Vida e morte de Kendal Smatch

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Paulo Frederico Gonรงalves

VIDA E MORTE DE KENDAL SMATCH



VIDA E MORTE DE KENDAL SMATCH


EDIÇÃO: Edições Vírgula

® (chancela Sítio do Livro) e Morte de Kendall Smatch AUTOR: Paulo Frederico Gonçalves TÍTULO: Vida

REVISÃO:

Patrícia Espinha Paulo S. Resende

CAPA/PAGINAÇÃO:

1.ª EDIÇÃO Lisboa, maio 2016 ISBN:

978-989-8821-24-9 408373/16

DEPÓSITO LEGAL:

© PAULO FREDERICO GONÇALVES

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

www.sitiodolivro.pt


VIDA E MORTE DE KENDAL SMATCH Paulo Frederico Gonรงalves



Nas cidades os homens viram as costas à natureza e ficam mais sós face às questões fundamentais da existência. Gilles de Ferre



1. A morte de Kendal Smatch Sob a rua e passeios ouvia distintamente a voz dos mortos, daqueles que já foram habitantes da cidade e acabaram remetidos ao esquecimento, como se os dias deles fossem diferentes dos nossos. Deve haver algum mecanismo no nosso cérebro que acha que essas pessoas do passado não existiram como nós, são como lendas frouxas, histórias de enfeitar os passados só porque fica bem respeitar o antanho. O mesmo exercício deve ocorrer em relação à morte. Os vivos com alguma saúde não acreditam na morte. A morte pertence sempre aos outros. Se vierem a acreditar pela tessitura própria da vida, congeminando esta diatribes e coisas até mais diabólicas que levam um infeliz a confrontar-se com a certeza do fim, irrompe o desespero daquele que ao compreender a morte já está morto, embora vivendo o sofrimento proporcionado por esta, dado que estando morto nunca virá a sofrer. Pelo menos é o que se deseja. A antecipação e a certeza da morte constituem uma dupla terrível atacando o doente em causa, subtraindo-lhe 9


a vontade, o ânimo, reduzindo-o a um espetro de olhos imensos por causa do espanto e, sobretudo, por causa do medo. O medo da morte. Vou morrer, pensa ele, e terminam ali as forças, as pernas parecem gelatina, o mundo desaba, as certezas, se as tinha, esboroam-se como pão de dias, desfazem-se como madeira de séculos à espera de um dedo para se transformar em pó. O medo da morte torna-o dependente de algo que ele não sabia existir, não porque não existisse mas porque não havia necessidade de se lhe mostrar: o apoio moral. Valeu a Kendal a chuva torrencial desse dia de março, a que se abandonou completamente, mal sentado no degrau de acesso à porta de entrada de uma casa junto ao passeio, parado e sem coragem para pensar, nem sequer fechar os olhos. O que via passar era informe, nada de concreto, as pernas das pessoas (pessoas?) eram seres de outro planeta que passavam defronte dos seus olhos abertos como pertencentes a um autómato. A defesa de Kendal Smatch foi principalmente corpórea, um abandono físico, uma espécie de desistência mecânica. De uma coisa estava certo – o mínimo movimento, por mais fugaz que fosse, provocar-lhe-ia uma dor insuportável. Kendal deu valor aos seres inertes, às coisas, e lentamente, à medida que 10


passavam as horas, o seu pensamento fê-lo perguntar-se sobre a possibilidade dos objetos sofrerem. Dos objetos serem entidades vivas a quem a morte se fez anunciar em toda a sua evidência. Não é necessário dizer que Kendal não sentiu qualquer desconforto resultante da chuva. O facto de todo o seu corpo ser uma ilha, rodeado de água por todos os lados, encharcado até aos ossos, como se o mar avançasse sobre a rocha e vencesse a terra, reivindicando espaço, não foi sequer objeto da sua atenção. Nada era objeto da sua atenção. O segundo pensamento, já a noite ia longa, foi o de não se recordar de ouvir qualquer som. Mas, ao mesmo tempo, estava certo de que não havia silêncio na proximidade de si. Foi quando Kendal percebeu que talvez estivesse morto e logo um longo suspiro de alívio o animou como estivesse vivo. A morte salvara-o do terror da expetativa da morte. O sofrimento é o castigo de deus, pensou Kendal. O sofrimento é o regozijo de deus face ao seu criador. A vingança derradeira. Se houvesse uma segunda possibilidade, Kendal Smatch prometeu a si mesmo que seria um terrorista contra a religião, ou, precisando melhor, um bombista querendo atingir deus. Mas como atingi-lo a não ser através do sofrimento dos homens? 11


Kendal Smatch viu-se perante um paradoxo. O homem que quer atingir deus acaba sempre por ser o objeto final da ação atentatória. Kendal achou que o melhor era estar morto e na hipótese muito remota de vir a ser um regressado, continuar como foi até aí, o mais possível indiferente em matérias relacionadas com deus e a religião. Esta foi a história da morte de Kendal Smatch. Nem sob os passeios e as ruas da cidade podem ser encontrados vestígios deste homem e por isso mesmo ousei contar os momentos que precederam o seu fim para a posteridade possível.

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2. As infindáveis manhãs de Kendal Smatch Kendal Smacht acordara cedo devido ao frio nos pés. A noite desaparecia lentamente e o princípio da manhã ocupava muito espaçadamente os esconsos do seu quarto, retirando-os da obscuridade e chamando-os à vida. Kendal não gostava das manhãs. Eram tristes e cinzentas. Na maior parte das vezes também frias. Após a higiene elementar, vestiu-se e saiu para a rua. Caminhando, a manhã passava mais depressa. Tomava o café ao balcão enquanto assistia às notícias da televisão, sem interesse, mais por obrigação, de modo a não ter que entabular conversa. Não porque tivesse algum problema em falar com o dono do café, mas porque de manhã as palavras ficavam retidas na garganta, para além dos vocábulos essenciais, proferidos com ampla e generosa ajuda de gestos e expressões de rosto. A angústia não é amiga da conversação e de manhã era possível afirmar que Kendal Smacht estava quase sempre angustiado. Como se iniciasse a subida de uma íngreme montanha. 13


Kendal Smatch, definitivamente, não simpatizava com o alpinismo. O que não o incomodava nada. As manhãs, essas sim, incomodavam-no, arrastavam-se e pareciam-lhe o reflexo de uma vida inteira. As manhãs ensinavam-lhe a morosidade da vida e, simultaneamente, a constatação de que mesmo o que parece não ter fim termina. Pensou que a vida era isso mesmo. No final, quando os anos fossem escassos, tudo que estava para trás parecia ter decorrido com uma banalidade entristecedora. Só com muita capacidade de ilusão se podia retirar algo de proveitoso de uma coisa que não se deixava reter. Kendal Smatch achava, nesse ponto das suas cogitações, que a memória era uma forma de viver mais interessante, porque tratava-se de algo que se possuía. Pelo contrário, as manhãs davam-lhe a ideia de estar a retirar dolorosa e lentamente um penso rápido de uma ferida, com a pele agarrada à cola da parte interior. Se soubesse, escondia-se da dor e deixava o tempo passar, à velocidade que quisesse, demorando o que lhe aprouvesse, mas o ignorasse, não desse por ele. Kendal Smatch admirava profundamente as pessoas que logravam fintar o tempo, dar-lhe a volta. Como seriam as manhãs desses seres tão distantes como se habitassem outro planeta? Mereciam a felicidade, pensou, por não 14


permitirem o totalitarismo dos minutos atrás de minutos, a manhã a ganhar terreno às paredes, clareando-as tenuemente, ocupando com requintes de tortura o lugar da noite, à medida que a sentia plasmar-se e transformar-se em dia, um dia longo, ainda todo ele dentro da manhã que começava. Kendal Smatch achava as manhãs odiosas. Sentia uma raiva surda e tão intensa que por vezes lhe apetecia chorar. E garantiu para ele mesmo que, se soubesse, não fintava o tempo mas matava-o. Sem qualquer problema de consciência. Como seria o acordar sem o peso do tempo? Quem sabe, talvez conseguisse ouvir a voz do dia! Tão leve que abriria asas e voaria pela janela fora, cumprimentando a cidade todo contente, prazenteiro, feliz da vida. Nem a manhã sombria evitou um sorriso no rosto seco de Kendal Smatch ao imaginar-se a sobrevoar a cidade cumprimentando tudo e todos. Feliz. Como seria estar feliz? Talvez consistisse em voar sobre a cidade, jovial e sem a prisão das horas, umas a seguir às outras. Minutos a juntar a minutos, como segundos, como séculos, como milénios.

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3. Kendal Smacht mostra-se indeciso

Há algum tempo que Kendal Smatch prometera a si próprio deixar de escrever. Depois da última palavra, pensava, vem o silêncio. Não foi uma decisão imponderada mas sem dúvida que acabou por ser repentina pelo constante adiamento. Até que aquele ponto final foi mesmo o fim. Kendal Smatch perguntou-se se as últimas palavras que escrevera teriam algum significado especial. Releu-as. À luz da sua decisão, estava certo do que quer que se lesse no final, no meio ou no início dos seus apontamentos, as palavras soariam distintas. Mesmo a partir deste pressuposto, mais do que admissível, procedeu a um esforço de abstração, na tentativa de decifrar um sinal mais obscuro na derradeira frase. Nada. Corroborou o que já pensava sobre o assunto: a partir de um determinado ponto de referência, todos os demais estão-lhe relacionados. Verdade tão óbvia como nem sempre descortinável. Restava a Kendal Smatch o silêncio após as palavras. O difícil silêncio depois das palavras. 17


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