, o professor é chamado na sala da

em conceitos moralizantes, ela é, acima de tudo,

pedagógico desarticulada das percepções reducio-

direção para explicar por que estava passando um

gene de crítica e reflexão.

nistas, que enfatizam somente suas possibilidades

filme pornográfico para os alunos!” O resultado

Penso ser necessário provocar uma transfor-

didáticas de transmissão de informações, com en-

disso é entristecedor. O diretor critica a atividade

mação nas mentalidades, o preconceito contra o

foque restrito às condições morais.

do professor, ignorando todo o contexto históri-

corpo humano, herança medieval, já denunciada

A experiência foi reveladora e na sequência se

co, filosófico, sociológico, literário, artístico, sem

por Rabelais na Idade Média, é hoje retomada por

mostrou desafiadora para nós, que, além de pro-

falar no debate que a aula vai suscitar, por conta

Macaquinhos. Inspirado em Voltaire, afirmo que

gramadores culturais, devemos ser curadores das

de 30 segundos que esteve na sala e presenciou

ainda não assisti à performance. Posso até não gos-

nossas ações. Ou seja, precisamos nos apropriar

uma cena.

tar, é meu direito individual. Porém, defenderei até o

totalmente e em todos os aspectos do objeto a ser

É sempre importante fazer uma viagem pela

fim o direito do artista – que dedicou muito do seu

gerido. Foi a partir dessas reflexões que procurei

História. Em todas as épocas, certos grupos (do-

tempo à pesquisa, à discussão, aos ensaios, à mon-

identificar por quais motivos performances como

minantes) procuraram marginalizar determinadas

tagem – de expressar em total plenitude a sua arte!

Macaquinhos, apresentada na 17ª Mostra Sesc Cari-

manifestações culturais: a arte negra, gay, caipira,


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

Por Alexandre Vargas

28

Ator, diretor e empreendedor cultural. Diretor artístico e coordenador-geral do Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre (www.ftrpa.com.br). Fundador do CPTA – Centro de Pesquisa do Trabalho do Ator (2013). Em 25 anos de atividade em artes cênicas, gerou inúmeros projetos, além de realizar consultorias e curadorias em mostras ou festivais. alexandrevargasft@gmail.com

Decifrando a crise dos festivais de teatro [1]

No ambiente nacional de declínio público, os pro-

A atuação dos festivais nacionais e inter-

blemas dos festivais de teatro vêm sistematica-

nacionais de teatro, em conjunto com o MinC e

mente à tona. Para terminar com os enigmas in-

em parceria com outros órgãos – como o Banco

solúveis e quebra-cabeças mágicos que envolvem

Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

mostras de caráter continuado, faz-se necessária

(BNDES), a Agência Brasileira de Promoção de Ex-

uma reflexão sobre a sustentabilidade e a renova-

portações e Investimentos (ApexBrasil), o Instituto

ção do setor no país.

de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), a Secre-

Acreditar que a crise é cambial, ou de redução

taria de Comunicação Social (Secom) e as estatais

de patrocinadores, ou de custeio de carga, esvazia

–, é decisiva para potencializar a execução e a for-

o caráter objetivo de penetrar na raiz do problema

mulação de políticas de instrumentos financeiros

e dilata autojustificações, além de induzir ao erro.

para o desenvolvimento setorial. Essas ações são

A maioria dos festivais de teatro aborda suas ne-

prioritárias para promover efetivamente o desen-

gociações com o Estado, podemos dizer, com certo

volvimento do setor no Brasil.

espírito de resignação. É uma debilidade pública que

Com o objetivo de ultrapassar seus desafios

tem um alcance muito mais amplo do que as tran-

e ampliar a produtividade de tais parcerias, os

sações políticas e empobrece a todos nós brasileiros.

gestores dos festivais tomam iniciativas para me-

A atuação do Estado por intermédio do Minis-

lhorias na captação de insumos, como a proposta

tério da Cultura (MinC), das leis de incentivo e de

de desenvolvimento de um sistema de indicadores

parcos recursos das estatais, tem patrocinado os

dos festivais brasileiros, cujo objetivo seria o de

festivais de teatro e a difusão das suas atividades.

fornecer informações essenciais ao planejamento

Esse mecanismo se concentra, majoritariamente,

e controle dos processos gerenciais e artísticos,

no apoio à produção e difusão, e não no desenvol-

possibilitando, ainda, o monitoramento e o con-

vimento e na organização desse setor cultural de

trole dos objetivos e das metas estratégicas no

imensa capilaridade. Assim, nos moldes atuais, uma

desenvolvimento de uma política setorial. Diante

atuação mais enérgica, política e pública do MinC

desse contexto, o grupo de trabalho do setor vem

(recentemente extinto e posteriormente recriado)

desenvolvendo, desde 2015, pesquisas que visam a

propiciaria o estímulo necessário ao crescimento

apresentar indicadores de impactos sociais, econô-

do setor, à profissionalização da gestão e à estru-

micos e de resultados formativos desses eventos.

turação das cadeias produtivas da economia e da

Deste modo, estabelece um movimento nacional,

cultura.

sem um assembleísmo inócuo e heroísmo momen-

O grupo de trabalho do setor vem desenvolvendo pesquisas que visam a apresentar indicadores de impactos sociais, econômicos e de resultados formativos desses eventos.

tâneo, que propicia o arranjo institucional para o desenvolvimento de uma política pública setorial. Ao MinC foi solicitado adotar um novo enfoque cultural para o setor como parte de sua função


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

1 Publicado originalmente no Teatrojornal, em 26/2/2016

29

2 O I Encontro Internacional de Políticas de Fomento e Sustentabilidade para Festivais de Teatro contou com a presença dos seguintes representantes do MinC: secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, Guilherme Varela, o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, Carlos Paiva, o diretor do Centro de Artes Cênicas da Funarte, Leonardo Lessa, a coordenadora de Artes Cênicas da Funarte, Maria Mariguella, e o articulador do Ministério da Cultura, Marcelo Bones. Foi realizado pela Quitanda das Artes, através dos Laboratórios Culturais – Programa de Formação e Pesquisas Culturais, com apoio cultural do MinC, por meio da Fundação Nacional das Artes – Funarte, por se inserir no contexto da Política Nacional das Artes, e contou com o apoio da Vila das Artes, da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, do Centro Cultural Dragão do Mar, do Observatório de Festivais e do Festival Popular de Teatro de Fortaleza.

Foto: Rodrigo Gorski Foto: Fernando Pires

institucional. Essa demanda clara foi apregoada no I Encontro Internacional de Políticas de Fomento e Sustentabilidade para Festivais de Teatro[2], ocorrido entre 6 e 8 de novembro de 2015, em Fortaleza. Mais precisamente, os gestores estão solicitando um enfoque que migre da visão de patrocínio para a de desenvolvimento e fortalecimento dessa cadeia produtiva, que possui inerente potencialidade de geração de resultados econômicos, emprego e renda, e ainda inegável capilaridade e valor como expressão simbólica da cultura desenvolvida em nosso país. São inúmeros os festivais na iminência de não acontecer no ano de 2016, porque vêm acumulando perdas que estão abalando o seu sistema de financiamento nos últimos anos, crise que se potencializou recentemente. As perdas estão relacionadas a editais públicos nacionais que deixaram de existir ou não tiveram continuidade; à perda de investimentos no setor; e a um desarranjo institucional do MinC com as estatais. Em alguns casos, os recursos dos editais públicos representam cerca de 40% dos orçamentos dos festivais de artes cênicas independentes. Uma minoria dos estados da Federação possui linhas de financiamento, ou fomento específico para o setor, e a participação dos municípios é praticamente nula nesse processo. O mercado cultural brasileiro dos festivais é vigoroso, mas não é estruturado. A competência dessa estruturação cabe ao MinC, em parceria com as diversas cadeias produtivas da cultura brasileira. Portanto, esse setor está solicitando uma escuta mais apurada do ministério e de seus secretários de Estado.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

30

RISCO DE EXTINÇÃO

Sem uma ação emergencial e estruturan-

No ano de 2015, a verba destinada aos festi-

Os últimos anos têm sido turbulentos para a reali-

te em conjunto com o MinC, as consequências

vais de teatro representou 1,4% do total captado

dade social, econômica e política do Brasil. O con-

serão desastrosas. Podemos projetar a própria

por meio da Lei Rouanet.

servadorismo e a violência se espalharam por todo

extinção de festivais, ou passivos orçamentários,

o território nacional. Nesse contexto, a economia

o que pode ser traduzido por não pagamento de

de empresas privadas, o que corresponde a

vem moldando as ideias dos festivais e as causas

serviços, dívidas com juros acumulados, títulos

R$ 1.001.643.486,21, enquanto o valor com ori-

são as circunstâncias da crise brasileira e a falta de

protestados e inadimplência. Sem contar, eviden-

gem nas estatais representa 12,1% do total,

uma política nacional de cultura setorial para os

temente, a perda do sentido de capilaridade que

R$ 142.529.599,81. A contribuição da pessoa física

festivais. O impacto disso é um relativismo na dinâ-

esses festivais possuem ao fazer chegar à popu-

no total desses recursos é de 2,88%, o que cor-

mica da programação e na logística organizacional,

lação brasileira a produção de artes cênicas de

responde ao valor de R$ 33.979.100,41. Se houve

o que faz com que esses eventos percam suas iden-

outras regiões. [Os parágrafos seguintes exigem

queda na disponibilização de verba de pessoas ju-

tidades e entrem em declínio no sentido público.

paciência do leitor para a travessia de dados fun-

rídicas, por outro lado houve um crescimento de

damentais e raramente assim pensados.]

34,98% na participação da pessoa física, número

Em 2015, o valor total captado no campo das artes por meio da Lei Rouanet foi de

Foto: Marcio Camboa Foto: Fernando Pires Foto: Flávia Correia

Do

montante

captado,

85,02%

veio

significativo que expressa aceitação da sociedade civil e pode indicar uma tendência.

R$ 1.178.152.186,43 (um bilhão, cento e setenta

O valor dos recursos disponibilizados pelas

e oito milhões, cento e cinquenta e dois mil, cento

estatais, os já citados R$ 142.529.599,81, está dis-

e oitenta e seis reais e quarenta e três centavos).

tribuído da seguinte maneira: BNDES, participação

Segundo os dados do Salicnet – sistema de apoio

de R$ 56.031.970,46, alta de 2,4% em relação a

às leis de incentivo à cultura, que permite acesso

2014. Banco da Amazônia, R$ 595.000,00, acrésci-

à base de dados do Programa Nacional de Apoio à

mo de 138% em relação a 2014. Banco do Brasil,

Cultura (Pronac) –, o ano passado, se comparado

R$ 37.345.136,83, queda expressiva de 31,66%

ao de 2014, teve uma retração de 11,73%, o que

em relação a 2014. Banco do Nordeste do Brasil,

corresponde a uma redução de R$ 156 milhões

R$ 3.684.398,74, crescimento de 51,34% em re-

para a cultura no país.

lação a 2014. Centrais Elétricas Brasileiras (Eletro-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

31

brás), R$ 9.563.268,42, outra queda significativa de

R$ 562.360,84; Retrovisor, série de espetáculos te-

tivais de teatro, ainda que os valores fossem ir-

44,74% em relação a 2014. Empresa Brasileira de

atrais, R$ 250 mil; Segunda Temporada Lírica 2015

risórios. Os Correios investiram R$ 5.835.509,10,

Correios e Telégrafos (EBTC), R$ 14.396.861,71, alta

Theatro Municipal de São Paulo, R$ 1 milhão; Sema-

acréscimo de 135,30% em relação a 2014, empre-

de 27,76% em relação a 2014, o que chama bas-

na Arte Mulher, R$ 200 mil; e Programação Cultural

sa que também eliminou o edital público nacional

tante atenção pela sua disparidade com as demais

da 17a Fenamilho Internacional, R$ 250 mil. Pela

que contemplava os festivais e concentrou os re-

estatais. Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), com

disparidade de propostas conceituais contempla-

cursos em montagens e circulações. A Petrobras

R$ 11.050.488,65, queda de 30,44% em relação a

das, é possível perceber que o banco não possui

liberou R$ 10.354.738,65, queda de 24,14% em

2014. E Caixa Econômica Federal (CEF) com a parti-

uma diretriz clara e objetiva para os projetos de

relação ao ano anterior, o que corresponde a uma

cipação de R$ 9.862.475,00, outra queda de 35,63%

patrocínio em artes cênicas, o que dá margem a

perda de R$ 3.295.280,08.

em relação a 2014. Em termos gerais, os valores dis-

especular sobre os procedimentos adotados.

A Caixa Econômica Federal (CEF) participou

pendidos pelas estatais, via Lei Rouanet, no ano de

O Banco da Amazônia disponibilizou

com R$ 3,2 milhões, perda de R$ 3.729.750 em

2015, encolheram 14,95% em relação a 2014, o que

R$ 200 mil; o Banco do Nordeste, R$ 815.252,20;

relação a 2014, quando teve a participação na

corresponde a uma perda de R$ 25.061.054,90.

e o Banco do Brasil, R$ 10.804.397,35 – este com

disponibilização de recursos pela Lei Rouanet

Do montante de R$ 142.529.599,81, re-

queda de 5,86% em relação a 2014. Esses recur-

de R$ 6.929.750. Desse montante, R$ 5.893.750

ferente ao apoio às artes por meio das estatais,

sos foram investidos basicamente em montagens

foram para o projeto Prêmio Funarte Caixa Care-

apenas R$ 33.575.287,83 foram destinados às

teatrais e algumas circulações. No caso do BB, a

quinha de Estímulo ao Circo, da Funarte; R$ 1 mi-

artes cênicas em 2015 (circo, teatro e dança), ou

produção é fortemente concentrada nos estados

lhão para O Ritual do Ilê Aiyê no Carnaval 2014; e

seja, 23,56%. Observa-se que, em relação a 2014,

que possuem CCBB, como RJ e SP, além da cidade

R$ 36 mil para o espetáculo O duelo. Na verdade,

é uma queda de 29,4%, o que corresponde a uma

de Brasília. O BB não possui um edital público na-

a participação da CEF para o teatro em 2015 foi

perda de R$ 9.872.416,13.

cional para os festivais de teatro.

nula, pois esse valor de R$ 3,2 milhões, informado

A distribuição desse valor de R$ 33.575.287,83

A Eletrobrás destinou R$ 3.303.029,69, que-

no Salicnet como “artes cênicas”, patrocinou os

se deu da seguinte maneira: em 2015, o BNDES

da de 54,89% em relação a 2014, o que corres-

seguintes projetos: Bloco Afro Muzenza – Carna-

patrocinou cinco projetos, num total de

ponde a uma perda de R$ 4.019.958,05. Há mais

val 2015 – Nordeste negro, com R$ 400 mil; Filhos

R$ 2.262.360,84, assim distribuídos: Bolshoi Bra-

de dois anos, a estatal eliminou seu edital público

de Gandhy – Carnaval 2015 – Águas sagradas e

sil 15 Anos – Um espetáculo na Capital Federal,

nacional, um dos poucos que contemplava fes-

Oficinas de Capacitação para o Mercado do Car-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

32

naval, com R$ 1 milhão; O Ritual do Ilê Aiyê no

cursos diretos e edital público nacional, o valor

A distribuição desse valor se deu da seguin-

Carnaval 2015, também com R$ 1 milhão; Cortejo

de R$ 2.328.610. Para 2016: R$ 1,795 milhão, re-

te maneira: BNDES, Banco da Amazônia, Banco

Afro – Carnaval 2015 – Iansã balé: A dona porteira

tração de 22,92%, com o agravante de que 30%

do Nordeste do Brasil e Correios não destinaram

do continente africano e Oficinas de Capacitação

desses recursos estão concentrados no Sudeste.

verba para o setor. O Banco do Brasil aportou

para o Mercado do Carnaval, com R$ 400 mil;

O MinC detecta que a maior parcela dos recursos

R$ 873 mil para os seguintes eventos: Festi-

e, por fim, Malê Debalê – Carnaval 2015 – Kirimurê:

do mecenato é destinada à região; no entanto, o

val Internacional de Teatro de Bonecos (MG),

o Malê reconta o recôncavo e Oficinas de Capacita-

montante disponibilizado pela CEF em 2016, que

R$ 340 mil; Festival Panorama 2015 (RJ), R$ 60 mil;

ção para o Mercado do Carnaval, com R$ 400 mil.

não é por meio de leis de incentivo, está concen-

Mostra Estudantil de Teatro (RJ), R$ 33 mil; e

Chama a atenção que esses projetos tenham sido

trado no Sudeste, o que revela a fragilidade da

IV Cena Brasil Internacional (RJ), R$ 440 mil.

enquadrados como “dança”, artigo 18, o que tec-

relação das estatais com o ministério.

Ainda no ano de 2015, a Eletrobrás, por meio

nicamente significa 100% de isenção fiscal. Em

No ano de 2015, a verba destinada aos fes-

da Companhia Energética de São Paulo (Cesp),

anos anteriores, a maioria foi enquadrada como

tivais de teatro representou 1,4% do total capta-

destinou R$ 500 mil para a Mostra Internacional

música, exceção a O Ritual do Ilê Aiyê no Carna-

do por meio da Lei Rouanet, R$ 16.494.130,61.

de Teatro de São Paulo (MITsp), sendo R$ 250 mil

val 2014. É difícil de pensar nesse processo sem

A participação das estatais sobre tal montante

para a segunda edição e outros R$ 250 mil para

intermediação de interesses. Pois estamos falan-

foi de 11,78%, o que equivale a R$ 1,943 milhão.

a terceira, que acontece em março de 2016. A Pe-

do de R$ 3,2 milhões investidos no Carnaval da

Destaque-se que 88,22% dos recursos de capta-

trobras distribuiu R$ 570 mil assim: R$ 320 mil

Bahia e lançados no sistema do Salicnet como

ção da Rouanet para festivais são de origem de

para o XVII Festival de Teatro Brasileiro (DF) e

artes cênicas.

renúncia fiscal das empresas privadas. Portanto,

R$ 250 mil para a Mostra de Teatro (RJ). Já a Cai-

A CEF é, hoje, a única estatal com um edital

dos R$ 33.575.287,83 destinados às artes cênicas

xa Econômica Federal anunciou participação de

público nacional para os festivais. No entanto, so-

em 2015 (circo, teatro e dança), apenas 5,79% foi

R$ 3,2 milhões, mas, na verdade, significa R$ 0,00

freu forte queda nos seus investimentos em 2016.

para os festivais, o que corresponde ao valor de

(zero real), pois esse valor patrocinou o Carnaval

No ano anterior, o banco investiu, através de re-

R$ 1,943 milhão.

na Bahia.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2016

33

Como podemos verificar, os recursos se con-

veria ser emitido sobre a relação do MinC e as es-

centram no Sudeste, com exceção do XVII Festival

tatais, de modo a investigar se a falta desse alinha-

de Teatro Brasileiro (DF) que aconteceu no Pará,

mento político e institucional, não estaria, de fato,

no Espírito Santo, em Alagoas, no Ceará e na Pa-

transgredindo o princípio do interesse público.

Foto: Fernando Pires

raíba, e do investimento da CEF, voltado para o

O MinC considera positiva a decisão do TCU

Carnaval baiano. Tais recursos são inexpressivos

de que projetos culturais lucrativos não se bene-

se comparados ao valor total de captação por

ficiem da Lei Rouanet. A justificativa é de que há

meio da Lei Rouanet. No entanto, é valor extre-

distorções na lei, que beneficiaria apenas “consa-

mamente relevante para o setor, uma vez que o

grados” e não atenderia aos interesses públicos.

MinC não possui nenhuma linha de investimento

Sim, existem distorções na Lei Rouanet, mas não

deve sair até março a nova instrução normativa da

ou fomento nos inúmeros festivais de teatro no

é verdade que o mecanismo beneficia apenas no-

lei, buscando dar mais eficiência e rapidez às aná-

Brasil, alguns com mais de 40 anos.

mes consagrados. A representação que provocou

lises de projetos. Precisamos que o Senado aprove

a decisão do MP junto ao TCU se refere ao Rock in

uma nova lei? Mas e o projeto do Programa Nacio-

Rio, mas os ministros estenderam os efeitos de tal

nal de Fomento e Incentivo à Cultura (ProCultura),

Quando o sistema de subsídio à cultura via renún-

decisão a todos os eventos culturais que buscarem

que ainda está em tramitação, recebeu quais mo-

cia fiscal foi criado no Brasil, há quase 25 anos, o

apoio da lei. A alegação MP e do TCU é de inversão

dificações?

contexto era de profunda recessão orçamentária

de prioridades no uso de recurso público.

FALTA DE ALINHAMENTO

O debate é rico para a sociedade e quando

para a cultura. Podemos dizer que o panorama de

Segundo os dados do Salicnet, a empresa

outras instâncias participam dele é sinal de que

viabilização financeira do setor cultural mudou em

Correios é a maior patrocinadora das duas últi-

a questão está reverberando mais amplamente, e

mais de duas décadas, mas temos que assumir que,

mas edições do Rock in Rio, contribuindo em 2013

não apenas no âmbito do setor cultural. Cabe ao

nos últimos anos, e mais especificamente em 2016,

com R$ 3 milhões, o que representa 31,08% sobre

MinC expor à população, com clareza, por que a Lei

a profunda recessão para a cultura explodiu. Cabe

o total do valor captado pela Lei Rouanet. E com

Rouanet é incapaz de lidar com a complexidade da

destacar que a precariedade no sentido conceitual,

R$ 2,04 milhões em 2015, o equivalente a 50,50%

cultura nos termos atuais e por que o ProCultura

público e republicano sobre os direitos e a econo-

do valor captado via Lei Rouanet pelo referido

é uma lei melhor.

mia cultural é um retrocesso sem precedentes que

projeto. O viés concentrador delegado somente à

Institucionalmente, quem deve ser capaz de

compromete a estruturação social do país.

Lei Rouanet é uma falsa pista. Existe inversão de

lidar com a complexidade da cultura brasileira é o

Os interesses e o risco do dirigismo sempre

prioridades não apenas no uso do recurso público,

Estado e não a Lei Rouanet ou o ProCultura. É o

existem, seja do governo, dos empresários, da mi-

mas também na constituição da agenda política.

MinC que, soberanamente, cria condições para fo-

litância do partido da hora, da classe artística, dos

A distorção é na condução da política pública da

mentar as atividades sem apelo mercadológico, de

sindicatos ou dos congressistas. O significativo é

cultura, e não apenas no uso de recursos da Lei

experimentação e de formação. E deve fomentar

termos uma política cultural e de mecanismos de

Rouanet. Não é grave que os Correios, uma estatal,

também o mercado cultural que explora as dinâ-

fomento e financiamento que dê conta do direi-

sejam a maior patrocinadora via Lei Rouanet nas

micas lucrativas e o estímulo às parcerias público-

to constitucional do cidadão de estruturação do

duas últimas edições do Rock in Rio?

-privadas, trazendo recursos para a cultura. Sem

crescimento do setor cultural. E ainda profissio-

Cabe ao MinC expor à população, com clare-

nalização da gestão e da estruturação das cadeias

za, por que a Lei Rouanet é incapaz de lidar com a

produtivas da economia da cultura. Função repu-

complexidade da cultura.

falar nas questões trabalhistas, fiscais e tributárias. É difícil conceber um panorama nos festivais que esteja centralizado no fato artístico e público

Ainda que a Lei Rouanet não atenda às de-

com as circunstâncias descritas. As dificuldades

mandas da cultura nacional, o alcance, a trans-

são mais robustas do que a questão cambial ou a

Como demostramos com as distorções re-

parência e os resultados desta não encontram

reformulação da Lei Rouanet, ou a aprovação do

latadas, é clara a falta de alinhamento político e

paralelo em nenhum outro programa do MinC.

ProCultura. A necessidade é de que o MinC assuma

institucional do MinC com as estatais, o que pode

Milhares de projetos em todos os estados são

com vigor e inclua na sua agenda pública e política,

indicar inversão de prioridades no uso de recursos

operacionalizados, sem precedente no Brasil, o

para a sociedade brasileira, a adoção de um novo

públicos, agravada ante a escassez de verbas para

que torna a Lei Rouanet o principal mecanismo de

enfoque cultural como parte de sua função insti-

a cultura. Um parecer técnico do Ministério Público

financiamento da cultura na atualidade. Corrigir

tucional para o setor dos festivais de teatro no país.

(MP) ou do Tribunal de Contas da União (TCU) de-

as distorções é imprescindível e, segundo o MinC,

blicana do MinC que o setor dos festivais de teatro vem reivindicando.


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2016

34

#16 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que, nos últimos anos, participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição repre-senta um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. As próximas páginas apresentam uma pequena parte da longa trajetória artística da atriz e diretora de teatro Maria Alice Vergueiro, homenageada na 11ª edição do Festival, a partir de depoimento do parceiro Luciano Chirolli, trechos de críticas de espetáculos e de uma entrevista com a própria artista. O espetáculo Why the horse?, em que o Grupo Pândega encena a morte de Maria Alice, abriu o Festival gaúcho e circula pelo país até o mês de novembro.


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2016

35

Por Clarissa Eidelwein Jornalista

Maria Alice Vergueiro Why the horse?

Foto: Claudio Etges

As três velhas

Foto: Fábio Furtado

Why the horse?

Foto: Claudio Etges


primeiro SEMESTRE

CADERNO DE TEATRO

2016

36

As três velhas

Foto: Fábio Furtado

Bemvinda

Como lidar com Ela, antes que Ela chegue? "Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer", disse Gil. E se eu não quisesse ser pega de surpresa, era melhor ensaiá-la.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

37

1 Maria Alice Vergueiro (texto do programa do espetáculo Why the horse?)

Que elementos do meu percurso poderiam me aju-

Por que encenar sua própria morte?

to interessante trocar com tantas pessoas

dar? Jodorowsky, cuja confluência artística se ini-

De repente me vi no fim. Foi uma espécie

diferentes! Saber que o espetáculo tem re-

ciou com a montagem de As três velhas, já estava

de entendimento, não sei. Senti que era o

ceptividade em tantos lugares e que a morte

presente e atuante, com seu realismo onírico e um

momento de falar sobre a morte. Algumas

é realmente um tema fantástico. Fico muito

convite ao mergulho na própria genealogia – os

coisas aconteceram e contribuíram para eu

entusiasmada que o Why the horse? seja o

vivos e os mortos que me acompanham. De Jodô

me aproximar mais radicalmente do tema:

espetáculo homenageado desta edição. Com

a Arrabal, seu antigo parceiro de trabalho, foi na-

estive internada durante parte do processo

mais de 50 anos de carreira, sempre no te-

tural; e logo voltei a Beckett, inicialmente com seu

criativo com o grupo, o Pândega. Estávamos

atro dito experimental, é muito gratificante

Fim de jogo, mas também Malone morre. Em segui-

ainda tentando descobrir sobre o que falar,

ver que o Sesc quis abraçar um trabalho tão

da, a alumbrada Hilda Hilst, conversando amorosa-

inspirando-nos em alguns autores como Be-

radical quanto este. Para mim, é uma prova

mente com Ela em suas Da morte, odes mínimas.

ckett, Arrabal, Hakim Bey, Jodorowsky. Mas

de que fazer o que você realmente está a fim

E não demorou para que também Brecht e Lorca se

a coisa ainda não estava lá, sabe? Durante a

de fazer em arte é um caminho possível, por

reaproximassem, como não poderia deixar de ser.

internação – por conta de uma infecção no

mais que possa ser difícil às vezes. Engraça-

Aos poucos me vi amparada por essa extraordiná-

joelho – pensei na morte. Pensei também na

do que só agora estou me aproximando do

ria família teatral que faz parte da minha história.

morte do meu irmão, que disse que sentiu

Sesc. É uma parceria fecunda e feliz. O Da-

Ao lado deles, dispostos a assumir comigo mais

medo quando próximo da morte. Pensei que

nilo Miranda (diretor regional do Sesc/SP) é

este risco cênico, meus companheiros do Grupo

estava começando a ter medo da proximida-

um rapaz muito simpático e deu muita força

Pândega, a começar pelo Lucci, do meu lado há

de da minha. Pensei como fazer para deixar

para o projeto (o espetáculo estreou no Sesc

pelo menos metade da vida. Serroni, meu parceiro

de temê-la... vou ensaiá-la. Nem tão rápido,

Santana/SP, em abril de 2015), e continua

em tantas empreitadas, Bonfanti, generosamen-

nem tão lógico. O grupo inspirou muito, foi

dando porque a peça não parou, nem de

te disposto às minhas loucuras; Fábio, Carol, me

fundamental para o meu entendimento de

circular nem de se modificar. A convivência

apoiando sem rodeios pelo menos desde As três

que era sobre isso o que eu gostaria de fa-

em grupo também é uma coisa que o Palco

velhas; Alê, que soube carinhosamente dar ao es-

lar, de que era com essas pessoas, de que

Giratório conseguiu intensificar, e eu sempre

paço nossos ímpetos poéticos; o incansável Pedro,

eles também gostariam de falar sobre isso...

gostei desse tipo de troca; é uma troca muito

atento a todos os detalhes, dos apontamentos às

O medo está passando, porque era um medo

criativa e tem gerado novas relações e novas

músicas; Robson, que veio em tão boa maré, e fi-

daquele tal momento do encontro profundo

ideias, possíveis novos trabalhos. E tem o Pen-

cou; Elisete, ela também parceira de outros carna-

consigo mesmo, aquele, talvez o único, mo-

samento Giratório e também as oficinas, que

vais, que não deixa faltar nada; Otávio e sua sensi-

mento frontal mesmo. E quero estar presente

têm sido momentos maravilhosos que me

bilidade mais que musical; Cícera, que de ajudante

diante da morte, como alguém que aguarda

ajudam muito a compreender o que estamos

acabou se enamorando do teatro. Todos estavam

e, portanto, é ativa perante ela. Daí a gente só

fazendo; além, é claro, de poder escutar, ao pé

ali, dispostos a mergulhar comigo em universo tão

pensa naquilo. Dorme e acorda pensando. Daí

do ouvido, vários sotaques diferentes.

difícil. Logo senti que precisava ir além dos textos

convive com a coisa.

que já conhecia. Tinha de ser mais simples, mais di-

O que mudou em relação ao fazer teatral

reto. Voltamos então a Jodorowsky, este meu velho

Qual o significado da homenagem do

amigo desconhecido, para encontrar na estrutura

projeto Palco Giratório?

ao longo do tempo? O que me motivava no início da carreira era

aberta de seus "efímeros pánicos", ou happenings,

O Palco Giratório representou, está represen-

o início da pesquisa. O que me motiva hoje

um caminho. Que outra forma haveria para lidar

tando, a possibilidade de conhecer o Brasil.

é a continuidade da pesquisa, que agora in-

com o que desconhecemos tão profundamente,

Imagina só, eu, aos 81 anos, sem conhecer o

depende da minha existência, porque estou

mas que nos acompanha desde sempre?

meu país. Estou conhecendo agora e é mui-

contida nela.

[1]


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

38

2 Edição a partir da transcrição de conversa por telefone, com a participação de Maria Alice.

Um casamento artístico

falava por 25 minutos sem parar, num fluxo. Beckett escreveu a peça na Argélia, onde, na chegada ao país, encontrou uma senhora de idade, no ponto de ônibus, de cócoras, esperando uma criança. De burca. Eles se olharam e o escritor, perturbado, escreveu o texto uma noite imaginando o que a mulher, sem a burca, falaria, já que com os olhos ela já se ex-

A partir do relato de

Maria Alice Vergueiro era um sonho de consumo

pressava muito. São vários assuntos, várias coisas,

sua própria trajetória,

meu antigo que começou bem antes de 1992. Eu

exige uma velocidade. Aquela boca que nunca pode

cheguei de Minas Gerais em 1982 e a primeira peça

falar, falaria numa velocidade absurda. Então, a Ma-

que eu vi, no Teatro da Aliança Francesa, no Cen-

ria Alice falava e realmente foi uma das coisas mais

Luciano Chirolli,

tro de São Paulo, foi muito impactante. Em meio

impressionantes que eu já vi na vida. Fui ver três ve-

o Lucci, discorre

a prostitutas e travestis logo vi as atrizes da peça

zes, só que a Maria não voltava para agradecer e eu

Mahagonny Songspiel, de Bertold Brecht, com dire-

ficava na porta do teatro pra tentar falar com ela,

ção de Cacá Rosset, chamando o público para entrar

que saía pela porta dos fundos. Eu ficava decepcio-

no teatro. Entrei e fiquei encantado com a Maria

nado, triste. Eu estava enlouquecido por aquela atriz.

o ator e diretor

sobre momentos da carreira de Maria Alice VERGUEIRO, sua parceira

Alice, a peça toda era muito boa, mas ela chamava

artística desde 1992[2]

muito atenção por cantar pra “caramba”, era uma

Teatro Ornitorrinco núcleo 2

performance muito bonita. Era teatro! E eu vinha de

Em 1992, ano em que me formei, fui chamado pra

Minas, onde se fazia um teatro muito careta.

fazer uma peça com ela. Fomos escolhidos por uma

Maria Alice na Casa do Sol, de Hilda Hirst Fotos: Fábio Furtado

Em 1986, um professor de estética da Escola

diretora, não era um projeto nem dela nem meu.

de Arte Dramática (EAD), disciplina em que estuda-

Nos encontramos e foi paixão à primeira vista. Ti-

ríamos Beckett, disse: “Existe um verdadeiro Beckett

vemos uma sintonia imediata e acabamos aban-

em cena atualmente e é obrigatório que vocês assis-

donando a diretora e fizemos o espetáculo nosso.

tam à peça e observem o trabalho de uma atriz.” Era

Maria Alice sempre trabalhou com teatro de grupo,

Maria Alice em Katastrophé. Rubens Rusche dirigiu

ela vem do teatro alternativo, ela vem do teatro da

Maria Alice em três peças curtas, mas a que mais

Escola de Aplicação, da USP, onde formou grupo

chamava a atenção era a abertura. Apenas uma

com os alunos, Cacá Rosset foi um deles. Os dois,

boca em cena. Maria Alice ficava amarrada numa

junto com Luiz Roberto Galizia, formaram o Teatro

cadeira pra que a boca não saísse do foco, e a boca

Ornitorrinco, em 1977. Porém, nessa época, a rela-


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

39

ção de Maria Alice com o grupo estava desgastada.

gem, que nunca aparecia para Belisa, mas trocavam

com a condição de que eu fosse também. Sorte dele

Galizia, com quem Maria Alice mais se identificava

cartas, um quê de Cyrano de Bergerac, cantava uma

porque nós brilhamos, junto com Eduardo Silva, na

artisticamente, morreu em 1985, e ela pensou em

música brasileira, como Villa-Lobos. Fizemos Costa

peça dele. A comédia dos erros, de Shakespeare, fi-

criar um núcleo 2 no Ornitorrinco, um grupo menor

Rica, seis cidades na Espanha, quatro em Portugal,

cou dois anos em cartaz, de quarta a domingo, duas

para fazer espetáculos de câmara. E me chamou, as-

Colômbia. O espírito de grupo renasceu, fez Maria

sessões sábado e domingo. Um grande sucesso, mas

sim como o Ricardo Castro, que morava na Bahia e

Alice reviver uma esperança. Era o Teatro do Orni-

novamente se comprovou a relação desgastada.

que ela havia assistido em A bofetada (com a Cia.

torrinco núcleo 2.

Gostamos porque ganhamos dinheiro, mas como

Baiana de Patifaria). Maria Alice nunca quis uma

Castro voltou para Bahia por questões finan-

carreira solo. Ela acredita realmente nesta força que

ceiras, a Rosana foi pra Índia – hoje é um dos maio-

vem da junção de ideias.

artistas nos sentimos bastante podados. Então, novamente, ficamos apenas nós dois.

res nomes da ioga brasileira – e não conseguimos

Em 1996, deparamos-nos com um texto de

Coincidiu de estarmos sendo convidados para

manter nosso grupo, mas conseguimos montar um

Thomas Bernhard. Decidimos não vender mais a

fazer uma peça no Festival de Miami, que gira muito

casal forte: Maria Alice e eu. Começamos a estudar

ideia de grupo. Eu estava fazendo Quíntuplos e diri-

em torno de grupos latino-americanos. Fomos com

propostas, ler vários autores, ela sempre gostou de

gi Maria Alice no seu primeiro Prêmio Shell, com a

O amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu jardim,

caçar autores inéditos, contemporâneos. Em 1995,

peça No Alvo.

de Garcia Lorca, com direção de Maria Alice. Foi um

fizemos mais uma tentativa de formar um grupo,

sucesso arrebatador, uma peça de 45 minutos, tão

com um jovem dramaturgo porto-riquenho, o Luis

Processo produtivo

simples, uma fábula espanhola que encantou os ju-

Rafael Sanchez. Convidamos Christiane Tricerri, do

O trabalho começou, como sempre, com a obses-

rados do festival e foi indicada para vários outros

Ornitorrinco, porque o coletivo satisfaz muito Ma-

são da Maria Alice pela palavra. Não se curvava

festivais internacionais. Acho que o trabalho surpre-

ria, ela gosta duma reunião, pra discutir ideias, ter

diante da tradução e fez um trabalho muito ár-

endeu pela qualidade de atores, estávamos muito

mais gente, mais opiniões. Gostaria que todo dia

duo, rigoroso, de revisão da tradução, como já

fortes e tinha uma tropicalidade. Maria Alice fazia

tivesse todo mundo, que o figurinista participas-

havia feito em Katastrophé. Sentou comigo, com

uma alcoviteira que arma o casamento de Belisa. Ela

se dos ensaios, uma ideia de comunidade. Porém,

o Wolfgang Pannek, diretor, ator e dramaturgo ale-

com 18 anos ele com 80. Menina livre, cheia de de-

tudo isso fica mais difícil com o passar do tempo.

mão, e ficava estudando o movimento da boa boca

sejos, que ao mesmo tempo que vai casar com um

Fizemos Quíntuplos, só dois atores, Christiane e

mais perfeito, aquele que traduzisse melhor o sen-

senhor de 80 anos está descobrindo a vida e quer

eu, com direção dela. A peça foi bem, não bombou

timento, a musicalidade. Foi um processo muito

dar pra todo mundo. Maria colocou a personagem

como o Lorca, mas teve uma boa carreira por todo

rico, de destrinchar o texto do Bernhard, um autor

de Rosana Seligman nua em meio a uma cenogra-

o Estado de São Paulo.

que escreve livre de pontuação e você faz a divisão que quiser. Foram meses de trabalho de mesa.

fia e um figurino requintados, o que fez as pessoas

No mesmo ano, Cacá Rosset convenceu Ma-

perceberem que aquela beleza não era brasileira, era

ria Alice que tinha um sucesso nas mãos e que ela

A primeira temporada já foi um sucesso. Na

uma sensualidade típica do Lorca. Outro persona-

tinha que voltar para o Ornitorrinco 1. Ela aceitou,

segunda, com o fim de Quíntuplo, eu entrei para


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

40

elenco. Já tinha uma compreensão do espetá-

muito no trabalho de grupo; aliás, o grupo dele

teatro, então teríamos que fazer aquele negócio

culo como um todo. Era meu primeiro trabalho

é a família: filho, neto, tio, sobrinha. Essa coisa

de adaptado do romance...

de direção. Fui indicado pro Shell e outros dois

de união é uma herança de circo, ele vem de uma

prêmios. Tive a infelicidade de concorrer com um

família circense que vai embaixo da mesma lona.

mestre de encenação, o Henrique Dias, com Me-

Já estávamos de paquera com algumas pes-

E foi quando a Maria Alice pegou uma infecção

lodrama, uma obra-prima. Perdi os três prêmios e

soas. Deu certo. Nos dedicamos por três anos a

hospitalar ao colocar um neurotransmissor no

foi merecidíssimo.

estudar o autor. Começamos a produção com o

cérebro, por causa do Parkinson. Ela necessitava

Em 2002, Maria Alice aceitou o convite para

Fábio Furtado, um dos fundadores do Grupo Pân-

de um monitoramento cerebral, cujo equi-pa-

fazer Mãe Coragem e seus filhos, de Brecht com

dega, que começou como tradutor do Jodorowsky.

mento só tinha na UTI e teve que ficar lá. Mas,

direção de Sérgio Ferrara. Eu também fui convi-

Eu propus experimentar uma dramaturgia que eu

pelas suas condições de saúde, ela não tinha que

dado e era um personagem incrível. O espetáculo

acredito, mais performativa, e a Maria Alice: “so-

estar lá. Um dia morreu o vizinho da esquerda;

teve uma carreira longa, esteve no Porto Alegre

mos um grupo, vamos ver qual é”. E As três velhas

outro dia morreu o da frente; e ela estava p. da

em Cena, tudo muito bonito, mas nunca deixá-

deu no que deu. Um grande sucesso. Não aquele

vida. O que eu estou fazendo aqui? E esta se tor-

vamos de lado a ideia de que tínhamos que in-

sucesso de bilheteria, mas no sentido de que todo

nou a grande questão do momento. O que nós

sistir para montar com nossos pares. Já estáva-

mundo que viu saiu modificado. E nem todo mun-

estamos fazendo aqui? Colhendo material para

-mos mais do que definidos como um grande

do viu. Pelo contrário. Esse conceito de sucesso é

o próximo trabalho, no mínimo isto. Quando ela

casamento artístico, mas precisávamos voltar à

muito ímpar da Maria Alice, e eu herdei isso. Ro-

teve alta, não totalmente, porque a bactéria ainda

ideia do Galizia e do Luís Antônio Martinez Cor-

damos o Brasil inteiro, fomos pra Cuba e, ao final,

está alojada na prótese do joelho e ela vive de

rêa (colaborador do Ornitorrinco) – falecido em

Maria disse que estava um pouco cansada, pois a

antibiótico, decidimos fazer a peça.

1987, também uma perda irreparável para Maria

peça exigiu muito. Ela dirigiu e atuou, uma direção

Então, a busca da saúde para dialogar com

Alice – de que o trabalho de grupo horizontaliza

horizontal, todo mundo dava opinião e ela fazia o

a morte, que também está vindo lentamente de

a criação, abre o campo de visão, e a riqueza do

acabamento final. Ela lançava a ideia e todo mun-

encontro a nós todos. Todos nós queremos falar

teatro está nisso.

do corria atrás. Foi a primeira peça que ela fez de

um pouco da morte de todos nós, não apenas ela.

cadeira de rodas, já com Mal de Parkinson.

Começamos a pesquisar isso. Para não falar só de

(Um dia desses, um conhecido nosso falou:

A bactéria

Se Luís Antônio e Galizia não tivessem morrido tão

Maria Alice falou que queria dirigir e pensa-

morte, o grupo propôs vários jogos, várias ideias.

jovens, a história do teatro brasileiro teria sido ou-

mos num Beckett, já que ela é a maior atriz be-

Na estreia, ao final, Maria Alice se levantava e

tra. E Maria Alice concorda plenamente, eram dois

ckettiana deste país e eu sou um cara que nunca

era ovacionada, jogavam flores. E ela: “está tudo

expoentes do teatro, pessoas revolucionárias.)

fez um. Lemos algumas peças, discutimos com o

errado. Como que vou encenar a minha morte e

grupo, Fábio ao centro, com Carolina Splendore, a

saio do teatro com as pessoas gritando ‘divaaa’,

O encontro com Jodorowsky

Elisete Jeremias (diretora de cena), Robson Cata-

‘maravilhosa’.” Sem velório, ela recebia flores, to-

Novamente, ficamos à espreita de atrair mais

lunha (como convidado, vinha d’Os Satyros). Nis-

cava Gilberto Gil, acendia a luz, ela levantava, fa-

pessoas para formar o grupo. Tínhamos que ter

so, Maria Alice foi convidada para dar um curso

lava o epitáfio. E eu, querendo ser criativo, ainda

a peça. Porém, sempre íamos trabalhando, sendo

na SP Escola de Teatro. Tinha 20 vagas e 120 ins-

coloquei a música ‘quando eu morrer, não quero

convidados para uma e outra coisa. Continuáva-

critos. Ela decidiu não selecionar: “eles vão caindo

choro nem vela, quero uma fita...’ Tá tudo erado,

mos com a cabeça fervendo de ideias. Somente

de maduro”. Começou com 80 e terminou com

a gente errou. Isso é uma grande m., não foi gol

em 2007, Maria Alice achou um texto. Ela teve

uns 30. Desta turma, entrou o Alexandre Magno,

embora todo mundo estava achando que era.

um encontro com Jodorowsky, bateu o olho no

um português que fazia um trabalho de direção

“Velório é velório e eu tenho que experimen-

homem e se apaixonou, porque ele é de um ca-

de movimento que faltava no nosso grupo. Um

tar este meu medo de morrer. Mistura de medo

risma, de uma inteligência e de um talento, que

ator que viesse de outra cultura, outra linguagem,

com vontade de morrer em cena. Proponho eu ficar

é apaixonante mesmo. Era uma mostra de cine-

que se somava à familiaridade do Fábio com o

quietinha, mortinha”, disse. E o Fábio roteirizou para

ma no Centro Cultural Banco do Brasil (SP), e ela

universo da dança, com uma arte cênica em que

que se chegasse nesse fim. Então, temos o Pândega

soube que ele tinha algumas peças para teatro.

não importa tanto a fronteira entre o que é teatro

desde 2007, que se juntou para estudar Jodorowsky.

Quando leu uma delas, disse: esse personagem é

e o que é dança. Estávamos com o grupo forma-

Com Alexandre Magno, com Robson Catalunha, Ca-

pro Lucci ganhar o Shell – e eu ganhei! – e agora

do para fazer Malone morre, baseada no romance

rol Splendore, Fábio Furtado, Pedro Monticelli, Elise-

vamos montar um grupo. Estávamos entrando no

de Beckett. A editora de cara já proibiu, alegando

te Jeremias, eu e Maria Alice. Finalmente.

universo do Jodorowsky, que também acredita

que romance é romance, peça de teatro é peça de


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

41

Espantosa, também, a interpretação de Maria Alice Vergueiro, há muito especializada no chamado teatro moderno, atriz inexplicavelmente mantida em isolamento - ia dizer escanteio - no teatro nacional, ostracismo de que o atual trabalho não pode deixar de tirá-la, dando-lhe o lugar proeminente a que faz jus. [...] Grande atriz, não digo nascente, mas há muito existente, na penumbra porém, surgida agora das sombras beckettianas para se impor definitivamente ante o público conhecedor. Alfredo Mesquita, em crítica do Estadão, sobre o espetáculo Katastrophé (1986).

As três velhas

Foto: Fábio Furtado


CADERNO DE TEATRO

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por ti e para ti Por Fábio Furtado

dramaturgo e fundador do Grupo Pândega

Escrevi este texto durante o processo de produ-

nada delicada escarlate rompe-nós longínquia

ção do espetáculo Why the horse?. A princípio ele

dedilhante turva empoeirada fiandeira pútrida

poderia ser dito, mas logo entendi que realmente

outra limitada desiludida espantosa carpideira

não cabia texto nenhum. Ainda assim, para mim,

verminosa calva esburacada brotadeira reluzen-

ele condensa nossa relação com o tema da peça.

te cobradora aguçada malcheirosa encardida

E ficou no programa, como uma possibilidade

flamejante translúcida urdida pegajosa leite po-

poética de reflexão e sentimento sobre a morte,

dre justa abandonada talhadeira única sibilante

com toda a sua profunda ambivalência, algo que

tristonha jorradeira vomitante excrementícia

procuramos trazer nessa montagem. É também

peluda afiada amarga submersa polvilhada fun-

uma forma de agradecer pelo aprendizado em

da acolhedora galopante boquiaberta rija abra-

processo tão denso.

çadeira desgrenhada eruptiva noiva purulenta cascuda pródiga dúbia inadiável retumbante

Grupo Pândega Pândega: pandilha, uma quadrilha de bufões. Foi este o termo que encontramos para transcrever o encontro entre o teatro pânico de Jodorowsky e o histórico artístico de Maria Alice Vergueiro. No lugar da linearidade de ações e pensamentos do Augusto, tipificado na figura do dono de circo, o risco anárquico do Palhaço, que teima em seguir seus próprios e íntimos direcionamentos. Risco que é também traço, ao tornar visível uma manifestação poética, e riso, porque proveniente dessa liberdade sempre reenceenada. Humor grotesco, ambivalente, ligado à tradição ancestral que une o novo com o velho, o nascimento com a morte, e permite, quem sabe, o que Maria Alice chama de tomada de (in)consciência. Foi assim, de pandemônio em pandemônio, mas também de riso em riso, que nasceu Why the horse?. Um risco, proveniente de uma velha grávida: Maria Alice Vergueiro.

Coro, ladainha:

pálida dolorosa carpideira inesquecível barbi-

Rútila cerzida burlesca dissimulada sorrateira

túrica rendilhada obsedante lacrimosa virulenta

emaranhada sementeira degradante besta escu-

espumosa insaciável poço vertiginosa insatis-

ra risonha agourenta disforme taciturna solitária

feita monstruosa órfã desmembrada armadeira

ossuda viscosa salivante alvissareira deforman-

rodopiante líquida muda disfarçada vagarosa

te gigantesca solidária sanguessuga obstrutora

inebriante embaraçosa noturna esbranquiçada

alva cortante vigorosa funda asa negra dedicada

solta encapuzada torta mentirosa inesperada

serrilhada silenciosa carniceira enevoada infer-

imobilizante deformada sórdida beata labiríntica

nal obscena sopradeira espantalho doce descar-

malvinda oculta empoeirada beijoqueira conta-

As três velhas

Fotos: Fábio Furtado


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

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minada suspirante giratória porteira infeliz ne-

Corifeu:

Porque nos insuflas a razão na mesma proporção

cessária lânguida inebriante contraceptiva ca-

A ti agradecemos porque derrubas em nós, cedo ou

que a desrazão.

nhestra insensata florida lamentosa carcomida

tarde, a vaidade de nos pensarmos eternos.

Porque nos fazes lembrar da terra, e das coisas da

poliforme embusteira sonambúlica degradante

A ti agradecemos porque já nos revelavas quan-

terra, como iguais na incessante transformação

súbita calcinante febril suporada saltitante vo-

do crianças a sentimental substância do devir, ao

que maquinas em suas entranhas.

adora tácita sufocante trôpega alucinada hu-

temermos desamparados a morte de nossos pais.

Porque percebemos que não há novo sem velho.

milhante fria santa madrasta atípica dissoluta

A ti damos graças pelo fiel da balança que nos in-

Porque nos impulsionas a lutar pelo que jamais

encurvada libertina genuflexória pressentida in-

dicas, ao igualar forte e fraco, pequeno ou grande.

venceremos.

tempestiva lívida sistólica desesperada implícita

Porque nos permites admirar a misteriosa maravilha

Porque refinas o prazer com o sofrimento.

rastejante digna turbulenta anacrônica lúgubre

de todos os entes, cuja complexa existência desafia

Porque nos ensinas a rir. Sem ti não haveria ab-

vigilante zumbideira imperecível andrajosa feroz

a razão que encobertas quando os fazes cessar.

surdo, nem inesperado.

ferruginosa cândida cálida inata metamórfica

Porque nos ensinaste a amar, mesmo e na justa

Porque nos permites a benevolência, a insana opção

vítrea modificante ingênua morfética maceran-

medida de sabermos que tanto maior o amor

por uma existência justa sem nenhum sentido.

te venérea heterônima opositora tristonha ga-

quanto dolorosa a ciência de que, um dia, já

Porque em suma, plena de coisa alguma, és mãe de

lhofeira companheira impertinente intumescida

não será.

toda glória, porque apontas a ruína; de toda justiça,

imparcial portentosa paciente imperativa ceifa-

Porque é só por ti que soa tão verdadeira a men-

porque a tudo apodreces; de todo amor, porque a

deira comovente zombeteira lancinante estrepi-

tira dos apaixonados quando dizem "te amo

todos nos arrancas, inclusive a nós mesmos; e de

tosa sonolenta faminta dissoluta mítica pasma

para sempre".

toda a novidade e alegria, porque a ti sabemos certa.

sinfônica solerte simbiótica libertária pendente

Porque nos ajudas a durar. Porque nos concedes

Obrigado, rainha da efemeridade. Este imenso tea-

sutil terminante pênsil mística reflexiva engas-

um futuro e nos permites um percurso, um antes

tro só existe por ti e para ti.

gada gozo final.

e um depois.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

44

3 Publicada originalmente na Questão de Crítica – Revista eletrônica de crítica e estudos tea-trais, Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015. Versão completa disponível em questaodecritica.com.br/2015/12/why-the-horse

Por que somos tão cavalos?

[...] A morte como outro nome possível para a vida, a dissolução dionisíaca como condição de possibilidade para a eclosão da beleza apolínea, para a criação de formas sempre novas. No caso de uma artista tão emblemática quanto Maria Alice, essa sabedoria ganha contornos mais concretos: é de se esperar que a marca por ela deixada nos palcos se torne o útero de onde brotarão – de onde já brotaram! – diversas novas atrizes, que repetirão o seu gesto e continuarão a sua obra.

Trechos da crítica de Patrick Pessoa sobre a peça Why the horse?[3]

[...] A especificidade do trabalho dessa artista extraordinária é justamente não caber em nenhuma definição, em nenhum rótulo, não se deixar reduzir a nenhum conceito, podendo sempre significar inúmeras coisas, dependendo da relação que cada espectador puder estabelecer com as inomináveis ações apresentadas pelo Grupo Pândega de Teatro. Essa visão da singularidade absoluta de Why the horse? e, em certo sentido, da carreira de Maria Alice como um todo, materializa-se de forma


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2016

45

absolutamente tocante ao fim do espetáculo, ou

horse? é um necrológio de Maria Alice Vergueiro.

performance, ou happening, ou… Depois que Lucci

Um necrológio que é também uma peça de tea-

deixa clara a impossibilidade de comunicar a sua

tro, ou melhor, uma experiência cênica singular.

dor, todos os atores saem de cena, não sem an-

É o ensaio de Maria Alice Vergueiro, que viveu para

tes jogar pétalas de flores sobre o corpo de Ma-

o palco, da própria morte. A própria morte é algo

ria Alice, prestando suas últimas homenagens.

que se possa ensaiar? Sim. E, no entanto, por mais

Ela permanece deitada no centro do palco sobre

que ensaiemos, nunca estamos prontos. Como

uma cadeira convertida em caixão e coberta por

uma peça de teatro. Neste sentido, para além do

um imenso véu funerário. Durante longos minutos,

lugar comum de que a arte imita a vida, ou de que

o público a contempla, constrangido, sem saber o

a vida imita a arte, Why the horse? propõe que a

que fazer. A situação-velório, mais do que repre-

arte imita a morte.

sentada, é literalmente presentificada. Passado o estupor inicial, alguns espectadores se levantam, se aproximam do corpo inerte, dizem alguma coisa, fazem uma reza, tocam “a morta”, depõem flores. A cada um de nós é deixada a possibilidade de reagir a esse fim como quisermos. Ou pudermos. Um indispensável exercício de liberdade. Para concluir, lembro de um texto de Deleuze em que o filósofo elogia Carmelo Bene por ter escrito um ensaio sobre Shakespeare que tinha a particularidade de ser uma peça de teatro. Why the

Why the horse?

Fotos: Claudio Etges


primeiro SEMESTRE

MÚSICA

2016

46

Funkalister

Foto: Divulgação

O movimento instrumental gaúcho Grupos se unem para promover a popularização do gênero, revigorando o cenário da música autoral


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2016

47

O estado do Rio Grande do Sul, mais especifica-

(SP), o Festival Nacional Bohemia Instrumental, o

A banda Quarto Sensorial, trio formado por

mente a cidade de Porto Alegre, vivencia um mo-

Festival Jurerê Jazz Festival (SC), uma programa-

Carlos Ferreira na guitarra, Martin Estevez na

vimento de música instrumental, mais focado no

ção especial para a música instrumental no pres-

bateria e Bruno Vargas no baixo, surgiu nesta

jazz, com influência de outras vertentes, como há

tigiado Festival de Garanhuns (PE), programas

fase de transição na cena instrumental, em 2007.

muito não se via. São diversos grupos que inves-

temáticos nas rádios etc.

“É incrível, porque não faz tanto tempo, mas era

tem na música autoral, espaços tradicionais e al-

“A Funkaslister teve suas músicas incluídas

uma época em que era difícil veicular este tipo

ternativos que passaram a disponibilizar agenda

na trilha sonora de filmes de surf, na vinheta de

de som, poucas casas abriam espaço para música

em dias considerados nobres e, o principal, o pú-

abertura de programas radiofônicos e nas pistas

autoral como um todo, e a música instrumental

blico está respondendo positivamente a tudo isso.

de dança”, diz Mateus. Em 2008, a banda gravou

dentro deste nicho autoral, tinha uma situação

Um das bandas que vivenciou esta mudan-

o Vol.2, também com músicas inéditas, e em 2010

ainda mais complicada”, analisa Bruno Vargas.

ça na cena instrumental, que transita por muitos

fez o primeiro show em São Paulo, dentro da pro-

A maioria das casas – as que abriam espaço –

estilos – do jazz, música regional, choro, rock ao

gramação do Sesc Vila Mariana. De lá para cá, o

destinava os dias do começo da semana para a

funk – é a Funkasliter. Quando os músicos Chico

grupo voltou diversas vezes à Capital e ao Interior

música autoral, o que prejudicava a formação de

Paixão, Everton Velasques, Vicente Guedes e Gil-

paulista. Também se apresentou em Santa Cata-

público. “Teve um movimento crescente, tanto

berto Ribeiro se uniram em 2002 ainda não havia

rina. No Rio Grande do Sul, passou por mais de

na música autoral como instrumental, e a gente

estourado esta onda que se espalhou pelo país no

10 municípios, com ótima aceitação do público,

nota que, de uns quatro ou cinco anos para cá,

final da primeira década do novo século, quando

em teatros e casas noturnas. Com o lançamen-

tem mais gente tocando, mais gente interessa-

ascenderam diversas bandas, popularizando a mú-

to do terceiro álbum, Vol.3, vieram os momentos

da. Começamos a firmar parcerias com o pessoal

sica instrumental e ampliando seu público. “Em

mais marcantes: o show de abertura do Ben Har-

das bandas Urso, Marmota Jazz, Sopro Cósmico

Porto Alegre, havia ainda outros grupos fazendo

per (2011); eventos como o Domingo no Parque

e outras daqui, também instrumentais, dividindo

som instrumental, como Os Argonaustas e o Sex-

(2014), no auditório Araújo Vianna; o Vivo Open

noite, divulgando pela internet e, principalmen-

teto Blazz, e nossa principal motivação era colo-

Air (2013), no estacionamento da Fiergs; o Som

te, tocando juntas. “Esta aproximação promoveu

car nos palcos da cidade um projeto instrumental

no Salão, no palco do salão de atos da Ufrgs; as

a abertura de mais espaços para tocar e conse-

envolvendo vários músicos e muito espaço para

festas da Rádio Ipanema no Anfiteatro Pôr do Sol;

quentemente mais público interessado." Os even-

improvisação, em um ambiente dançante, descon-

a FIFA FUN FEST; além dos eventos promovidos

tos ganharam força e a música autoral instru-

traído, de festa”, conta o flautista Mateus Mapa,

pela prefeitura de Porto Alegre: Festival de In-

mental conquistou dias nobres em espaços como

que entrou para o grupo junto com Leonardo Boff

verno (2013), Festival de Música Instrumental RS

Clube Silêncio, London Pub, Café Fon Fon, O Culto

(teclado), Rodrigo Siervo (sax), Cristiano Bertolucci

(2011) e 24horas de cultura (2011).

e o tradicional Bar Ocidente, que abre para shows

(bateria) e Felipe Santos (percussão), além de trom-

A partir de 2010, segundo o flautista, per-

bonistas e trompetistas. Da formação original, dei-

cebeu-se em Porto Alegre uma segunda leva de

O movimento crescente se reflete no Inte-

xaram a banda Vicente, que fundou o estúdio IAPI,

novos projetos de música instrumental, que cola-

rior do Estado, em cidades como Caxias do Sul,

e Gilberto, que criou o estúdio Mubemol, onde são

boraram para o fortalecimento da cena em todo

Pelotas, Santa Cruz do Sul e outras. Para Bruno,

gravados e finalizados os álbuns da banda.

nas quintas-feiras, entre outros.

o estado e mesmo no país. Algumas dessas ban-

o jazz é mais apreciado onde tem pessoas mais

Foi com o lançamento do primeiro CD, Vol.1,

das ainda estão na ativa, como Quarto Sensorial,

curiosas, ambientes voltados à pesquisa, por isso

em 2006, que a Funkalister começou cada vez

Marmota Jazz, Quartchêto, Gabriel Romano Gon-

as cidades universitárias são mais receptivas e

mais a ir para os palcos e pegar a estrada. “Isso

zales Sexteto, Edu Meirelles e tantos outros. “As

sempre têm lugares com público garantido. “Isto

se deu ao mesmo tempo em que aquele ‘boom’

principais inspirações para as novas composições

porque a música instrumental não está sempre

começava em outras partes do país, com grupos

do grupo continuam coerentes com o que fez o

circulando na mídia, é um tipo de som que exige

como Macaco Bong, Funk Como Le Gusta, Rever-

grupo surgir lá em 2002: Eumir Deodato, João

um pouco mais do ouvinte, a mensagem não é

ba Trio, Pata de Elefante e outros”, destaca Ma-

Donato, Robson Jorge e Lincoln Olivetti, JB’s, Par-

falada, é ouvida, sentida. Circulamos em Rio Par-

teus. Surgem então, a partir desse crescimento

liament, Funkadelic, Stevie Wonder, Earth Wind &

do e levaram alunos de três escolas diferentes.

do número de grupos e de interesse por parte do

Fire, Sly & the Family Stone e outros representan-

Foi uma recepção muito legal, um pessoal bem

público, programações especiais em casas notur-

tes da black music norte-americana e brasileira

novo, que não conhece muito som, e a reação de

nas, como no Bar Ocidente em Porto Alegre, ou

que criaram bases sólidas para a música instru-

surpresa, de espanto, era sentida na hora. O show

o Festival PIB – Produto Instrumental Brasileiro

mental com um apelo dançante e contagiante.”

nos marcou muito, por estarmos levando algo di-


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2016

48

ferente para as pessoas; é uma liberdade que o

Marmota Jazz

instrumental, o jazz te permite.”

Foto: Ariel Fagundes

A banda Kula Jazz Quinteto surgiu nesse cenário de maneira despretensiosa, com um dueto de piano e bateria formado por Max Sudbrak e Martin Estevez, que se uniram com a proposta de tocar jazz na noite, numa mistura de trabalho, estudo e apreciação do gênero. O duo virou o Dziw Jazz Trio com a entrada do saxofonista Ronaldo Pereira; após um tempo inserido nesta nova cena do jazz, contou com a entrada do flautista Franco Salvadoretti, que havia tocado por 10 anos com o Sexteto Blazz, e do baixista Rodrigo Arnold, e o grupo virou o quinteto que é hoje. Para Ronaldo, apesar da cena jazz de Porto Alegre ser tradicionalmente descontinuada, com momentos de maior efervescência, que costumam durar em torno de uma década, sempre houve uma certa resistência por parte de músicos da velha guarda. “Diferente do que tem ocorrido agora, com muitos músicos jovens fomentando

mesmo é a parceria que existe entre as bandas.

em cada momento histórico. Com isso, o ouvinte

e tocando jazz, como a própria Kula, Marmota

“Todo mundo organiza, pega junto de alguma

atento, interessado, acaba chegando ao jazz em

Jazz e OMSA, além do grupo KIAI, de Rio Grande,

forma. Esse senso de comunidade que faz a coisa

algum momento", avalia o guitarrista da Marmo-

Márcio Fulber e Bando, entre outros, o que tem

acontecer”, afirma. A banda formada por Ândrio,

ta Jazz, Pedro Moser. Ele acredita que, em parte,

democratizado o gênero.” O saxofonista diz que

pelo baterista Valmor Pedretti Jr., o baixista Bren-

esse cenário revigorado da música instrumental,

a realização de festivais de jazz na região, com

no DiNapoli e o guitarrista Guilherme Dieckmann

que inclui o jazz, em Porto Alegre, se deve à cons-

destaque para o Porto Alegre Jazz Festival, que

existe desde 2010; porém, começou a se dedicar

tante busca pela inovação por parte dos músicos

chega em 2016 a sua 3ª edição, com curadoria

para fazer mais shows, sair dos ensaios, há dois

e projetos. “Temos bandas muito bacanas tocando

de Carlos Badia, foi algo que realmente ajudou

anos, quando disponibilizou um disco cheio no

toda semana! Há pouco tempo, tivemos a segun-

muito a impulsionar este bom momento.

YouTube (Hum, de 2014).

da edição do Festival Porto-Alegrense de Bandas

Com um disco de músicas autorais lança-

“A modernização do jazz como estilo, o flerte

do no final de 2015, e participação, ainda com o

constante com outras concepções musicais, faz

nome antigo, nas duas primeiras edições do Porto

com que cada vez mais pessoas venham se en-

A Marmota existe desde 2011 e a atual for-

Alegre Jazz Festival e no Eisenbahn Festival, ao

volver com o gênero. O jazz parece estar sempre

mação tem, além de Pedro Moser, André Men-

lado do bluesman norte-americano Henry Gray,

na vanguarda, sintetizando o que há de melhor

donça no baixo, Leonardo Bittencourt no piano e

Instrumentais, que contou com bandas de diversos estilos dentro da música instrumental.”

Bruno Braga na bateria. Entre as influências estão

no Bar Opinião, a banda tem como principais influências e objeto de estudo toda a geração de

Sesc Centro Instrumental

lendas consagradas do jazz, como Freddie Hub-

jazzistas desde o bebop da década de 1950 até o

O projeto abre no mês de junho uma pequena

bard e Bill Evans, além dos contemporâneos Ha-

avantgard, hard bop, post bop, free jazz dos anos

janela na efervescente cena do gênero na Ca-

milton de Holanda, Trio Corrente, Aaron Parks, Gi-

1960, e nomes como John Coltrane, Miles Davis,

pital gaúcha, dedicando três dias à música ins-

lad Hekselmen, Avishai Cohen, Ari Hoenig e Mike

Chick Corea, Charlie Parker, Thelonius Monk, entre

trumental e suas diversas vertentes. De 22 a 24,

Moreno. “Também somos muito influenciados

inúmeros expoentes da história da música.

apresentam-se no Teatro do Sesc o grupo Ba-

por músicos da cena local e por outros gêneros,

Para o guitarrista Ândrio Barbosa, da banda

tuque de Cordas dos violonistas Vinicius Corrêa

como a música pop e vertentes mais alternativas

Urso, que tem se destacado nesse cenário instru-

e Claudio Veiga; Oly Jr., com o show Dedo de

do rock e da música eletrônica”, diz o guitarrista.

mental, com uma pegada mais rock, o que move

Vidro Instrumental; e a Banda Tratak.


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2016

Por Daniela Ribas

49

Doutora em sociologia (Unicamp) e pesquisadora em ciências sociais e humanas do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc/SP. Membro titular do Colegiado Setorial de Música (gestão 2015-2017) do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) do Ministério da Cultura (MinC). daniribas@cpf.sescsp.org.br e daniribasproducoes@gmail.com.

Como mobilizar público para shows em tempo de streaming? Instituições culturais e produtores de eventos,

de escuta musical sob demanda via internet. Esta

musicais mais frequentes, os quais, por sua vez, re-

a despeito de suas diferentes responsabilidades

nova forma de acesso à música gravada é chama-

troalimentam o sistema de informações.

e preocupações, sempre se deparam com a se-

da de streaming, e reconfigurou completamente a

A ampliada e diversificada oferta de produtos

guinte questão: como mobilizar público para suas

forma de se escutar música. Se numa etapa inicial o

musicais, além da venda de facilidade de acesso pe-

ações e projetos?

importante era ter a cópia digital do fonograma (em

los players resultou num tipo de escuta que venho

Quando o público é menor do que o espe-

que o download era a prática cultural predominan-

chamando de ordinária (no sentido de ser o tipo de

rado, a responsabilidade sempre recai sobre a

te), no momento atual a tendência é de expansão

escuta mais comum nos centros urbanos): a escuta

área de comunicação, acusada – injustamente na

do consumo via streaming (em que é necessário um

é feita principalmente através de fones de ouvido

maioria das vezes – de não ter divulgado adequa-

player instalado em dispositivo que disponibilize as

durante a realização das tarefas cotidianas (domés-

damente a atividade.

faixas/discos/artistas demandados através da inter-

ticas, em trânsito, em espera, etc.), e não num mo-

Mas a questão é bem mais complexa do que

net). Vende-se não a posse do fonograma, mas a fa-

mento excepcional em que a apreciação é atividade

simplesmente empreender estratégias de divulga-

cilidade de ouvir quando e onde quiser via internet,

principal. Dito de outra forma, escuta-se música

ção adequadas, e exige a compreensão das dinâmi-

gratuitamente ou sob assinatura mensal do serviço

enquanto se faz uma outra atividade, e quase nunca

cas do consumo cultural na atualidade.

(numa forma em que as assinaturas “Premium”, em

de maneira atenta.

Conforme argumentei em artigo anterior, o

expansão, financiam a forma “Freemium”).

Este tipo de escuta ordinária, desatenta, pode

consumo cultural se tornou muito mais comple-

Os players (YouTube, Spotify, Deezer, Apple

alimentar o desejo por uma experiência de fruição

xo nas últimas duas décadas, principalmente em

Music etc.) e a facilidade de escuta que oferecem

extraordinária, contemplada, por exemplo, na ida a

função das tecnologias digitais. No caso da mú-

alteraram substancialmente os hábitos de consu-

um show de música ao vivo.

sica, por exemplo, as tecnologias reconfiguraram

mo musical, e isso resvala até mesmo em práticas

O espetáculo musical vem, dessa forma, ga-

totalmente os hábitos de consumo, alterando a

culturais mais legitimadas, como os espetáculos

nhando importância dentre os hábitos culturais

relação entre consumo doméstico, em dispositi-

ao vivo.

contemporâneos, especialmente em centros urba-

vos móveis, e ao vivo.

Os players oferecem playlists de editores/

nos. Para além da sociabilidade que a música ao

Nesse cenário, têm relevância o desenvolvi-

curadores e de usuários para que o ouvinte não te-

vivo engendra, ela proporciona uma fruição mais

mento dos smartfones, das redes 3G e 4G para tele-

nha de escolher o que vai ouvir, usando para isso

profunda, atenta e interessada em relação à escuta

fonia celular, e de softwares (chamados de players)

logaritmos e cruzamentos que mapeiam os hábitos

cotidiana ordinária de arquivos digitais.


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2016

50

Além dos aportes da Lei Rouanet à área da

expressões massivas ou até o estímulo a práticas

médio e longo prazo, visando, por exemplo, a co-

música (investidos prioritariamente em circula-

artísticas amadoras – para causar identificação,

municação adequada das propostas conceituais da

ção), o circuito de pequenos palcos independen-

e o desconhecido para ampliar o rol de interesses.

programação, a fidelização dos públicos aos equi-

tes de música autoral vem se fortalecendo. Isso

É necessário saber as preferências estilísticas para

pamentos e projetos, etc.

vem aumentando consideravelmente a oferta de

usá-las como ganchos para a construção de novas

Outra questão ligada à gestão cultural é pen-

shows – tidos então como prática cultural ex-

preferências, ampliando e aprofundando o repertó-

sar no circuito cultural da localidade como algo

traordinária e de densidade diversa em relação à

rio cultural dos públicos. Nesse sentido, deve-se sair

orgânico e sistêmico, evitando pensar que outros

escuta ordinária.

do lugar comum e promover ações mais “arriscadas”

equipamentos/projetos são “concorrentes”. Levan-

Mas como mobilizar este público – ou, melhor

do ponto de vista conceitual. Enfrentar consciente-

do em consideração que os públicos têm interesses

dizendo, estes públicos – para as apresentações ao

mente tais riscos faz parte da gestão de equipamen-

múltiplos e difusos, difíceis de serem sistematiza-

vivo, se estes parecem procurar os shows apenas em

tos e projetos culturais.

dos, os públicos de outros equipamentos/projetos

momentos específicos?

Tais táticas podem ser realizadas em lugares

são públicos potenciais para o “seu” equipamento/

Em primeiro lugar, é necessário dizer que

estratégicos de instituições culturais, como filas e

projeto. Operar na lógica da co-opeticão (em que

não existem fórmulas de sucesso. Cada caso é

lugares de grande circulação. E é muito importante

a colaboração e complementaridade são centrais)

um caso, e tanto instituições como produtores

que as equipes de comunicação/divulgação sejam

tem se mostrado uma estratégia muito mais efeti-

devem se envolver profundamente com as ações

incorporadas como entes ativos neste processo, e

va do que trabalhar na lógica da competição – em

e os projetos que levam adiante. Tal envolvi-

não apenas como executores de ações planejadas

que o público é disputado como se não houvessem

mento poderá fornecer pistas importantes sobre

por equipes de programação/produção.

interesses múltiplos a serem trabalhados e com-

as especificidades simbólicas do espetáculo e o

A prática de curadoria compartilhada com o

tipo de público específico que ele naturalmen-

público é outra dessas estratégias. Cria-se, dessa

É necessário ainda, do ponto de vista da polí-

te atrai. Sabendo-se disso, é mais fácil delinear

forma, o engajamento antecipado com o público,

tica cultural de uma instituição, não apenas ofer-

qual o público não cativo que se deseja atingir,

que atuará naturalmente como agente multipli-

tar conteúdos, mas também incentivar a demanda

expandindo, assim, o alcance da ação cultural em

cador da proposta. Essa é uma prática que vem se

por seu consumo. Incentivar práticas amadoras,

questão. Deve-se levar em conta que cada tipo de

expandindo no universo cultural, assim como even-

promover processos educacionais em arte e cul-

espetáculo tem seu próprio público, sendo o de-

tos colaborativos (em que agentes com interesses

tura, investir em recursos de mediação são ações

safio justamente expandi-lo. Agindo dessa forma,

comuns compartilham seus públicos específicos,

fundamentais na mobilização de públicos diversos,

instituições e produtores deixam de lado certa

potencializando os públicos uns dos outros de ma-

já que isso contribui para que os indivíduos sejam

arrogância, muito comum no meio cultural, em

neira natural).

expostos e compreendam os códigos culturais ne-

dizer que “o espetáculo é bom, pena que o público inculto não sabe”.

Uma estratégia que sempre rende bons re-

partilhados pelas diversas instituições/ações.

cessários à fruição artística.

sultados é o aprofundamento da experiência de

Por fim, não é possível mobilizar públicos sem

Deve-se levar em consideração que não é pos-

fruição estética. Uma experiência arrebatadora,

compreender suas lógicas específicas. Gestores e

sível agradar a todos os públicos o tempo todo. Cada

multissensorial, transversal, polissêmica, coletiva,

produtores sempre devem se perguntar: quais os

espetáculo tem seu público cativo. E para mobilizar

catártica, não passa despercebida pelos públicos,

circuitos que os públicos (cativos e a serem con-

públicos mais amplos existem inúmeras estratégias.

que certamente procurarão na experiência ao vivo

quistados) frequentam? Quais suas preferências,

A primeira delas é compreender que o desejo

o contraponto da experiência ordinária, geralmen-

hábitos e práticas efetivas? Como se dão os pro-

por cultura não é natural, e sim cultivado (DONNAT,

te mediada por dispositivos eletrônicos individuais.

cessos de legitimação simbólica das práticas e

2012). Investir em ações educativas, processuais e

Além das estratégias sensoriais, existem mé-

conteúdos culturais? Deve-se ter em mente que

transversais é um primeiro passo para se estimular

todos de gestão capazes de mobilizar públicos.

formar público não é arregimentar pessoas para

o desejo por cultura.

Processos avaliativos que busquem compreender

fazer número, mas sim entender hábitos para eli-

Proporcionar o diálogo entre formas cultu-

as motivações e interesses dos públicos frequen-

minar barreiras simbólicas – que muitas vezes são

rais massivas (já bastante absorvidas pela popula-

tadores são recursos importantíssimos que o

mais excludentes que as barreiras econômicas de

ção) e práticas mais sofisticadas (para as quais se

gestor deve lançar mão sempre que possível. Os

acesso à cultura.

pretende chamar a atenção) é um bom exemplo

resultados dessas avaliações (que devem ser cru-

de como “capturar” o interesse pelo novo: oferta-

zados com pesquisas mais amplas sobre hábitos

-se, conjuntamente, o conhecido – que podem ser

culturais) devem ensejar planejamentos de curto,

Como mobilizar público para shows em tempo de streaming?


AUDIOVISUAL

primeiro SEMESTRE

2016

51

1 A produção pode ser verificada no site http://wp.ufpel.edu.br/curtas/

Cinema regional em alta

Bastidores dos filmes O Liberdade, Marcovaldo e Linha Imaginária

Fotos: Divulgação Moviola Filmes

Consolidação da produção audiovisual no interior, fomentada por incentivos, realização de festivais e existência de cursos, resgata uma tradição secular A produção audiovisual gaúcha deve ser entendida desde os primórdios, com Francisco Xavier em Pelotas e Eduardo Abelin em Rio Grande, no início do século passado. A crítica de cinema Ivonete Pinto destaca inclusive que Xavier é responsável pelo primeiro longa brasileiro (Crime do banhado, 1914, hoje desaparecido) e pelo filme mais antigo de ficção do país que tem cenas preservadas (Os óculos do vovô, 1913). “É em Pelotas, talvez por conta desta longa tradição, que hoje existe a maior produção no Interior, embora cidades como Santa Maria tenham uma produção expressiva, mas não sistemática”, afirma. Para Ivonete, isso se deve em

cio Kinzeski, entre os selecionados para a mostra

parte à existência de dois cursos na Universidade

competitiva do Festival de Cinema de Gramado, em

Federal de Pelotas (UFPel),[1] de Cinema e Audiovi-

2013, e Alegrete apostando no futuro, com proje-

sual, do qual é docente e pesquisadora, e de Cine-

tos dirigidos a alunos da rede pública de ensino.

ma de Animação, e ainda à visibilidade crescente

Em Pelotas, a produtora Moviola Filmes, que

aos filmes alcançada pela participação em festivais

iniciou como um coletivo de cinema em 2007, tem

e pelas exibições no Cine UFPel. “Há também filmes

se destacado no cenário recente, tendo lançado

sendo produzidos com a participação de alunos

o curta Marcovaldo (2010), o média Linha ima-

nas equipes, mas que são independentes, como os

ginária (2014) e o longa-metragem O Liberdade

filmes da produtora Moviola”, salienta.

(2011), todos dirigidos por Cíntia Langie e Rafael

Fato é que um século depois do Interior gaú-

Andreazza. Os três filmes tiveram boa carreira em

cho fazer história no cinema, a cena está se con-

festivais nacionais e internacionais. “Nosso último

-Uruguai, a partir de histórias de quem vive neste

solidando, com profissionais e produtoras traba-

filme, Linha imaginária, com produção financiada

território onde se encontram dois países.

lhando juntos, se ajudando, não só em Pelotas, mas

pelo Fundo de Apoio à Cultura do RS teve uma car-

O documentário musical O Liberdade, que

também em Santa Maria e Bagé, onde acontece o

reira de exibição bem forte, massivamente falando.

conta a história de um bar que de dia funciona

tradicional Festival de Cinema da Fronteira, com 17

Foi exibido inicialmente com exclusividade na TVE,

como restaurante popular, atendendo agriculto-

filmes selecionados para a mostra competitiva re-

conforme determinação do edital; posteriormen-

res de origem alemã, e à noite transforma-se no

gional, na última edição – que teve exibições tam-

te fizemos um corte menor e passou no Curtas

reduto da música mais genuinamente brasileira,

bém em Pelotas –, em meio a um expressivo núme-

Gaúchos da RBS; e hoje está disponível no History

o choro, esteve em festivais do mundo todo, foi

ro de inscritos. Outras cidades também surgem no

Chanel, no H2 e no Box Brasil, três canais nacio-

exibido em salas de cinema, ficou cinco semanas

mapa da produção audiovisual, entre elas Capivari

nais, com bastante retorno”, diz. O filme retrata o

consecutivas em Porto Alegre e hoje está na tele-

do Sul, com o curta Logo ali ao sul, do diretor Már-

universo singular das cidades da fronteira Brasil-

visão. “Os filmes saem pelos festivais no exterior e


AUDIOVISUAL audiovisual

primeiro SEMESTRE

2016

52

no Brasil, passam nas salas de cinema, vão para a TV

Há mais de 10 anos trabalhando com cinema

tadual do RS e para o Fundo Municipal de Cultura

e, geralmente, quando encerra a carreira comercial,

e audiovisual, junto com Cíntia, Andreazza diz que

de Pelotas. Outro projeto é uma coprodução com

disponibilizamos na internet”, explica Andreazza.

a parceria com os cursos da UFPel, onde ambos têm

alunos do curso da UFPel. “Estamos coproduzindo

Atualmente, a produtora está com projetos

vínculo como professores, é muito importante para

um longa de ficção, Canecalon, com direção e ro-

para rodar dois longas metragens, na cidade de Pe-

a estruturação da produtora. “Conhecemos muita

teiro de Lucas Sá, que vem se destacando bastante

lotas e na fronteira com o Uruguai. Andreazza, que

gente, chamamos para trabalhar, vamos agregan-

com curtas em festivais no Brasil e pelo mundo, e

também é produtor e roteirista, destaca a importân-

do à equipe. Tem um movimento muito bacana e

Guilherme Lucas”, afirma Andreazza.

cia dos projetos regionais, não só produções fora

por isso investimos há tantos anos nisso, apesar

do eixo Rio-SP, mas também fora das capitais, que

de toda a dificuldade.” Neste momento, a Moviola

estão se fortalecendo. “Temos muitos brasis para

está produzindo duas séries de TV, uma com re-

27 de janeiro

contar e nossa riqueza cultural é justamente esta di-

cursos advindos do Fundo Setorial do Audiovisual

Apesar de residir em Porto Alegre, o diretor de

versidade. Nossos projetos são bem locais, mas bus-

no âmbito nacional, outra destinada à produção

cinema e cineclubista Luiz Alberto Cassol, prefe-

camos comunicar bastante com o universal”, afirma.

nacional independente para exibição em TVs pú-

re rodar seus filmes em Santa Maria, sua cidade

O cineasta salienta a indicação de um curta

blicas, além de outros projetos para o Fundo Es-

natal. Lá fez o Curso de Extensão em Cinema, na

produzido no Interior de São Paulo para a seleção oficial do Festival de Cannes, A moça que dançou

UFSM, em 1995, e atuou na primeira equipe da TV Campus – TV Universitária, onde, entre outras

com o diabo, do diretor João Paulo Miranda Maria,

É preciso continuar com

natural de Rio Claro. “O cinema brasileiro começa a

esta política de fomento, e

“Sempre fui um cinéfilo e Santa Maria tem uma

penetrar mais nesses espaços e a gente se orgulha

acredito que vai porque é

forte tradição em cineclubes, ou seja, no debate,

das tradições do Brasil.” Andreazza diz que a produ-

funções, apresentava um quadro sobre cinema.

na fruição cinematográfica”, afirma. Militante do

tora acompanha as políticas públicas para a produ-

estratégica para a própria

ção audiovisual e sempre produz com recursos mui-

economia, sem falar nos

valorização do cinema brasileiro e demais filmo-

to reduzidos. Aliás, produzir com baixo orçamento

valores intangíveis gerados

grafias que muitas vezes não chegam ao circuito

é praticamente uma regra no cinema nacional que foge de uma certa tendência às comédias, normal-

com este tipo de produção.

cineclubismo e da importância desses espaços na

comercial, Cassol atuou na reestruração do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC),

mente com selo da Globo Filmes na produção e

A classe anda meio

ou na distribuição. O próprio diretor do curta que

apreensiva, aliás, todo mundo,

ção. Em 1996, organizou o I Encontro de Cinema

disputou a Palma de Ouro em Cannes finalizou seu

com a situação do país. Mas

de Santa Maria, que já era o embrião do Festival

curta anterior, Command action, estrelado por um morador da cidade, com o dinheiro arrecadado em uma rifa. E o filme foi um dos destaques da Semana da Crítica na edição 2015 do festival francês.

seguimos trabalhando. Rafael Andrezza, produtor, roteirista e diretor da Moviola Filmes

em 2004, e, de 2010 a 2012, presidiu a institui-

Santa Maria Vídeo e Cinema, criado em 2002, do qual é coordenador. “Meu primeiro trabalho em Santa Maria foi o documentário em betacam Águas dançantes


AUDIOVISUAL audiovisual

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2016

53

2 https://www.youtube.com/watch?v=zzW_zU4CwMs 3 https://www.youtube.com/watch?v=TcF5Svd1RfA 4 https://www.youtube.com/watch?v=awma5LOAgmU

(1998), que tratava dos antigos cinemas de cal-

Porto Alegre, apesar de expressiva, necessita ter

çada da cidade e do Cineclube Lanterninha Au-

cada vez mais incentivos fiscais para filmes, sé-

rélio, e para minha surpresa e alegria, foi sele-

ries, realizações para a web, enfim, para, por meio

cionado para vários festivais. Em 1999, fizemos

da produção, possibilitar a reflexão e a transgres-

O nº que você discou, um filme coletivo que foi

são de narrativas. “Porém, um fator relevante que

para a Mostra de Super-8 do Festival de Grama-

está acontecendo nos últimos anos é o surgi-

do. Eram mais de 30 filmes nessa mostra e nós

mento de novos festivais no Interior do Estado,

éramos o único filme de fora de Porto Alegre”,

e também na Capital. Isso está ao encontro do

conta o diretor.

que penso e incentivo, que é a democratização do

Depois de diversos curtas, a maioria rodado

Gravação do documentário Ibirapuitã, o rio vivo Mais Cultura na Escola Fernando Ferrari Gravação do curta Acordes Oficina de cinema Alisson Machado, diretor de cinema Fotos: Divulgação Ponto de Cultura Coletivo Multicultural

acesso do público ao audiovisual.” tor, editor e cinegrafista. O filme recebeu o Prêmio

no Interior gaúcho, e longas, filmes documentá-

de Melhor Roteiro Original no Festival de Cinema

sol e Paulo Nascimento rodaram pela produtora

Ensinando a fazer cinema

Accorde Filmes, o documentário Janeiro 27, em

Em Alegrete, o Ponto de Cultura Coletivo Multi-

Cinema Escolar de Alvorada. No mesmo festival,

2014. O longa que reúne depoimentos de pais de

cultural, que já realizava sessões de cinema se-

o filme Ciro Anhaia Dias[3], realizado pelos alunos

vítimas e sobreviventes do incêndio da Boate Kiss,

manais a fim de formar público a partir da exibi-

do ensino médio da Escola Dr. Romário Araújo de

que matou 242 pessoas em janeiro de 2013, foi

ção de filmes brasileiros e latino-americanos em

Oliveira também foi agraciado. O documentário de

exibido no Festival Internacional del Nuevo Cine

sua mini sala, em 2014, por meio do Programa

curta-metragem conta a história de um catador

Latinoamericano, em Cuba, Festival Oberá en Cor-

Mais Cultura nas Escolas, do Ministério da Cul-

de resíduos recicláveis. No total, foram produzidos

tos e Festival Latino-Americano de Lapacho, na

tura, iniciou oficinas de produção audiovisual em

quatro curtas em três escolas. Os filmes são exi-

Argentina, e no Festival de Gramado. Cassol, que

escolas da rede pública.

bidos em bairros afastados do centro, junto com

rios e de ficção autorais, a pedido da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Luiz Alberto Cas-

de Santa Maria (Cinest); Melhor Roteiro no Festival de Cinema Regional de Bagé e Melhor Atriz Coadjuvante para Gabriela Doring no Festival de

outras produções realizadas na cidade.

participou da direção da série Animal, gravada

Em 2015, o curta de ficção Abdução , pro-

no interior de Caçapava do Sul e exibida no canal

duzido na Escola Municipal Fernando Ferrari, com

O coletivo também desenvolve oficinas

GNT, está para lançar dois longas documentários

alunos de 8 a 13 anos, que assinaram o roteiro,

abertas em sua sede. Numa das oficinas, vol-

em 2016: Grandes médicos, rodado em Santa

participou de festivais de cinema escolar pelo Es-

tada à terceira idade, as atrizes produziram o

Maria, Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de

tado. “Esta oportunidade possibilitou aos alunos

filme Acordes[4], premiado no Festival de Cine-

Janeiro; e Todos, produzido em Santa Maria, Porto

a troca de experiências com estudantes de outras

ma em Poço de Caldas (MG). Além do projeto

Alegre, Leiria, Fátima, Lisboa, Madri e Barcelona.

[2]

escolas”, diz Paulo Amaral, integrante do coletivo,

educativo, o Ponto de Cultura produz filmes,

Para Cassol, a produção audiovisual do Rio

que atua como assistente de direção, produtor e

em parceria com outras instituições.

Grande do Sul, que ainda está muito centrada em

roteirista, juntamente com Alisson Machado, dire-


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2016

Por Francisco Dalcol

54

jornalista, crítico, pesquisador e curador independente

venção visual nas ruas, tem seus antecedentes na pichação e no grafite, carregando em si um pouco de um e de outro: mensagem engajada atrelada a apuro gráfico, em ações às vezes proibidas, às vezes permitidas. O alcance internacional do indiozinho, que pode parecer inacreditável à primeira vista, explica-se pelas conexões que Dione vem estabelecendo com colegas de arte urbana pelo globo todo nos últimos anos. Gesto que tam-

A arte engajada de Xadalu Xadalu é um indiozinho cuja aparição se multiplica nas ruas de Porto Alegre, mas

bém amplifica a causa indígena que ele mobiliza com sua arte. Daí o indiozinho Xadalu ser, hoje, uma figura fácil nas ruas dos centros urbanos de países como Argentina, Paraguai, Japão, França, Canadá, Itália e Holanda. Estabelecendo uma rede de contatos via internet, Dione e seus parceiros intercambiam materiais e realizam ações recíprocas que conferem um caráter contemporâneo à guerrilha visual urbana da pichação e do grafite, tendo como “armas” o ato de intervir nas ruas com

Foi em 2004 que o artista Xadalu, Dione

imagens que disputam a atenção da publicidade

Martins da Luz, emprestou seu nome à criação

e das imposições visuais de toda ordem que se

da imagem do indiozinho como forma de chamar

apresentam diariamente em nosso entorno.

atenção para o apagamento da cultura indígena.

Entre março e abril deste ano, tive a opor-

também nas das principais

Desde então tornou-se um símbolo e um potente

tunidade de trabalhar com Xadalu, que me con-

capitais do mundo. Sua feição

veículo de uma produção artística que também

vidou para realizar a curadoria de uma exposição

se faz ativista.

sua, composta exclusivamente por novos traba-

infantil, por conta do estilo

O poder de proliferação de Xadalu nas ruas

lhos. Intitulada “Elementos Urbanos” e apresen-

do traço e da escolha das

do mundo se dá pelo fato de o artista ser um

tada no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo,

cores, apenas disfarça:

representante da sticker art, modo de produção

em Porto Alegre, como parte da programação do

em arte urbana que envolve prioritariamente

Festival Palco Giratório Sesc/POA 2016. A mostra

adesivos, cartazes e colagens de todo tipo em

teve como ponto de partida a imersão de Xadalu

lugar de tintas. Como um trabalho de inter-

pelo espaço das grandes cidades.

trata-se de uma imagem militante, nada inocente.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2016

55

Como artista visual vinculado à arte urbana (a chamada street art), ele não só se

agora ampliando as questões indígenas para outros grupos marginalizados pela sociedade.

expressa nas ruas, como também retira delas

Como nos trabalhos que envolvem o per-

os elementos que compõem sua produção. No

sonagem Xadalu e a sinalização Área Indígena

ambiente de Porto Alegre, onde costuma fazer

– também realizada em sticker art –, o cerne

andanças noturnas para realizar seus traba-

denunciativo que marca a produção do artis-

lhos, o artista topa com toda sorte de pessoas

ta se fez presente na exposição com obras que

e situações. Vieram do contato com a dinâmi-

instigam o observador ao exercício de interpre-

ca desse meio social mais à margem e de seus

tação e à tomada de consciência. No caso, a

códigos específicos os motivos e os temas que

pensar sobre a segregação que o espaço urbano

inspiraram os novos trabalhos que ele realizou

das grandes cidades nos mostra diariamente.

para a exposição.

Ao deslocar elementos das ruas para den-

São obras em linguagem de arte urbana

tro do espaço de uma instituição, os trabalhos

que se valem de técnicas e procedimentos di-

foram expostos como um modo de criar um

versos, partindo sempre da observação e das

espaço-momento de reflexão capaz de ativar

experiências de Xadalu em seus percursos pela

duplamente sensibilidades e consciências.

Vote nulo 110x117cm Colagem, pintura, spray e cal sobre madeira Exposição Elementos Urbanos 2016

cidade. Nessas rotas de passagem, o artista

Com as obras produzidas para a exposição

se depara com o cotidiano de marginalização

“Elementos Urbanos”, Xadalu reforçou o convi-

Foto: Claudio Etges

social, ao mesmo tempo em que seu olhar se

te que já fazia de antemão: nos dar a ver não só

sensibiliza pela dura desigualdade que pauta a

o que eventualmente não vemos, mas também

O dilúvio Técnica mista 2015

vida nos grandes centros.

o que vemos e fingimos não ver, fazendo-nos

Assim, em “Elementos Urbanos”, Xadalu deu sequência a uma produção visual que reflete o lado engajado e comprometido de seu trabalho,

dar conta da indiferença frente ao outro. E o quanto estamos implicados nisso.

Pec215 Tinta sobre impressão digital, arame farpado 300x200x100cm 2014 Fotos: Dione Martins


primeiro SEMESTRE

2016

56

EDGAR ALLAN POE, UM ESCRITOR DO NOSSO TEMPO

literatura


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

Por Vinicius Rodrigues

57

professor de Literatura; doutorando em Letras pela UFRGS; participou dos livros 21 textos para discutir preconceito em sala de aula (Edunisc/Gazeta, 2015), Guia de leitura – 100 poetas que você precisa ler (L&PM, 2015), Quadrinhos e literatura: diálogos possíveis (Criativo, 2014) e Histórias em quadrinhos: diante da experiência dos outros (Horizonte, 2012); também integra, como palestrante e músico, o grupo Cancioneiros.

Em verdade temos medo.

de Boston, é um dos pais do suspense literário

passou então a ser criado pelo casal de quem to-

Nascemos no escuro.

e um dos primeiros grandes autores a se espe-

mou o sobrenome Allan. Tomou, sim, pois Edgar

(...)

cializar no terror como matéria-prima para suas

não foi, de fato, adotado plenamente: seu pai

E fomos educados para o medo.

histórias, que ainda transitam pelo mistério, pela

de criação, John, recusou-se a reconhecer esse

Cheiramos flores de medo.

narrativa policial e pelo fantástico. Trata-se de

órfão, filho de atores de teatro, como herdeiro,

Vestimos panos de medo.

um autor de valor inestimável. Sua influência

muito em função das origens humildes do me-

(...)

é tão imensa que se dá a perder-se de vista.

nino. Assim, Poe cresceu como uma espécie de

O medo, com sua capa,

Escritos como O gato preto, O barril de Amon-

intruso dentro do próprio lar, aspecto que foi se

Nos dissimula e nos berça.

tillado, A queda da casa de Usher, Os crimes da

agravando com o tempo, levando-o a, em dado

Rua Morgue, Annabel Lee e O corvo, entre outras

momento, romper relações com John (fato que

Carlos Drummond de Andrade,

notáveis obras-primas, conseguiram transcen-

se deu, também, em função das dívidas de jogo

“O Medo”.

der a própria literatura, permeando o imaginário

acumuladas ao longo da juventude pelo futuro

humano e construindo um repertório constan-

escritor). Com os pais de criação, viveu parte da

temente resgatado. Nota-se, portanto, a perma-

infância em Londres, estudando nas melhores

Certa vez, Edgar Allan Poe teria dito: “Acredito

nência da obra de Poe: seu legado literário atra-

escolas. Conta-se que, nesse período, o interna-

que os demônios se aproveitem da noite para

vessa gerações, passando por autores como Guy

to que frequentava estava localizado ao lado de

enganar os incautos. Embora, é claro, eu não

de Maupassant, H.P. Lovecraft, Stephen King e

um cemitério, ambiente frequentemente utiliza-

acredite neles”. Note-se nessa frase um quê de

Neil Gaiman, chegando aos dias atuais através

do por alguns mestres para ministrar aulas ao

autoironia, que manifesta a consciência de seu

de referências diversas, espalhadas pela cultura

ar livre.

autor em investigar um sentimento universal e,

pop (em filmes, séries de televisão, histórias em

muitas vezes, irracional: o medo; o criador, po-

quadrinhos e até mesmo em canções).

Já novamente nos Estados Unidos (desde 1820), Edgar ingressou na Universidade de Vir-

rém, mantém-se alheio a ele, torna-se um ob-

Edgar Poe foi contista, poeta, ensaísta e

gínia e lá permaneceu como estudante durante

servador dessas angústias e desses receios que

ainda tentou a narrativa longa (com o roman-

o ano de 1826. Em função da descoberta de um

se encontram entranhados nos lugares mais es-

ce A narrativa de Arthur Gordon Pyn). Muitos de

amor juvenil ao qual seu pai se opunha, as rixas

curos da alma e da mente humanas e transfor-

seus textos versam sobre indivíduos que cons-

com John se intensificaram; Edgar fugiu para

ma tudo isso em matéria literária – e Poe o faz

tantemente sucumbem à desgraça e à tragédia.

sua cidade natal, Boston, e publicou seu primei-

utilizando tanto a prosa quanto a poesia, cons-

Sua história de vida, ironicamente, também é

ro livro, Tamerlane and other poems (1827), sem

truindo o medo sob diferentes representações,

permeada por problemas e atribulações, com

obter qualquer repercussão. Entre os anos de

dando voz a personagens perturbados, demen-

destaque para eventos pitorescos que parecem

1829 e 1831, seus conflitos com o pai de criação

tes e confusos, acometidos pelos mais diversos

saídos de dentro de seus próprios escritos. A co-

tornaram-se insuportáveis e, após um breve e

sofrimentos.

meçar pelos seus primeiros momentos de vida:

decepcionante período na academia militar de

Já é um chavão afirmar que Poe, esse esta-

Poe não conheceu o pai e sua mãe morreu quan-

West Point, foi expulso de lá e rompeu relações

dunidense nascido em janeiro de 1809 na cidade

do ele tinha apenas três anos de idade; órfão,

com John. No ano de 1831, publicou um segun-


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

58

do livro de poemas. Necessitando de trabalho

de Baltimore e morreu quatro dias depois. Os

to, angariando séquitos imensos. Mesmo que,

para sobreviver, começou a produzir textos para

dados que dão conta de seus últimos momentos

naturalmente, não provoquem o mesmo pavor

jornais. Seu primeiro conto de destaque surgiu

de vida são particularmente instigantes: antes

que poderiam produzir sobre um leitor do sé-

em 1833: Manuscrito encontrado numa gar-

de ser encontrado em frente a uma taverna, Ed-

culo 19, as histórias de Poe ainda são capazes

rafa foi premiado pelo jornal Saturday Visiter,

gar Poe teria sumido durante cinco dias; conta-

de impressionar, seja por meio das sutilezas de

de Baltimore, o que o levou a se dedicar mais

-se que usava roupas que, aparentemente, não

composição, seja pelas arrojadas ideias, seja

à literatura. Acumulando frustrações, problemas

eram suas; nos dias seguintes, no hospital onde

pelas imagens mais chocantes que o autor não

financeiros e dívidas de jogo, Edgar Poe tornou-

morreria, o escritor teria passado boa parte do

tem pudor em mostrar.

-se um beberrão frequente.

tempo delirando, repetindo o misterioso nome

A obra de Edgar Allan Poe, logo, é uma

Em 1836, então com 27 anos de idade,

“Reynolds” e implorando ao médico que explo-

soma de vários temores que percorrem o ima-

casou-se com Virginia, sua prima, que sequer

disse seu cérebro; em seu leito de morte, suas

ginário humano. Seus personagens, em muitos

havia completado 14 anos. Em 1839, publicou

palavras finais teriam sido “Senhor, socorra mi-

casos, lidam com a morte, com o sobrenatural,

sua primeira coletânea de contos, Tales of the

nha pobre alma!”.

com a loucura e com o desconhecido. O crime,

Grotesque and Arabesque. Entre 1839 e 1842,

sob o manto da psicopatia e do assassinato, é

escreveu grande parte de seus contos mais im-

outra máxima. Mas são as obsessões de Poe que

ceiro suficiente para que se mantivesse. Chegou

A soma de muitos medos

a se interessar pelo serviço público para poder

Há mais de um século que Poe é responsável

um item importante do repertório de Poe. Edgar

garantir seu sustento, porém seus problemas

pela entrada de diversos leitores num universo

não hesitou em utilizar esse recurso mais de

com alcoolismo acabaram impedindo, inclusive,

antes desconhecido dos mesmos – seja esse uni-

uma vez: a ocultação do cadáver da esposa do

que comparecesse a uma entrevista conseguida

verso o da literatura de suspense e terror, seja o

protagonista em O gato preto vem nesse for-

pelos seus amigos com o presidente dos Esta-

da narrativa policial, seja o da literatura adulta.

mato, que reaparece como ato de vingança em

dos Unidos (sim, o presidente!). Em 1845, Poe

Seus temas de maior interesse acabam trazen-

O barril de Amontillado, onde o pobre Fortunato

finalmente obteve grande sucesso com o poema

do situações que refletem o simples e inerente

(um nome evidentemente irônico, visto que se-

O corvo, que se tornaria um clássico, mas envol-

desejo do ser humano de se emocionar. E temer,

ria um sinônimo italiano para “afortunado”) é

to em azares e sem tino comercial algum, per-

logo, também é se emocionar.

emparedado vivo pelo rancoroso narrador, evo-

portantes, publicados em revistas literárias e jornais diversos, mas não obteve retorno finan-

chamam maior atenção – não temos, aqui, um escritor com medo de se repetir ou de ser autorreferente. O emparedamento, por exemplo, é

deu as chances de ganhar algum dinheiro com o

O temor, diga-se de passagem, talvez seja

cando outro temor recorrente, a claustrofobia.

texto: tendo publicado primeiramente em jornal,

um dos sentimentos mais facilmente suscitáveis,

Por outro lado, se não são as paredes, é o chão

o New York Evening Mirror, Poe, sem saber, des-

através do qual é possível direcionar ações e

– ora na forma de um cadáver ocultado sob o

protegera seus direitos autorais sobre o poema.

manipular outras emoções. Nas narrativas orais

assoalho em O coração revelador, ora como um

Quando finalmente publicou sua própria edição,

tradicionais, o medo é o elemento norteador de

indivíduo sepultado vivo em O enterro prema-

The raven and the other poems, O corvo já não

uma lógica pedagógica e, eventualmente, mora-

turo. Fora o emparedamento, há outras obses-

era uma novidade – muitos já o tinham lido e

lizante. Em outra medida, no convívio social, por

sões e reiterações: a perturbação causada pela

simplesmente não havia mais interesse; o nome

exemplo, é fácil perceber o medo como estraté-

ausência do olho do felino em O gato preto, por

de seu autor, no entanto, já se projetava numa

gia de manipulação ideológica, tanto no âmbito

exemplo, lembra o mesmo sentimento provoca-

dimensão bem maior do que antes.

político, como no âmbito midiático. Logo, na li-

do pela imagem do velho senhorio do conto O

teratura, sob efeito do medo, um leitor pode ser

coração revelador, que, com seu esquisito “olho

facilmente “fisgado”.

de abutre” de pupila azul clara embaciada, ins-

Em 1847, Virginia, sua esposa, morreu, depois de cinco anos de problemas de saúde graves e recorrentes e em um estado de ago-

O medo que as narrativas de Poe evocam

pira a psicopatia de seu inquilino – o olho, aqui,

nia bastante deplorável que marcaria o escritor

torna-se uma intensa ferramenta de identifi-

parece adquirir um caráter simbólico, é aqui-

profundamente. Alcoolista há alguns anos, Poe

cação emocional com seus leitores ainda hoje,

lo que revela a alma dos sujeitos que para ele

passou a ter sucessivos problemas de saúde e

como também tem sido ao longo do tempo

olham tentando encontrar a si mesmos; os nar-

crises nervosas. Em 1848, tentou o suicídio; em

com filmes de terror e autores de literatura

radores de tais contos, ao buscarem esse vín-

1849, foi encontrado semiconsciente nas ruas

fantástica que têm investido nesse segmen-

culo de identificação nos coabitantes de suas


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

59

moradas, acabam não o encontrando, logo, a

quando ele se atreveu a insultar-me,

-lo numa livraria de Paris. Em comparação com

ausência do olho revela, também, seres desal-

jurei vingança. Os senhores, que co-

o investigador, essa testemunha é uma pessoa

mados que, ao se depararem com tal verdade,

nhecem tão bem a natureza de minha

normal como todos nós, portanto seria muito

abraçam sua própria loucura (mas sem se ve-

alma, não hão de supor que eu tenha

mais natural estarmos mais próximos dele do

rem, de fato, como lunáticos).

pronunciado qualquer ameaça. Um

que do primeiro. Assim, é por sua narração que

Nos contos de Edgar Allan Poe, outra marca

dia eu me vingaria – isso era coisa tão

conheceremos os fatos e os personagens de um

recorrente é a presença do narrador em primeira

definitivamente assentada que excluía

tipo de história, que, por si só, é um fato novo

pessoa. Trata-se de um interessante recurso que

qualquer ideia de risco. Eu não só deve-

na literatura – logo, tudo é novo, tudo é dife-

pode ser analisado até mesmo por um viés sádi-

ria punir, como punir com impunidade.

rente (para nós e para ele). Nas suas origens, “a

co: Poe ilude o espectador e coloca-o constan-

ficção policial precisa criar o seu leitor” – é o

temente na posição do protagonista em estado

Assim como nesses contos, há muitos ou-

que afirma Franco Moretti em seu livro Signos

de progressiva loucura e perturbação; solidari-

tros em que a narrativa em primeira pessoa

e estilos da modernidade – ensaios sobre a so-

zamo-nos com os dementes, não por aceitarmos

mostra-se uma opção constante do autor: A

ciologia das formas literárias; como o Watson

seus atos doentios, mas sim por enxergarmos o

queda da casa de Usher, O poço e o pêndulo, O

de Conan Doyle será futuramente, esse anôni-

mundo e as ações que se desenrolam na narra-

homem na multidão, Berenice... De alguma for-

mo personagem de Poe não é somente narrador,

tiva na perspectiva deles. É o caso evidente de

ma, pelo seu repetido uso, esse parece, mais uma

mas também “espectador”, espelhando, assim, a

O gato preto e O coração revelador, assim como

vez, ser um recurso para se aproximar do leitor.

figura do próprio leitor.

do vingativo narrador de O barril de Amontillado

Ao tratar de situações tão distintas da normali-

É curioso notar que a narrativa policial

e, em alguma medida, do perturbado protago-

dade, Poe busca a possibilidade de encontrar um

concebida por Edgar Allan Poe se mostra, de

nista do conto William Wilson, que mata para

leitor solidário com as agruras e descobertas de

certa forma, como antítese do fantástico e do

se ver livre de uma jornada de vida próxima de

seus narradores.

misterioso sugeridos em outras histórias suas.

um pesadelo interminável. Excetuando o último

De alguma forma, nas histórias de terror e sus-

conto, os três primeiros – clássicos absolutos

pense de Poe, há sempre um sujeito encarando

via de regra, sempre tenta explicar o que acon-

Narrativa policial: antítese do fantástico

tece a sua volta a partir da racionalidade, mes-

Como se não bastasse todo seu pioneirismo e

de Amontillado. O “limite”, porém, também pode

mo quando já parece não estar no domínio de

inventividade em outros segmentos, Edgar Poe

ser a simples normalidade aparente. Para o au-

todas as suas faculdades mentais e tudo parece

também é tido como o pai da narrativa policial,

tor, não interessa tanto o que é declaradamente

apontar para o inexplicável. Já o narrador de

e August Dupin, o curioso e inteligentíssimo

sobrenatural, mas também a dúvida que recai

O coração revelador é um psicopata por excelên-

investigador de alta capacidade dedutiva cria-

sobre aquilo que é simplesmente estranho. É da

cia, que destaca a calma e a tranquilidade com

do por ele, por sua vez, é precursor de outros

estranheza, portanto, que brota o suspense, o

que é capaz de contar a história do assassinato

personagens, como Sherlock Holmes (criado por

mistério e o terror. Terror esse que pode até bro-

que cometera. Enquanto isso, o protagonista de

Arthur Conan Doyle) e Hercule Poirot (de Aga-

tar inesperadamente, mas que quase sempre se

O barril de Amontillado quer que sejamos seus

tha Christie). São três as narrativas que têm esse

dá após a advertência acerca dos limites que não

cúmplices no crime, revelando, desde a primei-

personagem como figura principal: Os crimes da

podem ser ultrapassados – caso de A queda da

ra linha do texto, que cometerá uma vendetta

Rua Morgue, O mistério de Marie Roget e A carta

casa de Usher. Em outras situações, entretanto,

– cujo grau de premeditação tornará o ato ainda

roubada. Ao trazer esse tipo novo de narrativa,

não há qualquer explicação – o limite, portanto,

mais doentio:

que basicamente envolve a resolução de um

já está rompido desde o princípio da narrativa,

do autor – revelam narradores muito conscientes de suas pretensas personalidades e de suas ações, o que os torna ainda mais insanos. Em O gato preto, temos um toque de gênio de Poe, ao construir, sutilmente, um personagem que,

um “outro” ou o mundo ao seu redor e deparando-se com seus “limites” – é a partir desse ponto que se dá o fantástico na obra do escritor, como percebeu Tzvetan Todorov. O “limite” pode ser o da sanidade, por exemplo, como em O gato preto, William Wilson, O coração revelador e O barril

caso, Poe coloca-nos em pé de igualdade com

como em O poço e o pêndulo. Por outro lado, na

Suportei da melhor forma que pude

aquele jovem rapaz anônimo que testemunha as

narrativa policial, a estranheza é controlada – e

as muitas injúrias de Fortunato, mas

habilidades intelectuais de Dupin após conhecê-

“curada” pela razão.


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

60

tivamente precursoras. A maior delas, o caráter

Poe por toda parte

dedutivo, “será o fio de Ariadne que vai conduzir

Edgar Poe foi um cuidadoso e hábil contador de

o pensamento humano no dédalo das aparên-

histórias e chegou a descrever de forma mais

cias”, como escreve Bella Josef em seu livro A

sistemática algumas ideias sobre seu método

máscara e o enigma. Ao encontrar seu acaba-

de trabalho. Seu mais célebre escrito ensaísti-

mento definitivo no Sherlock Holmes, de Arthur

co, no entanto, não se concentra na short story

Conan Doyle, a inteligência que transforma o

propriamente dita, ou seja, no conto, a forma

homem comum em um indivíduo extraordinário

em prosa pela qual seu trabalho tornou-se mais

apresentará consonância com o cientificismo do

conhecido. O texto em questão, intitulado A fi-

fin de sècule. Nas palavras de Bella Josef:

losofia da composição, é baseado no processo

As características estabelecidas por Edgar Allan Poe em suas narrativas policiais são defini-

de escrita do célebre poema O corvo, um texto O mistério das coisas deixa de ser

ainda de caráter narrativo, porém em versos.

impenetrável graças ao progresso da

O corvo é, talvez, a criação mais referida

razão, armada do método científico. A

de Poe, adaptada, relida e parodiada inúmeras

dedução é o instrumento do poder. (...)

vezes, resgatada intertextualmente em diversos

A dedução retira da ficção o que ela

suportes e linguagens artísticas, traduzida por

poderia ter de imaginário e de causal

uma infinidade de autores em diversos idiomas

(...). O detetive é o lugar mental em que

e um dos poemas mais conhecidos da língua in-

a verdade se formula pouco a pouco.

glesa. O corvo dá conta, mais uma vez, do em-

tantos recursos de composição presentes nesse

bate de uma mente perturbada contra um algoz

poema, que revelam a inventividade e o absolu-

Nessa apropriação do ilógico e ao racionali-

que reacende – no caso, no eu-lírico – as dores e

to controle criativo de Poe, costuma-se referir o

zar suas causas, o detetive entra em conflito com

as angústias mais profundas. A figura sobrena-

interessante uso que o autor faz do anagrama,

a arguta inteligência do seu algoz e a aventura

tural de um corvo, a ave que traz mau agouro e

utilizando, a partir das mesmas letras (ou dos

é também o combate mental, o percurso pelos

recita o aparentemente inexplicável e incoerente

mesmos sons dessas letras), diferentes palavras

enigmas e a procura pelas respostas. A narrati-

mantra “Nunca mais”, traz à tona a lembrança

que permeiam o campo semântico do texto,

va policial encontra-se no espaço do consumo

de Lenore, a eterna amada morta do eu poético

como podemos perceber no trio raven (corvo),

de massa e soma-se a outras literaturas que a

que se manifesta no texto; a frase emblemática,

never (nunca) e heaven (céu; paraíso). Mas o que

acompanham nesse processo, passando a ser

“Never more”, em inglês, rimando perfeitamente

mais chamará a atenção no poema, contudo, é

aquilo que Bella Josef define como “a aventura

com “Lenore” e remetendo ao passado, perturba

a presença de uma temática praticamente ine-

das grandes cidades”, propondo a identificação

incontrolavelmente esse sujeito, que é obrigado

xistente em seus contos: o amor. O tema não é

com seu público leitor a partir da necessidade de

a aceitar a melancolia da perda e a angústia da

exclusividade de O corvo – vemos ele também

identificação da massa – soma-se a isso, natu-

resignação. A atmosfera onírica construída pelo

em outros textos em verso, como o delicado e

ralmente, o próprio desenvolvimento e progres-

autor, por mais evidente que se mostre, guar-

igualmente triste (mas não tão angustiado) An-

so do espaço urbano, outro interesse de Poe, evi-

da, portanto, uma importância simbólica que

nabel Lee. Charles Baudelaire já chamava a aten-

denciado em seu conto O homem na multidão.

se sobrepõe ao seu caráter sobrenatural. Entre

ção para isso:


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

61

cuja lembrança o atormenta – o nome real do personagem, Eric Draven, é um evidente trocadilho com o título “The Raven”); na música, a referência também é constante, e o fenômeno é registrado até mesmo num clássico da música popular brasileira, a canção Velha roupa colorida, escrita por Belchior e sucesso na voz de Elis Regina na segunda metade dos anos 1970. Fora os exemplos que podem ser notados nas muitas referências a O corvo, a grande verdade é que é possível encontrarmos Poe em toda suas narrativas em prosa, mas acolhe o amor

parte. Na literatura, diga-se de passagem, sua

romântico a partir de uma de suas tendências

influência transcende a narrativa de suspense e

mais conhecidas, explorando a melancolia e a

terror, como seria natural que se esperasse. O

tristeza resultantes de certo apego sentimental.

maior escritor da literatura brasileira, Machado

De Lou Reed a Os Simpsons, passando por

de Assis, por exemplo, não só traduziu O corvo

Antônio Carlos Belchior e histórias em quadri-

como também utilizou o nome Fortunato, per-

nhos, O corvo talvez seja o exemplo máximo da

sonagem de O barril de Amontillado, de Poe, no

força e da permanência dos escritos de Edgar

conto A causa secreta – não por acaso, uma nar-

Allan Poe no imaginário popular. Não é o úni-

rativa de suspense e tensão psicológica, igual-

Nos contos de Poe, jamais se encontra

co exemplo, mas, provavelmente, seja mesmo o

mente calcada nas desavenças entre dois ami-

amor. Pelo menos Ligeia, Eleonora não

maior: no cinema, O corvo recebeu tratamen-

gos; algo semelhante ao narrador defunto Brás

são, propriamente falando, histórias

to peculiar (e um tanto bizarro) nas mãos do

Cubas também já havia sido sugerido e testado

de amor, sendo outra a ideia prin-

diretor Roger Corman, que desvirtuou bas-

por Poe em Sombra – uma parábola. Além disso,

cipal sobre a qual gira a obra. Talvez

tante a narrativa original, criando um clássico

há sutis semelhanças entre os contos O coração

acreditasse ele que a prosa não é uma

dos “filmes B”; na televisão, a série Os Simp-

revelador, de Edgar, e O enfermeiro, de Macha-

linguagem à altura desse estranho e

sons transpôs o texto com bastante fidelidade,

do. Outra autora nacional, Lygia Fagundes Tel-

quase intraduzível sentimento; porque

apresentando-o ora por um prisma satírico, ora

les, igualmente conhecida pelas histórias curtas,

suas poesias, em compensação, estão

por uma perspectiva reverente (utilizando, na

como Poe, ao escrever o conto Venha ver o pôr

fortemente saturadas de amor. A di-

dublagem brasileira, de forma bastante próxi-

do sol, produziu, na verdade, uma releitura de O

vina paixão nelas aparece magnífica,

ma inclusive, a tradução de Milton Amado, de

barril de Amontillado que, no lugar de antigos

constelada, e sempre velada por uma

1943); nos quadrinhos, é evidente a inspiração

amigos que percorrem um ambiente subterrâ-

irremediável melancolia.

do poema para o personagem The Crow, de Ja-

neo, coloca um casal de namorados num longo

mes O’Barr, criado nos anos 1980 e adaptado

diálogo dentro de um cemitério que também

Mais do que amor, é a perda amorosa a

para o cinema em 1994 (The Crow é um anti-

termina em vingança.

tônica desses poemas. Poe, assim, não deixa de

-herói que retorna dos mortos acompanhado de

Na música, há dois exemplos particulares:

lado a atmosfera gótica que igualmente permeia

um corvo para vingar a morte da mulher amada

os álbuns The raven, de Lou Reed, e Tales of mys-


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

62

tery and imagination – Edgar Allan Poe, da banda

uma história em que Edgar auxilia a polícia na

de rock progressivo Alan Parsons Project. Ambos

tentativa de desvendar crimes cometidos por

são álbuns conceituais que partem da mesma

um admirador de sua obra. Já o filme A colina

premissa: reler, a partir da canção, alguns dos

escarlate, de Guillermo del Toro, inspira-se em

contos e poemas do escritor estadunidense.

muitas fontes da literatura gótica para compor

No cinema, na televisão e nos quadrinhos,

sua narrativa e seus personagens, mas não há

as referências à obra de Edgar Allan Poe são

como negar as semelhanças evidentes em rela-

vastas. Segundo o site IMDb (o Internet Mo-

ção ao clássico conto A queda da casa de Usher.

vie Database, a principal base de dados para

Na música, as relações desse tipo com a obra

informações referentes a créditos em filmes e

de Poe são mais sutis, mas é possível destacar a

programas de televisão), há mais de 300 refe-

bela Just like heaven, da banda The Cure, um re-

rências de Edgar Allan Poe como escritor (leia-

lato de dor pela ausência da mulher amada que

-se: autor original) em diversos tipos de produ-

estabelece claras pontes com o poema Annabel

ção voltadas tanto ao cinema (curtas e longas

Lee, de Poe.

metragens) quanto à TV (episódios especiais,

Diga-se de passagem: se quisermos ob-

séries etc.). Na tela grande, há produções recen-

servar a intertextualidade por um prisma mais

tes, como Refúgio do medo, lançada em 2015

sutil, as possibilidades de (re)leitura da obra

(inspirada no conto O sistema do doutor Alca-

de Edgar Allan Poe multiplicam-se, visto que o

trão e do professor Pena), e outras mais anti-

repertório de situações e imagens que o autor

gas assinadas por diretores consagrados, como

usou e repetiu repercute ainda hoje. Apesar de

Histórias extraordinárias, de 1968 (filme em

toda a sua importância e influência, Edgar Poe

episódios dirigidos por Federico Fellini, Roger

foi, em vida, bastante rejeitado em seu próprio

sua vida, será convidado a conhecer os contos

Vadim e Louis Malle), e Dois olhos satânicos, de

país. Entende-se: o autor teve conflitos com es-

e poemas desse escritor norte-americano, pois

1990 (dos mestres do terror George Romero e

critores e críticos literários de seu tempo e sua

sua obra é, em suma, essencial, pertencente a

Dario Argento). Na televisão, por exemplo, há

literatura era considerada, por muitos, apela-

um panteão de escritores cuja leitura é neces-

o caso recente da série nacional Contos de Ed-

tiva, pouco sofisticada e “de mau gosto”. José

sária e incontornável. Enquanto houver aqueles

gar, que adaptou para um contexto brasileiro

Paulo Paes destaca que, “diante da obra literária

que temem, haverá a literatura de Poe.

e contemporâneo alguns clássicos atemporais

de Poe, a atitude mais comum da crítica moder-

de Poe. Nos quadrinhos, igualmente, há inúme-

na é, antes de restrição que de aplauso”. Quem

ras adaptações, inclusive nacionais, produzidas

primeiro chamou a atenção para a qualidade

com certa frequência desde a década de 1950,

literária de Poe foram os franceses que, ainda

pelo menos.

no século 19, trataram de traduzir e divulgar a

Em muitos desses segmentos, porém, no-

obra do escritor norte-americano, dando o aval

ta-se que a obra do escritor não resulta somen-

crítico que o mesmo necessitava para ser, en-

te do processo adaptativo, mas também acaba

fim, respeitado. Nesse esforço por dar o devido

sendo referida intertextualmente, revelando o

lugar à obra de Poe, é o poeta francês Charles

caráter icônico e permeável da obra de Poe. Na

Baudelaire que talvez tenha os maiores méritos,

TV, um caso interessante é The following, série

que, à época, incensou o escritor, saudando sua

de investigação que explora a formação de um

inventividade e a naturalidade com que mani-

culto de assassinos guiados pelas ideias de um

pulava o sobrenatural, contando, “com magia”,

professor de literatura fanático pelas histórias

“as exceções da vida humana e da natureza”.

macabras de Edgar Allan Poe. No cinema, o es-

Desde então, isto é, desde o momento em

critor já foi personagem de ficção em O corvo,

que a obra de Poe passou a ser valorizada e seu

de 2012, que se utiliza da lacuna biográfica dos

pioneirismo e importância reconhecidos, tor-

últimos dias de vida do escritor para mostrar

nou-se comum: um leitor, em algum período de

Referências bibliográficas: BARROSO, Ivo (org.). O Corvo e suas traduções. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000. BAUDELAIRE, Charles. Posfácio. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo, 2009. JOSEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006. MORETTI, Franco. Signos e estilos da modernidade – Ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. PAES, José Paulo. Apresentação. In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. . Histórias extraordinárias. Tradução de Brenno Silveira e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1981. . Poemas e ensaios. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Globo, 2009. SCHNAKENBERG, Robert. A vida secreta dos grandes autores: o que os professores nunca contaram sobre os famosos romancistas, poetas e dramaturgos. Tradução de Vitória Mantovani. São Paulo: Ediouro, 2008. TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Tradução de Eliza Angotti Kossovitch. São Paulo: Martins Fontes, 1980.


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

Por Paula Taitelbaum

63

É escritora e trabalha com cultura desde os anos 1980. Possui vários livros publicados, entre eles dois infantis: Palavra vai, palavra vem (L&PM Editores, 2013) e o recém lançado Bichológico (Editora Piu, 2016)

vem de ler e escutar histórias tendo o céu como teto. Há pouco tempo, com o lançamento de meu novo livro infantil, Bichológico, participei de um projeto chamado Cultura no Pátio, que, no primeiro sábado de cada mês, oferece uma programação focada nas crianças. É sempre uma tarde repleta de cultura a céu aberto que tem como palco o Pátio Ivo Rizzo, ali onde a rua Dinarte Ribeiro encontra

Ar livre, ar livro

Contação de histórias no Cultura no Pátio, com Bichológico

Foto: arquivo pessoal de Paula Taitelbaum

A literatura está sempre no ar, cruzando esquinas,

a Félix da Cunha, em Porto Alegre. Na edição de

atravessando ruas, brincando no parque, rolando

maio, além do Homem Banda, lá estavam Bicholó-

na grama, pulando poças d’água, voando com o

gico e eu. Antes da sessão de autógrafos do livro,

vento feito uma folha que se desprendeu da árvore.

promovi uma contação de história e, para minha

A literatura é livre e, apesar de habitar bibliotecas,

surpresa, os pequenos escutaram minha leitura

livrarias, salas de aulas e quartos a meia luz, quanto

com a maior atenção. Foi a primeira vez que li um

mais focada nas crianças ela for, mais vontade de

livro ao ar livre e confesso que achava que a quan-

correr solta ela terá. Porque literatura infantil tem

tidade de estímulos – som de carros e pessoas, mo-

cor, som, textura, temperatura, luminosidade, velo-

vimento de gente e de natureza – talvez deixasse

cidade. Literatura infantil tem mais vida.

os miniespectadores muito dispersos. O bom é que

Felizmente, há eventos que inserem os li-

eu estava errada. A rua pareceu promover justa-

vros nos espaços urbanos, despertando o amor das

mente o contrário, oportunizando uma integração

crianças pela poesia, pela prosa e pelo prazer que

entre as crianças e a literatura de uma forma to-


literatura

primeiro SEMESTRE

2016

64

talmente natural. O que me faz pensar que ouvir

Redenção. A Roda de Poesia foi uma manifesta-

Prefiro falar de piqueniques. Esta prática

histórias ao ar livre com certeza está entranhado

ção poética espontânea que se tornou um marco

que vem ganhando cada vez mais popularidade

dentro da gente, em todas as nossas células, vindo

na cidade de Porto Alegre. Em meio ao Brique,

nas praças e nos parques. Esticar a toalha xadrez

daquele tempo longínquo em que a palavra escrita

os poetas Mario Pirata, Alexandre Brito, Ricardo

sobre a relva voltou à moda, podemos dizer. E se-

ainda não existia e que os contos eram contados à

Silvestrin e Ricardo Portugal começavam a fun-

guindo essa onda, há gente que aproveita para

beira do fogo, transmitidos oralmente de tribo em

ção cantando e batendo palmas para chamar os

fazer piqueniques literários, onde os próprios pais

tribo, de geração em geração.

passantes: “Poesia na roda, ê, quem chegou é bem

muitas vezes promovem leituras de livros com

Mas se ouvir histórias ao relento é algo na-

chegado, umbigada em você, para dar o seu reca-

seus filhos. Ou ainda há aqueles piqueniques pro-

tural para o ser humano, ler em parques ainda é,

do”. Então, as pessoas iam se chegando, entrando

fissionais, com produção requintada e recheados

para nós, brasileiros, um hábito pouco usual (tal-

na roda e podiam ir para o centro recitar o poema

de inventividade. Li que o Parque Villa-Lobos, em

vez porque se leia pouco por aqui). Já na Europa,

que quisessem, seu ou de algum famoso. Lem-

São Paulo, organizou um Piquenique Literário em

vemos os livros serem abertos sobre a grama no

bro que as crianças adoravam e que muitas delas

que os livros foram pendurados nas árvores para

primeiro raiar de sol da primavera. O alento é que

devem recordar até hoje o prazer que os versos

convidar a população para “provar as histórias

sempre há alguém disposto a mudar isso no Bra-

declamados lhe proporcionavam. Um prazer tão

como se fossem frutos colhidos na hora”. Achei

sil. O saudoso Hermes Bernardi Jr., por exemplo,

grande quanto brincar de roda.

lindo! Havia, ainda, mediadores de leitura que ti-

escritor e ilustrador de literatura infanto-juvenil

Quando falamos em literatura e ocupação

nham como objetivo mostrar que há diferentes

que faleceu precocemente em 2015, criou vários

dos espaços urbanos também é impossível não

tipos de leitura: em voz alta, silenciosa, ao pé do

projetos que servem de estímulo para todos nós.

lembrar da Feira do Livro de Porto Alegre, consi-

ouvido...

Entre eles, o Tapete Mágico que circulava pelas

derada a maior a céu aberto das Américas e que

Seja de que forma for, contação/feira/pi-

cidades do Interior do Rio Grande do Sul, levando

acontece anualmente desde 1955 na Praça da

quenique, ao levar a literatura para os espaços

a prática da leitura aos espaços públicos. Hermes

Alfândega. O evento nasceu justamente porque

públicos, a gente democratiza a cultura, valoriza

chegava em uma praça da cidade, esticava seu

um grupo de intelectuais da cidade pensou em

os livros, volta para um tempo mais humano e

tapete, armava sua tenda, colocava seus livros

aproximar o povo dos livros, já que as livrarias

menos virtual em que os pais e os filhos senta-

sobre ele e convidava a comunidade para ler e

eram consideradas elitistas. Pena que, nas últimas

vam em seus jardins e liam uns para os outros.

ouvir histórias.

edições, a área infantil tenha ficado meio à deriva,

E assim os leitores em formação percebem que ler

E voltando um quarto de século para trás,

perdida no mar de barracas após ter perdido o

pode ser ainda mais prazeroso. Justamente por

lembro também da Roda de Poesia que acontecia

espaço do Cais do Porto. Aliás, quantos eventos

isso, fica aqui o convite: vamos levar nossos livros

em meados dos anos 1980 e que, todo domin-

literários não poderiam ser feitos no Cais... Mas

para passear com a gente?

go, reunia gente para recitar poesia no Parque da

isso já é uma história que não cabe aqui começar.

Lançamento do livro Bichológico, no Cultura no Pátio Foto: arquivo pessoal de Paula Taitelbaum


LEITURA

primeiro SEMESTRE

2016

65

A estetização do mundo Gilles Lipovetsky

Mais médicos Araquém Alcântara

Uma estranha na cidade Carol Bensimon

47 contos de Isaac Bashevis Singer

Companhia das Letras

Terrabrasil

Dublinense

Isaac Bashevis Singer Companhia das Letras

Publicado em 2015, o livro do filósofo

Você provavelmente já viu muitas

"... talvez a literatura seja a coisa

Gilles Lipovetsky, em parceria com o

fotografias de Araquém Alcântara. O

mais transgressora do mundo

No geral, os contos de Isaac

crítico de arte Jean Serroy, nos brinda

consagrado fotógrafo de natureza se

contemporâneo (já que até o rock

Bashevis Singer apresentam

com uma importante reflexão sobre

popularizou por coloridas imagens de

se limpou e se coloriu); você pega

um discurso sofisticadamente

novas estratégias que tomam forma

onças, tucanos, florestas e reservas

um livro para ler e essa atitude é um

elaborado sem ser rebuscado,

no capitalismo contemporâneo,

ecológicas do Brasil. Com 46 anos de

dedo médio levantado para a rapidez

destacando-se, em certas

baseadas na forçosa aproximação

carreira e 48 livros publicados, lança

de tudo o que acontece à sua volta.”

histórias, o caráter fantástico,

entre a arte e o mercado. O livro traz

agora seu olhar acurado para o polêmico

Uau!

típico de narrativas mitológicas e

argumentos para pensarmos sobre os

Mais Médicos. O livro narra em preto

Ler a Carol Bensimon te dá essas

folclóricas. No entanto, por mais

caminhos paradoxais trilhados pela

e branco as rotinas do atendimento

pequenas alegrias. Cavocando no

raro que seja o ambiente em que

sociedade de consumo, que encontra

à população em 38 das 4 mil cidades

cotidiano, caminhando pelas ruas das

transcorrem as ações, o espírito

no mercado o agente responsável por

alcançadas pelo programa desde o

cidades, observando a organização

profundamente humano das

satisfazer o crescente interesse pela

seu início. Entre vilarejos distantes e

por vezes absurda das coisas,

personagens sempre se revela,

arte e pela estética. Os autores trazem

favelas das zonas urbanas, o fotógrafo

exercitando seu olhar de estrangeira,

despertando inevitavelmente a

a discussão a partir de exemplos

se preocupa em integrar as rotinas de

Carol nos leva junto.

empatia do leitor. A imaginação e

já cotidianos: lojas que parecem

trabalho e as relações de afeto entre

Ler a Carol Bensimon é um dedo

as memórias do autor, alimentadas

galerias de arte, objetos comuns

médicos e pacientes com a paisagem

médio levantado para a estupidez

por um sem-fim de elementos

sugeridos como peças de coleção,

brasileira. Assim, busca construir ao

do mundo, garota sagaz, curiosidade

culturais judaicos, dão vida a

desfiles de moda concebidos como

mesmo tempo um manifesto humanista

e perplexidade que inspiram e

histórias narradas de forma

misé-en-cene, a era dos food trucks,

e uma narrativa poética da geografia

desacomodam o leitor. Além de

vertiginosa e, quase sempre,

da gourmetização, a banalização do

brasileira. Não espere registros

grande arquiteta de romances

permeadas pela conflituosa

design. Apropriando-se de tendências

essencialmente naturalistas. Eles estão

(Sinuca em baixo d’água e Todos nós

relação entre o ser humano e

que apontam para a busca por valores

ali misturados a imagens marcadas

adorávamos cowboys), Carol é uma

Deus. O que, de certa forma,

estéticos mais ricos, por formas

pela teatralidade das poses, das luzes

baita cronista. Não perca de jeito

ilumina o sentido das palavras

de consumo mais conscientes e

contrastadas e das nuvens carregadas de

nenhum Uma estranha na cidade.

de Singer quando ele diz que “a

menos insignificantes, o capitalismo

tons de cinza. A publicação é a síntese

arte pode tentar, à sua maneira

contemporâneo se reconfigura, então,

de um trabalho fotográfico primoroso

humilde, consertar os erros do

para preencher (e também para

e de um documento social de inegável

construtor eterno.”

produzir) novos vazios, auferindo

importância para a história recente

novos lucros. Um livro para pensar.

do país.

Camila Farina

Flávia Campos de Quadros

Gestora cultural e diretora da Maria Cultura

Fotógrafa e professora

Katia Suman Radialista

Fabriano Rocha Artista visual e ilustrador



acessibilidade DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


7º Festival Internacional Sesc de Música Pelotas-RS

16 a 27 de janeiro de 2017

Inscrições para os cursos: de 16 de junho a 17 de julho de 2016. sesc-rs.com.br/festival

Apoio Institucional:

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