Jornal da ABI 366

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quedistas arregimentados anos antes pela repressão, transformaram-se em braços operacionais de grupos terroristas de extrema direita. Trinta anos depois do atentado que vitimou o próprio autor do atentado e feriu gravemente o então Capitão Wilson Machado, O Globo localizou a agenda e identificou metade dos 107 nomes e telefones anotados pelo sargento. De oficiais graduados a soldados, de delegados a detetives, Rosário tinha contatos em setores estratégicos, como o Estado-Maior da PM e a Chefia de Gabinete da Secretaria de Segurança, além de amigos ligados a setores operacionais, como fábrica de armamento e cadastros de trânsito”, afirma a matéria, em outro trecho. A grande e imediata repercussão da reportagem de Chico Otávio e Alessandra Duarte é prova de como o assunto ainda mexe com as pessoas. De que ainda há o que ser revelado sobre os tristes acontecimentos daquela noite. E do quanto é importante que a imprensa não abra mão

de seu papel de investigar o passado – até mesmo para ajudar o País a sarar feridas e a planejar o seu futuro. “De fato, o impacto da matéria foi muito grande. Não só dentro do jornal, mas junto a outros jornalistas e entidades do setor, como o professor Nilson Lage e o Observatório da Imprensa, que comentaram a matéria. Sem falar nos comentários dos leitores, pelo site do jornal ou então nos mandando e-mails e telefonando para nós. Alguns ligaram para passar mais informações”, destaca ela. O jornal O Globo, adianta Alessandra Duarte, seguirá na investigação da pauta. “Esse é um assunto ainda com bastante coisas a se explicar. Como aconteceu há muito tempo, chegar a essa explicação fica mais difícil. E, como aconteceu num período de repressão, chegar aos esclarecimentos fica ainda mais difícil pelo fator medo. Porque, mesmo depois de tanto tempo, cheguei a falar com gente – que atuava na época no meio militar ou po-

licial – que não quis falar, usando o argumento de que se tratava de uma questão de segurança nacional.” Informações desencontradas, ou falseadas, são outro entrave histórico para a elucidação dos fatos ocorridos naquela noite, como aponta a reportagem de O Globo. “Relatório confidencial da Aeronáutica mostra que o serviço secreto da instituição criou uma versão para tentar inocentar os militares envolvidos no atentado ao Riocentro. O documento confidencial – escrito no IIIº Comando Aéreo Regional (Comar) em 7 de maio de 1981, uma semana após o atentado – desqualifica a informação, divulgada pelos jornais da época, de que a explosão foi resultado de uma fracassada tentativa de militares de extrema direita de cometer um atentado e, com isso, forçar um retrocesso na incipiente abertura política no País. O inquérito, concluído em 2000, responsabilizou o Capitão Wilson Machado e o Sargento Guilherme

Pereira do Rosário pela fracassada manobra”, diz o texto. Na linha de especulações, peço a Alessandra Duarte que arrisque prever quais teriam sido as conseqüências políticas daquela noite, caso o artefato não tivesse explodido no colo do militar e – pior dos cenários – feito centenas de vítimas junto ao público dos shows. “É difícil responder a esse tipo de pergunta sobre realidades paralelas... Será que isso afetaria o ritmo da abertura política? Será que os responsáveis pela bomba jogariam a responsabilidade em outro colo? Não sei, prefiro me ater ao que houve de fato”. Ok, aceito a resposta, mas não resisto. E, de repórter para repórter, faço mais uma provocação. Supondo que Guilherme Pereira do Rosário tivesse se ferido, e não morrido na explosão. Que pergunta faria a ele? “‘Então, quer dizer que era o fio vermelho, em vez do verde?”, devolve Alessandra, rápida no gatilho. Pois é. Aí está mais uma pergunta sem reposta.

A Comissão da Verdade, cada vez mais necessária Pesquisador nascido num presídio político de Brasília nos anos 1970 denuncia que dois funcionários da Agência Brasileira de Inteligência-Abin participaram de torturas. MÁRIO A UGUSTO JAKOBSKIND A questão da votação no Congresso da Comissão da Verdade continua a provocar polêmica, e a cada dia surgem novas denúncias sobre participação de agentes do Estado brasileiro que torturaram e mesmo assassinaram opositores durante o regime ditatorial instaurado no Brasil a partir da derrubada do Presidente constitucional João Goulart. O Deputado Brizola Neto, do PDT do Rio de Janeiro, requereu urgência para a votação da matéria, a fim de que os brasileiros possam virar uma página de sua História e consolidar a democracia. É possível que o pronunciamento do parlamentar — neto do falecido Governador do Rio por duas vezes, Leonel Brizola, um dos políticos mais perseguidos pelos militares que tomaram o poder pós-abril de 64 — se deva a uma das mais graves denúncias surgidas nos últimos tempos sobre a questão da violação dos direitos humanos. A denúncia foi feita por Paulo Fonteles Filho em longa entrevista na rádio Brasil Atual e incrimina dois atuais agentes da Agência Brasileira de Inteligência-Abin no Estado do Pará: o ViceSuperintendente do órgão, Magno José Borges, e Armando Souza Dias. Segundo Fonteles Filho, os dois agentes participaram diretamente de torturas e assassinatos de militantes da guerrilha do Araguaia nos anos 70. Na ocasião, centenas de integrantes do foco guerrilheiro na região, que atualmente

integra o Estado de Tocantins, foram presos e mortos em circunstâncias até hoje oficialmente mantidas ocultas pelos militares responsáveis pela repressão. Há denúncias de fuzilamentos sumários e até mesmo de esquartejamentos de guerrilheiros por oficiais do Exército. Um dos poucos que conseguiram sobreviver nesse período foi o ex-Deputado José Genoíno, do Partido dos Trabalhadores (PT), atualmente assessor do Ministro da Defesa, Nélson Jobim. Fonteles Filho não se resume em acusar os dois agentes que hoje servem à Abin. Ele garante que o recentemente falecido Senador Romeu Tuma, do PTB de São Paulo, participou diretamente das atrocidades no Araguaia e na época se apresentava na região como “Doutor Silva”. Falecido em outubro do ano passado, Tuma chefiou por longo tempo durante a ditadura o Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo-Deops e a Polícia Federal no mesmo Estado, tornando-se Diretor-Geral do órgão no Governo Collor de Mello. Ele já tinha sido acusado por vários opositores de participar diretamente de sessões de tortura. De acordo com o livro Habeas corpus, lançado em janeiro deste ano pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, Tuma participou diretamente na ocultação de cadáveres de militantes políticos assassinados sob tortura e no falseamento de informações que poderiam levar à localização dos corpos dos desaparecidos políticos. Ao ingressar na política em l994, tornou-se

senador por dois mandatos de oito anos cada. Em 2010, não conseguiu se reeleger obtendo a quarta colocação e poucos dias depois do término da eleição morreu por problemas cardíacos. Fonteles Filho nasceu num presídio político de Brasília no início dos anos 70, porque sua mãe e o pai se encontravam presos por serem opositores do regime ditatorial. Há 15 anos ele pesquisa os acontecimentos do período em que o Exército reprimiu o movimento armado organizado pelo PCdoB e que nem chegou a ser deflagrado. Os familiares dos mortos até hoje procuram localizar os restos mortais das vítimas e a maioria não obteve êxito. Recentemente, a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos deu ganho de causa a uma petição dos familiares e exigiu que o Estado brasileiro esclareça, até o final deste ano, onde estão os restos dos mortos daquele período. Exortou também o Estado a apurar em que circunstâncias os opositores foram mortos e reclamou a punição dos responsáveis. O Estado brasileiro apelou no julgamento, mas não obteve êxito e até respondeu que recentemente o Supremo Tribunal Federal, a instância máxima da Justiça do País, considerou que anistia instituída ainda nos estertores do regime militar segue em vigor. Por essa legislação, questionada pela OEA, torturadores e assassinos também foram considerados anistiados, mesmo que todos os acusados nunca tenham sido submetidos a qualquer julgamento. Paulo Fonteles Filho – que acusa o Estado brasileiro de ter sido o responsável pela morte do seu pai em 1987, quando era advogado de camponeses e familiares de vítimas da repressão ao movi-

mento armado do Araguaia – assegurou que vai até o fim em suas investigações para de uma vez por todas esclarecer os fatos da época, mesmo que volta e meia sofra ameaças de morte. Nestes dias, por exemplo, chegou a circular na internet uma falsa informação segundo a qual ele teria morrido em um acidente. Como prova de que não teme ameaças, o pesquisador também denuncia a participação de grupos empresariais no apoio à repressão militar no Araguaia. Fonteles Filho acusa diretamente a empreiteira Camargo Correa e garante que atualmente o Estado brasileiro ainda infiltra agentes nos movimentos sociais com o objetivo de fiscalizá-los. Por estas e outras denúncias, a cada dia cresce a expectativa de que seja criada a Comissão da Verdade, que no Brasil, em princípio, não terá a função de punir agentes do Estado, civis ou militares, responsáveis por torturas e assassinatos, mas apenas esclarecer fatos relacionados com a violação dos direitos humanos do período em que o País esteve governado por generais impostos pela corporação militar, com o apoio de grupos empresariais. Os mesmos que atualmente financiam milionárias campanhas eleitorais. Alguns analistas acreditam que em face das implicações que podem resultar das investigações a Comissão da Verdade a ser criada terá limites e para entrar de fato em vigor será necessário algum tipo de acordo para o seu funcionamento. Outros analistas, no entanto, entendem que a mobilização da sociedade, sobretudo dos movimentos sociais, terá grande peso no sentido de se chegar de fato à verdade. Mário Augusto Jakobskind é Conselheiro da ABI e membro da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e dos Direitos Humanos da Casa .

Jornal da ABI 366 Maio de 2011

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