Meu Itinerário Espiritual, vol 2 - Plinio Corrêa de Oliveira

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Meu Itinerário Espiritual Volume II


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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Meu Itinerário Espiritual Compilação de relatos autobiográficos de

Plinio Corrêa de Oliveira

Volume II

Instituto Plinio Corrêa de Oliveira São Paulo, 2021 – 1ª edição


Responsabilidade editorial Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira Rua Maranhão, 341 Bairro Higienópolis São Paulo-SP CEP 01240-001 https://www.ipco.org.br Editora Petrus Editora Ltda. Rua Javaés, 681 – 1º andar – Bom Retiro 01130-010 – São Paulo – SP Fones: 11-3331-4522 / 11-2843-9487 Whatsapp: 11-9-9459-9796 Site: www.livrariapetrus.com.br e-mail: atendimento@livrariapetrus.com.br e-mail: consignacao@livrariapetrus.com.br Pesquisa, compilação e adaptação Enrique Loaiza Revisão José Antonio Ureta Fernando de Oliveira Diniz Projeto gráfico e arte final Luis Guillermo Arroyave © Copyright 2021 Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira ISBN 978-65-89510-09-3 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão deste livro, no todo ou em partes, por quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito da Associação Instituto Plinio Corrêa de Oliveira. 4

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Sumário SIGLAS DAS FONTES BIBLIOGRÁFICAS 9 1ª PARTE: A TRAVESSIA DO DESERTO E OS FRUTOS DO ENCONTRO COM O MOVIMENTO CATÓLICO 13 Um combatente solitário 13 Na primeira mocidade, reforço do amor à Igreja, da rejeição do mundo revolucionário e da opção pelo passado 13 Restos de coexistência do estado de graça e da seriedade com a superficialidade e a brincadeira 16 A terrível cruz da incompreensão e do isolamento total 19 A ascese para afirmar sua varonilidade sem transformar-se num “Esaú” 26 Algumas consolações que sustentaram Dr. Plinio nesta travessia 27 O auxílio dos prazeres inocentes 28 A esperança enorme de alguma coisa que haveria de vir: o fim da Revolução e o Reino de Maria 28 O início da grande contraofensiva 30 O inesperado encontro com o Movimento Católico 30 A ruptura definitiva com o mundo revolucionário 37 Primeiros progressos marcantes na vida espiritual 42 Consolações depois de entrar no Movimento Católico 42 Desenvolvimento da vida de piedade 43 Algumas renúncias fundamentais 45 Nasce a aspiração à santidade 46 A purificação mediante duas provações anti-axiológicas inesperadas 46 A provação de crer-se obrigado a abandonar, por obediência ao Papa, as convicções monárquicas e ter que aliar-se à República 54 Deliberação de empenhar-se na via da santidade 58 Benefícios da leitura dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio comentados pelo Pe. Pinamonti 58 A leitura da “História de uma alma” e a aspiração à santidade 60 Os frutos da leitura do livro “A alma de todo apostolado” 62 O combate ao orgulho 65 Um novo e elevado patamar após a leitura do “Tratado da Verdadeira Devoção” e a consagração a Nossa Senhora como escravo de amor 68


Firma-se o ideal de dedicação integral pela opção do celibato – Choque com um veio de mediocridade no seio das Congregações Marianas 73

2ª PARTE: NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 77 Um cerco e uma tragédia aos 24 anos 77 Um quiproquó a partir da leitura da “História de uma alma” 82 Um lenitivo: a leitura do “Livro da Confiança” 83 O encontro do equilíbrio 88

Repercussões espirituais de um gesto “kamikaze” em defesa da Igreja 89 A direção do “Legionário” e o começo da divisão no Movimento Católico 89 Indicação para presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo 91 A degringolada como vingança pelo livro “Em Defesa da Ação Católica” 93 O “grupinho do Plinio”: Jó em cima do monturo 96 A pior provação: ser perseguido por aqueles mesmos que se quis servir 97 Novamente escrúpulos e a provação axiológica 100 O lírio nascido do lodo, durante a noite e sob a tempestade 103

3ª PARTE: A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL DE CARÁTER PROFÉTICO 107 Uma vocação contra-revolucionária 107 O anseio por um líder contra-revolucionário 108 O receio de ter que assumir a liderança da Contra-Revolução 110

O reconforto da espiritualidade carmelitana e da figura do Profeta Elias 111 Ingresso e expulsão inválida da Ordem Terceira do Carmo 111 Devoção a Nossa Senhora do Carmo 116 Entusiasmo pelo Profeta Elias e o zelo pela causa de Deus 117 “Pater et dux” dos contra-revolucionários 122 Papel do filão “eliático” na história 124 O reconhecimento do caráter profético dessa missão 126

4ª PARTE: A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 131 A mentalidade contra-revolucionária 131 Para interpretar uma alma é preciso conhecer o “unum” de sua mentalidade 131

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A identificação com a Contra-Revolução 133 O “unum” da alma de quem foi chamado a simbolizar a Contra-Revolução 137 Os componentes essenciais desse “unum” 138 A robustez da Fé 140 A castidade 145 O espírito aristocrático 146 A combatividade cavalheiresca 148

O unum dos unums: o espírito hierárquico e o amor à grandeza 152 O amor pela hierarquia 152 A pedra angular do amor à grandeza A “luz primordial” resumitiva 159

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Alguns derivados e correlatos desse “unum” 161 Uma espiritualidade imersa na esfera temporal 161 A procura do sublime e do sacral 163 A reversibilidade do “tal enquanto tal” 170 O senso da honra católica 173 O senso da contrariedade, a perspicácia e a combatividade contra-revolucionárias 176 A desconfiança e a severidade em relação a si mesmo 185 O espírito de sacrifício até o holocausto e o desejo de reparação 188 O amigo da Cruz que se prepara para carregá-la prevendo a dor 192

Uma piedade de súdito: filial, sem arroubos, e centrada na batalha entre a Revolução e a Contra-Revolução 197 A rotina das orações diárias 197 O modo de rezar e pedir 200 A atitude diante de Deus e de Nossa Senhora 201 O modo de fazer a ação de graças após a recepção da Sagrada Comunhão 205

5ª PARTE: FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS E DE UMA ESTIRPE ESPIRITUAL 209 Pela originalidade de seu carisma, o fundador tem que ser seu próprio formador 209 O fundador deve ser um símbolo vivo de sua obra 212 Os discípulos devem discernir o “unum” do espírito do fundador 214

Consagração a Nossa Senhora nas mãos do fundador – Adendo do compilador 219 A paternidade espiritual do fundador 221


6ª PARTE: MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 227 O temor martirizante de não estar correspondendo ao chamado de Nossa Senhora 227 O receio de ter seguido uma via não desejada por Nossa Senhora 230 A graça de Genazzano 233 “As vozes não mentiram” 237

Índice onomástico 243 Índice de lugares 247

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Siglas das Fontes Bibliográficas Almoço ou Jantar (Conversas gravadas durante as refeições) CA (“Comissão Americana”: conversas com amigos da TFP norte-americana presentes em São Paulo a título de intercâmbio cultural) CB (Comissão de Estudos assuntos referentes à opinião pública) CEP (Comissão de Estudos que se reunia na antiga sede da rua Pará, em geral aos sábados de manhã, para estudos de ação na opinião pública) Chá (Conversas com discípulos durante o chá da tarde) CM (“Comissão Médica”: reunião de estudos para médicos da TFP e agregados) CSN (“Conversa de Sábado à Noite”: conversas com discípulos, realizadas regularmente aos sábados à noite na residência de Dr. Plinio) Despachinho (Despachos com secretários sobre assuntos diversos ligados à direção da TFP e ao relacionamento com as entidades afins do exterior) EANS (“Êremo do Amparo de Nossa Senhora”: reuniões realizadas na casa de estudos localizada na Fazenda do Morro Alto, no município de Amparo-SP) EE (“Êremo de Elias”: conversas e despachos realizados para os componentes da sede de estudo e trabalho no bairro de Itaquera, em São Paulo) ENSDP (“Êremo Nossa Senhora da Divina Providência”: conversas e despachos realizados para os componentes da sede de trabalho localizada na rua Atibaia, bairro Perdizes, em São Paulo) EPS (“Êremo Praesto Sum”: reuniões de estudo e formação para jovens da sede da TFP localizada no bairro de Santana, em São Paulo) ESB (“Êremo de São Bento”: reuniões de estudo e formação para jovens da sede da TFP localizada na rua Dom Domingos de Silos, em São Paulo) ESM (“Êremo de São Miguel”: reuniões de estudo e formação para jovens da sede da TFP localizada na cidade de Belo Horizonte-MG) EVP (Conversas com pessoas da direção da TFP) JG (“Jasna Gora”: sede onde se realizavam convenções, semanas de estudo, simpósios e reuniões regulares, mais tarde transformada em Êremo, passando a chamar “Êremo de Jasna Gora”) MNF (Círculo de estudos com pessoas mais especialmente aptas para abordagem dos assuntos filosófico-doutrinários atinentes à escola de pensamento da TFP) NC (Palestras para neocooperadores) Palavrinha (Preleções rápidas, de 10 a 15 minutos, durante o atendimento de grupos diversos de cooperadores da TFP) SIGLAS DAS FONTES BIBLIOGRÁFICAS 9


Palestra (Palestras para sócios e cooperadores da TFP que fogem da classificação habitual) Percurso (Comentários gravados durante percursos de automóvel) RE (Reuniões feitas em caráter extraordinário, sobre temas diversos que fogem da rotina) RN (Reuniões regulares para os veteranos da TFP) RR (“Reunião de Recortes”: reunião semanal e plenária da TFP em que eram analisados, numa visão de conjunto, os principais acontecimentos nacionais e internacionais) SD (“Santo do Dia”: reuniões plenárias e regulares de formação dos sócios e cooperadores, realizadas no auditório da TFP na cidade de São Paulo) SEFAC (“Semana Especializada de Formação Anticomunista”: simpósios de formação para jovens estudantes durante períodos de férias ou grandes feriados, mesclados com entretenimento e lazer) SRM (“Sede do Reino de Maria”: reuniões realizadas na sede central da TFP, em São Paulo)

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O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, na sede da rua Pará, São Paulo, na década de 1960.


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1ª PARTE

A TRAVESSIA DO DESERTO E OS FRUTOS DO ENCONTRO COM O MOVIMENTO CATÓLICO UM COMBATENTE SOLITÁRIO Na primeira mocidade, reforço do amor à Igreja, da rejeição do mundo revolucionário e da opção pelo passado Os próprios obstáculos que fui encontrando na vida levaram-me, além do combate, a uma análise da essência do mal que movia determinada coisa e da essência da beleza do bem que movia outra coisa; a uma análise do móvel último dos maus, e do móvel último que os bons deveriam ter; do porquê os bons não eram tão bons; de como esses bons deveriam ser; do que é ser propriamente bom, perfeitamente bom; de como se punha o problema da inocência naquela época histórica, de como se punha o problema da culpabilidade e da perversidade naquela época. E assim, tudo o mais classificado e rotulado com o maior cuidado. A partir dessa análise, tirando concretamente dela atos de amor, de adesão e de entusiasmo pela Igreja Católica como Esposa Mística de Cristo, cuja santidade me era dado discernir por uma graça especial, e que era a inocência antiga reconhecendo na Inocente por excelência, que é a Igreja, aquilo que eu procurava. E reconhecendo Deus presente na Igreja mais ou menos como o Santíssimo Sacramento está dentro de um ostensório. Olhando para a Igreja Católica amorosamente, o que via dentro d’Ela era Nosso Senhor Jesus Cristo, mas já discernindo bem que a heresia branca não o apresentava inteiramente como Ele era. E por isto começando a compôlo a partir da ideia do Cristo gladífero do Apocalipse, e dessa ou daquela figura, num esforço de composição que incluía o que a heresia branca tinha de bom, mais aquilo da Idade Média que essa mesma heresia branca tinha deixado para trás, e tudo isso como uma preparação para o futuro. Este trabalho evidentemente resultava das formas da inocência primeira, mas já aplicada não apenas aos temas azul e branco, cor-de-rosa e 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 13


verde-pistache da infância, mas a temas sombrios, trágicos, às vezes até dantescos, à medida que o corpo a corpo da vocação com a realidade ia crescendo. Via a Igreja como situada enormemente acima de mim. A Igreja é a Mestra, Ela é a fonte da santidade. De maneira que, alguma virtude que possa haver em mim, é a virtude d’Ela recebida em mim, como a água de uma jarra que passou para o copo. Daí também, pela consciência de minha inferioridade, uma veneração pela Igreja que me preparava para resistir e continuar a vê-la, no dizer da Escritura, como uma dama sem mácula nem ruga, nesse momento em que parece que todas as formas de feiura confluíram sobre Ela. Quer dizer, percebe-se que há um desígnio da Providência voltado para tudo isto, e que no fundo é a preparação de um ideal todo inspirado pela Igreja, na Igreja, com a Igreja, e que tem os elementos do Reino de Maria1.

* Lembro-me bem do momento em que deixei as roupas de menino e comecei a usar as roupas de homem – o que, no meu tempo, se fazia com 14 anos. Meu pai, com toda a bonomia dele, mas sem formalidade nem cerimonial, chamou-me ao escritório e disse: – Olha aqui, você já está ficando homem e você é dono do seu nariz (expressão que queria dizer que podia ir onde queria). Aqui está a chave da casa (quer dizer, pode chegar à hora que quiser que eu não vou controlar), mas cuide de fazer bom uso da sua liberdade. A partir desse momento coube-me, entre outras liberdades que adquiri, a liberdade de, dentro do orçamento paterno, mandar fazer as roupas que entendesse. Liberdade da qual eu sempre usei do modo mais distraído possível. Mas cuidei muito de um ponto: que as roupas, as maneiras, fossem tão parecidas com o tempo imediatamente anterior como era possível, sem provocar escândalo. De maneira que eu era a própria imagem de um mundo que acabava de morrer. Mas aquilo que fazia estava tão próximo do presente que os revolucionários não tinham coragem de dizer nada. Tinha um modo de agir pelo qual as pessoas percebiam que isso era aparência, mas que por detrás, na minha cabeça, ia muito mais para trás2.

1 MNF 28/3/91 2 Jantar EANS 11/3/87 14

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* Comecei então a usar roupa de homem e não podia fazer outra coisa senão me vestir como todos se vestiam. Um homem não pode ser um “fenômeno” e vestir-se como ninguém se veste. Compreendia que, para agir no ambiente da Revolução, na carne viva da Revolução, era preciso de algum modo estar próximo a ela. Então não podia fazer outra coisa senão vestir-me como se vestiam as demais pessoas de minha idade. Era uma coisa simbolicamente revolucionária, mas não violava diretamente o 6º nem o 9º Mandamentos, e eu segui. Se fosse imoral eu não seguia. Acontece que, mesmo o paletó e o jaquetão, havia modos diferentes de usá-los. Podia-se mandar fazer jaquetões ou paletós mais revolucionários ou menos, sem escandalizar, ainda dentro do fluxo geral. E eu resolvi me pôr no último vagão do trem. Então, usar as cores e os tecidos mais conservadores que podia haver. Desde logo adotei o jaquetão, muito mais conservador do que o paletó, por duas razões. O jaquetão representava uma moda mais antiga do que o paletó. O itinerário tinha sido um traje chamado sobrecasaca, uma espécie de jaquetão mais comprido e que chegava até o joelho. Ele era usado com chapéu coco. O filho da sobrecasaca foi o jaquetão. E o neto foi o paletó. Então eu me punha mais na Contra-Revolução vestindo-me à maneira de filho do que à maneira de neto. O jaquetão é mais sério. Aqueles quatro botões são mais concludentes, afirmam mais o homem do que o botãozinho reles que tem o paletó na frente. E por isto ficava melhor usar o jaquetão. No tempo em que eu comecei a usar o jaquetão, o rapaz de algum nível, mesmo sem ser rico, apenas abastado, tinha pelo menos quatro ou cinco ternos de casimira. Era frequente que ele tivesse um jaquetão, e os outros ternos todos de casimira. E que o jaquetão ele usasse mais para cerimônias do que para passeio, embora às vezes usasse para passeio também. Peguei isto assim e resolvi: “Vou usar jaquetão noite e dia, até para passeio”. Era um modo de me pôr numa posição mais contra-revolucionária do que os da minha idade, mas sem provocar uma ruptura tal que criasse um hiato entre mim e eles. Posteriormente, a moda evoluiu e o jaquetão saiu quase completamente de uso. Mas na idade em que estou se compreende, pois se entende ser um hábito que tive desde moço e com o qual eu continuo. 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 15


Quer dizer, os trajes inteiramente fora de uso se suportam para uma pessoa que chegou a uma idade avançada. Então me sirvo desse privilégio para usar ainda firmemente o jaquetão3. Restos de coexistência do estado de graça e da seriedade com a superficialidade e a brincadeira Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia em mim e que mais ou menos se resolveu e cicatrizou de todo em todo quando entrei para o Movimento Católico. Não se tratava daquela dualidade clássica existente em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem bom, ou entre o estado de graça e a tentação para o pecado mortal. A matéria de pecado nem estava à prima facie diretamente envolvida neste assunto. Entrava o problema do amor de Deus. Mas eu não sabia disso, porque do amor de Deus tinha a noção corrente que se tem. Eram dois estados de espíritos que se alternavam em mim, mais ou menos como uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala. Um era de um menino muito sério, com as vistas voltadas para o maravilhoso, para tudo quanto há de mais elevado, para todas as harmonias, para todas as profundidades; portanto, para uma coisa que não sabia que se chamava recolhimento contínuo, para uma coisa que não sabia que era piedade. Piedade, para mim, era só na hora estrita de rezar. Mas hoje vejo que era piedade, e inteiramente voltada para os assuntos R-CR4. Não era um asceta. Tinha, como natural próprio meu, gozar as coisas, fruir as coisas normais que, dentro do estado de graça, um menino pode fruir. Não tinha ideia de santidade, não tinha o intuito de alcançar a perfeição moral. Tinha apenas o intuito de realizar uma obra para a qual eu me sentia chamado. Mas eu tinha um propósito acharné de me manter no estado de graça. Por causa disso, confesso que cometia facilmente pecados veniais. Por exemplo, mentiras sociais, pequenas mentiras de conveniência individual, pequenas coisas desse gênero, às torrentes. Era só eu desejar que fazia. Isto era acompanhado da disposição de alma genérica de não evitar o pecado venial, porque o pecado mortal, o evitar já era tão alto, o estado de graça tão magnífico, uma coisa tão sublime, tão suprema, 3 Chá PS 23/10/90 4 Forma abreviada para referir-se ao livro “Revolução e Contra-Revolução” e às teses que defende. 16

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que julgava que não podia ser afetada, nem sequer empalidecida ou comprometida remotamente pelo pecado venial. Para mim eram dois andares de uma casa, sem comunicação interna nem externa. E enquanto queria mesmo um, o outro eu achava que não tinha importância, era me entregar à coeur joie. De fato, o gênero de coisas dessas que fazia era a mentira. Bastava, por exemplo, imaginar que, numa roda, um caso ficava mais engraçado, mais interessante não o contando direito como era, mas transformando esse caso, que eu o transformava. Nunca de maneira a lesar a reputação de ninguém, nem tornando alguém imerecidamente ridículo, isto nunca. Tinha muito a ideia de que a calúnia era pecado mortal, e portanto não caluniava. Mas não tinha ideia de que a murmuração fosse pecado, nem sequer venial. E como nos meios sociais se murmura à vontade – “A” conta de “B” ou de “C” absolutamente tudo quanto entende; é mesmo um dos grandes temas de conversa –, eu participava da murmuração de portas abertas. Mas não notei que isto diminuísse meu empenho, meu desejo de me manter fiel, de fazer a Contra-Revolução e de arcar com a enormidade do sacrifício que isto representava. Agora, esse estado de espírito, apesar dessas misérias, no que tinha de bom era profundamente bom, profundamente elevado e revelando um chamado muitíssimo marcado que transpassava a minha alma de lado a lado. Era congênere com ele uma seriedade um tanto melancólica, um tanto tristonha, mas carregada com ânimo varonil, de frente, e detestando tudo quanto era superficial, tudo quanto era brincadeira tonta. Mas esse estado de espírito alternava de repente. Lembro-me mal, mas não creio que fosse frequente alternar num mesmo dia. No meio de uma era de muita seriedade, de repente se abria uma brecha em tudo isso, e então me concedia uma hora, duas horas, três horas de um estado de espírito diferente: superficial, brincalhão e me deixando arrastar pelas formas de alegria dos anos 1920, as quais eram muito vivas, muito comunicativas, muito hollywoodianas. Deixava-me arrastar, sempre que não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário. Essas formas de alegria comportavam muitas coisas não revolucionárias, para “enchouriçar” pelo meio a Revolução. Mas no que elas não eram revolucionárias, elas estavam expostas à Revolução. E eram uma espécie de embalagem para entrar a Revolução. A Revolução eu não tomava. Mas o que não era Revolução, tomava e gostava, e até muito. Por exemplo, quando tinha 14, 15 anos, de repente me dava na cabeça cantarolar. Em casa toleravam isso não sei como. Sempre tive uma voz muito forte e cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela música que estava na moda, ou que tinha ouvido em algum teatro. Repetia aquilo e achava graça. 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 17


Nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras em que esses primos iam jantar em casa, havia uma mesa dos mais moços. Essa mesa era de brincadeira debandada. E eu era um dos chefes dessa brincadeira. Nunca coisas imorais. Absolutamente não. Como já disse, eram brincadeiras falando mal deste, daquele, da sociedade, da família, com apelidos. Depois, naturalmente, falando mal dos parentes deles, eles debicando da minha família paterna, isto é, dos nordestinos, essas coisas assim para brincar, sem nada de insultante. E às vezes um puxando pelo defeito do outro e acentuando. Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito dessa seriedade que eu devia tomar. E se me deixasse levar por aquilo, acabaria depois tomando uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação, e esse alheamento me poderia levar nem sei até onde. Estremeço em pensar até onde isto poderia me ter levado. Disso tudo não tinha noção. Devia ter culpa provavelmente nisso, mas achava que a coisa passava. Isto durou mais ou menos até o Reizinho5 romper comigo e desviar-se do bom caminho, como de há muito tempo era a vida de todo rapaz, sobretudo quando o rapaz tinha algum dinheiro. Distanciamo-nos e começou para mim uma espécie de tragédia, que por repercussão natural me tornava muito mais sério. Aí se fanou muito em mim esse tipo de alegria de viver. Concomitantemente, fui percebendo a contradição que isso tinha com o meu perfil de contra-revolucionário. E fui acentuando o corte. E cortei completamente com isso. Eis outro fato exemplificativo dessa espécie de fuga da seriedade. Íamos passar as férias de meio de ano em Santos, no hotel Parque Balneário, atrás do qual havia um terreno vazio que não me lembro se era imediatamente contíguo ou não. O pessoal rico se divertia no Parque Balneário com festas. O pessoal pobre – criadas, chauffeurs – se divertia no terreno vazio, ao ar livre. Havia um italiano que animava esses divertimentos com o “João Minhoca”, que era um teatro de marionetes onde as figurinhas entravam e cantavam, diziam isto, aquilo. E o pobre italiano, sem se dar conta, era extremamente pitoresco e representava cenas que divertiam. Mas eram personagem do mundo dos chauffeurs. O bonequinho entrava habitualmente no palco cantando em português macarrônico: “Engraxate, engraxate, engraxate da Parigi”. Não sei como 5 Apelido afetuoso dado na família a seu primo-irmão José Ribeiro dos Santos, com o qual o jovem Plinio tinha uma grande amizade; passavam juntos todo o tempo livre que os deveres escolares de ambos o permitiam, se bem que estudassem em escolas diferentes. 18

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é “engraxar” em italiano, mas tenho ideia de que ele dizia: “Lustrascarpe”, não sei o quê com “vernice”. E era toda uma ária que cantava o engraxate. Nós achávamos graça quando entrava o engraxate, e então palmas e palmas. E eu era, naturalmente, um dos puxadores das palmas. E depois, em casa, cantava o “engraxate”. E todo mundo tolerava isto de modo surpreendente. Isto revelava uma tendência para súbitos cansaços da clave superior, meio subconscientes. E súbitas angústias de não levar uma vida desengajada, não responsável, e feita para meu próprio lazer. Não percebia isso no começo, mas não era uma incompatibilidade absoluta. Percebia que uma coisa não era a outra, mas achava que podiam coexistir bem. Com o tempo fui percebendo que não, e nesse período os meus olhos foram se abrindo mais para isto. E quando me engajei inteiramente no Movimento Mariano, cortei com essa tendência completamente6.

* Nas fotografias que tirei na Linha de Tiro7 e em outras ocasiões antes de me formar em Direito, esse lado brincalhão havia desaparecido e o outro lado preponderou, graças a Nossa Senhora, com exclusão completa do primeiro lado8. A terrível cruz da incompreensão e do isolamento total São Paulo naquele tempo, era uma cidade de uns 500 mil habitantes e, sobretudo nas famílias mais ricas, todo mundo conhecia todo mundo, todo mundo era meio primo de todo mundo, era colega de infância de todo mundo. De maneira que a vida de cada rapaz, de uma família com mais posses, era conhecida por todos os rapazes daquele ambiente social. E o resultado é que, se o rapaz violasse o princípio de que, para o homem, era tão feio ser puro quanto era feio para a mulher ser impura, ele ficava um verdadeiro pária, um verdadeiro leproso, caçoado, sem prestígio, abandonado, era um homem liquidado. 6 MNF 12/12/85 7 “Linha de Tiro” era o antigo nome dos atuais Tiros de Guerra, instituição do Exército brasileiro que dá formação militar básica para aqueles dentre os convocados que necessitam conciliar a instrução militar com o trabalho ou estudo, ou vivem em cidades do interior onde não haja quartéis do Exército. 8 MNF 12/12/85 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 19


Não tardei a perceber que a única forma que tinha de fazer aceitar a minha conduta era ter um amigo só – no caso o meu primo Reizinho de que já falei – o qual era um rapaz um ano mais moço do que eu, que não guardava a castidade, achava feio que eu guardasse a castidade, mas que compreendia a minha posição e que, pelo gosto de estar comigo, de conversar comigo, não levantava a questão. E nós saíamos juntos, íamos juntos para um lugar, para outro, com muita frequência. Com os outros, tomava um contato muito superficial: ia a reuniões etc., mas nunca entrava em intimidade com nenhum deles. Conversava com este, com aquele, com aquele outro. Mas, íntimo meu, só este. E com isto borboleteava um pouco por cima das coisas, e deixava assim uma espécie de espaço entre mim e eles, que fazia com que eles percebessem a minha boa orientação, mas sem os friccionar a ponto que eles lançarem uma ofensiva contra mim. Mas, bastava que qualquer um a qualquer momento, numa roda qualquer de rapazes, por raiva ou por qualquer outra coisa, quisesse me interpelar, que estava criada a crise. Passei uns quatro ou cinco anos, dos 14-15 anos até o momento de minha entrada na Congregação Mariana, numa vida de agonia. Porque eu nada temia tanto no mundo quanto perder o estado de graça. Mas, também, de nenhum modo, queria ficar na situação de um rapaz que conheci, e que se recusou a ir a um prostíbulo e caiu na ojeriza, na raiva dessa roda. Espalharam a respeito dele o boato que ele trazia azar, e que cruzar com ele na rua, trocar uma palavra com ele, trazia qualquer coisa de ruim: doença, perda de dinheiro, briga em casa, ou qualquer outra coisa assim, e por causa disso todo mundo fugia dele como se ele fosse um leproso. Era um homem inutilizado9.

* Como já disse, era uma vergonha para um moço não ter pelo menos um amigo. E o único que eu tinha era o Reizinho. Mas percebia que ele já se ia preparando para embarcar num caminho ruim, e eu estava firmemente resolvido a não embarcar nesse caminho. Percebia que haveria um momento em que nós deixaríamos de nos dar, porque ele, para embarcar nesse caminho, tinha outros amigos, tinha outros atrativos. E a minha companhia tinha que ser insípida para ele, como a companhia dele ficaria cada vez mais antipática para mim, e, portanto, isso iria se dissolver.

9 SD Sábado 13/08/88 20

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Caminhava, assim, para a situação francamente penosa e vergonhosa de um moço sem amigos, o que, na São Paulinho daquele tempo, não se tolerava. Isto era uma espécie de fatalidade para a qual eu caminhava irremediavelmente10.

* Quando morava na casa de minha avó, o escritório de meu pai ficava na esquina da alameda Glete com a rua Barão de Limeira. E era escritório meu também, por ser uma sala muito grande. Nela havia móveis que tenho em meu escritório até hoje. Havia uma mesa menorzinha para mim, colocada ao lado da de meu pai. Era então estudante do último ano ginasial, comecinho da Faculdade de Direito. Tinha o hábito de andar de um lado para outro enquanto estudava, preparando meus exames. Mas, muito mais do que preparar exames, eu estava montando gradualmente toda a Contra-Revolução dentro do espírito, e preocupado com mil coisas que me atormentavam dentro da linha da minha própria salvação. E então sentia muito o choque dessa preocupação com a despreocupação alegre da São Paulinho rica e cinematográfica daquele tempo. Não posso me esquecer de que, aos domingos, havia a matinê no Cine República, um cinema que tinha, assim como os teatros, frisas e depois plateias, camarotes. Uma sessão cinematográfica levava quatro horas. E então havia intervalo, em que as pessoas iam para as frisas das senhoras para cumprimentá-las. Os homens iam para uma espécie de hall: os que fumavam, fumavam; os outros conversavam entre si. Era toda uma vida social que se levava ali, mas em um ambiente de otimismo, de alegria, uma coisa extraordinária. A música era ainda com orquestra, porque não havia essas caixas de som de hoje. Eu ia também a essas matinês. Mas sentia o choque daquela vida despreocupada com as minhas preocupações. Achava aquilo tudo uma besteira. Não achava graça em nada, assistia àquelas fitas cinematográficas, gélido. Assistia porque tinha de assistir. E assistia pensando nos meus assuntos. Quando acendia a luz, fazia uma cara alegre e passeava no meio dos outros. Tinha alívio quando chegava a hora de ficar sentado e pensar. Mas notava a diferença do gozo da vida que eles tinham, com a vida apertada que eu levava. E a vida apertada pesava sobre mim.

10 Chá PS 10/2/95 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 21


Lembro-me do dia em que, estando no tal escritório de meu pai, vi passar um automóvel esportivo com quatro ou cinco mocinhos de minha idade, colegas meus do Colégio São Luís. Em cima da capota iam mais de um, sentados. E o automóvel seguia um pouco devagar, para os de cima não caírem. Como o fato era inteiramente inusual, todo o mundo que via aquilo parava e comentava, e eles davam risadas também. Naturalmente, passavam pessoas conhecidas deles. Eles paravam, brincavam e era um show de alegria, de despreocupação, de esperteza. Diante daquilo eu pensei: “As pessoas, quando me encontram, não têm nenhum prazer de me encontrar. Fazem-me um cumprimento cerimonioso, porque sou obrigado a tratá-los à distância e cerimoniosamente. Mas veja que alegria demonstram esses meus colegas quando aparecem. E como a vida é agradável e leve para eles”. Lembro-me de que tive um choque e pensei: “Mas vou ter de aguentar esse meu papel, e a vida inteira!” Depois fiz um pecado de juízo temerário: “As gerações que vêm depois da minha, vão ser ainda mais assim do que esses aí. E, portanto, meu contraste vai ser ainda maior com os que vierem”. E pensei: “Não, isto é necessário enfrentar, é para a Contra-Revolução e vou fazer por amor a Nossa Senhora. Pego esse fardo da reflexão e do pensamento, e o visto como se fosse uma roupa de chumbo. E andarei com ele até o fim dos meus dias”. Era um sacrifício de espírito, muito mais pesado do que sacrifício de se flagelar, jejuar, muito embora eu respeite muito os sacrifícios físicos. Hoje, em razão de meu regime alimentar, vivo num jejum perpétuo. Muitas vezes, falando aos senhores, sinto-me morto de fome. E sei que, chegando em casa, irei comer mal, por ser uma comida de regime. Mas isto não é nada. Os senhores não me veem aborrecido por causa disso. As coisas duras são essas outras. Por quê? Porque, quem cumpre o seu dever até o fim, expõe-se ao perigo quase inevitável de ser, durante a vida inteira, um perpétuo incompreendido. E, portanto, um perpétuo interpretado com má vontade, e às vezes até pelos mais íntimos11.

*

11 Chá PS 27/11/87 22

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Em concreto, eu me sentia no meu interior profundamente chocado e rejeitante, repulsivo da superficialidade de espírito que notava já no meu tempo. Incongruência, inconsequência, besteira, frivolidade, tudo isto que naquele tempo se chamava espírito hollywoodiano, e que era uma coisa sem nome, ia tomando conta do mundo como um incêndio. E via os bons, via o clero – grosso modo, o clero naquele tempo era bom – não atinar para a entrada desse espírito e deixá-lo entrar à vontade: “Não tem nada, o que é que tem?”, uma coisa horrorosa. E isto me causava um trauma medonho. Só encontrava apoio para minha seriedade de alma meditando na seriedade divina de Nosso Senhor na Paixão. Dizia para mim mesmo: “O teu modelo foi infinitamente mais sério do que tu, trata de imitá-lo”12.

* A batalha foi ganha em algumas etapas. Uma etapa foi resistir, apesar da presença da ameaça. Outra etapa foi: caso a ameaça saltasse por cima de mim, também resistir. E a terceira etapa foi passar para o contra-ataque. Em termos concretos, durante muito tempo eu estava resolvido a viver e morar em frente da ameaça, mas não ceder. Depois, essa ameaça quase pulou em cima de mim, quando o Reizinho se dissociou de mim e fiquei completamente isolado. Estava na antevéspera desse isolamento ser percebido pelos outros, e estes começarem a me perguntar: “O que é que houve entre você e o Reizinho? Vocês estão brigados por quê?” Aí resolvi esconder-me para que não percebessem isto. Quer dizer, esconder-me significava não ir aos lugares sociais onde ia antes, para ver se me esqueciam, e isto se passasse em branco. Por causa disso, não querendo que em minha casa percebessem a mudança que estava havendo na minha vida, saía todas as noites depois do jantar. Não dizia que eu ia me encontrar com o Reizinho, mas ficava no ar que era isso que acontecia. Ia então para um cineminha de quinta categoria, o Cine Roma, situado na rua Barra Funda, perto de um velho teatro que ainda existe, chamado São Pedro. Meu bonde passava em frente ao Cine Roma, era caminho. E lá ficava sentado, assistindo fitas de cinema que às 12 CSN 25/9/82 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 23


vezes já havia assistido, enchendo o tempo sozinho até chegar a hora em que o cinema fechava13. E pensava: “Que coisa horrível, eu no Cine Roma sozinho!” Fui várias vezes à noite no Cine Roma e executei esse programa repetidamente, mas diante da perspectiva de passar anos fazendo isso. Lembro-me dos intervalos. Saía para me mover um pouco e andava no foyer que havia em todo cinema, antes da sala de projeção, onde os homens fumavam. Eu olhava e pensava o seguinte: “Esses rapazes que estão aqui, o que é que eles pensarão deste coetâneo deles, sempre só e tão diferente deles e tão superior a eles. Eles não vão querer se pendurar em mim e puxar conversa? Ou a democracia ainda não chegou a um ponto tal que isso não acontece?”. Mas eles não queriam se pendurar em mim, nem percebiam que eu era heterogêneo em relação a eles. Que noites horrorosas! Que coisas medonhas! E depois, a ideia: “Isto, os meus círculos vão descobrir. E quando descobrirem, sai um estouro que transpira para toda sociedade, e será contado nas rodas da sociedade. E então o meu cartel está feito”14. Pouco depois aparecia em casa, e aparecia já conversando sobre outros assuntos e disfarçando. Mas era uma situação que não poderia durar15.

* E o clamor das coisas que me cercavam dizia o seguinte: “Jogue fora esse martírio. Seja um rapaz como os outros, brinque sem arrière-pensées e divirta-se como eles, porque a vida está aberta, larga para você, e você pode gozá-la à vontade”. Num segundo sentido estava: “Largue a religião também”. Era onde o demônio queria chegar. E depois largaria mesmo, porque pouco depois de eu resolver largar aquilo que me maravilhava, largava a pureza. Isto porque a castidade mantida no terra-terra, sem todas essas maravilhas que a cercam, é uma castidade desprotegida e não resiste. E não iria durar comigo, porque era muito gozador da vida e as coisas que achava gostosas, achava gostosíssimas, e me agradavam e me atraíam fabulosamente. Vocês podem imaginar se eu renunciasse a este mundo interior, onde é que iam parar as coisas. Era uma tentação medonha e olhava para eles e dizia: “Por que sou o único sério entre essa gente? Por que é que tenho de viver cheio de nos13 Chá SRM 18/1/93 14 CSN 17/09/94 15 Chá SRM 18/1/93 24

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talgias, cheio de recusas, cheio de censuras, cheio de cordões internos de isolamento para não me deixar levar por isto, por aquilo, aquilo outro?” E uma voz que me dizia: “Ache bom o que os outros acham bom, queira bem ao que os outros querem bem, seja um com eles, e você terá a vida deles. Olhe como eles riem, olhe como eles brincam. Você diz uma coisa, eles dão gargalhada, o único que está diante de si chorando é você? Que vida faz isso?”16

* Era esta a minha situação quando me inscrevi na Faculdade de Direito, famoso foco de laicismo e de positivismo jurídico oposto à doutrina católica. Lembro-me de que, ao me inscrever nessa Faculdade, senti o coração me bater na garganta, de medo de que o ambiente da Faculdade me fizesse perder a fé. Pedi ardentemente a Nossa Senhora que me desse os meios de conservar a fé católica nessa fornalha de ateísmo, ou pelo menos de positivismo, na qual eu entrava17.

* Seria normal e seria bonito que, à medida em que a vida fosse para a frente, a luta fosse cada vez mais enérgica, os sofrimentos cada vez maiores e as orações também cada vez maiores, até chegar num clímax. Mas aconteceu que tive sofrimentos que ficaram para trás, e que foram mais dolorosos do que os sofrimentos que tenho presentemente. Por exemplo, o período de meu isolamento quando era mocinho, de que acabo de falar. Foi um período tão agudo de sofrimento que, o que veio depois, trouxe sofrimentos muito grandes, mas não foi igual àquilo. Hoje tenho um mar de sofrimento, mas não é o sofrimento de quem não encontrou ninguém. Os senhores não podem ter ideia do que é o isolamento absoluto, mas absoluto18.

16 CSN 17/09/94 17 Entrevista 21/06/90 18 Chá SRM 8/3/92 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 25


A ascese para afirmar sua varonilidade sem transformar-se num “Esaú” A ideia de que a minha placidez participava de uma lacuna, ou era uma lacuna de temperamento, me veio quando era menino, e se prolongou até eu ficar mocinho. A isso se acrescentava a ideia de que era uma lacuna muito depreciativa. Porque naquela época os sexos viviam muito separados, e os moços e as moças, quando não eram parentes e não tinham convívio doméstico, só se encontravam em festas e em reuniões. Nos ambientes de homens, havia uma espécie de culto muito explicável da varonilidade. Essa varonilidade era entendida como um conjunto de maneiras, gestos, impulsos, resoluções, conjunto este marcado por um grande individualismo e uma grande independência de espírito que se provava desafiando continuamente as ideias antigas. De maneira que, para dar provas de um espírito inteiramente másculo – dizia-se “espírito emancipado” –, era preciso ter ideias completamente revolucionárias. E era preciso manifestar isto por meio de impulsos temperamentais. Por exemplo, a proclamação de que o sujeito é ateu devia se fazer com voz grossa: “Eu sou ateu”. Isto como que fazia estremecer as nuvens. Já a proclamação de que o sujeito tem Fé católica fazia-se com os acordes da voz humana afim com o órgão, se quiserem. Era por isso que a minha placidez temperamental me tornava sem graça, de pouco relevo e de pouca consequência. De maneira que era preciso encorpar esse meu modo de ser, para que pudesse ter algum realce. Percebia que, do lado intelectivo, me tomavam em conta de pessoa inteligente, não pouco até. Mas desse lado temperamental, sem consequência. E achava, e até hoje acho, que ser tomado com consequência pela vontade é uma coisa muito mais nobre do que ser tomado com consequência pela inteligência. Porque a inteligência, a pessoa tem aquela com que nasceu. Já a vontade, é a própria pessoa quem a modela. E, sob este aspecto, a vontade é muito mais nobre do que a inteligência. Ficava muitíssimo tentado a tomar a minha natural placidez e manipulá-la de maneira a dar num homem do estilo de meus colegas. Eu poderia ter-me feito assim, desde que, por oportunismo, deixasse o meu natural, e fabricasse em mim um natural que não tenho. Podia se tornar em mim uma segunda natureza, desde que tivesse horror a ser aquilo que tinha sido. Mas o resultado é que, se agisse assim, falsearia toda a minha vida espiritual. 26

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Mais ainda: percebia que em algo esse modo de ser era contrário ao modo de ser católico. E isto eu não queria. Especificando ainda mais, percebia que esse era um modo de ser revolucionário, sempre tendente a derrubar algo daquilo de que gostava. Então pensei: “Enquanto não souber tirar de meus recursos o necessário para, sendo eu mesmo e como católico, me valorizar no meu ambiente, fico neste segundo lugar e nesta rabeira. Mas, falsear-me, não me falseio!” Daí nasceu a ideia seguinte: “Jacó, eu sou. E tenho que arranjar um jeito de não ficar Esaú, mas de tirar do meu modo Jacó de ser, o fogo e os recursos com que eu derrote Esaú”. Dou graças a Nossa Senhora que Ela me tenha feito ver isto. E acho que muitos tiveram problemas análogos. E fabricaram personalidades que não eram inteiramente as deles. E nesse e em outros pontos “se esausaram” 19. Algumas consolações que sustentaram Dr. Plinio nesta travessia Durante esse período todo, só tinha consolações sensíveis quando ia rezar na igreja do Coração de Jesus, na Missa de domingo. Não tinha o hábito de ir à igreja em dias de semana. Ficava esperando estupidamente o domingo para outra consolação20.

* Recentemente estive me perguntando por que razão tinha saudades do meu passado, de épocas e de situações que eu detestava e não via a hora que acabassem. Isto é uma contradição. E toda contradição é um defeito. Importava conhecer a causa da contradição para eliminar o defeito. Analisando, cheguei a esta conclusão: não tinha saudades da época, mas tinha saudades das graças que recebia na época. Dessas graças, naquela situação de tristezas, algumas eram tão boas (embora menores talvez das que recebi depois) que tinham um perfume próprio, um aroma, um colorido, uma luz própria, dos quais tenho saudades.

19 EVP 10/11/85 20 Chá PS 10/2/95 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 27


Se há uma coisa da terra que quero encontrar no Céu são as graças recebidas. Os senhores percebem por aí como a alegria e a tristeza se alternam de modo singular no nosso caminho21. O auxílio dos prazeres inocentes Quando era mais moço, para conseguir manter os meus fluxos em ordem, para conseguir ter nisto uma alegria que me desse o ânimo para aguentar certos sofrimentos, lembro-me de, em mais de uma ocasião, entrar, por exemplo, em confeitarias, mandar vir chocolates, creme chantilly, doces, para ter coragem de fazer um ato de virtude. E pensava comigo mesmo: – Sou um poltrão de primeira ordem, o contrário de um santo. Um santo aplicaria uma flagelação em si mesmo e diria: ‘Agora sim, eu me desapeguei ainda mais. Viva a virtude!’. Eu não. Sou um tipo que preciso me empanturrar de chantilly, de chocolate, de torradas com dose complementar de manteiga, para depois ir enfrentar uma situação difícil. Está bom, se isto é assim, sei que Nossa Senhora terá pena de mim, mas sei também que, fazendo assim, sirvo melhor a Ela, o que não aconteceria se me aplicasse uma flagelação. Peço a Ela que tenha pena de mim. Viva o chantilly! Muitas e muitas coisas consegui de mim por meio de concessões que hoje acho que eram atos criteriosos de me tratar com misericórdia. Sei que pode escandalizar o que estou dizendo, mas acho que isto é razoável, que é sério22. A esperança enorme de alguma coisa que haveria de vir: o fim da Revolução e o Reino de Maria No próprio momento em que se foi tornando claro para mim – isto aos 10, 11, 12 anos – que a Revolução ia progredir indefinidamente, ficou também claro que ela chegaria às suas piores abominações. O que sairia daí seria o pior possível, e então o inimaginável se daria. Ao mesmo tempo, a visão desse horror trazia a ideia de que necessariamente ele não poderia ser eterno: ele cairia e viria um contra-horror.

21 Chá PS 6/12/84 22 EVP 6/1/74 28

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E se eu vivesse a vida normal de um homem longevo, acabaria por ver a Revolução esgotar as suas últimas infâmias. Vinha-me também logicamente à cabeça que deveria vir o oposto extremo. Porque não se sai de um fundo de abismo desses sem voar para o céu e ombrear com as nuvens e com as estrelas. E que, portanto, veria pelo menos o começo disso. E isto com toda certeza. A certeza de que a Revolução, por seu dinamismo, tem que chegar a horrores ainda piores do que ela chegou, e que quando chegasse a certo summum de horror ela cairia morta, essas duas certezas são para mim as certezas-chave da certeza de que vem o Reino de Maria. Portanto, este é o ponto de sustentação. E o ver que vem o Reino de Maria traz consolações interiores. Saber que a Contra-Revolução está avançando, para medir até que ponto o Reino de Maria é provável, para mim é uma coisa completamente leviana. A questão é saber se o demônio está avançando. Porque, se ele chegar à hora de cingir a coroa, ele se desfaz em pó23.

* Quando o presidente do Estado – atualmente se diz governador do Estado – chegava ao Palácio dos Campos Elíseos, hasteavam a bandeira. Quando ele saía baixavam a bandeira. Na hora de levantar e baixar a bandeira, havia formação militar e toque de corneta. O bando Ribeiro dos Santos via tudo isto desde a casa de um tio, e para eles esta cena não dizia nada. A mim me dizia enormemente, mas perguntava de mim para comigo o seguinte: “Se eu dissesse a eles o que estou pensando, o que eles achariam?” Eles estavam com a cabeça cheia de cinemas, de atores e atrizes de cinema, de Tom Mix, de Fred Astaire. Outra coisa que interessava muito a eles eram fatinhos sociais, naturalmente. Quanto mais, melhor. Piadas, brincadeiras, gargalhadas. E eu pensava: “Na aparência estou no âmago dessa roda, mas na realidade há séculos de distância (porque as distâncias psíquicas não se medem aos metros, mas medem-se aos séculos). Estou séculos distante deles”. E deduzia: “Sou o homem mais isolado do mundo. Agora, o que é que vai acontecer? Alguma coisa me diz que toda a ordem católica vai ser restaurada e que não devo me incomodar com os obstáculos e com as dificuldades. E que eu trabalharei nessa restauração. Nisso confio absolutamente, e disso faço as minhas delícias”. 23 MNF 19/6/91 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 29


A minha delícia era viver neste mundo da Revolução de um modo completamente hostil. E acalentando interiormente a esperança dessa restauração. Mas essas imagens – que não eram imaginações, eram imagens propriamente ditas – eram mais imagens do futuro do que imagens do passado. Porque esse passado era inspirador do futuro, era esperança enorme de alguma coisa que haveria de vir. Mas com a seguinte nota: “Isto pelo qual você está passando é um martírio. Mas aguente o martírio e seja fiel”24.

* O estado habitual de preocupação, de apreensão, de garra para viver na luta, para me tornar capaz de enfrentar qualquer coisa; e também a luta contra mim mesmo para me tornar um homem forte, para ficar um homem batalhador, lotou na aparência o panorama. E, na aparência, também tornou o panorama completamente toldado, pesado, plúmbeo, triste. Mas no meio de tudo isto começava a se formar em mim uma noção de que a Contra-Revolução venceria algum dia, e que eu conheceria o Reino de Maria. Vivia então da consideração e da admiração dos resquícios ainda palpitantes da ordem, como que medieval, deitando os seus últimos lampejos, e da consideração da ordem pós-Revolução que seria uma arqui- Idade Média. E isso vinha, creio eu, acompanhado de uma graça meio mística, no sentido da tal mística ordinária, e meio sensível, com grande bem-estar de alma, mas que só tomava uma parte da alma. Não eram consolações do tipo clássico, mas me tomavam a alma muito agradavelmente. E ficavam como uma espécie de contrapeso, e continuavam inclusive nos momentos da maior preocupação25.

* O INÍCIO DA GRANDE CONTRAOFENSIVA O inesperado encontro com o Movimento Católico Tive uma existência relativamente igual, dos 12 aos 20 anos, de maneira que não há quase mais o que contar desse período. Tinha o anseio de fazer a Contra-Revolução, e este anseio era toda a minha vida, que por militância contra-revolucionária eu ocultava. 24 CSN 17/09/94 25 MNF 19/6/91 30

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Por quê? Porque seria inconveniente começar a ostentar os meus desejos contra-revolucionários num ambiente que nada tinha feito para compreendê-los. Criaria contra mim uma “máfia” que me impediria de recrutar os primeiros contra-revolucionários. É incrível, mas me foi exigida essa prova. E essa prova, com o favor de Nossa Senhora, eu prestei.

* Já contei para os senhores, em diversas ocasiões, como foi o Congresso da Mocidade Católica de 1928, os primeiros passos que nele dei, as primeiras impressões que tive e os primeiros contatos pelo mundo afora. A notícia desse congresso deu-se quando eu, atravessando de bonde o Viaduto do Chá e entrando na praça do Patriarca, mecanicamente olhei para uma faixa enorme, tomando toda a extensão da fachada da igreja de Santo Antonio, onde estava escrito: “Congresso de Mocidade Católica, tanto a tanto de setembro”. Caí das nuvens, porque percebi que era um congresso da mocidade masculina. Nunca se faria, naqueles remotos tempos, um congresso misto da mocidade masculina e da mocidade feminina. Isto é uma coisa que não aconteceria, a separação dos sexos era radical, em que a quase totalidade das moças que viviam em casa de seus pais ainda guardavam a pureza pré-matrimonial e a mesma totalidade dos rapazes tinham caído na vida da perdição. Caí de várias nuvens e disse: no auge da aflição, aparece afinal um cartaz que me indica um caminho. Achei melhor não descer do bonde, porque faltavam alguns dias para terminar a inscrição. Não descer e continuar o caminho e pensar um pouco sobre aquilo que eu certamente encontraria, como seria, como faria. Era um primeiro passo a engajar e que poderia ter uma repercussão enorme sobre todo o meu caminho, porque era o começo de um caminho. Eu queria ter o meu passo estudado até os últimos pormenores. No dia seguinte eu estava lá. Subi pelo elevador, num prédio como outro qualquer, tinha uma ou duas salas tomadas – lembro-me definidamente de uma sala – com uns móveis comuns, burocráticos e umas três ou quatro pessoas que estavam recebendo as inscrições, das quais tenho ideia de que uma era o professor Veiga dos Santos26. Ele teve o bom espírito de puxar uma prosa comigo, dizer umas gentilezas. Conversamos um pouco 26 Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978) foi um intelectual, poeta, escritor e líder monarquista brasileiro, enquanto tal fundador da Ação Imperial Patrianovista 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 31


e ele me deu uma fita azul, de um azul claro muito esbanjado, com uma medalha pendurada e que se deveria usar durante o dia para fazer propaganda do Congresso. Jantei nesse dia um pouco mais cedo, tomei o bonde até o largo do São Bento e quando cheguei mais ou menos pela avenida São João, puxei a fita e pus no peito, porque não encontraria mais ninguém conhecido ali, mas de outro lado não queria que outros fossem chegando ao Congresso com a fita e me vissem chegar sem a fita. Entro na igreja de São Bento e, com surpresa minha, encontro a igreja cheia de rapazes, não só nas três naves do andar térreo, mas também em cima, onde há umas colunatas com uma espécie de terraço. Era um espetáculo muito bonito, que nunca tinha visto em minha vida. Sempre fui muito sensível à parte cerimonial, protocolar e decorosa das coisas, e realmente me extasiei com a cena: o Arcebispo metropolitano e os doze Bispos do Estado de São Paulo sentados de costas para o altar, todos em poltronas, com solidéus roxos, capas roxas, batinas pretas com frisos roxos, com anéis, corrente da cruz peitoral, sapatos de verniz preto com fivelas de prata, meias roxas e uns homens “portant en conséquence”, homens sérios. Sobretudo o esguio Dom Duarte Leopoldo e Silva que, quando se levantava, dava a impressão de que se desdobrava em si mesmo em vários lances. O Congresso tinha acabado de começar. Consegui me esgueirar numa nave lateral esquerda, porque tudo já estava tomado até à frente, para acompanhar bem os acontecimentos. Eles cantaram – nunca tinha ouvido cantar em minha vida – o Credo. Nem sabia que se cantasse o Credo. E eles cantaram, com impressão vivíssima para mim, o “Credo in unum Deum, Patrem omnipotentem etc. etc.” Lembro-me também que fiquei muito espantado quando, no “Et homo factus est”, cantado por algumas centenas de rapazes, o velho Dom Duarte se inclina e todos os bispos se inclinam também, acompanhados pelo povo. Achei aquilo estupendo. Fiquei com a alma verdadeiramente cheia. Terminada a cerimônia, começam os discursos. Eram leigos que subiam ao púlpito e faziam discursos. Mas eram homens, teriam uns 40, 45 anos, enquanto nós os moços variávamos entre 17, 18 anos, 30 no máximo. Fiquei muito bem impressionado, sobretudo na primeira noite, porque vi que o programa estava muito bem organizado. Foi feito um discurso por um professor de Direito Administrativo da Faculdade da Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (RJ), Alcebíades Delamare Nogueira da Gama. Era um desses homens talentosos, bom orador, mas sobretudo Brasileira, movimento que defendia a volta do regime monárquico no Brasil. Foi também professor na Faculdade São Bento e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 32

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vulcânico. E falou de maneira a levantar o entusiasmo fácil daquele pessoal todo. Como todo mundo batia palmas e eu queria impulsionar o Congresso tanto quanto podia, também bati palmas até romper as mãos, transbordando de entusiasmo. Em seguida falou um professor, que vim a conhecer muito depois, Professor Alexandre Correia, formado pela universidade de Louvain, na Bélgica, e um homem completamente diferente do anterior. Parecia um silogismo feito osso. Magro, enxuto, com uma cabeça com um formato plutôt ovoide, uma boquinha torta assim, uns olhos pequenos, azuis, mas de um azul que não tinha beleza nenhuma. Mas fulgurante de inteligência: lógico, conciso, claro. E foi desenvolvendo o raciocínio dele de modo tão límpido, tão lógico, tão coerente, que prendeu a atenção do auditório inteiro. E eu, grande e apaixonado entusiasta da cinegética dos raciocínios, da cavalgada dos raciocínios, eu me entusiasmei pela lógica dele, fiquei realmente encantado. E aí aplaudi no debandamento do meu coração. Vi depois saírem os bispos, ao canto, se não me engano, do “Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat”. Mas como tudo naquele tempo se fazia como a Igreja quer que se faça, os bispos iam na frente e depois, atrás, o velho e hierático Arcebispo. Eles atravessaram toda a nave da igreja do São Bento debaixo de cânticos e aplausos. Eles pareciam, assim, um desfile de anjos vestidos… E nós cantando debandadamente. Terminada a primeira noite do Congresso, nunca fui de muito andar, ali mesmo tomei o bonde que conduzia para minha casa e sozinho fui alinhando as primeiras ideias. E me lembro bem como essas primeiras ideias se foram pondo no meu espírito. Foi talvez a primeira análise de opinião pública do Movimento Católico que fiz. Tinha duas grandes perguntas que me estavam supereminentes no espírito. A primeira era: de que capacidade de expansão será isto? O que é isto aqui? É uma minoria residual que ainda resiste a uma ventania e que irá recuando aos poucos? Ou, pelo contrário, será uma explosão de uma minoria que está tomando a revanche e que vai avançar? Assisti o sol passar por mim: estará ele em estado de aurora ou em estado de ocaso? Se estava em estado de ocaso, seria uma batalha para conservar de pé o último estandarte. Imaginem aqueles guerrilheiros japoneses que 10, 15, 20 anos depois da guerra, foram encontrados no mato, ainda sem se terem entregues porque não sabiam que o Micado tinha se rendido. E eles continuavam a batalhar. Em relação aos Papas eu era isto: um guerrilheiro na mata, e onde, entre os homens da minha idade, ninguém mais era verdadeiramente sério e verdadeiramente católico. E eu resistia porque o Papa resistia. Eu me lembro de uma música que tocavam lá e que a mim, alma de guerrilheiro que tinha batalhado sozinho na floresta virgem, queria dizer 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 33


muito. Era um canto que valia pouco como canção, mas cuja letra valia muito como correspondência ao meu estado de espírito: “Mocidade brilhante e sadia/ sai da inércia em que estás!/ Renuncia à inação criminosa! De pé! De pé! / Deu a voz de comando Pio XI / carrilhonam os sinos de bronze / E descem do alto seus brados de fé…” Não me lembro como continuava o hino, mas aquilo conclamava para a vitória e me falava enormemente à alma. Encontrava-me no estado de um daqueles guerrilheiros perdidos no mato quando encontrasse um batalhão que também não se tivesse rendido. Era um batalhão na derrota, um batalhão na fuga, mas era um batalhão. E do homem isolado ao batalhão, que diferença! Quase uma diferença maior que do batalhão derrotado até à vitória. Aí reuni à minha reflexão a impressão que me tinham dado os rapazes que estavam enchendo a igreja. Compreendi que eram mais ou menos todos da classe média baixa. Pessoas de meu ambiente, na igreja inteira, havia umas quatro ou cinco, entre elas Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra. Nem sabia o nome dele, mas via que era de uma boa família tradicional de São Paulo. E me dei conta de como o meu ambiente era fechado para aquilo. Mas que enormes possibilidades de abertura aquilo tinha na linha horizontal. E que se perpendicularmente não dava nada, horizontalmente podia dar um colosso. E tive a sensação de um mundo que explodia e de toda uma possibilidade que se abria, mas num nível em declive que não era o que eu queria. Mas já era muito degustável em relação ao que eu tinha. E que o resultado era cheio de esperança27. Depois de 10 anos de espera, em que não tinha encontrado uma folhinha de vegetação verde, encontrava de repente uma floresta. Estava encantado, literalmente encantado! Tinha certeza de que nós haveríamos de vencer28.

* Antes de conhecer o Congresso da Mocidade Católica, tinha uma vontade enorme de pertencer a um movimento de moços católicos, no qual queria trabalhar, para fazer uma luta contra a imoralidade e todas as formas de impiedade. Portanto, ateísmo, irreligião em todos os graus, comunismo – que já começava a ser um problema sério naquele tempo – e tudo o mais. E quando conheci aquele movimento, eu me joguei nele como o peixe se joga dentro d’água!

27 EANS 1/9/80 28 Sefac 20/1/84 34

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Depois disso, entrei para a Congregação Mariana da minha paróquia, logo no domingo seguinte, e naquele dia mesmo comunguei e fui à reunião da Congregação Mariana. E ali fiquei vendo como eram as coisas, com o propósito de começar a militar. Então a minha preocupação era de fazer encontros com eles, estar juntos com eles, para me meter dentro do movimento. E graças a Nossa Senhora, até hoje não saí dele!29

* As Congregações Marianas datam de séculos atrás. Em São Paulo elas tinham sido fundadas muito antes de mim. Mas eram duas ou três congregações com méritos, mas sem o élan que elas tiveram de repente. Devo dizer que já encontrei esse élan lançado. O magnífico Congresso da Mocidade Católica, organizado pelas Congregações Marianas – e foi quando as conheci – já era o élan lançado em ponto grande: ele enchia de moços a igreja de São Bento. E numa cidade pequena como era São Paulo naquele tempo, era muita coisa. E esse era o élan lançado, era um élan da graça. Mas, noto muito bem que, a esses ou aqueles títulos, esse élan vinha com sede de fazer aquilo que a graça me dava o favor de querer. E que isso me tornava, aos olhos deles, representativo desse élan. Desse élan que eu não tinha fundado, que não tinha constituído, tornava-me representativo. E, portanto, com uma ação propulsora sobre o élan; enorme! Mesmo assim é preciso fazer uma precisão: não fui um desses homens que andam viajando pelo interior, fundando Congregações Marianas etc. etc. Por mil razões, entre as quais uma é que não gosto de viagem. Por outro lado, eu percebia que a graça ia soprando aqui, e que alguma coisa fazia voar o contágio do movimento mariano para onde a gente não imaginava. Até os últimos rincões do Brasil aquilo voava. E que a mim competia ficar dando, em São Paulo, o sabor que o élan devia ter, servindo-me das Congregações Marianas de São Paulo – que eram de longe as mais fervorosas do país, mas de longe –, servindo-me delas como de uma tribuna para falar ao país. E, para uma praça cheia de gente, há dois modos de a gente tomar contato: um é falando de um a um, e o outro é indo numa tribuna e falando. Eu era firme na tribuna30.

* 29 Palavrinha 14/01/84 30 Almoço ESB 5/8/83 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 35


Entrando para esse Movimento, naturalmente aconteceu o que se dá com todos os outros movimentos: os mais ardorosos naturalmente tomam o realce e tomam a dianteira. E como entrei para esse Movimento com todo o ardor de minha alma, aconteceu que a generosidade dos que comigo lutavam me empurrou para lugares de realce, que não disputei nem procurei. Como tinha alguns dotes oratórios, comecei a ser convidado por toda a parte para fazer discursos, conferências etc., sobre os temas polêmicos daquele tempo. Por exemplo, no México, a perseguição religiosa lavrava. O movimento heroico dos cristeros, católicos, se levantara contra a ditadura mais ou menos comunista de Calles e de Obregón. Os cristeros fizeram uma revolta, que se transformou numa revolução e depois numa guerra civil. Morreram inúmeros mártires, um dos quais, o jesuíta Pe. Pró, canonizado há pouco tempo pelo Papa João Paulo II. Nós movemos uma ação, um protesto contra o governo ateu do México, que foi apresentado ao Consulado do México em São Paulo. Protesto tão caloroso, tão polêmico, que o Consulado do México, ele também animado pelo espírito polêmico do tempo, recusou esse protesto e o devolveu, dizendo que não podia encaminhá-lo a seu país, de tal maneira era injurioso; o que, de nossa parte, determinou também outros revides. Desta forma, de ardor em ardor, o movimento mariano cresceu no Brasil, não só em quantidade, mas em qualidade31.

* Comecei a fazer contato com aqueles moços católicos todos, e muito rapidamente eu me transformei em um líder deles, logo nos dois primeiros anos, se tanto, eu não medi bem. Muito relacionado então com o Arcebispo e com o Vigário Geral, e com todas as autoridades eclesiásticas, estava absolutamente no centro de todas as coisas. Comecei naturalmente a pensar em fazer Contra-Revolução, que era a razão pela qual eu estava ali dentro. Como esse movimento ia crescendo pelo Brasil inteiro, em todos os lugares do Brasil havia esse movimento, estava uma coisa extraordinária, e eu pensava: “Daqui a uns quatro, cinco anos, daqui a uns 10 anos no máximo, implanto o Reino de Maria aqui no Brasil. Percebo naturalmente que haverá muita reação, e que no meio da reação vai haver inclusive problemas muito complicados, mas estamos aqui para isso”. No meio disso tudo, quando eu tinha 24 anos incompletos, fui indicado como candidato a deputado constituinte pela Liga Eleitoral Católica. Feitas as eleições, fui o deputado mais votado do Brasil. Mas tão mais votado, que 31 Entrevista 21/06/90 36

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o que veio logo depois de mim tinha mais ou menos a metade dos votos que eu obtivera. Quer dizer, um triunfo, mas um triunfo inimaginável! A minha liderança junto aos jovens católicos ficou mais afirmada, ficou rotundamente afirmada. E julgava que, daí por diante, até a implantação do Reino de Maria32, seria uma galopada. Uma galopada no meio do risco, uma galopada naturalmente com algumas derrotas, mas era uma mera galopada33. A ruptura definitiva com o mundo revolucionário Naquela espécie de diálogo ou de discussão interior com o mundo mundano-burguês que me rodeava, ia analisando o mundo, analisando as opiniões, fazendo objeções. Sem perceber, ia estudando a opinião pública às jardas. De maneira que, quando entrei para a Congregação Mariana, tinha toneladas de observações ordenadas já em linha ao estudo da opinião pública, que é um estudo fundamental para nós. Mas, de outro lado também, nasceu-me tanta aversão ao mundanismo burguês que, com a graça de Nossa Senhora, nunca tive desejo de deixar as coisas de Deus. Ela me manteve no fundo do poço e no horror da mediocridade durante um tempo em que, para quem tem 20 anos, é muito. Também, quando saí de lá de dentro, saí de tal maneira batendo as asas, que no meu coração pulsava as palavras: “Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!”34

32 Não se pense que a esperança da implantação em breve prazo do Reino de Maria no Brasil – e no mundo – fosse em 1933-1934 o prognóstico otimista de um neófito acalorado. Basta dizer que essa esperança coincidia inteiramente com a oportunidade dada por Nossa Senhora à humanidade, de se emendar sem que houvesse castigo. Com efeito, em 1929, a Virgem comunicou à Irmã Lúcia que “é chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os Bispos do mundo, a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração”. Nessa mesma época, começou no Brasil o enorme surto do Movimento Católico, que conquistou o que havia de melhor em nossa juventude e deitou abaixo o espírito positivista, laico e ateu que caracterizou os primeiros 40 anos da República. E o melhor da juventude brasileira afluiu entusiasmada para os ideais católicos, e através da Liga Eleitoral Católica transformou-se numa potência no país. Portanto, a possibilidade de adequar as leis e os costumes brasileiros à doutrina social católica era, naquela quadra, inteiramente viável e real. – Ainda a respeito do que Dr. Plinio entendia como Reino de Maria, ver nota 214 da página 101, do volume I. 33 Palavrinha 30/08/83 34 Chá PS 21/12/83 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 37


E aí rompi totalmente com o mundo. Também compreendi que não bastaria ausentar-me do mundo: eu precisava tornar esse mundo agressivo para comigo. Porque temia as saudades. Então, criei uma barreira assim: nas casas onde eu frequentava, não fui mais. E não dei satisfações. Não expliquei, nem nada: tranquei. O que era uma grosseria que só podia tornar aquela gente queixosa comigo. Ademais, procedi de maneira a, por assim dizer, enterrar-me aos olhos deles como “carola”. Para isto, fiz o seguinte. Havia várias missas de manhã, aos domingos, que eram frequentadas pela melhor sociedade. São Paulo era muito pequena, o que acontecia numa igreja de manhã, à noite todo mundo daquele ambiente já sabia. Então tomei a Igreja de Santa Cecília, que na missa das 11 horas era muito frequentada. E comprei na livraria do Coração de Jesus um tercinho, um rosário desses de “carola”, azul claro. E comprei também um livro de piedade que continha uma Via Sacra. E quando batia o sino e entrava o padre para a missa, eu começava a fazer a Via Sacra, todo mundo olhando. Naquele tempo era muito feio um homem ser católico praticante. Era tido como horroroso. E um homem fazer Via Sacra, ainda mais um rapaz na minha idade, 19-20 anos, era uma coisa de cair de costas35. Os senhores podem imaginar todo o mundo que eu conhecia assistindo à missa, ainda mais naquele meio social, em que todo mundo era meio parente de todo mundo, e um pouco companheiro de infância de todo mundo, de repente um rapaz de 19-20 anos que começa a ajoelhar aqui, ajoelhar lá, fazendo as 14 estações da Via Sacra! Nunca aconteceu, nem beata de igreja fazia esta Via Sacra durante a missa36. Começava a Via Sacra na frente, no lado do Evangelho, ia até o fundo e depois, a Crucifixão e o Sepultamento de Nosso Senhor, que era o fim da Via Sacra, ficavam perto do outro lado, já na capela do Santíssimo, portanto do lado da Epístola. Quando cheguei no fim da Via Sacra, terminei-a junto a um grã-fino – desses que dão opinião e ditam a moda – colega meu, amigo desde menino. Havia um lugar vazio. Ajoelhei-me ao lado dele, puxei o tercinho azul claro, e comecei a rezar sem olhar para ele. Ele percebeu que era um desafio do outro mundo, porque equivalia a pegar no tercinho e sacudir diante dele. Ele estava ajoelhado também – porque era uma hora em que todo mundo ajoelhava e ficava mal para ele não se ajoelhar – mas não estava prestando atenção em nada. Ele viu aquilo 35 Almoço EANS 18/03/87 36 Sefac 20/04/73 38

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e deu um risinho malicioso, sem olhar para mim. Um risinho assim no ar, como quem diz: “Eu percebo isso e percebo o que é que você quer, mas eu não vou ligar. Eu vou passar por cima disso”. Levantei-me, e quando terminou tudo, saí. Tenho certeza de que, naquela tarde, ele contou para todo o mundo: “Vocês sabem, o Plinio hoje fez assim”. Isso trazia repercussões do outro mundo37. Eu tive uma tal dificuldade em fazer isto – perdoem-me o prosaico da coisa – que me sentia transpirando38 de respeito humano39; eu, que por natureza não sou dado a transpirar. Isto porque eu sabia que em tal banco tinha essa pessoa, tinha aquela, e aquela outra. E sabia qual seria o comentário de cada um. Eram pessoas educadas, de maneira que nem moviam a cabeça quando eu passava, mas estavam vendo aquela coisa do outro mundo! E já previa o desconcerto de todo mundo em minha casa, quando recebesse as repercussões, os telefonemas... “O que é isso! O que é que o Plinio inventou?” Exceto mamãe, perfeitamente feliz, todos os outros acharam uma coisa do outro mundo! Mas não ousavam perguntar, porque sabiam que sairia de quatro pedras na mão40.

* Lembro-me que, uma vez, num ato indispensável da vida de família no qual estava presente, uma senhora casada com um primo meu – senhora alta, com voz muito possante – com boa intenção me gritou do outro lado da sala, e todo mundo percebeu: “Ó Plinio, eu vi outro dia você comungando na Igreja do Coração de Maria. Você não faz ideia como eu fiquei contente, porque muita gente acha feio um homem comungar, eu acho bonito”. Todo mundo em volta achou horrendo. Sustentei a nota, dando uma resposta desse gênero: “Não vi você, que Missa era, que horas eram?” Quer dizer, sustentando a conversa nesse tema41.

*

37 Almoço EANS 18/03/87 38 Êremo JG 27/10/75 39 Sefac 20/04/73 40 Êremo JG 27/10/75 41 Almoço EANS 18/03/87 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 39


Nessa época em que comecei a me apresentar como católico praticante – mais ou menos 1921 – São Paulo era uma cidadezinha de 400 mil habitantes. Uma cidadezinha onde, por assim dizer, não havia homens católicos praticantes. Praticavam a religião apenas mulheres. Homem que praticasse a religião era tido como maricas, como efeminado, como sub-homem, como cretino42. Mas o sangue de Cristo e as lágrimas de Maria me ajudaram, e eu passei. Riam de mim como quiserem, escarneçam como entenderem, eu vou proclamar a minha fé! Vou dizer quem eu sou! E vou fazer isto de cabeça alta, de olhar duro e enfrentando seja quem for! Não vou permitir que ninguém ria diante de mim porque sofrerá consequências amargas! E Nossa Senhora me ajudou43.

* Comprei nessa época uma imagenzinha de Nossa Senhora muito popular. Comprei um rosário, pus a imagem no meu criado mudo e comecei a levar uma vida diferente. Na mesma semana em que se dava isto, ou um pouco depois, apareceu o Reizinho em casa. Era tardinha, faltava pouco para jantar. E com a liberdade que ele tinha comigo, ele foi metendo a mão na porta do meu quarto e, sem bater, entrou e me disse: – Você, como vai? Eu estava lendo um livro de Maurice Paleologue, “La Russie de Tzars”. Um muito bom livro anticomunista que estava fazendo sensação. Ele disse: – Você lendo a esta hora? O que é que você está fazendo que você não vai ao corso da Av. Paulista? – Não vou porque não quero. Não parei de ler, continuei a ler, afetando desdém para com ele. Ele sentou-se perto de mim, depois olhou para meu criado-mudo e me disse: – Hiii! O que é isso? Você arranjou esses negócios, é? Eu parei de ler, olhei para ele, e respondi: – Sim, eu entrei para a Congregação Mariana de Santa Cecília. Ele me disse: “Você precisa deixar disso”, qualquer coisa assim. Eu estava deitado de sapatos, com os sapatos em cima de um pano para proteger a cama. Voltei-me para ele e dei um pontapé com toda força no peito dele, porque ele, sentado, estava à mesma altura de mim, deitado. Ele estava 42 Sefac 20/04/73 43 Sefac 20/04/73 40

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sentado numa cadeira giratória que até hoje está no meu escritório. Ele bateu com a cadeira na escrivaninha atrás, e com tanta força que rachou o encosto da cadeira. Ele se levantou fungando e disse: “Você me paga”. Eu disse: “Se for pagar, você vai ver o que é que você me paga”. Vi que ele não entrou para se queixar com Dona Lucilia. Ele tomou o caminho da rua. Ouvi a porta da rua bater e continuei a ler o livro44.

* Pouco depois, a contraofensiva se definiu com a minha entrada na Congregação Mariana de Santa Cecília. Aí foi a contraofensiva de fato, com brigas com os meus tios, mas brigas colossais, como não se tem numa casa educada, aos berros. Só faltou eles me ameaçarem agredir. Se me agredissem, eu responderia no mesmo diapasão45.

* Então, em casa começaram as queixas. Bem entendido, nunca Dona Lucilia, sempre conforme com todas as mudanças que eu estava fazendo. Os primos, minha irmã e outros, desolados, diziam que eu estava fanatizado, com mania religiosa, e atribuindo isto, imaginem, à grande influência pessoal de Monsenhor Pedrosa sobre mim. Tinha certa consideração por Monsenhor Pedrosa como sacerdote, e o imaginava bom padre. Mas ele não tinha nenhuma influência sobre o curso de minhas ideias. Ele nem tinha ideias. Ele era tido como muito bom vigário, mas de figurino comum. Mais nada. Não tinha nada de ideológico. Lembro-me de uma noite em que – todo mundo já dormindo, e na sala de jantar de minha avó andando de um lado para outro – de repente apareceu no escuro o meu cunhado e disse: – Quero falar um pouco com você. – O que é que há? Sentamo-nos e ele disse: – Sua irmã, a esta hora, está no quarto chorando. E o culpado é você. Ela não conhece mais você. A sua alegria de outrora, o seu entusiasmo de outrora, o seu lado brincalhão, toda a afinidade de todos nós com você está desaparecendo, não existe mais. Você é outro. Você não podia mudar um pouco, pelo menos por condescendência por sua irmã, para não a fazer sofrer isto: vê-la perder o irmão? 44 Jantar EANS 22/11/90 45 Chá SRM 18/1/93 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 41


Respondi: – São coisas sérias demais para se resolver em termos de irmão e irmã, afeto e choro. Se ela está chorando, seque as lágrimas, porque eu não posso fazer outra coisa a não ser o que estou fazendo. Ele viu que o papel dele de cunhado não podia ir além do que ele fez e disse: “Boa noite”. Ao que respondi com civilidade. No dia seguinte, encontramo-nos e não falamos nada sobre isto. Mas eram mudanças46. PRIMEIROS PROGRESSOS MARCANTES NA VIDA ESPIRITUAL Consolações depois de entrar no Movimento Católico Tive, em seguida, um período de seis ou oito meses tão felizes, que não sabia da possibilidade de ser tão feliz assim na terra! Era o pagamento daquilo que tinha sofrido, e tudo vinha com um lastro de piedade e de formação religiosa que não tinha antes. Nesses seis meses não fazia outra coisa a não ser ler assuntos de religião: vidas de santos, coisas de vida espiritual. Rezava, mas rezava a perder de vista, tanto eu rezava! Fez-me um bem enorme para a alma. Mas o que eu tinha passado... Lembro-me de mim rezando na igreja do Coração de Jesus e pensando: “Agora que entrei no Movimento Católico e rompi com o mundanismo, vou voar em direção à realização dos meus ideais como uma águia voa para o alto de uma montanha, tanto eu me sinto capaz!”47.

* Lembro-me também que, nesse manual do Goffiné, li pela primeira vez o texto da missa. Confesso que fiquei encantadíssimo! No interior de minha alma, tinha impulsos de contentamento lendo aquilo. Incomparável! Incomparável! Comecei então a acompanhar a missa pelo texto do Goffiné. Chegou-me a acontecer de ter passado um longo tempo doente – um mês mais ou menos – e em que tinha tanta saudade da missa rezada com aquele texto que, não podendo ir à Missa, eu rezava o texto de saudades da missa... Evidentemente eu sabia que o que rezava não era missa, que a missa só um padre reza. Mas me parecia que aquela oração privada, segundo o 46 MNF 12/12/85 47 Chá SRM 20/12/87 42

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texto oficial, seria agradável a Nossa Senhora e a Deus. E então rezava, tal era o entusiasmo que tinha. Mas, ao usar o meu bom Goffiné, livrão grosso, eu depredava, pois sempre fui predatório de meus livros: quanto mais gostava do livro, mais o depredava. Eu folheava e folheava prestando atenção no sentido, e não na folha. E lá se ia aquilo... A encadernação foi desde logo contundida pelo natural ímpeto de meus movimentos48.

* Nesse mesmo livro Goffiné encontrei vários salmos de Davi, os salmos penitenciais entre outros, que me tocaram muito profundamente. Por exemplo, o salmo: “Exurge, Domine, quare obdormis?”. Este salmo correspondia exatamente ao que minha alma queria dizer a Deus, mas exatamente. Mas tive medo de rezar o salmo, porque parecia tão de igual a igual para com Deus, que para o meu feitio de temperamento, começando a rezar, havia tanto risco que me pusesse loucamente nessa posição, que preferi não rezar o salmo em nível de oração. Eu o li para ver como ele era, mas não o rezei. De lá para cá, uma vez ou outra eu me lembro de alguma estrofe desse salmo, e em ocasiões de perigo as rezo. Bom, mas não tinha uma explicação inteira que – é horrível dizê-lo – me tranquilizasse sobre a ortodoxia do salmo. O salmo me parecia atrevido, sabia que o salmo era ditado pelo Espírito Santo. Mas dizia para mim mesmo: “Vem do Espírito Santo, mas passando pelos meus lábios e, portanto, pelas deformações do meu temperamento, ele toma um certo atrevimento; e como se trata de Deus Nosso Senhor, não pode ser isto e, portanto, não vai!”49 Desenvolvimento da vida de piedade Frequentando a Congregação Mariana de Santa Cecília, vi que os congregados comungavam todo mês obrigatoriamente. Aderi a essa obrigação com toda naturalidade. Era o prolongamento do que eu queria. Logo depois sobreveio a ideia de comungar todas as semanas, porque via que os mais fervorosos comungavam toda semana, e que isto era o desenvolvimento natural das coisas. Entreguei-me a essa prática de muito 48 SD 10/03/84 49 Almoço EANS 12/08/93 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 43


bom grado, mas quase sem fazer uma meditação especial. Era tão bom, tão natural, tão excelente, tão direito, então vou fazer, está acabado! [Creio que a parte cinza já foi citada antes] A Congregação Mariana convidava os rapazes a um ritmo muito mais piedoso da vida. Os congregados rezavam o rosário. Eu tinha um rosário, mas não o levava nunca comigo. Passei a fazê-lo, sem que ninguém me recomendasse, porque percebia que precisava estar ligado ao rosário. Vivemos agarrados ao nosso rosário. Um hábito ligado ao rosário que adotei foi de, em toda roupa nova que fazia – que não eram muitas –, a primeira coisa que punha era o rosário nesse bolsinho pequeno de calça, em cima. E toda roupa nova que eu vestia pela primeira vez, rezava umas tantas Ave Marias para pedir a Nossa Senhora para nunca permitir que, dentro dessa roupa, A ofendesse ou fosse a algum lugar onde Ela não queria que fosse.

* Antes de ser congregado mariano, quando eu rezava muito, julgava ter feito uma pequena maratona de orações rezando um Padre Nosso e dez Ave Marias. Não tinha noção dos Mistérios Gozosos, Dolorosos, Gloriosos! Como havia ocasiões em que os congregados rezavam juntos, fui me habituando a superar as minhas modestas maratonas. No começo o terço me parecia muito longo, mas me habituei rapidamente. Depois veio o rosário. Uma vez ou outra eu rezava a Ladainha. Foi aí que notei que eles pediam a Deus muitas coisas que não me tinha passado pela cabeça pedir, por serem coisas que me tinham sido dadas antes que as pedisse. Então me pus em bloco diante do problema da piedade. E pensei: “Aqui é um bloco novo com que me defronto : a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, infalível, que ensina que se deve fazer essas coisas. Vejo que esses rapazes aqui as fazem frequentemente e com suma facilidade, e que se não fizessem eles não valeriam dois caracóis. Agora, na obediência à Igreja e para ter mais ainda fundo na alma aquilo que mais desejo no mundo, que é o espírito da Santa Igreja, devo assumir esses hábitos que não são meus e fazê-los meus. E devo, portanto, começar a rezar diariamente o meu rosário inteiro e a fazer uma série de orações, compreendendo que não conseguirei ser um católico a cem por cento, unido à Igreja tanto quanto está n’Ela e em mim, se não tiver uma vida de piedade ativa. Portanto, ainda que não sinta a necessidade de afervoramento nessas coisas para ser o que sou, vou começar a fazer. Por obediência, e sobretudo para obter esse fruto que eu quero mais do que todos: o espírito da Igreja dentro de mim”. 44

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Então comecei a rezar o rosário diariamente. Também comprei um terço mais sério, mais resistente. Aprendi os mistérios do rosário, como rezá-lo, e comecei a ler livros de piedade. Enfim, minha vida espiritual começou, com o favor de Nossa Senhora50. Algumas renúncias fundamentais Nada equilibra o homem tanto quanto as grandes renúncias fundamentais. E posso lhes garantir que o modo mais cômodo de levar a vida é fazer de uma vez as grandes renúncias. Houve tempo em que procurava ilustrar essa verdade com o sistema de o médico tirar o esparadrapo: ele arranca o esparadrapo de uma vez, a pessoa grita “ai!” e está liquidado o caso. Fui levado a esta posição ainda em mocinho, exatamente diante dessa ideia: “Eu não tenho coragem se não renunciar a tudo. Portanto, estou entre a renúncia total ou a apostasia completa. Se for renunciar aos poucos, como sou mole demais, apegado demais, medroso demais para chegar ao fim do caminho, o jeito é me entregar por inteiro. Porque, se em cada passo de dor for fazer uma escolha, e ainda avaliar se aguento aquilo, não terei coragem”51.

* Um exemplo disso foi a maneira como parei de fumar. Fumava uma marca de cigarros que tinha o título bem escolhido por mim: “Pour la Noblesse”. Era um cigarro fraco, muito saboroso. De repente constatei: “Essa droga aqui não me dá mais gosto. E sinto falta dela quando não a tenho. Estou, portanto, escravizado por uma coisa que não me dá vantagem. Mais vale a pena fazer um esforço e romper com essa escravização, do que continuar nessa droga”. Quando encerrei este raciocínio, tinha um cigarro na mão. Pupt! joguei-o no ar, não fumei mais. Evidentemente que a razão principal pela qual abandonei o cigarro foi a razão religiosa: era um vício e o vício é ruim. Mas a razão complementar que acabo de explanar ajudou-me muito a dar o passo52. 50 Chá ESB 19/11/80 51 EVP 1/5/83 52 EVP 10/9/94 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 45


* Creio já ter dito que fui educado na ideia de que a mentira é um pecado venial. Mas eu considerava o pecado venial tão pequeno, que julgava não ter importância nenhuma mentir. Se morresse, iria passar umas horas no Purgatório, depois saía de lá e ia para o Céu. Daí tirava a conclusão de que, quando eu tivesse vantagem, podia mentir à vontade, porque depois receberia um prêmio aqui nessa terra por ter feito mentiras a favor do bem, a favor da verdade. E que por isso estava todo o problema resolvido. E mentia então completamente à vontade. Eu me lembro de um rapaz – eu era noviço de congregado mariano nesse tempo – que estava entrando como noviço também. E estivemos diante de uma dificuldade de apostolado, e ele me disse: – E agora, Plinio, como é que nós fazemos? Eu pensei e disse: – É muito simples, vamos mentir que isto é assim. Lembro-me até hoje da cara que ele fez. Ele me olhou bem de frente, com uma atitude muito categórica e me disse. – Mas então, mentir? – Olha, fulano, não tem importância, é um pecado leve. – Não espere de mim que eu minta, porque nunca na minha vida farei isso. Aquilo criou na minha alma uma tal convicção de que não se mente, um tal horror à mentira, que deixei de mentir. Esse rapaz depois se perdeu. Para os senhores verem como são as coisas. E eu procurei conservar-me e procurei levar a minha vida não mais mentindo. E com isso a lição dele foi pouco útil para ele, mas foi muito útil para mim. Peço a Nossa Senhora que cuide da alma dele pelo bem que me fez53. NASCE A ASPIRAÇÃO À SANTIDADE A purificação mediante duas provações anti-axiológicas inesperadas Uma prova criteriológica de caráter preternatural Nessa minha renúncia do mundanismo, eu tivera muita dificuldade em mudar de uma situação para a outra. E estava certo de que, feita a mudan53 SD 25/9/93 46

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ça, e radicado complemente na prática da religião, a minha vida espiritual devesse tomar um voo enorme. Porque era um sacrifício colossal que eu acabava de fazer. Acabava de sacrificar tudo quanto eu tinha54. Mas depois dessa fase, vieram-me aflições e provações colossalíssimas. Tinha então uns 22, 23 anos, uma coisa assim55. A raiz de uma dessas provações foi que, numa confissão, um padre me deu conselhos meio quadrados (os senhores precisam tomar em consideração que era muito moço naquele tempo; não tinha a maturidade que adquiri depois). Nessa confissão, julguei o padre dizer – e creio que o pobre padre disse – uma coisa que é errada de acordo com a doutrina católica. Mas, com a confiança ingênua que eu tinha, em que achava que tudo quanto qualquer padre dissesse seria inteiramente a doutrina católica, dei um crédito inteiro ao que ele disse. Isso causou uma reviravolta na minha cabeça, uma coisa tremenda. O que disse o padre e qual foi essa reviravolta? Já expliquei aos senhores que há, em matéria de fé católica, uma distinção entre dúvida e dificuldade. Pode haver um ponto da doutrina católica que eu não entenda e não saiba como explicar, ou uma objeção que não saiba como responder. Isso se chama uma dificuldade. Não é nem um pouco uma dúvida, porque se for uma dúvida seria um pecado contra a fé. Como sei que a Igreja é divina, que ela não pode errar, ela estará certa de qualquer jeito. E se não entendo a explicação dela, devo me sujeitar à explicação dada por ela, porque ela é divina56. Tinha lido em algum lugar que a Fé era um rationabile obsequium, uma homenagem de razão àquilo que é o conteúdo da Revelação. Na Fé havia muitos pontos que eu não havia estudado. Não tinha ainda tido tempo de estudar toda a justificação da Fé católica. Alguns pontos me pareciam difíceis de aceitar, mas eu os aceitava de bom grado e na inteireza da minha alma, pelo simples fato de que a Igreja nos ensina. Não tinha dúvida nenhuma em face da Igreja. De repente, assaltou-me a seguinte dúvida, tipicamente uma coisa do demônio: “Você tem fé e acredita porque a Igreja manda crer. Mas a Igreja aceitará essa sua fé como a fé que Ela quer, como a fé que Ela ama? Ela não quereria que você estudasse todos os pontos da fé, para depois prestar aquele rationabile obsequium, que é a única coisa que Ela aceita? Você pode se reputar em dia com Ela com uma fé que não é esse nobre 54 SD 5/5/73 55 Almoço EANS 12/08/93 56 SD 5/5/73 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 47


rationabile obsequium que Ela exige? Você dá a Ela uma fruta peca e sem valor, quando Ela quereria de você outra coisa?!”57 Eu tinha dito ao sacerdote, acidentalmente, porque minha confissão não foi sobre isso: “Padre, queria saber o seguinte. Se uma pessoa tem uma objeção contra um ponto qualquer da Fé Católica para a qual a Igreja propõe uma explicação e a pessoa racionalmente não se convence de que essa explicação é clara58, mas continua a crer absolutamente na Igreja com toda a alma e sem se incomodar em nada – apesar de não lhe parecer que seja racional – porque se aquele ponto não tem explicação, cai o edifício todo, essa pessoa está em ordem, ou não?” Eu entendi o padre me dizer incidentalmente, na hora do conselho da confissão, o seguinte: que uma pessoa só podia dizer que tinha fé católica quando entendia tudo o que a Igreja dizia e não tinha dificuldade a respeito de nada; se tivesse alguma dificuldade, tinha perdido a fé59. Ele me disse: “Não! É preciso pôr a razão de acordo com a Fé, para ela estar em ordem”. Eu disse: “Está bom. Mas ele tenta e não consegue. Então eu pergunto ao senhor: esta pessoa está ordem com a Igreja? Está vivendo da vida da graça? Ela tem culpa nesta situação em que se encontra?” O pobre bom padre tartamudeou algumas coisas, por onde ele saiu com aquelas coisas de que não há incompatibilidade entre a razão e a Fé, e que esta era uma situação absurda que não se poderia admitir. Anos depois, Dom Mayer me explicou que não pode haver incompatibilidade entre a razão humana e a Fé, não entre a razão de um indivíduo e a Fé. Mas o padre não soube me dizer isso60. Eu saí do confessionário zonzo: “Então, perdi a fé. Aquilo que eu daria meu sangue para sustentar, aquilo de que eu estou mais do que certo de 57 Chá ESB 19/11/80 58 No caso concreto, a dificuldade tinha como porto de partida a historicidade dos Evangelhos, uma vez que não há originais. A Igreja diz que o fato de os textos aparecerem um século mais tarde em lugares muito distantes indica que havia uma tradição uniforme, o que vale mais do que uma prova de tabelião. Poderia objetar-se que isso é uma argúcia, porque se aparecesse uma discrepância e os bispos ou um papa dissessem que a novidade era verdadeira, os bons católicos, ou seja, aqueles dispostos a seguir a Igreja até contra a evidência – que era a atitude de Dr. Plinio –, iriam aceitar dita novidade. Logo, não estava provado que os textos do Novo Testamento fossem absolutamente verídicos. Alargando o problema, o demônio insinuava que um católico probo, em lugar de aceitar de olhos fechados o que a Igreja ensina, deveria fazer uma revisão racional de toda a doutrina da Igreja, e esmagar uma por uma todas as objeções contra ela (MNF 2/11/89). 59 SD 5/5/73 60 MNF 89/11/02 48

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que é verdade – ou seja, que a Igreja Católica é verdadeira; e que se meu pensamento colide com o dela, eu é que estou errado – aquilo não basta! Logo, minha fé não é inteira”. Consultei depois outro padre no confessionário, e esse padre me deu outra resposta quadrada que confirmou a do padre anterior. E daí me veio uma série de tentações, mas tremendas, de julgar que era isso mesmo, que eu estava perdido, que não tinha correspondido à graça, que de mim não se podia esperar mesmo outra coisa. Era uma espécie de obsessão, mas como um tropel que passava pela minha cabeça; às vezes acordava durante a noite com essa preocupação. Ficava com medo de consultar mais um padre, porque pensava: “Se vai me sair outra coisa dessas, saio morto. Porque não aguento a ideia de que não tenho a Fé católica. Eu estou certo de que sigo a Igreja Católica... Como é que não tenho Fé católica? Mas esses padres dizem que eu não tenho Fé católica”. Então, a tentação: “Desespere-se, volte para a sua vida anterior, deixe isso, olhe lá que loucura!” Mas isso noite e dia, noite e dia com essa coisa passando pela cabeça. Como sou muito calmo, eu comia – mesmo quando acordava durante a noite com essa tentação, acordava um pouco e adormecia de novo – bebia, dormia, trabalhava, estudava, conversava, levava a vida inteiramente normal. Mas era um verdadeiro inferno em vida61. Uma vez eu ouvi um jesuíta, no tempo em que havia jesuítas, falar da dor do momento da morte, em que a pessoa como que se rasga, e a alma e o corpo se separam, uma coisa que nunca se poderá ter ideia do que deve ser. Tinha uns 12 ou 13 anos quando ouvi isto, e nunca mais me saiu da cabeça. Tremendo! Muito pior do que isto é sentir a Igreja sair de dentro da gente. Apagar-se dentro dele a Igreja Católica Apostólica Romana, é de ficar louco varrido, é tudo! Não tem palavras. Porque, conosco, a pior desgraça que aconteça, uma coisa é verdadeira e permanece: somos católicos. Se soubessem o que eu sofri com isso... Naquele tempo havia mendigos na rua e a gente os via na rua, e pensava: “Se eu pudesse ser esse homem e me sentar agora aqui, todo coberto de chagas, pedindo esmola, mas tendo a certeza que sou católico, iria passar uma tarde de festa no meio das minhas feridas. Mas acho que não sou mais católico”. Era uma coisa de louco!62

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De tal maneira me senti perdido, que só não me matei porque era pecado mortal, do contrário eu teria dito: “Minha vida não tem caminho! Vou liquidar com minha vida!”63 Lembro-me de que certa vez, descendo de trem para ver minha mãe em Santos, o trem parou numa das estaçõezinhas, e eu fiquei andando de um lado para outro, distanciando-me completamente do grosso dos passageiros. Estava na ponta da estação pensando com os meus botões: “Isso é um sofrimento tão grande, que nunca pensei que um homem pudesse ter tal sofrimento na vida, o de ver-se violentamente jogado contra si próprio e dilacerado dessa maneira. Se eu tivesse mergulhado vivo no inferno, acho que dessa maneira seria o sofrimento que estou sofrendo. Enfim, há de ser o que Deus quiser”. Nesse período rezei tanto, que cheguei a ficar com calos nos joelhos64.

* Isto caminhou assim até que, certo dia, fomos a uma parte da Faculdade de Direito que ficava no andar de cima, e que vivia fechada. Éramos um grupo de estudantes e eu disse para eles: “Vamos ver se nós entramos”. Pusemos a mão na porta e ela não estava fechada à chave. Eram salões solenes, onde se davam as formaturas. Eu me formei depois nesse salão. Achei o salão com móveis muito bonitos, interessantes. Encontramos outra porta. Meti a mão nela e dei com o altar-mor da Igreja de São Francisco. Os dois prédios – a Faculdade e a igreja são vizinhas – tinham sido um convento franciscano. O fato é que eu, abrindo a porta, dei com a missa que estava sendo celebrada embaixo. No momento em que abri, o padre estava oferecendo a Hóstia e depois ofereceu o Cálice. E eu me tomei de uma felicidade com aquilo, como não pensei ser possível alguém ter nesta terra! Tive uma consolação de uns minutos, mas intensíssima! Nossa Senhora pode dar uma consolação no meio da tormenta. E Ela me ajudou a atravessar mais um pouco o que havia dessa provação65.

* Nessa mesma época, li um livro que encontrei numa livraria católica qualquer, chamado “Fráguas de amor”. Faça-se ideia do nome do livro! 63 Êremo JG 27/10/75 64 SD 5/5/73 65 Chá SRM 20/12/87 50

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Mas eu estava pouco familiarizado com esse tipo de literatura, era novato em matéria de literatura católica; o meu pórtico na literatura católica foram as encíclicas de Leão XIII, que devorei dois volumes inteiros! E as achei admiráveis! “Fráguas de amor” era uma conversa imaginária de Nosso Senhor com uma alma que se achava insegura e provada. E esse livro produziu-me torrentes de consolação, de tranquilidade, de bem-estar, de alegria, mas que sentia que não eram naturais. E durante esse tempo de leitura, que equivaleu talvez a uns cinco dias, pouco mais ou pouco menos, as coisas andaram como se aquele problema tivesse acabado completamente, e como se Nosso Senhor tivesse passado a mão na minha alma – isso é comparação, não foi o que se deu – e tivesse dito: “Meu filho, isto tudo são sombras, são quimeras – (não tentações, mas quimeras, sombras) – Eu quero que você me ame, desejo muito.” Li várias vezes esse livro; mas várias vezes. E pensei: “Vou procurar o autor desse livro”, que era um capuchinho da igreja da Imaculada Conceição, que depois, por várias razões, não pude procurar. Pouco depois isso passou, e a tentação voltou tal qual era antes66. E continuou aquela sarabanda, mais ou menos durante um mês. Mas aí ouvi falar de um padre que tinha fama de santo, aqui em São Paulo. E pensei: “Quem sabe eu indo me confessar com esse padre, que tem fama de santo, esse padre me explica essa coisa direito como é”. Era um padre chamado Giovanini, do Bom Retiro. Não tive nada da impressão de santo, mas naquela ocasião era a fama em que ele era tido. Criei coragem e fui lá. Havia uma fileira grande de homens, mulheres, ele era um confessor procuradíssimo na igreja de Nossa Senhora Auxiliadora, do Bom Retiro. Era um sábado, e eu na fileira também, esperando minha vez e pensando: “Como é que vou confessar? Como vou explicar isso para esse padre? O que esse padre vai pensar.” Quando, de repente, vejo a mão do padre passar pelo meio da cortina do confessionário e me chamar com um gesto. Coisa que nunca tinha acontecido em minha vida, e nunca vi que acontecesse depois. Fui, aproximei-me dele e, logo depois que o penitente anterior saiu, ele fez um sinal para eu me ajoelhar no confessionário. Fiquei muito espantado com aquilo, mas me ajoelhei. Notem que o padre não me conhecia. Eu era novíssimo no movimento católico, talvez estivesse apenas há uns 5 ou 6 meses, talvez um ano, nessa

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ocasião. Era perfeitamente desconhecido até então. Ajoelhei-me e disse: “Padre, dá-se isto”67. Quando comecei a desfiar a minha história, ele recebeu de um modo autoritário e seco, e me disse: “Tire isso da cabeça, isso vem do demônio!” Mas disse de um certo modo exorcístico, eu senti que aquilo saiu68. Ele: “Isso, o senhor entendeu mal, ou esses confessores não lhe explicaram bem. O senhor pode estar tranquilo: o senhor tem fé católica apostólica romana íntegra. Até pelo contrário, essas tentações que o senhor teve foram uma recompensa da Providência pelo sacrifício enorme que o senhor acaba de fazer, porque, passando por essa saraivada, rezou mais do que rezou em toda a sua vida anterior. E Nossa Senhora assim o aproximou d’Ela. Aproximou pela prova do fogo, e não pelo sorriso, mas que importa ao senhor? Terminou mais próximo d’Ela. O senhor saia tranquilo, porque o senhor está inteiramente em paz com a sua consciência”69. Eu disse para mim mesmo: “Aqui está visto. Nossa Senhora deu ao demônio a licença para me tentar, ele tentou e agora vai embora. Ele mostrou sua pata, e agora vai embora para dentro dos tormentos eternos”. Era uma questão criteriológica. Um padre, um confessor, tomou mal a questão e respondeu de modo errado. Pan! Caiu o mundo. E o homem não era mau confessor70. Nesse período havia passado seis meses sem comungar, porque não confessava. E não confessava porque tinha medo de que um outro padre me dissesse outro disparate qualquer. E tinha medo de que, na Congregação Mariana, percebessem que eu não comungava, e fosse expulso. Não queria ser expulso da Congregação por nada. De maneira que era outro pavor em que eu vivia. Os senhores podem imaginar minha alegria comungando no domingo seguinte, feliz, na Congregação Mariana71. Tinha uma nostalgia sem nome da comunhão. E meu espírito eucarístico, minha fome da Sagrada Eucaristia se desenvolveu enormemente nesse período. Porque, não podendo comungar, ficava pensando sobre a felicidade daqueles que comungavam. Ficava, entre aspas, invejando aqueles que tinham a felicidade de comungar e transido de vontade de fazê-lo. Aí a minha piedade eucarística tomou corpo.

* 67 SD 5/5/73 68 Almoço 1/9/84 69 SD 5/5/73 70 Almoço 1/9/84 71 SD 5/5/73 52

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Lá por 1932, tive uma espécie de longa gripe ou infeção que me deixou mais ou menos uns dois meses em casa, sem poder ir à igreja comungar. Então consegui do vigário, nos primeiros dias, que ele fosse levar a comunhão em casa. Mas ao cabo de um tempo, ele me avisou que era contrário às boas normas estar sempre levando o Santíssimo Sacramento para alguém que não estivesse em risco de vida. Lembro-me da saudade que tive de poder escapar e ir comungar. E com que alegria! Tinha muito mais saudades de poder comungar do que de retomar a minha saúde normal72. Graças a Deus, aquela prova passou completamente. E sucedeu a ela um período de suavidade e de consolação espiritual enormes, em que várias vezes fiz o seguinte raciocínio: “Nunca imaginei que se pudesse ser tão feliz na vida como sou agora, depois de ter tido a sensação de que eu estava vivo no inferno” 73. Vivi então os dois anos mais felizes de minha vida, porque era uma alegria em cima da outra, graças, consolações, santificações, progredi muito74. Muito tempo depois, lendo um tratado de vida espiritual, vi isto: que essa sensação de sofrer tanto que a gente como que está vivo dentro do inferno é uma das provas mais duras da vida espiritual, mas que a Providência concede àqueles a quem Ela quer aproximar de Si75.

* Quando terminou a tentação e começou essa fase de alegrias, percebi que tinha deixado de ser “nhonhô”, e que todo o meu apego ao que a vida tem de delicioso tinha se transformado num gosto distante, numa coisa que a gente manobra como quer. Tinha renunciado àquilo e para minha vida isso não era mais nada: estava pronto a viver apenas para a causa de Nossa Senhora. Seis meses de tormenta tinham transformado o meu fundo de alma mais do que seis anos, ou talvez mais do que 10 anos, 20 anos de vida espiritual comum poderiam ter transformado. E depois era agraciado ainda com essa enorme série de alegrias, de felicidade, mas era uma coisa tal que às vezes pensava comigo mesmo: “Nunca imaginei que um homem pudesse sofrer tanto, e depois, nunca imaginei que um homem pudesse ser tão feliz na vida quanto eu sou!” 72 Chá ESB 19/11/80 73 SD 5/5/73 74 Êremo JG 27/10/75 75 SD 5/5/73 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 53


Uma vez confessando-me com um padre, eu disse a ele: “Mas, padre, que sentido tem isso?” O padre me deu essa resposta: “Há muito tempo que vem durando isso?” Eu disse: “Sim”. Ele respondeu: “Meu filho, se prepare, porque quando a noite é muito grande o dia ainda é maior; mas quando o dia é maior, a noite será maior ainda. Você irá pelos túneis e pelas luzes. Nunca julgue que a luz é definitiva. Sobretudo nunca julgue que é definitiva a noite. Vá vivendo que Nossa Senhora o acompanhará!”76

* Quando morava aqui na rua Itacolomi, fui tomar o ônibus na Avenida Angélica e vinha atravessando a rua. De repente, todo aquele problema renasceu na minha cabeça. Mas com uma voragem de um leão que me pula no pescoço! Fiquei muito surpreso, mas nem tive tempo de rezar, que aquilo passou e vi que era uma coisa que a Providência dispôs que fosse assim, para notar que era um assalto do demônio. E compreender quantos assaltos assim que o demônio dá, e que é mero demônio. A gente não deve tomar a sério77. Era o mesmo leitmotiv. E isto muitos anos depois, uns dez anos depois. Durou apenas o tempo necessário para eu ir do leito da rua para a calçada. E passou. Mas isso me ajudou a convencer-me de uma coisa de que tinha as minhas dúvidas: é que o Padre Giovanini tinha razão, dizendo que era coisa do inferno78. A provação de crer-se obrigado a abandonar, por obediência ao Papa, as convicções monárquicas e ter que aliar-se à República Uma outra das dentadas mais formidáveis que levei do demônio em minha vida foi a propósito da reversibilidade entre a condição de católico e a condição de monarquista. Havia um professor da Faculdade de Direito, tido como muito católico, que tinha atitudes inteiramente ridículas na linha do espírito relativista da chamada “democracia cristã”, e que era muito conhecido em casa porque ele fora sócio do meu avô no escritório de advocacia. 76 Êremo JG 27/10/75 77 Almoço 23/09/85 78 Almoço 1/9/84 54

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Ele tinha uma biblioteca com encadernações magníficas. E quando morreu, puseram à venda essa biblioteca. Fui lá ver – eu era moço ainda – e encontrei uma coleção de livros franceses escritos por um tal de Abbé Calippe79. O título era “L’attitude sociale des catholiques français du XIX siècle”80. E vinha ali a lista de todos os católicos franceses do século passado: De Maistre, Veuillot, Bonald e outros daquele tempo81. Nos meios católicos muito pacíficos da São Paulo daquele tempo (1928), eu era, e graças a Deus continuo a ser, dos mais avançados defensores da infalibilidade papal, dos privilégios do Papa, e da monarquia: era um monarquista enragé. Nas minhas arengas para os congregados marianos, eu insistia muito no ponto de que o católico deve obedecer sem a menor restrição a qualquer ordem do Papa, e sobretudo a qualquer doutrina do Papa, porque na doutrina, mais do que no governo, ele é assistido pela infalibilidade, é mestre da Igreja. Acontece que, um dia, fui ao barbeiro em frente à minha casa e levei o livro do Abbé Calippe para ler. Não tinha a menor ideia das polêmicas entre católicos. Comecei a ler e percebi que os católicos franceses – mas via-se que eram os católicos da Europa inteira – estavam numa divisão medonha entre republicanos e monarquistas. Os católicos republicanos eram uma espécie de democracia-cristã, e os católicos monarquistas eram reacionários82. E me chamou a atenção que o Papa – Leão XIII na época –, em vez de se pronunciar claramente a favor de um lado ou de outro, deixava correr a briga. E aí nasceu a minha primeira perplexidade: “Por que é que ele não interveio, por que não pôs os pingos nos ‘is’? Se eu fosse Papa, faria uma intervenção nessa briga, mas de fazer chiar, dando razão a quem tinha”. Fui lendo o livro e me esbarro no contrário83: Leão XIII dizendo que o católico pode ser republicano. Aquilo foi como um estouro em cima de mim: “Mas, como? Um católico pode ser republicano? Então, se esse católico tivesse vivido no tempo da Revolução Francesa, ele poderia ter sido favorável à Revolução Francesa? Isto me destrói a mim de alto a baixo”. 79 Jantar EANS 9/8/93 80 Abbé Charles Calippe (1869-1942), editora Bloud, Paris, 1911. Foi doutor em Teologia, professor de Escrituras no Grande Seminário de Amiens, membro do Comité des Ligues Sociales d’Acheteurs, e da Commission des semaines sociales. 81 Conversa ESB 25/6/82 82 Jantar EANS 9/8/93 83 Conversa ESB 25/6/82 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 55


Tudo isto me aconteceu no barbeiro. A navalha percorria a minha face e a tentação percorria a minha fronte. Era o renversement de toda uma parte de mim mesmo sobre a outra. Qual então o caminho da fidelidade? Tudo isso causou-me uma agitação horrorosa e uma tentação do demônio: “Está vendo? Veja quem é você e como você não vale nada84. Você não é católico, você é monarquista só. A religião católica é uma carapaça para você disfarçar o seu monarquismo85. Você fala em infalibilidade papal e deita a voz enquanto o Papa pensa como você. Você usa isto como instrumento para impor as suas ideias. Agora aí está ele ensinando o contrário do que você diz. Agora quero ver você republicano, ou então desistir da fé católica”. Era um beco sem saída, no sentido de ser colocado na seguinte opção: ou ficar republicano, ou deixar de ser católico86. Não podia ser atingido em ponto mais interno do que este. Era o próprio âmago de mim mesmo que era atingido nessa provação. Comecei então a sentir imediatamente os sinais característicos da tentação do demônio. Quer dizer, zoeira, confusão na cabeça, ideias se passando na minha mente a tropel pesado: “Olha lá! Como é isso?”87 Ao sair do barbeiro, a minha sensação era de ter engolido uma cobra. E me dizia: “Largar o Papa eu não largo. Dê no que der, meta-se a coisa onde se meter, eu não largo. Mas ficar republicano eu também não fico. Há de haver algum dado pelo qual a doutrina dele seja certa, mas a que abracei não colida com a dele. É impossível que haja uma contradição, porque vejo tão claro a respeito da monarquia, que não é possível que eu não tenha razão. Mas ele é ele, e se em última análise disser mesmo o que estou entendendo aqui, ele tem razão, quem vale é ele”88. Então eu me disse: “Bem, uma coisa é certa: nesse assunto o demônio está querendo agitar, e agitar para eu não resolver bem, porque ele só pode querer que eu resolva mal”89. E pensei: “Primeira coisa que preciso fazer é rezar, pedir a Nossa Senhora que me faça ver com calma, sem bagunças nem efervescências. Segunda: manter toda a tranquilidade e confiança em Nossa Senhora, conservando a certeza de que Ela me fará ver claro. Terceira: não pensar 84 Jantar EANS 9/8/93 85 SD 4/3/95 86 Jantar EANS 9/8/93 87 Conversa ESB 25/6/82 88 Jantar EANS 9/8/93 89 Conversa ESB 25/6/82 56

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nisto de momento, porque se começar a pensar eu tropeço. Vou me manter na paz de alma, resolvido a fazer aquilo que a graça me indicar ser o mais perfeito”90. Depois, com mais recuo, a resposta me foi surgindo. E corria mais ou menos na seguinte pista. Na religião dos fenícios as pessoas adoravam Baal. E o modo de adorá-lo era fazer com que as mulheres se prostituíssem, sacrificando a Baal a sua virgindade, e que as crianças fossem devoradas pelo fogo, sacrificando a vida. Minha reflexão: “A Igreja ensina que o modo de oferecer a virgindade a Deus é praticar a castidade perfeita. Se amanhã a Igreja viesse ensinar, por absurdo, que o verdadeiro modo é o dos fenícios, a obediência chegaria até lá? E se Ela passasse a recomendar o assassinato de crianças como na religião de Moloc, eu aprovaria isto, a minha obediência iria até lá?” O homem não deve seguir aquilo que é evidentemente absurdo. Nem pode aderir ao contrário dos princípios fundamentais do bom senso. Para que o homem adira à Igreja, é preciso que na mente humana haja uns tantos princípios de sanidade que o leve a concordar com Ela. Se não há um princípio prévio, anterior ao ato de Fé, e segundo o qual se dê a adesão à Fé, essa adesão nunca seria possível. É segundo esse princípio que se analisam os dados da Fé. E aqui não se trata de julgar como quem é juiz, mas em conferir. Levei uns dois ou três anos mastigando esse problema, sem conseguir resolvê-lo. Até que um dia cheguei à solução vendo que, na encíclica Pacendi Domini Gregis, o movimento modernista “Le Sillon” pretendia que a única forma de governo legítima fosse a república. E que São Pio X respondia: “Isso não é verdade, as três formas de governo são legítimas”. E pensei: “Está vendo aqui a história? Portanto, as três são legítimas. E o bom São Tomás, órgão de ouro para interpretar o pensamento da Igreja, se bem que não infalível ele próprio, ensina que a forma melhor é a monarquia. Está bem, agora confirmou-se o meu pensamento”91. Aí encontrei um verdadeiro alívio, porque percebi que entre as rochas passava a água límpida do rio verdadeiro. E tranquilizei-me completamente. E assim saí da provação que a moleza e a inabilidade do Abbé Calippe haviam aberto na minha alma. No livro “Nobreza e elites tradicionais análogas”, enunciei essa solução com todos os cuidados de documentação, inclusive de São Tomás de Aquino. E quis que o livro tivesse altas aprovações para que os seus 90 Conversa ESB 25/6/82 e Percurso 22/10/93 91 Conversa ESB 25/6/82 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 57


leitores vissem que isto não era um ponto de vista pessoal e exclusivo meu. Tenho certeza de que ele não vai ser desmentido nesse ponto. Já encontrei vários autores dizendo isto, a coisa é segura92. Talvez esta tenha sido a mais forte provação que tive. Mas Nossa Senhora me ajudou e encontrei o verdadeiro caminho. O demônio queria que eu, sob pretexto de fidelidade à Igreja, me tornasse republicano, para meu espírito ficar aberto para o progressismo. Isto uns 20 anos antes de aparecer a questão do progressismo, mas ele preparava essa emboscada com antecedência93. Foi mais um ato de obediência à Igreja, o qual adestrou-me muito a me haver em todas as dificuldades que tive com o clero progressista. E daí ter atravessado essas dificuldades com a calma com que um homem passa por um mar onde já conhece os escolhos, já sabe onde vai e joga. E foi nessa calma que lancei no “Em Defesa” um mundo de afirmações que eram de minha cabeça. Eu dizia: “Estou certo de que a Igreja não me desmentirá”94. DELIBERAÇÃO DE EMPENHAR-SE NA VIA DA SANTIDADE Benefícios da leitura dos “Exercícios Espirituais” de Santo Inácio comentados pelo Pe. Pinamonti Estava mais ou menos com 21 anos quando li os “Exercícios Espirituais”, comentados pelo padre Pinamonti95. Foi o zênite do meu entusiasmo pela lógica96, porque aquilo tem de modo rutilante todas as excelências da coerência. Graças a Nossa Senhora o meu espírito sempre teve propensão para a coerência. Tinha exasperação por me encontrar diante de um mundo que, precisamente por ser ainda menos péssimo do que o de hoje, era, entretanto, mais incoerente. Quer dizer, havia mais restos de bem convivendo porca e pacificamente com os começos pavorosos de mal, dentro de um bem-estar completo, como se essas coisas não fossem contraditórias. Eu odiava a incoerência, mas de um ódio pessoal! Não aos incoerentes, mas a incoerência que havia nos incoerentes. E, ao ver aquele monumento 92 Jantar EANS 9/8/93 93 Chá SRM 4/9/88 94 Conversa ESB 25/6/82 95 Chá SB 30/1/89 96 Chá SRM 14/9/92 58

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de limpidez, de coerência dos “Exercícios Espirituais”, tive a impressão de ar fresco, vento. Foi o que se deu comigo quando vi aquela coerência toda. Lembro-me de que fisicamente cheguei a me contorcer. E daí me ficou por toda a vida um acatamento profundíssimo a Santo Inácio de Loyola, que já tinha adquirido in radice no Colégio São Luís quando menino precisamente por causa das coisas da vida dele. Aquele episódio de mandar quebrar a perna para acertá-la, por exemplo, achei formidável!97 Eu gostava disso, era coerente. Está bom, dói, geme, pinta o caneco, não tem importância: se é isso que quero, hei de fazer aquilo que conduz ao que eu quero. Pronto, está acabado. Depois, algumas coisas do espírito de Santo Inácio reluziam em alguns jesuítas do tempo. Eu notava e pensava: “Isto é Santo Inácio. Isto é uma coisa estupenda.” Da leitura dos “Exercícios” me resultou, antes de tudo, uma paixão redobrada pela coerência. E em segundo lugar, uma grande devoção a Santo Inácio e a toda a obra da Contra-Reforma, que eu percebia que era um triunfo atlético sobrenatural da coerência contra a incoerência. E daí a preocupação de, durante toda a minha vida, tanto quanto estivesse nos meus limites, fazer com que a coerência fosse a minha principal arma98. Sou muito analista e gosto de analisar as coisas em todos os seus pormenores, e gosto de ver que eles estão bem alinhavados, e que não entram em contradição consigo mesmos99. Desde a manhã até a noite, faço o possível para dar para as pessoas o hábito da lógica, sendo eu mesmo muito coerente, explicando muito aos demais a razão de estarmos fazendo determinada coisa, dizendo o que eu acho, por que acho, o que é, por que não é. Faço tudo isso para dar às pessoas o senso, a fome e a sede da lógica. Naturalmente, procuro não ser aborrecido demais, repetindo sempre a mesma coisa, mas no fundo, em tudo o que faço e digo, eu estou empurrando para a lógica. Para combater a Revolução, quase que hipertrofio a minha insistência na lógica. Nas reuniões que faço, a todo momento estou indagando se 97 Santo Inácio de Loyola teve uma perna fraturada por uma bala de canhão na defesa de Pamplona contra os franceses (1521). Notando que os ossos quebrados começaram a soldar-se defeituosamente, e que isto o deixaria manco, prejudicando assim o seu prestígio mundano, ele ordenou que a perna fosse quebrada novamente para endireitá-la. E isto numa época em que não havia anestesia. 98 Chá SB 30/1/89 99 CSN 11/4/92 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 59


querem perguntar alguma coisa, se têm alguma objeção, abrindo o campo, quase que provocando o meu interlocutor a fabricar uma objeção. Porque é assim que nos entendemos, e é assim que somos um em Nosso Senhor e em Nossa Senhora100.

* Reconheço que, pelo favor de Nossa Senhora, a coerência está habitualmente em meu espírito, juntamente com um aspecto da coerência que não é a coerência no raciocínio, mas é a reversibilidade nas impressões: tal coisa é reversível na outra, tal outra na outra, tal coisa é análoga à outra e assim por diante. Mas essa reversibilidade é feita com muita precisão, com muita intransigência e muita exatidão101. A leitura da “História de uma alma” e a aspiração à santidade Depois da entrada na Congregação Mariana, houve um intervalo muito deleitável de dois ou três anos, em que o senso do sobrenatural começou a se formar em mim. Li muita coisa sobre vida espiritual, comecei a compreender o que era a vida espiritual e um pouquinho o que era a graça; comecei a entender melhor certas coisas que se passavam em mim e me dei conta de que eram movimentos comuns da graça. Daí vinha alguma coisa que me erguia muito acima da meta da vida deleitável e sem pecado que tinha antes. O efeito maior foi a compreensão de que a vida espiritual e o que ela traz consigo valem incomparavelmente mais nesta vida terrena do que as delectabilidades da vida sem pecado. E isto se deveu sobretudo à leitura da “História de uma Alma”, de Santa Teresinha do Menino Jesus. Como descobri esse livro? Mais ou menos quando a tentação contra a fé de que já falei estava no auge. Então eu comecei a rondar as estantes na minha casa, à procura de um bom livro para ler. E me lembrei do escritório de meu avô, o qual tinha morrido e vivia fechado. Foi lá que encontrei esse livro de Santa Teresinha, que ainda não estava canonizada. Folheei e achei a cara dela muito simpática. Então eu disse: “Vou ler isto”.

100 Chá SRM 21/3/90 101 CSN 26/11/83 60

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Nessa leitura, fiquei entendendo o que era a santidade. Para mim, a santidade era como certas representações de um homem com um livro na mão e olhando para uma imagem. Eu não tinha vontade de adotar esse modelo para mim102. Essencialmente falando, tinha a noção errada de que o santo era uma raridade, que apenas a um ou outro homem Deus chamava para ser santo, mas não ao geral dos homens. E que, portanto, eu também não era chamado e não tinha razão nenhuma de ser santo. Primeira objeção que eu teria – se alguém me propusesse ser santo – é que nunca ninguém me propôs. A segunda objeção seria a seguinte: “De bom grado me dedico à causa da Igreja, cujo interesse capital é a Contra-Revolução, e sacrifico até a minha vida se for preciso. Mas não vejo que, para lutar eficazmente a favor da Contra-Revolução, seja preciso ser santo. Não há nexo entre uma coisa e outra. Uma luta eficaz supõe qualidades pessoais, dedicação, zelo, retidão de alma e um modo mais ou menos sofrido. Dessas qualidades pessoais tenho umas tantas, que posso pôr ao serviço da causa. Mas ser santo é uma outra questão. A favor da Contra-Revolução, estou disposto a fazer sacrifícios. Mas já está tão duro isto que, se eu conseguir um lugarzinho no céu, está muito bom. Agora, ainda mais ser santo... Olha aqui, não me cobre, porque não posso aguentar!” Seria a minha resposta103. Mas, lendo o livro “História de uma alma”, compreendi que a coisa era muito séria e muito bonita e cheia de sentidos. Que não era apenas um estado emocional, era um programa de vida, um ideal. A ideia de ser santo começou, a partir daí, a se apresentar aos meus olhos com outra fisionomia104. E nasceu assim em mim a ideia da santidade e da acessibilidade da santidade a todos que a desejam, e a deliberação, que eu entendia que devia ser firme, de atingir de fato a santidade, e de fazer todos os sacrifícios, aceitar tudo, aceitar até ser uma vítima expiatória se Nossa Senhora quisesse. Então, a aquisição da vida sobrenatural e do ideal de santidade alimentaram muito a minha inocência, em dois sentidos da palavra. Primeiro, porque impediram que a torrente de outras preocupações fizesse aquilo definhar. Em segundo lugar, porque percebi bem que aquelas considerações antigas ligadas à inocência tinham muita relação com a santidade105. 102 Chá SRM 24/04/88 103 Chá SRM 24/04/88 104 Chá SRM 24/04/88 105 MNF 28/3/91 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 61


* Lembro-me do dia em que, prestando atenção no que em latim se cantava no coro da igreja de Santa Cecília, tive uma espécie de entusiasmo por uma súplica que dizia: “Sanctifica me in veritate”, que significa: “Santificai-me por meio da verdade”. Quer dizer, sendo um homem veraz, que não mente, que não se engana a si mesmo, que não engana os outros, fazei com que, por esta forma, eu me santifique. Eu era muito moço ainda e não traduzi bem. Entendi assim: “Fazei de mim verdadeiramente um santo”. Tive uma espécie de sobressalto de entusiasmo em minha alma, e pedi imediatamente a Nosso Senhor, por meio de Nossa Senhora: “Santificai-me”, quer dizer, “fazei de mim verdadeiramente um santo”. Não estou dizendo que eu tenha conseguido isto. Estou dizendo que desejei isso com todo o ardor. E que explicitei esse desejo quando ouvi essa canção cantada pela Igreja. E isto tinha para mim um valor enorme. Propriamente, o santo que mais me atrai e para o qual eu mais me sinto chamado é Santo Inácio de Loyola106. Não é fácil, e nem sei se é praticável, fazer uma distinção entre o meu espírito e o espírito de Santo Inácio. Porque o que está no meu espírito foi aprendido com Santo Inácio. Um dos elementos componentes do meu espírito é, sem dúvida, o espírito de Santo Inácio107. Os frutos da leitura do livro “A alma de todo apostolado” Minha avó tinha o hábito de ficar deitada até tarde, porque não tinha saúde muito boa. Mas, deitada na cama – uma cama colonial bonita, serviria para peça de museu – , ela ficava governando a casa. Um dia passa por lá um irmão leigo pobre, esfarrapado, toca a campainha e oferece um livro para minha avó. Ele estava vendendo de porta em porta. Eu estava no quarto dela quando entrou a governanta da casa e lhe disse: – “Dona Gabriela, aqui está esse livro”. Ela olhou um pouquinho e mandou lerem o título do livro para ela. Ela não entendeu o que é que queria dizer o título do livro. Mas a governanta 106 Chá PS 3/12/93 107 EVP 3/4/88 62

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da casa, que era muito piedosa, mais até do que minha avó, estava com evidente pena do homem que o vendia. Também não entendia o que é que queria dizer o título do livro, mas queria que minha avó comprasse para entrar dinheiro no bolso do irmão leigo. Então disse: – Não, Dona Gabriela, leia, porque um homem tão bom não pode deixar de difundir livros bons. Este raciocínio de uma elementaridade primária tocou minha avó. Ela disse: – “Então compre”. A criada foi depressa, comprou o livro, e eu vi a criada meter o livro numa108 estante muito bem trabalhadinha, muito bonitinha, com livros bem encadernados. Quando passei para o ambiente católico das Congregações Marianas, Nossa Senhora me ajudou e fiz os progressos de que já falei. Lembro-me de que um dia pensei o seguinte109: “Depois do que se passou, tenho de ficar muito mais fervoroso do que fui, preciso dar um incremento à minha vida religiosa, muito maior do que tinha dado até aqui. O que devo fazer?” Lembrei-me: “Olhe, há aquele livro na estante de vovó. Gostei do nome do livro, e me recordo de que era escrito por um francês”. Uma coisa escrita por um francês exerce uma sedução especial sobre minha alma. O livro se chamava “L’âme de tout apostolat”110, de um padre que nunca ouvira falar em minha vida, chamado Dom Chautard111. Fui ao quarto da minha avó, tirei o livro lá de dentro, nem falei com ela nem com ninguém. Comecei a ler112 com uma atenção enorme113 e percebi que era um céu que se abria para mim114. Esse livro teve sobre mim um efeito muito grande. Por isso posso dizer que lucrei muito com a leitura do livro, porque ele coloca de frente esse problema: “Quem for orgulhoso, faz apostolado para sobressair. Este não faz o apostolado por amor de Deus e Deus não dá graça ao apóstolo que põe orgulho no seu apostolado. Pode desistir, não obterá a graça de Deus. Ele pode ser o homem mais inteligente, mais 108 Palavrinha 11/3/94 109 SD 24/9/83 110 Palavrinha 11/3/94 111 SD 24/9/83 – Dom Jean-Baptiste Chautard (1858-1935) foi um sacerdote e religioso da Abadia de Aiguebelle, da Ordem de Cister, e mais tarde Abade da Trapa de Sept-Fons (França). 112 Palavrinha 11/3/94 113 SD 24/9/83 114 Palavrinha 11/3/94 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 63


isso, mais aquilo do mundo, mas a graça não se difundirá por meio dele e o seu apostolado será inútil” 115. E então pensei: “Deixei uma enormidade de coisas a que eu era muito afeito, entreguei-me ao apostolado e não vejo muitas condições de ser fecundo. Porque vejo que o Brasil está rolando para baixo e as Congregações Marianas estão andando em nível plano, sem subir. O que mais é preciso fazer para ter o apostolado fecundo?” 116 Dom Chautard mostrava que a substância do apostolado é que o homem possua em si intensa e abundantemente a graça de Deus e a transmita aos outros. De maneira que o apostolado é fecundo quando o apóstolo tem muita participação na graça de Deus. O apostolado é estéril quando o apostolado tem uma pífia proporção de participação na graça de Deus. Não basta viver em estado de graça. A coisa é outra: é preciso tê-la de modo superabundante, para que essa superabundância jorre para outros. Isso é que é preciso e vem demonstrado com uma opulência de argumentos perfeita. E pus-me diante do problema: “Todas essas razões também valem para o apóstolo leigo; ou procuro santificar-me, ou sou um palhaço, e não conseguirei nada, porque não tenho o grau de fervor necessário. Tenho de aspirar à santidade e não a outra coisa117. Ou dou tudo, ou meu apostolado não alcançará a vitória da Contra-Revolução!” Já havia renunciado ao que me podia levar para o mal. Mas não bastava. A alternativa era essa: “Ou dá tudo, ou seu apostolado é um apostolado que não dá nada! E você será um bobo, pior do que um palhaço. Porque você largou tudo para entrar por esse caminho, e nesse caminho você não fez nada! Você quer esse papel de idiota? Se quiser, faça! Arrebente-se! Depois você tem face para carregar diante de Deus, para carregar diante de Nossa Senhora esse labéu: ‘Você poderia ter dado tudo e não deu’. Quem sabe o que o seu ‘dar tudo’ poderia trazer?” Dom Chautard deixa claro: Para que esse tudo renda muito na ordem da comunhão dos Santos, o homem não precisa ser muito inteligente, nem precisa ser muito capaz. Nem precisa ser grande em nenhum sentido. Ele precisa ter dado de si inteiramente! Essa é que é a questão. Então continuei a pensar: “Não adianta você estar fazendo discursos (percebia que eu tinha tais ou quais dotes de oratória). Não adianta você estar escrevendo artigos, não adianta nada se a graça não fecundar o que você disser” 118. 115 Almoço 10/5/93 116 Almoço 10/5/93 117 SD 15/04/89 118 Almoço 10/5/93 64

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“A alma de todo apostolado” foi para mim o tiro de misericórdia. Porque Dom Chautard punha em expressos termos o princípio de que o apostolado só será fecundo na medida em que eu seja santo. São Paulo diz: “É como um sino de bronze que toca”. Tocou, tocou, aquilo passou, não é como uma alma que converte o outro. E eu queria converter os outros. Eu disse: “Agora a coisa está no forno e não quero dedicar a minha vida senão ao apostolado; primeiro ponto. Segundo ponto: para isto, ou resolvo ser santo ou meu apostolado é inútil. Terceiro ponto: Logo, ou eu sou um palhaço, ou fico santo, não tem por onde escapar”. Vocês veem que não tinha por onde escapar119. O combate ao orgulho Evidentemente tive, como todo o mundo, muita luta contra o amorpróprio. Eu não tenho vergonha de dizer isto, porque é manifesto que fui concebido no pecado original e se não tiver vigilância contra o amor-próprio até o último instante de minha vida, eu caio nele. É como a lei da gravidade, não tem conversa. Se alguém disser que não precisa vigiar contra o amor-próprio, o senhor diga: “Esse já caiu”. Porque já é por amor-próprio que ele diz que não é preciso vigiar contra o amor-próprio120.

* A batalha do orgulho se apresentou da seguinte maneira. Percebia que Nossa Senhora me tinha dado determinados dotes naturais, por exemplo, de inteligência. Percebia que esses dotes me colocavam bem acima daqueles com quem eu tratava, e que no ambiente não haveria, praticamente, limitações para minha ambição. O orgulho se apresentava de um modo coleante, porque percebia que, a esses dotes naturais, a inocência acrescentava muita coisa, e que minha condição de católico acrescentava muita outra coisa que multiplicava minha inteligência pela inteligência. E eu prezava o enobrecimento que isto trazia121. Lembro-me de que sentia em mim pano para manga para coisas muito grandes, e tinha aspiração dessas coisas grandes. E a Fraülein Mathilde, no modo de tocar as coisas, e de falar, e a literatura alemã que ela punha 119 Chá SRM 24/04/88 120 RE 1/5/72 121 CSN 22/1/83 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 65


na minha mão, me levava a pensar que algum dia eu poderia ser um Held, um herói. A palavra held se reveste de um lumen e de uma tônica, de uma coisa que me encanta! E a ideia de que – eu não sabia bem por que – eu seria um dia um Held na força do termo, fez-me muito bem. E essa esperança ajudou a me tirar da moleza, que era em mim supina. Foi a esperança disso, da beleza, do fascínio disso, do desdém que sentia da minha própria moleza, que me ajudou. E tenho certeza de que era uma ação da graça. Mas em determinado momento vi que era preciso, tanto quanto possível, ser Held, mas sem pensar demais na batalha122.

* Prezava muito também a condição social a que eu pertencia. E sabia muito bem de que famílias eu era, sentia quanto isso me dignificava e quanto isto representava um valor que morava em mim e fazia um só comigo. Prezava muito isto. Em si, prezar essas coisas não é orgulho. Mas fica a um milímetro do orgulho, porque desperta um apego exagerado que já não é por amor de Deus, mas é por amor de si mesmo. Além do mais, desperta com facilidade uma vontade de desprezar os outros, de tirar partido dos outros, de abusar porque eles são menos. E uma vontade de fazer da vida apenas um corre-corre atrás das primeiras posições. E aqui está o orgulho. O comprazimento que a pessoa tem em si por sentir essas coisas é um comprazimento egoístico e que, como disse, já não toca ao amor de Deus. E eu emergia completamente dentro disso, sem saber bem fazer a distinção. Depois, como estava posto na batalha contra a sensualidade, tinha a ideia de que, vencida essa batalha, todo o resto nem era pecado, não tinha importância. Foi só depois de ter vencido a batalha da sensualidade que se apresentou para mim a batalha do orgulho. E comecei a ficar orgulhoso, sobretudo com uma vontade enorme de sucesso enquanto orador. Ser orador era tido como uma coisa extraordinária, muito mais do que um speaker de rádio hoje, não tem comparação. E uma coisa correlata da oratória era o indivíduo ser beau causeur, saber ter uma prosa brilhante. E daí o apego e a fácil tendência a colocar isto no centro de tudo. Por isso repito que lucrei muito com a leitura do livro de Dom Chautard “A alma de todo apostolado”, ao qual já me referi. 122 CSN 8/7/89 66

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Lembro-me de ler aquilo e refletir: “É isso: ou renuncio a qualquer resquício de orgulho, ou serei um palhaço, porque, se quero fazer apostolado, estou vendo que com orgulho não conseguirei nada. Eu, portanto, rasparei esse orgulho completamente”. E então empreendi uma luta contra o orgulho, e numa época bem oportuna, porque pouco depois de eu ter conseguido arvorar a bandeira da humildade, fui eleito deputado. Aí a batalha contra o orgulho se multiplicou por si mesma, porque a tendência a orgulhar-se teria sido debandada123.

* Justamente por querer levar a sério a minha vida espiritual, eu me sentia proibido de aproveitar qualquer realce. Por exemplo, quando a Constituição foi promulgada, no próprio dia da promulgação recebi telegramas de todos os bispos paulistas, naturalmente de Dom Duarte também, felicitando-me pela minha atuação. Quando chegou a segunda campanha eleitoral, pensei em imprimir essas felicitações para distribuir. Mas disse não, pensando: “Isso é pouco virtuoso; se quero ser humilde, não devo procurar publicar elogios a mim. O que devo fazer é realçar as minhas ideias para que os homens idealistas verdadeiros me sigam. Vou aqui aplicar Dom Chautard, ‘A alma de todo apostolado’ e fazer um ato de virtude” 124.

* Neste sentido, a tentação maior de orgulho que tive foi no momento de assinar a Constituição. A tropa apresentava armas aos deputados que chegavam de automóvel. E o passar por uma tropa apresentando armas, tive uma tentação de me inebriar com aquilo. Parecia-me a última palavra da glória um rapaz de 24 anos passar pela rua da Assembleia, de longa extensão, e quando entra meu automóvel, ouço um coronel que grita: “Apresentar armas!” Plam, plam. Eu ia de táxi – porque eu não tinha automóvel particular –, ia de fraque, cartola, distintivo de congregado mariano no fraque. E meu chauffeur rolando devagarzinho – ele estava inebriado com aquilo – rolando devagarzinho por aquela tropa toda em continência. E eu : “Ahhh!”, tenho que fazer um esforço enorme para me conter. Graças a Nossa Senhora me contive e não dei nenhum consentimento. 123 CSN 22/1/83 124 Almoço 10/5/93 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 67


Mas, se não tivesse dado atenção a D. Chautard, estaria pronto para todas as concessões ao orgulho125. Um novo e elevado patamar após a leitura do “Tratado da Verdadeira Devoção” e a consagração a Nossa Senhora como escravo de amor Depois daquela graça que recebi de Nossa Senhora Auxiliadora, eu pensava às vezes o seguinte: – É curioso, mas de tal maneira me arranjo bem com Nossa Senhora, que apesar de achar do Divino Filho d’Ela o que eu acho, no Céu quero pertencer à corte d’Ela. Ela deve ser como uma rainha-mãe, que tem corte separada da corte do filho, e que lhe presta honras. Nossa Senhora deve ser Rainha-Mãe no Céu. E embora seja mais glorioso, mais bonito ser da corte do Rei, não sei o que há em mim que, indo para o Céu, quero ser da corte da Rainha-Mãe. E ainda que seja menos, eu quero esse menos. Mas eu me quero junto d’Ela. É como desejo: desejo isto assim”. Foi lendo o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” de São Luís Grignion de Montfort que compreendi que essa formulação não era boa. Que o suco, a parte mais gloriosa no Céu é aquela que mais perto está de Nosso Senhor. E essa parte é que tem mais culto a Ela. Ela não é, portanto, um anteparo, mas Ela é uma lente de aumento pelo qual vemos melhor a Deus. E quanto mais perto da lente de aumento eu esteja, tanto mais estou perto do que espero ver. Então, era Ela. Mas isto só entendi depois de ter lido, com 22 anos, o “Tratado” de São Luís Grignion de Montfort. Antes disso não tinha chegado a compreender bem a coisa como ela é126.

* Uma circunstância muito banal, pequena, esteve na origem da minha leitura do “Tratado”127. Era moço ainda128 e muito devoto, como ainda sou, de Santa Teresinha do Menino Jesus. Vendo que todo o mundo obtinha graças por intermédio

125 CSN 33/01/83 126 CSN 3/3/90 127 SD 15/4/89 128 SD 4/4/92 68

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dela, resolvi129 fazer a ela uma novena e uma promessa (não me lembro mais o que prometi)130 pedindo-lhe duas graças de que sentia muita necessidade. Uma era a de que me fizesse encontrar um bom livro que valesse a pena ler, um desses livros de marcar uma vida. De outro lado, pedi-lhe ganhar na loteria. Não queria ter preocupações econômicas para poder dedicar-me ao apostolado o tempo inteiro131. Santa Teresinha atendeu à primeira parte do meu pedido, mas não atendeu à segunda. Não ganhei na loteria e tive que trabalhar duramente para manter-me, com prejuízo para o meu apostolado132. Mas o livro, pouco depois o encontrei, numa ida à livraria dos padres do Coração de Maria. Era de um autor de quem nunca tinha ouvido falar: “Bienheureux L. M. Grignion de Montfort”. – “Um bem-aventurado”, pensei eu, “mas o que dirá esse livro ‘Traité de la Vraie Dévotion à la Sainte Vierge’? Quem sabe se não é o livro suscitado por Santa Teresinha?”133. Tinha muita dificuldade em ajustar-me a certo tipo de livros de piedade que havia naquele tempo, muito açucarados: “Ó cândida santinha, dizei-me, oh!”. Coisas assim não iam comigo. Queria um livro sério, substancioso, em que o sentimento tivesse sua parte, mas a parte secundária que o sentimento deve ter nas coisas. A parte primária é a Fé iluminando a razão. Impliquei um tanto com o nome “Grignion”: “Não tem sentido esse Grignion. O que é esse Grignion? Nome esquisito, eu nunca vi alguém chamar Grignion”134. Pus o livro de lado e fui examinar outros, para ver se mais algum me interessava. E apareceu um, de que também não tinha ouvido falar. Na incerteza da escolha, folheei um pouco o “Tratado” e achei-o muito bem impresso, muito atraente, muito agradável de ler. E o outro livro, um calhamaço feio e indigesto. Por esta simples razão – não percebia que Santa Teresinha estava guiando o meu braço – optei pelo “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” 135. O livro tinha para mim uma pequena atração complementar: era escrito em francês136. 129 SD 15/4/89 130 SD 4/4/92 131 SD 15/4/89 132 SD 4/4/92 133 SD 15/4/89 134 Almoço EANS 3/6/93 135 MNF 2/9/88 136 SD 15/4/89 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 69


Lembro-me de que vim para casa e não o li no dia em que o comprei. No dia seguinte de manhã abri o livro137, não com muita esperança, porque não estava tão certo de que aquilo fosse obtido por minha oração a Santa Teresinha. Eu o abri de qualquer lado e comecei a lê-lo. Depois de ler uma ou duas páginas, pensei: “Não! Isto aqui é outra coisa! Este livro tem que ser lido desde o começo, porque é de alto quilate. É absolutamente o que queria”138. E vi no “Tratado” um livro racional e impregnado de sobrenatural, porque todo ele baseado na Fé: “Este é um livro que quero ler”. Fui lendo o livro cada vez mais maravilhado, mais encantado139, sem perder uma letra. Via que era incomparável e que não havia coisa igual140 e que São Luís Grignion era animado de um desejo de levar o conhecimento, a afirmação e a proclamação de Nossa Senhora até o último ponto que pudesse ser141.

* Em certo momento da leitura, começo a ver que o livro tem umas labaredas a respeito de um assunto que nunca tinha ouvido ninguém tratar, e que a mim me interessava no mais alto grau. Primeiro, falava do Reino de Maria. Percebi logo que esse Reino de Maria era a meta para onde a minha alma voava. Eu inteiro voava para essa meta, de um lado. Depois, o livro falava a respeito de como as almas seriam no Reino de Maria: auge da santidade nesse reino. Fiquei encantadíssimo! Desenvolvia ainda a necessidade da Sagrada Escravidão a Nossa Senhora, para agradar-lhe e para dar a Ela tudo quanto pode ser dado142. Antes de conhecer o “Tratado”, já havia rezado vários atos de consagração a Ela. Encontrando-os ao alcance de minha mão, rezava-os na boa intenção de minha alma, mas tinha a impressão de não estar fazendo coisa muito relevante. Ficava-me um fundo subconsciente de que devia haver alguma coisa muito melhor com a qual não tinha atinado ainda143. 137 Almoço EANS 3/6/93 138 Conversa ESB 15/5/81 139 SD 15/4/89 140 Conversa ESB 15/5/81 141 MNF 2/9/88 142 SD 15/4/89 143 Conversa ESB 15/5/81 70

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Lembro-me de que a palavra144 “escravo” chocou-me muito. Nunca pensei em minha vida em ser escravo. Escravo da Virgem Santíssima, é verdade, mas não poderia haver uma palavra mais adoçada, mais macia do que esta terrível palavra, pétrea e angulosa: escravo? De outro lado, a ideia de uma dependência inteira a Nossa Senhora me parecia a melhor coisa do mundo. Depender inteiramente de Nossa Senhora, não fazer senão o que Ela quer, pertencer a Ela como um objeto pertence a seu dono, não conheço nada de melhor145. Para Nossa Senhora, o que Ela quiser! É uma honra para mim! Sendo com Ela, eu aceito qualquer coisa! Depois, quem propugnava isso era esse grande santo, essa alma de fogo, esse espírito lógico, esse homem inteligentíssimo! Sobretudo um homem de uma vontade, de uma labareda de energia como não tinha visto em ninguém! Pensei: “Eu vou sobretudo com Nossa Senhora, mas também com ele. Vou até onde eles forem, está liquidado o caso”. Terminado o livro, não tive um minuto de vacilação: “Vou me consagrar como escravo de Nossa Senhora”. Abri então o livro na parte das orações. São 33 dias, ou seja, 12 dias mais três semanas de longa preparação. Nos primeiros 12 dias deve-se rezar o Veni Creator Spiritus e o Ave Maris Stella. No final das três semanas vem o Ato de Consagração. Teria sido bonito que esse ato de Consagração eu o fizesse depois de ter comungado e, com Nosso Senhor Jesus Cristo no meu peito, ir para junto de uma imagem de Nossa Senhora, recitar a fórmula e consagrar-me. Se alguém tivesse me proposto isto, certamente o teria feito. Mas não foi o que fiz, sempre por medo de imaginar coisas muito grandiosas feitas por mim. Se imaginasse: “Vou fazer uma grande consagração”, haveria o perigo de, na hora, acabar achando grande a mim e não a consagração. Por fim, exatamente no dia em que essa preparação foi completada146, eu simplesmente comunguei, voltei para casa e tomei meu café como todos os dias. Em seguida li o jornal como era de minha rotina, por julgar uma obrigação manter-me a par da marcha da Revolução e da Contra-Revolução. Depois fui para o meu quarto, fiz meia hora de meditação sobre essa 144 SD 15/4/89 145 Chá EPS 4/11/94 146 SD 15/4/89 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 71


consagração147, ajoelhei-me no meu escritório, rezei mais uma vez o Veni Creator e o Ave Maris Stella. Por fim, fiz o Ato de Consagração, tornando-me escravo de Nossa Senhora148. Essa consagração foi muito singela, como uma oração quotidiana e sem nenhuma consolação espiritual. Mas até hoje não cesso de agradecer a Nossa Senhora por tê-la feito. Falando aqui, estou agradecendo esse passo que, por chamado d’Ela, eu dei149. Daí tomei a deliberação de nunca fazer a Nosso Senhor Jesus Cristo uma oração ou qualquer ato que não fosse por intermédio d’Ela. Permanece até hoje esta resolução. Todas as comunhões que faço, são por meio d’Ela150. Também tomei a resolução de fazer o possível para que o maior número daqueles que me seguissem fizessem essa consagração151.

* O “Tratado” é eruditíssimo, é altíssimo, é um trabalho de teologia de primeiríssima água, lógico, dentro de um pulchrum que não tem palavras. Mas a verdade é que, se comparo a devoção anterior que tinha a Nossa Senhora com a devoção que veio depois de ler o “Tratado”, posso dizer que o “Tratado” me ensinou um mundo de coisas que me maravilharam, mas não me trouxe nenhuma surpresa, pois estava em evidente consonância com o que já conhecia. Naquela graça que recebi diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, o que entrevi de Nossa Senhora era tão leve, tão diáfano, tão elevado, tão materno, tão perfeito, tão puro, tão indescritível, que não me espantei que n’Ela houvesse aquilo que era descrito no “Tratado”. Estava lá o que procurava e com uma plenitude inimaginada. Mas não tive surpresa. Portanto, o “Tratado” foi para mim apenas o desdobramento do que já conhecia152.

147 SD 25/2/84 148 SD 15/4/89 149 SD 25/2/84 150 SD 15/4/89 151 SD 25/2/84 152 Chá PS 12/3/85 72

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Firma-se o ideal de dedicação integral pela opção do celibato – Choque com um veio de mediocridade no seio das Congregações Marianas Quando cheguei à idade de me casar, Nossa Senhora me deu a vocação para o celibato. Coisa na qual não pensava nem de longe, porque nem me passava pela cabeça que um homem não-padre pudesse não ser casado153. Veio-me a ideia de guardar o celibato a vida inteira, em grande parte porque Dom Chautard mostra que o apostolado do homem que guarda o celibato é muito mais fecundo do que o apostolado do homem casado154.

* Julgava que daí para diante estava ao alcance de minha mão fundar com os mais fervorosos, e com os melhores daqueles que eu conhecesse, com aqueles que tivessem uma mentalidade mais aberta para essas preocupações, mais abertas para esses ideais, fundar então aquilo que viria a ser a ordem de cavalaria com a qual sonhava! Realmente comecei a trabalhar nesse sentido, e as desilusões foram aparecendo. Primeira desilusão foi encontrar, dentro do próprio movimento mariano, gente que não queria aquilo, que não queria ver que a consequência lógica de todos os princípios que eles admitiam era essa tomada de posição em relação ao mundo, e a ideia de reforma do mundo! Pelo contrário, contentavam-se em levar uma vidinha pessoal direitinha, não pecar. Isso é imensamente respeitável, é o pressuposto, é o ponto de partida de tudo o mais. Mas as coisas não podem ficar no seu ponto de partida. Elas têm que tomar um outro rumo, elas têm que se desenvolver. E via que essa gente não queria ir além do ponto de partida155.

* Segundo a escola que tinha em vista, os mais fervorosos deveriam implantar e dar significado a um movimento Mariano para o qual eles consagrassem a sua vida inteira, não pensando em negócios, nem casamento, nem nada. 153 Almoço EANS 22/11/90 154 Palavrinha 11/3/94 155 Chá EPS 6/2/89 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 73


Eles deveriam querer a transformação da atual sociedade, considerada como caminhando para um precipício, mediante a implantação do Reino de Maria, que era a posição de segurança contra esse precipício. Por isto mesmo, eles não deveriam dar nenhuma parte ao prazer na vida. Deviam viver para o dever e mais nada. Mas encontrei uma escola diferente, muito credenciada, segundo a qual a Congregação Mariana seria feita exclusivamente para que cada congregado salvasse a sua alma. Então, ele deve ser casto, não deve frequentar mulheres perdidas, não pode nem de longe praticar ato solitário. Mas ele deve ser casto com o olhar posto para o casamento, porque como o casamento é o estado comum das pessoas, o normal é que os congregados marianos todos se casem. E que vivam pensando no futuro casamento. E para encontrarem esposas católicas com que fundar um lar católico, é preciso organizar o baile católico, onde os congregados marianos conhecessem as Filhas de Maria. E pudesse haver uma oportunidade para as Filhas de Maria e os congregados marianos se casarem. Com o casamento do congregado mariano com a Filha de Maria, terminava a vida mariana. A Filha de Maria casa-se, sai do movimento Mariano porque tem que cuidar de sua família. O congregado vai à Congregação Mariana aos domingos com uma fita azul no pescoço e canta, às vezes levando o filhinho na mão: é muito comovedor. Comunga, é amigo do vigário. Reza o rosário diariamente. Mas, o essencial de sua vida é a família. Então, o congregado perfeito deve ter como teto formar uma família numerosa, ter muitos filhos e filhas que vão ser, por sua vez, congregados e Filhas de Maria. E então repetem a vida dos pais. Deve ganhar algum dinheiro e ser amigo do vigário. Esse é o grande fim. É verdade que o mundo está ruindo para o abismo? – Não é. A prova é que há tanto congregado mariano e tanta Filha de Maria. Pelo contrário, o mundo atual pode ficar tal qual é, indefinidamente, sem perigo de crise. E não há nada para salvar. Não há problemas sociais para cogitar. O comunismo é um bicho-papão que existe lá na Rússia, não vamos perder tempo em pensar nele. A Rússia está lá longe – não havia aviação internacional naquele tempo – e isso fica para nunca. Não existe perigo comunista, é uma fantasia. É um estudo, é uma curiosidade. Os que querem estudar, estudam, e está acabado. E assim o ambiente de heroísmo desaparecia das Congregações Marianas, substituído pelo nhonhozismo. Por causa disso também, fazia furor em algumas Congregações Marianas o congregado que tivesse automóvel – era coisa relativamente rara naquele tempo – e que à noite fizesse correrias loucas de automóvel pelo bairro, para visitar, passar em frente às casas das várias moças com que ele e os companheiros tinham namoro. Iam, então, 74

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com o escapamento aberto, na São Paulo calma e silenciosa daquele tempo. O escapamento era ouvido de longe, e a moça se punha na janela como que por acaso. Eles passavam também como que por acaso, diziam-se adeus, se olhavam e isso dava depois num telefonema. O telefonema dava em encontro – mas encontro na casa dos pais, uma coisa honesta, nunca perda da virgindade, nem nada disso – e depois dava em casamento. E essa máquina de perpetuação mariana era – ao ver deles – o ideal156. Dizia de mim para comigo: “Isto é bom, mas se for para produzir só isso, não me interesso. Os problemas da Igreja pedem muito mais, pedem leigos que se consagrem à Igreja completamente, para, sob a direção da Hierarquia, travarem a batalha do laicato católico. Portanto muitos leigos que adotem o celibato voluntário e que entrem até o pescoço dentro da luta da Contra-Revolução” 157. Percebi que contra essa corrente não valia a pena lutar em termos explícitos, porque daria uma guerra de morte. E que a maior parte dos espíritos não estava preparada para as argumentações que eu teria que dar. Então, era preciso fazer o quê? A graça chamava muitos congregados para esse ideal de doação completa. E era preciso criar um clima de heroísmo, um clima de entusiasmo por essa doação total. E estimular de tal maneira, por esta forma, os melhores, que os que advogavam a posição contrária ficassem contrafeitos e reduzidos ao silêncio. De maneira que eles não atacavam a posição dos mais fervorosos, mas também não eram atacados por estes. O congregado que se quisesse casar, a gente ia à festa de casamento, dava “muito bem!”, era recebido com normalidade. Mas ele se apagava. E o élan do heroísmo completo ia para frente nos outros que queriam se dedicar. A tendência boa de tal maneira prevaleceu, que a grande maioria dos congregados marianos era solteira. De outro lado, apesar disso, eles se multiplicaram tanto, que nos últimos anos de Congregação Mariana, ficou bonito ser congregado mariano. E havia fábricas que fabricavam o distintivo mariano e vendiam nas lojas para qualquer rapaz que quisesse, por ser bom negócio, para muito rapaz que queria ser visto com simpatia no exercício de sua profissão, aparecer com o distintivo mariano158.

156 Almoço ESB 5/8/83 157 SD 18/8/73 158 Almoço ESB 5/8/83 1ª PARTE – A TRAVESSIA DO DESERTO 75


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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


2ª PARTE

NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO Um cerco e uma tragédia aos 24 anos Começaram, porém, os desentendimentos no Movimento Católico. Também percebi que não seria reeleito deputado. Apresentei-me para as eleições, mas já não tinha o apoio do Arcebispo, e fui derrotado por uma pequena margem de votos. Concomitantemente, minha família, que era uma família muito abastada, perdeu a fortuna, por causa de maus negócios de uns primos. A fortuna rolou, e tudo foi caindo até quase embaixo159. Vi o abismo da pobreza se abrir para mim, e da pobreza proletarizante. Porque a perspectiva não era ficar na condição de um burguês um pouco menos rico do que era. Era de morar em casa de nível proletário 160. O ponto central de minhas preocupações era minha mãe: como seria o futuro dela?161 Para mim seria sumamente doloroso ver minha mãe, habituada a outras coisas, ir viver numa casa operária. Sobretudo, muito vergonhoso: “Quem é esse filho que ela tem que não é capaz de ganhar o dinheiro suficiente para manter a sua mãe nas condições de seu nível social? É um inútil, um inválido. Ele sabe fazer discursos, sabe rezar, é parlapatão, mas não dá para mais nada”.

159 Palavrinha 30/8/83 – Dr. Plinio se refere, aqui, à perda do patrimônio da avó, um quinto do qual Dona Lucilia iria normalmente herdar. Concomitantemente, o pai de Dr. Plinio fez maus negócios e viu-se obrigado a advogar no interior. Nessa mesma época, Dr. Plinio recebeu a notícia de que a Liga Eleitoral Católica não continuaria as suas atividades, tornando muito improvável sua reeleição como deputado e, portanto, ele perderia seu salário de parlamentar. Para manter a si e aos seus genitores, Dr. Plinio começou a advogar, e conseguiu cátedras na Faculdade de Direito da Universidade de S. Paulo e nas Faculdades católicas Sedes Sapientiae e São Bento, que mais tarde foram incorporadas à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 160 Almoço EANS 8/11/90 161 SD 10/12/88 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 77


Concomitantemente, eu sentia que se ia fazendo um vazio em torno de mim, que me provava que não conseguiria cargo algum, não conseguiria absolutamente nada162.

* Notava que nos meios católicos não se criava uma hostilidade contra mim, mas nos mais altos escalões ia se acentuando esse vazio. Percebia perfeitamente que me isolavam, e que queriam o contrário do que eu desejava. Queria lutar e dedicar-me por eles, querendo que entrassem na luta comigo. E via que eles não queriam a luta. Pelo contrário, queriam ficar dentro de uma época histórica como era aquela, que não convidava ao excepcional, numa vida comum. Queriam caber na vidinha de todos os dias, e não na batalha, na cruzada e na luta heroica que eu queria empreender. Luta com aventuras, por certo, mas era vida!163

* Sob outro ponto de vista, o que me preocupava mais é que tinha tomado a resolução de consagrar toda a minha vida para o meu apostolado, para a fundação da nossa ordem de cavalaria. Mas, para fazer isto, os senhores compreendem que não podia dedicar muito tempo ao trabalho. Então, como encontrar um caminho para abrir diante de mim? Que problemas! Que coisas misteriosas essas! Ficava assim esfacelado diante dessas perspectivas, horas e horas e horas, noites a fio em seguida, sem saber que saída encontrar164. Além do mais, se deixasse de ser deputado e caísse na miséria, o prestígio que tinha no meio católico afundaria. Primeiro, porque teria que trabalhar de sol a sol em qualquer profissão, e não teria tempo para fazer apostolado. Por outro lado, o fato de ter perdido completamente a fortuna me rebaixava muito aos olhos de uma sociedade aristocrática e aos olhos do meio católico que tinha me conhecido com uma situação econômica abastada. De maneira que o fracasso de minha situação política traria o fracasso de minha situação econômica; e o fracasso de minha situação econômica

162 SD 28/1/89 163 SD 13/05/89 164 SD 14/9/91 78

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traria o fracasso de meu apostolado. Era um fracasso caindo em cima do outro165.

* Tinha então 25 ou 26 anos. E tudo o que parecia fazer uma estrada dava em zero. Dava no contrário e, para me tornar impossível o que eu queria, fazia-me voltar ao ponto de partida. Os senhores podem compreender o tormento de tudo isso. E ficava pensando: “Então é só isso? Tudo foi ilusão? E minha vida vai ser a de um “advogadete” qualquer, que vai ao Fórum, toma nota para fazer umas argumentações a favor do cliente, porque este brigou com outro... Fazer a defesa dos direitos do cliente...” Aí, o terror e a asfixia da ilusão: “Aquilo não foi senão um engano, um sonho, que se completaram com fatos maravilhosos. Mas, é um bluff! Resigne-se à vontade de Deus, que quer que você sofra esse bluff. Depois, aguente a sua vida como der, porque Deus quer assim. Ele tem ou não tem o direito de querer? Quem traça seu futuro: é Deus ou você? E se as coisas acontecem de outro modo e você não tem culpa, eu pergunto: tem ou não obrigação de aceitar, de se curvar e de ficar satisfeito?” Eu era escravo de Maria... Tinha de aceitar o meu futuro como ele se abria diante dos meus passos. Portanto, havia de ter resignação. Havia de comprimir, dentro de minha alma, esses voos, esses desejos, essas elevações como coisas inaceitáveis, que não exprimiam a vontade de Deus. E se fosse vontade de Deus, tinha que voltar para dentro de meu copo ou ir até para um copo menor do que aquele no qual tinha nascido. Os senhores não podem calcular o abafamento de alma, o desnorteamento que essa situação me trazia166.

* Por uma coincidência especialmente permitida e querida pela Providência167, precisamente nesse período de dissabores, de preocupações e de cercos de toda ordem, começou a me atacar uma nevralgia atroz168.

165 SD 23/6/73 166 SD 13/05/89 167 SD 25/4/92 168 SD 10/12/88 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 79


Toda noite, lá pelas três da manhã, acordava com uma nevralgia fortíssima, que me impedia de dormir. Era como se169 metessem um prego dentro do osso170. E era obrigado a me sentar171, pôr o travesseiro sobre os joelhos e ficar com a cabeça inclinada172, esperando passar a nevralgia. Duas, três horas de uma nevralgia que até pulsava, enfiada aqui173. Não tinha ainda o hábito de afastar as ideias negras quando elas vinham inoportunas, nem o hábito de entender que o demônio muitas vezes infestava as ideias negras. Mas era o contrário: – Aproveite agora que você está sentado aqui, para pensar no abismo para onde você está caminhando, para formar a sua sensibilidade e entrar dentro desse abismo, e engolir isso. Porque você tem que lutar pela vida. – Mas eu não tenho força, eu não aguento, isso não vai. – Tem que ser. Está acabado. Pense agora nisso174. Tomava um analgésico de homeopatia, uma bolona vermelha chamada Paulínia Sorbilis, não me fazia nenhum efeito175. O tempo passava e, de repente, começava a ver, entrando pelas venezianas, o sol esfuziante do Rio de Janeiro. Começava então a perceber a rua que se movia, o dia que nascia, e eu ali, pam! pam! naquela dor, mas ao mesmo tempo naquela preocupação, porque como não tinha no que pensar, pensava nos problemas, e os problemas eram um cravo no espírito, enquanto aquela coisa era um cravo na carne. No final eu adormecia, tinha umas duas horas para dormir e sair correndo para a reunião dos deputados. De maneira que praticamente não dormia quase nada176. Os senhores não imaginam o que era ficar essas horas todas assim dobrado, sem poder dormir, com este prego enfiado aqui e pensando nos problemas que tinham acontecido. Os médicos chegaram a desconfiar que fosse um tumor na cabeça. Isso era uma perspectiva horrível, porque podia trazer a imbecilidade ou até a morte.

169 SD 14/9/91 e SD 10/12/88 170 CSN 7/8/93 171 SD 14/9/91 e SD 10/12/88 172 Almoço EANS 8/11/90 173 SD 14/9/91 e SD 10/12/88 174 Almoço EANS 8/11/90 175 SD 23/6/73 176 SD 25/4/92 80

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Um dia foi tão horrível, que andava no meu quarto de um lado para o outro. E não sabendo mais onde me pôr (eu nem sabia mais onde é que estava) acabei parando embaixo da minha mesa de trabalho, sentado no chão – o que não é uma coisa de acordo com o meu modo de ser nem um pouco. Bem, não vou entrar em pormenores, mas o fato é que, numa tarde, não foi bem assim, mas vamos dizer assim, percebi que, passando um remédio anestésico aqui, cessava a dor e eu dormia magnificamente. A dor desapareceu de tal maneira que era como se nunca tivesse existido.

* Ao considerar esse cerco de provações, senti algo de desapontamento. Era como se a Providência não fosse cumprir as perspectivas que Ela mesma tinha aberto diante de mim quando entrei no Movimento Católico, e quando ganhei a eleição177. A pergunta era, como já disse: “Então tudo foi ilusão?178 Como é que uma coisa dessa pode acontecer? Não era melhor não ter sido eleito deputado, do que ser eleito deputado e depois trabalhar num trabalheco qualquer?” Quer dizer, aquilo que parecia um presente da Providência, era uma coisa que caía em cima de mim. Estava vendo a minha vida estraçalhada. Era como uma flor que tivesse desabrochado de manhã num sol lindo e, antes de anoitecer, vir uma borrasca tremenda e jogar as pétalas da flor para todo lado. Esse era o meu futuro179. Pensava: “Estou fazendo tudo o que posso. E veja o que se passa. Durante 20 anos de minha vida não fiz outra coisa senão penar e nada conseguir para o nosso apostolado. Quando faço 20 anos, entro em contato com o Movimento Católico e recebo superabundantemente o que eu passara 20 anos sem conseguir, quer dizer, companheiros, amigos a quem liderar e a quem encaminhar para a vitória da Igreja sobre a Revolução. Era uma demora tão terrível que parecia dizer que nunca seria atendido. De repente, sou atendido, mas demasiadamente, em proporções magníficas, como eu nunca tinha pensado. Chego aos 24 anos e obtenho uma vitória como nunca um brasileiro obteve: deputado federal com 24 anos e o mais votado de seu país! Então vai para além do que eu pedia, vai para além do que ousara. Quando chego ao alto da montanha, começo a perceber que o alto da montanha está ficando molhado, que o píncaro está se transfor177 SD 14/9/91 178 SD 13/5/89 179 SD 14/9/91 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 81


mando em lama, e que naquela lama eu vou escorregando, a montanha vai afundando, e vou afundando junto com ela. E tudo aquilo que se levantara atrás de mim, começa a se desfazer”. A essa altura já percebia que estava entrando o progressismo (portanto, o contrário do que queria). E que uma corrente inimiga estava maquinando toda espécie de calúnias, intrigas e combates contra mim, porque não queria saber de modernização da Igreja, a qual eu via como um vagalhão que ia destruir tudo quanto eu tinha esperado. Por outro lado, os problemas com a manutenção dos meus pais já velhos, os problemas com a minha própria saúde. Então, parecia que as estrelas do céu se jogavam por cima de mim como se fossem pedras. E eu dizia: – Não entendo nada, não tenho força, não tenho relações, não tenho meios, não tenho nada para fazer face a essa horda de inimigos que avança para esmagar a obra que eu estava construindo. Já estou prevendo a derrota, já estou prevendo o esmagamento. Lutarei até o fim! Mas de uma luta que será um fim, quer dizer, toda a esperança que tivera de constituir uma Contra-Revolução que pudesse levar até esmagar a Revolução, dava no contrário. A Revolução se voltava contra mim e me esmagava. Os senhores compreendem que é sombria a perspectiva. E eu pensava: – Como me saio dessa? Qual é o sentido de minha vida? Será que cometi algum pecado que eu ignoro? Será que talvez eu tenha resíduos de amor-próprio, de orgulho, de qualquer coisa que não noto, e que pesa contra mim na balança de Deus? Nossa Senhora me deu tanta devoção a Ela, me parece que Ela está muda diante de mim, e que Ela me ignora. Eu sou um ignorado? Se fosse dizer que os meus inimigos me assaltam, não era nada! A minha Mãe celeste me ignora!” Os senhores veem que é o quadro de um cerco completo e de uma coisa que se pode chamar de uma tragédia. Isso aos 24 anos180. Um quiproquó a partir da leitura da “História de uma alma” Por cima desse quadro se punha um outro problema. Havia lido no livro “História de uma Alma”, de Santa Teresinha, que não se pode fazer para a Igreja Católica uma coisa mais útil do que ser uma vítima expiatória do amor misericordioso de Deus. Isto assim se explica: os homens pecam e é preciso que outros homens ajudem a expiar, a pagar por esses pecados; de maneira tal que, com o nosso 180 SD 25/4/92 82

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sofrimento, Deus perdoe a outros e conquiste outras almas, dando-lhes graças muito grandes, porque nós sofremos. Eu me punha então este problema: “Quem sabe se Deus não quer que você seja uma vítima expiatória ignorada por todos? Tem possibilidades, recursos, talvez tenha até talentos para ser um homem incomum e prestar grandes serviços à Causa, mas condenado a ser um qualquer. Não será que você é mais útil à Igreja e à Contra-Revolução afundando assim, do que percorrendo ou fazendo a galopada heroica da Cruzada que você quer fazer? Então, o que devo esperar de Deus? Será esta vida assim ou a vida que eu desejava?” Como toda a minha tendência ia para não ser a vítima expiatória, mas para ser o homem que ia para o campo de batalha lutar, achava que faria um sacrifício especialmente grande aceitando ser o contrário do que eu queria. Serviria melhor à Igreja na minha aniquilação do que na minha realização pessoal. O que Deus queria de mim? Pensava: “Essa doença que causa as nevralgias, não é, de repente, um câncer ou uma outra coisa qualquer que te leva cedo da vida, para que um outro ganhe a batalha que você ansiava tanto ganhar? Agora, quero ver como é seu amor de Deus. Você estava muito contente de ser alguém; você terá a mesma coragem de ser ninguém? Você aceita isso? Até que ponto você é um homem sério? Se for sério, você aceitará isto. Se você não aceitar, quer apenas representar um papel e mais nada. Então, não vale nada. Você não ama a Deus! Merece ser esquecido por Ele sobre a face da terra”. A ideia de me oferecer assim era uma coisa que... Eu fiz o oferecimento, mas achava que alguma coisa não colava, que não era bem assim181. Alguma coisa dentro de minha alma me dizia: “Você não tem o direito de pensar assim, você tem obrigação de esperar que outra coisa aconteça, porque as velhas esperanças dos seus primeiros anos se realizarão.” Além do mais, ao ler o “Livro da Confiança”, de que falarei a seguir, me parecia que a Providência queria que eu sobrevivesse e realizasse essa obra182. Um lenitivo: a leitura do “Livro da Confiança” Fui formado pela Fräulein na ideia do esforço, da força de vontade, na ideia de pegar ao menos um pouco por alto algumas das grandes qualidades 181 SD 13/5/89 182 SD 25/4/92 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 83


do povo alemão. Mas então, também, na ideia da vida espiritual considerada assim também: tem que fazer, e lá vai a pau e pedra, não tem outro jeito. Mas quando, no tempo de deputado, começaram a me cair uma série de desventuras sobre a cabeça, aí eu disse: “Contra isso não há pau e pedra, não há sistema alemão, não há Santo Inácio”. Julgava Santo Inácio um arqui-alemão, embora soubesse bem que ele era basco. Mas o julgava assim, porque era “ali!”, categórico. Eu gosto muito das coisas “ali!” mesmo. Mas vi que, na situação em que estava, não tinha como: era deixar chover as desventuras. E deixei, dizendo-me: “Vamos ver o que é que sai”. Foi aí que comprei, de um modo fortuito, o “Livro da Confiança”183. Morava no Rio perto de uma igreja, muito brasileiramente implantada no paradoxo. Porque a rua em que estava a igreja se chamava rua Benjamim Constant, um líder positivista medonho. Nessa rua se construiu a igreja do Sagrado Coração de Jesus do Rio de Janeiro. Essa contradição não chocava ninguém. De modo muito brasileiro era tida como perfeitamente natural. Não sei de ninguém que tenha notado a contradição que me saltou aos olhos, logo que eu soube que a igreja do Sagrado Coração de Jesus era nessa rua. Essa igreja ficava perto do meu hotel, e todos os dias comungava ali e voltava para o meu hotel184. Um dia estava nessa igreja e vi que se realizava uma feira de livros. O vigário, muito gentil, aproximou-se de mim e me disse: – Dr. Plinio, estamos fazendo uma feira de livros. Se o senhor a quiser visitar, muito bem. O lucro da feira se destina para tal coisa. Era para uma obra boa qualquer. Equivalia a dizer: “O senhor dê-nos um dinheirinho”185. Devendo tantos favores a ele, não podia recusar, nem tinha vontade de recusar, porque ajudar aquela paróquia era uma coisa muito boa e eu tinha vontade de colaborar nessa forma de bem. Terminada a Comunhão, fui correndo para a feira186. E a esmo comprei um livro, não muito gordo, e que, portanto, não devia ser muito caro. Não era em língua estrangeira, logo não era importante, era impresso em português e editado no Rio. Eu disse: “Este aqui deve ser um livro barato, vou comprar este”. E disse sorrindo para ele: “Padre, compro este aqui”. Ele me disse sorrindo 183 CM 26/4/92 184 SD 7/9/83 185 SD 13/5/89 186 SD 14/9/91 84

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também: “Pois não”. E deu-me o livro. Não quis sequer que ele embrulhasse. Eu estava com tanta pressa que não tinha tempo para isso. Paguei uma coisa qualquer para ele. O livro era traduzido por Dona Mary Pessoa, uma senhora muito distinta, muito fina, muito católica, viúva do ex-Presidente da República Epitácio Pessoa. E mãe de uma religiosa. Eu pensei: “Deve ser um excelente português, porque isso deve ter sido revisto em português pelo Presidente Epitácio Pessoa”, que era um estilista de primeira. E realmente o português do “Livro da Confiança” é um português excelente187. Meti-me no automóvel correndo para o prédio da bancada paulista com o livro na mão. Assisti à reunião e, no final, à noite voltei para casa para dormir, coloquei o livro sobre um móvel qualquer do meu quarto e toquei a vida. Afinal de contas, naquele dia ou no dia seguinte – já não me lembro bem –abri o livro e li essas palavras que, depois de tantos e tantos anos, eu me lembro tão bem: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, Vós murmurais em nossos corações palavras de doçura e de paz”. Causou-me uma impressão singular este fato concreto: eu estava amargurado, desorientado, sem saber a via de Nossa Senhora por onde andava comigo. Nunca, mas absolutamente nunca, ninguém me tinha falado da virtude da confiança como sendo uma virtude que o católico deva praticar. Não tinha ideia disso, mas eu entendia que confiar em Deus é uma coisa boa. Lembro-me que o coro da paróquia em que me fiz congregado mariano cantava em latim: “Beatus homo qui confidit in Domino” – “Bem-aventurado o homem que confia no Senhor”. Eu acompanhava e gostava de ouvir aquilo; era uma canção que me dizia alguma coisa, mas não a aprofundava. Agora, ao ler aquelas palavras, “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça”, tive uma impressão curiosa: era como se uma atmosfera dulcíssima, cheia de afeto, penetrasse em mim e afastasse todos esses espantalhos e todos esses medos. Senti alguma coisa que fazia desaparecer aquilo tudo, e que me dava uma certeza de que aqueles fantasmas de perspectivas e de preocupações futuras realmente iam desaparecer. E de que Nosso Senhor e Nossa Senhora resolveriam esses problemas que tanto me amarguravam. Continuei a ler o livro, e em todas as frases que lia, ou em quase todas, a mesma impressão se produzia em mim188. Sentia no interior de minha alma alguma coisa que era como um lenitivo, uma coisa que sossega, que

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tranquiliza, que figurativamente anestesia, que faz cessar as dores, e que faz um benefício à alma189. Minha impressão era de que eu entrava num bosque encantado onde davam flores maravilhosas, onde passarinhos cantavam do modo mais sonoro e mais agradável possível. Mas, habituado a sempre raciocinar muito, e não conhecendo a doutrina católica a respeito da confiança, eu me dizia: – Tenho receio que isto seja uma ilusão minha, que não seja uma verdadeira graça. Tenho duas objeções contra essa graça. Em primeiro lugar, não se apresenta nenhuma razão razoável para eu confiar que Nossa Senhora vai me ajudar nesta emergência, porque não vejo no meu horizonte nada que me prometa uma solução. E o homem tem que ser concreto, o homem não pode viver de impressões interiores. Isto poderia ser para uma senhora sentimental do século XIX. Não sou senhora, não sou sentimental, não sou do século XIX! Para eu confiar, precisaria ter razões pão-pão, queijo-queijo, filhas da razão. Agora onde é que está a razão dentro dessa história? E continuava meu raciocínio: – Depois, em certas horas do dia eu leio isto, e para mim é como se eu estivesse mascando serragem de madeira. Em outras horas eu leio, e é como se penetrasse um pedaço do céu dentro de minha alma. Que propósito tem isto? E concluía: – Eu não entregarei minha alma a estas sensações interiores sem antes ter uma explicação de como é que isto tem fundamento na boa e ortodoxa doutrina da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Mas, não tinha remédio, era uma experiência curiosa. Abria o livro e penetrava em mim aquela doçura. No momento em que entrava essa doçura, as minhas perguntas desapareciam e percebia que aquilo era de Deus e de Nossa Senhora. Evidente que aquilo era uma ação da graça. Mas, quando eu fechava o livro, aquela ação desaparecia e para mim não ficava evidente que era uma ação da graça. Então, eu precisava de provas190.

* Ficou-me na cabeça essa dúvida: “E se a Providência não me quiser dar o que peço, com que direito espero aquilo que a Providência vai me dar?” 189 SD 25/4/92 190 SD 14/9/91 86

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O livro não enfrenta com muita clareza esse problema. Mas às horas tantas dá algumas coordenadas para isso. E é que há circunstâncias pelas quais a gente pode divisar o caminho da Providência para nós. E quando esse é o caminho da Providência, nós aí devemos confiar, porque Ela não nos deixa esperar em vão. Às vezes, nós vemos que o caminho da Providência não é esse, então nós devemos nos resignar. Mas às vezes podemos perceber que é esse o caminho da Providência. E então devemos esperar contra toda esperança. E é essa esperança contra toda esperança que dá a vitória a todo aquele que espera. Estava en aquel entonces com a alma muito opressa. Quando, em dias consecutivos, fui lendo aquilo, isso foi desanuviando a minha alma. Entrava uma suavidade no espírito, uma coisa que percebia ser uma graça, e eu dizia: “Bem, devo então esperar. Agora, como esperar? Não sei também. Mas vamos tocar, vamos esperar. E esperarei. Ao menos isto posso fazer, e farei”191.

* O “Livro da Confiança” chegou no ponto, na hora certa, em face do problema espiritual mais importante para o meu progresso naquele tempo, que era de compreender que Deus quer de nós que demos tudo a Ele. Ele, além disto, quer que nós reconheçamos que aquilo que nós demos, e que era preciso dar, não basta para obter o que nós queríamos. Nosso sacrifício nunca é suficiente. É preciso que Ele, por misericórdia, nos dê aquilo que nós imaginávamos que podíamos exigir por justiça; e que ficássemos, portanto, dependentes d’Ele pela insistência das nossas orações. Entrava aqui, no dinamismo da minha vida espiritual, um fator novo: a oração. E no fator novo entrava ainda um dado novo a mais: a confiança. Quer dizer, uma vez que a pessoa pedisse com confiança, então poderia obter aquilo que queria; sem confiança, a pessoa não obteria. Então, eram três elementos: entrega inteira de si; pedido a Deus, porque o preço pago por nós não basta, e, portanto, oração; e, terceiro, confiança que a oração seria atendida, mas por misericórdia d’Ele e não por justiça. Esse terceiro fator aprendi no “Livro da Confiança”. Mas aprendi de um modo curioso, pois o livro me parecia dizer o seguinte: “Se você confiar em Nossa Senhora, Ela abre um caminho dentro dessa rocha para

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você passar e fazer triunfar o ideal católico”. Quer dizer, o inverossímil. “Se você pedir isto você obterá, com a condição de confiar!”192

* Esse livro produziu em mim um efeito maravilhoso porque, em última análise, dava exatamente essa ideia de que eu estava colocado sob uma providência especial. Assim, pedindo a Deus Nosso Senhor, por intercessão d’Aquela que tudo pode, serei atendido; e, afinal, por aqueles vaivéns, de um jeito ou de outro, aquilo que eu desejo se realizará. E então concluí: “Não sou chamado para o caminho de vítima expiatória de Santa Teresinha. Eu sou mais bem chamado para o caminho de Godofredo de Bouillon: vamos para frente, por cima, de paus e de pedras, por montes, coles e colinas! Vá o caminho por onde for, e dê nos descaminhos aparentes que houver, eu preciso confiar, confiar, confiar. ‘Voz de Cristo, voz misteriosa da graça que ressoais no silêncio de nossos corações, Vós murmurais palavras de doçura e de paz’. Doçura e paz trazem-me isto. Eu vou rezar, pedir; rezar, pedir.”193 O encontro do equilíbrio Mesmo assim, vinha-me de novo uma pergunta: “Mas você não estará enganado? Será que, se você ficar quieto e for heroico, não pedindo nada a Nossa Senhora, realizará mais do que pedindo? Pedindo, Ela dá. Mas dá às vezes o que Ela não queria dar. Não peça nada e deixe tudo acontecer”. Não soube resolver o problema e então pensei: “Pedirei, mas com a condição que se faça a vontade d’Ela e não a minha. Se a vontade que há em mim é também a d’Ela, faça-se! Eu peço, peço, peço!” Encontrei assim um equilíbrio no meio de um torvelinho medonho. O “Livro da Confiança” foi a ponte admirável e abençoada que me ajudou a passar por não sei quantos e quantos abismos, até encontrar alguma coisa que significasse que eu realmente estava no caminho certo e estava indo para a frente194.

192 SD 25/4/92 193 SD 13/5/89 194 SD 13/5/89 88

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REPERCUSSÕES ESPIRITUAIS DE UM GESTO “KAMIKAZE” EM DEFESA DA IGREJA A direção do “Legionário” e o começo da divisão no Movimento Católico Quando eu era deputado, convidaram-me para ser diretor honoris causa do “Legionário”195. Terminado o meu mandato, como eu era o diretor, eu me perguntei o seguinte: “Com esse passado já grande, o que vou fazer com esse carguinho tão pequeno de diretor do “Legionário”? Como vou transformar este jornal numa trincheira ou numa fortaleza do pensamento contra-revolucionário? Como fazer evoluir essa folha paroquial, de maneira a, sem brigar com a paróquia, e com o apoio da paróquia, se transformar numa folha nacional? Como fazer com que essa folha repercutisse nos ambientes católicos do Brasil inteiro e, a partir dessa repercussão, desse estocadas no adversário?” Era o problema196. Formei o projeto de abrir todas as janelas, todas as portas, fazer entrar largamente os ventos da política nacional, da política internacional, dos problemas culturais, filosóficos, teológicos e outros mais, e tratar em estilo polêmico, escrever com a ponta da espada, mantendo uma polêmica contínua mais ou menos com todo o mundo197. O “Legionário” tomou atitudes muito polêmicas, de combate a dois males que vinham se formando, e que marcariam os tempos futuros. Um 195 O nome de Plinio Corrêa de Oliveira como diretor do “Legionário” aparece pela primeira vez na edição de 6 de agosto de 1933, n° 125 do hebdomadário. Neste número, o artigo “Novos rumos” assinala a mudança de orientação do semanário, dizendo claramente que era preciso “se afastar do estreito âmbito de ‘sacristia’ em que tem vivido”. O próprio Dr. Plinio também escreve um artigo sob o título de “É necessário”, em que afirma: “A mocidade mariana, que formou a primeira linha de combate do grande pleito de 3 de maio e que, como vanguardeira, desbravou o terreno em que devia caminhar a Liga Eleitoral Católica, assumiu, com o triunfo que obteve, novas responsabilidades perante a opinião pública”. Em seguida ele assinala: “Os olhos de todos os paulistas estão voltados para esta mocidade que constitui a sua mais cara esperança. Nada mais se pode esperar das gerações anteriores que, vitimadas pelo liberalismo e abraçadas agora ao socialismo, amontoaram em torno de si ruínas sobre ruínas, deixando aos vindouros a ingrata tarefa da reconstrução. Como a árvore estéril do Evangelho (cfr. Lc. 13, 6-9), não produziram frutos, e estariam fadadas à destruição, se a mocidade não chamasse a si, energicamente, a causa da restauração”. 196 SD 15/11/80 197 SD 18/2/89 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 89


deles era a penetração do progressismo no Brasil e o outro a penetração do nazifascismo. O que complicava a situação era que essas duas correntes, vistas na superfície, pareciam opostas entre si. Isto trouxe como consequência, por sua vez, uma tríplice polêmica, travada muitas vezes dentro dos meios católicos, entre progressistas, nazifascistas e católicos ortodoxos da antiga linha198. Pagávamos por isso um imposto caro, que era o de que todo o mundo que ia derrapando para a concessão, na sua maioria foi-se distanciando-se de nós. E, dentro mesmo do meio católico, começou a se abrir uma frincha entre nós e os partidários de um “concessionismo” – se se pode dizer assim – crescente199. O “Legionário” era a alma da congregação de Santa Cecília, que era a alma das Congregações Marianas de São Paulo, que eram a alma do movimento mariano no Brasil200. Pelos idos de 1935 – eu já estava com sete anos de militância dentro do Movimento Católico e tinha naturalmente tomado parte numa série de mal-entendidos –, uma coisa sempre me edificou muito, até aquele momento: era a facilidade com que esses mal-entendidos se dissipavam nos meios católicos. A concórdia que reinava entre os católicos era completa201. Na realidade, esta grande concórdia dentro do Movimento Católico, não conhecendo inimigos internos, apresentava um quadro irreal, porque precisamente dos movimentos de esquerda católica da Europa começavam a vir propagandistas apoiados por pessoas de prestígio do Movimento Católico. Tristão de Athayde, Sobral Pinto e numerosos eclesiásticos mandavam vir esta gente. E essa gente vinha ao Brasil para fundar grupos que veladamente queriam espalhar as ideias da esquerda católica. O Movimento Litúrgico e a Ação Católica eram os grandes meios de penetração; quer dizer, eram grupos instalados no Movimento Católico, dispondo de apoio e de forças católicas grandes202. De maneira que eu não só deixaria de ter a capitânia do navio, quer dizer, a liderança do Movimento Católico, mas o adversário penetrava-o pelos porões, estabelecendo-se nele203.

198 Entrevista à Rádio Uruguaiana 21/6/90 199 SD 10/1/90 200 SD 10/3/79 201 Palestra sobre Memórias (IV) 9/8/54 202 SD 2/7/88 203 SD 18/2/89 90

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Simultaneamente, comecei a notar que ia-se fazendo um vazio em torno de mim no meio católico204. Nós estávamos com o inimigo dentro de casa e tínhamos agora que fazer face a uma luta de uma natureza diferente. A partir desse momento, o nosso Grupo começou a se especializar na luta contra os inimigos internos da Igreja205. Em fins de 1938, quando Dom Duarte morreu, esse movimento estava levantando voo, e esse pessoal heterodoxo armou uma semana social na sede da Congregação Mariana de Santa Cecília, que não tinha nada a ver com isso. Recordo-me da primeira escaramuça entre este pessoal e nós, aqui em São Paulo. Os congregados marianos queriam fazer representar uma peça de teatro, um sketch pequeno, muito engraçado, caçoando dos liberais. Eles disseram que não gostaram, porque não tinha caridade para com o próximo206. Indicação para presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo O sucessor de Dom Duarte, Dom José Gaspar de Affonseca e Silva , era o contrário de Dom Duarte. Representava o modernismo completo, inteiro. Estava vendo que ele ia pôr tudo aquilo no chão. E que ia começar a derrubada de tudo aquilo que eu amava. Compreendi que os funerais da Igreja começavam. Funerais em que Ela não ia morrer, mas Ela ia entrar no caixão, ia dar a um incontável número de pessoas a impressão de que Ela estava morta. Isto foi uma punhalada para mim, das maiores que tomei em minha vida207. Quando Dom José Gaspar foi nomeado Arcebispo de São Paulo, as relações no começo eram cordiais. Eu obtive dele com facilidade que o “Legionário” fosse elevado à condição de “órgão oficioso da Arquidiocese”. Foi nesse ponto em que o “Legionário” chegou ao seu auge, que começou a crise católica, e, com ela, a degringolada do “Legionário”208. Entrementes, por causa de providências que tomei, o novo Arcebispo mandou-me um convite para falar com ele:

204 Jantar EANS 23/11/90 205 Palestra sobre Memórias (IV) 9/8/54 206 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54 207 SD 7/12/91 208 SD 18/3/89 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 91


– Dr. Plinio, eu queria constituir a Ação Católica aqui em São Paulo, eu queria que o senhor fosse presidente da Ação Católica e que o senhor me indicasse os membros da diretoria (chamava-se Junta Arquidiocesana da Ação Católica). – Como não, Senhor Arcebispo. Com todo gosto. Estou aqui para servi-lo. E pus o pessoal todo do “Legionário” dentro da Ação Católica209. Presidente, eu. Tesoureiro, professor José Benedito Pacheco Salles. Primeiro Secretário, José Gonzaga de Arruda. Segundo Secretário, professor Fernando Furquim de Almeida210. De maneira que, de um modo inteiramente inesperado, nós ficamos colocados na direção daquela Ação Católica de orientação detestada, nefanda. No momento levei a sério a coisa. Hoje percebo que ele tinha algum jogo em vista211. O meu plano “A” era de esclarecer o Arcebispo sobre a situação, de fazer todo o possível para que ele colaborasse para o bem da Igreja Católica e fazer da Ação Católica uma grande instituição, “desinfiltrada” desses elementos e só com o que tinha de bom. O que li e o que deitei de empenho neste ponto, e como procurei esclarecer o Arcebispo e falar com ele, e ser amável com ele, e prestar a ele toda a espécie de serviços em várias áreas para ele ver que podia contar ilimitadamente comigo, o que fui de bom amigo para ele é difícil dizer; porque transbordava de boas intenções para com ele. Ainda que ele não me tivesse nomeado presidente da Ação Católica, só por ele ser o Arcebispo, o meu Arcebispo; e se ele comigo tivesse sido injustíssimo, mas não tivesse prestado à Igreja nenhum desserviço, eu teria sido para com ele fidelíssimo. Isso é uma coisa segura. Por um ressentimento pessoal nunca – e ainda que esses ressentimentos fossem justos – nunca, mas nunca dos nuncas faria nada contra ele, nem sequer deixaria de o servir inteiramente como o servi. Não tem perigo. Com a graça de Nossa Senhora, posso dizer: meu estado de alma era o que estou dizendo. Portanto, minha atitude não foi de quem queria aplicar uma rasteira nele. Eu queria aplicar uma rasteira no demônio. E o plano “A” era levar a rasteira a tal ponto que tirasse o Arcebispo de dentro das garras desse plano. Isto não sendo possível é que eu executaria o plano “B”. 209 Sede de São Milas, 16/6/73 210 Entrevista à Rádio Uruguaiana 21/6/90 211 Palestra sobre Memórias (V) 10/8/54 92

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O que fiz neste sentido é inenarrável, os senhores nem imaginam, e era de meu dever. E, tendo feito isto, considero que não tinha feito senão meu dever. Agora, de fato, as coisas não correram assim, e não obtive nada do que queria. O resultado foi que tive, então, que rumar para a defesa da Igreja. Isso foi o que se deu212. A degringolada como vingança pelo livro “Em Defesa da Ação Católica” Vou expor aos senhores uma das preocupações que tive antes de lançar o “Em Defesa”213. Tinha eu uma determinada situação. A partir dessa situação, poderia auferir para a causa da Igreja certas vantagens. Se destruísse essa situação, eu poderia, como preço dessa destruição, auferir outras vantagens também. O que me conviria fazer? Havia dois caminhos. Um era entrar na luta e lançar o “Em Defesa”. Eu sabia que aconteceria o que aconteceu. Posso dizer que não me deixou de acontecer uma só das coisas que supunha que acontecesse. Mais ainda, aconteceram coisas que não supunha. Se, pelo contrário, eu tomasse uma atitude oposta, o que aconteceria? A ideia era: deixar que o mare magnum das doutrinas heréticas, erradas penetrasse. Eu não entraria na luta. Tinha certeza de que, pelo fato de não entrar na luta, eu teria mais ou menos diante de mim um prazo entre 5 a 10 anos de prestígio. E esse prestígio era um prestígio bem grande214. Porém, se me atirasse contra o adversário, o meu prestígio ficaria reduzido a cacos. Mas alguns desses cacos, coordenados na minha mão, poderiam se transformar em navalhas, e o meu prestígio se transformaria num contra-prestígio: não seria o prestígio do homem que está de acordo com a autoridade e a lei, mas o prestígio quase de um Al Capone. Mas, com isso, daria uma navalhada que prejudicaria os planos da Revolução para sempre. E se deixasse passar essa ocasião, ela nunca mais se apresentaria. Então me joguei dentro do precipício215. O cálculo que fiz na época foi o seguinte: 212 SD 17/3/79 213 SD 18/11/83 214 Relato SD 18/11/83 215 Almoço EANS 8/11/90 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 93


– Vou escrever um livro em que denuncio toda essa doutrina, ponho a doutrina a limpo inteiramente como ela é, ponho os pingos nos “is”216, e crio um escândalo. Criado esse escândalo, muita gente vai ficar atemorizada e recuará, não vai aderir a nós, mas não aderirá a eles também; e ficará com uma interrogação na cabeça.”217

* De fato, todo mundo se atirou em cima do livro “Em Defesa da Ação Católica”!218. Foi uma verdadeira bomba! Repercutiu nos meios católicos do Brasil inteiro219. Dava-me bem conta de que o livro ia produzir um estouro do outro mundo e que era a obra do kamikaze: quer dizer, eu ia destruir o adversário, mas eu ia me destruir junto com ele. Dava-me perfeitamente conta de que era uma autoimolação220. Foi com o inteiro apoio de Mons. Mayer e do Pe. Sigaud que publiquei esse livro. Repito: era um gesto de kamikaze. Ou estouraria o progressismo, ou estouraríamos nós. Estouramos nós. Nos meios católicos, o livro suscitou aplausos de uns, a irritação furibunda de outros, e uma estranheza profunda na imensa maioria221.

* Como já previa que seria um grande sofrimento que viria por cima de mim, fiquei agoniado (no sentido da agonia santíssima e divina de Nosso Senhor no Horto). E medi bem tudo quanto ia acontecer. Não hesitei um instante222. Quando percebi que ia cair o mundo em cima de nós, eu nem sabia quem é que ia ficar comigo, porque aqueles sete ou oito que ficaram, não tinha certeza no começo se iam ficar ou não. Assim, quando vi a tempestade, resolvi prevenir aos mais chegados de que a casa ia cair, para que

216 Sede de São Milas, 16/6/73 217 Reunião pelo 25 aniversário do “ Em Defesa”, 8/6/68 218 Sede de São Milas, 16/6/73 219 Entrevista à Rádio Uruguaiana 21/6/90 220 Sede de São Milas, 16/6/73 221 “Kamikaze”, Folha de S. Paulo, 15/02/69. 222 MNF 14/9/94 94

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eles soubessem se proteger contra os escombros que caíssem em cima, e soubessem assim permanecer firmes223.

* Quando escrevi o livro, eu ignorava que Dom Cabral, Arcebispo de Belo Horizonte, havia preparado uma carta pastoral sustentando o contrário dele. Ela saiu mais ou menos ao mesmo tempo que o “Em Defesa”. Pouco depois se realizou uma semana de estudos para o Clero regular e secular de São Paulo. Na primeira sessão tinha sido distribuída anonimamente a pastoral de Dom Cabral224. Qual não foi a nossa surpresa quando, no segundo dia, o Dom Teodoro Kok225, se levanta e faz um discurso denunciando-nos como conspiradores junto a todo o Clero reunido226: – Eu tenho uma acusação a fazer. Eu viajei com Dr. Plinio de São Paulo a Campinas, e durante a viagem o Dr. Plinio me disse que há Bispos que têm doutrinas erradas em matéria de Ação Católica. Eu nem vou dizer quais são os nomes dos Bispos que ele indicou, porque neste ambiente causaria um verdadeiro horror. Mas eu venho fazer aqui um protesto contra a insolência desses elementos do “Legionário”, que se atrevem a imaginar que um Bispo católico possa cair em erro em matéria de doutrina227. O incidente acima descrito produziu um efeito tão profundo, que eu estava convidado para fazer um discurso em Campinas, e dias depois recebo uma carta do Bispo de Campinas comunicando que estava adiado sine die o meu discurso. E começo a notar vários Padres que mudaram, desde esse dia, completamente as suas atitudes a meu respeito. E praticamente em todo o meio eclesiástico de São Paulo, quer dizer, no meio de padres de São Paulo – porque no laicato isto nunca repercutiu muito –, se minha cotação antes não era 100, mas 80, desceu a oito ou talvez a menos do que oito. Foi uma baixa vertiginosa228. Nossa situação ficou literalmente péssima, e a partir desse momento houve uma alteração na situação de nosso Grupo: antigamente estava no 223 Almoço EANS 8/4/87 224 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54 225 D. Teodoro Kok, monge beneditino que, antes de entrar para o seminário, era muito amigo de Dr. Plinio. Seu nome no século era Svend Kok, filho de uma família dinamarquesa rica de São Paulo. Ele depois se tornaria monge trapista. 226 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54 227 Sede de São Milas, 16/6/73 228 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 95


candelabro, foi posto no alqueire, e nós passamos para um período que se pode chamar de clandestinidade, de maquis; porque nós passamos de situação para oposição, e de governo para o que os ingleses chamam de governo de sombra, quer dizer, uma situação muito cruel229. A batalha baixou um pouco e eu fui, com Dr. Paulo Barros de Ulhôa Cintra e com outros do Grupo, passar uns dias de repouso na fazenda dos jesuítas em Itaici. Lá estando, recebi uma chamada interurbana do Cônego Mayer comunicando-me o conteúdo de uma carta de Dom José a ele, na qual dizia que dentro de poucos meses renovaria a Junta Arquidiocesana da Ação Católica, e que pedia então para comunicar a mim que as nossas funções cessariam no dia tanto. Era a decapitação230. O “grupinho do Plinio”: Jó em cima do monturo A noite densa de um ostracismo pesado, completo, intérmino, baixou sobre aqueles meus amigos que continuaram fiéis ao livro. O esquecimento e olvido nos envolveram, quando ainda estávamos na flor da idade: era este o sacrifício previsto e consentido231. Quando os primeiros 10 ou os primeiros 20 seguidores se reuniram em torno de mim, eu era um homem muito conhecido, e os que vinham eram muito novos, mais moços do que eu 20 ou mais anos, portanto sem ter tido tempo de se tornarem conhecidos. E como era o único conhecido do grupo, e o mais velho, o natural era eles chamarem o grupo do quê? Não tinha nome ainda, não chamava “Tradição, Família, Propriedade” nem nada, era um grupo de rapazes que se reunia na rua Martim Francisco. Uma tia minha espirituosamente chamava esse grupo de “o Clubinho”, ou “o Clubinho do Plinio”. Mas desde logo a detração começou a trabalhar, e começou a dar a essa designação (“o grupo do Plinio”) a conotação de um grupelho no sentido pejorativo que a palavra “grupelho” tem na língua portuguesa. E então o “grupelho do Plinio” era um grupelho ridiculamente pequeno, que 229 Palestra sobre Memórias (VII) 12/8/54 230 SD 31/3/79. – A situação de Dr. Plinio viu-se agravada pelo fato de que foi demitido do cargo de advogado da Cúria – que era o único cliente de seu escritório – e do governo ter suprimido o Colégio Universitário da Faculdade de Direito, da qual era professor. Ele então se viu obrigado, para continuar a receber seu ordenado, a lecionar em um colégio estadual. Concomitantemente, o sucessor de Dom José Gaspar na Arquidiocese de S. Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, demitiu o Cônego Mayer de seu cargo de Vigário-Geral e o nomeou vigário de uma paróquia na periferia da cidade. 231 “Kamikaze”, Folha de S. Paulo, 15/02/69. 96

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representava os restos de influência, os restos de poder de um homem que tinha tido muita influência e muito poder. Dir-se-ia que era um homem que naufragou, e que então pega um daqueles escaleres, e com aqueles que ele salvou do naufrágio entra nesse escaler. A grande nau afunda, e aquele grupo de sobreviventes anda singrando o oceano à procura de um rochedo onde encostar, para poderem amarrar a nau e dormirem um pouco, sem que as ondas os levem para onde eles não querem. Então, essa ideia despectiva – “o grupinho do Plinio” – significava “o grupinho que não tem senão o Plinio”, que não atrai senão aquele punhadinho que o Plinio atraiu. Os restos da grandeza do Plinio, o Plinio nos restos de sua grandeza não era uma coisa muito diferente de Jó sentado em cima do seu monturo232. A pior provação: ser perseguido por aqueles mesmos que se quis servir O grande sofrimento de minha vida foi a crise da Igreja. Porque eu tinha afirmado – como se deve afirmar – que, pela Igreja, tudo! E que, desde que tudo corresse bem para a Igreja, dávamo-nos como bem-sucedidos em tudo, e querendo bem à Igreja incomparavelmente mais do que à minha própria mãe233. Nada admirei tanto em minha vida quanto a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Mas não é dizer que muitas coisas admirei quase como admiro a Igreja. Não! Há um abismo. Admirei a Igreja Católica Apostólica Romana acima de tudo, mas de longe. E não só admirei as outras coisas muito abaixo da Igreja, mas quando eu as admirei, admirei porque refletiam o espírito da Igreja. De maneira que, tudo bem analisado, no fundo admirei só a Igreja234. À Hierarquia, dei a minha mocidade! Mas dei a minha mocidade no que ela tinha de mais jovem. Eu estava com 18, 19 anos. Dei-a inteiro! Eu já contei aqui o episódio da Via Sacra durante a missa. É dar-se inteiro. Dei com entusiasmo, dei com transporte de confiança, de afeto, de tudo235. Pode-se bem imaginar como eu venerava o clero. Porque Nosso Senhor disse do clero: “Vós sois o sal da terra e a luz do mundo”. E por causa 232 Chá SRM 26/3/95 233 Chá SRM 19/6/95 234 Chá SRM 12/4/89 235 Almoço 27/12/92 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 97


disso, tudo quando havia de belo na Igreja, havia por que o clero definia, porque o clero dizia, porque o clero ensinava, porque o clero praticava. Imaginem um farol que tem uma luz muito forte. As lentes através das quais passa a luz do farol estavam para a luz, como o clero está para Nosso Senhor Jesus Cristo. Nosso Senhor Jesus Cristo é a luz, o farol que toma essa luz e a projeta para longe deve ser o clero. Portanto, tinha uma admiração, um respeito pelo clero, uma coisa extraordinária! E isto era adequado, porque a alma do católico é assim. Esse é o católico. E o clero no meu tempo de menino, de mocinho, era fiel à Igreja. De maneira que eu tinha uma veneração, uma obediência, uma coisa completa236.

* No começo, tínhamos ideia de que essa infiltração dentro da Igreja era um acidente; e que, como acidente, isto seria removido; era um tropeço na estrada, mas que, superado este, continuaríamos depois a mesma caminhada que nós julgávamos que deveríamos encetar quando entramos para o Movimento Católico. Foi só bastante tempo depois que, com os estudos do Professor Fernando Furquim de Almeida sobre os católicos ultramontanos do século XIX, nós nos demos conta de que havia uma revolução enorme que tentou enquistar-se na Igreja mais ou menos por ocasião da Revolução Francesa, ou já antes dela, e que desta ou daquela maneira estava estourando na revolução progressista, a qual tinha sido precedida pela revolução modernista e que, portanto, era um velho adversário, um adversário quase de sempre que se tratava de abater e contra o qual devia se lutar237. Agora, ver a Igreja em sua parte humana desviar-se, foi um sofrimento sem nome238. Perceber de repente o contrário que se passa, e o clero que começa a tomar o rumo que se está vendo hoje, é uma coisa que não tem palavras! Ao começar a ver isto eu tive uma dor enorme. Mas a evidência dos fatos me obrigava a ver, não tinha por onde escapar: era isto. Recebi uma verdadeira punhalada no coração, porque a minha vida inteira eu esperava o contrário239. Não parece, mas eu sou o mais clerical dos 236 Chá SRM 12/4/89 237 EE 18/07/91 238 Chá SRM 19/6/95 239 Chá SRM 12/4/89 98

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homens240. Tenho-me na conta do homem mais clerical que há no mundo, apesar de todos os entraves que se têm oposto à livre expansão desse meu clericalismo, devido ao progressismo e outros fatores241.

* Sei que a Igreja Católica é divina, é de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas a tristeza de vê-la – Ela, um instrumento da realização do reino de Deus – desviar-se de seu fim, e muitíssimos de seus elementos aproveitando seu próprio caráter sacral para desviar as pessoas daquilo que Ela devia fazer, é dolorosíssimo242. Assim, na minha luta contra o adversário interno da Igreja, entrou todo o drama do corpo a corpo com aquilo que eu amava mais do que a luz dos meus olhos: a Sagrada Hierarquia da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Não digo que eu amasse mais a essas pessoas enquanto pessoas: eram os cargos, as instituições, os carismas, a missão, a coerência delas com essa missão. Nunca fui entusiasta de muitos prelados que conheci. Mas, nesse lado do que representavam, eu os amava de um modo indizível, simplesmente indizível. Entrar nesse terrível corpo a corpo com eles era uma coisa verdadeiramente inimaginável. Depois da ruína das minhas ilusões sobre os integrantes da Hierarquia, veio a prova axiológica: desenvolver-se um futuro completamente diferente do que eu imaginava ser as vias da Providência. E ter que levar uma vida inteiramente diferente daquela para a qual me sentia chamado pela própria graça. Uma coisa tremenda!243 Nesses primeiros sintomas do progressismo, vi logo que estava tramada a derrubada de tudo isso; que a Igreja que eu amava tanto só não ia ser destruída porque Nosso Senhor Jesus Cristo prometeu que Ela não seria destruída. Senão, nessa ocasião a destruiriam. Mas compreendi que, sem ser destruída, Ela ia ser privada de todo o aspecto exterior daquela grandeza, daquela beleza que Ela tem inalienavelmente, e que ninguém lhe pode tirar e que está n’Ela244. 240 Despachinho, 7/2/89 241 Despachinho, 11/12/90 242 CSN 7/8/93 243 Almoço EANS 3/2/88 244 SD 7/12/91 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 99


* Este horror era agravado pelo fato de que vi desde o começo o que estava nesse erro novo, era um requinte da Revolução. E que, portanto, ao que estava aderindo a grande maioria do clero era o requinte da Revolução, e o quanto isto era uma coisa abominável, detestável. Representava uma punhalada pelas costas em tudo aquilo que eu amava245. Novamente escrúpulos e a provação axiológica Não sei se os senhores fazem a ideia da impressão que representa um apostolado que Deus parece ter abandonado. Depois de graças e graças que chegam ao auge, ficar com a impressão de um inverno em que todas as folhas vão caindo. A impressão é de que Deus se voltou contra nós com todas as suas armas para nos esmagar. Não teria havido algum defeito moral nosso, alguma falha na nossa vida espiritual que teria sido a causa de Deus nos abandonar? Quem é que poderia saber? Esta incerteza era o pior. Porque não bastava dizer: “Deus tem os seus caminhos, durma em paz”. Sim, mas isso quando aparece um anjo e diz: “Você não tem culpa”. Mas onde é que está esse anjo? Aí é que está a questão. De maneira que eu confesso que o sofrimento dessa ocasião foi uma coisa de escalpelar246. Contra nós se verificava um velho provérbio que meu pai costumava citar: “Atrás dos apedrejados correm as pedras”. O sentido do provérbio é: quando alguém é apedrejado, todos os outros também lançam pedras nele. Parecia que o esmagamento inglório seria o fim único de tudo quanto tínhamos feito até aquele momento247. O movimento que eu queria desencadear era fundamentalmente dependente da graça. Ora, a graça vem muito frequentemente na proporção em que o próprio apóstolo corresponda a ela. E eu tinha um escrúpulo de consciência muito forte a esse respeito: “Esses infortúnios com que eu não contava, não serão um modo de a Providência me dar a entender que não está contente comigo? Como é isto? Não haverá uma imperfeição de minha parte?” 245 Chá SRM 12/4/89 246 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54 247 SD 8/4/89 100

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Bom, a resposta é muito simples: “Faça seu exame de consciência. Se você notar que há, corrija-se. Se não notar, tranquilize-se”. E esquematicamente é isto mesmo. Mas pouco antes tinha lido alguma coisa num dos salmos, que me tinha impressionado profundamente e que falava do pecado oculto. O pecado oculto é uma imperfeição que a pessoa pode ter na alma sem ter-se dado conta por tibieza ou por falta de honestidade, porque não quis olhar seu defeito de frente. Então toco a raspar minha alma para ver se tinha algum pecado oculto. É o razoável. E aí o pavor de, por alguma infidelidade que eu não encontrava, mas que podia existir, estar comprometendo tudo o que estava acontecendo. Se não fosse esta provação, eu teria passado por tudo isso carregando o décimo do peso. Para agravar esta provação, eu tinha mais uma outra. Olhava certos fatos em torno de mim e tinha impressão de que esses fatos eram carregados de um significado. Conto um desses fatos. Em frente ao prédio da nossa sede da rua Martim Francisco havia uma árvore cujas raízes cresceram com protuberância, e a toda hora quebravam o calçamento que estava lá. Vinha a prefeitura, consertava, instalava as boças daquela árvore num cimento mais tenaz, e a árvore quebrava de novo. Era uma árvore feia e de garras possantes. De um lado. De outro lado, por coisas que eu nunca examinei a fundo, tendo eu naquele tempo uma constituição física muito robusta e muito normal, e andando a passos largos e decididos, havia em mim uma qualquer coisa – deve ser uma coisa anatômica – em virtude da qual com muita facilidade eu torcia o tornozelo. E tinha também uma certa facilidade em cair no chão, encontrando obstáculos diante de mim. É preciso dizer que não prestava atenção, porque eu ia andando à la ... Havia um obstáculo, eu não tinha prestado atenção, ia para o chão. Numa noite, vínhamos a pé, do centro da cidade para a rua Martim Francisco, vários ou todos do nosso Grupo. Subíamos a pé a rua Martim Francisco, coisa de que eu não gostava, mas eles gostavam muito. Bem, e estava falando com eles justamente de que eu tinha medo do problema da incorrespondência à graça. Eles me diziam que eu estava tomando por demais ao trágico o que estava acontecendo. Retruquei: “Vocês não sabem, mas o meu receio é este”. Quando eu disse: “O meu receio é este”, todas as luzes da cidade se apagaram, eu tropecei naquele tronco, e – pssst! – caí no chão. Se não fosse

2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 101


ter caído com muito jeito, eu teria machucado o rosto pavorosamente. E me perguntei: “Não será um sinal”?248 Como este, houve assim mais um ou outro episódio, e nenhum deles em sentido favorável. Então tocava-me lixar ainda mais para ver se encontrava o tal pecado oculto. Confesso que até agora não encontrei. Nisso tudo vi que a Providência às vezes faz conosco o que fez com Jó. É um direito d’Ela. Ela fará o que quiser249.

* Quando fiz 50 anos, no dia de meu aniversário eu não podia sair de São Paulo por causa de Dona Lucilia. Não ia deixá-la no dia de meus anos, ela não compreenderia. Passei então o dia inteiro na rua Aureliano Coutinho, onde havia uma sala em que fazíamos habitualmente as reuniões do MNF. Passei o dia inteiro ali, só fui para casa para almoçar e voltei para lá, exclusivamente para refazer meu exame de consciência: me examinar ponto por ponto, esquadrinhando-me com a maior severidade, transformando-me em inimigo de mim mesmo para descobrir, dentro de mim, o que eu pudesse apontar a mim como causa daquele desvio de nosso caminho. Por que não dizer? Tive medo, dentro dessa situação, tive medo da vida que, diante disso, se descortinava para mim: vida de sofrimento, de decepção, de opróbrio, de nenhuma perspectiva de realização das esperanças primeiras que eu tivera, de uma série de fatos pequenos e grandes que poderiam não ter acontecido, e que chegaram a me dar a impressão de uma rejeição de Nossa Senhora. Eu lhes garanto que sofri muito com toda essa fase de perplexidade e de dúvida, até compreender que não, que isto era um caminho, que era normal, e que nós não estávamos desviados de nossa trajetória, mas que todo esse drama era um drama que estava no caminho; inclusive a surpresa desse drama também estava em nosso caminho, e que era preciso avançar. Eu já lhes contei que em uma ocasião – os do Grupo da Martim não tinham ainda aderido a nós, nem os conhecíamos nessa ocasião – estávamos, os seis ou sete que constituíam o grupo inicial, que era o rescaldo do incêndio do “Legionário”, reunidos na sede do andar térreo da Martim Francisco. Era tal a monotonia de vida naquela situação que não apresentava progresso, que não se compreendia o que é que estávamos fazendo reunidos ali.

248 Almoço EANS 9/4/87 249 Almoço EANS 9/4/87 102

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Todas as tentativas de romper o cerco davam em insucessos aflitivos. Então resolvemos, um pouco disfarçadamente para nós todos, pintar todo o andar térreo para que a sede tomasse um aspecto mais apresentável, mais agradável, melhor. Como eu não tinha habilidade nenhuma para isso, nessas noites ia para o meu escritório na cidade. E os outros ficavam lá, ficavam pintando. Então dois membros do Grupo, dos quais um apostatou e outro já faleceu, foram me procurar no escritório para me dizer que eu deveria prestar atenção na minha vida, porque devia haver uma maldição qualquer, pois não se compreendia que nós estivéssemos num tal descaminho. E fizeram-me o que os amigos de Jó fizeram com Jó. Aquela noite foi uma das duas noites de minha vida em que passei completamente em claro, não dormi, porque refiz todo o meu exame de consciência, porque eu achava que eles tinham razão. Devia haver um defeito em mim, deveria haver uma falta de generosidade que era culpada de tudo isso. E foi um verdadeiro tormento, uma verdadeira tortura250.

* Confesso que, retrospectivamente recordando-me hoje desses fatos, acho que esse foi o trecho mais bonito de nossas vidas. E por uma razão: nós fomos fazendo ali uma série de coisas que pareciam absurdas, mas que era só o que nós poderíamos fazer para continuar a viver. Depois, todas essas coisas deram um resultado espetacular. Quer dizer, Nossa Senhora deixou cair sobre nós um inverno rigoroso, Ela deixou cair todas as folhas de nossas árvores. E nós, então, começamos a fazer jardinagem em pleno inverno. E a árvore começou a dar flores e frutos em inverno. Exatamente isto foi a coisa mais bonita de nossa vida. Foi um tempo de provação tremenda, mas foi também um tempo de perseverança251. O lírio nascido do lodo, durante a noite e sob a tempestade Depois de algum tempo, ficou claro que o Grupo continuaria a existir. Aí eu saí de dentro da toca. Mas de que jeito? Indo jantar todos os domingos com os componentes do Grupo em um dos melhores restaurantes de São Paulo.

250 EE 18/07/91 251 Palestra sobre Memórias (VIII) 13/8/54 2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 103


Íamos todos com o distintivo, evidentemente. Além disso, chegando lá, fazíamos o “Em nome do Padre” antes e depois das refeições, o que absolutamente ninguém fazia em nenhum restaurante de São Paulo. Mas os membros do Grupo tinham recomendação de fazer dois “Em nome do Padre”: um como quem abre a oração e depois outro como quem fecha. Sentavam-se às mesas de um modo alegre, calmo, risonho. Se houvesse ocasião para dar risada de alguma coisa, faziam como quem se sentissem inteiramente à vontade. Tendo passado um bom tempo desde que adquirimos esse hábito, encontrei-me com um padre que era muito chegado ao Cardeal Motta. Este sacerdote pouco depois tornou-se bispo aqui. E ele me disse o seguinte: – O Cardeal está muito contente com os senhores. Os senhores não levantaram oposição contra ele, não falam mal dele, nem nada. Ele até julgaria que as coisas estão inteiramente em ordem, se o senhor não continuasse a manter aquele grupo. Sempre os mesmos amigos daquele tempo passado. De mais a mais, o senhor frequenta só os restaurantes da alta roda, e em muitos restaurantes fica todo mundo vendo que, apesar de tudo, seu grupo existe. – Mas o que é que o Sr. Cardeal queria? – Que o senhor se separasse desses amigos e desfizesse essa roda; não jantassem mais juntos aos domingos, à noite. – O Sr. Cardeal sabe perfeitamente que se trata de pessoas honradas, de uma moralidade ilibada, e que são católicos que rezam diariamente o rosário. São, portanto, para mim, amigos exemplares. Eu não tenho nenhuma razão para dispersá-los. Pelo Direito Canônico, se nós constituíssemos uma associação, ele teria o direito de dispersar. Mas, sendo como somos, um grupo que não é uma associação, ele não tem esse direito. Ele está intervindo na minha vida particular e na escolha de meus amigos particulares. Esse direito ele não tem e eu não tolero. Diga a ele que eu vou continuar a fazer exatamente o que eu estou fazendo. Mas, mandando-me este recado, o Cardeal passava recibo: o comparecer nos restaurantes da mais alta roda; comparecer sempre aos domingos; e comparecer desse jeito, era marcar o que São Paulo tem de mais alto. Pensei: “Portanto, foi encontrado o terreno em que eu vou continuar a combatê-lo, sem ele poder me amolar”. Nisso estamos252.

* Nosso período catacumbal durou quatro anos. Mas quatro que traziam constantemente consigo os tristes sintomas de um estado definitivo e sem 252 Relato Chá PS 14/6/95 104

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remédio. Imagine um pugilo de líderes já sem liderados, um grupo que já cumpriu sua missão, sobreviveu a ela, e fica sobrando. Esta era a nossa situação quando o mais velho de nós tinha 40 anos e o mais jovem 25! Resolvemos continuar unidos, em uma vigília de oração e análise dos acontecimentos até quando Deus quisesse. Na pequena sede na rua Martim Francisco que havíamos alugado, reunimo-nos todas as noites sem exceção. Recordação, sem amargura nem orgulho, das glórias da imolação dos dias idos. Análise solícita e entristecida, da deterioração discreta e implacável da situação religiosa. Estudos doutrinários em comum. Convívio fraterno e cordial. Assim a Providência colocava as condições ideais para nos unir. Veio daí um tal enrijecimento de nossa coesão no pensar, no sentir e no agir, como mais seria difícil imaginar. Escondida em terra, a semente germinava. Ainda me lembro de um dia de janeiro de 1947, em que noticiei a meus amigos que, segundo uma emissora, Pio XII nomeara bispo de Jacarezinho o Pe. Sigaud. Como? O quê? Nossa alegria era grande, mas a dúvida ainda maior. O Pe. Sigaud, durante o vendaval, fora mandado como missionário à longínqua Espanha. Voltaria então? Sim, voltaria. E nossa alegria subiu ao céu como um hino. Uma estrela se acendia, a brilhar na noite de nosso exílio, sobre os destroços de nosso naufrágio! Contra toda a expectativa, outra alegria nos esperava no ano seguinte. Ao chegar eu, numa noite de março de 1948, à nossa catacumba, um amigo me esperava à porta, efervescente de júbilo. O Cônego Mayer, que passara, durante a tormenta, do alto cargo de Vigário Geral de Arquidiocese para vigário do distante, e aliás tão simpático Belenzinho, acabava de nos comunicar sua nomeação para bispo-coadjutor de Campos. É inútil dizer com que exultação fomos no mesmo instante felicitá-lo. A sucessão dos fatos tinha um significado iniludível. Essas duas nomeações, uma em seguida à outra, valiam por um testemunho de confiança de Pio XII, que envolvia obviamente a atuação anterior de ambos os sacerdotes... Essas duas surpresas não foram as maiores. Exatamente um ano depois, um religioso muito amigo, cujo nome não ouso declinar sem consultá-lo (e ele está de viagem), me entregou uma correspondência vinda do Vaticano para mim. Pio XII louvava e recomendava o livro do kamikaze. Dir-se-ia que, com estes três fatos, a situação voltava a ser para nós o que era antes de 1943. Engano. No que diz respeito aos ex-redatores do “Legionário”, ela ficou inalterada. Surpreendente contradição dos fatos, sobre a qual é cedo para falar. Mas um acontecimento sobreveio mais ou menos paralelamente a essas vitórias, que marcaria a fundo nosso futuro.

2ª PARTE – NOVAS PROVAÇÕES NO LIMIAR DA PRÓPRIA VOCAÇÃO 105


O Pe. W. Mariaux, S.J., fundara, no Colégio São Luís, uma Congregação Mariana brilhante. Destinado o notável jesuíta, para a Europa, por seus Superiores, parte dos congregados nos procurou solicitando ingresso em nosso grupo. Eram cerca de 15 elementos jovens, de inteligência e capacidade de ação invulgares. Conosco, constituíram eles uma só equipe para a qual o valoroso D. Mayer abria as colunas do grande mensário de cultura “Catolicismo”, que fundou em 1951. Como as circunstâncias do País iam mudando, nosso interesse se ia ampliando cada vez mais para o campo social. Escrevi então, em 1959, um ensaio expondo nossas teses essenciais na matéria. Intitulou-se “Revolução e Contra-Revolução”. O trabalho teve oito edições: duas em português, uma em francês, uma em italiano e quatro em espanhol. Estava criado o campo para se desprender de todos estes antecedentes uma ação de uma natureza diversa, isto é, tipicamente cívica e temporal. Em 1960, se constituía a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, para junto da qual afluíram todos os amigos que o idealismo, a desventura, a fidelidade, e as recentes alegrias tão intimamente haviam fundido em uma só alma253.

253 “Nasce a TFP”, Folha de S. Paulo, 22/02/69. 106

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3ª PARTE

A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL DE CARÁTER PROFÉTICO Uma vocação contra-revolucionária Já na infância, a consciência de minha vocação punha-se em termos altos, e o futuro que tinha pela frente se apresentava a mim com lufadas de caráter profético254. Nesse mesmo tempo, de vez em quando, vinham-me acessos que eram um misto de infantilidade e de evasão dessa grandeza dentro da qual eu morava. Esses acessos de infantilidade constituíam uma tentação. Mas ficava na dúvida de qual era o valor dessas previsões que eu sentia255.

* Jovem, eu me dizia a mim mesmo o seguinte: “Se sou o único que vejo tão bem isto que os mais interessados em liquidar com a Revolução não veem, então eu tenho uma vocação”. E algo de interno correspondia a essa série de convicções. Quer dizer, quando eu refletia sobre isso, sentia que tudo quanto havia de bom em mim florescia. Pelo contrário, eu sentia que se deixasse de pensar nessas coisas, ou me permitisse a menor dúvida nesses assuntos, tudo quanto havia de bom em mim caía e o que havia de ruim crescia. Isto tudo corresponde com o que o Abbé de Saint Laurent, o autor do “Livro da Confiança”, diz muito bem logo no comecinho: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós dizeis em nosso coração palavras de doçura e de paz”. Só que, sem querer, porque eu não conhecia ainda o livro de Saint Laurent, fazia um raciocínio que ia nessa linha com uma certa diferença. 254 Ver nota 308 sobre o sentido do profetismo no Novo Testamento. 255 MNF 12/12/85 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 107


Eu pensava: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça, vós dizeis em nosso coração palavras de batalha e vitória”. Notem que tudo isso era uma construção bem lógica, e que, pela graça de Nossa Senhora, não permitia dúvidas. O anseio por um líder contra-revolucionário Não tinha dúvida de que a Revolução estava diante de mim; de que era preciso fazer a Contra-Revolução, eu não tinha dúvida; de que eu teria de trabalhar muito para fazer a Contra-Revolução, não tinha dúvida nenhuma. Receava não encontrar pessoas ao longo de minha vida mais contra-revolucionárias do que eu. Mas tinha uma esperança enorme de encontrá-las. Pessoas que fossem mais contra-revolucionárias que eu, e que fossem investidas de um verdadeiro direito ao mando nessa matéria, e das quais eu pudesse ser um campeão, mas nunca um diretor, um mentor. Como é que seriam? Por exemplo, um cardeal ou um Papa ultra-contra-revolucionário. Ou um príncipe ultra-contra-revolucionário. Deve haver pela Europa – imaginava eu – um príncipe perfeito, um cardeal perfeito. Se não for cardeal, será um abade, será um grande eclesiástico, um grande pregador. Enfim, nas fileiras das classes que a Revolução quer destruir, devo certamente encontrar os contra-revolucionários perfeitos, com direito a mando, e junto aos quais eu possa exercer uma influência na linha do que está no meu espírito256.

* E fui à Europa em 1950 e 1952 levado pelo seguinte raciocínio: “Não tem dúvida de que eu devo uma boa parte das minhas convicções à tradição que a minha família tem e que ela recebeu evidentemente de fontes europeias. Agora, se isto é assim, é natural que, estando na própria Europa, eu encontre o fogo dessas tradições ainda muito mais aceso. E então é natural que eu encontre pessoas que sejam verdadeiramente capazes de concordar comigo, de ter o nosso espírito. E o Grupo poderá provavelmente se expandir na Europa muito mais do que no Brasil”257. Donde então eu ter traçado o seguinte plano fundamental de viagem à Europa, do ponto de vista estratégico, do ponto de vista de nossa propaganda:

256 MNF 12/12/85 257 Sede de São Milas, 28/7/73 108

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Primeiro, era de encontrar os movimentos católicos, os movimentos direitistas – excluídos naturalmente os nazistas e os fascistas – que se manifestassem sensíveis à tradição europeia, e onde eu facilmente poderia encontrar pessoas que pudessem concordar conosco. Segunda, de procurar, entre estes, os líderes de grande alcance, de grande inteligência, de grande capacidade, e que tivessem o mesmo pensamento que nós e com os quais nós pudéssemos articular uma coligação mundial das direitas, sob a direção desses líderes. Porque me parecia que um movimento pequeno, constante de seis pessoas em São Paulo, não tinha título nenhum para liderar nada. E me parecia natural, como já disse, que na Europa estivessem os luzeiros capazes de dirigir o movimento contra-revolucionário universal258. Notem bem que eu não fui à Europa à cata de bases para liderar. Pelo contrário, se minha viagem à Europa tivesse dado resultado, eu teria vindo tendo por cima de nossas cabeças líderes. Líderes civis na esfera temporal, e pessoas de alta categoria eclesiástica que pudessem nos dar uma diretriz no que diz respeito ao caráter especificamente religioso de nossas atividades. Eu fui, portanto, como um vassalo à procura de suserano. Não fui como um suserano à procura de vassalos259.

* Eu procurava quem fosse capaz, quem tivesse prestígio, quem tivesse força, quem tivesse relações suficientes para entrar dentro dessa luta de lógica, luta de talento, luta de energia, luta de força, que era a que existia no momento. E na qual eu já estava inteiramente empenhado. Eu queria que alguém capitaneasse. Como é que eu o imaginava? Eu não imaginava. Eu imaginava que ele fosse inimaginável. Que bastaria encontrá-lo e eu diria: “É este”. Antes disso, eu não podia imaginar como ele seria. E não o encontrei. Aqui estamos nós, à procura260.

258 Sede de São Milas, 28/7/73 259 Sede de São Milas, 28/7/73 260 SD 18/12/91 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 109


O receio de ter que assumir a liderança da Contra-Revolução Nós fomos peregrinos à procura dos restos da Cristandade. Nossas peregrinações deram resultados os mais pungentes, os mais desapontadores que se possa imaginar261. Procurei contato com as classes mais tradicionais, as classes que a Revolução procurou liquidar e destruir: o clero e a nobreza. Procurei os elementos mais conservadores do clero e da nobreza. E verifiquei que em nenhum havia a posição inteiramente contra-revolucionária que a TFP tinha262. Notem que eu não tinha ideia de que, o que estava no meu espírito, era a graça, porque, nessa época, eu não tinha ideia da graça. Bem, isso tudo eu sabia e tinha certeza. Não tinha certeza de encontrar essas pessoas. E às vezes pensava: “Nossa Senhora, coitada (é um absurdo dizer d’Ela “coitada”), eu desconfio que Ela vai ter de acabar se contentando comigo. Porque eu vejo que fazer, Ela fará, e que Ela pegará qualquer ‘dois de paus’, se utilizará dele para fazer o que Ela quiser, caso os naturalmente chamados não quiserem. E esse ‘dois de paus’ posso ser eu”. Isso eu considerava sem ambição, sobretudo sem nenhum orgulho, sentindo bem minha desproporção. Mas tinha, de outro lado, até certo receio que isso fosse verdade, porque exigiria de mim mais esforço sobre mim mesmo, para chegar ao píncaro de mim mesmo. E exigiria de mim mais luta da que eu teria se tivesse um chefe. Mas, podia ser, e no total eu deveria me preparar inclusive para isso. Os episódios da Ação Católica me desiludiram do clero e a minha viagem em 1950 à Europa me desiludiu da nobreza. E aí a ideia de uma missão pessoal se vincou muito mais263.

* Percebia que alguém tinha que fazer isto. Deveria haver, para uma obra tão ampla, um ponto de coordenação uno, senão ela não se faria. Mas por todos os lados das vastidões do meu horizonte, eu não notava ninguém assim. E eu me dizia: “Alguém tem que fazer. Eu não me vejo a não ser a mim. E olhando-me a mim, vejo que posso fazer alguma coisa nessa direção. Sei o que eu posso fazer não é pouco para o que um homem pode 261 Palavrinha EANS 11/6/82 262 SD 17/5/85 263 MNF 12/12/85 110

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fazer, mas é aflitivamente pouco diante do tamanho da obra. Mas posso e devo contar com Nossa Senhora para isso. E o que faltar Ela completará. Pammm! Vamos à obra!”264.

* Eu quisera que houvera organizações muito melhores que a TFP, muito mais perfeitas que a TFP. Se soubesse de uma assim, eu viajaria imediatamente para conhecê-la. E o homem, o varão que tivesse fundado essa associação e que a dirigisse, eu teria a alegria de prestar homenagem de minha vassalagem, mas alegria porque ele teria feito por Nossa Senhora mais do que eu, e não quero outra coisa senão que os outros A sirvam muito melhor do que eu, mas incomparavelmente melhor do que eu. Como eu agradeceria, mas agradeceria de joelhos, eu beijaria as mãos e os pés do homem que serve a Nossa Senhora bem mais do que eu, muito melhor. Como eu quereria servi-lo. É claro, pois o que nós queremos é que Ela seja servida, que a causa ultramontana seja de todo em todo bem atendida, e que Ela vença. Isto é o que nós queremos. Procuramos, e infelizmente não encontramos. Mas se nós procuramos e não encontramos, e se nós vemos que Nossa Senhora quis que fôssemos nós essa espécie de arca da aliança, essa espécie de laço, de vínculo entre um passado tão glorioso e um futuro tão glorioso, passando através de um presente tão negro, então nós deveríamos dizer: nossa vocação é profética, nossa vocação é especialíssima265. O RECONFORTO DA ESPIRITUALIDADE CARMELITANA E DA FIGURA DO PROFETA ELIAS Ingresso e expulsão inválida da Ordem Terceira do Carmo Quando jovem, fui certa vez à igreja da Ordem Terceira do Carmo – que ainda existe no centro da cidade – porque viria um grande pregador. Vi entrar o cortejo dos carmelitas com os seus hábitos, e tive não sei que impressão fortíssima, e o desejo de ser Terceiro Carmelita. A Ordem do Carmo tem três ramos: a Ordem Primeira, constituída pelos padres; a Ordem Segunda, constituída pelas freiras; e a Ordem Terceira, constituída por leigos. Nessa Ordem Terceira, os membros são verdadeiros 264 CSN 11/6/94 265 Simpósio sobre apostolado, 12/01/72 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 111


membros da Ordem do Carmo, pertencem efetiva e juridicamente à grande família de alma do Profeta Elias266. Comecei então a ler a vida dos grandes santos carmelitas: Santa Teresa de Jesus, Santa Teresinha do Menino Jesus, algo de São João da Cruz e de outros santos daquela ordem. E isso me impressionou muitíssimo. Impressionou-me mais ainda, quando eu li que o Profeta Elias foi o fundador da Ordem do Carmo. Tudo isso me deu muito desejo de ser carmelita267. Senti uma afinidade extraordinária com a Ordem do Carmo, baseado em grande parte no que ela tem de profético, porque a ordem profética por excelência é a Ordem do Carmo268.

* Por volta de 1945, um bom amigo e muito bom cliente de meu escritório de advocacia nos contou um dia que o “Legionário” tinha um frade carmelita que era muito nosso admirador, solidário com todas as atitudes do “Legionário”. Ele se chamava Frei Jerônimo van Hinten, professor de Teologia Dogmática no seminário, e era tido como muito inteligente, muito influente, um dos religiosos de mais futuro na sua Ordem. Nós prontamente arranjamos um jeito de ter relações e ele começou a frequentar muito amistosamente nossa sede, dando apoio à nossa pequena família de almas, que era naquele tempo apenas o pessoal do grupo da rua Pará269. Como era natural, Frei Jerônimo também começou a nos colocar em contato com a sua ordem religiosa. E começaram relações de amizade com outro holandês alto, magro, chamado Frei Batista Blemke, homem de uma voz cava e muito pensativo270. Como advogado da Ordem do Carmo, comecei a frequentar o convento deles e vi que tinham um sodalício da Ordem Terceira do Carmo, e que este 266 SD 4/11/72 267 Palavrinha 26/1/84 268 Sede de São Milas, 4/11/72 269 O chamado “grupo da Pará” era todo ele constituído pelos remanescentes do “grupo do Legionário”. Tomaram o nome de “grupo da Vieira”, por se reunirem na sede da rua Vieira de Carvalho, nº 27, 6º e 7º andares. Quando, em 25 de agosto de 1961, a sede foi transferida para a rua Pará, nº 50, no Bairro de Higienópolis, passaram a ser chamados de “grupo da Pará”. Esta última sede se tornou, pouco depois, a sede do Conselho Nacional da TFP, permanecendo assim até 25 de fevereiro de 1971, quando da instalação da sede da rua Maranhão, nº 341. 270 Sede de São Milas, 4/11/72 112

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sodalício estava aberto para que nosso grupo entrasse. Pensei: “Isso é um galho onde nós podemos pousar, para não sermos apenas o ex-grupo do “Legionário”, e sermos o grupo da Ordem Terceira do Carmo”271. Quer dizer, era um modo indireto de voltar à militância católica272. Pedimos para entrar e eles nos receberam muito bem como membros da Ordem Terceira do Carmo. Pouco depois tornei-me Prior do Sodalício Virgo Flos Carmeli273. Usávamos, durante as reuniões e cerimônias, escapulário e hábito que iam até os pés, como uma batina de sacerdote274. Ali passamos algum tempo militando como Terceiros Carmelitas275. Nós comparecíamos regularmente à Basílica do Carmo, situada na rua Martiniano de Carvalho, e participávamos das cerimônias276. Um dos mais belos atos a que nos entregávamos era uma adoração noturna mensal que se fazia nessa Basílica, em que Frei Jerônimo expunha o Santíssimo Sacramento e nós ficávamos rezando mais ou menos desde as nove, nove e meia da noite, se não me engano, até meia noite, hora em que ele dava a benção do Santíssimo e todos saíamos277. Quando o nosso sodalício na Ordem Terceira se fundou, a atmosfera ainda era de simpatia para conosco. Passou-se algum tempo e a Ordem não crescia. E alguns carmelitas começaram a resmungar o seguinte: “Esta Ordem só não cresce, porque o Plinio é o prior, e o Plinio é muito antipatizado. É preciso pôr um prior com ideias modernas, que então a Ordem crescerá enormemente”. Mas pouco depois começou a entrar no nosso meio o pessoal da Martim e o grupo da Aureliano Coutinho. A Ordem Terceira se tornou tão numerosa que ocupava uma fileira quase inteira de bancos, desde o começo até o fim da Basílica. A entrada ou saída de todos com o hábito da Ordem Terceira era uma verdadeira beleza.

271 SD 8/4/89 272 Relato de trechos do jantar EANS 15/6/82 273 O nome que Dr. Plinio tomou na Ordem Terceira foi o de Irmão Isaías de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. O Sodalício Virgo Flos Carmeli foi constituído em fevereiro de 1954, após a entrada, como Terceiros Carmelitas, dos membros do “grupo de Martim”. 274 SD 8/4/89 275 SD 8/4/89 276 Chá Praesto Sum 20/7/94 277 Sede de São Milas, 4/11/72 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 113


Aí ficaram quietos, porque não podiam dizer que era a minha antipatia que afastava as pessoas da Ordem. Pelo contrário, a futura TFP tinha enchido a Ordem278. Mas os liturgicistas ficavam furiosos, porque entrávamos de hábito na igreja, em fila, cantando.279 Frei Jerônimo aguentava a má vontade crescente que o progressismo instilara nos religiosos da Ordem do Carmo contra nós. A certa altura começou a perseguição. Superiores contrários a nós mostraram-se embirrados conosco pelas coisas mais ridículas. Em vez de se comoverem ao verem homens e rapazes que iam lá rezar quando todo o mundo naquela idade se entregava aos prazeres, eles se embirravam porque alguns de nós, quando entrávamos, batíamos a porta e os acordava do sono280. Um dia apareceu numa reunião da Ordem Terceira um holandezinho baixinho, com um cabelinho escuro primorosamente bem penteado, formando na frente um topetinho, carinha de pimenta, jeitinho de ponto e vírgula: era Frei Bonifácio Harink, visitador das Ordens Terceiras do Carmo. Frei Bonifácio sentou-se com carinha enfezada, saudações etc. Terminado, ele disse: “Agradeço as homenagens desse sodalício, mas não posso deixar de manifestar meu desacordo por tal irregularidade”. Era uma ninharia. Pensei: “Aqui já entrou o veneno litúrgico e a pata do progressismo”. De repente, Frei Bonifácio foi nomeado Prior do Convento. Foi o começo da perseguição281. Aí inventaram outras brigas. E sem razão, por pura maldade282, eles determinaram nossa exclusão da Ordem Terceira do Carmo. Isto foi das injustiças mais flagrantes que contra nós se cometeram283. Frei Jerônimo, bom conhecedor da regra da Ordem Terceira, fez com que interpuséssemos um recurso ao Geral, tão bem redigido e tão bem feito 278 SD 4/11/72 279 Relato de trechos do jantar EANS 15/6/82 280 SD 4/11/72 281 Relato de trechos do jantar EANS 15/6/82 282 SD 4/11/72 283 SD 4/11/72 - Essa “expulsão” arbitrária, brutal e ademais inválida, deu-se durante o congresso provincial das Ordens Terceiras, realizado em fins de 1965 na histórica cidade de Ouro Preto. Os Terceiros Carmelitas atingidos recorreram então ao Prior-Geral em Roma contra essa medida injusta e intempestiva. Tal recurso tinha, segundo as regras da Ordem Carmelitana, um efeito suspensivo da expulsão. E como até hoje não obteve resposta, os antigos Terceiros Carmelitas seguidores de Dr. Plinio continuam até hoje como tal, na condição de “irmãos dispersos”, o que está previsto na Santa Regra da Ordem de então (art. 7 e 69). 114

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que o Geral não respondeu. Nosso caso não foi decidido, e por causa disso continuamos Terceiros Carmelitas até agora284.

* Por que dou tanta importância a pertencermos à Ordem Terceira do Carmo? Qual é a graça que há em pertencer à Ordem do Carmo? Além de ela representar a continuação do espírito de Elias e dos justos do Antigo Testamento, e ser a única ordem religiosa consagrada a Nossa Senhora. Disse de propósito “ordem religiosa”, e não “congregação religiosa”. Uma ordem religiosa é uma escola de espiritualidade, uma escola de santidade que retrata um dos mil aspectos riquíssimos do espírito da Igreja Católica. E as pessoas que pertencem a essa família religiosa, recebem graças especiais, que são as graças próprias para esse tipo de santificação. Essas graças são graças valiosíssimas e que concorrem poderosamente para a santificação285. Quando, pela misericórdia de Deus, alcançarmos o Céu, quais são as harmonias espirituais que nós ouviremos, tecendo esta voz única da Ordem do Carmo? São vozes tão grandes, tão nobres, tão magníficas, tão diferentes, que constituem por si só uma verdadeira sinfonia, uma verdadeira orquestra! Abre-se esse conjunto de vozes com a grande voz imponente, régia, solene, de Santo Elias. É o primeiro santo carmelitano, é o primeiro santo que falou da devoção a Nossa Senhora e que previu Nossa Senhora, quando veio aquela nuvenzinha sobre o deserto e aquela nuvem choveu e aquilo representava Nossa Senhora que chove a Jesus Cristo, da qual se gera Jesus Cristo, que deu fecundidade a toda a terra. É a grande voz de Elias, que cobre a História de uma ponta a outra. Porque, a partir do momento em que ele aparece na História, ainda nas penumbras do Antigo Testamento, a figura dele se coloca de um modo irradiante e ficará até o fim do mundo! E, nas últimas harmonias da História, vamos ouvir a voz carmelitana de Santo Elias, fulgurando, increpando o Anticristo, fulgurando contra ele, levando os povos à luta contra ele, desmascarando-o! Por fim, sendo morto por ele. É o gemido de Santo Elias. E depois, o próprio Nosso Senhor que vem e que com o sopro de Sua boca dispersa o Anticristo e estabelece o Seu reino! Quer dizer, é uma grande voz carmelitana que cobre a História, e que enche o coro do Carmo do princípio ao fim. Santo Elias é a vida da Ordem do Carmo. 284 SD 4/11/72 285 SD 15/11/66 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 115


Os Terceiros Carmelitanos não estão alheios a isso. E nós somos uma Ordem carmelita no exílio. Nós somos a Ordem carmelitana do silêncio. É a Ordem Terceira do silêncio! Isto por sermos carmelitas e a nossa injustíssima expulsão da Ordem do Carmo não ter valor legal. Mas a fidelidade continua, pelo menos nesse conjunto nosso de Terceiros Carmelitas, que prolongam de algum modo a mentalidade e a fidelidade da Ordem do Carmo no Brasil286.

* Nesta data da festa de Santo Elias, não é temerário supor que ele se compraz em nós. Com certeza, ele sabe que, neste mundo em que tão poucas pessoas estão se lembrando dele com verdadeira piedade, reúne-se gente para ouvir algumas palavras sobre sua grandeza e se empolgam com o que ele fez, como irmãos e filhos dele na Ordem do Carmo à qual pertencemos. Os senhores compreendem quantas razões há para o profeta Elias nos amar. Mas, mais do que todas, há esta razão: ele, o profeta da Virgem, ver aqui uma série de escravos, não mais almas isoladas, mas uma falange de almas consagradas a Nossa Senhora pelo método de São Luís Maria Grignion de Montfort e realizando, portanto, a plenitude daquela devoção que ele previu, no momento em que tantas pessoas abandonam a devoção a Nossa Senhora. Devoção a Nossa Senhora do Carmo Nossa Senhora é a Rainha da Ordem do Carmo. A Ordem do Carmo é a primeira Ordem que, como já disse, foi constituída para louvar a Nossa Senhora! E a devoção oficial da Ordem do Carmo é a devoção da escravidão a Nossa Senhora. O cântico que Nossa Senhora vai receber no Céu, de todos os seus carmelitas, será o cântico de seus escravos!287 Na última aparição na Cova da Iria, Ela se mostrou com as características de Nossa Senhora de Fátima, mas mostrou-se também como o Imaculado Coração de Maria e, na manifestação dos Mistérios Gloriosos, como Nossa Senhora do Carmo. Por que Ela se apresentou como Nossa Senhora do Carmo? Que relação tem a invocação do Carmo com os tempos vindouros, em que seu Coração vai triunfar? Há alguma tarefa do Carmo, alguma missão do Carmo dentro 286 SD 14/11/70 287 SD 14/11/70 116

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disso? Essa pergunta nos interessa muito, tomando em consideração que quase todos nós somos Terceiros Carmelitas288. Quando a Sagrada Imagem veio pela primeira vez ao Brasil e foi revestida com o hábito do Carmo, ela estava como que risonha, como quem estivesse contente daquele traje carmelita, por estabelecer mais uma vinculação entre a imagem e nós, pelo fato de nós termos essa devoção carmelitana e só não serem terceiros do Carmo aqueles que não puderam ser. Do contrário, todos seríamos Terceiros do Carmo. Essa vinculação profética com Santo Elias agradou Nossa Senhora e Ela tomou uma atitude de como quem diz: “Meus filhos, com a invocação do Carmo, vendo-me invocada assim, vendo-me ligada a vós pelo vínculo profético, pelo vínculo carmelitano, eu me alegro e eu sorrio para vós, eu vos serei propícia”289. Entusiasmo pelo Profeta Elias e o zelo pela causa de Deus Tudo de Elias me entusiasma, mas de um entusiasmo reparador, porque sempre que vejo alguma coisa que é caracteristicamente dele, sinto um alívio pela confirmação de que aquilo é verdadeiramente da Igreja. Sendo verdadeiramente da Igreja, representa verdadeiramente a Deus. A imagem que devemos fazer de Deus, portanto de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos, dos serafins colocados in excelsis, deve incluir esses traços para nos dar uma verdadeira imagem da santidade perfeita, seráfica.

* Quando fui prior da Ordem Terceira do Carmo, o cerimonial exigia que, ao entrar na igreja – todos com o hábito de Terceiros Carmelitas – fôssemos em cortejo pelo pátio interno do convento, passássemos em frente ao presbitério, ganhássemos a ala da Epístola, fôssemos até diante do altar-mor, caminhássemos pelo centro e ocupássemos os nossos lugares. Um dia, embalado pelo costume e pelo ritmo desse cerimonial, fui seguindo esse percurso sem maior atenção. De repente vejo, na parede que corresponde ao fundo da nave esquerda da igreja290, uma pintura-mural representando um profeta com quem Deus fala e que lhe pergunta: “O que 288 SD 13/5/65 289 SD 14/5/73 290 CM 2/5/93 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 117


fazes?” E ele deu aquela resposta famosa: “Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum” – “Eu me consumo de zelo pelo Senhor Deus dos Exércitos”291. Essa pintura levantou inteiro o meu entusiasmo, o meu contentamento, mas também a minha segurança. Sendo um trecho do Antigo Testamento – embaixo vinha pintado que era o livro I dos Reis, 19, 14 – e, portanto, palavras do Espírito Santo, constituía um elogio e uma indicação de que assim se deveria ser. O homem que se tornasse zeloso, mas de um zelo fogoso, ardente por aquele que é o Senhor Deus dos exércitos, este homem seria extraordinário, seria um homem que preencheria inteiramente as exigências do amor de Deus292. Ou seja, eu queria que, pelo Senhor Deus, houvesse exércitos inteiros para O defender, para atacarem seus adversários: “Vinde, vinde! exércitos dos quatro canto do horizonte da terra, porque estou desejoso de lutar, estou desejoso de medir forças!” Curiosamente não percebi na hora que aquela pintura representava Elias, nem conhecia esse episódio da vida de Elias. Olhei-a e pensei: “Quando chegar lá dentro, vou perguntar qual é esse santo, porque esse santo é o meu padroeiro.”293

* Como é que imagino Elias e como eu olharia para ele, se me aparecesse? Eu o olharia como a realização inteira daquilo que desejaria conhecer depois de ter encontrado e feito uma ideia abarcante de todos os homens que estavam na minha trajetória conhecer. Como é esse homem protótipo, esse homem perfeito, o homem que previu o nascimento de Maria? O homem que foi o primeiro escravo d’Ela antes mesmo de Ela existir, e quando Ela era apenas um possível esplendor dentro dos esplendores do Padre Eterno? Como é esse homem que A venerou e lhe prestou culto de hiperdulia? Como é esse homem que, em Maria, viu Nosso Senhor Jesus Cristo que iria nascer, como ele viu na nuvem a chuva que iria encher Israel? Elias, majestoso, vindo de todas as grandezas do Antigo Testamento! Elias, batizado, aureolado por todos os imponderáveis magníficos do Novo Testamento! Elias, visitado por Nosso Senhor Jesus Cristo, aparecendo ao lado d’Ele no monte Tabor, porque ele era o “zelo zelatus sum”. O que faria diante de Elias? Eu me ajoelharia e diria: 291 SD 20/7/91 292 CM 2/5/93 293 SD 20/7/91 118

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– Ó meu arquétipo demasiadamente grande! Meu arquétipo que me inunda a alma como a chuva inundou o reino de Israel. Vi tanta revolução, vi tanto pecado; vi a Revolução e o pecado entrarem no lugar santo, vi a abominação da desolação sentada no lugar sagrado, vi todos esses auges. Mas não vi – a não ser na Santa Igreja como instituição – algo como vós, ó Elias Profeta! Eu vos agradeço porque, vendo-vos, vi a porta do Céu. Vós sois a porta fechada do Céu, cujos batentes pintam o que está por detrás. Vós sois os batentes da porta do Céu que se abrem para me deixar passar. Elias, fazei-me inteiramente como eu gostaria de ser, ou seja, dai-me um ódio da Revolução que seja na proporção do que vos pediu Eliseu profeta: duas vezes o vosso espírito, ou cem vezes o vosso espírito. Imaginai o varão mais capaz de ódio sagrado que apareceu na Terra, dai-me esse ódio! Imaginai o varão mais admirativo que apareceu na Terra e dai-me essa admiração por Nossa Senhora, de tal maneira que, sentindo em mim essa admiração, pudesse dizer: ‘Realmente, mesmo se Ela não me ajudar, estalo de tanto admirar’. E aí sim eu direi: ‘A vossa visita se explica, porque vós viestes para encher a alma de vosso filho’”294.

* A alegria de ver que Elias foi assim, deu-me uma confirmação aos bramidos interiores mais impetuosos de minha alma. Esses bramidos viram-se ainda mais confirmados quando, num livro de vida espiritual, li que, na liturgia católica de rito siríaco, está dito que Deus tirou Elias da terra porque ele era tão zeloso que, se Deus o deixasse aqui, ele destruiria tudo. Nosso anseio de que o mal seja castigado é precisamente este. Estes somos nós quando somos como devemos ser. É o mesmo zelo devorador que, ao ver qualquer coisa torta, errada, qualquer coisa que represente uma concessão ao mal e que dê a ele cidadania, ergue-se em incompatibilidade clara, categórica e, num certo sentido da palavra, desabrida. No sentido literal da palavra desabrido, quer dizer, que não foi fechado, que não foi oculta, que está aberta, ostentada, manifestada a todo mundo: aquilo que foi feito não podia ser feito. Se o espírito do Profeta Elias é assim, e se é este o desejo que Deus tem em relação a esses seus filhos, então é verdade também que Deus quer que estes filhos, por meio de um apostolado bem feito, sejam aptos a lutar para submeter a terra a Ele, Deus. E estejam convictos de que esse método “eliático” de apostolado é capaz de vencer. Deus não poderia querer a sua

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própria vitória e querer ao mesmo tempo dos homens um modo de trabalhar por ela que desse na ruína deles. Portanto, tem-se de deduzir que a política “eliática” é, estrategicamente falando, a mais inteligente e a mais eficaz, desde que se saiba ver os acontecimentos no seu conjunto, e não apenas uma determinada situação concreta. Neste sentido, pode-se até concluir que seria uma frustração não ser perseguido. Como Elias, que tomaria em linha de conta de frustração se ele não tivesse sido perseguido. Esta é a luta comum do católico, e sobretudo do católico “comme il faut”, como deve ser. Neste sentido Santo Elias seria o arquétipo do católico “comme il faut”. E seria o homem que é como se deve ser, quer dizer, o lutador perfeito295. O profeta Elias estava colocado para o holocausto como o sacerdote e a vítima estão colocados para o sacrifício. O holocausto era a razão de ser de toda a mentalidade do profeta Elias, que dava a ele todas as suas características e seu modo de ser. O que era para ele o holocausto? Era um ato pelo qual ele imolava a sua vida completamente, inteiramente, em aras de uma determinada fidelidade, que é a vontade de Deus. Num século de infidelidade completa, Deus teria suscitado pelas vastidões das gentes algumas almas que teriam visto mais ou menos o fenômeno da impiedade. Mas que – na sua quase totalidade – o teriam visto de um modo muito incompleto e que, por causa disto, teriam tomado em face do povo que idolatrava Baal uma posição de reação incompleta. Deus quis então de um varão, que ele conhecesse a impiedade por completo e tivesse em relação a ela uma rejeição tão grande como era grande a impiedade do povo. Quer dizer, que tivesse visto a impiedade na sua totalidade, no negrume dos seus desígnios, na amplitude e na infâmia dos seus meios, nos mil pormenores em que ela se realizava, com uma intensidade que era de deixar as pessoas estupefatas. Deus quis que esse varão, tomando tudo isto no seu conjunto, visse esse conjunto por inteiro, por completo, e sofresse de um sofrimento proporcional a essa cognição. Este sofrimento equivaleria a dizer: – Para mim, depois do que vi na Terra, não pode haver nada de apetecível, não pode haver nada de atraente, não pode haver nada que me alegre nem me deixe contente. Só uma coisa é a minha vida depois que vi isto: um protesto de começo ao fim contra tudo o que a impiedade faz, e tomando todos os instantes da minha vida. A minha vida não é senão uma discordância, uma estridência, uma rejeição e uma oposição contínua a 295 CM 2/5/93 120

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tudo quanto é feito no sentido da impiedade, às vezes em coisas mínimas, das quais outras pessoas dificilmente poderiam ter ideia. A minha vida é ter em mim o amor daquilo que é o contrário do que Baal está fazendo, e ser a contra-impiedade em estado vivo, em tudo e por tudo. E não quero nada da vida, não me preocupo com coisa alguma dela, a não ser abater a idolatria! Sou o contrário desse monstro. E a razão de ser da minha vida é liquidar esse monstro! Não me incomoda ficar rico, importante; não me incomoda nada disso. Quero só uma coisa: destruir a impiedade!” Quer dizer, isto seria um holocausto, porque implicaria em modelar toda a alma de acordo com aquele anti-modelo, e fazendo abstração de preferências pessoais, gostos pessoais, apetências. Sendo, portanto, o “anti” dos anti-Deus e assim me tornar completamente conforme a Deus. Quase diria – o que eu vou afirmar é muito ousado, e só se justifica num certo sentido da palavra – mais olhando para o anti-Deus do que para o próprio Deus. Quer dizer, à força de rejeitar aquilo que é contra Deus, per diametrum ficar parecido com Ele, ficar com a alma semelhante a Ele. Seria então praticar essa rejeição até onde ela pode ser praticada, aguentando todos os cansaços, todos os sofrimentos, todas as humilhações, todas as aflições, todas as demoras, todas as decepções, todas as solidões, todas as rejeições, todos os abandonos em todos os graus, em todas as formas, em todas as horas do dia e da noite, aguentando isto tudo para que a impiedade fosse derrotada. Isto seria o holocausto do profeta Elias. E é por aí que a mentalidade dele se explica, e é por aí que ele é completamente entendido296.

* Assim também deve procurar ser a alma de cada um de nós. Podemos dizer a Deus por meio de Maria Santíssima: “Zelo zelatus sum” – Estou repleto de um grande zelo, de uma grande vontade de combater pelo Senhor Deus dos Exércitos! Sejam estas as palavras que dirijamos a Elias Profeta e a Nossa Senhora, a Mãe de Elias, a Mãe de todos os Profetas, a Mãe daqueles que atacam o adversário de frente, que não têm medo de recuar e ardem do desejo de avançar. Peçamos a Nossa Senhora que faça de nós outros tantos Elias, de maneira que, quando nos apresentarmos no Céu e São Pedro nos perguntar: “Quem sois?”, possamos dizer: “Zelo zelatus sum pro Domino Deo exercituum”. E assim as portas do Céu se abrirão para nós, as portas do 296 Simpósio sobre o Profeta Elias – 11/12/7 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 121


inferno estremecerão, e quando transpusermos os umbrais celestes, nessa imensa sala do trono que é o Céu, onde a Rainha do Céu e da Terra afavelmente nos acolherá, possamos ouvir: “Meu filho, lutastes por mim, entra na glória de Deus!”297 “Pater et dux” dos contra-revolucionários Santo Elias foi um homem inteiramente fiel à velha tradição hebraica e completamente rompido com o reino de Israel no seu tempo. Neste reino de Israel havia, ao pé da letra, os judeus revolucionários, que eram aqueles que adoravam Baal – um ídolo, um demônio – e seguiam os seus sacerdotes. E seguiam também aqueles reis péssimos, prevaricadores. Havia, depois, os judeus que eram semi-contra-revolucionários, e que se deixavam influenciar pela tonitruância totalmente contra-revolucionária de Elias. Não havia, entretanto, um sinal sequer de uma corrente de opinião pública a favor de Elias. Ele aparecia de vez em quando, tonitruava, e uma parte daqueles que não estavam completamente na mão do demônio recuavam e melhoravam. Mas uma corrente organizada não havia. Ele recrutou discípulos para saírem com ele de dentro desse contexto e agir de fora para dentro no contexto, tais como Eliseu e os discípulos que vieram depois dele, até São João Batista. Eram da escola eliática, cujas características são: Primeiro, ser diferente do ambiente revolucionário; segundo: ser tão diferente, que não se identifica com nenhuma outra corrente; terceiro: por causa disso, sair do contexto; quarto: por causa disso, também, tonitruar e evitar a derrocada final; quinto: igualmente por causa disso, fazer uma instituição dos que saíram com ele e agir de fora para dentro. Essas são as características de Santo Elias. É só reler a vida dele para constatar. É tão parecido com a TFP, que a diversidade é só num ponto: a missão de Elias não era salvar a nação de Israel, foi de salvar alguns para que se conservasse o mínimo de fiéis para que Nosso Senhor pudesse nascer da nação de Israel e houvesse alguns que O seguissem depois. Conosco é de algum modo uma coisa diferente, porque a sinagoga ia morrer e a Igreja é imortal. Portanto, servimos a Igreja sabendo que Ela não morre, e que Ela continuará, salvando-se aqueles que os castigos previstos em Fátima pouparão, e que vão constituir as pedras vivas do Reino de Maria. Essa é a enorme analogia. 297 SD 20/7/91 122

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Ora, quando duas almas que devem vir em épocas diferentes realizam missões análogas, aquela que morreu antes é padroeira da que vem depois. É evidente. Santo Elias, que é arquetipicamente assim, é arquetipicamente nosso padroeiro. E devemos procurar ter o seu espírito. Eliseu, quando Elias perguntou o que ele queria, pediu o duplo espírito de Elias. E Elias lhe respondeu de uma forma curiosa: “Tu pediste uma coisa difícil”. Depois disse: “Se tu me vires num carro de fogo, é porque terás aquilo que pediste. Senão, não”. Isto quer dizer que não é de qualquer maneira que se consegue o espírito de Elias, que ele era chamado a ter. Eliseu tinha vivido com Elias e até tinha sido consagrado a Elias como uma espécie de servo. Porque, na hora em que Elias deitou o manto sobre Eliseu, aquele gesto era símbolo de apropriação, que se usava antigamente. Ele, portanto, começou a ser servidor de Elias. Apesar de tudo, na hora da morte, a trasladação do espírito ainda não se tinha dado, e dependia de um sinal na hora de deixar a terra. O sinal de Elias, esplêndido, ele recebeu298.

* A Igreja militante é, dentro das três Igrejas – gloriosa, penitente, militante – um todo. Porque a sociedade dos vivos constitui no universo um todo, com inter-relações que já não são as mesmas com os que morreram. Elias faz parte da sociedade dos vivos299. Nos ritos do Oriente, eles veneram a Elias como um varão pertencente à Igreja militante, e não à Igreja gloriosa, porque ele ainda não morreu. Mas que está confirmado em graça, e, portanto, é um santo300. Donde se deve admitir que sua ação é misteriosa, mas prioritária, sobre os escravos de Nossa Senhora que constituem a raça da Virgem e o veio profético dentro da Igreja. Esse veio age sob a inspiração dos “Luíses de Grignions” através dos séculos. Enfim, em tudo quanto é a ação de um verdadeiro superior geral sobre os seus súditos, o nosso superior, verdadeiro Geral, é Elias. Percebo hoje, melhor do que nunca, o papel de Elias como sustentáculo da tradição. Ele é um homem que não morreu, que continua vivo, pondo no mundo dos viventes a continuidade das mais antigas eras e assegurando, pela sua vida, a coesão da História. Pode-se imaginar a Contra-Revolução sem uma especial atuação de Elias? 298 Extra Uruguai 23/2/79 299 MNF 24/6/77 300 Almoço EE 7/8/79 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 123


É por causa disso que estou estudando a possibilidade de admissão de membros da TFP na Ordem Terceira do Carmo, para a TFP inteira ser carmelita, porque este vínculo me parece indispensável301.

* Santo Elias é aclamado Fundador e superior geral da Ordem do Carmo. Ele é, portanto, nosso Superior Geral. O que ele acha de nossas disposições em relação à iniquidade contemporânea? Ele está satisfeito? Ele acha que nós somos parecidos com ele e que temos aquele furor, aquela indignação sagrada que ele teve? Ele acha que no caso de ser necessário operar um milagre nós teremos a confiança em Deus que ele teve? Como nós somos diferentes deles! Mas somos filhos dele. Nessa época nós diremos: “Elias santo, nosso pai, nosso modelo e nosso guia, sabemos quanto somos diferentes de vós, mas dai-nos a graça de uma semelhança inteira convosco. E como os nossos tempos são semelhantes àqueles em que vós vivestes, mas 100 vezes piores, dai-nos uma santa cólera 100 vezes mais eficaz do que a santa cólera com que vos adornou a justiça de Deus”302. Papel do filão “eliático” na história Elias, varão extraordinário e dotado de qualidades extraordinárias e de uma missão extraordinária, é chamado, no lugar excelso onde ele está, a voltar um dia. Como ele ainda não morreu – foi levado, como já vimos, num carro de fogo até um lugar que suponho ser o Paraíso Terrestre, ou então o Céu empíreo – Elias espera chegar o momento supremo em que os pecados dos homens terão novamente chegado a um auge inimaginável e, então, ele virá para a Terra pouco antes do fim do mundo. E converterá o povo judeu303, para que se realize a promessa que Deus fez a Abraão. Mas Elias e Henoc serão mortos e seus corpos ficarão durante três dias e três noites numa praça pública, com todo os filhos das trevas oferecendo 301 MNF 24/6/77 302 Chá (P. Sum) – 20/7/94 303 “Vou mandar-vos o profeta Elias, antes que venha o grande e temível dia do Senhor, e ele converterá o coração dos pais para os filhos, e o coração dos filhos para os pais” (Malaquias 3, 23-24). 124

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presentes e festejando a morte desses dois, julgando que o mal tomou conta da terra definitivamente304. Como isto se liga à nossa vocação? Acho que o papel de Elias, e mais obscuramente de Henoc – que está como que escondido na noite dos tempos, majestosamente drappé num traje de noite das origens da História, já que foi neto de Adão e ouviu a narração do pecado original – têm por missão ir acompanhando a História, como contemplativos ultra-informados e serenos, apaixonadíssimos e luminosos. E de, por assim dizer, ir registrando os eventos da História em nome da humanidade fiel, para poder, em determinado momento, apresentá-los a Deus. Em termos mais precisos, têm por missão ir acompanhando a todo instante a luta entre o bem e o mal e, da parte da humanidade, dizendo a Deus certas coisas que o mesmo Deus quer que partam de alguns homens, para que não se possa dizer que o gênero humano não as disse. Deus teria feito, então, essa coisa incrível: teria separado de dentro da luta dois homens inteiramente fiéis e confirmados em graça, e feito com que estivessem na ponta da luta, como embaixadores dos que lutam junto a Ele. E intérpretes dessa luta, como parte do gênero humano, já que eles não morreram e não fazem parte da Igreja penitente, nem da Igreja gloriosa, mas da militante. Enquanto pessoas ainda vivas, sua oração seria como que um complemento da nossa, e seu pedido como que um complemento do nosso. Eles estariam, portanto, espiritualmente unidos aos que lutam305. De maneira que nós temos todos os motivos de pedir a Santo Elias que intervenha a nosso favor, de modo todo especial. Não apenas de uma intervenção vaga, indireta, mas, nas ocasiões de grandes aflições podemos pedir até o milagre. Há, portanto, uma porção de razões particulares que tornam provável, que tornam conveniente uma especial devoção nossa a Santo Elias306. Encontrar este apoio magnífico em Elias é, para mim, algo que me dá a esperança sem tremor. É fazer cessar o tremor na esperança e, para quem espera, isto é muito! Vocês me dirão: Mas o senhor precisava disto? Eu respondo: com a perpétua atitude de crítica que tomo em relação a mim mesmo, é-me precioso que essa consideração tenha atravessado o muro da minha crítica e tenha chegado a alentar meus ombros exaustos307. 304 SD 20/7/91 305 EE 28/6/89 306 SD 28/2/70 307 MNF 5/1/79 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 125


O reconhecimento do caráter profético dessa missão Já contei uma conversa que tive certa vez com D. Mayer, ainda antes de mamãe morrer. Ela estava de cama, e D. Mayer e eu tomávamos refeição em minha casa da rua Alagoas. Durante a sobremesa, numa conversa muito íntima – lembro-me até do jeito dele, mexendo uma xicarazinha de café – os senhores sabem que mexer uma xícara de café é um gesto altamente pensativo – ele escorregou o seguinte: – Compreendo bem a posição do Grupo na atual situação da Igreja, mas não vejo bem como será o Grupo numa situação normalizada da Igreja. Diante de uma hierarquia que cumpra a sua missão, o Grupo não terá razão de ser. E não sei qual será a posição do Grupo nessa situação. Respondi a ele: – D. Mayer, entendo a posição do Grupo da maneira seguinte, numa situação normalizada da Igreja. O Grupo nunca deverá pertencer à Igreja docente, ele permanecerá sempre na Igreja discente, é discípulo e súdito. O grupo nunca terá o governo de um Estado, o papel dele é de ser súdito dos reis, dos imperadores, dos senhores que nascerem da ordem histórica criada no Reino de Maria. Mas entendo que o grupo terá a missão, a título de opinião privada, de enunciar, em matéria de Revolução, qual é a doutrina verdadeira e qual é a doutrina falsa; quais os rumos que devem ser seguidos para combater a doutrina falsa, para assim fazer triunfar a verdadeira e modelar todo o espírito da humanidade de acordo com a posição contra-revolucionária, e para atingir a luta contra a Revolução. E ainda afirmei: – Um Papa pode não seguir o conselho, é o direito dele; um imperador pode não seguir o conselho, é o direito dele. Mas ai daquele que não siga, porque derruba o Reino de Maria e fica com as mãos maculadas com esse crime. O que é que V. Excia. acha deste modo de ver?” Ele, sempre mexendo a xícara, e olhando-me fixamente numa posição de cabeça um pouco inclinada, me disse: – Esta era a posição dos profetas no Antigo Testamento. O profeta devia guiar o rei e os sacerdotes, mas sem jurisdição. É um guia, é alguém que exprime a vontade divina aos reis e aos sacerdotes, e os que não seguiram foram punidos. Mas ele não era rei nem sacerdote. É isso que você entende? Depois ele acrescentou: “Prever o futuro era uma tarefa secundária do profeta, não era a tarefa principal. A principal missão do profeta era conhecer as vias de Deus e indicá-las ao povo, ao povo eleito”. Eu então disse: “D. Mayer, essa conversa tomou uma gravidade que não permite mais que ela seja uma conversa entre Plinio e D. Mayer, ela 126

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é uma conversa agora de um fiel com um bispo da Igreja Católica. Pelo amor de Deus, eu lhe peço que me diga se a nossa posição no Novo Testamento é heterodoxa”. D. Mayer me respondeu: “Não, ela é inteiramente ortodoxa, isto pode existir assim no Novo Testamento”. Eu disse: “Bem, então V. Excia. tem aqui a ideia do que o Grupo julga ser”. Ele ficou quieto e mudou-se de assunto308.

* 308 EXT 13/04/69 – A interpretação de Dom Mayer coincide inteiramente com o que ensina o Cardeal Charles Journet, um dos maiores teólogos do século XX, a respeito do profetismo no Novo Testamento, em sua obra “A Igreja do Verbo Encarnado”: “A Igreja não conhece apenas o depósito revelado, ela é também esclarecida sobre o estado do mundo e sobre o movimento dos espíritos. Os mais lúcidos de seus filhos participarão desta sua miraculosa penetração. Eles saberão discernir, à luz divina, os sentimentos profundos de sua época, eles saberão diagnosticar os verdadeiros males e prescrever os verdadeiros remédios. Enquanto a massa parecerá atingida pela cegueira, enquanto até os melhores hesitarão ou tatearão, eles, com um instinto sobrenatural e infalível, irão direto ao alvo. O recuo dos séculos manifestará a justeza de sua visão. “Santo Atanásio ou São Cirilo, Santo Agostinho ou São Bento, Gregório VII, Francisco de Assis, Domingos, viam numa espécie de clarão profético a marcha dos tempos e a orientação que era preciso dar às almas. O autor da Cidade de Deus, o contemplativo que fundou, há oitocentos anos, a regra sempre viva dos cartuxos, São Tomás, que elucidou, três séculos antes da Reforma, as verdades que iam ser mais contestadas no limiar dos tempos novos, Joana d’Arc, Teresa de Ávila, eis os verdadeiros profetas da Igreja. Eram ao mesmo tempo santos, e é verdade que a profecia é distinta e mesmo separável da santidade. Mas quando é autêntica, ela se encaixa sempre no sulco da revelação apostólica; e como o poder do mestre sustenta e guia o esforço dos discípulos, as profecias autênticas são sustentadas e guiadas pela revelação de Cristo e dos apóstolos. ‘Em nenhuma época - diz São Tomás - faltaram homens dotados do espírito de profecia, não certamente para trazer qualquer nova doutrina da fé, ad novam doctrinam fidei depromendam, mas para dirigir os atos humanos, ad humanorum actuum directionem’ (II-II, 174, 6 ad 3). Os profetas que se afastam desta linha são falsos profetas” (“L’Église du Verbe Incarné”, Desclée de Brouwer, Paris, 1962, 3ª ed., vol. I, pp. 173 a 175). E, em nota, o Cardeal Journet cita mais duas vezes São Tomás: “Os antigos profetas - diz São Tomás - eram enviados para estabelecer a fé e restaurar os costumes. (...) Hoje, a fé já está fundada, porque as promessas foram cumpridas por Cristo. Mas a profecia que tem por fim restaurar os costumes não cessa nem cessará” (Comm. in Math., cap. XI). “Ele (São Tomás) explica, aliás, que as profecias que nos revelaram o depósito da fé divina se diversificam à medida que se tornam mais explícitas com o progresso do tempo; mas as profecias que têm por fim dirigir a conduta dos homens deverão se diversificar segundo as circunstâncias, porque o povo se dissipa quando cessa a profecia: ‘Por isto, em cada época, os homens foram instruídos divinamente a respeito do que convinha fazer, segundo exigia a salvação dos eleitos’ (II-II, 174, 6)” (Op. cit., pp. 174-175). 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 127


Então, pergunta-se: no que consiste este profetismo? Não consiste em ter revelação. Nunca tive uma revelação como os profetas do Antigo Testamento, do gênero abre este teto e aparece Jeová na sua glória. Isto nunca aconteceu, nunca, nunca, nunca. Nunca tive nada que fosse uma revelação, que fosse uma visão, nem nada. O que é então esse profetismo? Não me farto de dizer: é uma preocupação contínua em ser filho obediente da Igreja Católica, em ser inteiramente ortodoxo; em seguir a doutrina verdadeira – sem tapeação; falsificação, não! – da Igreja tradicional, a Igreja verdadeira; em ter uma disciplina e uma obediência amorosa, entusiasta, incondicional, ilimitada a Ela. Depois, uma preocupação em ser fiel na aplicação dos princípios da Igreja ao curso da História, em um estudo da História feito com espírito católico, quer dizer, tomando em consideração o que a Igreja nos ensina sobre a História e em ver tudo o mais que os senhores sabem: a luta entre o bem e o mal, entre a verdade e o erro, os anjos bons e os anjos ruins, a estirpe de Nossa Senhora e a estirpe da serpente, a conjuração anticristã. Aplicados todos estes princípios, decorrem daí normas de ação, estilos de ação, sistemas de previsão racional do futuro, desde que se entenda como racional um racional baseado na fé. Não é um racional que faz abstração da fé, um racional racionalista, portanto, mas um racional baseado na fé. É por esta forma que, com auxílio de Nossa Senhora, temos podido, graças a Deus, conduzir as coisas tal como as temos conduzido até o momento. O profetismo é isto. Os senhores dirão: mas não entra um auxílio especial de Nossa Senhora? Acredito que sim. Não julgo possível ter previsto tanto309, ter acertado tanto com simples recursos de um só homem, ainda que esse homem fosse notável. Não acho que isto fosse possível. Mas este auxílio de Nossa Senhora, que reconheço reverente e agradecido, esse auxílio nunca me foi dado de um modo extraordinário, de um modo que não fosse apenas o auxílio d’Ela para ajudar a firmeza do meu raciocínio com base na fé, para me ajudar a ter a disciplina para com a Igreja Católica que quero ter e desejo ter310. Tenho certeza de que eu faria um papel de presunçoso, e mentiria diante de Nossa Senhora, se dissesse que a ortodoxia do Grupo é o resultado da força de inteligência que temos, e não se deve a um auxílio sobrena309 A respeito das previsões feitas por Dr Plinio e posteriormente confirmadas pelos fatos, ver Gonzalo Larrain Campbell, “Plinio Corrêa de Oliveira – Previsões e denúncias em defesa da civilização cristã”, Artpress, 2001, São Paulo, e Roberto de Mattei, “Plinio Corrêa de Oliveira, profeta do Reino de Maria” (Ed. Petrus, 2015). 310 EXT 30/12/71. 128

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tural especial da graça. Eu mentiria. Acho que isto não só tem uma causa sobrenatural, mas é uma graça assinalada, uma graça especial. Essa graça evidentemente existe em função da desolação em que a Igreja caiu, existe para servir de guia nesta situação de desolação, e é uma graça que tem uma ligação com o profetismo, com o carisma profético. Creio que apenas Nossa Senhora me deu, de modo eminente, uma certa graça de sabedoria pela qual, de um modo intelectivo, sempre tive uma concepção arquitetônica do universo, e pelo favor d’Ela, de um quilate muito límpido, muito radical, muito bom. Mas as coisas me vêm na mente à maneira de uma aplicação da inteligência, e não me vêm à maneira de uma revelação. Volto a insistir com os senhores, por lealdade: não imaginem que eu tenha revelações. Nunca tive uma revelação, nunca na minha pobre cabeça se deu algo parecido com o estralo de Vieira, ou seja, uma interferência da graça pela qual, de repente, a minha inteligência obtusa viu aquilo que não via. Não pensem, portanto, que isto se dá. Se os senhores ficarem desapontados, tanto pior, mas não posso mentir: isto não se dá comigo, e não tenham a menor ilusão a esse respeito.

* Onde noto uma ação desse carisma mais clara é no discernimento dos espíritos. Não é normal que uma pessoa leve o discernimento dos espíritos, ao conhecimento das psicologias, ao conhecimento do bom espírito e do mau espírito das pessoas, e do que está se passando com o interlocutor quando falo com ele, ao ponto em que me é dado levar311.

311 RE 13/04/69. 3ª PARTE – A INTUIÇÃO DE UMA MISSÃO UNIVERSAL ... 129


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4ª PARTE

A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO A MENTALIDADE CONTRA-REVOLUCIONÁRIA Para interpretar uma alma é preciso conhecer o “unum” de sua mentalidade Imaginem uma pessoa que vá a um depósito de materiais de construção que serão empregados na construção de um palácio. Ela vê, por exemplo, um número enorme de colunas de mármore, vê uma quantidade enorme de janelas de cristal, vê madeiras preciosas necessárias para a construção do assoalho. Vê mais além lustres dos mais variados formatos e feitios, que servirão para iluminar as salas do palácio. Mais adiante, vê um edifício inteiro ocupado com móveis. Essa pessoa poderá afirmar, depois, que sabe como vai ser o palácio? Sim e não. E muito mais não do que sim. É claro, ela terá uma ideia de como será o palácio. Mas enquanto não vir todas essas coisas colocadas na ordem que lhes é própria, enquanto não tiver uma noção de como cada parte figura junto a cada outra parte, não saberá como o palácio vai ser. Assim também com a doutrina ensinada no Grupo. Conhecemos às vezes os vários materiais de construção dessa doutrina, mas muitas vezes não o conjunto dela 312.

* Uma coisa muito bonita da ordem do universo são as misturas e as composições. Por exemplo, uma música. Não se pode dizer: temos aqui tantos “dós”, tantos “rés”, tantos “mis” e, portanto, temos a música feita. Não é verdade. Porque se a música consistisse em tocar de maneira seguida todos os “dós”, depois todos os “rés” e todos os “mis”, não seria música. Seria outra coisa. 312 RN 6/2/66 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 131


A música, o que é? Ela toma a peculiaridade de cada nota. Vamos dizer, por exemplo, que o “mi” tem uma série de peculiaridades afins com o “dó”, e essas peculiaridades afins são tantas no “dó” e tantas no “mi”, e que, conforme a disposição desse grupo “dó-mi” numa partitura, há um número quase incalculável de aplicações que o conjunto “dó-mi” pode dar. Para usar uma metáfora, nós poderíamos imaginar o “dó” e o “mi” como pequenas esferas cheias de pelos ou de agulhas que entram umas em composição com as outras conforme se queira. E que formam um número incalculável de combinações possíveis. Da mesma forma, o grupo “dó-mi” funciona para outros grupos de notas do mesmo modo. E é explorando essas harmonias que o indivíduo constrói uma partitura. Agora, o que tem de particular numa música é que a música, por cima de todas as partes que a constituem, tem uma espécie de significado sonoro, um ponto alto sonoro, que por assim dizer compendia a música inteira, e dá no fundo a ideia de um determinado unum, que é o que há de mais apreciável na música. Quando se conhece uma mentalidade a fundo, conhece-se a resultante de todas as misturas de qualidades que existem naquela mentalidade, e também a mistura de defeitos. O plano de Deus para com aquela alma é de que ela vença o defeito e dê protuberância à qualidade oposta. E que, na sua perfeição, ela seja todas essas qualidades, mas seja de um modo especialmente marcante o conjunto dessas qualidades313. Todos os homens têm – quando não abusam da inocência primeva que está na origem de tudo isto – um certo dom, uma certa delicadeza de alma pela qual, por algum lado, sentem o seu próprio unum. Este é o ponto essencial de nossa fisionomia espiritual, segundo o qual nos interpretamos, nos conhecemos, nos sentimos, e entramos em contato com esse ponto essencial dos outros314.

* Falamos há pouco de mentalidade. É uma palavra comum que todo mundo emprega. Mas o que quer dizer “mentalidade”? É a condição de uma mente que, em tudo quanto ela pensa e sente em torno de si, é harmônica com determinados princípios. Isto forma uma mentalidade. 313 MNF 1/6/89 314 MNF 1/6/89 132

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Um homem que tenha uma mente dividida em princípios contraditórios, incompletos, e que não os leva até ao fim, não pode dizer que tenha uma mentalidade. Ela terá fragmentos de mentalidade. A mentalidade é a condição de uma mente que toma os princípios que merecem estar no centro de tudo, e os desdobra de maneira a aplicar adequadamente a todos os pontos. Todas as convicções, as volições, os sentimentos, os desejos, as fobias, as rejeições, tudo isso, quando governado por princípios sobre matérias muito altas, é mentalidade. Esta definição de mentalidade não envolve a afirmação de que a pessoa esteja certa ou errada. Envolve a descrição de um estado de coerência ordenada e proporcionada da mente dela. Pode-se dizer, por exemplo, que existe uma mentalidade protestante. Se um protestante toma como princípio um erro sobre matérias muito altas, e aquilo se difunde por toda a mente dele, influenciando concretamente, ordenadamente, toda a mentalidade dele, então se pode dizer que ele tem uma mentalidade. Tem para desgraça dele, mas tem mentalidade. Por sua vez, a mentalidade católica forma tão completamente o homem que fez na vida apenas considerações de caráter estritamente teológico, como o que tenha feito considerações preponderantemente, mas não exclusivamente, a propósito da ordem temporal, e que estão ligadas, no nosso caso, ao espírito católico, à doutrina da Igreja. Esse tem também uma mentalidade315. A identificação com a Contra-Revolução O que anima a minha alma, o que a caracteriza, o que modela todo o meu espírito, todo o meu modo de ser, todas as minhas preocupações, toda a minha vida, é o espírito católico apostólico romano enquanto contra-revolucionário. O que quer dizer “enquanto contra-revolucionário”? É o espírito católico, mas aplicado à conjuntura histórica atual, em que a Revolução atingiu o auge de sua expansão. E em que ela se sente com meios de manifestar, do modo mais claro e mais desavergonhado, toda a sua própria mentalidade, chamando os homens, do modo também mais desinibido, para aceitar essa mentalidade316.

315 CSN 17/8/85 316 Jantar EANS 15/10/91 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 133


Não me defino como um brasileiro filho de uma senhora paulista e de um senhor pernambucano. Eu me defino como um contra-revolucionário. Graças a Deus, sou verdadeiramente contra-revolucionário. Não faço questão, não me empenho, não me interesso senão em ser contra-revolucionário. Os senhores não notam em mim empenho nem interesse por mais nada317.

* Quando analiso minha vida, vejo bem que o sentido dela é fazer a Contra-Revolução318. Tenho a existência só voltada para combater a Revolução e impor a Contra-Revolução. O que não for isto, é uma coisa completamente secundária. O importante é esmagar o demônio e restaurar o Reino de Nossa Senhora que ele conseguiu como que derrubar por meio da Revolução319. Não posso imaginar que eu odeie algo tanto quanto odeio a Revolução. Mais, é impensável320. Não vivo para fazer outra coisa senão combater a Revolução. Desde a manhã até a noite não faço outra coisa que não seja o bem para os bons ou o mal para os maus. O que é uma forma de bem, porque é combater o mal que há nos maus. Não é para perdê-los. Pelo contrário até, é para salvá-los, combatendo o mal que há dentro deles. “A solis ortu usque ad occasum”, desde a saída do sol até o ocaso, o que faço é isto. Então, compreende-se que a minha vida não tenha outro sentido senão a Contra-Revolução321. É verdade que há, nessas minhas afirmações, um matiz a introduzir. Tudo do que gosto é contra-revolucionário. Mas não é verdade que tudo do que eu não goste seja revolucionário. Por exemplo, há pratos franceses de que não gosto, não porque sejam revolucionários, mas porque não vão bem com as papilas da minha língua. Outro exemplo: dou-me muito bem com veludo. Mas compreendo que outra pessoa, por uma razão puramente individual, goste mais de um

317 Chá SRM 23/2/88 318 Chá PS 29/10/81 319 Chá SB 17/6/92 320 Chá SRM 29/11/93 321 Chá SRM 17/1/91 134

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sofá revestido de seda, que é um tecido tão contra-revolucionário como o veludo. Cada um tem seu modo de ser322.

* Em vista de tudo isto, compreende-se que, quando conheci a Revolução, desde logo a odiei. Foi olhar e odiar. E uma das razões foi a falta de majestade dela. Eu não podia compreender que se pudesse ser vulgar, ordinário, sujo, bruto, estúpido de propósito. Que uma pessoa, por um lapso, fosse assim, tivesse alguma coisa assim, é uma fraqueza, digamos, mas é culpada disso por causa de sua fraqueza. Mas que a pessoa fizesse o programa de ser assim, isto eu não podia compreender. E naturalmente me indignava. Meu modo de reagir era pôr uma nota contra-revolucionária em tudo quanto fizesse, em tudo quanto dissesse. E tive a preocupação de que no meu vocabulário, por exemplo, não entrasse nunca palavras já não digo imorais, que se usavam em quantidade no meu tempo, mas nem sequer triviais ou porcas. Graças a Nossa Senhora, os senhores nunca me viram empregar uma palavra trivial. Na própria construção das minhas frases, e na própria ordem inversa que emprego muitas vezes, sobretudo quando escrevo, mas também quando falo, a emprego intencionalmente para ser o contrário da Revolução. Porque a Revolução só gosta das coisas em ordem direta, por ser mais vulgar. É mais banal falar só em ordem direta. É mais trabalhado, é mais fino usar a ordem inversa. Assim, procurei ter – não a majestade, que não me convém e nem me é própria – mas a distinção que é própria às condições em que nasci e a quem sou. Daí o empenho em pô-la em realce no meu modo de ser, para a glória de Nossa Senhora, para a glória do Coração de Jesus e para o bem dos outros323.

* Devemos, portanto, ser de tal maneira que, tudo quanto está meio manchado de Revolução, nós saibamos notar e detestar, e tudo o que tem uma nota de Contra-Revolução, saibamos também notar e apreciar.

322 Chá SRM 23/2/88 323 Chá SRM 22/11/89 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 135


A nossa observação não deve incidir apenas no sentido exato das palavras que os outros digam, ou nos pensamentos que eles externem, mas também nas coisas que estão implícitas, que estão subconscientes nos revolucionários. É necessário que olhemos, notemos e digamos: “Tal coisa é revolucionária”. E nisto figura largamente a Revolução tendencial. A graça da Contra-Revolução nos faz ver com precisão o aspecto revolucionário das coisas tendenciais, coisas que muitas outras pessoas nem sequer têm ideia de que são tendenciais e más324. Por exemplo, a maior parte das casas que eu conheci tinham paredes empapeladas. Como o Brasil ainda estava com uma indústria muito incipiente, mandavam vir da Europa papéis de parede lindíssimos. Aquilo era muito mais bonito do que uma sala sem lambris, estupidamente pintada de branco, como são as nossas casas hoje. Também os lustres de bronze trabalhados estavam sendo substituídos por umas bolas brancas leitosas, medonhas, que hoje quase desapareceram até. Observando tudo isto, fiquei percebendo que essas mudanças não eram ninharias e que nelas se incubava o espírito da Revolução. Então começou a caçada contra o espírito revolucionário para meu único efeito e para meu único gosto, porque ninguém falava disso, ninguém comentava isso, isso ia passando despercebido e aplaudido. Na primeira fase foi uma luta toda interna, para descobrir tudo aquilo que, contra-revolucionariamente falando, eu deveria repelir, e o pouquinho que restava do que deveria aplaudir. Depois desse gesto interior de recusa ou aplauso, veio a explicitação das razões polêmicas pelas quais eu não gostava, e porque não gostava. Depois, não era apenas uma questão de não gostar. Comecei a estabelecer a distinção, no meu próprio interior, desse ponto capital: o mundo não foi feito em função de mim, foi criado por Deus para a glória d’Ele. Não basta dizer que “eu não gosto” para afirmar que uma coisa é ruim. É preciso explicitar o motivo por que ela é revolucionária. Isto equivale a um trabalho muito vasto que ainda não terminou, e que, se Deus quiser, só terminará quando deitar meu último alento: é a classificação geral das pessoas, das coisas e de tudo o mais em face da Revolução e da Contra-Revolução. Não se trata só de saber o que é revolucionário e o que é contra-revolucionário, mas saber dizer no que é, por que é, e qual é aquele summum 324 Chá SRM 13/8/89 136

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em que todas as coisas boas se enfeixam e se chamam Contra-Revolução, se chamam ordem; e qual é aquele summum em que as coisas más se enfeixam, para formar aqueles dois exércitos de criaturas. Depois disto classificado, vem a arte da guerra. Não pensem que estou falando aqui de arte militar. O que estou dizendo está no fio lógico do que eu vinha falando até agora: todas as coisas podem ser vistas de um modo figurativo à maneira de dois exércitos. Por exemplo, numa mesma sala, pode bem haver objetos que se combatam. Em que sentido da palavra? É que um objeto pode produzir um efeito bom e outro produzir um efeito revolucionário. São objetos inanimados, mas eles se combatem. Tomem, por exemplo, uma argolazinha bonitinha para encaixar o guardanapo. Se eu puser em seu lugar uma argola roliça, lisa e pesadona, que pareça mais com uma algema de sentenciado, de fato a segunda argola me embrutece, enquanto a primeira argolazinha aumenta em mim o gosto do que é delicado. Conclusão: deve haver uma arte, um jeito pelo qual é próprio à Revolução combater, e um jeito pelo qual é próprio à Contra-Revolução combater nesse campo. É o que hoje se chama de Revolução Cultural325. O “unum” da alma de quem foi chamado a simbolizar a Contra-Revolução Há um conjunto de virtudes que mais especificamente contribuem para formar o unum da alma de uma pessoa. Vendo essas virtudes, conhecendo-as, conhece-se melhor o panorama moral, e conhece-se melhor a virtude e a santidade, do que conhecendo muito extensivamente todo o resto. Essa corola de bem está para o bem em geral, como um resíduo de verdades cuja veracidade contém de algum modo todos os verums. Se isto é verdade, sou levado a concluir que Nossa Senhora teve essas virtudes quintessenciais, esse unum quintessencial, mais do que qualquer outra criatura humana, com exceção, evidentemente, de seu Divino Filho. O que explica aquelas palavras de São Gabriel: “Vós sois cheia de graça”. Quer dizer, a graça encheu-a. Deu-lhe, portanto, em abundância, esse unum tão precioso, tão magnífico.

325 Chá PS 1/7/94 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 137


A TFP prepara os espíritos para a aceitação desse unum, dá-lhes apetência por esse unum, e de algum modo a posse desse unum. Isto explica a confiança que a TFP tem da parte dos bons, mas também o ódio que tem contra ela os ruins. Porque os ruins veem nela uma espécie de concentração de execrabilidade. Isto faz da TFP o fermento mais ativo da Contra-Revolução326.

* A serpente, quando quis acabar com o Paraíso, a razão não era o ódio contra as tulipas ou o ódio contra as garças, os cisnes ou as águias, supondo que houvesse tulipas, garças, cisnes e águias no Paraíso. Ela tinha ódio contra o Paraíso, e contra Adão e Eva no Paraíso, porque eram de algum modo uma síntese do Paraíso. Assim também a Revolução tem ódio da alma ultramontana, ortodoxa a cem por cento, alma essa que, pelo fato de existir, a contesta tão profundamente que ela não pode tolerar. A propaganda revolucionária não se volta contra os vários aspectos da Contra-Revolução, mas contra o unum da Contra-Revolução. E esse unum é que devemos representar327.

* Conhecer a minha mentalidade é, portanto, conhecer inteiramente os princípios que professo e amo, aos quais sirvo e dei a minha vida. Por exemplo, o meu modo de viver tem um caráter militante que dá um aspecto de conquista militante até ao raciocínio que chega ao seu termo. Se eu não pensar com truculência, não pensarei até o fim. Entra aí uma luta minha contra a possível preguiça que todo homem tem para o bem328. Os componentes essenciais desse “unum” Nós amamos todo o bem, mas amamos com uma intensidade desigual, como um pai que pode amar todos os seus filhos, mas, se vê alguns deles atacados, postos em risco, o desvelo paterno para com esses filhos se desdobra e se multiplica. 326 MNF 12/12/90 327 MNF 7/12/90 328 Chá SB 3/3/88 138

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Isto não significa que ele queira menos aos outros, mas que aqueles que estão em perigo, ficam mais em foco. À força de defender especialmente àqueles, o pai explicitou e desenvolveu em si um amor de predileção pelos atacados. E, terminada a guerra, ele amará mais àqueles que ele defendeu. Assim também nós: terminada uma batalha, acabamos amando de modo especial aquilo que fomos levados a defender. Faz parte do espírito da TFP amar tudo quanto é bom, tudo quanto é santo, tudo quanto é direito. Mas há algumas notas do piano que ela toca com o pedal e outras notas que ela toca sem o pedal. Ela ama pedaladamente determinadas coisas. Qual é o unum dessas coisas amadas pedaladamente pela TFP? E como este unum se encaixa dentro de um outro unum mais vasto, que reúne tudo quanto é bom sem nenhuma forma de contradição, e em suma harmonia com tudo quanto é bom?329 Metafisicamente falando, há unums que existem dentro do grande unum, como há as constelações no céu. E depois há o unum dos unums. O espírito hierárquico concentra esse unum dos unums. E é esse espírito que torna a TFP tão odiada, mas também objeto de tantas dedicações. Igualmente faz compreender por que Nosso Senhor era tão odiado. As virtudes que mais contribuem para formar este unum são a Fé, e uma particular robustez na Fé; depois a castidade, o aristocratismo e a combatividade cavalheiresca. Por que a Fé, a castidade, o aristocratismo e a combatividade cavalheiresca formam um unum? Se prestarmos atenção em cada uma dessas virtudes, encontramos que a virtude tomada assim representa uma espécie de détachement – a palavra “desapego” tem muita conotação heresia branca, por isso a evito de usar – das coisas desta terra, em atenção ao mundo sobrenatural e por valer infinitamente menos do que o mundo sobrenatural. Na Fé, o que encontramos de essencial é isto. Por outro lado, o indivíduo que guarda a castidade encerra condições de ter esse desapego. Por sua vez, a pessoa só será verdadeiramente aristocrática quando ela comunicar a impressão de que os seus instintos estão ordenados, e com certo desapego em relação àquilo que a cerca. É essa nota aristocrática que torna o homem capaz da coragem e da combatividade cavalheiresca. A coragem verdadeira, a coragem como ela deve ser, só nasce desses pressupostos.

329 MNF 19/12/90 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 139


Esse détachement, ou desapego, exprime de ponta a ponta a atitude do homem que presta culto a Deus, muito mais do que às coisas terrenas330. A robustez da Fé Usamos muito em nossa linguagem interna a palavra “tau”. Originariamente o “tau” é uma letra do alfabeto hebraico antigo. Em um período de crise do povo de Israel, em que o povo estava ultra embebido da mentalidade pagã, o profeta Ezequiel teve uma visão na qual um Anjo marcava com essa letra – cuja forma é uma prefigura da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo – a testa de todo aquele que era um verdadeiro israelita e que não se tinha deixado marcar pelo paganismo do tempo. Assim, tomamos o “tau” como símbolo do católico de hoje que tem verdadeiro espírito católico, e que não se deixa marcar pelo paganismo de nossos dias. O que é o “tau” para nós? É uma graça ligada à virtude da Fé. Não é uma fé diferente. É a mesma Fé Católica Apostólica Romana, mas fortalecida por uma graça especial pela qual sentimos, percebemos com mais vivacidade e penetração do que outros o que é revolucionário e o que é contra-revolucionário. Basta ser batizado e ter Fé católica para salvar-se. Mas o “tau” é um tesouro especial por meio do qual um membro da TFP percebe bem o que é a Revolução e a Contra-Revolução331.

* Com a graça da vocação no seu primeiro albor, no seu primeiro nascer, entra uma espécie de força de alma em que a pessoa não duvida de nada, em que a pessoa tem todas as certezas e tem o júbilo dessas certezas; essas certezas apresentam-se em uma luz matinal, apresentam-se numa claridade esplêndida. A pessoa tem então uma alegria da Fé que é uma coisa monumental. Essa fé vigorosa que tem o ultramontano fiel à sua vocação, o qual não duvida de nada, não tem sombras, crê contra as aparências, acho que essa fé é uma espécie de comunicação misteriosa e super excelente que, diante de coisas que pareçam mais evidentes em sentido contrário, os mantém inteiramente nessa fé. 330 MNF 12/12/90 331 SD 23/11/74 140

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A virtude da Fé vai nos ser extraordinariamente necessária e vai ser necessária sob a forma de espírito de Fé, que é aquela forma, aquela excelência da virtude da Fé pela qual sabemos aplicar os dados da Fé às circunstâncias concretas nas quais nos encontramos. Uma coisa que peço a Nossa Senhora é que Ela nos conceda essa fé inquebrantável, que nada pode derrubar. Que crê em tudo, que não duvida de nada, não hesita nem recua diante de nada, investe contra tudo e acaba ganhando toda espécie de batalha, depois de toda espécie de derrota332. Para nós – e isto não digo em tese – não há problema intelectual nem espiritual que possa ser resolvido a não ser em função da Fé. Das virtudes da vida espiritual, aquela que toda a vida amei mais, mais do que a pureza, é a Fé. Aquela que toda vida cultivei mais foi a Fé. Porque a Fé é a raiz de toda a vida espiritual. E quem tem fé viva, este tem vida espiritual pujante. Quem não tem fé viva, este não tem vida espiritual pujante. Isto tem uma aplicação para a vida intelectual. Se tivermos espírito de Fé, quer dizer, soubermos aplicar a Fé aos dados da História, teremos o conhecimento, que tem algo de profético, das harmonias da história. A partir do momento em que crermos nos acontecimentos previstos em Fátima com toda a firmeza, nossa fé atingiu os pontos de nossa vocação que é preciso que estejam claros para que ela se realize. É preciso ter fé, é preciso ter paixão pelas coisas da Fé333.

* O meu entusiasmo não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei a tal conclusão”, porque o ato de fé em mim precedeu de muito esse raciocínio. Meu entusiasmo é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, e que o raciocínio apologético vem depois calçar, mas não vem suprimir; vem, no fundo, servir a essa ação meio mística dada pela Fé. Ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha fé. Porque, a partir da firmeza da minha fé, do que deduzo de minha fé, é que tenho muita certeza. No que deduzo por raciocínio, não tenho essa certeza. Mas, do que deduzo da Fé, tenho certeza. Aí piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum. A coisa vai” 334. 332 SD 26/12/69 333 RE 13/4/69 334 MNF 12/4/89 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 141


* Na medida em que meus horizontes foram se alargando, foi nascendo uma enorme afinidade com o que havia de sobrenatural: brotou uma apetência, um desejo do sobrenatural, e com ele a valorização exata da Igreja Católica e a respiração da Fé. Não, portanto, o ato de fé, que eu já tinha, mas a respiração da Fé. Aí abriram-se novos horizontes. E isto me tornou facílimo pensar, tornou facílimo descortinar largos horizontes, fazer correlações, porque o espírito adquiriu a agilidade, não de um atleta, mas de quem voa335. Com base na Fé, veio a formação de um mundo religioso ideal, para o qual minha alma voava inteira. E que era, no fundo, um mundo inteiramente contra-revolucionário, um mundo imensamente colocado em ordem católica. O que me salvou de elucubrações vazias e me pôs no bom caminho foi a Fé, a qual me tirou de riachos perigosos, orientou-me e deu-me o equilíbrio necessário para essa idealização. Porque, neste caminho, poderia facilmente não sair uma coisa equilibrada. Nossa Senhora favoreceu-me muito, pois tinha desde aquele tempo de menino fé católica absoluta: o que a Igreja dissesse era aquilo mesmo, porque estava evidente que era. Era Ela que tem razão, eu não. E devo me acomodar a Ela. Notem que sempre faço em relação a meu percurso intelectual uma crítica criteriológica: “Do que valeu aquilo que minha infância me disse? Se não estiver de acordo com a razão ou com a Fé, kaputt! Não serve!” Mas a análise criteriológica e lógica vem sempre336. Uma vez que era Plinio Corrêa de Oliveira, naquelas circunstâncias e com os meios de que dispunha, devia perguntar-me como eu deveria ser enquanto manifestação de alma e modo de ser. A primeira coisa era deixar ver que sou um homem de Fé337. A expressão “Fulano tem fé” indica o Fulano que crê nos dogmas, nas verdades ensinadas pela Igreja, quer sejam as verdades sobre Deus, quer sejam as verdades sobre os preceitos que os homens devem cumprir. Mas a expressão “Fulano é um homem de fé” já vai mais longe ou mais alto do que a primeira expressão. Esta segunda expressão vem carregada de um elogio que descreve certo tipo de homem, e um tipo de homem que 335 CSN 2/1/82 336 CM 19/1/86 337 Relato MNF 28/3/91 142

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não é simplesmente aquele que tem fé. O homem de fé é mais do que o homem que tem fé. O homem de fé é o homem que tem fé, mas que tem as virtudes de alma necessárias para ter fé338.

* Nossa Senhora deu-me muita fé, isto é verdade. E muito espírito sobrenatural. É-me fácil compreender que há uma realidade sobrenatural, a qual domina a natural, e que o polo de atração está no sobrenatural, no invisível. Em sentido oposto, percebo que para muitas outras coisas sou absolutamente “pão-pão, queijo-queijo”: ou tenho provas palpáveis, ou não aceito. Como se juntam essas coisas? Se a pessoa tem o espírito bem constituído e compreende qual é a esfera própria das coisas especulativas, não pede provas palpáveis nesse campo, mas apela para a lógica e para a razão, e depois para a Fé. Quando desce às coisas concretas, que não se podem demonstrar por raciocínio tal como as coisas superiores, então, ou vem a prova ou, para mim, o assunto não está demonstrado: vem cá, me diga o que é, me conte o caso. Pão-pão, queijo-queijo339.

* Há certo gênero de certeza que é como uma luz de abajur: ela tem uma zona imediata que ilumina, e outra zona em que difunde uma espécie de penumbra. Assim também as grandes verdades: espalham penumbras que os espíritos retos captam e dizem: “Isto é verdade”. O sobrenatural fala muitas vezes dessa maneira, com esta linguagem, muito embora a mensagem sobrenatural seja distinta, por natureza, da observação natural. Quem aceita a verdadeira Fé, tem bastante vigor e bastante bondade, tem santidade na alma para que, diante de uma proposição qualquer, perceba se aquilo é conforme à Fé. Se, pelo contrário, ele não tem isto, ele é um indiferente, ele não “pesca” nada e não pega nada. A primeira posição é virtuosa, e a segunda é pecaminosa.

338 MNF 28/3/91 339 Relato CSN 28/5/83 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 143


Peca muito contra a Fé a pessoa que intui essas coisas, mas fica por assim dizer amarrada na canga de um raciocínio e começa a “pintar o caneco”. Há uma frase muito bonita do “Tantum Ergo” que diz: “Ad firmandum cor sincerum, sola fides sufficit” – “Para firmar um coração sincero, só a Fé basta”. A frase diz, a respeito do mistério eucarístico, que Nosso Senhor Jesus Cristo está realmente presente na Hóstia consagrada340.

* Vem-se desenvolvendo nos Estados Unidos uma espécie de estudo, que chamam de interdisciplinares ou multidisciplinares, pelo qual o indivíduo se coloca na seguinte posição: “Postas tais conclusões inquestionáveis de tais, tais e tais ramos do estudo, verifiquemos como estes ramos de estudos são hoje e procuremos fazer uma construção, uma síntese disso; e, com base em alguns livros supremos sobre algumas matérias, e que fecham o assunto, vejamos como é isto hoje”. Isto dá a imagem do que faz, sem tanto aparato, a mente do católico. Bem orientada e munida do senso católico, a mente do católico percebe a verdade e solta a tese geral: Ptsium! Os eruditos não contestam, porque pensam que há um armazém de erudição colossal atrás. Mas eles sobretudo sentem é que tem pensamento. De maneira que não dizem nada. Tudo o que escrevi, por exemplo, não foi contestado por ninguém até hoje. Daí vir uma criteriologia que tem como base a Fé. Sem a Fé, não se adquire certeza nenhuma. Há um equilíbrio estável, saudável, nativo da alma humana, equilíbrio esse que é como uma concha onde pousa a Fé, que é meio fruto da Fé e meio condição de proteção da Fé, e a partir do qual torna-se natural ao espírito humano operar como estou dizendo. No confronto, os eruditos saem carregando bibliotecas. Nós só levamos a R-CR, uma “Summa Teologica” e alguma coisa de matéria socioeconômica e sociopolítica. E tomamos atitudes incrivelmente afirmativas, portanto arriscadas. Os nossos adversários não nos pegam nunca e não nos contestam nunca. Têm medo341.

340 Despacho 16/6/95 341 CA 11/6/87 144

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A castidade A pureza é um dos elementos mais fundamentais do meu bem-estar interior342. Nossa Senhora protegeu-me especialmente neste ponto. E em boa parte, mas em muito boa parte, minha devoção muito especial para com Ela, e minha gratidão muito especial para com Ela, provêm do que eu sentia a respeito d’Ela, pela proteção que Ela me dava neste ponto. Depois do período de furacão na adolescência, sucedeu um período de tranquilidade, de segurança e de paz na pureza, que tornou a vida de castidade extremamente agradável, extremamente leve, extremamente inteligentificante. Eu sentia bem como a graça da pureza – que na minha idade era um prolongamento da inocência originária – tornava a movimentação de minha inteligência mais ágil, a penetração mais profunda, as correlações mais fáceis, e dava-me facilidade em encontrar metáforas que ilustrassem meu pensamento343. Não tenho o mínimo orgulho em dizer: se há um homem que tenha tido uma castidade tranquila, depois de um período difícil no tempo de sua adolescência, esse homem sou eu. Basta tratar um pouquinho comigo para perceber isto. Nunca ninguém me viu numa rua baixar perturbadamente os olhos diante de nada. Olho para o que quero. Vivo com a castidade nos extremos limites aduaneiros, onde é fácil pegar qualquer ladrão de galinha. Mas isto é o efeito de Nossa Senhora, é a graça que Ela pede para mim, e obtém porque a súplica d’Ela é onipotente e me favorece com isto344.

* A partir do momento em que entrei para as Congregações Marianas e que encontrei campo para passar a ser um arauto da castidade (eu era um catacumbal da castidade), notei que os nossos adversários viam isto e se intimidavam muito, porque nisso vinha uma inocência forrada de força345.

342 CSN 13/10/91 343 Chá PS 11/11/94 344 CM 11/8/85 345 Chá SRM 6/4/89 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 145


* Quem é puro, tem o espírito feito de tal maneira que tem horror ao impuro, é claro; o impuro é o sujo, o sórdido, o monstruoso, o arrevesado, o torto, o contrário do grande. Então, quando o puro incide sobre o impuro, incide sobre a coisa como não deve ser, e como não pode estar em função da grandeza. Portanto, a corte perfeita seria a corte que teria no seu mais alto grau a grandeza, e no seu mais alto grau a pureza346. O espírito aristocrático O amor ao aristocratismo entrou em minha alma fundamentalmente pelo lado família. Mas também pela consideração do meio de famílias que a minha família frequentava, que eu conhecia e que era muito modelado segundo aquele velho aristocratismo paulista de que falou Clemenceau quando visitou São Paulo347. Isto me entrou muito na alma. Mas muito. Admirei muito, gostei muito, entendi muito como se deveria ser348.

* O conhecimento do mundo externo e interno é simultâneo. A pessoa vai tomando conhecimento de si na medida em que nota que as outras coisas não são ela. No núcleo dessa noção, estava a noção de que eu era um aristocrata. Parecia-me que, em tudo que fosse aristocrático, deveria haver uma coesão, uma harmonia, um encaixe. E que, nesse encaixe entre aristocrata e aristocrata, há torrentes de semelhança e diversidade, produzindo uma torrencial forma de amor. Por exemplo, entre um nobre francês e um nobre austríaco, se fossem retos, deveria haver um mundo de coesões. Também parecia-me haver uma coesão metafísica entre a aristocracia reta e o povo reto. 346 CSN 8/8/92 347 MNF 13/9/89 – Clemenceau viajou por vários países. Ele conta que em nenhum lugar do mundo fora da França, ele se sentiu tão francês quanto em São Paulo; ele sentia que aqui tinha um prolongamento da cultura francesa (EVP 24/8/86). 348 MNF 13/9/89 146

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A condição aristocrática, por analogia e diversidade, cria um intercâmbio de amor enorme, que é um reflexo do amor de Deus. Essa condição traz uma forma de amor a seus pares, a quem é mais e a quem é menos, dando, portanto, uma noção global do amor de Deus. Nesta via, Deus quer que sejamos a sociedade ordenada dirigindo-se a Ele349.

* Há certo equilíbrio que procuro manter entre a plebeidade – pela qual todo o homem é homem – e o aristocratismo, pelo qual o homem se angeliza um tanto, de maneira a não perder nenhum dos dois elementos. Ter o pé no chão e saber compreender o valor e o sabor da coisa popular, tonifica certo elemento do nosso próprio equilíbrio. Se ficarmos só nas coisas aristocráticas, não vai. Por outro lado, ficar só na coisa popular, também não vai. Então, é preciso saber voar assim: comer vatapá, cuscuz e essas comidas populares brasileiras – aliás, gosto muito de comidas de qualquer lugar do mundo, para comer um prato ou dois, e depois subir – entenda-se que digo isto de modo figurado – para o éter. Mas de vez em quando imergir na comida popular também. É o modo de ser de cada um350. Por exemplo, um aristocrata à mesa, por mais que ele seja um homem de bom apetite (ele pode ser e deve ser), ele deve dar a impressão de que não está comendo como um glutão. E se estiver saboreando uma comida, ele deve saboreá-la muito mais com o espírito do que com o corpo. Tudo quanto o aristocrata faz dá a impressão de que o corpo está em segundo lugar, e a alma está em primeiro lugar. Por exemplo, um aristocrata descansará com estilo e linha. Um burguês mundano, quando descansa, ele se desabotoa e fica gozando aquele seu repouso, embora isto, de si, não quero dizer que seja pecado351.

* A distinção é como a inteligência ou o bom gosto artístico: antes de tudo uma coisa inata. Mas é um inato que pode nascer onde ela então não havia. Pode haver gente muito distinta – notem a palavra “muito” – que tenha um berço popular. 349 CSN 29/7/78 350 Chá SRM 26/11/91 351 MNF 12/12/90 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 147


De si, todas as virtudes ditas sociais que dizem respeito ao convívio social, todas as boas regras de educação e de distinção correspondem ao resto de uma época em que era verdadeiro o princípio de que só a virtude gera a perfeição do status. Isto não quer dizer que a virtude gere sempre a perfeição do status, mas quer dizer que não há perfeição de status sem virtude. Tudo o que corresponde a uma regra tradicional de educação é, no fundo, uma pequena virtude. Nisso tudo entra a expressão da virtude católica e o bom odor de Nosso Senhor Jesus Cristo. É muito prosaico o que vou dizer, mas não acredito que exista alguém que, ao longo de uma conversa de cinco horas com outrem, de repente, não coce a cabeça. Quando se está só, faz-se e tem-se razão de fazer. Quando está com uma pessoa muito íntima, ainda temos o direito de fazer. Mas, de fato, é uma coisa feia. Por isso sustento que seguir os métodos da antiga polidez aristocrática é um holocausto. E aqui vem o caráter penitencial da condição de nobre, vivida por apostolado e esporeando a si próprio a ponto de sair sangue. É uma ascese lindíssima. No castelo de Segóvia, havia uma sala em que São Fernando III tomava as refeições. Conta-se que, certo dia, ele estava almoçando e veio a notícia de que alguns cruzados espanhóis tinham, contra toda a expectativa, conseguido galgar os muros de Sevilha, mas eram muito insuficientes em número em relação aos que fariam o contra-ataque. Então pediram a São Fernando que mandasse gente para lá. Ele interrompeu o almoço naquela hora, não acabou de comer o prato, montou a cavalo e foi correndo conquistar Sevilha. Essas coisas assim a pessoa só faz por amor de Deus quando é educada a ter este domínio sobre si mesmo nas pequenas coisas também352. A combatividade cavalheiresca Quanto mais fino é o discernimento da verdade e do erro, do bem e do mal, do pulchrum e do feio, tanto mais esse discernimento queima a vida de uma pessoa. É como ser posta em combustão numa pira, que a queima em louvor de Deus. Ou como um círio: queimamo-nos como uma vela.

352 MNF 8/9/94 148

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Para nossa vocação, amar a Deus tem como consequência imediata discernir e lutar. E nós não podemos amar a Deus como Ele não nos chamou a ser. Temos de amá-lo como Ele nos chamou para amá-lo. Não podemos ir a Ele por uma via escolhida por nós. De onde ser verdade que, para nós, é combatendo, impugnando, discernindo, que progredimos em amor. Nosso amor é assim353. Entra, portanto, na composição de minha mentalidade, um aspecto do bonum que é a virtude enquanto heroica, enquanto batalhadora, enquanto aguerrida354. Essa combatividade é feita da admiração de um altíssimo ideal, da inteira dedicação a esse ideal, e por isto uma combatividade intransigente no que diz respeito ao que possa atrapalhar a causa desse ideal355.

* A Igreja, ao longo dos dois mil anos de sua existência, e tomando em consideração o tempo que Ela ainda deverá existir – só Deus sabe quanto tempo será, mas irá até o fim do mundo –, Ela tem a missão de, como uma flor que mostra todas as suas pétalas ao desabrochar, mostrar todas as suas qualidades ao longo da História. Nem todas essas qualidades já foram mostradas. Só o serão quando o mundo tiver acabado. E uma das qualidades que Ela ainda não mostrou por inteiro é a militância. A militância da Igreja, somos chamados a mostrar. Em tudo devemos ser militantes, como uma etapa no processo de explicitação do ensinamento da Igreja, e como réplica ao erro do confusionismo e do ecumenismo religioso, que acaba sendo o grande erro para o qual vai desembocando todo o progressismo. Portanto, a grande contraposição ao progressismo é exatamente essa militância da Igreja. Em todas as ocasiões possíveis, é minha obrigação convocar os senhores para essa militância e auxiliá-los a terem esse espírito militante. Militância enquanto vigilância, enquanto insistência, enquanto jeito para fazer as coisas: militância, militância, militância, até o último ponto da militância. Militância enquanto estudando, enquanto rezando. Tudo o que fazemos é com a preocupação de levar a lógica da militância até o seu 353 CSN 22/8/81 354 CSN 28/2/87 355 CSN 11/11/89 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 149


último ponto, tomando em consideração aspectos intrínsecos da Igreja, e não tomando em consideração aspectos secundários da Igreja. Isto distingue inteiramente a TFP da heresia branca, porque o próprio da heresia branca não é só ser ecumênica. Há formas de heresia branca que não são ecumênicas, mas são retardadas em formas arcaicas de militância, quando a época já pressupõe formas novas e superatualizadas de militância. Seria como alguém que quisesse combater com arcabuzes do século XVI as batalhas do século XX. Isto quer dizer que a militância constitui um traço especial de minha personalidade? Sim, mas em termos. Pois, como temperamento, não sou uma pessoa combativa. Sou uma pessoa até sumamente cordata, sumamente propensa ao bom trato, ao relacionamento afetuoso e amistoso com todo o mundo. Então, essa militância corresponde à minha personalidade em outro sentido: como por temperamento sou cordato até ao exagero, a Providência me escolheu para triturar esse exagero no holocausto à obrigação de ser militante até o fim. Então, para corrigir esse defeito, a Providência exigiu de mim que formasse uma segunda personalidade – um modo de ser adquirido, conservado e reconquistado a todo o momento – e de levar a militância até onde for preciso.

* Ao longo da vida, meu espírito batalhador foi se acentuando. Acentuando não como se desenvolve uma planta, mas como se desenvolvia em mim a convicção de que eu precisava ser enormemente batalhador. E tinha que fazer, com isto, violência a meu temperamento naturalmente afetivo e amigo de me relacionar bem com os outros, de estar bem com os outros. Naturalmente falando, meu temperamento é como um rio que flui sem encrencas, sem pedras no leito. Eu achava isto bom. Mas compreendia bem que as águas que eu podia simbolizar tinham que correr no meio de pedras tremendas, e que estava diante de mim uma luta terrível, que seria mais terrível ainda se eu não fosse lutador. Quase que se poderia aplicar a mim o provérbio latino: ‘Si vis pacem, para bellum” – “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”.

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MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Fui acentuando cada vez mais a combatividade ao meu temperamento. Nesta linha, e intencionalmente, tornei meu modo de ser, vamos dizer, minha educação, um pouco diferente da que Dona Lucilia tinha mandado me dar356.

* Os senhores poderão perceber, neste meu modo de militância, o modo de ser próprio a várias circunstâncias. A influência alemã entrou muito nisso. Os senhores podem ver também a admiração, quase como amador, da forma de militância francesa nos ditos e nas coisas que arrebentam uma situação. Digo isto como amador, porque não tenho essas qualidades. Mas fico encantado de ver que algum filho da Igreja as tenha. Sou, neste sentido, muito mais afim com a militância espanhola, com a garra: “Não vamos perder tempo; se é para liquidar, pega pelo pescoço e liquida já de uma vez357.

* Tornei-me tão afeito a combater, e tão propenso a combater que, chegando ao Céu e não tendo mais a quem combater, ficarei meio “desempregado”358. Sou um homem que atacou a Revolução, e a vive atacando, se Deus quiser, até o meu último hausto de vida. Se, ao morrer, disser ainda uma palavra nociva à Revolução, e depois rezar uma jaculatória a Nossa Senhora, morro contente359. Não há um instante em que não esteja combatendo o mal. Não há jeito. E se não combato com o furor que a minha atitude de combate exprime, é porque o melhor modo de combater é velar o meu furor360. O combate que faço contra o mal é escolhido, é estudado, é nocivo tanto quanto é possível a mim ser nocivo ao mal. É nocivo de uma nocividade que eu quereria que fosse máxima, que exterminasse o mal. Este sou eu.

356

Chá PS 14/6/95

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CA 16/12/91

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Chá PS 9/9/87

359

Chá SB 14/8/89

360

Chá SRM 7/10/91

4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 151


Se for preciso dizer coisas terríveis com calma e até sorrindo, digo. Mas isto não quer dizer que, se eu pudesse exterminar o mal agora, na hora, não exterminaria361.

* Se dirigisse um Estado, a minha política exterior seria uma política de força. Quer dizer, desenvolver, não a política para dominar, mas a política para reivindicar a realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora. Ficar dependendo de um aliado que prometeu, essa lorota, não! Na hora “h”, ou me defendo eu mesmo, ou de repente a coisa rateia. Dentro de tudo isto, tudo muito atarraxado. Os senhores não encontram um parafuso mal apertado em coisas minhas. Isto não tem perigo: a coisa vai como ela tem que ser, não posso aceitar outra coisa. Nós estamos, em relação ao otimismo conciliatório, ao ecumenismo e ao pacifismo, como a Contra-Reforma estava para o protestantismo362. O UNUM DOS UNUMS: O ESPÍRITO HIERÁRQUICO E O AMOR À GRANDEZA O amor pela hierarquia Teoricamente falando, a ordem do universo é uma coisa e a hierarquia é outra. A ordem do universo é a disposição bela, sábia e santa que Deus pôs em todas as coisas. A hierarquia é a gradação dessa disposição. São Tomás nos ensina que não seria possível a ordem do universo sem a hierarquia, e que esta ordem é hierárquica. Quem ama a ordem do universo, ama a hierarquia, e quem ama a hierarquia ama a ordem do universo363. Para São Tomás de Aquino, sempre que houver duas ou mais coisas que estejam em escala, uma delas necessariamente existirá no topo, por ter uma perfeição que as outras têm em grau limitado. Para mim, isto é uma das melhores demonstrações da existência de Deus. Porque, isto suposto, Deus é necessário, é irrecusável. Minha alma inteira voa no terreno dessa demonstração, pois não é só dizer que nisto vejo que Ele existe, mas vejo ser Ele como eu especialmente

361 Chá SRM 7/10/91 362 CSN 26/6/82 363 Chá PS 2/4/93 152

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O adoro, isto é, colocado em altíssimos páramos, majestoso, magnífico, e tudo caminhando para Ele364.

* Em menino, sentia a posição admirativa da ordem hierárquica do universo refreando em mim uma porção de coisas, não à maneira de freio – era uma coisa até bem distinta de um freio –, mas à maneira de um princípio ordenativo que entrava em minha alma e me comunicava um modo de ser inteiramente conforme a essa ordem, e voltado para o serviço dela. Era a alegria de ser inferior, a alegria de admirar, a alegria de obedecer, a alegria de amar. Percebia também que eu não estava no rés-do-chão dessa ordem, e representava algo de não idêntico, mas análogo para outros menores do que eu. E por amor à ordem, não por amor a mim, exigia deles trabalhosamente a homenagem que o modernismo começava a fazer com que eles me negassem. Tudo isto acontecia por amor a essa graduação, a qual ia até quase o infinito. E essa graduação – aqui entra a passagem do senso moral para a intelecção – se baseava num conjunto de princípios que eram enunciáveis racionalmente, aos quais a razão dava todo o seu apoio, toda a sua sanção, e que correspondiam inclusive à ordem do ser invisível e sobrenatural, e em razão disso precisava ser mantida, apoiada e respeitada de todos os modos365.

* O primeiro objetivo do meu senso hierárquico tem que ser o de me colocar no meu lugar, e de colocar em cima quem está acima de mim. Depois vem a questão de colocar abaixo quem está abaixo. Mas a primeira preocupação é prestar honras a quem está em cima366. Tenho, por exemplo, verdadeira alegria de ter Dom Luiz e Dom Bertrand em nosso Grupo. Eu os admiro, eu os respeito. Quando eles entram, fico contente, gosto de, em todas as ocasiões, dar precedência a eles sobre mim. Dou mais precedência a eles do que qualquer outra pessoa dá367.

* 364 CEP 12/2/66 365 MNF 18/1/90 366 Jantar Serra Negra, 19/2/91 367 Chá SRM 7/5/89 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 153


No furor e na indignação de minha alma, vi largamente violado, por obra da Revolução, o princípio da desigualdade harmônica das coisas. Mas vi também, com um furor não menor – mas deitando menos atenção, porque não é onde está o cravo da questão – a semelhança entre todas as coisas aumentar consideravelmente. Peguei um mundo muito mais dessemelhante do que é o mundo de hoje. O mundo foi se tornando semelhante com o correr do tempo. Explico-me. No tempo em que era pequeno, havia diferenças horizontais e diferenças perpendiculares. Diferença perpendicular é diferença de categoria. Diferença horizontal é entre as coisas de uma mesma categoria. O mundo todo era muito diferenciado. O trato com uma alma muito aberta para todas essas diferenças, que não só as aprecia e compreende, mas por assim dizer as reflete em si, é um trato eminentemente diferenciante, quer vertical, quer horizontalmente. Quem me educou era assim. Minha mãe tinha uma alma enormemente matizada. Diante de todas as variantes, ela as via e, ao pé da letra, refletia aquilo; aquilo repercutia nela, ela aceitava com interesse, com bondade, e comentava: “veja isto, veja aquilo”, com a benevolência que era própria a ela, muito aberta a aceitar tudo quanto era bom (não o que era mau), e a formar assim uma espécie de mundo ideal das coisas variadas e boas. Isto era feito no dia a dia, na vida de todos os dias, e tinha como efeito, por uma consonância enorme que havia entre mim e ela, de produzir em mim as mesmas variações. Eu notava do mesmo jeito que ela, e a admirava, evidentemente. Tudo isto cria condições de alma para a pessoa pegar muito melhor o mal dessa igualdade absoluta, indiscernida, estúpida, porque pega a teoria e a prática, e por assim dizer dá a vivência da coisa. De maneira que as reações da própria pessoa já vão se orientando neste sentido. Assim era a formação anti-igualitária que ela dava368.

* Pela mesma razão que amo a hierarquia, não permito que uma pessoa me falte com o respeito. Pois sei que a Providência me pôs numa certa situação na hierarquia.

368 Chá PS 23/12/81 154

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Mas, mesmo nos que são inferiores e dependem mais de mim, vejo uma série de coisas que exigem de minha parte um respeito que devo exercitar com verdadeiro comprazimento369. O superior deve olhar o inferior não apenas com uma bondade teórica. Ele deve ter a vivência de que há um nexo vivo, natural e orgânico dele com o inferior, que se exprime por este conselho da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne”. E é para falar dessas desigualdades. Eu me lembro que era mocinho quando li esta frase, que me produziu um choque saudável, enorme! Gostei da frase enormemente! Naquele tempo havia muito salão de engraxate. Tenho impressão de que hoje há muito menos. Eu era grande frequentador de salão de engraxate. O freguês ficava no alto, numa poltrona, o engraxate num banquinho embaixo, engraxando o sapato. Gostava de estar lá, em parte porque ficava sentado e olhando a rua. E sempre tive muito gosto em olhar a rua. Aquelas cadeiras que há, por exemplo, nas calçadas dos cafés de Paris, onde o cliente pode ver Paris passar, aquilo é um deleite. Vale mais do que aquilo que ali servem. Voltando ao engraxate, em certa ocasião quebrou-se aquele suporte para um dos pés. O engraxate esticou então uma parte da perna dele, agarrou meu tornozelo, e fez menção de pôr o meu pé sobre sua perna, para continuar engraxando. Veio-me imediatamente a palavra da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne”. Portanto, não pise num homem que é homem como você. Eu disse a ele: “Não, eu tomo outra posição”. Ele pegou a minha perna e colocou lá! Então pisei, mas o tempo inteiro com um fundo de mal-estar, porque aquilo desprezava a minha própria carne. Então, um homem que tome isto a sério, se colocado em um nicho hierático e olhar os que estão em baixo, ele deve considerar: “Diante de mim, lá embaixo, está a minha própria carne”. Este é propriamente o sentido da hierarquia em um dos seus aspectos, quando vista com olhos católicos370.

* Respeito especial merecem aqueles que se põem na minha mão para servir a causa de Nossa Senhora. Porque fico, perante Deus, como tutor e protetor de tudo quanto Deus pôs de bom dentro deles, de tal maneira

369 Chá SRM 17/9/89 370 MNF 2/6/89 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 155


que eles fazem em mim um ato de confiança muito grande, e eles devem sentir bem o respeito que tenho pela sublimidade do ato que eles praticam. Portanto, trato cada alma com muita reverência e com muito respeito, embora exigindo a obediência que seja necessária. É um xadrez no qual se mexe cada peça com tanto respeito, que se tem quase as mãos trêmulas por causa do grande valor daquilo371. A pedra angular do amor à grandeza Os três ângulos de Nosso Senhor que mais me impressionaram foram, de um lado, a sua grandeza incomensurável, misteriosa por todos os lados, inclusive por ser incomensurável. De outro lado, a doçura também insondável, para a qual não há limites que se possa imaginar. Por fim, como resultado disso, Ele tomar, por assim dizer, nossa proporção para conviver conosco, inclusive eucaristicamente. Mas vejam bem que a grandeza está em primeiro lugar. E isto não é inteiramente alheio ao meu gosto pela nobreza. Todas as verdadeiras grandezas são reflexo da grandeza d’Ele. Fora d’Ele não existe grandeza, senão um reflexo da grandeza d’Ele. Nesta perspectiva, notar nas coisas criadas sobretudo a grandeza que elas têm, absolutamente não é “democrático”, isto eu sei. Mas o fato de não ser “democrático” é uma razão a mais para eu gostar, tomando-se em consideração a “democracia” tal como a Revolução Francesa a tomou372.

* Há algumas coisas que se conhece por uma graça. Se há alguma coisa em mim que conheço por uma graça, e de cujo conhecimento depende depois todo o resto, é a noção de grandeza. Esta é a pedra angular de meu espírito, a partir da qual a pessoa compreende tudo quanto penso e digo, e sem a qual eu seria ou vazio, ou ininteligível, que é mais ou menos a mesma coisa que vazio. Se os senhores se derem ao trabalho de analisar qualquer coisa de que eu goste, qualquer coisa que eu promova, que favoreça, vão encontrar no fundo algo que tem uma relação especial com a grandeza. Se alguém quiser conhecer o centro em torno do qual gravita tudo quanto é o ponto de atração de minha alma, e a via pela qual creio que 371 Chá SRM 17/9/89 372 Chá EPS 18/11/92 156

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recebo graças muito especiais para a Contra-Revolução, creio que é o amor à grandeza. Nossa Senhora não me deu aquilo que os outros julgam ser grandeza. Ela não me deu coisas que os outros ainda admitem como um frangalho de grandeza, porque aí não apareceria a grandeza em seu estado puro. Ela não me deu uma pobreza tal que prejudicasse a grandeza, mas ela não me deu uma riqueza tal – sobretudo isto – que obnubilasse a grandeza. Se Nossa Senhora me tivesse dado a riqueza, por exemplo, muita gente admiraria em mim a riqueza, mas já não veria a grandeza. Ela me deu uma grandeza que ficaria bem na riqueza, mas que não some nem se desdoura no minguado da minha situação financeira. Mas para quem quiser ver a grandeza, dá para ver. O meu livro sobre a Nobreza poderia se chamar “Livro da Grandeza”. Não teria discernimento dos espíritos se não estivesse em condições de responder à seguinte pergunta ao tratar com uma pessoa: “Ele ama a grandeza? De que maneira ama? De que forma? Em que grau? Com que ênfase?” Visto isto, dir-se-ia que o panorama interior da pessoa se ilumina. Isto é o que está no centro da minha mentalidade, e sou propenso a admitir que esteja no centro da própria ordenação do universo. Todo o universo, toda a criação têm como eixo a grandeza. Se percebo como as pessoas estão em face desse eixo, percebo como a mentalidade delas está construída373.

* Outra mentira da Revolução é a seguinte: “Quando o homem faz esforço, ele sofre. Logo, a felicidade consiste em não fazer esforço. Portanto, quanto ele está completamente sem esforço ele está feliz”. O corolário é: “Quando o homem reflete, faz esforço; logo, ele se sente mal. Logo, ele se sentirá bem se não refletir nunca”. Se acreditarmos nessas mentiras, o resultado será: “O homem deve ser sempre risonho, deve tratar os outros com despreocupação e com confiança, como se fossem bons. A felicidade consiste em ser descontraído e fazer as coisas como lhe dá na cabeça, e em não ter regras de educação, regras de conduta, regras de nada. Para isto é preciso que não haja grandes nem pequenos, porque o grande, pela sua presença, impõe ao pequeno uma conduta respeitosa. Essa conduta respeitosa impõe uma inibição e uma reflexão. O resultado é que, diante dos grandes, sentimo-nos mal. 373 CSN 8/8/92 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 157


Sentimo-nos bem diante dos iguais. E a educação é um colete de ferro. A verdadeira alegria consiste em não ter educação”. A grandeza é o contrário de tudo isso. A grandeza é a seriedade, a grandeza é o pouco riso, a grandeza é a reflexão, a grandeza é a desconfiança, a grandeza é o esforço. A grandeza não é só isso, mas traz necessariamente isto. E quem não quiser essas coisas, não tem grandeza, não sabe admirá-la, nem sabe viver com ela. Isto levou a que meu modo de ser entrasse numa colisão violenta com o modo de ser daqueles que esperavam encontrar em mim uma ocasião para um convívio igualitário e apalhaçado. Encontravam da minha parte, pelo contrário, uma recusa e uma compunção a agir de acordo com o que eu queria. O resultado disso era uma recusa da grandeza, porque a grandeza instituía condições de convívio que eles recusavam374.

* Procuro fazer um apostolado da grandeza. Por que razão faço isto? Para engrandecer-me? Não. A razão mais imediata – não a mais alta – é ser fiel a uma tradição que herdei e que tenho que conservar. A razão mais alta é para fazer a Contra Revolução. Pois se a Revolução é contra a grandeza, sou a favor dela. E, portanto, temos castanhas a quebrar375. A vida inteira julguei obrigação minha ser fiel a isto: onde eu estivesse, representar a grandeza. Se eu quisesse seguir carreira, o que deveria fazer era me “democratizar” e me meter numa posição mais condescendente com tudo, e não procurar representar a grandeza em perpétuo estado de censura ao mal, mas num estado de espírito de quem não vê o mal. Então ser amável, ser gentil, ser lhano, ser desembaraçado, abaixar todas as pontes e inaugurar um regime de omissões, de silêncios e de me fazer aceitar. Esta é a prova do desinteresse. Se eu fosse ambicioso, seria um cretino em querer usar os trapos velhos da grandeza quando o uso do short dá carreira para um homem: jogava tudo no lixo376. 374 Chá SB 16/7/80 375 Chá PS 30/10/91 376 RE 15/10/67 158

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* A TFP tem por missão compreender o que é a grandeza, e de venerá-la, amá-la, servi-la e lutar por ela. Como é este amor à grandeza na TFP? É o amor a uma grandeza em luta, uma grandeza contestada, mas que se afirma segura de si mesma, e sabendo que, embora possam contestá-la quanto quiser, qualquer um que passe e a olhe, vê e diz: “Aqui está a grandeza”. Devemos ser, em nosso amor à grandeza, homens de Fé que não estão preocupados em mostrar a sua grandeza pessoal, mas estão cheios de altivez pela Fé que conhecem e proclamam. Cada um de nós deve ser um ato de Fé vivo, presente onde está. E porque representamos a Fé, devemos ser muito dignos, nunca sermos homens de brincadeirota, de coisinha engraçadinha, de coisinha superficial, mas devemos ser sérios377. A “luz primordial” resumitiva O que é a luz primordial? Sabemos que todo homem nasceu para louvar a Deus. Esse louvor de Deus se faz pela contemplação de umas tantas verdades, de umas tantas virtudes, de umas tantas perfeições divinas. A luz primordial é justamente esta sede que há em cada homem para contemplar a Deus desse ou daquele modo. Aquilo que Santo Agostinho diz: “Meu Deus, o homem nasceu para Vós e seu coração está inquieto até que repouse em Vós”, se aplica a cada homem de um modo diferente. Por quê? Porque as perfeições divinas que ele deve contemplar são ora uma, ora outra. Santa Teresinha, por exemplo, contemplava em Deus o amor. É uma luz, uma sede, uma aspiração básica que existe no fundo de cada uma de nossas almas, porque fomos criados para isto. Em última análise, é para o que vivemos: para louvar a Deus, para contemplá-lO. Há, portanto, no fundo de nossa alma, essa luz primordial, esse desejo fundamental, essa aspiração básica, que é o início, a base de toda a nossa santificação, de todo o nosso aperfeiçoamento378. 377 Chá SRM 12/8/91 378 RE sem data 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 159


* O homem, ao nascer, é como que um desenho incompleto. E cabe a ele próprio completar esse desenho, de acordo com um certo modelo ideal. E Deus nos deu, desde nosso nascimento, um feitio de espírito pelo qual somos particularmente abertos para certas verdades referentes à própria ordem do universo e à ordem mais profunda do ser. Com os recursos da nossa natureza, com nosso lúmen natural, sem uma interferência necessária da graça, para essas verdades nosso espírito é particularmente aberto. Daí a expressão nossa conhecida como “luz primordial”. Essas verdades formam para nós determinadas certezas fundamentais e supremas, que são certezas em toda a força do termo, pois nosso espírito é dotado de uma lucidez enorme para perceber aquilo. E às vezes são coisas muito elevadas, às quais aderimos com todas as veras da alma. É uma evidência primeira, mas que se apresenta, em primeiro lugar, muito sintética, e em segundo, muito inexpressa e implícita. A pessoa tem uma apetência enorme de ver a ordem do universo sob a luz daqueles princípios, e ao mesmo tempo a fazer disso o bem de seu espírito – a sua felicidade, a sua fidelidade – e de viver segundo esses mesmos princípios379. Somos uma obra de arte da graça, e de nossa cooperação dentro de nós mesmos. Deus nos encomendou esta obra de arte. E ao expirarmos, deveremos oferecê-la a Deus. Nossa luz primordial é, em última análise, o conhecimento que temos do que deveríamos ser, mais o fato de que todas as potências de nossa alma, estimuladas pela graça, têm no fundo esse conhecimento e a tendência para isto. Isto é a luz primordial380.

* Certa vez me perguntaram qual seria a minha luz primordial. Disseram-me que eu já a havia definido como uma visão harmônica e arquitetônica, monárquica e aristocrática de toda a ordem do universo material e espiritual criado, desde um pedregulho até um anjo, mas acentuando especialmente os pontos que a Revolução mais negou. Nesta definição, dei por subentendida uma noção que é, de fato, a primeira: uma visão religiosa. Depois, harmônica e arquitetônica, monárquica e aristocrática. 379 RE 2/9/73 380 SD 22/01/71 160

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Então, primeiro é a visão religiosa. E como não devemos entender a palavra “religiosa” ecumenicamente, o melhor é dizer “católica”: uma visão católica, monárquica, aristocrática. Aí temos bem expresso o nosso pensamento381. ALGUNS DERIVADOS E CORRELATOS DESSE “UNUM” Uma espiritualidade imersa na esfera temporal Em nossa vocação, o chamado da graça coloca muito claramente a importância do papel desempenhado pelos fatores naturais e psicológicos no desenvolvimento da própria vida espiritual. Ao examinar a vida espiritual de uma pessoa e as dificuldades com que ela esbarra, somos levados a analisar, com uma acuidade muito mais atenta do que em outras vocações, a atmosfera criada pela Igreja do ponto de vista de seus imponderáveis e na linha dos “Ambientes-Costumes-Civilizações”382. Também somos levados a observar, com muito mais clareza, a influência da sociedade temporal sobre a sociedade espiritual, e a perceber, em toda a sua extensão, o papel muito saliente da influência da sociedade espiritual e temporal sobre os indivíduos. A partir desse ângulo de observação, acabamos por conhecer como se formam os inter-relacionamentos pessoais, psicológicos; como se formam os grupos sociais; como esses relacionamentos formam depois os grupos regionais, os grupos nacionais. Por fim, quais as grandes correntes de ventos 381 CA 6/2/91 382 “Ambientes-Costumes-Civilizações” era a seção não assinada do mensário “Catolicismo”, mas de autoria de Dr. Plinio, cuja finalidade foi assim descrita pelo próprio autor: “Esta seção [...] tinha por meta mostrar que a vida de todos os dias, em seus aspectos-ápice ou triviais, é suscetível de ser penetrada pelos mais altos princípios da Filosofia e da Religião. E não só penetrada, mas também utilizada como meio adequado para afirmar ou então negar – de modo implícito, é verdade, mas insinuante e atuante – tais princípios. De tal forma que, frequentemente, as almas são modeladas muito mais pelos princípios vivos que pervadem e embebem os ambientes, os costumes e as civilizações, do que pelas teorias por vezes estereotipadas e até mumificadas, produzidas à revelia da realidade, em algum isolado gabinete de trabalho ou postas em letargo em alguma biblioteca empoeirada. De onde a tese de Ambientes, Costumes, Civilizações consistir em que o verdadeiro pensador também deve ser normalmente um observador analista da realidade concreta e palpável de todos os dias. Se católico, esse pensador tem ademais o dever de procurar modificar essa mesma realidade, nos pontos em que ela contradiga a doutrina católica” (“Auto-retrato filosófico”, “Catolicismo” n° 550, outubro de 1996). 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 161


psicológicos que varrem numa direção ou noutra o mundo internacional, hoje interligado por mil meios de comunicação que antigamente não existiam. Junto com tudo isto vem uma noção que diferencia muito a TFP de outras obras católicas, que é a noção da glória de Deus – ou, pelo contrário, daquilo que poderíamos chamar horrorosamente de glória do demônio – enquanto pairando sobre a sociedade temporal, e a partir dela, importando eminentemente para a glória de Deus383.

* Dizer que fundei uma escola de amor de Deus é uma afirmação que tem alguma coisa de excessivo. Procuro atrair a atenção de todos para algumas verdades que estavam postas de lado ou postas num certo silêncio; e colocando em evidência algumas que talvez nunca tenham sido analisadas, o que inegavelmente dá uma chama a mais dentro da grande labareda católica do amor de Deus. Correndo o risco de repetir algo já dito anteriormente, o que nossa espiritualidade tem de muito peculiar é um modo de abranger dentro dela a vida temporal. Não é, portanto, uma espiritualidade cuja característica seja retirar-se da vida temporal, o que, a vários títulos, seria muito legítimo. Mas para nós não se trata de agir assim. As coisas legítimas são muitas, e o não se retirar da vida temporal é uma dessas coisas legítimas. Então, para nós, seria ver a vida temporal de maneira que aparecesse nela, sempre, como nota preponderante, o ponto mais alto que ela tem, e algo de espiritual que ela simboliza: algo de transcendente, de transesférico e através do qual ela simboliza a Deus. Seria ver também a Igreja, mas com uma peculiaridade: vê-la enquanto simbolizando, ela mesma, o próprio espírito dela.

* A contemplação de coisas assim leva a pessoa a não sair da ordem temporal, mas a vê-la como um prolongamento normal, uma dilatação normal da ordem espiritual. Dessa forma tudo acaba nos falando de Deus, mesmo dentro das coisas mais comuns da vida temporal. É este o papel do maravilhoso. Isto traz também como consequência aproximar muito mais, na ordem concreta dos fatos, o espiritual do temporal. Isto porque, em vez de se estabelecer um abismo entre as duas esferas – hoje conhecemos essa 383 CSN 21/6/86 162

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realidade já sob a luz do laicismo, que a desfigurou ainda mais –, a esfera temporal estaria remetendo continuamente à esfera espiritual, e o espiritual estaria continuamente vivificando a esfera temporal. Formar-se-ia assim uma espécie de circuito reversível, se quiserem um “8”, que é a síntese não de dois círculos tangentes, mas de duas argolas que defluem uma da outra. Assim seria a relação entre o temporal e o espiritual. Que repercussão isto traria para o homem? Tornaria o amor de Deus muito mais praticável, muito mais factível, muito mais ativo, porque a ocasião para amar a Deus estaria por assim dizer onipresente. Isto tornaria o mundo mais paradisíaco, não no sentido de que ele teria as delícias do Paraíso antigo – ele continuaria sendo um vale de lágrimas –, mas, nas suas próprias lágrimas, teria algo que é a quintessência do Paraíso: estar sempre contemplando, nas culminâncias de tudo, o maravilhoso deiforme. No período imediatamente pré-conciliar, era comum encontrar pessoas que pensavam da seguinte maneira: “Está bom, para as coisas da ordem espiritual, há um interesse religioso de que tudo nessa esfera tenha uma nota de maravilhoso: as igrejas, o culto etc. Mas, para as coisas da ordem temporal, para mim é inteiramente indiferente que elas estejam imersas na vulgaridade ou empolgadas pelo maravilhoso. É até quase melhor que o maravilhoso fique reservado à ordem espiritual, porque o maravilhoso temporal é gerador de apego e de pecado”. Pode parecer exagero, mas conheci gente assim. E essas pessoas acabavam concluindo: “A Igreja não é nem um pouco interessada na supressão do prosaico de dentro da sociedade temporal, porque o prosaico faz com que o homem se habitue à pobreza e abandone as exigências temporais, indo então se deliciar nas riquezas espirituais”. Daí vinha também o corolário: “A vida oficial do padre deve ser esplendorosa, vestindo, por exemplo, capas de asperges magníficas, mas dormindo num pijama sujo e roto, e coisas assim”. Víamos então certas casas paroquiais as mais horríveis possível. Isto pela falsa ideia de que ali se desenvolvia a vida temporal do padre, e que essa vida temporal tinha de ser horrível também384. A procura do sublime e do sacral Então, no que consiste a essência do meu espírito? Consiste em um modo de ver a ordem do universo – entendida não só como criaturas do universo visível, mas também do universo invisível: 384 EVP 3/8/80 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 163


os anjos, e acima dos anjos, Deus Nosso Senhor –, em que aparece muito claro o quanto essa ordem do universo é sublime. E como cada elemento que compõe essa ordem do universo de algum modo participa desta sublimidade, sendo que, no universo visível, isto se dá sobretudo com os homens. O amor ao sublime deve ser dominante em nossa alma, e não apenas um traço, de maneira que seja a bem dizer a orientação contínua dela. É o modo específico de amarmos a Deus. Na menor das coisas nossas entra o desejo de ver o aspecto mais alto delas. E às vezes, pela força dos fatos, é o mal que se apresenta. E a minha ideia é: o contrário deve ser sublime. Quais são os pontos de sublimidade que sou mais chamado a realçar? Teoricamente falando, sinto-me mais chamado a realçar o esplendor do poder temporal enquanto todo embebido do poder espiritual, e todo ele vivendo do poder espiritual. Ou seja, a Cristandade, que é a família das nações em que toda ordem temporal está cheia da clorofila da ordem espiritual, e, portanto, é toda segundo a ordem espiritual e vivendo para a ordem espiritual. Todo esse amor ao sublime perderia qualquer coisa de sua autenticidade, de seu equilíbrio, se não fosse o amor proporcionado ao que é pequeno, com a vontade de o proteger, de o acolher, de ser afável e bom para com o pequeno, por reconhecer que até o pequeno é um irmão dentro da grande ordem do sublime, e que ele tem a sua dose de sublime que faz o conjunto da sublimidade. O paladino do sublime é protetor do pequeno, gosta de admirar, de respeitar o que não é ele, tem muito afeto, muita compreensão, muita paciência. E, literalmente, volta o outro lado do rosto para a bofetada do adversário, se isto tiver propósito385.

* Tenho de modo habitual minha alma voltada para a sublimidade386. Conversando comigo, os senhores talvez notem traços dessa tendência para a sublimidade. Meu entusiasmo, meu interesse, meu gosto por uma coisa estão sempre na relação direta com o nexo que ela tem com aquilo que é sublime, e não no nexo que ela tem comigo, porque não sou nexo para nada, a não ser em função de Deus. Aí é outra coisa.

385 CA 5/6/91 386 Chá SRM 21/9/89 164

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Um exemplo: nenhuma coroa no mundo determinou em meu espírito a impressão que produziu uma coroa mandada fazer na Boêmia por um imperador do Sacro Império, da Casa d’Áustria. É uma coroa de tal maneira sublime e magnífica que, de todas as coroas do mundo, aquela é, de longe, a que mais arrebata o meu espírito. A tal ponto que pus uma fotografia dessa coroa na parte de dentro de uma espécie de oratório que há no meu escritório, para poder vê-la. Esse meu entusiasmo vem do quê? Da especial e peculiar sublimidade que aquela coroa tem. Outro exemplo: a transfiguração de Nosso Senhor no Monte Tabor, tendo a seu lado Moisés e de outro lado Elias, aparecendo para os Apóstolos. Eles de tal maneira ficaram impregnados pela sublimidade de Deus Nosso Senhor que, desceram do Monte Tabor, eles brilhavam, reluziam; e da figura de Nosso Senhor os homens tinham medo, de tal maneira Ele brilhava. Isto gosto de ver. Também por causa disso, gosto extraordinariamente da luta, pois nela a sublimidade do homem aparece de maneira especial. Na paz podem aparecer aspectos legítimos do homem, e a paz tem uma beleza própria que até pode ser sublime. Mas, entre imaginar, de um lado, um guerreiro vestido de couraça e lutando, e depois imaginar esse mesmo guerreiro de pijama e de chinelos no seu quarto de dormir, numa manhã de domingo, não é o aspecto que mais gostaríamos de ver nele. Pode estar ali a retidão, pode estar ali o direito, mas não estará a sublimidade. A sublimidade tem um perfume próprio que, no meu modo de entender, é o que mais de perto nos faz entrever qual é a beleza, qual é a santidade magnífica de Deus Nosso Senhor no Céu. Por amor ao espírito de sublimidade, procuro constantemente amar o que há de mais magnífico, de mais alto, de mais nobre nas coisas, na medida em que elas são magníficas, nobres, estupendas, excelentes387.

* A ideia de vir a ser santo se pôs em minha alma de uma maneira relativamente tardia, quando tinha 23, 24 anos. Já o desejo da santidade se pôs muito cedo. Eu queria a santidade, mas não sabia que isto se chamava santidade. Eu queria ser de um certo modo, sabia o que queria ser, mas não sabia que isto se chamava santidade. Como é que essa ideia de santidade nasceu na minha alma? Ela nasceu pelo desejo formal, resoluto, da sublimidade. 387 Chá PS 26/3/93 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 165


Quer dizer, como tinha um feitio de espírito pelo qual as coisas sublimes me chamavam muito a atenção, me atraíam muito a alma, eu as olhava, as considerava e notava que elas me modelavam. Olhando-as, vendo-as, analisando-as muito, admirando-as muito, querendo-as muito bem, ia insensivelmente conformando minha alma àquele ideal. Naturalmente, esse modo interior de agir se aplicava a tudo aquilo que a mim me parecesse de uma bondade, de uma justiça, de uma força, de uma excelência extraordinárias. E tudo quanto estava nessa categoria de seres, fossem eles seres materiais, fossem seres espirituais, fossem anjos, tudo isto me parecia constituir um mundo que ficava por cima do nosso, e para o qual eu deveria voltar-me com toda força para moldar-me segundo essas coisas sublimes, e por esta forma ir fazendo do meu espírito um espírito feito do anseio dessas coisas e do desejo delas. Um exemplo disso. Eu praticava ginástica sueca, com muita repulsa de minha alma, num instituto de uma tal Madame Leo. Na sala de ginástica havia uma mesinha onde, fortuitamente, dei com a mão em cima de um objeto de vidro, dentro do qual havia uma fotografia de uma cidade feita de palácios e ruas calçadas de água. Aquilo me pareceu desde logo sublime. Era Veneza. Mas notem bem: não era sublime no sentido comum da palavra, quer dizer, muito bonito. A ideia da beleza estava presente ali, mas secundariamente. Era sublime no sentido de uma sublimidade moral: aquilo representava um estado de espírito que era, para mim, um primeiro passo para a santificação. Não no sentido de que aqueles objetos, aquelas casas, aquela água, levassem diretamente para a santificação, como por exemplo uma bonita imagem de Nossa Senhora. Mas preparavam-me para querer e admirar tudo quanto é sublime, e com isto querer, em matéria de alma, a sublimidade. E querendo essa sublimidade de alma, querer uma coisa que não sabia que se chamava santidade388. Tratar com seriedade até uma bagatelazinha, é sublime. E a possibilidade de colocar a minha vida nessa clave de sublimidade, eu não devo desdenhar. Mas isto punha todas as minhas cogitações, e a mim mesmo, em um nível de grande gravidade, de grande responsabilidade e de seriedade, quer dizer, levava-me a considerar todas as coisas nos seus mais altos aspectos, nos seus mais altos efeitos, e até nas suas mais miúdas consequências.

388 Chá PS 13/5/94 166

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Isto era o contrário do espírito de Hollywood, para o qual nada é sério, tudo é brincadeira. E viver em função dessa perspectiva de seriedade era viver uma vida sacral. Uma pessoa que tome esta perspectiva até o seu mais alto píncaro, e tira dela todas as consequências, tem acesa em sua alma a chama da sacralidade. Meu espírito é voltado para o sacral. Se me examinarem a fundo por qualquer lado, o que encontrarão é isto. E explica até uma porção de reflexos meus. Isto, graças a Nossa Senhora, transformou-se num hábito. A presença desse espírito é por excelência o que deixa os que me odeiam furibundos, porque é a contradição mais completa da Revolução e do mundo moderno. Esta é a parte mais interna do meu espírito, da minha mentalidade. O píncaro é este389. O sagrado é a própria matriz de meu pensamento a respeito de uma porção de coisas. Sempre que elogio algo, no fundo da minha mente estou procurando uma analogia desse algo com o sagrado. E sempre que vitupero alguma coisa, é porque tem uma contra-analogia com o sagrado. No meu vitupério, há uma rejeição, uma impugnação, uma vontade de combater, por ver na coisa vituperada uma recusa do sagrado. Pelo contrário, no que é sagrado, há uma propensão minha a aceitar, a admitir, a servir. Também na ordem do terreno, as coisas que elogio, as elogio por uma tal ou qual analogia, uma tal ou qual participação que elas têm no sagrado. No fundo, é só por aí que os assuntos me interessam. Por exemplo, nas Cruzadas, o élan de heroísmo foi muito bonito. Mas se fosse uma cruzada para salvar o S.P.Q.R. (“Senatus Populusque Romanus” – “O Senado e o Povo Romano”), não me interessaria por isto. Bastaria pôr no alto do lábaro uma cruz que eu exclamaria: “Ahhh! o sacral está presente. Sou soldado nesta guerra”. Se alguém for examinar qualquer coisa que eu faça, encontrará a noção de sacralidade envolta dentro, de todas as maneiras. Quando pronuncio a palavra “laico”390, aquilo vem em mim acompanhado de uma rejeição, de um gosto mau, de um desprezo, de uma execração, isto porque o laico é o contrário de tudo quanto acabo de dizer. Ele não é sacral, não vale para mim dois caracóis. Tudo, tudo, tudo na minha mentalidade, no meu modo de ser, é presidido pela ideia do sagrado. 389 Relato Almoço EANS 4/1/89 390 Dr. Plinio toma a palavra “laico”, aqui, no seu sentido derivado e pejorativo, isto é, relativo àquilo ou àquele que é avesso ou hostil à influência da Igreja na sociedade. 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 167


Se querem conhecer a minha personalidade, observem-me enquanto ultra cultor do sagrado, e embebido dele até onde eu possa ser. Não nego que outros possam estar mais embebidos do que eu nessa matéria. Aquilo que não for compreensível em mim, procurem explicar por esse lado, que a explicação vem imediatamente391.

* A primeira vez que vi a palavra sacralidade foi no começo das minhas relações com Tristão de Athayde. Lendo um livro dele, “Esboço de introdução à economia moderna”392, em determinado momento notei que ele empregava a palavra sacralidade mais ou menos no seguinte contexto: “As civilizações antigas pagãs eram todas civilizações sacrais”. Isto é inteiramente verdade. A civilização japonesa, por exemplo, nos seus traços dominantes ou nos seus traços ornamentais mais ostensivos, era uma civilização sacral, por oposição à laicidade. A palavra sacralidade me produziu quase um efeito físico no coração. E pensei: “Mas o que é que fiz para chegar até os vinte e tantos anos e não ter conhecido ainda essa palavra, que é um instrumento de pensamento e de trabalho de primeira ordem? Não vou mais me esquecer dessa palavra, que é um par de asas para mim”393.

* Daqueles tempos para cá, o que aumentou em mim em matéria de consideração da sacralidade foi a convicção de que há uma visão global e coletiva do universo. E que precisa ser vista de dois lados. Uma é a visão do universo com os seus lados filosóficos e sobretudo teológicos. Outra seria Deus visto de um modo muito especial, porque se procuraria vê-lO nas flores, nas quedas d’água, mas também no pão preto, na manteiga e no caviar. Poder-se-ia procurar vê-lO também no frescor de um panorama da Suíça, no azulado das águas do lago Leman e daí para frente. É essa espécie de conjunto de coisas notáveis que dá uma visão de conjunto do universo, a qual tem uma sacralidade própria, no sentido de 391 MNF 13/4/89 392 Ed. Centro D. Vital, 1930. 393 MNF 9/2/90 168

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ser considerada em função dos dados da religião sobrenatural, que é a religião católica. Tudo isto forma uma visão de conjunto incomparável, em defesa da qual nasce, por exemplo, o verdadeiro espírito militar394.

* Nossa vocação não é de ser sacerdote, que é o “sal da terra” e a “luz do mundo”, mas é de ser um prolongamento da missão de sacralização do mundo, praticada por indivíduos totalmente leigos, mas que se consagraram a essa tarefa como um sacerdote se consagra à dele. É a de ser um apóstolo de todas as formas de sacralidade, de sublimidade e, por isto, da Cavalaria. Porque, numa sociedade concebida assim, a luta contínua pelo sacral é o ponto característico”395.

* As coisas do império austro-húngaro me tocavam justamente por causa de sua sacralidade muito marcante, entendendo-se sacralidade como algo em que o temporal está profundamente embebido do espiritual, e o espiritual está em certo sentido intimamente vinculado ao temporal. Essa vinculação reúne, num possante todo, algo que acaba em um cone, que é o estilo de pompa e o estilo de grandeza do império austro-húngaro. em que uma grande cerimônia se fazia num desfile com grande despliegue, com grande desdobramento social, o qual não se vê nas cerimônias oficiais de outros países. Nesse despliegue de pompa religiosa ia o pálio com o Santíssimo Sacramento, e sob o pálio, antes de tudo, o “Rex regum et Dominus dominantium” – “Rei dos reis, e Senhor dos senhores”, quer dizer, a Sagrada Eucaristia, que o Imperador não tocava porque não era digno e não tinha as mãos sagradas. Mas o Imperador, dignitário supremo do Estado, vinha de vela acesa na mão, acobertado e magnificado pelo pálio que cobria o próprio Deus. Depois, de um lado e doutro, uma presença imponente de tropas. Pelo meio desfilavam dignitários eclesiásticos, dignitários civis da nobreza, depois os corpos do Estado. E quando o desfile passava diante de certas igrejas, os sinos tocavam; e diante de certos edifícios, os canhões troavam.

394 CSN 21/11/92 395 MNF 7/9/1988 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 169


Isto é uma coisa que pede a presença de um ápice. Esse ápice é como que um cone. E o alto desse cone é Deus396.

* Em nossa espiritualidade, o maravilhoso tem muito papel. Imaginemos uma balança que tenha em uma de suas conchas um monte de lixo, e na outra concha ouro. Se quero que a balança penda para o lado do ouro, posso utilizar dois processos: um é diminuir o mais possível o lixo. Outro é ter uma tal quantidade de ouro na balança, que a concha do lixo estremeça e ceda. Então, não será tanto o trabalho de jogar fora o lixo, mas de pôr ouro na balança. E o maravilhoso é essa quantidade enorme de ouro na balança. Isto não significa que, pondo o ouro, a concha com lixo deva ficar intata. O lixo tem que ser posto fora de qualquer jeito. Outro exemplo seria o de um indivíduo que tenha uma vontade louca de roubar, por considerar que só roubando ele tem a possibilidade de realizar alguns anseios nesta terra. Se dou a ele uma atração muito mais alta do que o roubo, eu o afastarei do roubo397. A reversibilidade do “tal enquanto tal” A boa ordem que deve existir na Igreja tem possantes analogias com a ordem ideal interna para a qual deve caminhar a sociedade civil. Há, portanto, certa reversibilidade entre as duas ordens. Isto se fez sentir sobretudo no tempo do feudalismo, porque as relações do senhor feudal, uns com os outros e com o rei, são muito parecidas com as relações dos padres com os bispos e com o Papa. Ora, pode-se encaminhar o fervor de alguém muito principalmente tanto para a matéria eclesiástica quanto para a matéria temporal. Mas posso ter meu fervor mais ampliado abarcando a reversibilidade das duas ordens, sentindo essa reversibilidade e querendo-a398.

* O que significa em nossa linguagem “tal enquanto tal”? 396 Jantar EANS 30/4/92 397 EVP 3/8/80 398 CA 27/04/88 170

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Em si, diretamente, “tal enquanto tal” quer dizer monarquista enquanto católico e católico enquanto monarquista. É uma questão de forma de governo e de religião. Ou seja, é uma reversibilidade de valores pelos quais certa coisa, uma vez afirmada no campo temporal, tem no campo espiritual sua reversão em tal outra coisa, e reciprocamente. Essa reversão tem como pressuposto que os dois campos são paralelos, e em certo sentido ── não em todos os sentidos, mas no grosso dos sentidos ── contêm uma reversibilidade, uma complementaridade reversível399.

* Existe uma organização na Igreja que é a organização hierárquica, à qual corresponde um determinado estado de espírito, que é o espírito hierárquico e que hoje é ocultado, renegado, calcado aos pés, mas é o espírito da Igreja. E que fazia com que a Igreja tivesse toda aquela pompa, aquela majestade, aquela seriedade, aquela capacidade de ensinar, de condenar, de punir, de canonizar que corresponde a uns outros tantos atributos de quem tem a chave do reino do Céu. Mas a monarquia tem uma organização análoga a essa, que produz uma ordem temporal parecida com a da Igreja e gera um estado de espírito parecido com o da Igreja. Em última análise, a Igreja projeta para a ordem temporal tudo aquilo que é próprio à ordem espiritual, mas não é exclusivo da ordem espiritual. Há, portanto, entre a Igreja e o Estado, uma analogia muito grande, uma semelhança muito grande. O “tal enquanto tal” quer dizer monarquista enquanto católico, e “tal enquanto tal”, católico enquanto monarquista. Ou seja, possuidor daquele traço comum ou daquela cordilheira de traços de espírito comuns ao católico e ao monarquista, que fazem com que um indivíduo, sendo católico, tende a ser monarquista e, sendo monarquista, tende a ser católico400.

* Nasci em 1908, quando São Pio X ainda era Papa. Formei, portanto, o meu espírito numa atmosfera “piodecimal”, em que as coisas ordenadas entre si eram ainda bem numerosas e me encantavam. Percebia que tinham ligações.

399 Almoço 9/1/94 400 EVP 28/11/93 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 171


Por exemplo, a questão da monarquia e da Igreja: jamais me pus o problema a respeito de se a Igreja e a monarquia deveriam estar unidas ou separadas; ambas as instituições nasceram no meu espírito como coisas unidas. A afirmação da união entre elas era conatural comigo401. Se me acontecer de morrer antes do Reino de Maria, gostaria de, nos meus últimos momentos, pronunciar estas palavras, com o intuito de que cada uma valesse como um tiro de canhão na ordem sobrenatural, na ordem dos planos de Deus, na ordem da expiação, na ordem da distribuição das graças para a Contra-Revolução ir para a frente. Estas palavras se reduzem a uma palavra só: “tal enquanto tal”402.

* A dificuldade de nosso apostolado junto a certas correntes monarquistas cifra-se na seguinte ideia que defendem: “Restaurado um rei, está tudo resolvido, tenha esse rei que mentalidade tiver. É até uma irreverência perguntar qual é a mentalidade dele. Ele paira acima de tudo. É uma espécie de papa da ordem leiga. Não se tem o direito de analisar a mentalidade dele. Por causa disso, toda a formação do jovem monarquista deve ser de exaltar a fidelidade à dinastia. E a fidelidade à dinastia se exalta mostrando que a família real, vigente ou destronada, é muito simpática”. Diante dessa posição monárquica, qual era a nossa posição? Primeira consideração. Fidelidade à dinastia, muito bem. Mas fidelidade à Igreja infinitissimamente mais do que fidelidade à dinastia. De maneira que rei herege ou rei liberal, seja legítimo como for, em tese não pode subir ao trono. Está acabado. Segunda consideração. A monarquia, mais do que uma fidelidade à dinastia, ou uma saudade do passado – que é também uma coisa boa em seus termos; uma saudade do passado pode ser até muito respeitável – é uma doutrina que põe em realce um princípio. E esse princípio – que importa como corolário do princípio aristocrático – não é um princípio meramente político: é um princípio da ordem universal, um princípio metafísico e religioso. Terceira consideração. Não adianta implantar uma monarquia em um país religiosa e moralmente podre. É preciso que haja, antes, uma ação religiosa profunda, como ponto de partida de tudo. E uma formação religiosa anti-liberal, ou seja, contra-revolucionária, baseada sobretudo em três devoções: a Nossa Senhora, como canal de tudo; ao Papa, que é o Vigário 401 Almoço EANS 17/7/92 402 SD 31/05/91 172

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de Cristo na Terra; e à Sagrada Eucaristia, que é Nosso Senhor Jesus Cristo presente na Terra, objeto supremo e próprio da religião403. O senso da honra católica Toda criatura humana, por mais modesta que seja, tem uma dignidade própria, natural e inalienável. Maior ainda, incomensuravelmente maior, é a dignidade do último, do mais apagado dos filhos da Igreja como cristão, isto é, como batizado, como membro do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo404. A pessoa que, de dia e de noite tem noção de sua própria dignidade, vive na presença de Deus. E quando tira férias da dignidade, tira férias de Deus405. Essa espécie de dignidade total é a integridade da dignidade. É a dignidade em todos os modos de ser do homem. E essa dignidade total é um dom apenas do católico apostólico romano verdadeiro. De tal maneira é um dom, que se conhece a catolicidade pela dignidade406. A honra é uma espécie de projeção ou de reverberação da dignidade. A dignidade se reflete através da honra. Um arcebispo, por exemplo, tem mais honra, porque em tese a sua missão é maior do que a missão de uma pessoa comum: abrange uma área mais extensa, abrange mais pessoas sobre a qual se exerce e sobretudo abrange uma soma de poderes e uma natureza de poderes maior. Por detrás da noção de honra há, portanto, a noção de dignidade, a qual está ligada a uma tabela de valores que está na ordem do ser: determinada missão existe, e ela, no seu ser, é maior do que a outra. Então tem uma dignidade maior que se exprime por meio de uma honra diversa407. A noção de honra é um dos elementos mais intrínsecos à noção de sacralidade. Ninguém terá ideia do que é sacral, se não tiver noção da honra intrínseca daquilo que é sacral, em comparação com outras formas e outros graus de honra. Digo mais: é impossível o indivíduo ser católico

403 RN 31/1/69 404 “Dignidade e distinção para grandes e pequenos”, “Catolicismo”, n° 33 (setembro de 1953). 405 EVP 17/9/78 406 EVP 24/9/78 407 EVP 30/5/76 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 173


sem ter no mais alto apreço, e como um valor normativo de sua vida, a noção de honra408.

* A ideia de honra foi muito relevada por mamãe. Ela fazia sentir, em episódios que contava da vida do pai, a honra como era praticada. Então, ela frisava todas as coisas honrosas, honoráveis, honradas, “honorígenas” que ele tinha feito e que ela tinha sabido. Através disso ela dizia: “Ficou a honra, e com isto seu avô foi dormir tranquilo”409. Mamãe tinha uma alta ideia do que era o papel dos antepassados na vida de uma pessoa e o papel do nome de uma família. Ela achava que uma pessoa devia usar o nome de família ilustre mais ou menos como um soldado carrega a sua bandeira. É uma honra para ele carregar a bandeira, e desonrá-la ou entregá-la ao adversário por preguiça, por medo, é uma vergonha sem nome. Também o nome da família. Ou o indivíduo vive pelo menos à altura de seus antepassados mais ilustres, ou vive num estado de vergonha. Ele não pode ser outra coisa. Ela não dizia isto assim, nem sei se saberia formular. Mas todo o ambiente criado por ela, o modo de falar dos seus antepassados, dos antepassados de meu pai, da família de meu pai em Pernambuco (coisas que meu pai não contava por indolência, mas que ela, estando lá em Pernambuco, viu como eram e como tinham sido) tinha sempre este fundo: “Iguale ou supere. O que não for isto, é uma vergonha que você tem que carregar”. Para uma pessoa que não tivesse a vocação especial que eu tinha, isto seria perfeitamente verdadeiro. Ela estimulava muito que o indivíduo não procurasse ser um ambicioso de dinheiro. Mas ambicioso de situações, de honras, de respeito, adquirir respeitabilidade por suas virtudes pessoais, isto ela estimulava muito410.

* A nota distintiva de nossa vocação é ver Deus, ver Nossa Senhora, ver toda a vida e todo o universo sob o lúmen da honra. Por isso a minha verdadeira felicidade de situação consiste na honra, em considerar as coisas continuamente do ponto de vista da honra. E 408 EVP 23/5/76 409 MNF 7/10/94 410 Chá SRM 30/12/88 174

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quem quiser ter o espírito próprio ao nosso chamado, precisa ter o espírito voltado para a honra. Em várias raças de cães, por exemplo, vejo espelhado o lado de honra. A raça de que mais gosto é certo galgo sedoso e comprido, com o focinho também comprido. Gosto por ser um cão no qual a imagem da honra, desde certa perspectiva, aparece de um modo mais saliente. Já o meu gosto pelo buldogue é a honra vista de outro lado: “Eu te pego!” Em música, Mozart é o lazer da honra. Como se ter lazer com honra? É com Mozart, por excelência. Passo o dia inteiro à procura da honra, desde que acordo de manhã até o fechar dos olhos. Em uma das recentes doenças minhas, eu tinha a preocupação de estar na cama numa posição com naturalidade, mas com honra. Nada de teatralidade, porque teatralidade não é honra. Não me lembro de mim despreocupado nessa matéria. Agora, por quê? É para me fazer prevalecer em relação aos outros? Não! É para possuir a honra como uma espécie de licor ou elixir divino que deve estar na minha alma como o sangue está dentro de meu corpo411.

* A honra é a nossa luz primordial412. A honra está para a TFP como a pobreza está para os franciscanos, e a obediência para os jesuítas. Nós somos da escola da honra. Portanto, à luz da honra, todas as virtudes para nós têm luz, e sem a honra as virtudes para nós não têm luz. Em todas as escolas de santidade a honra tem de estar presente, mas pode não ocupar uma nota tão dominante como, por exemplo, a castidade em São Luís Gonzaga. Nós somos o São Luís Gonzaga da honra. Por isso vemos a luta da Contra-Revolução em termos da luta da honra contra a desonra413. Devemos esforçar-nos por discernir a honra em tudo quanto existe na terra, em tudo procurar ver a honra como nota dominante. Eu diria até mais: não só a procura da verdadeira honra é a meta e a bússola de nossa vida espiritual, mas é a marca da civilização que queremos constituir. Será a civilização da honra, ou não será nada. Ou o Reino de Maria será o reino da honra, ou não será nada. O estado em que o homem 411 EVP 19/12/76 412 EVP 2/1/77 413 EVP 13/6/76 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 175


sente a sua própria honra por amor de Deus, e se sente honrado, é um estado celeste na terra414. O senso da contrariedade, a perspicácia e a combatividade contra-revolucionárias A escola de pensamento da TFP – portanto a minha – não seria a do mero estudo isolado da verdade, para só depois se conhecer o erro. Na época em que vivemos, seria a de conhecer a verdade vendo desde logo o erro, e caminhar passo a passo, não na dialética, mas na polêmica, e ir fazendo da cólera a energia vital do voo do pensamento415. A intransigência de Deus me faz estalar de amor por Ele. Se Ele não fosse intransigente eu não O amaria. Não O amo só porque Ele é intransigente, mas porque amo a intransigência da santidade d’Ele, a intransigência da verdade d’Ele. Se eu fosse pintor e pudesse pintar a intransigência de Deus, morreria de entusiasmo ao cabo de ter pintado, porque é o que mais me encanta n’Ele. Não me sinto ameaçado pela intransigência d’Ele. Sinto-me acariciado, apoiado, realizado. Se Ele não fosse intransigente, eu me liquefaria, porque eu não teria razão de existir. Eu desapareceria. A razão de ser de minha existência é a intransigência de Deus416, a começar pelo horror d’Ele aos meus defeitos, pelo repúdio que Ele faz dos meus defeitos. O castigo que Ele prepara para os meus defeitos, como também para os defeitos dos outros, leva-me a amá-lO pelo seguinte raciocínio: “Como Ele tem inteiramente aquilo que eu quereria ter e não tenho, eu O amo!” Para nós, brasileiros, a tendência é achar que Deus é quase só amável na sua misericórdia, e quem censura não tem ternura e não é amigo, quem castiga é inimigo. Ora, isto é o contrário de nossa vocação. Não afirmo que todos são chamados a amar a Deus mais por sua intransigência do que por sua misericórdia. Mas, no nosso caso concreto, somos chamados a amar a Deus enquanto intransigente, notavelmente mais do que os outros homens. A nossa vocação pede que amemos, talvez mais do que jamais ninguém amou, a sublime e divina intransigência de Deus. De tal maneira 414 EVP 19/12/76. 415 CM 30/11/86 416 RN 16/2/73 176

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que, mesmo quando pedimos para não ser punidos, devemos pedir isto admirando a cólera de Deus417.

* A contrariedade é um dos elementos fundamentais da seriedade. Essa verdade é em si muito conhecida, e se cifra no seguinte: a pessoa, posta diante de uma coisa que contraria as suas convicções e contraria a sua virtude, tem, primeiro, uma percepção imediata de que aquilo as contraria; e depois, uma rejeição muito grande daquilo que a contraria. Essa rejeição é muitas vezes temperamental, mas de nenhum modo é uma rejeição principalmente temperamental. Os romances antigos, quando falavam de uma moça que recebeu uma proposta desonesta, diziam que o rubor lhe subiu à face e que ela exclamou, tomada de uma santa indignação: “Oh, não!” Isto está bem, desde que se entenda que a rejeição temperamental de nenhum modo é a principal. A substância da contrariedade é o ter percebido o lado ruim daquela sugestão, e ter tido uma recusa de vontade: “Não quero, porque não se deve querer; eu, pelo contrário, detesto isto”. A plena figura dessa percepção deve chegar até à perspicácia, quer dizer, ser capaz de perceber essa contrariedade até em suas linhas mais subtis, em seus menores matizes. Percebo de longe aquilo que é o contrário da minha convicção, que é verdadeira; percebo até mesmo um subsentido, um pressuposto que seja contrário ao que penso. Mas não é só perceber a opinião contrária ao que quero e ao que penso. No trato com o filho das trevas, o filho da luz percebe que o primeiro não é como ele. Portanto, não é apenas uma perspicácia ideológica, mas é uma perspicácia pessoal. E é também uma perspicácia de situações. São, portanto, três perspicácias: uma perspicácia ideológica, uma perspicácia de pessoas, e uma perspicácia de situações. A perspicácia de situação é uma forma de lucidez e de penetração pela qual, diante de certas instituições, de certos ambientes, de certos costumes, e já não mais de pessoas, sou capaz de perceber até o fundo qualquer coisa que esteja conforme ou desconforme às minhas convicções, qualquer coisa que seja favorável ou desfavorável aos interesses de minha causa. Chego em um ambiente, e farejo: isto é assim, aquilo é assado: tal instituição, tal moda, tal modo de falar, tal forma de se apresentar são contrários à minha causa ou são favoráveis à minha causa.

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A certeza é que gera o contraste, a sensação do contraste. Quem não tem certezas não é capaz de perceber o contraste. Isso é que faz a perspicácia. Existe aí uma verdadeira ascese da perspicácia. Qual é essa ascese? É fazer diariamente um confronto entre as minhas certezas e as minhas impressões. E isto exige mais ascese do que passar a vida inteira comendo pastéis fritos com gordura ordinária e outras coisas do gênero, muito do gosto de certos conventos. Tomem aquele livro “A Verdadeira Fisionomia dos Santos”418 e o folheiem. Todo santo é assim e não há santo que não seja assim. O pior pecado das imagens sulpicianas é apresentar santos que não são assim, santos que não fazem esse serviço e que não têm essa mentalidade: abonecados, umas carinhas cor-de-rosinhas, branquinhas e bobinhas, nas quais vemos que nunca uma reflexão esteve naquela alma. Porque há um certo modo bochechudo de ser que é do homem irrefletido. Há bochechas de irreflexão que são uma coisa fantástica; às vezes, de olhar as bochechas já se sabe do que vale a reflexão do sujeito. Quando num ponto se tem muita certeza, ama muito a certeza que tem e tem muito senso da contrariedade em função daquela certeza, nesse ponto específico a pessoa faz instintivamente esse exercício. Quando a pessoa tem esta virtude da perspicácia, o mal é habitualmente utilizado por ela como um dos melhores meios para conhecer o bem; e o erro, como um dos melhores meios para, por contraste, conhecer a verdade. Isto, que é uma verdade geral, é verdade proeminente em nossa escola espiritual. Certa vez eu trouxe para a sede uma fotografia do quadro de Giotto que retrata Nosso Senhor recebendo o beijo de Judas. Vemos nesse quadro Nosso Senhor e depois Judas, ignóbil, horroroso, e aquelas duas faces próximas no momento do ósculo. É um quadro admirável. Mostrei para muita gente e pensei com os meus botões: “As pessoas que prestarem atenção em Judas, têm o senso da contrariedade. As pessoas que só se limitarem a olhar para Nosso Senhor, não amam a Nosso Senhor como deviam. Porque, quem ama a Nosso Senhor como deve, se edifica, se estimula vendo como era ignóbil o traidor, o anti-Ele. É forçoso”. Com tristeza para mim, vi que Judas foi pouco olhado419.

*

418 O livro, de publicação alemã, tem como título original “Das wahre Gesicht der Heiligen”. 419 CB 20/5/67 178

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A minha indignação com tudo quanto se está passando no mundo contemporâneo é suma. São abominações que chegam a um extremo além do qual não se vê mais nada. Agora, como se dá essa indignação? Não é ficar espumando. É uma incompatibilidade que minha Fé e minha inteligência me apresentam, a mais radical que se possa imaginar. Por exemplo, um bispo que promova aulas de educação sexual para crianças: ele e eu não podemos nem nos sentar na mesma mesa, não podemos trocar cumprimentos. Se o silêncio entre nós se romper é para passar imediatamente ao apodo. Não é furor. Em uma pessoa com outro temperamento seria muito razoavelmente um furor. Não censuro o furor, mas não é o meu modo de ser. É uma incompatibilidade radical, preliminar, inteira, que não olha nada, não considera nada, exclui totalmente sem nenhuma forma de consideração. E isto não pode deixar de ser assim. Caso contrário, sou um palhaço que não me tomo a sério a mim mesmo, não tomo a sério a Religião, não tomo a sério mais nada420.

* Se os senhores pudessem fazer ideia do estado de repulsa à Revolução em que fixamente estou posto... Eu poderia dizer que moro dentro da repulsa e da rejeição, e que passo o dia inteiro analisando, repelindo, rejeitando e disfarçando. Assim são os quatro ritmos do meu processo interior. Disfarçando, porque se fosse dizer tudo quanto eu repilo, teria que falar o dia inteiro e acabaria repelindo meu interlocutor. Porque acho que ele mesmo estranharia de saber quantas coisas repilo. E depois eu repilo com uma repulsa total e meticulosa, sem tréguas nem transigência, nem concessão. Não presta? Está acabado, é ali! Quando me deito à noite, tenho ao menos uma tranquilidade: eu me estendo e percebo que estou em ordem, porque repeli o mal o dia inteiro. Então vou descansar para continuar a repeli-lo no dia seguinte. Este é o meu viver, desde a manhã até a noite421.

* Alguém poderia perguntar: “Mas qual é a medida exata de sua indignação contra o homem contemporâneo?” 420 CSN 7/11/81 421 RR 24/8/74 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 179


Se entendi bem as poucas coisas que li, com pouca atenção, a respeito de bomba atômica, toda essa matéria que se vê por aí é decomponível em átomos, e cada um desses átomos é susceptível de uma fissura. Se neles se produzir essa fissura, explode uma bomba atômica. Neste sentido, toda alma é como um átomo e pode levantar pelos ares uma cidade ou um país. É fora de dúvida. A capacidade de amor ou de indignação que há em qualquer alma é própria a levar tudo pelos ares, desde que ela ame deveras a Deus. Porque quem não se indigna, não ama, mente e dá na face divina de Nosso Senhor o beijo hipócrita de Judas. Eu me reputo com capacidade de amor e, portanto, com capacidade de indignação atômica422.

* A minha posição a respeito do mal é, no fundo, considerar em cada mal um elemento do mal total, e, portanto, julgar o mal total presente em cada mal parcial. Já a posição do ambiente que nos rodeia é de considerar os males parciais, recusando com uma espécie de horror a ideia de que o mal total pudesse estar representado ali. Todos os males são elementos constitutivos de um só mal. E devem ser vistos como encaminhando rumo ao mal completo. O espírito da TFP, a posição tradicional da Igreja diante do mal, a posição medieval diante do mal, é precisamente esta. Uma das permissões que o demônio conseguiu da Providência foi de não ser forçado a apresentar o mal total, porque da Idade Média para cá o “apostolado” dele – se se pudesse usar essa palavra para ele – foi cada vez mais diluir o mal total e apresentar males parciais. O grande instrumento para a luta contra o mal é precisamente este: ou se caminha para denunciar o mal total e o parentesco de certo mal com o mal total, ou se tem, no fundo, um combate heresia branca ao mal423.

* Faz parte de meu espírito o caráter sapiencialmente negativista. Trata-se de uma espécie de sabedoria, ou seja, de conhecimento das coisas pelos seus últimos fins, e que tem um caráter negativista.

422 CSN 20/11/81 423 EVP 25/11/73 180

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Isto se mostra por dois traços: a enorme importância do erro e do mal a fim de, por contraste, se conhecer a verdade e o bem; e do ódio ao erro e ao mal como uma indispensável, contínua e altíssima manifestação do amor. Nada disso é ecumênico. Isto é o anti-ecumenismo. Como o homem está em um estado de prova, é indispensável termos a atenção muito voltada para o erro e para o mal. Além desse estado de prova, fomos concebidos no pecado original. E nossos pecados atuais pesam sobre nós. Temos todos os atrativos do demônio. Além da prova, temos a luta: a prova é uma luta. Os senhores acham que alguém compreenderia verdadeiramente a utilidade e a importância de comer se não sofresse fome? Alguém compreenderia verdadeiramente a importância de se lavar se não houvesse sujeira? Essas coisas negativas todas são indispensáveis à nossa ótica nesta terra para compreendermos a verdade e o bem. Não são capitais, pois capitais são o ensino da Igreja e a Revelação, mas são altamente indispensáveis, e não complementares à maneira de uma coisinha como um cinzeiro para quem não fuma. De onde um sentido continuamente negativista, pois, se eu não odiar o mal, não amo; se não prestar atenção no erro, não conheço a verdade. Como, depois do século XV, o tomismo progrediu muito menos do que as filosofias erradas, hoje, para fazermos tomismo, temos de estudar o que o erro disse, para daí termos a contrapartida. Temos que tirar o veneno do dente da cobra. Portanto, o nosso grande livro é a Revolução. Quem quiser conhecer a Contra-Revolução, entenda a Revolução. É por isto que no meu livro não pintei primeiro toda a beleza da ordem católica para depois mostrar o mal da Revolução. A marcha natural do espírito humano não é esta; mas é, desde que se possua os rudimentos da verdade, olhar primeiro para o erro e depois voltar-se para a verdade. É por isto que o Credo progrediu à custa das heresias. Cada heresia tem como contrapartida um dogma. Quer dizer, é uma marcha negativa, como um jato que faz força para trás e o avião anda para frente. Ninguém vai dizer que um jato é negativista porque a fumaça dele vai para trás. Nós somos avião à reação, pois somos reacionários e vamos para frente fazendo reação. É bom ficar claro que o mal não é necessário, mas é permitido por Deus424.

* 424 Simpósio Buenos Aires, 11/10/65 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 181


Há um tipo de maldade na alma humana, e que suponho estar na medula do próprio pecado original, pelo qual todo homem tem dentro de si um lado que, se ele vê o mais santo, o melhor, o mais perfeito, ele se enrijece e vai contra. E, visto Deus, antipatiza e odeia. É uma maldade assim: “Ah! isto é bom? Isto é verdadeiro? Isto é belo? Sou contra!” Poder-se-ia ainda acrescentar: “Isto me dá deleite? Sou contra!” Porque chega até lá. Este fundo de maldade no homem é que explica inteiramente a existência da Revolução, e sem o qual a Revolução não é explicável. Contra esta disposição de alma devemos nos armar. E o pressuposto de tudo quanto faço é este. As minhas cautelas, por exemplo, as minhas precauções, as minhas blindagens, o momento que escolho para a ofensiva, tudo é calculado em função deste pressuposto, desta maldade425.

* É esta a nossa via: no perigo, encontrar a solução positiva; no ataque, encontrar a doutrina certa; no obstáculo, encontrar a fórmula verdadeira. Vivo continuamente sondando a fundo a atitude do adversário, na aparência despreocupado em fazer obras positivas, mas certo de que nosso caminho para fazer obras positivas é este. E certo também de que não temos outro caminho para obras positivas senão este. Esta via está na nossa vocação, este é o nosso modo de ser. A Companhia de Jesus se modelou segundo o antiprotestantismo. Certas obras da Igreja encontram sua verdadeira face fazendo o oposto do adversário. Isto é profundamente positivo, isto não tem nada de negativista, e é um método de construir. Para nós é o método426.

* Nessa perspectiva, a indignação tem um papel fundamental e insigne na minha mentalidade427. A indignação é um ato de amor contrariado. Quando se ama uma instituição, um princípio ou uma pessoa, e a instituição, o princípio ou a pessoa são insultados ou são agredidos de qualquer forma, nós nos indignamos. 425 CM 17/4/88 426 RN 4/11/68 427 Chá SRM 6/3/95 182

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Minha indignação é calma. Os senhores talvez achariam muito mais estimulante ver-me agitado e efervescente. Mas o que isto resolve? É bobagem. Não é assim que se faz. Acalmemo-nos e vamos estudar o que o inimigo está fazendo, mas com olhos de tático, de homem que sabe ver a posição errada do outro e dizer: “Por lá eu te pego”. Trava-se a batalha no espírito, antes de travá-la no papel, mas com calma. Acho que a agitação e a efervescência apenas prejudicam a ofensiva. Com a graça de Nossa Senhora, os senhores nunca me viram de outro jeito. O adversário tenta as piores coisas, a minha posição face a ele é calma. Vamos ver o que vai sair, o que ele vai dizer. O historiador Albert Malet escreveu um manual de História para o curso secundário na França. É um livro que não tem boa orientação, mas é uma obra-prima de livro. Na história da Reforma e da Contra-Reforma, em certo momento aparece a figura de Felipe II. E Malet comenta: “Ele conduzia a contra-ofensiva ‘avec une froide et irréductible colère’” – “Ele conduzia a contra-ofensiva com uma fria e irredutível cólera”. A expressão me pareceu magnífica e não a esqueci mais. É essa “froide et irréductible colère” que devemos ter e que proponho aos senhores como modelo da virtude católica da Fortaleza, virtude cardeal em cuja prática está a “froide et irréductible colère”428. A forma de furor do homem maduro não tem as cargas de raiva do menino, mas tem uma vontade de agredir e de liquidar o mal que é muito mais séria, vai muito mais a fundo429.

* A combatividade é aquela virtude pela qual irredutivelmente se empregam todos os meios lícitos para derrubar aquele que temos por dever derrubar. Portanto, se é preciso esperar, se é preciso dormir, se é preciso fingir que não se percebeu nada, se é preciso deixar o que for para ser mais eficaz em derrubar a pessoa má, é o que se tem de fazer, porque o único objetivo é derrubá-lo. A combatividade não é, portanto, exclusivamente uma virtude battagliera, de fazer batalhas. Faz parte da combatividade, chegada a hora da batalha, saber batalhar de fato. 428 Chá SRM 5/3/95 429 Chá SRM 22/11/92 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 183


Mas a questão é saber não batalhar quando é o caso de não batalhar, e até saber recuar estrategicamente quando é o caso de recuar. Quantas vezes recuei estrategicamente e me calei, e deixei passar as coisas, e sorri à espera de um momento que viria para o contra-ataque! Apresentando-se esse momento, não perco um instante. Quer dizer, podemos passar 20 anos sem perder de vista esse momento, à procura de uma ocasião para atingir o adversário. Aquele momento apenas passou, pammm! Assim é que se luta430.

* Estar em ordem de batalha é estar pronto a redarguir o primeiro que pule em cima de mim. Estar em ordem de batalha é estar em ordem de prever o inimigo. Prever especialmente que inimigo? Duas espécies de inimigos: 1º O inimigo mais provável. Quer dizer, prestar atenção naquilo que mais provavelmente me fará a pessoa que mais provavelmente me atacará; 2º O inimigo menos provável, mas mais destruidor. Quer dizer, o pior dos inimigos, o que mais me quiser destruir: o que ele quererá fazer-me nessa hora? É contra essas duas espécies de inimigo que devemos estar habitualmente, continuamente de atalaia. E sempre impostados na seguinte linha de pensamento: “Como sirvo a Nossa Senhora e luto por Nossa Senhora, sei que acontecer o pior é mais provável para mim do que para outros. A minha vida é muito mais dura do que a dos outros. E o que é menos provável para os outros, para mim é mais provável, na ordem das pequenas coisas como na ordem das coisas grandes”. Portanto, a distinção entre o inimigo mais provável e o mais perigoso é preciso ser tomada com cuidado, porque em geral o mais perigoso é menos improvável do que parece. Se os senhores tiverem a paciência de folhear o livro “Meio século de epopeia anticomunista”, não verão um lance sequer que não tenha sido tomado nessa previsão. Em tudo quanto me viram fazer ou dizer, encontrarão esta constante: vivo, falo, respiro em ordem de batalha. A ordem de batalha, aqui, não é – como já disse – a sanha de pular em cima dos outros. É a deliberação fria de fazer tudo quanto puder para cumprir o meu dever face à causa católica apostólica romana. De maneira que se Ela, neste momento em que falo, exigir de mim uma grande batalha, 430 Chá SRM 22/3/92 184

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eu a inicio. Se eu, neste momento, pela fidelidade minha a Ela, dever sofrer uma grande batalha, “praesto sum”! Estou pronto!431

* Toda a vida desejei ter garra pelo amor de Deus e não por mim. Garra é certa força que representa a capacidade de, com simplicidade, ferocidade e rapidez, tomar domínio, conservar o domínio e impor o destino que se quer. Os filhos das trevas, quando são atacados nos interesses deles – interesses vis, ilegítimos – eles respondem facilmente com muita vivacidade, com muita ferocidade. Eles têm garra. Os filhos da luz têm garra? Se eles são muito filhos da luz, eles têm mais garra do que os filhos das trevas. Mas é difícil encontrar filhos da luz que sejam tão filhos da luz que tenham mais garra do que os filhos das trevas. Por quê? Porque o filho da luz é convidado a combater, não pelos interesses dele, mas pelos interesses de Deus. E o homem muito dificilmente tem mais garra por Deus do que garra por si mesmo. Os senhores não ouviram contar um caso em que eu me tenha posto em briga com alguém por minha causa. Isso absolutamente não. A menos que por detrás de mim estejam procurando atacar a Deus Nosso Senhor e a Nossa Senhora. Aí a coisa encrespa. Mas não sendo assim, se se trata só de mim, não me incomodo432. A desconfiança e a severidade em relação a si mesmo Tenho lutado contra muitos obstáculos. Presumivelmente ainda terei de lutar contra vários. O maior não é nenhum deles que encontrei no passado, nem que devo encontrar no futuro. O maior se chama Plinio Corrêa de Oliveira. Porque, por efeito do pecado original e das tentações do demônio a que todos estamos sujeitos, é preciso estar sempre de olho em cima de si próprio. Do contrário se quererá uma coisa que não está de acordo com a vontade de Deus433. Procurei ser a vida inteira o mais possível severo para comigo mesmo, na análise daquilo que faço e daquilo que sou. Porque ou sou de uma seve431 Chá SB 14/10/81 432 Chá SRM 30/5/93 433 Chá PS 16/4/85 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 185


ridade absoluta em relação a mim mesmo ou não vi nada. Tenho pânico de não ser bastante severo comigo. Acho isto muito razoável434.

* Desde logo percebi que meu modo calmo de ser podia me criar ciladas, pois havia momentos em que era preciso ter um gesto de energia e a energia não vinha, exatamente pelo horror a qualquer efervescência. E isto faria com que, na hora “H”, a force de frappe, isto é, a força de impacto estivesse ausente. A única solução seria aprofundar as convicções pelo raciocínio e pelos símbolos até o último grau possível de profundidade. E daí tornar evidente qual seria o caminho do dever. Eu deveria, pois, ser capaz de me pegar a mim mesmo pelo gasnate e obrigar-me, pela força da convicção e pela força do dever, a fazer o que tinha de fazer quando chegasse a hora. E isto a qualquer hora, gostasse ou não gostasse, estivesse disposto ou não estivesse. Deveria, pois, saber me levar a mim mesmo a bofetadas, sem me zangar comigo – porque mais uma vez seria sair da minha posição de calma – e me obrigar a cumprir o meu dever, por chegar a hora de cumpri-lo. Então, increpações contra mim inexoráveis. E horror às atenuantes. A atenuante é o refúgio do vício. Quem olha para a sua própria atenuante, ainda que ela exista, esconde dentro dela os seus pecados inconfessados. Nada de atenuante, ponha-as de lado. Ainda que eu veja assim a atenuante, ainda vi pouco. Então, descomponendas contra mim mesmo: “Agora, cumpra seu dever!” Se eu souber me tratar com bofetadas, na hora “H” saberei também como agarrar os outros435.

* Certa vez vi, num filme sobre a vida de São Pio X, a cena em que arrebenta a I Guerra Mundial. São Pio X começa a andar numa galeria do Vaticano com afrescos, tapeçarias, e de repente ele vê uma representação de Átila caminhando de encontro ao Papa São Leão I, o qual detém Átila e se estabelece a paz em Roma. São Pio X começa a falar sozinho, increpando-se a si próprio: “Se eu não tivesse tal defeito, ou se no passado não tivesse cometido tal pecado,

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eu seria homem de chegar para esses Átilas modernos, falar e impor a paz. Mas o que sou? Sou o Papa Sarto, porque em mim há tais defeitos assim”. O secretário dele, sentado junto a uma mesinha na galeria, ouvindo tudo aquilo e percebendo que não tinha proporção para ajudar o Papa naquele transe, faz a seguinte oração: “Ó Deus, ajudai a este juiz implacável contra si próprio”. Quando assisti esta cena, pedi a Nossa Senhora: “Dai-me a graça de ser um juiz implacável contra mim mesmo. Mas atendei à minha natureza humana e ajudai-me quando o peso da minha recriminação for maior do que as minhas forças. Dai-me então forças para aguentar”. Isto é penitência, e antes de tudo e de mais nada, é reconhecer. E não é só reconhecer aquilo que sei ter feito, podendo não ter sido tanta coisa, mas aquilo que desconfio ter podido entrar de não reto no meu pensamento. É o tal pecado oculto que o homem comete porque anda mal, mas ele não vê. E um pecado oculto já pode afastar de nós os caminhos de Deus. Então devemos ter esta severidade consigo mesmo, severidade leal, humilde: “Isto pode me acontecer e, portanto, recrimine-se de frente, viva em estado de recriminação contínua consigo mesmo. Não permita o mínimo comprazimento consigo mesmo. E fuja, como de uma lepra, de formar a respeito de suas boas ações um conceito em que você se deleite. Faça isto, Plinio, e você terá apresentado uma tal ou qual penitência”. Este é o estado normal de um católico nesta vida. E é o estado normal de um membro da TFP. Nós gostamos de fazer bons juízos de nós mesmos, temos uma porção de atenuantes, somos uns miseráveis colecionadores de atenuantes. Meu anjo da guarda que alegue diante de Deus as atenuantes. Devo estar à procura das minhas agravantes, essas são as que devo conhecer para dar a Deus as contas da reparação por meio de Nossa Senhora436.

* Se nós tivermos essa severidade para conosco, seremos mais ou menos como uma uva que se espremesse a si própria para dar até a última gota. De maneira que, quando se pensasse que ela deu tudo, ela ainda teria uma última contração salvadora e mais uma gota sairia de lá437.

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É esta a minha preocupação preponderante, e foi sempre, sempre, sempre. Os senhores encontram o reflexo desta preocupação na “Oração da Restauração”438. É o inexorável receio de não ter sido o que deveria ser, gemendo aos pés de Nossa Senhora e pedindo para ser, afinal, o que devia ser. Aí os senhores têm o ponto central em torno do qual está sempre meu pensamento. Lembro-me de que, quando comecei a ler os Salmos, li este versículo que até hoje me está no espírito: “Tibi soli ego peccavi, et contra me peccatum meum est semper”439. “Tibi soli ego peccavi”. Não adianta dizer que é pequeno: é um pecado e não devia existir. Eu, só, pequei diante de ti. Quer dizer, não me venha com circunstâncias que “outros ajudaram”. Pequei porque quis pecar. Logo, o responsável essencial sou eu, o resto é lorota440. O espírito de sacrifício até o holocausto e o desejo de reparação É preciso ver aqui o que se entende por holocausto: não é necessariamente a morte, a imolação da vida. É o ato pelo qual a pessoa que sente em si o enlevo, que foi habitada por ele, deseja três coisas que constituem uma espécie de hierarquia: dar; dar de si; dar-se por inteiro. Primeiro grau do enlevo: dar. Quando uma pessoa está em contato com uma ideia, com um princípio, com uma instituição, com uma pessoa que lhe produz enlevo – digo mais, às vezes até com uma obra de arte – ela é tendente, num primeiro grau, a dar. É o dar por um puro amor à coisa, 438 O texto desta oração é o seguinte: “Há momentos, minha Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de mais fundo, tocada por uma saudade indizível. Tenho saudades da época em que eu Vos amava, e Vós me amáveis na atmosfera primaveril de minha vida espiritual. / “Tenho saudades de Vós, Senhora, e do paraíso que punha em mim a grande comunicação que tinha convosco. / “Não tendes também Vós, Senhora, saudades desse tempo? Não tendes saudades da bondade que havia naquele filho que fui? / “Vinde, pois, ó melhor de todas as mães, e por amor ao que desabrochava em mim, restaurai-me: recomponde em mim o amor a Vós, e fazei de mim a plena realização daquele filho sem mancha que eu teria sido se não fosse tanta miséria. / “Dai-me, ó Mãe, um coração arrependido e humilhado, e fazei luzir novamente aos meus olhos aquilo que, pelo esplendor de vossa graça, eu começara a amar tanto e tanto. / “Lembrai-Vos, Senhora, deste Davi e de toda a doçura que nele púnheis. Assim seja”. 439 Chá SB 12/6/95 440 Chá SB 12/6/95 188

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sem pensar nem um pouco em si, por uma necessidade de dar que vai até o supérfluo: procura adornar, procura enfeitar, procura melhorar por uma espécie de tributo à coisa que provocou o enlevo. Segundo grau do enlevo: dar de si. O segundo grau já não é simplesmente o dar, mas dar de si. Enquanto a pessoa não deu algo de si, não se sente bem. Terceiro grau do enlevo: dar-se inteiramente. O terceiro grau de enlevo não leva apenas a dar de si, mas a dar-se inteiramente. É uma espécie de necessidade de não conservar nada de seu, um remorso de ter qualquer coisa de seu. E de tal maneira não o quer que põe sua felicidade no ter dado tudo: “Aqui está tudo; vim trazer tudo, não quero nada. Eu me dou por inteiro”. Aqui está propriamente o holocausto. Sua substância não é só expor a vida. Expor a vida é um aspecto, um sintoma disso. A substância do holocausto é ter sido tal que aquilo se transformou nele, e ele se transformou naquilo. Isto é o que devemos procurar fazer com a Igreja Católica. Quer dizer, tomá-La em seu conjunto: na sua doutrina, nos seus Sacramentos, na vida sobrenatural, na hierarquia, na história dos santos, na história das perseguições que Ela sofreu, nas lutas que venceu e que perdeu. Tomar tudo isso no conjunto, considerando a Igreja no organismo vivo que Ela é, e procurar ter em nossa alma o espírito inteiro da Igreja Católica. Uma vez ouvi um elogio feito – não me lembro mais de quem – expresso em latim. Estremeci até os meus ossos quando o ouvi, por me parecer o máximo elogio que se possa fazer de um homem. Fora desse elogio, nada é elogio. Lembro-me até das palavras em latim: “Fuit vir catholicus et totus apostolicus”. Depois do pecado original e depois da Redenção, o estado doloroso, o estado de paixão é o que produz o enlevo maior. Isto explica certa nota de fundo de tristeza – mas enlevada, superior, radiosa – que domina a alma do verdadeiro católico e lhe tira aquela alegria fandangueira e maxixeira. Vem então uma espécie de nota do nosso amor ao sublime, do amor ao maravilhoso, que falta, por exemplo, no castelo de Chambord. Qual é essa nota? Toda coisa verdadeiramente sublime, segundo o espírito católico, tem que ter, no seu ponto mais íntimo, mais alto, uma certa nota de tristeza e de nostalgia nada românticas, mas verdadeiras e sérias. As coisas góticas são lindas porque a Paixão de Nosso Senhor está ali presente441.

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* Toda a vida eu quis, com toda a alma, lutar pela Igreja e demolir a Revolução, e estabelecer uma ordem católica que ainda não se apresentava ao meu espírito com a fórmula e a precisão do termo “Reino de Maria”. O que eu não via, e levei muito tempo a ver, é que isto traria necessariamente uma série enorme de renúncias que eu teria de fazer, e que me parecia extremamente doloroso ter de renunciar. Julgava até o contrário: que a ascensão de minha pessoa a todas as formas e graus de riqueza, de cargos, de influência, serviriam ao Reino de Maria, e que havia um feliz conúbio entre a minha carreira e as minhas mais legítimas aspirações de católico. Quando fui vendo que era o contrário, eu sofri. Foi um sofrimento grande que tive de repetir várias vezes, e tive que me habituar a isto. Mas não foi a grande tragédia de minha vida442.

* Os senhores nunca me viram triste, nunca me viram dizer ou me queixar que a minha vida é ruim. E mesmo agora, quando digo que tenho uma vida muito difícil, não estou dizendo que sou infeliz. Estou sempre animado, estou sempre contente e ajudando os outros a carregar pesos mais leves do que o peso que carrego443. Sei que pareço uma pessoa bem-disposta e animada, e graças a Deus o sou. Mas o que sofro nenhum dos senhores imagina o que é. Mas um pouco que pensassem dava para imaginar444. Se se considera a minha vida, e em geral a vida de todos os membros da TFP, os sofrimentos físicos são relativamente poucos. Os sofrimentos que toda a vida tive foram os sofrimentos de alma. E esses sofrimentos de alma me tomaram desde que comecei minha vida fora da atmosfera materna, ou seja, desde que entrei no Colégio São Luís até hoje, ininterruptamente445. Por exemplo, o desastre que sofri. Sofro dores? Não me parecem muitas. Mas sofro incômodos físicos de toda ordem, e o incômodo é a seu

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modo um sofrimento. Mas não é nada em comparação com o sofrimento da alma séria. Quer quando tive a crise da diabetes em 1967, quer no desastre de automóvel de 1975, a sensação de ter chegado ao teto do sofrimento físico eu não tive. Agora, o sofrimento moral, o sofrimento de alma é incomparavelmente maior para quem tem de fato a alma constituída como elemento principal de seu ser, para quem tem a alma entronizada em seu ser. E para quem, portanto, a reflexão, o pensamento, a ponderação das coisas, a avaliação das situações, a tomada séria de posição diante dessas coisas, faz sofrer mesmo, porque supõe isto446. Envelheço na tormenta, na paulada, na batalha insana, trabalhando como talvez muitos moços não trabalham, e apanhando. Desde que abro os meus olhos de manhã, encontro diante de mim a aflição. E quando os fecho à noite, fecho-os para fugir da aflição447. Convido os senhores a me acompanharem no caminho da dor: tomarem esse caminho, sofrerem, apanharem com mansidão448. A minha liderança é um convite contínuo ao sofrimento. Dou o exemplo contínuo da maior confiança e da maior paciência nos revezes de toda ordem, não só externos como internos. O que sofro é gigantesco449.

* Na minha vida tem sido raro vir uma provação isolada. Quando vem, vem assim como um cacho de uvas, como um cacho de provações, vêm umas depois das outras, e constituindo um conjunto450. Meu pai costumava utilizar uma expressão que, creio eu, é de Pernambuco. Quando ele via uma pessoa a quem aconteciam consecutivamente várias desgraças, dizia: “Atrás do apedrejado correm as pedras”. A ideia era de que, quando uma pessoa começa a sofrer um infortúnio, os outros infortúnios correm atrás. Por exemplo, perdeu a fortuna, pouco depois perde os amigos, e perde não sei mais o quê. É um pouco o caminho de Jó. Então Jó seria o tipo do apedrejado atrás do qual correm as pedras.

446 CSN 25/9/82 447 MNF 5/10/79 448 CA 19/1/89 449 CA 19/1/89 450 Chá SRM 14/11/94 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 191


Tive vários períodos de minha vida em que fiz o papel do apedrejado atrás do qual correm as pedras. E cheguei até esta idade. Nós devemos nos preparar para que coisas dessas aconteçam conosco também. Não se alcança a verdadeira grandeza sem ter sido muitas vezes na vida o apedrejado atrás do qual correm as pedras, porque até lá vão as coisas451.

* Em minha vida levei comigo todos os aspectos da derrota, do fracasso, da rejeição. Não houve fruto de humilhação que eu não comesse, não houve lágrima de isolamento, de repúdio e de dor que não vertesse. Mas quando do meu corpo sair a última gota de sangue, quando os meus olhos verterem a última lágrima, eu poderei dizer: “Bonum certamen certavi, cursum consummavi” (2 Timóteo, 4, 7). E com a segurança de quem passa um cheque para o Céu, farei a minha cobrança de joelhos e com a alma transbordante de amor: “Senhor, dai-me agora o prêmio de vossa glória”452. O amigo da Cruz que se prepara para carregá-la prevendo a dor Em toda a minha vida, o que mais me falou à alma a respeito da Paixão de Nosso Senhor foi o lance da oração no Horto das Oliveiras453. É mesmo um dos pontos de minha mais intensa devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque aí, na humanidade santíssima d’Ele, de um modo sublime, sem nenhuma comparação com nenhuma mera criatura, passou-se algo que tem analogia com nossa situação454. Isto me toca mais do que a Flagelação ou a Coroação de Espinhos455. Sempre tive um respeito e uma adoração por Ele no Horto, mais até do que na Cruz, porque notava que Ele estava sofrendo um martírio que eu teria que sofrer depois. De alguma forma, a minha vida até aqui tem sido 80 anos de agonia no Horto456. 451 CM 20/1/91 452 Chá SB 17/3/93 453 Chá SRM 4/7/94 454 CSN 23/10/80 455 Chá SRM 4/7/94 456 MNF 12/4/89 192

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Essa deliberação de cumprir a vontade de Deus até o fim, desde que fosse inexorável, e de caminhar para o futuro assim, quer dizer, pedindo o auxílio de Nossa Senhora e depois bebendo a taça da dor por inteiro até à última gota, essa deliberação explicavelmente me levava à adoração e ao respeito que os senhores podem imaginar457. No Horto das Oliveiras, a natureza humana d’Ele voltou-se inteira para o que ia acontecer e preparou-se para aquilo. Aquela previsão era tão terrível que Ele suou sangue. Chegou mesmo a pedir a Deus Padre: “Se for possível, afaste-se de mim esse cálice; se não for, faça-se a vossa vontade, não a minha” 458. Ele ia imergir num rio de dores. Ele fez o balanço de tudo o que ia sofrer, não como quem hesita, mas como quem quer medir exatamente o tamanho da cruz; não para saber se a põe nas costas, mas para ter bem a consciência do tamanho da cruz que Ele ia carregar. Sei perfeitamente que o corpo divino d’Ele ainda não estava lacerado por nenhuma pancada de bandidos, que a sua integridade física ainda era completa. Mas o que me falava era essa paixão de alma, esse martírio de alma em que a pessoa, com toda a lealdade, com toda a precisão, olha de frente o que tem de ver. Ele sabia que viria para Ele tudo isso. Mas Ele, em sua natureza humana, considerava a possibilidade de não vir. E podendo não vir sem diminuição da glória de Deus, sem diminuição da glória d’Ele, Ele preferia naturalmente que não viesse. Daí aquela prece, em que vemos todo o desejo de evitar o sofrimento: “Si fieri potest” – “Se for possível, afaste-se de mim esse cálice”. Mas, se não for possível, “faça-se a vossa vontade e não a minha”. Foi, portanto, uma opção, diante da qual Ele se soube colocado; e essa opção Ele a quis realizar até o fim, bebendo o cálice até a última gota da amargura, sem diminuir nada. E foi o que Ele fez459. Eu entrevia que, provavelmente nessa hora, Ele expiou por todos os moles, por todos os otimistas que quisessem pedir a Ele graças, por meio da Mãe d’Ele460.

457 CSN 23/10/80 458 CSN 23/10/80 459 Chá SRM 4/7/94 460 CSN 23/10/80 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 193


Assim é conosco. Se olharmos bem de frente o que nos espera, devemos pedir forças, porque sem forças extraordinárias nós não aguentamos. E devemos nos preparar desta maneira para o que der e vier461.

* Diante das aflições, das incertezas e das dores, devemos pedir a Ele: “Pela Agonia Santíssima no Horto das Oliveiras, eu vos peço, dai-me essa graça”462.

* Sempre tive muito em vista o seguinte fato, comum a todos os homens: quando aparece uma perspectiva muito desagradável, temos uma tendência a não olhar de frente e não pensar naquilo. E se o perigo parece ainda longínquo, ainda incerto, tendemos a exagerar para nossa própria imaginação as possibilidades que aquilo não se realizará. Mas à medida em que o perigo vai-se aproximando, a pessoa fica dividida entre o medo de que ele se concretize, e uma esperança tola e infundada de que não se realize. Toda a vida tive muito medo de que esse defeito se instalasse em minha alma. E tive muito em vista a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo no Horto, porque ali Ele nos deu o exemplo do contrário. Ele sabia que a hora d’Ele tinha chegado. Na Santa Ceia Ele falou disso aos Apóstolos. Já anteriormente tinha falado disso e conversado com os Apóstolos. Várias vezes preparou o espírito deles para a ideia de que o santo sacrifício da Cruz tinha chegado. Mas tudo isso Ele aguentou porque Ele previu, pediu forças e venceu. Então, o caminho do homem na perspectiva da dor é prever, pedir forças e aguentar. Procuro fazer isto, repito, em todos os episódios ou perspectivas amargas de minha vida. E aconselho aos senhores a prever. Apareceu o fato doloroso, apareceu a possibilidade de sofrermos por causa disso ou daquilo, a primeira coisa é prever e olhar até o fim a pior possibilidade. Depois pedir forças para aguentar, se vier aquela possibilidade. E para aguentar, não devemos diminuir o alcance do risco em nada.

461 Chá SRM 4/7/94 462 CSN 23/10/80 194

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Devemos preferir exagerar a probabilidade desse risco a exagerar a quota de achar que não vai acontecer. Se acontecer, pedir forças, é claro. E então seguirmos adiante. Sem pedir forças não se aguenta nada. O homem que não pede apoio da graça não terá forças para os sacrifícios de sua vida. Antes de escrever o “Em Defesa da Ação Católica”, vi o que vinha. Procurei ver até o fim, procurei ver até onde me era possível ver com os dados de que dispunha. E percebi bem que se caminhava para aquilo que se poderia chamar, entre aspas, o “assassinato da Igreja”, quer dizer, o extermínio da Igreja. E percebi genericamente – porque os dados não me davam para ver mais do que isso – que era preciso me preparar. Pedi forças e meti isto na cabeça: “Você vai caminhar para o último, peça sempre forças e caminhe”463.

* Não fujo da má notícia. Vou por cima dela, para ela me chegar logo e eu engoli-la sem demora, e o caso ficar resolvido, em vez de ficar procurando não ver, fugir, deixar para amanhã, e essas coisas que fazem os poltrões. No total, se for preciso, ela me domina, ou seja, a má notícia se impõe a mim como fato consumado. Tem que se enfrentar? Enfrenta-se e está acabado, não tem conversa. Mas devemos ir para a frente! O correr por cima da má notícia não é ser pessimista, é ser realista e querer ter a realidade na mão o mais cedo possível. Mas é uma atitude que, por sua vez, representa uma excelência dentro do sofrimento, porque é a decisão tão decidida, que até vai de encontro a ele464.

* Quase nunca, e só em circunstâncias muito particulares é que tenho pedido a Nossa Senhora para aliviar alguma de minhas cruzes, isto para não diminuir o peso do que devo carregar465. O homem que de boa vontade sofre por Nosso Senhor, não pode se transformar numa caixa de gemidos. Se resolvi sofrer por Ele qualquer coisa, vá até onde vá, não posso ter surpresa de encontrar a cruz d’Ele no meu caminho. Por isso não sou uma alma plangente. 463 Chá PS 19/7/89 464 Chá SRM 19/9/88 465 Chá SRM 18/10/92 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 195


Também não sou uma alma endurecida. Os senhores nunca me viram tomar diante do sofrimento uma atitude “peituda”, que avança. Também não me viram numa atitude de homem frio, que olha para si mesmo sem compaixão e que diz para si próprio: “Apanha, burro de carga!” Sou um amigo da cruz tanto quanto Nossa Senhora me ajuda a ser. E tenho consideração para com a minha própria dor. Eu a sinto. Mas devo traçar limites para ela. Quer dizer, minha dor ocupa na minha vida tal espaço. Seria indigno que não ocupasse. Não seria conveniente que ocupasse um espaço maior. E devo agradecer a Nossa Senhora quando Ela me dá alguma alegria. Por pequena que seja a alegria, eu a devo receber de boa vontade, valorizá-la em toda a linha, fazer disso a minha satisfação, para depois, quando eu sofrer, estar repousado do meu sofrimento e poder sofrer mais por Ela. O caminho que escolhi foi este. E quero tudo no mundo, menos tomar outro caminho. Então por aí vou. Esse sofrimento só não tem o direito de ser uma coisa: é pena de si. Isto não! Como é que posso ter pena de mim? Seria meio voltar atrás no caminho da cruz que tomei. Eu não! Quando dei o primeiro passo e entendi o que era o caminho da cruz, fui para lá466.

* O exemplo disso para mim é a iconografia do Sagrado Coração de Jesus. Todas as imagens, do tempo em que se faziam imagens boas do Sagrado Coração de Jesus, o apresentam com o coração coroado de espinhos e transpassado, ferido por uma dor. Em cima, ardendo, uma bonita chama de amor de Deus, de virtude, e apontando o coração para os outros verem o que Ele sofria. Mas Ele está sorridente, afável, bondoso, digno e – por que não dizer? – até nobre: é Rei! É Rex dolorum, mas é Rex charitatis, Rei do amor de Deus, Rei do amor dos outros; aquele equilíbrio é um prodígio de equilíbrio. Isto me fala à alma o mais profundamente possível: Nosso Senhor melancólico, mas cheio de bem-estar, espargindo bem-estar em torno de si467.

466 Chá SRM 24/1/89 467 MNF 6/12/85 196

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UMA PIEDADE DE SÚDITO: FILIAL, SEM ARROUBOS, E CENTRADA NA BATALHA ENTRE A REVOLUÇÃO E A CONTRA-REVOLUÇÃO A rotina das orações diárias Tenho a impressão de que uma pessoa que me veja rezando em alguma igreja notará, naturalmente, que sou um homem católico, mas não será levada a exclamar: “Que homem piedoso!”468 Imaginar que estou rezando e de repente vem uma graça que me ilumina todo, isto não se dá469. Os senhores nunca me ouviram dizer algo assim: “Tive uma moção da graça que me levou a pensar assim, a fazer aquilo”470. Também nunca fui de sentir muitas consolações ao rezar, nem nada disso. E garanto que os senhores nunca me terão visto rezar num arroubo. Não é o meu modo de ser471. A maior parte das minhas orações é feita no meu trajeto de automóvel472, no meio da zoeira “gasolinada” e poluída da atmosfera de São Paulo, em umas ruas frias e sempre batidas, à procura de igrejas que encontro fechadas. Graças a Nossa Senhora, faço essas orações na paz, tranquilo e quotidianamente, seguindo sempre o mesmo percurso. Todo mundo me vê nessa ocasião, sem nada que possa nem de longe favorecer a ideia de visão, de revelação, de êxtase, nem nada. Fico na paz, mas na banalidade daquele décor. Completadas as minhas orações, volto logo para o meu trabalho. As minhas comunhões, que muita gente presencia, também se dão nas condições mais comuns possíveis. Esta é a tônica de minha vida de piedade473.

* 468 CSN 29/10/94 469 CSN 3/11/84 470 CA 23/8/91 471 CM 26/4/92 472 Dr. Plinio tinha o hábito de sair de automóvel no fim das tardes, para rezar no percurso as suas orações diárias. 473 CSN 3/11/84 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 197


Todos os dias, pela manhã, quando acordo, ofereço as orações, obras e sofrimentos do dia não só pelos que são da TFP, mas pelos que foram e pelos que venham ainda a ser474. Penso com muita frequência na generalidade dos membros do Grupo. E sabendo de algum que esteja em risco de perseverança maior, ou sofrendo uma maior provação, doença, ou qualquer coisa assim, penso mais especialmente neste, e rezo por ele com mais empenho475.

* Rezo diariamente um ciclo de jaculatórias. Os dois primeiros terços de jaculatórias são para Nossa Senhora de Todas as Sublimidades, para que Ela me dê cada vez mais o gosto e a avidez por todas as formas de sublimidade476. Rezo também sete terços de jaculatórias a Nossa Senhora Auxiliadora, e outros sete a Nossa Senhora de Genazzano. Rezo depois cinco ou seis terços de jaculatórias dirigidas a Nossa Senhora para necessidades espirituais várias477. Além disso, peço todo dia a Nossa Senhora, em dois terços de jaculatórias, para me dar a visão da verdade nua e crua, seja qual for478. Uma coisa muito peculiar nas minhas orações é o seguinte: se aparece, por exemplo, uma necessidade, rezo para ser suprida essa necessidade. Se de repente, ao rezar para ser suprida aquela necessidade, eu vir que essa necessidade é muito maior do que imaginava, rezo então mais intensamente para aquilo ser resolvido. Em casos desses, diminuo outras orações para que a minha vida de piedade não se torne uma coisa impossível de ser cumprida. E daí haver um certo movediço dentro dessas orações. Movediço muito indeciso, porque pode mudar de acordo com as circunstâncias479. Se é verdade que desejo super-intensamente tudo o que peço, entretanto não me lembro de que tenha feito orações especiais fora da rotina,

474 Despachinho, 17/1/84 475 Chá SRM 16/1/94 476 CSN 13/3/93 477 Despachinho, 22/5/91 478 Despacho e Chá ENSDP 10/2/88 479 Despachinho, 22/5/91 198

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como terço, ladainhas. Não está no meu modo de ser. Louvo muito quem faz, mas não está no meu modo de ser480.

* Há evidentemente certas graças que devo pedir, e que Nossa Senhora quer que peçamos. E quanto mais pedirmos, melhor será. Por exemplo, a graça do amor e da devoção crescentes a Ela, e por meio d’Ela a Nosso Senhor Jesus Cristo. Em segundo lugar, a graça de que o Espírito Santo não tarde a vir ao mundo e o purifique dos pecados em que está. Há ainda certas outras graças que nós podemos supor – e até devemos supor – que Ela queira que peçamos, mas que devemos pedir com muito cuidado, por não sabermos exatamente se Ela quer mesmo. Há o caso de uma freira, morta em odor de santidade – não me lembro de que congregação ou ordem religiosa –, à qual Nosso Senhor disse que os homens pediam tanta misericórdia a Deus, e não pediam a justiça, que Ele ficava como que amarrado, não podendo fazer a justiça que Ele quereria fazer. Portanto, não podemos querer impor a Deus os nossos pedidos e por assim dizer governar a Deus com as nossas orações. Por outro lado, vemos que Deus dá tanto valor à oração do homem, que Ele se deixa como que “amarrar” por aquilo que nós pedimos. De onde decorre que as intenções de nossas orações têm muita responsabilidade. E devemos pensar muito no que pedimos. Um problema relacionado a este que me ponho é o seguinte: O que é mais grato a Nossa Senhora que eu peça: que Ela afaste de mim uma série de sofrimentos, para que eu possa aguentar, para que possa ter uma leistung para conseguir cumprir todo o meu dever? Ou pedir a Ela que me mande mais sofrimentos, ainda que com o risco de não aguentar e não cumprir, em consequência, todo o meu dever? Diante desse problema, não ouso escolher: peço a Ela que escolha por mim. E que escolha por mim aquilo que Ela quereria que eu pedisse a Ela481.

480 CM 26/8/90 481 Chá PS 27/11/87 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 199


O modo de rezar e pedir Nas nossas orações, um modo de pedir consiste em pedir muitas vezes. Outro modo é desejar com tanta veemência, querendo tanto aquilo, que Nossa Senhora, que sabe o que se passa em nossas almas, faz com que esse desejo fique valendo como oração. Os senhores me conhecem e sabem bem que, quem é truculento no agir, é enfático no pedir. É claro, uma coisa é a recíproca da outra. E quando peço, peço com uma vontade enorme de obter o que quero, entro de peso inteiro no que tenho que entrar482. Quando acho uma coisa, acho mesmo; e quando quero uma coisa, quero mesmo. Junto a Nossa Senhora sou assim também. E julgo que Ela nota em mim a convicção tranquila e absoluta daquela ideia; e quando peço, Ela nota em mim um desejo ardentíssimo de que aquilo seja atendido. E então a repetição torna-se supérflua483. Então, peço tudo quanto Nossa Senhora sabe que desejo, no grau que desejo e que Ela deseja; mas peço também a Ela que, na medida do possível, queira o que eu quero. Em certa medida é a luta de Jacó com o anjo. Mas isto fica difuso no fundo de minha cabeça484.

* Por outro lado, adoto uma certa forma de pedir – forma esta que é toda individual; alguns não a farão, outros não a quererão – pela qual, aquilo que queremos, deve ser objeto de reflexão madura e guardado na memória. E esses pedidos devem vir do fundo da alma e ter uma hierarquia. Deve vir do fundo de nossa alma, porque não devemos nos dirigir a Nossa Senhora só sobre bagatelas. Ela é de tal maneira nossa Mãe, que até bagatelas podemos pedir, mas não devemos pedir principalmente bagatelas485. Assim, quando rezo, tenho muito presente no espírito a ideia de que Deus, Nossa Senhora, os anjos, os santos estão vendo perfeitamente a minha alma. E que eles, portanto, têm uma visão tão global de minha alma, daquilo que quero, porque quero, em que hierarquia quero, que contar para eles o que estou querendo é supérfluo. 482 Chá JG 19/11/79 483 Palavrinha ESB 29/3/95 484 Chá SRM 16/8/88 485 Chá PS 15/4/85 200

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Razão pela qual poucas vezes peço tal coisa ou tal outra coisa. Quando peço é mais uma expansão do que propriamente um pedido. Porque o pedido está na minha necessidade e no meu desejo patente aos olhos deles. Mas, como a alma humana é muito sociável, então, em certas ocasiões é natural que eu diga alguma coisa, mas é como expansão, não é porque ache que é necessário dizer para Ela saber. Não censuro nem um pouco quem proceda de outra maneira. Mas a essência de minha oração é: “Minha Mãe, eis-me aqui. Sei bem, ou ao menos julgo saber, quais são os meus defeitos. Receio, por outro lado, ter uma noção hipertrofiada de minhas qualidades. Vós sabeis objetivamente como é uma coisa e como é outra. Vós vedes tudo isto e Vós rezais por mim com o empenho de Mãe de misericórdia. Por outro lado, Vós quereis a oração de vossos filhos. Olhai para as minhas necessidades. Elas são um bramido que se levanta a Vós, pedindo-vos aquilo de que preciso. Tende pena de mim, ponde em mim os olhos de Vossa piedade e atendei-me” 486. A atitude diante de Deus e de Nossa Senhora Um modo de rezar muito próprio ao meu feitio de espírito consiste em observar todas as coisas continuamente, analisando-as com calma, com tranquilidade, mas sobretudo com muita precisão, com muita exatidão, o que é conforme a Deus e o que é contra Deus; o que é que está nos levando à maior santidade, o que nos está afastando de uma santidade maior. De maneira tal que, nas mais ínfimas coisas, se possa perceber que efeito essas coisas estão produzindo em nossas almas. Ter continuamente presente o panorama da batalha da Revolução e da Contra-Revolução, e a cada momento, se virmos uma coisa revolucionária, detestá-la; e se virmos alguma coisa contra-revolucionária, amá-la – isto é evidentemente uma forma de oração, por estar pensando continuamente em função de Nossa Senhora, dos interesses d’Ela e da causa d’Ela. Isso não é árduo, é muito deleitável, muito interessante, muito atraente, desde que a pessoa tenha energia de ir adquirindo esse hábito487.

*

486 Chá SRM 22/11/88 487 Chá SRM 12/5/94 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 201


Em essência, a minha oração é esta. Não estou preocupado em saber se esta é a melhor oração, se ela é sublime, ou se é corriqueira ou banal. É onde está a minha alma. Se se pode fazer uma oração melhor, está muito bem: faça-se. E peço a Nossa Senhora que me ensine a rezar melhor. Mas se esta é plenamente a oração que Ela quer de mim, dou graças a Ela e a apresento, pois sei que Ela se contenta com pouco. Há fotos que correm pelo Grupo em que apareço rezando. Elas expressam uma impressão de placidez, de tranquilidade, pela qual compreendo que uma pessoa diga: “Ele tem consciência de que está falando com Deus, que está falando com Nossa Senhora? Se ele fosse recebido por um magnata da terra, ele estaria tão tranquilo assim?” A resposta é simples. Com o magnata da terra eu seria obrigado a me débrouiller para conseguir convencer esse magnata do que eu preciso. Já com Deus e com Nossa Senhora é diferente. Deus sabe, Nossa Senhora sabe. Por que então estar com explicações sem fim? Alguém objetará: “Mas não foi o modo de rezar que Nosso Senhor ensinou. Ele, no Pater Noster, pediu várias coisas. Por que você também não pede várias coisas?” Respondo: peço muitas coisas, peço mil coisas. O problema é saber se, no caso concreto da oração, sou obrigado a especificá-las. Elas são tantas, tão matizadas e tão imensas, que a mim parece um trabalho irrealizável. Então julgo melhor dizer: “Minha Mãe, olhai para mim, como para o mendigo que estende a mão para um transeunte que passa”. Há mendigos que, ao pedir esmola, dizem uma porção de coisas: “Estou com a perna ferida, dê-me um dinheiro”. Há outros que simplesmente estendem a mão. Sou da categoria do mendigo que estende a mão. A minha mão vazia indica tudo: tenho a mão vazia e orante para apresentar a Ele ou a Ela. Na hora de comungar não digo: “Estou recebendo em mim meu Deus e Senhor. Meus Deus, não sou digno etc.” Se há quem saiba que não sou digno, sou eu. Mas isto Ele sabe totalmente, e Ele está vendo que acho isto. Talvez seja menos digno do que estou imaginando. Neste caso peço a Ele que me faça ver a minha indignidade ainda mais objetivamente. Mas peço na calma, porque sei que Nossa Senhora está pedindo por mim. Se Ela não pedisse por mim, eu desanimaria, porque seria uma coisa que não teria jeito. Como é que vou dar um jeito nisto? Não vai. Entretanto, Ela pedindo por mim, fico tranquilo. Imaginem que Dona Lucilia estivesse viva, e que eu doente na cama, precisando de tratamento. Eu iria dizer para ela: “Mamãe, lembrai-vos que 202

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sou vosso filho, e que estou aqui com tal e tal doença. Tende piedade de mim, não me abandoneis, vinde curar-me?” Seria como eu faria quando ela entrasse no quarto? Ela entraria dizendo: “Filhão, o que é que você tem?”, e eu responderia: “Mãezinha, isso, aquilo, aquilo outro”. E está acabado. O resto está entendido entre nós. Ela até estranharia muito se eu começasse tratá-la com toda essa retórica. Não pensem que isto signifique que eu tenha a sensação de que Deus Nosso Senhor e Nossa Senhora estejam perto de mim. Tenho a impressão de que estão perto, no mesmo sentido em que o sol está perto por seus raios chegarem até mim, mas sabendo que a distância que há entre mim e o sol, que distância é! Mas essa distância é infinitamente menor do que a distância que há entre Nosso Senhor e mim. Ele também é um sol muito mais possante do que esse solzinho de matéria em combustão que temos aqui. Ele está distantíssimo, superioríssimo, e se não fosse o pedido d’Ela, por desdén, para usar a expressão castelhana, Ele me rechaçaria desde logo. Mas sei que o próprio Deus criou para Si uma Mãe que é minha. E sei o que é ter uma mãe. Então confio. A superioridade de Deus é tal que, se não fosse a devoção a Nossa Senhora, repito, eu desanimaria. Gosto de senti-los superiores, porque toda a vida gostei de admirar. E gostei de me sentir pequeno em relação aos que me são superiores. O élan de minha alma foi sempre este. E isto não se faz para mim com pânico. Não tenho pânico. É uma situação que reconheço maravilhado. Em certos apuros, pedi muito alguma coisa concreta. Por exemplo, por ocasião daquela graça que recebi diante da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora na igreja do Sagrado Coração de Jesus, estava rachando de pedir. Mas o que me veio foi tão tranquilizante, que fez do meu pedido não um gêiser, mas um curso de água tranquilo e normal. Acho que isto é bom488.

* Não ousaria nunca me apresentar diante de Deus para fazer uma oração, dizer um Padre Nosso, sem que fosse por meio de Nossa Senhora. Nunca, nunca, nunca faço uma oração a Ele sem ser por meio d’Ela. Procedo conforme o exemplo dado por São Luís Grignion no “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, do homem pobre que quer oferecer uma maçã ao rei. Não sabendo como oferecer uma coisa tão vil, 488 Chá SRM 22/11/88. 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 203


pede à rainha, que é misericordiosa, que é materna, que a ofereça por ele. A rainha sorri, toma a maçã, coloca-a sobre uma bandeja de ouro e depois pega ela mesma essa bandeja de ouro e a oferece ao rei. Por ser oferecido por Nossa Senhora, o rei aceita a maçã com beneplácito, e até não olha, não considera os defeitos da alma do camponês, porque foi a Mãe d’Ele que ofereceu. A ideia de São Luís é que Nossa Senhora pode cobrir as nossas almas com o manto da virtude d’Ela, e então a nossa presença se torna inteiramente agradável a Deus. É nesta perspectiva que faço qualquer oração, desde pedido da coisa mais comum, mais corrente, até pedidos maiores, como por exemplo o pedido de que venha logo o Reino de Maria. E faço isto sabendo que alcançarei muito mais do que o homem na parábola do pedinte insistente e inoportuno489. Vemos, pela narração evangélica, que o dono da casa não gostava do homem da parábola, e acabou dando o que ele pedia por ele ter insistido muito. Oferecendo nossas ações por meio de Nossa Senhora, sei que o Divino Dono da casa pega essas miseráveis maçãs e, assim como por ordem d’Ele a água se transformou em vinho, assim também por ordem d’Ele o meu miserável presente, passando pelas mãos de sua Mãe, toma um caráter inteiramente diferente. E isto me faz olhar com calma a minha oração, que sobe e se transfigura, e por isso é recebida por Ele com comiseração e bondade. Assim rezo. Não me atreveria a rezar de outra maneira490.

* É curioso como a grandeza d’Ela se põe diante dos meus olhos. É uma grandeza ogival, extremamente abarcativa, que por abarcar tudo, abarca-me a mim também dentro do conjunto que Ela abarca. E, por causa disto, é ao mesmo tempo enormemente grandiosa e enormemente materna. Há n’Ela uma enorme tendência a querer bem, a reverter-se num outro, a por assim dizer entornar-se inteira dentro de um outro. Então, deixemo-nos encher na paz, na tranquilidade. E daí uma espécie de reciprocidade muito tranquila, muito reverente, ao mesmo tempo muito carinhosa, e que faz o ambiente em que me coloco para rezar a Ela.

489 Lc, 11, 5-8 490 Chá PS 15/3/95 204

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Mais ainda: na minha oração, eu nem tanto medito sobre um ponto determinado, nem tanto presto atenção nas palavras que estou dizendo, mas ponho-me em presença d’Ela e aí fico, como se Ela estivesse na sala. Acontece-me às vezes de ter que retomar uma dezena do terço, porque chego ao fim da dezena não sabendo que mistério estou rezando. Não tenho vergonha de contar isto, porque a nota tônica não está no mistério, a nota tônica está no Ela estar presente e no eu estar presente diante d’Ela. Naturalmente peço que, pelos méritos do mistério que estou rezando, Ela receba minha oração, mas não peço isto em cada mistério. É uma intenção genérica, porque a intimidade não comporta essas cerimônias. No fim de cada dezena repetir a intenção, não. É uma coisa contínua, como alguém que corre, não é compartimentado, vai andando. Terminada a oração, está terminado aquele convívio e está terminada aquela parte do dia. E aí deixo de conviver com Ela, para passar a conviver com Ela na causa d’Ela. É Ela, mas de outra maneira. Mamãe rezava muito mais do que eu, não tem nem comparação, era outra vida. Mas, mesmo quando ela não estava rezando, percebia-se que ela estava nessa presença. Quando me ponho diante de Nossa Senhora para rezar, não fico chorando meus pecados. Considero, como já disse, o pequeno do meu ser, a carência do meu ser, o fato de não ser senão o que sou, tomo inclusive as qualidades. Entra aí uma apreciação moral também, mas não é só moral, é quase ontológica. Daí o gosto de ser protegido, de ser amparado, de ser atendido, de me sentir pequeno aos pés d’Ela e protegido só por Ela. O que produz uma espécie de bem-estar de alma muito específico, que é perder-se dentro d’Ela completamente. É o correspondente à posição d’Ela. Não conseguiria tomar essa posição de perder-me n’Ela, se Ela não tomasse a posição de Ela perder-se dentro de mim491. O modo de fazer a ação de graças após a recepção da Sagrada Comunhão Como minha memória é má, nas minhas comunhões sigo sempre um esquema, pelo receio de deixar escapar algum dos atos de culto. Esse esquema é sempre o seguinte. Recebendo a Sagrada Comunhão, a primeira oração que faço é pedindo a Deus que me dê, antes de tudo e de mais nada, uma devoção crescente 491 Chá 19/9/80 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 205


a Nossa Senhora. A união com Ela nos une a Ele, e é uma forma super excelente de união com Ele. Não que Ela me seja um conduto indiferente a mim, que só quero por causa disso. Isto não é verdade. Eu a quero porque Ela é Ela, ou seja, a Mãe d’Ele. E, portanto, pedindo isto a Ele, sei que peço o que há de melhor, porque o melhor modo de homenagear a Ele é dizer que quer mais união com Ela. Se me virem no momento de receber o Santíssimo Sacramento, podem assegurar: “É certo que neste momento ele está pedindo isto ato contínuo”. Em nenhuma comunhão, há décadas, deixo de pedir isto. Logo em seguida começo a prestar os atos de culto. Em tese seria: adoração, ação de graças, reparação, petição. Mas, pelo fato de ter muito presente a necessidade de reparação, inverto a ordem, o que é legítimo fazer, porque não se trata de um ato litúrgico, mas de um ato pessoal. Então faço reparação, depois adoração, ação de graças e por fim petição492.

* Dos vários atos de religião, aquele ao qual sou mais propenso a me associar ou a praticar é a reparação. É o pedido de perdão com algum sacrifício, com algum esforço, com alguma renúncia, ou com sacrifícios, esforços e renúncias inenarráveis, que devem ser apresentados a Nosso Senhor humildemente, numa salva de ouro ou de prata que é o Imaculado Coração de Maria. Oferecemos isto para Ele perdoar os pecados da humanidade, perdoar os nossos pecados individualmente, oferecendo os nossos sacrifícios493. A reparação tem sempre em vista o pecado de Revolução, a devastação que a Revolução vai fazendo no mundo, o ultraje que é para Ele e para Ela os nossos defeitos no Grupo e os meus defeitos pessoais. E onde o pedido se mostra mais intenso é na reparação dos meus próprios defeitos494. Na reparação incluo também todas as ações que fiz e que deveriam ser melhores495. Vem em seguida a adoração. Como é feita essa adoração? Essa adoração, sempre por meio de Nossa Senhora, toma em consideração esse ou aquele aspecto da personalidade d’Ele496. Sempre me falou muito a figura de Nosso Senhor com toda a sua sacralidade, toda a 492 Chá SB 1/9/81 493 Chá 7/6/94 494 Chá SB 1/9/81 495 Chá PS 1/10/93 496 Chá SB 1/9/81 206

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sua dignidade, toda a sua majestade presente na minha alma, e com uma união superlativa de que não há noção no convívio entre nós; depois, mexendo dentro de minha alma amorosamente, ao mesmo tempo sagrando-a, elevando-a e remodelando-a497. Muitas vezes também O considero enquanto eucarístico, enquanto presente na Sagrada Eucaristia. Mas varia muito, de acordo com a minha inclinação de alma no momento e, em certo sentido da palavra, de forma absolutamente improvisada. Depois vem a ação de graças. Eu a faço tão bem quanto posso, mas, dos vários atos, é aquele em que deito menos empenho, como quem diz a Nosso Senhor: “Desde já Vos agradeço, mas terei a eternidade para isso; agora estou na luta, deixai-me ir para a batalha, e vou pedir isso, aquilo, aquilo outro”498. Em geral, faço a ação de graças a Nosso Senhor e a Nossa Senhora – a Ele por meio d’Ela – por aquele dom inestimável da comunhão e os dons que daí me virão, rezando o Magnificat499. Por fim, vem a petição, que faço sempre condicionada: “Se este for o desígnio de Nossa Senhora”. É uma petição condicionada, mas curiosamente não permite muita dúvida. Quer dizer, estou certo de que, grosso modo, este é o desígnio d’Ela. Mas Ela o efetivará conforme o seu desígnio500. Como graças a Deus sou uma pessoa muito plácida, muito tranquila e não sujeita a grandes emoções, na petição não me é necessário fazer uma recomposição de lugar, coisa que louvo muito que uma pessoa faça. Mas meu feitio, meu temperamento não precisa disso. Há dois pensamentos fixos nessa petição, e que são o eixo em torno do qual giram as minhas preocupações. Um é o da minha santificação. Sempre rezo a Nosso Senhor, por meio de Nossa Senhora, pedindo a Eles para santificar-me mais e tirarem de mim, mais e mais, os defeitos que devem ser tirados, para assim unir-me completamente a Eles. Isto é no que diz respeito à minha vida interior. Outro pensamento é, já o disse, a liquidação da Revolução, que faço sempre com a recordação de algum fato que faça sentir de modo mais completo, mais intensamente a infâmia da Revolução, lembrando entretanto que a Revolução não é apenas aquela infâmia em concreto, mas são todas

497 EVP 25/6/72 498 Chá SB 1/9/81 499 Chá PS 1/10/93 500 Chá SB 1/9/81 4ª PARTE – A MENTALIDADE DO PALADINO DA CONTRA-REVOLUÇÃO 207


as infâmias juntas formando um tutti frutti de infâmias, e que ela não está parada, mas continuamente em marcha, com a intenção de fazer o pior501. Por isto, todos os dias na comunhão, peço a graça da indignação502, e o aumento da minha intransigência503. Apresentado o último pedido, está terminada a minha comunhão. Alguém me objetará: “Bom, o senhor deve ter muitos pedidos e sua comunhão deveria demorar vinte ou mais minutos. Mas sempre demora dez minutos em ponto, marcados no relógio. Como se explica isto?” É bem verdade. Pois está no papel de um guerreiro que vai fazer a comunhão, terminá-la dez minutos depois, porque sabe que tem responsabilidades na muralha504.

501 Chá PS 1/10/93 502 RR 22/12/73 503 RN 13/2/70 504 Chá SB 1/9/81 208

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5ª PARTE

FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS E DE UMA ESTIRPE ESPIRITUAL PELA ORIGINALIDADE DE SEU CARISMA, O FUNDADOR TEM QUE SER SEU PRÓPRIO FORMADOR O que me dava uma tristeza sem nome na minha juventude era a seguinte situação. Se conhecesse um só rapaz, mas um só, que pensasse como eu e que tivesse o ideal contra-revolucionário que tenho, eu me sentiria amigo de alguém, me sentiria unido a alguém da minha geração. Mas, se andasse de dia, como o fez Diógenes, com uma lanterna acesa à procura de alguém que concordasse comigo, não encontraria ninguém. Todos os anelos que hoje estão escritos nos meus livros – os quais, pelo favor de Nossa Senhora, têm circulado tão amplamente – todos esses anelos eram coisas que eu não poderia sequer chegar a formular naquela época. Porque, se chegasse a formular, a incompreensão rápida seria o resultado imediato da expansão, dessa manifestação de meu pensamento. À medida em que fui ficando mais velho, andando então pelos meus 13, 14, 15, 18 anos, fui notando que não me faltava apenas um companheiro, um amigo que me compreendesse e a quem eu compreendesse, mas que me faltava sobretudo um guia. Eu tinha a guia excelente e incomparável de minha queridíssima mãe, mas via bem que, embora houvesse afinidades enormes entre nós, em muita coisa ela não conheceu a Revolução. Algumas coisas ela via, mas tudo aquilo que eu entendia como Contra-Revolução e como Revolução, iam além da compreensão de uma excelente senhora com dotes intelectuais, mas que não pegava até onde a coisa ia. Tive uma noção clara disso quando dei para ela o livro “Revolução e Contra-Revolução”. Ela leu a R-CR, teve umas referências muito afetuosas à R-CR, mas pegar o tema R-CR ela não pegou. Por quê? Porque a Providência designava alguma coisa para isto. 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 209


O que é que a Providência designava? Eu não sabia, mas perguntava à Providência: “Por que não me mandais alguém que, a meu lado, percorra o meu caminho e com quem possa falar sobre Vós, ó Maria Santíssima, com quem possa falar sobre Vós, ó Cristo Senhor, e com quem possa me abrir contra-revolucionariamente?” Porque se fosse apenas para falar sobre pensamentos bons e de piedade, o que de si é uma coisa excelente, eu teria admiravelmente a minha mãe como interlocutora. Mas não se tratava disso. Tratava-se de tomar esses temas magníficos e servir-me deles para iluminar o problema da Revolução e da Contra-Revolução, de maneira a preparar a carga da ofensiva contra-revolucionária. Eu dizia a Deus: “Por que não me destes um guia? Por que eu haveria de ter de me formar sozinho, sem ter quem me forme? Por que, meu Deus, além de cobrar de mim tanto esforço e tanto isolamento, não me dais um bastão em que eu apoie o meu cansaço?”. Graças a Nossa Senhora essas perguntas eram feitas sem a menor censura, sem nada que não fosse com a mais reverente aceitação, respeito e afeto para com a Providência e para com Nossa Senhora. Mas essas perguntas eu fazia. Só depois é que vim a compreender que, além de me dar uma tão boa mãe, Deus Nosso Senhor me deu um companheiro, me deu um formador que eu não percebia que vivia a meu lado me formando. Esse companheiro e esse formador chamavam-se isolamento. Na solidão eu era obrigado a me formar a mim mesmo, e foi na solidão que compreendi quase tudo quanto hoje sei. Nesta solidão eu tinha de ser o chefe de mim mesmo e dirigir-me a mim mesmo, como um timoneiro que está a bordo de uma jangada em pleno oceano. Ele tem que dar conta da jangada, porque não tem mais ninguém com ele, nem no oceano nem na jangada. Ou ele conduz a jangada de maneira a salvar-se nos mares, ou em pouco tempo afundará. Então, para mim, aquela necessidade de dar conta de mim mesmo, formar-me a mim mesmo, ser o chefe de mim mesmo e arranjar por mim mesmo aquilo que gostaria de receber da mão de outros, se tornou imperiosa. Os senhores não calculam como hoje – na idade a que cheguei e com o número de pessoas que, pelo favor de Nossa Senhora, tenho encontrado ao longo de minha vida de formador e de fundador – agradeço a Nossa Senhora e digo: – Minha Mãe, eu não entendia, mas felizmente por Vossa graça fui um filho inteiramente submisso. Dentro do não compreender havia uma obediência completa e uma conformidade completa, e hoje compreendo. Para um homem que tem a doutrina católica e crê na Santa Igreja Católica, 210

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não há coisa melhor para formar do que estar só, ajudado pela graça de Deus, batalhando contra si enquanto batalha contra os outros. Agradeço ainda a Nossa Senhora, mais do que tudo, aquilo que não compreendi, o que recebi e que tanto bem me fez e que tanto concorreu para que fosse de alguma utilidade para a restauração do reino d’Ela: o isolamento. Um dos elementos que mais me formaram para a luta foi a solidão505.

* Certa vez me perguntaram como se punha para mim a procura de um superior que refletisse a Deus. Essa pessoa até recordou aquela frase do “Cantar de Mio Cid”: “¡Dios, qué buen vasallo si hubiese buen señor!”. Não era fácil responder, porque essa pergunta não se punha para mim na ordem doméstica, mas se punha na ordem eclesiástica e na ordem civil. Nossa Senhora me ajudou também nesse ponto, porque as leituras de História que fiz, no começo eram leituras que me faziam ver a maioria dos Papas e dos bispos e dos cardeais e dos santos – santos naturalmente do passado – como prodigiosos arquétipos. Fazia-me ver também reis, nobres, governantes da ordem civil como prodigiosos arquétipos. Somava-se a isto todo mundo da Idade Média – então a burguesia medieval, a plebe medieval, a aldeia de marzipã –, tudo isto aparecia para mim como arquétipos prodigiosos, em relação aos quais eu tinha então o sentimento de respeito, de veneração, de enlevo enorme! Nessa procura, entretanto, eu não encontrava aqui, junto a mim, ninguém do gênero. Pela minha veneração para com a Igreja, de início eu via em todo padre, em toda freira, em todo bispo, em todo cardeal – nem sei! – arquétipos prodigiosos. E me habituei ao serviço devotadíssimo desses arquétipos. Não tive, portanto, durante muito tempo, o drama do Cid Campeador. A certa altura, houve um momento em que a distância do amor aos princípios que eles deviam representar, e às instituições que eles deviam dirigir, ficou bastante clara para mim, o que me levou a desiludir das pessoas. Por exemplo, a respeito de Luís XVI, que antes eu tinha como o rei mártir. Ou Maria Stuart, que antes eu considerava como uma delicada vítima do catolicismo, da poesia, do charme e da graça, na mão de uns vis mequetrefes calvinistas que tocavam rebeca, e que era preciso uma carga de cavalaria dissipar. 505 SD 4/2/95 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 211


Quando fui vendo as realidades que eram, já estava maduro para vê-las. E, aí sim, não tive nenhuma dúvida em ser bom vassalo para maus senhores. Mas aí, então, em vez de ir atrás de arquétipos, ia atrás de instituições e de princípios. É uma coisa derivada da propensão de meu espírito de considerar a fragilidade da pessoa e a importância da instituição, e interpretar qual é o princípio que está por detrás daquilo que a pessoa ou a instituição simboliza. Ou seja, ambientes e costumes. Para me exprimir mais corretamente, eu nasci, eu abri os olhos para a vida fazendo ambientes-costumes de toda ordem. É uma propensão506. Portanto, não tive um arquétipo homem, mas a minha arquetipia foi uma porção de pessoas em que vi restos da tradição católica, ou pessoas com quem tomei contato através da História507.

* Perguntaram-me outro dia qual é o modelo em que a TFP se inspira, qual é a lenha que ela teria de pôr nesse fogo, para onde ela deveria caminhar, e qual seria o total desabrochar, o ideal completo da TFP neste sentido. Essa coisa é algo que nasceu primeiro no fundador da TFP. É forçoso. Não tem remédio. O fundador é a primeira centelha, ou a primeira acha dessa lenha dentro disso508. O fundador deve ser um símbolo vivo de sua obra O fundador é em geral aquele que dá a meta e o espírito da obra que está fundando509 e Nossa Senhora lhe dá de modo mais saliente as virtudes que caracterizam mais acentuadamente a obra por ele fundada510. E ele tem obrigação de simbolizar aquilo que fundou511. Há dois modos de me comunicar com os membros do Grupo.

506 CSN 10/7/82 507 EVP 11/8/74 508 CA 25/5/89 509 CA 28/7/87 510 Chá SRM 21/9/89 511 Chá SRM 26/9/93 212

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Um primeiro modo é na exposição dos princípios. Quer dizer, aparecendo uma ocasião psicológica boa, adequada, tomar a teoria e expor essa teoria, naturalmente ilustrando-a com fatos, com exemplos. Em segundo lugar é pelo exemplo. O exemplo consiste em se ter de tal maneira os princípios entranhados na alma, que no trato conosco, a pessoa note o princípio vivo ali. Com os membros do Grupo procuro, antes de tudo, dar o princípio lógico: isto é assim por tal razão, tem tal motivo, tem tal fundamento na doutrina da Igreja. Os senhores nunca me viram dizer duas palavras que não tivessem, mais proximamente ou menos, conforme o caso, um substractum doutrinário. Mas percebo que às vezes Nossa Senhora é servida em que isto tenha certa repercussão, certa graça sensível, em que isto entusiasme. Se Nossa Senhora quer sensibilizar essas almas a propósito de tal ponto, a mim me cabe fazer o que Nossa Senhora quer, executar a vontade d’Ela. Então desenvolvo mais tal parte, ou mais tal outra parte512.

* Um símbolo humano simboliza muito mais do que qualquer coisa. Quando um homem chega a ser um símbolo, tem outro poder de simbolização do que qualquer coisa. Por exemplo, é fora de dúvida que Francisco José simbolizava a Áustria-Hungria mais do que qualquer emblema, qualquer bandeira, qualquer coroa. Então, tenho consciência de que simbolizo mais a Contra-Revolução do que o estandarte, a capa ou o hábito.513 Na medida em que possa, procuro quanto possível simbolizar na minha pessoa a nossa vocação. Procuro ter, noite e dia, a consciência da vocação que tenho. Não tomo um copo d’água e não molho uma vez um dedo numa esponja, sem estar movido pela ideia da dignidade que me compete. O ódio que os nossos adversários me têm, vem em grande parte disso. Porque, por meio deste modo de ser, sentem algo que lhes causa horror, e que é exatamente o contato com a vocação destinada a derrotá-los. Muito do meu modo de ser ainda é limitado, lixado, circunscrito pela necessidade de viver dentro do mundo de hoje. Porque meu modo de ser traduz uma série de velames, de véus para o mundo “democrático” de hoje não se assustar demais514. 512 Chá SB 1/9/88 513 Chá SRM 10/9/90 514 RN 23/7/69 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 213


* Eu não seria o fundador da TFP, nem teria fundado nada, se no meu modo de ser os senhores não percebessem que entra minha alma inteira. Não existem recantos de minha alma que não entrem nisso. E não há aspecto de minha personalidade que não seja aproveitado para isto. Quer dizer, o que posso dar, os senhores sentem que está dado por inteiro. E que esse “por inteiro” é uma conjugação de aspectos de minha personalidade em torno de um ponto chave. Minha personalidade encontrou esse ponto chave para a qual foi feita, entregou-se a esse ponto chave, e convocou as suas qualidades, maiores ou menores, para dar em tudo louvor àquele ponto chave e na luta por esse ponto chave. Se os senhores não notassem isto muito claramente, não sei até que ponto a coesão entre nós ficaria abalada. Poderiam guardar de mim uma boa recordação simpática. Mas a solidariedade pela qual um varão diz: “Acertarei os meus passos com os daquele varão, o meu caminho será o dele”, não saía. Esse dar-se, que é próprio de uma vida religiosa in fieri como é a nossa, não sairia. Se os senhores percebessem que qualquer capacidade minha fica dependendo de horas de abatimento ou horas de entusiasmo, ficariam desapontados a legítimo título515. Os discípulos devem discernir o “unum” do espírito do fundador O discípulo tem certo discernimento dos espíritos, um discernimento receptivo em relação ao espírito do fundador. De maneira que, afinar-se bem com a vocação dele, ele terá uma facilidade de conhecer seu fundador como não terá para conhecer ninguém na terra. Por uma espécie de experiência visual psicológica direta, ele tem esse conhecimento e nada substitui esse conhecimento, nem sequer se equipara com ele. Esse conhecimento é uma forma de reação e de acolhida que, vamos dizer, tem seus vaivéns, com as refrações próprias de cada um. Isto forma o elemento perfeito para uma união de espírito. 515 MNF 5/11/86 214

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Isto faz com que pessoas muitas vezes de cultura pequena, instrução pequena, conhecendo-me pouco, entretanto intuem o que sou e aderem ao que sou, não por um ato de fanatismo, mas por uma afinidade que vem do mais fundo de uma alma até ao mais fundo da outra alma, e que é propriamente o elemento religioso516.

* A mentalidade de todo homem pode até certo ponto ser descrita como um cone, uma pirâmide. Há coisas que dão o tom e explicam tudo o mais. São aquelas pelas quais aquele homem é atraído para a virtude e sente élan para se consagrar à virtude inteiramente; e padece o sofrimento dele, realiza a vontade de Deus e vai para o Céu. O religioso deve procurar a consonância com o píncaro da mentalidade do fundador. Daí vem a consonância com todos os outros pontos. Vem do fato de entender o que o fundador tem de católico, e como aquilo que ensina é uma aplicação da doutrina católica. Se aquilo não fosse católico, seria uma particularidade pessoal e não valeria dois caracóis.

* Qual é o píncaro da mentalidade do fundador para o qual os senhores foram chamados? Os filhos das trevas conhecem. Tanto conhecem, que todos eles odeiam esse píncaro. E odeiam no fundo pela mesma razão. O ódio de um revolucionário é irmão do ódio de outro revolucionário. Eles poderão exprimir esse ódio de maneiras diferentes, mas no fundo é o mesmo ódio. Tanto é que têm os mesmos sintomas: o modo de nos guerrear é o mesmo, o modo de nos perseguir é o mesmo, o modo de nos caluniar é o mesmo517. Como seres humanos, somos capazes de ter afinidades ou distonias colossais, apenas no primeiro olhar. Porque – é curioso –, em contato com o outro, o que a pessoa vê primeiro não são as notas secundárias da partitura, mas o leitmotiv da música. Acho que não há, talvez, sensibilidade maior do que esta, pela qual o unum de “A” vê o unum de “B”, e os dois entram num relacionamento 516 CA 16/12/91 517 Almoço EANS 3/1/89 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 215


en conséquence, sejam eles dois inocentes ou dois bandidos, dois revolucionários. O curioso é quando o indivíduo de hoje se dá ao mal, ele recebe o veneno da Revolução, e aquele veneno entra de algum modo na alma dele. E quando ele olha para outro que lhe seja similar, ele percebe que aquele também tem o mesmo veneno. Aquela sombra o sujeito pesca, e forma uma solidariedade que nós já conhecemos. No caso da união com o fundador, esse assunto entra eminentemente. A alma do fundador, como qualquer outra alma, está compreendida nessa regra. Ela tem o seu unum. E, no compreender esse unum, o membro do Grupo deve ver como a sua alma foi chamada por Deus para formar uma melodia com esse unum. Deve também procurar ordenar-se, apreciando na alma do fundador aquilo que é afim com o seu lado bom, e estimular, dar energia àquilo, de maneira que as zonas de afinidade aumentem e encontrem no fundo a ligação unum-unum, que é a ligação perfeita, a ligação por excelência, que faz do religioso e do fundador um binômio de inteiro serviço a Nossa Senhora! É muito bonito ver que a Igreja Católica tem o seu unum. Esse unum é o Divino Espírito Santo, não tem dúvida. Mas Ele proporciona determinadas graças pelas quais ficamos com a impressão de ver e sentir a Igreja Católica no seu todo. Por exemplo, no trato da Igreja Católica com cada povo, vemos que a Igreja tem um sentido de qual é o unum daquele povo, unum esse que Ela põe mais em evidência para tratar com aquele povo, formando um encaixe que é fortíssimo! E que constitui o fundamento da robustez da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Da mesma forma, trata-se para um discípulo ver, na alma do fundador, qual é o unum dele. Os desígnios da Providência são muito mais profundos do que as aparências. Esse olhar de unum a unum é o elemento unitivo mais forte da TFP. Um exemplo imensíssimo de fundador: Santo Inácio de Loyola. Há um quadro dele, clássico, que nos deixa sentir a mentalidade, o unum do homem que fez os “Exercícios Espirituais”, mas também do homem que, ao mesmo tempo, criou a escola de diplomacia jesuítica, criou o estilo de ensino jesuítico, criou isso, criou aquilo e aquilo outro de um modo magnífico, e que consiste numa certa forma de prontidão da inteligência pela qual a inteligência dele voa! Como uma águia vai para o sol, assim vai a alma de Santo Inácio para as últimas consequências do que ele pensou. Ficamos com a impressão de que a última consequência é o polo de atração dele, a qual 216

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vem de uma primeira visão meio intuitiva das coisas, claríssima como um brilhante, e a partir da qual quase que não é possível senão voar até à última consequência. Por isto ser assim, vemos que ele, com as almas afins a ele, é capaz de afetos, de bondades de que não se imagina. Mas também por causa disso, é capaz de ofensivas, de impactos destruidores como não imaginamos. E esse homem ultra afetivo é um inexorável na força do termo. Daí resulta um unum dele que vamos encontrar, por exemplo, nos “Exercícios Espirituais”. Tomem aqueles raciocínios, é isto até o fim. E é com a força da lógica que pega a alma com vontade, a agarra pelo pescoço e a leva até a consequência que ele quer. Para exprimir o que está na sua alma, o fundador da TFP tem modos individuais irrepetíveis. Ele não seria capaz de compor e exprimir o que pensa à maneira de, por exemplo, uma poesia de Camões. Ele só saberá se exprimir nos modos eventualmente limitados que tem. Mas isto não vem ao caso quanto à fidelidade da missão. Porque, na realidade, desde que ele se exprima com toda a sublimidade, usando os meios humanos limitados de que dispõe; e que se perceba que, se ele pudesse, ele faria mil vezes mais; e se perceba ainda que ele é aberto com entusiasmo para todas as outras formas de sublimidade, ele estaria quite com a sua missão. Então, pode ele ter lacunas humanas dessa ou daquela ordem, mas isto não o impede, se ele se empenhasse em levar a missão até o último ponto possível, de a levar. Fica aqui dada uma ideia de como deveria ser visto um fundador da TFP. Com misericórdia para com as limitações de seu condicionamento pessoal, e compreensão por tudo quanto há de elevado nesse dar-se à vocação518.

518 MNF 1/6/89 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 217


Consagração a Nossa Senhora nas mãos do fundador Adendo do compilador Com o intuito de melhor amar e servir Àquela por quem combatem, os discípulos de Plinio Corrêa de Oliveira costumam seguir, em matéria marial, a espiritualidade de uma alma de fogo que figura entre os mais destacados mestres da devoção à Santíssima Virgem, isto é, São Luís Maria Grignion de Montfort (1673-1716), solenemente canonizado por Pio XII em 1947, com gáudio indizível de todas as almas mariais ardorosas, então muito numerosas pelo mundo afora. Por isto, costuma-se entre esses discípulos ler e estudar de modo especial duas obras célebres desse Santo, o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” e “O Segredo de Maria”, das quais, a partir principalmente do século XIX, se têm feito sucessivas traduções e edições em grande número de idiomas. E, ao cabo da leitura, costumam, como o mesmo Santo recomenda, consagrar-se como “escravos de amor à Santíssima Virgem”, a Quem cada qual dirige uma oração nos seguintes termos: “Entrego-Vos e consagro-Vos, na qualidade de escravo, meu corpo e minha alma, meus bens interiores e exteriores, e até o valor de minhas obras boas passadas, presentes e futuras, deixando-Vos direito pleno e inteiro de dispor de mim e de tudo o que me pertence, sem exceção, a vosso gosto, para maior glória de Deus, no tempo e na eternidade”. Estas palavras são do texto da consagração redigido pelo Santo. Dado que a atuação anticomunista desses discípulos, então aglutinados na TFP brasileira e em outras TFPs e associações latino-americanas afins, era em 1967 e desde todo o sempre, e ainda continua sendo é conforme à Fé e à Moral cristã, e à vontade de Maria Santíssima – e dado ainda que desenvolver tal ação supunha esforço concatenado e disciplinado, sem o qual nenhuma ação é frutífera –, obedecer, na pugna anticomunista, os que na TFP então exerciam cargos de direção, era logicamente vontade de Maria. É nesta perspectiva que procediam os que a Ela se consagravam

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como “escravos de amor”, dentre os sócios e cooperadores da TFP de então. Tais considerações levaram, em 1967, certo número de sócios e cooperadores da TFP, que habitualmente renovavam sua consagração de “escravos de amor à Santíssima Virgem”, a pedir ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, insigne fundador da entidade e exímio presidente do seu Conselho Nacional, a aceitar que nas mãos dele se consagrassem à Mãe de Deus. Por este modo entendiam razoavelmente afirmar que todos os labores e sacrifícios que o mais alto dirigente da pugna anticomunista lhes indicasse como necessários para seu crescimento na devoção à Santíssima Virgem, e no serviço d’Ela, na atuação desenvolvida pela TFP contra a Revolução igualitária e gnóstica e comunista, eram para eles decorrência da sua consagração segundo os escritos de São Luís Maria Grignion de Montfort. Tratava-se, portanto, de uma consagração como escravos de Maria Santíssima, feita nas mãos do Dr. Plinio. Escravidão, já se vê, toda ela substancialmente no sentido religioso e espiritual em que o Santo francês emprega o termo. Por analogia a esta escravidão – obviamente toda ela religiosa e espiritual, convém talvez repetir – a consagração como escravo de Maria nas mãos de Dr. Plinio importava em constituir entre ele e quem se consagrava a Maria nas mãos dele, uma situação que, na perspectiva do “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” de São Luís Maria Grignion de Montfort, podia denominar-se de senhor-escravo. Mas esta escravidão importava numa suma liberdade. Foi o que aliás salientou, com clareza e precisão, S.S. João Paulo II, o qual, interrogado a respeito pelo conhecido escritor André Frossard, assim se exprimiu sobre a “sagrada escravidão” a Maria Santíssima: “Escravidão: a palavra pode chocar nossos contemporâneos. Por mim, não vejo nela nenhuma dificuldade. Penso que se trata de uma espécie de paradoxo, como frequentemente se encontra nos Evangelhos, significando as palavras ‘santa escravidão’ que nós não poderíamos realizar mais profundamente nossa liberdade, o maior dos dons que Deus nos tenha feito. Porque a liberdade se mede pelo amor do qual somos capazes. Continua na próxima página

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“É isto, creio, que [Montfort] quis mostrar” (A. Frossard, “Dialogues avec Jean-Paul II”, Paris, 1983, pp. 186-187 – apud “L’Homme Nouveau”, Paris, 18-11-84). De fato, tal como na consagração a Nossa Senhora, o “escravo” assim consagrado não ficava sujeito a qualquer pressão moral. Em outros termos, qualquer ato de desobediência dele, em si não constituía pecado. Se, por eventuais e graves razões de consciência – por exemplo, para conservar sua integridade na Fé ou na observância da Moral católica – o “escravo” julgasse eventualmente dever deixar essa situação, poderia fazê-lo licitamente a qualquer momento, e sem licença de quem quer que fosse. Todos esperavam que, a tomar verdadeiramente corpo essa consagração, ela se estenderia a toda a TFP. Mas gradualmente, sem arroubos, e sem constituir para isso qualquer pressão moral sobre os que, por motivos pessoais, não quisessem fazer tal consagração. Infelizmente, tal consagração, feita na forte maioria dos casos no ano de 1967, teve vida efêmera. Depois de um surto de fervor, ela começou rapidamente a entrar em decadência, pela superficialidade de espírito e pela inconsequência que já se manifestavam em tantos elementos da “geração nova” de então. Poucos meses depois, a obediência decorrente dessa consagração já não tinha senão escassos vestígios de vigência. Tudo isto deixou nas almas dos “escravos de Maria”, nas mãos do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, tristeza, nostalgia, vaga esperança. – Quem sabe? Algum dia? – Este dia... ainda não chegou. “Sempreviva”, a flor que não morre: era a alegoria transparente e graciosa que essa esperança nostálgica (mas, no plano estritamente natural, mera veleidade!) conservou por símbolo. Hoje, a TFP toda conhece esses fatos. Com o respeito e a simpatia de todos para com a “Sempreviva”. E com a nostalgia infinda dos que receberam a chamada “graça de 67”519. 519 Cf. comunicado “Sobranceira e serena, a TFP enfrenta o XI estrondo publicitário”, datado de 25/03/1985, assinado pelo Dr. Paulo Corrêa de Brito Filho, Diretor de Imprensa da TFP e publicado na “Folha de S. Paulo” de 26-3-1985.

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A paternidade espiritual do fundador Todos juntos nascemos para a mesma luta, para as mesmas vitórias, para as mesmas dores, para os mesmos riscos520. Quando minha irmã Rosée e eu éramos muito moços ainda, e estávamos começando a vida, ela ofereceu vender todas as joias dela e custear-me um curso de dois ou três anos na Sorbonne, para eu voltar com uma formação intelectual que metralhasse o ambiente aqui. Ela, como irmã, estava no direito de fazer-se essa ilusão. Mas pensei: “Se eu for embora durante dois ou três anos, esse grupinho, que é o último fermento precioso de anos de apostolado e de vitória, se desfaz”. Era um grupinho ainda débil, e, portanto, havia toda a possibilidade de nunca mais se reconstituir se me ausentasse. Por amor a esse fermento no qual habitava a esperança, eu disse: “Não, rejeito essa oferta segura que me passa pelas mãos e fico na insegurança numa certa ótica, mas na esperança. Vamos para frente”521.

* Se não tivesse a adesão dos senhores, eu me consideraria como uma célula sem protoplasma, ou uma cabeça sem corpo. Os senhores são o meu complemento natural, mas um complemento sem o qual eu seria inexplicável. Eu não teria sentido nem para mim mesmo, nem dentro dos planos da Providência. Os senhores como que fazem parte de mim mesmo, são elementos integrantes de minha alma, e na alma de cada um vejo um prolongamento harmonioso e admirável da minha própria alma, pelo qual deverei dar um dia contas a Nossa Senhora. Desde já Ela me ajuda de um modo simplesmente admirável, e conservo a esperança de que, um dia, quando todos nós tenhamos comparecido perante Ela, e aos pés d’Ela, sintamos mais do que nunca quanto comigo, e todos nós, uns com os outros, quanto somos um n’Ela e em Jesus Cristo Nosso Senhor522. Eu lhes quero muito. Mas lhes quero muito por amor de Deus, por amor a Nossa Senhora, por amor à Igreja Católica. 520 Chá SB 13/12/94 521 CSN 30/11/91 522 SD 18/4/75 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 221


É por causa disto que os quero. Se não fosse isto, não teria razão para querê-los. Os senhores também não teriam razão para me querer. Nosso vínculo é este523.

* Quando vou a uma sede e um membro do Grupo me serve, digamos, um chá, tenho bem noção de que ele está fazendo um serviço que não competiria a ele, e que, se ele o está fazendo, é por força da vocação. Então é bom que ele saiba que tomo isto more paternum, como um pai faz ou deveria fazer em relação ao seu filho. E procurando suavizar isso tanto quanto possível524. Não há uma pessoa, não há um rapaz que venha falar comigo, que os senhores não notem que vem na fragilidade dele e procurando certo apoio. Na idade dele, no tipo de relações que existe entre nós, é natural isto. Mas os senhores notam que dou esse apoio a ele. Quer dizer, trato-o com jeito protetor, pelo qual ele entende que, seguindo o bom caminho, ele tem todo o meu apoio, e que o protejo como se fosse pai dele. De outro lado, eu o trato com respeito. Nunca faço uma brincadeira nem nada. O que é cabível de respeito para com um rapaz, isso eu dou. O respeito faz o encanto da vida. Respeitar e ser respeitado é o corolário de admirar e ser admirado. E isto é mais importante do que querer e ser querido525.

* Tenho consciência de que, de um modo ou do outro, quando uma pessoa entra para a TFP, Deus o faz conhecer o espírito que ele deveria ter, e que procuro comunicar, e o modo de ser que a alma dele deveria assumir. Isto cria uma semelhança estreitíssima que, se ambos forem fiéis, dá uma espécie de unidade e de identidade. Esta semelhança determina uma vinculação, uma responsabilidade, um cuidado, um desvelo muito maior ainda do que se tivesse constituído santamente pela natureza, porque tem uma responsabilidade especial. Deus pôs aquela alma no meu caminho, devo ir até o fim do caminho com ela, no caminho da paciência, do afeto, do respeito, mesmo que a pessoa depois se torne ruim. 523 Chá PS 8/9/89 524 Chá SRM 2/6/91 525 Chá SRM 27/1/93 222

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Ainda que seja ruim, é preciso reconhecer que, naquela alma, existe um pavio acesso que ainda pode incendiar uma floresta. E, portanto, preciso tomar conta daquele pavio, porque um grande bem, uma grande luz ainda pode luzir por causa dela. Mas, independentemente disso, e, portanto, independentemente de qualquer cálculo de utilidade em vista do apostolado, a afinidade e a semelhança levam a essa posição de alma. É essa a razão pela qual meu trato com os membros do Grupo é como é. Tenho certeza de que não se pode ter trato melhor do que tenho. Mas não é uma coisa que tenho calculada juridicamente: “Eu devo esse trato moralmente àquele, porque afinal há tais e tais razões para isto. Portanto, vou fazer força sobre mim, que sou indiferente a ele, e arrancar de mim uma atitude externa pela qual eu pague minha dívida para com ele”. Não é assim que se passam as coisas. Nosso Senhor, olhando para o moço rico do Evangelho, o viu e o quis bem. Eu também, vendo um membro do Grupo, ainda que ele ande mal, e vendo o fundo do chamado que não está extinto, o quero bem. Isto não supõe uma reciprocidade. O próprio do amor paterno é ser tal que quase elimina a reciprocidade. De maneira que, mesmo recebendo as piores ingratidões, ainda assim é como se não houvesse nada. Há evidentemente limites. Se aquela alma rompe com Deus, aí rompeu comigo. Não é romper com Deus apenas no estado de graça, é romper com Deus pela perda da Fé, transformando-se em inimigo de Deus: aí virou a página. Se algum dia se arrepender, eu poderei ter pena526.

* Comecei a compreender que a hora da bondade havia chegado quando percebi o surgimento da geração nova que entrava no Grupo. Nos primeiros dessa geração, passei uns pitos, tal como estava acostumado a passar no pessoal da minha idade. Eles, em vez de se revoltarem, choravam. Diante dessa reação, tive uma surpresa: “Que negócio é este?” O fato é que, a partir daí, começou outra canção527.

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526 Chá SRM 4/4/88 527 Almoço EANS 15/9/88 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 223


Os senhores terem a certeza de que – que Deus nos livre – andando mal, eu os trataria como os trato, e que eu seria um pai bondoso em qualquer ocasião, não lhes dá muito mais bem-estar de participar da TFP do que soubessem que, andando mal em qualquer coisa, viriam logo raios e tempestades e expulsão? Quer dizer, a bondade atrai e une. Ela não é bobice nem moleza. Não é deixar dentro da TFP uma pessoa cujo mau exemplo pode contaminar, não é dar a ideia de que somos indiferentes, não é deixar de ter uma profunda censura à atitude que o outro tomou, mas é a bondade. É o afeto que continua, apesar da má conduta. Ele não permite a má conduta, desconfia desse inimigo não só potencial, mas declarado, de olhos abertos em cima de tudo quanto ele faz, e o impede de fazer o mal. É uma atitude militante. Mas militante com bondade528.

* Em todas as ocasiões é preciso que o membro do Grupo, tratando comigo, note duas coisas: minha enfática adesão aos nossos princípios; e minha oposição irremediável ao que não é isto. Mas depois, de outro lado, muita pena e vontade de atender, de ajudar, de reerguer, de apoiar aqueles que não estão seguindo bem os princípios, mas que por uma palavra de afeto, de estímulo, podem reaquecer-se no amor de Deus. É uma consideração temperada, não é uma consideração que estimule a vaidade. Por quê? Porque são meios de reerguer um filho que está cansado no caminho e que se trata de ajudar. Mas se as coisas chegam a um determinado ponto, aí não! E se esse membro do Grupo quer de mim qualquer coisa que signifique a menor colaboração dele com o mal, desista, porque não sai. Ele pode matar-me se quiser, mas obter isso de mim, não529. Faço continuamente a vontade dos outros, contanto que os outros façam a vontade de Deus. Se notar que eles fazem a vontade de Deus, estou disposto a todas as concessões; se notar que não, não estou disposto a nenhuma530.

* 528 Chá SRM 17/4/94 529 Chá SB 1/9/88 530 Jantar EANS 13/11/91 224

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Os senhores não calculam o que é o peso de levar nas costas o Grupo. É uma coisa do outro mundo. Quer dizer, é uma montanha para carregar. Como todos os pesos, pesa tanto mais quanto mais permanece nos ombros. É que esse não é o peso do cansaço, mas é o peso que se multiplica. Por aí os senhores compreendem qual é a marcha ascendente dos sofrimentos. É natural que os sofrimentos venham em ascensão. Como pode não ser? Digo isto aos senhores de propósito. Por quê? Como esse peso deve ser visto? Não deve ser visto como algo que desanima, mas como algo que se carrega. E quando prestamos bem atenção, somos no fundo carregados pelo peso. Quer dizer, ele nos eleva tanto e nos ajuda tanto a subir, que vale a pena suportá-lo531.

* Dois ou três dias antes de ter sofrido, em 1975, aquele desastre de automóvel na estrada de Jundiaí, eu me ofereci a Nossa Senhora para o que Ela quisesse, desde que reerguesse o Grupo de um estado de indolência e frieza em que estava. Não havia nenhuma crise ameaçando, não havia nenhuma coisa assim, mas esse estado de indolência e de frieza geral era tudo quanto havia de pior. A própria existência do Grupo estava ameaçada. Esse oferecimento o fiz conversando num sábado à noite com algumas pessoas que estavam em casa. Eu disse que faria esse oferecimento532. Da época do desastre para cá houve, na TFP, vários afervoramentos que talvez não tivesse havido sem o desastre. No total, acho que a situação do Grupo, com a graça de Nossa Senhora, é muito melhor em 1985 do que no tempo do desastre533.

531 CSN 24/4/82 532 Chá SRM 15/12/91 533 CSN 2/2/85 5ª PARTE – FUNDADOR DE UMA FAMÍLIA DE ALMAS ... 225


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6ª PARTE

MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” O temor martirizante de não estar correspondendo ao chamado de Nossa Senhora Antes do “Em Defesa da Ação Católica”, o grupinho do “Legionário” tinha nas mãos a direção de todo o movimento católico leigo de São Paulo. Após o “Em Defesa”, a direção lhe foi arrancada de um modo injusto, iníquo. O grupinho foi perseguido porque queria servir à Igreja. Do movimento pujante, restaram apenas uns preciosos restos. Esse grupinho, que outrora tinha o tempo inteiro ocupado, não tinha mais o que fazer. Certo dia fomos até visitar um couraçado por falta do que fazer, para encher o tempo. Não comentávamos isso entre nós, para conservar o ânimo, pois não tínhamos coragem de confessar entre nós essa realidade. Todos estávamos vendo. Era, portanto, o esmagamento, o ponto negativo mais profundo que pode haver. Daí advieram, não como uma ascensão de um rojão, mas como quem sobe uma via crucis, sucessos e revezes, mas sucessos e revezes sempre pequenos, quando o que nós queríamos era voar. Assim, chegar até onde Nossa Senhora estabeleceu que se chegasse, é uma trajetória realmente muito grande. A razão pela qual eu cria era arquitetônica. Quer dizer, o mundo tinha chegado a tal ponto, que o desfecho não poderia deixar de ser aquele que se esperava. Só havia uma possibilidade de nós não estarmos na ponta daquela vara, por meio da qual a Providência haveria de chegar a este resultado: era a Providência suscitar outros melhores do que nós, maiores do que nós, mais capazes do que nós para fazer o que fazíamos, e então passarmos para o segundo plano. Esta hipótese não me causava a menor dor. Antes, certo alívio, porque então iria correndo servir àqueles que Nossa Senhora pôs na minha frente. E me dedicaria a eles sem nenhum amor-próprio. 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 227


Lembro-me de que pensei o seguinte: “Tomar a posição que tomo, e aceitar o peso que aceitei, é uma coisa tão enorme, que não vejo em torno de mim – por mais que alongue meus olhares ao longe – quem tenha se resolvido a fazer isto. E acho que Nossa Senhora é tão mal-servida neste século, que Ela não tem senão que se contentar conosco. Devemos pedir perdão a Ela por não sermos mais do que somos, e servi-la quanto possamos. Mas como Ela não tem senão a nós, e como é certo que Ela vencerá, Ela vencerá por meio de nós”. Daí a confiança plena de que, por vales e montes, coles et colinas, Nossa Senhora nos levaria até lá. No fim, venceremos. Isto posto, cabia a seguinte pergunta: como Nossa Senhora trata aquele a quem Ela deu a graça desta certeza, nos passos intermediários antes de chegar à meta? Não é com as doçuras de uma certeza contínua. Ora será com as suavidades da certeza, ora com o martírio de uma incerteza. No que está esse martírio? Não é contra a Teologia admitir que Nossa Senhora, desgostosa com nossas insuficiências e nossos perpétuos defeitos, resolva em certo momento dizer: “Tudo o que peço, obtenho; e, portanto, vou pedir a Deus que mande outra gente, em outro lugar, com outras certezas. Mas, convosco, zero! Está cancelado”. E nós não temos certeza de que, a qualquer momento, não saia isto. Não sou mentecapto, sei o que estou fazendo e sei que nos traços gerais estou correspondendo. Mas a questão é: aquele primor de correspondência, aquela integridade de doação de si mesmo, que é simétrica com o que Ela me deu a mim, isto estou pondo? Então, quem sabe se minha infidelidade está na raiz disso? Alguém dirá: “Não, não está”. Eu digo: você acha que não é, com esta certeza, porque me compara com outros. Compare-me com o que eu deveria ser! Aí, como é? Porque Nosso Senhor, a mim, não vai me perguntar se correspondi mais ou menos do que Fulano, Sicrano ou Beltrano. Ele me dirá: “Eu o destinei a ser tal coisa assim, lhe dei as graças para ser tal coisa assim. Agora venha me prestar contas do que fez com essas graças”. Quem sabe se isto pode pesar numa decisão de Nossa Senhora contra o Grupo?534

* 534 Chá ENSDP 2/7/90 228

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Nós já passamos por 500 estrangulamentos – 500 é um número simbólico, mas podia ser 5 mil – em que temos a impressão de que está tudo acabado e não há mais saída. Depois Nossa Senhora vem, ajeita e arranja de um modo ou doutro. E as coisas continuam. Mas sempre o meu pavor é quando as coisas parecem tomar um rumo não desejado pela Providência. Porque, se tivesse certeza de que aquele era o rumo desejado pela Providência, entraria com calma. Em cada estrangulamento vem este receio: “Não terei incorrido em alguma falta de generosidade interna muito profunda, da qual não me dou conta, mas pela qual tenho responsabilidade? E não é por causa disso que a Providência faz o navio singrar para o outro lado?” Aconteceram-me durante a vida uma pilha de coisas que me davam a impressão de que a Providência não quereria. Depois fomos ver e constatamos que Ela queria. Mas na hora, não535.

* Tive aridezes tremendas durante a vida, mas sobretudo na linha do princípio axiológico. Provações contra a Fé, graças a Deus não tenho. Contra a Caridade também não. Contra a Esperança, sim. Uma pessoa que não tenha passado por situações dessas não compreende como isto é um punhal cravado no mais fundo da alma. É muito diferente de ter perdido a fortuna e não sei mais o quê. Não tem comparação536.

* Um fazendeiro no tempo do João Goulart teve uma expressão que não me saiu da cabeça. Disse em um tom de voz meio sentencioso: “Tenho a impressão de que Deus voltou as costas para o fazendão que Ele tem no Brasil”. Entende-se bem tudo o que ele pôs dentro desse dito. É uma falta de confiança. Às vezes somos levados a ter a impressão de que Deus voltou as costas para esse homenzarrão chamado Plinio. Há horas que são assim. Na Paixão de Nosso Senhor, Ele perguntou: “Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me?” – “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”

535 CSN 10/12/83 536 Jantar EANS 26/3/88 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 229


Quer dizer, Ele passou por esta sensação de que Deus lhe voltou as costas. Mas, dentro desta sensação, a fé continua a dizer: “Esta impressão é absurda. Logo, Ele não voltou as costas”. Nesta matéria, há sobretudo uma coisa que é de dilacerar: é a demora. Quer dizer, é quando vemos as décadas se passarem, e essa esperança fica de pé, mas parecida com um estado de inconsciência. Tem-se vontade de perguntar: “Você não percebe que o tempo está passando, não percebe que sua vida vai se escorrendo como a areia numa ampulheta? E que pouco resta na parte de cima da ampulheta, e você ainda quer esperar até a hora de cair o último grão?”537 O receio de ter seguido uma via não desejada por Nossa Senhora Vou improvisar tudo, porque é um tema muito novo, mas do qual vivi a vida inteira. Por causa de vozes interiores e moções da graça, de que até o ano de 1935 não tinha noção, eu possuía uma certeza interior – que só mais tarde soube explicar – de que tinha uma missão e, se normalmente andasse bem, eu cumpriria essa missão. Na leitura do livro de Santa Teresinha do Menino Jesus veio-me à cabeça, o seguinte problema. A sensação dessa minha missão, apesar de todas as dificuldades que ela acarreta, traz uma consolação e, portanto, traz um elemento de ânimo na vida. Já Santa Teresinha não teve consolação nenhuma, e passou a vida inteira na maior aridez possível. Suportar essa aridez foi uma das cruzes dela. A outra cruz foi de uma vida extraordinariamente curta: ela morreu com 24 anos, com uma doença própria a fazer sofrer muito. Isto dava a ela a ideia de que sua vida tinha sido uma quimera, um bluff, que a tal “Pequena Via” era uma vue de l’esprit, era um engano, que não existia isso, não era real. E que, no total, ela morreria com a sensação de ter consumido a vida dela inutilmente, erradamente, morando num convento de freiras tíbias e com superioras cheias de defeitos. A vida dela dentro do Carmelo era isso. Tendo lido isto da vida de Santa Teresinha, pareceu-me que seria uma coisa muito mais útil para a causa católica se me oferecesse como vítima expiatória como ela se ofereceu. Então morrer num tranco só e oferecer 537 MNF 28/3/91 230

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um sacrifício imediato, de utilidade imediata para a Causa católica. Em poucos anos, pelo efeito deste sacrifício, a Contra-Revolução estaria senhora desse terreno. Eu estaria enterrado no cemitério da Consolação, pouco mais ou menos desconhecido, e inteiramente ignorado das gerações seguintes, mas sobre a minha tumba talvez teria brotado a árvore grandiosa do Reino de Maria e da civilização cristã. Meu sacrifício teria conseguido isto. Isto não seria melhor do que fazer todo o esforço de apostolado contra-revolucionário que estava fazendo? Não era melhor – aqui vinha a questão – silenciar essas vozes interiores completamente, não dar atenção a elas em nada e por nada, oferecer-me como vítima expiatória e caminhar para a morte? Isto não seria melhor? Eu tinha horror a essa via de Santa Teresinha. Não que não admirasse essa via – admirava-a profundamente – mas tinha horror de segui-la. Todo o meu feitio se opunha a ela. Muito mais do que isto, sua via implicava na renúncia a essas vozes interiores. E nessas vozes interiores encontrava o meu gáudio, encontrava meu amparo, minha consolação. Bastava-me colocar fora da perspectiva das vozes interiores, e de colocar-me nessa perspectiva de vítima expiatória, que tudo secava. E eu me dizia: “É isto mesmo, é o caminho de Santa Teresinha. Se você tiver coragem, ofereça-se como vítima expiatória e nós vamos ver no que isto dá”. De outro lado, o apelo das vozes se fazia mais premente e ainda mais atraente, mais acariciante. Mas me parecia que, em matérias espirituais, deveria preferir o mais desagradável: “Pois então, é isto mesmo: é a via das vozes que eu não quero! Quero o caminho pior, mais triste, mais horroroso, mais fecundo. Eu prefiro este” 538. Entretanto, não me ofereci como vítima expiatória, porque percebi que havia em mim qualquer coisa que refugava essa ideia da vítima expiatória tal como Santa Teresinha do Menino Jesus. E então não fiz o oferecimento539. Resolvi o seguinte: entrar por uma via que também está ensinada por Santa Teresinha, de nunca pedir nada, nunca negar nada a Deus Nosso Senhor. Aceitar tudo que acontecesse sem fazer o pedido divino: “si fieri potest, transeat a me calix iste”. Não, não tem “fieri potest”, não afaste o cálice, beba-o logo que ele se apresentar, e beba-o até o fim. Consuma o seu sacrifício. Isso me produzia um efeito tão antinatural, tão prodigiosamente antinatural, que era um verdadeiro tormento. 538 CSN 16/07/94 539 Chá SRM 20/9/91 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 231


De fato, cessei de pedir a Nosso Senhor e a Nossa Senhora qualquer coisa. Não pedia nada. Tudo quanto acontecia eram catadupas de coisas muitíssimo próprias a causar apreensão e outras muitíssimo próprias a causar apetência, a estimular o desejo. Portanto, coisas que eu queria e coisas que não queria. Mas eu não pedia nada, para vocês verem o rigor com que procurava levar isto avante. Nisto, indo a uma exposição de livros católicos, deparei-me com o “Livro da Confiança”. E, naquela frase inicial: “Voz de Cristo, voz misteriosa da graça”, encontrei uma espécie de justificação teórica de uma via que, debaixo de certo ângulo, era simetricamente oposta à via de Santa Teresinha. Devorei o livro, mas levantei uma objeção contra ele: “Este livro me convém como uma luva para a mão, mas qual é o fundamento teológico de tudo isto? Nunca li de um livro católico que expusesse isto que está exposto aqui. Objeção não me aparece nenhuma, o livro tem imprimatur – naquele tempo era uma coisa séria um imprimatur –, mas afinal de contas, que valor tem isso?” Na dúvida, disse para mim mesmo: “Não abandonarei minha posição de não pedir nada. Mas fica no horizonte aquela luz, compreendendo que, algum dia, talvez Nossa Senhora me faça compreender que devo sair desse estado penitencial em que estou e adotar o outro caminho”. Tal era a influência que tinha tomado sobre mim o livro de Santa Teresinha, que eu não pedia. Mas dizia a Nossa Senhora o seguinte: “Para ser fiel àquela via, não vos peço tal coisa, mas Vós vedes que, se pudesse, eu pediria. Tomai isto como se fosse uma oração. Se Vos for grato, fazei isto assim”. E tocava para frente a luta toda que vocês conhecem. Assim caminhei por vales e montes, coles e colinas, sem nunca ter certeza de que, a via que tinha escolhido por ser a mais dura, era mesmo a via que Nossa Senhora queria para mim. Até que chegou o momento em que apareceu, em 1967, aquela infecção que se transformou rapidamente em um começo de gangrena. Falarei disso mais detalhadamente a seguir. O fato é que, de algum modo, eu estava pronto para morrer, e a dois passos de falar em Extrema-Unção. Para abreviar a história, houve então aquela graça de Genazzano, que foi uma graça para me dizer diretamente: “Siga as vozes!” Esta graça tinha isto de próprio que me dava a confiança de que, apesar daquela incerteza sobre a via que tinha seguido, cumpriria a minha missão: Nossa Senhora maternalmente me levaria a cumprir a minha missão. E a missão era de, por falta de melhor, Nossa Senhora ter de resignar-se a ter-me como dirigente do esforço contra-revolucionário. E que Ela se contentaria 232

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com isto por misericórdia, por bondade, e que me levaria a que realmente isso se cumprisse. Isto é o clou da questão540. A graça de Genazzano No que consistiu o que chamamos de “a graça de Genazzano”? Na minha entrada no Movimento Católico, li um versículo com esta oração: “Não corteis a minha vida na metade dos meus dias”541. Achei muito bonito este pedido. Quer dizer, a pessoa tem um número de dias determinado pela Providência. E a Providência pode cortar a vida do indivíduo, não lhe dando tudo aquilo quanto originariamente lhe destinara, por essas ou aquelas razões. Então o salmista pedia: “Não corteis a minha vida na metade dos meus dias”. Esta oração se transpunha, no momento daquela doença de 1967, para o seguinte: “Não corteis a minha vida na metade da minha obra, obra que Vós mesma me destes, e para a qual Vós me chamastes”. Em ocasiões anteriores, tinha muito receio de que uma infidelidade minha pudesse levar a Providência a cortar os meus dias542. Mas naquele momento eu não estava pensando nisto. Foi aí que recebi a chamada “graça de Genazzano”543.

* Quando na Congregação Mariana de Santa Cecília começou a brotar a primeira semente do que veio a ser depois a TFP, via que aquilo era uma primeira renovação das minhas antigas esperanças, as quais renasciam da árvore que eu plantara, mas que o sopro da heresia progressista havia jogado no chão. Algumas frutas caíram, umas tantas sementes entraram na terra e outra coisa nascia. Essa coisa que nascia era a TFP. Entravam pessoas novas, recomeçava-se tudo com alguns restos do grupo anterior. E a esperança renascia fulgurante, para logo depois ficar de novo apertado contra a parede: a coisa quebrava, caía. E então parecia que Deus tinha pena de mim e me abria mais uma oportunidade. Eu a aproveitava e ela, mais uma vez, me parecia morrer nas mãos: o grupo 540 CSN 16/07/94 541 Sl. 101, 25 542 SD 16/12/88 543 SD 16/12/88 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 233


constituído voltava a me dar aborrecimentos, a me dar preocupações de toda ordem e das mais amargas À vista disso, para mim se punha o problema: que sentido tem tudo isso? Esses aborrecimentos e essas preocupações produziram a certa altura uma série de efeitos que acabaram por atacar a minha saúde, de maneira que fui acometido de diabetes. Mas eu não percebia que estava diabético544. Chegou uma determinada hora em que não pude mais levantar. Tive que chamar os médicos, eles me examinaram e o resultado foi: o grau normal de açúcar no sangue de uma pessoa sem essa doença seria igual a 100, e eu estava com 500, quer dizer, gravissimamente atacado de diabetes545. Fiquei entre a vida e a morte546. Os médicos chegaram à conclusão de que era preciso levar-me logo – e tinham toda a razão – para o Hospital Sírio-Libanês e me fazer uma amputação. Corri o risco de ter que amputar parte da perna até o joelho. Mas felizmente não chegou até lá, e foi apenas uma parte dos dedos do pé que foi amputada547. Tudo isto aconteceu em dezembro de 1967, tendo eu 59 anos de idade548.

* Algum tempo antes desses fatos todos, eu me pusera a ler incidentalmente o livro “La Vierge Mère du Bon Conseil”, de Mons. Georges F. Dillon549. Durante a leitura, experimentei uma sensível consolação. Antes que eu adoecesse, tendo um amigo meu de Belo Horizonte, Dr. Vicente Ferreira, viajado para a Itália, teve este a gentileza de me trazer de Genazzano uma estampa representando o venerando quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho. Essa estampa me chegou no momento da provação espiritual acima mencionada e que me fazia sofrer muito mais do que a enfermidade física. Estava certo de que meu falecimento, naquela conjuntura, acarretaria a ruína do esforço que começava a vicejar com vigor. Daí um estado de verdadeira ansiedade a propósito das incertezas de minha situação clínica e cirúrgica. 544 SD 25/4/92 545 SD 25/4/92 546 Palavrinha 29/11/90 547 SD 25/4/92 548 Declaração de Dr. Plinio, 10/5/1985 549 Desclée de Brouwer, Bruges, 1885. 234

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No dia 16 de dezembro, outro amigo, Dr. Martim Afonso Xavier da Silveira, fez-me a entrega da aludida estampa, em nome do Dr. Vicente Ferreira. Quando a fitei, tive a inesperada impressão de que a figura de Nossa Senhora, sem mudar embora em nada, exprimia para comigo inefável e maternal doçura, e de que Ela me confortava e me incutia na alma, não sei como, a convicção de que a Santíssima Virgem me prometia que eu não morreria sem ter realizado a obra desejada. O que me invadiu de suavidade a alma. Hoje conservo intata essa convicção. E, pelo favor de Nossa Senhora, essa obra tem prosperado admiravelmente, autorizando a esperança de que alcance sua meta. Quando fui agraciado com o sorriso-promessa de Nossa Senhora de Genazzano, nada disse aos circunstantes. Só muito mais tarde falei disto a amigos. Dois destes que me faziam companhia no hospital quando eu recebera a estampa, ao ouvirem minha narração, disseram que haviam notado que a figura da Mãe do Bom Conselho me fitava com muito comprazimento, o que lhes chamara muito a atenção. Eles não haviam notado, porém, o sorriso-promessa a que aludi. Graças também à Santíssima Virgem, minha saúde se recompôs então de modo a surpreender o cirurgião. E a segunda operação se tornou desnecessária550.

* No que diz respeito à graça de Genazzano, não tenho dúvida nenhuma de que o fator preponderante foi o sobrenatural. De tal maneira recebi uma graça ali, cuja ocasião era aquela imagem, que não posso imaginar ter sido uma mera ação de um anjo exercida sobre mim a propósito da imagem, mas teria que haver uma graça de caráter sobrenatural, sem a qual um incremento na devoção a Nossa Senhora não seria possível. Tenho certeza de que foi sobrenatural pelo efeito que produziu. Porque a santificação é uma coisa sobrenatural. E melhorei um pouco ali551.

* Eu era muito menos sereno antes da graça de Genazzano. Desejaria ter sido mais, mas a graça de Genazzano deu-me uma serenidade maior. 550 Declaração de Dr. Plinio, 10/5/1985 551 CM 11/11/90 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 235


Isto porque, tendo-a recebido, eu tinha, no fundo, uma promessa de Nossa Senhora. Nossa Senhora me aplacou a respeito de uma porção de coisas más que poderiam suceder, e sei que não sucederão apesar de prováveis. Nas situações difíceis, fico à espera de uma ação de Nossa Senhora, que sempre vem. Ela nunca faltou. Evidentemente, essa promessa não evita que eu sofra muito com os acontecimentos. Esses acontecimentos me fazem sofrer de fato. Os senhores me dirão: “Mas, doutor Plinio, isto é uma contradição”. Não é. Pois não sei que coisas podem me suceder pelo meio, nocivas à nossa causa. Nossa Senhora prometeu que minha vocação se realizaria. Mas há amplitudes no realizar essa vocação. E não posso ser indiferente ao modo como ela se realiza. E sinto profunda agonia com o que se dá. Assim, vivo em um suspense, pronto a tomar qualquer atitude diante daquilo que é o mais provavelmente previsível que se desencadeie contra a nossa causa. Então, tenho hipóteses marcadas, providências estudadas. Quer dizer, não há um mistério nisso, é uma atitude comum. É o que faço. Não pode ser outra coisa, não adianta ser outra coisa552.

* Depois daquela graça de Genazzano, sobrepaira em minha alma a convicção de que, apesar do vaivém mais terrível, mais embaralhado e mais complicado que possa haver, prevalecerá o desígnio de Nossa Senhora, que é a vitória da Contra-Revolução. Dessa maneira, a primeira obrigação é a da tranquilidade absoluta, quer dizer, não me permitir nenhuma dúvida a esse respeito, pois tenho essa promessa, da qual não duvido nem um pouco que tenha sido uma promessa de Nossa Senhora. Quer dizer, por paus e por pedras, seja lá de que modo for, chegaremos ao nosso destino. Nossa Senhora não nos abandonará. Devemos então, com muita confiança, enfrentar tudo o que aparecer553. A estampa de Nossa Senhora de Genazzano, eu a mandei enquadrar e se encontra em cima de um móvel do meu quarto, em frente à minha cama. Osculo-a de manhã e à noite, antes de dormir. De manhã, quando me levanto, olho-a e rezo a ela detidamente. À noite, quando vou me deitar, tenho a perspectiva de dormir na presença daquela estampa que uma vez deixou transparecer para mim o 552 CSN 26/8/89 553 CSN 19/1/91 236

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sorriso da Mãe de Deus, mas também a promessa. Durmo no meio das maiores preocupações, mas tranquilizado por isto. A promessa fica de pé, e tem-se confirmado não sei quantas vezes. Chegará o momento em que tudo se realizará. Confiança!554 “As vozes não mentiram” Dos vários modos de provocar desinteresses por esta vida, um dos mais certos é avisar ao indivíduo de que ele vai morrer dentro de breve prazo. Se há uma coisa que absorve a atenção de um homem é a ideia de que ele vai ter uma morte tormentosa. E das várias mortes tormentosas possíveis, uma das que mais me causam assombro é morrer queimado vivo. É uma coisa horrível. Uma pessoa que vá para a fogueira gritando coisas ainda aos vivos, revela um interesse pelo curso das coisas do mundo e uma ênfase de viver verdadeiramente extraordinários. Desta ênfase deu manifestação extraordinária Santa Joana d’Arc. Ela tinha todos os direitos de estar indignada com o gênero humano. Ela não era propriamente francesa. Era da Lorena, pequeno estado-tampão entre a França e a Alemanha. Ela saiu da Lorena convocada por aquelas vozes de Santa Catarina, de Santa Margarida e do Arcanjo São Miguel, que falavam a ela enquanto poeticamente apascentava o rebanho. E lhe recomendavam ir salvar uma pátria – a França – que não era dela. Santa Joana vai lá e encontra um quadro abaixo da crítica. O rei da França era um homem que não combatia a favor de nada, não dirigia nada, um bobo. Ela lhe prova por meio de um milagre que era o verdadeiro rei da França e o convence de dar-lhe apoio para começar a luta para expulsar os ingleses. Começa a luta, multiplicam-se as graças, ela ganha batalhas extraordinárias. De repente, é traída e entregue aos ingleses. Começa a ser julgada pelo Tribunal da Inquisição como feiticeira. O rei da França não intervém e ela é julgada por um tribunal da Igreja presidido por um arcebispo que algum tempo depois recebe uma carta da Santa Sé anunciando sua promoção “para que o perfume das tuas virtudes possa se estender mais largamente”!

554 SD 16/12/88 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 237


Sofre um longo e humilhante processo em que é a Igreja, por meio da Inquisição, que a condena à morte. Os representantes de tudo aquilo a que ela se entregou, a que ela se dedicou, ou a perseguem, ou se desinteressam dela. Os senhores podem conceber que uma pessoa nestas condições esteja farta de viver. E, com o temperamento inocente e vigoroso que ela possuía, que desejasse dizer alguma coisa de acre antes de morrer: “Vocês pensam que me fazem mal? Liberto-me de vocês! Ó rei, tenho tal coisa para te dizer. Ó bispo, tenho tal coisa para te dizer. Ó vós todos ingleses, agora vós, tal outra coisa”. Nada! Ela é levada em uma carreta. Havia o murmúrio de que aquelas vozes que ela ouvia eram fantasia e tinham mentido, porque ela não tinha posto os ingleses fora da França. Ainda havia uma parte da França ocupada pelos ingleses555. Os senhores estão vendo a perplexidade no espírito dela. “Como é? Aquelas vozes me teriam mentido? Minha vida, meu Deus, não teria sido senão um engano? Aquela ajuda que vós me destes, teria sido uma ilusão? É a Inquisição que me condena... É um tribunal eclesiástico, dirigido por um arcebispo, e composto por teólogos e por homens de lei... Será que não tive um engano, ó meu Deus?” Quando lançaram o fogo, e começaram os estertores da morte, Santa Joana parece ter tido uma visão, e de dentro das chamas viram-na gritar para o povo: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Ou seja: “Há um mistério, mas morro contente, porque faço a vontade de Deus!” E o mistério se explicou. Ela estava morta, mas as vozes não tinham mentido. A ofensiva que ela tinha conduzido contra os invasores ingleses era uma ofensiva tão tremenda, que eles não ousaram resistir ao pequeno exército francês. O ímpeto tinha derrubado o poderio inglês na França, mas ela morreu antes de ver a muralha cair. As vozes não mentiram! Andaram devagar, mas Santa Joana d’Arc tornou-se o próprio símbolo da glória da França! E um símbolo magnífico da glória da Igreja!556 Com o tempo, verificou-se o sentido religioso de sua missão. Não faltou muito tempo e a Inglaterra caiu no protestantismo. E se a Inglaterra não tivesse sido expulsa do território francês, a França também teria caído no protestantismo, o que seria um mal incalculável para a civilização cristã e para a Igreja Católica557. 555 SD 27/05/81 556 SD 20/10/84 557 SD 14/11/92 238

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* Eu me recrimino muito de que as nossas coisas não estão melhores porque talvez eu não corresponda à graça como devo. Entretanto, tenho a quietas de quem sabe que um certo nível de suficiência estou dando. Tenho a impressão de que, se tivesse nascido no tempo de Louis Veuillot, eu morreria em paz ouvindo os sinos da Igreja da minha aldeia. Porque vou morrer vendo alguns companheiros de Contra-Revolução que descem da diligência para me saudar pela última vez. E, aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, diante da qual esteja acesa uma lamparina que exprima meus votos diante d’Ela, morreria em paz por ter dado, naquela ocasião, o coeficiente que tinha de ter dado para ser o que devia ter sido. Hoje é diferente. É a esperança do Reino de Maria, e a noção do esboroamento total do que é o reino do demônio, que me dão a esperança de morrer em paz no Reino de Maria. A morte traz surpresas: Santa Joana d´Arc esperou uma morte diferente da que teve, mas ao menos pôde, de um modo minúsculo, dizer que “as vozes não mentiram”. Eu, que nunca ouvi vozes sensíveis, diria que as esperanças não mentiram558.

* Uma característica dos membros do Grupo é a esperança, que se manifesta em um presságio de que os acontecimentos que Nossa Senhora anunciou em Fátima não demorarão. E a característica de um membro tíbio do Grupo é a ideia de que esses acontecimentos estão demorando tanto, que não sabemos se, de fato, esta linha traçada com lógica a partir da visão da R-CR é a linha que a Providência vai seguir. A graça não nos promete que os acontecimentos de Fátima venham logo, mas a perspectiva, a esperança, a confiança de que eles acontecerão, nos une a Nossa Senhora. E a não-perspectiva disso, na aparência, nos separa d’Ela. É verdade que essa não-perspectiva é carregada com uma paciência incondicional, e dizendo: “Se for o que Ela quer, isto farei, a isto me dobrarei. Compreendo que a demora pede um superávit de dedicação para o qual posso não sentir forças no momento. Mas sei que, confiando em 558 MNF 28/08/81 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 239


Nossa Senhora, acabo tendo os recursos para dar esse superávit. Portanto, confio n’Ela. E ainda que esses eventos venham me colher quando estiver passando para a eternidade, vendo que eles chegaram, diria como Santa Joana d’Arc: ‘As vozes não mentiram!’ e morreria tranquilo. Mais ainda. Se no momento de minha morte visse que esses acontecimentos não chegaram, também dormiria tranquilo, dizendo: ‘As vozes não mentiram!’”559 Os meus 86 anos são um argumento formidável a favor do demônio, de que não verei o Reino de Maria antes de fechar os meus olhos. Devo confiar em Nossa Senhora que isto não será assim, por causa da graça de Genazzano, mas é muito por causa desta luz interior. Porém, essa confiança vai a tal ponto que, se chegasse a morrer nessas condições, morreria em paz, dizendo: “As vozes não mentiram!”560.

* É possível que Santa Joana d’Arc tivesse no espírito uma tentação de dúvida, até o momento em que a ouviram bradar de dentro do fogo: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!”. Era a suprema mensagem que ela deixava aos homens. Para nossa edificação até o fim dos séculos, bradou da fogueira para o futuro: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!”. Quisera que o brado dela chegasse até o fundo das trevas aonde vamos entrar, e que compreendêssemos que poderemos ser colocados em situações absolutamente tão aflitivas e tão angustiantes como as dela, mas que “as vozes não mentem!”. Nós não temos vozes, mas temos as graças que sentimos e o apelo de nossas almas. Se estivermos bem firmes nesta convicção, acho que podemos largamente caminhar, e até entrar pelo estuário da morte, sem tremer561.

* No futuro, a Revolução poderá nos preparar uma surpresa, contra a qual fiquemos esmagados como se houvesse atrás de nós uma locomotiva, e na frente um paredão. A locomotiva andará, andará, andará, até nos esmagar no paredão. Nesse dia, o que fazer? Só Deus sabe. 559 Despacho Espanha 3/10/94 560 MNF 26/12/94 561 EXT 11/10/81 240

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Os que nessa hora pertencerem à TFP, fizerem parte direta ou indiretamente dela, esses terão uma responsabilidade de consciência tremenda diante de Deus. E o digo sabendo o que estou dizendo, coram Domino, na presença de Deus, e é a seguinte: Uma coisa não pode ser surpresa, uma coisa é certa e é de um alcance capital. É que a TFP tem de enfrentar essa surpresa – seja ela qual for – repleta e estuante de confiança em Nossa Senhora. Em segundo lugar, cada membro da TFP individualmente tem obrigação de colaborar para que, no momento em que estivermos entre a locomotiva e o muro – já estamos tão perto dessa situação – possamos ter aquela integridade altaneira e combativa de um Godofredo de Bouillon, de um Rei Balduíno o Leproso, de Santa Joana d’Arc. Quer dizer, aconteça o que acontecer, temos que saber bradar: “As vozes não mentiram!” O que é preciso antes de tudo e acima de tudo é a confiança. Portanto, união com Nossa Senhora, e por meio d’Ela, com o seu Divino Filho, com o seu Divino Esposo, e com o seu Divino, com as três pessoas da Santíssima Trindade. E uma só vontade: esmagar a Revolução e instaurar o Reino de Maria562.

* Depois destas palavras, no que darão as coisas? Não sei. De uma coisa estou certo e tenho certeza de que D. Bertrand e todos os senhores estão certos: Daqui a “x” anos, sejam eles cinco, cinquenta ou cem, alguém dirá: “Não sei no que é que deu, mas uma coisa eu sei: Nossa Senhora venceu!”563

562 RR 1/10/94 563 RR 19/08/95 6ª PARTE – MISSÃO CUMPRIDA: “AS VOZES NÃO MENTIRAM” 241


242

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Índice onomástico A

Abraão, Patriarca (AT), 124 Adão, Patriarca (AT), 125-138 Affonseca e Silva, Dom José Gaspar, 91-96 Agostinho, Santo, 104, 130 Al Capone, Alphonse Gabriel, 93 Aquino, São Tomás de, 57-127-152 Arruda, Dr. José Gonzaga de, 92 Assis, São Francisco de, 127 Atanásio, Santo, 127 Átila, Rei dos Unos, 186-187

B

Balduíno IV, Rei, 241 Batista, São João (Profeta AT), 297 Bento, São, 127 Blemke, Frei Batista, 112 Bonald, Visconde Louis-Gabriel-Ambroise, 55 Bouillon, Godofredo de, 88-241 Brito Filho, Dr. Paulo Corrêa de, 220

C

Cabral, Dom Antonio dos Santos, 95 Calippe, Abbé Charles, 55-57 Calles, Plutarco Elías (ditador mexicano), 36 Castro Magalhães, Da. Rosée, 221 Catarina, Santa, 237 Cid Campeador, (El Cid), 211 Cirilo, Santo, 127 Clemenceau, Georges Eugène Benjamin, 146 Correia, Alexandre, 33

D

d’Arc, Santa Joana, 127-237-238-240-241 De Maistre, Conde Joseph-Marie, 55 De Mattei, Prof. Roberto, 128 Dillon, Mons. Georges F., 234 Diógenes de Sinope (Filósofo grego), 209 Dom Chautard, Jean-Baptiste, 63-64-65-66-67-73 Domingos de Gusmão, São, 9-127

ÍNDICE ONOMÁSTICO 243


E

Elias, Santo (Profeta AT), 111-112-115-116-117-118-119-120-121-122-123-124-125-165 Eliseu, Santo (Profeta AT), 119-122-123 Eva, Santa (AT), 138

F

Felipe II, Rei, 183 Fernando III, São (Rei), 148 Ferreira, Dr. Vicente, 234-235 Francisco José, Imperador, 213 Fred Astaire (Frederick Austerlitz), 29 Frossard, André, 219-220 Furquim de Almeida, Prof. Fernando, 92-98

G

Gabriel, São (Arcanjo), 137 Giotto, di Bondone, 178 Giovanini, Pe., 51-54 Goffiné, Pe. Leonard, 42-43 Gregório VII, São (Papa), 127 Grignion de Montfort, São Luís Maria, 68-69-70-116-123-203-218-219

H

Harink, Frei Bonifácio, 114 Heldmann, Fraülein Mathilde, 65 Henoc, Patriarca (AT), 124-125

J

Jó (AT), 96-97-102-103-191 João da Cruz, São, 112 João Paulo II, Papa, 36-219 Journet, Cardeal Charles, 127 Judas Iscariotes (Traidor), 178-180

K

Kok, Dom Teodoro, 95

L

Larrain Campbell, Gonzalo, 128 Leão I, São (Papa), 186 Leão XIII, Papa, 51-55 Leo, Madame, 166 Leopoldo e Silva, Dom Duarte, 32-67-91 Loyola, Santo Inácio de, 58-59-62-84-216 Lúcia dos Santos, Irmã (vidente de Fátima), 37 Luís Gonzaga, São, 175 Luís XVI, Rei, 211 244

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


M

Malet, Albert (Historiador), 183 Mariaux, Pe. Walter (SJ), 106 Mayer, Dom Antonio de Castro, 48-94-96-105-106-126-127 Miguel, São (Arcanjo), 9-237 Motta, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos, 96-104 Mozart, Wolfgang Amadeus, 175

N

Nogueira da Gama, Prof. Alcebíades Delamare, 32

O

Obregón Salido, Alvaro, 36 Orleans e Bragança, Dom Bertrand, 153-241 Orleans e Bragança, Dom Luiz (Chefe da Casa Imperial), 153

P

Pacheco Salles, Prof. José Benedito, 92 Paleologue, Emb. Maurice, 40 Paulo, São (Apóstolo), 65 Pedrosa, Mons. Felisberto Marcondes, 41 Pessoa, Da. Mary, 85 Pessoa, Pres. Epitácio Lindolfo da Silva, 85 Pinamonti, Pe. João Pedro de (SJ), 58 Pio X, São (Papa), 57-171-186 Pio XI, Papa, 34 Pio XII, Papa, 105-218

R

Ribeiro dos Santos, Da. Gabriela, 62-63 Ribeiro dos Santos, Da. Lucilia, 41-77-102-151-202 Ribeiro dos Santos, José (Reizinho), 18-20-23-40

S

Saint Laurent, Abbé Tomas, 107 Sarto, Giuseppe Melchiorre (São Pio X), 187 Sigaud, Dom Geraldo de Proença, 94-105 Sobral Pinto, Heráclito Fontoura, 90 Stuart, Rainha Maria (Escócia), 211

T

Teresa de Ávila, Santa, 127 Teresinha, Santa, 60-68-69-70-82-88-112-159-230-231-232 Tom Mix (Thomas Hezikiah Mix), 29 Tristão de Athayde (Alceu de Amoroso Lima), 90-168

ÍNDICE ONOMÁSTICO 245


U

Ulhôa Cintra, Dr. Paulo Barros de, 34-96

V

Van Hinten, Frei Jerônimo, 112-113-114 Veiga dos Santos, Prof. Arlindo, 31 Veuillot, Louis, 55-239 Vieira, Pe. Antonio (SJ), 129

X

Xavier da Silveira, Dr. Martim Afonso, 235

246

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Índice de lugares A

Abadia de Aiguebelle, 63 Alameda Glete, 21 Aldeia de marzipã, 211 Avenida Angélica, 54

B

Bairro Bom Retiro, 51 Bélgica, 33 Boêmia, 165 Brasil, 32-35-36-37-64-90-94-108-116-117-136-229

C

Castelo de Chambord, 189 Cemitério da Consolação, 231 Cine República, 21 Cine Roma, 23-24 Colégio São Luís, 22-59-106-190 Colégio Universitário da Faculdade de Direito (Largo São Francisco-SP), 96 Congregação Mariana de Santa Cecília, 40-43-91-233 Consulado do México, 36 Cova da Iria, 116

E

Espanha, 105 Estados Unidos, 144 Europa, 55-90-106-108-109-110-136

F

Faculdade de Direito (Largo São Francisco-SP), 21-25-32-50-54 Faculdade São Bento, 32-77 Faculdade Sedes Sapientiae, 77 França, 63-146-183-237-238

G

Genazzano (Itália), 234

H

Hollywood, 167 Horto das Oliveiras, 192-193-194 ÍNDICE DE LUGARES 247


I

Igreja da Ordem Terceira do Carmo, 111 Igreja de Santa Cecília, 38-62 Igreja de Santo Antonio, 31 Igreja de São Francisco (SP), 50 Igreja do Coração de Jesus, 27-42-203 Igreja do Coração de Jesus (RJ), 84 Israel, 118-119-122-140 Itaici (SP), 96

J

Jundiaí (São Paulo), 225

L

Lorena, 237

M

Monte Tabor, 118-165

O

Ordem de Cister, 63 Ouro Preto, 114

P

Palácio dos Campos Elíseos, 29 Pamplona, 59 Paraíso Terrestre, 124 Paris, 155 Pernambuco, 174-191 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 32-77

R

Rio de Janeiro, 80-84 Rua Barão de Limeira, 21 Rua Barra Funda, 23 Rua Benjamim Constant (Rio), 84 Rua Itacolomi (SP), 54 Rua Martiniano de Carvalho, 113 Rússia, 37-74

S

São Paulo (SP), 19-34-35-36-38-40-51-55-75-91-92-95-102-103-104-109-146-197-227 Sede da rua Aureliano Coutinho, 102-113 Sede da rua Martim Francisco, 96-101-105 Sede da rua Vieira de Carvalho, 112 Sede de São Milas, 92

248

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


Seminário de Amiens, 55 Sevilha, 148

T

Teatro São Pedro, 23 Trapa de Sept-Fons, 63

U

Universidade de Louvain, 33 Universidade do Brasil, 32

V

Veneza, 166

ÍNDICE DE LUGARES 249


250

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL



252

MEU ITINERÁRIO ESPIRITUAL


E ste segundo volume des=ve o itinerário espiritual d e Plínio Corrêa d e Oliveira na fase de amadurecimento de sua vocação e a solidão que teve de en fren tar na juventude, até r o primeiro florescimento e..Uerno .__ dela no seio das Congregações Ma• 0 rianas e do ?tlovimento Católico. Relata também os grandes av anços espi• rituais que ele fez graças à leitura de alguns livros e muito not adamente do " Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima V1rgem", de São Luís Grignion de Montfort. Aborda a inda a intuição que ele teve de u m a n1issão u niversal de. car4ter profético. E como, no trilhar este caminho, ele se tomou o fundador de uma família de almas e de uma estirpe espiritual.

Ele realizou inteiramente o perfil moral do contra-revolucionário descrito em sua obra magna, "'Revolução e Contra-Revolução" : - Conheceu a Revolução, a ordem e a Contra-Revolução em seu espírito, suas doutrinas, seus métodos respectivos.

- Amou a Contra-Revolução e a ordem cristã, odiou a Revolução e a " anti-ordem". - Fez desse amor e desse ódio o eL'\:o em tomo do qual gravitaram todos os seus ideais, preferências e atividades.

Por isso, P linio Corriia de Oliveira é, para a estirpe dos seus discípulos e daqueles que os sucederão no futuro, um verdadeiro paladin o e o guia espiritual da Contra-Revolução na sua plenitude. ISSN97U>&9510--09-3

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Articles inside

“As vozes não mentiram”

12min
pages 238-254

A graça de Genazzano

7min
pages 234-237

O temor martirizante de não estar correspondendo ao chamado de Nossa Senhora

5min
pages 228-230

A paternidade espiritual do fundador

8min
pages 222-227

O receio de ter seguido uma via não desejada por Nossa Senhora

6min
pages 231-233

Consagração a Nossa Senhora nas mãos do fundador Adendo do compilador

3min
pages 220-221

Os discípulos devem discernir o “unum” do espírito do fundador

8min
pages 215-219

O fundador deve ser um símbolo vivo de sua obra

3min
pages 213-214

Pela originalidade de seu carisma, o fundador tem que ser seu próprio formador

5min
pages 210-212

O modo de fazer a ação de graças após a recepção da Sagrada Comunhão

6min
pages 206-209

A desconfiança e a severidade em relação a si mesmo

5min
pages 186-188

O espírito de sacrifício até o holocausto e o desejo de reparação

7min
pages 189-192

a combatividade contra-revolucionárias

16min
pages 177-185

O modo de rezar e pedir

1min
page 201

A atitude diante de Deus e de Nossa Senhora

8min
pages 202-205

O amigo da Cruz que se prepara para carregá-la prevendo a dor

9min
pages 193-197

O senso da honra católica

5min
pages 174-176

A reversibilidade do “tal enquanto tal”

5min
pages 171-173

A procura do sublime e do sacral

13min
pages 164-170

O espírito aristocrático

3min
pages 147-148

A “luz primordial” resumitiva

3min
pages 160-161

A combatividade cavalheiresca

6min
pages 149-152

Os componentes essenciais desse “unum”

3min
pages 139-140

A castidade

1min
page 146

A robustez da Fé

9min
pages 141-145

A pedra angular do amor à grandeza

5min
pages 157-159

A identificação com a Contra-Revolução

7min
pages 134-137

O “unum” da alma de quem foi chamado a simbolizar a Contra-Revolução

1min
page 138

Papel do filão “eliático” na história

3min
pages 125-126

O reconhecimento do caráter profético dessa missão

8min
pages 127-131

“Pater et dux” dos contra-revolucionários

3min
pages 123-124

Entusiasmo pelo Profeta Elias e o zelo pela causa de Deus

10min
pages 118-122

Devoção a Nossa Senhora do Carmo

1min
page 117

O receio de ter que assumir a liderança da Contra-Revolução

1min
page 111

Uma vocação contra-revolucionária

1min
page 108

O lírio nascido do lodo, durante a noite e sob a tempestade

7min
pages 104-107

O anseio por um líder contra-revolucionário

3min
pages 109-110

Novamente escrúpulos e a provação axiológica

5min
pages 101-103

A pior provação: ser perseguido por aqueles mesmos que se quis servir

5min
pages 98-100

O “grupinho do Plinio”: Jó em cima do monturo

2min
page 97

A degringolada como vingança pelo livro “Em Defesa da Ação Católica”

5min
pages 94-96

da Ação Católica de São Paulo

3min
pages 92-93

O encontro do equilíbrio

1min
page 89

Um lenitivo: a leitura do “Livro da Confiança”

9min
pages 84-88

Um novo e elevado patamar após a leitura do “Tratado da Verdadeira Devoção” e a consagração a Nossa Senhora como escravo de amor

8min
pages 69-73

Firma-se o ideal de dedicação integral pela opção do celibato – Choque com um veio de mediocridade no seio das Congregações Marianas

6min
pages 74-77

O combate ao orgulho

5min
pages 66-68

Os frutos da leitura do livro “A alma de todo apostolado”

5min
pages 63-65

Um quiproquó a partir da leitura da “História de uma alma”

2min
page 83

A leitura da “História de uma alma” e a aspiração à santidade

3min
pages 61-62

A provação de crer-se obrigado a abandonar, por obediência ao Papa, as convicções monárquicas e ter que aliar-se à República

8min
pages 55-58

Algumas consolações que sustentaram Dr. Plinio nesta travessia

1min
page 28

com a superficialidade e a brincadeira

6min
pages 17-19

A ruptura definitiva com o mundo revolucionário

9min
pages 38-42

Algumas renúncias fundamentais

1min
page 46

A terrível cruz da incompreensão e do isolamento total

12min
pages 20-26

A ascese para afirmar sua varonilidade sem transformar-se num “Esaú”

2min
page 27

Desenvolvimento da vida de piedade

4min
pages 44-45
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