Sonhos da Atlântida

Page 1



Armando Fraz찾o

Sonhos da Atl창ntida


Ficha Técnica

Edição: Vírgula (Chancela Sítio do Livro) Título: Sonhos da Atlântida Autor: Armando Frazão Revisão, paginação e design da capa: Armando Frazão Fotografia da capa ©Richmond Paul Ruiz | Dreamstime.com 1ª Edição Lisboa, 2011 Impressão e acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-8413-23-9 Depósito Legal: 323168/11 © Armando Frazão Publicação e Comercialização: Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, Porta C – 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt

http://sonhosdaatlantida.armandofrazao.com sonhos@armandofrazao.com IV


Agradecimentos

Ao Ricardo Germano pelo aconselhamento, consultoria e completa revisão técnica na área de mergulho. Sem ele não seria possível montar esta aventura de um modo minimamente credível. Como bónus ainda leu, comentou e apontou falhas no total do texto. À Márcia pela leitura, incentivo, correcções apontadas e paciência para ouvir os meus devaneios em toda a parte inicial do trabalho e na viagem aos Açores. Ao Fernando Morais pelas dicas relacionadas com a área militar. À Marta Veríssimo, primeira grande fã do livro, pela leitura e incentivos acima das expectativas e pelas críticas e sugestões na elaboração da capa. À Tânia pela leitura, correcções, inúmeras críticas e sugestões ao texto, à sinopse e ao desenho da capa. À Ana Pedro pela leitura, curiosidade “jornalística”, incentivo e correcções. À Stéphanie Taghli pelas contundentes críticas à sinopse e ao desenho da capa. À Filipa Costa pelas sugestões ao desenho da capa. A todos os outros que leram ou apenas me incentivaram a levar estes Sonhos a bom porto.

V


VI


Ao Diogo. Que a criatividade seja uma constante na sua vida.

VII


VIII


Prólogo

Sonhos da Atlântida Prólogo

Os Reis juntaram-se mais uma vez. Como sempre, trouxeram consigo sábios, cientistas e representantes de todos os níveis sociais. Era um ritual que remontava a tempos imemoráveis e acontecia sempre a intervalos regulares de alguns anos. Durante alguns dias trocavam experiências, tecnologias, descobertas e invenções e todos os povos dos reinos saíam enriquecidos e unidos por laços de amizade e boa vizinhança. Mas a essência da união dos dez reinos, que determinava a evolução e a lei por que todos se regiam, era resultado de partilha espiritual. Isolados no seio da montanha, apenas os Reis tomavam parte nesta parte do ritual. Os iniciados, que os serviam durante este processo, tinham autorização para percorrer os caminhos que levavam a esse local de retiro e sentiam-se privilegiados por poderem aprender tudo o que os reis julgassem apropriado ensinar-lhes. O conhecimento que os Reis tinham da natureza, em todos os seus aspectos, permitia-lhes feitos extraordinários e alcançar níveis de consciência inacessíveis a qualquer outro ser que vivesse sobre a Terra. Nesse estado, abordavam valores mais altos de governação, padrões elevados em matéria de ética e decisões estratégicas sobre alianças ou conquistas. A partir da sabedoria conjunta dos dez, eram procuradas soluções para os problemas com que se deparavam na governação e orientação dos reinos. Eram igualmente apresentadas as decisões tomadas individualmente e depois submetidas ao julgamento de todos. 1


Sonhos da Atlântida

A reunião não podia terminar enquanto não se chegasse a consenso sobre todas as matérias ali apresentadas, sobre o caminho a seguir e sobre as alterações a fazer quando tal se verificasse necessário. Desse consenso era lavrada a Lei. A cada reunião, o tempo em que, verbalmente, trocavam ideias era menor, passando a quase totalidade da comunicação a ser feita a nível energético, inacessível a todos os restantes. A energia de que dispunham e usavam provinha essencialmente da Terra, mas aprenderam a juntá-la com a sua própria energia, com a de outras fontes universais e a manipulá-la até uma forma completamente nova. Mesmo os iniciados, que de perto podiam sentir os acontecimentos, pouco mais percebiam que a forte luz que emanava da presença conjunta dos governantes e as emoções e sentimentos que esta lhes induzia. Às vezes eram tão fortes que poderiam ser fatais ao comum dos mortais, mas, para atingirem o estatuto de iniciados tinham sido arduamente preparados, podiam passar incólumes a estas provações e mantinham sobre elas sigilo absoluto. Apesar da evolução nunca parar, entre os Reis, era cada vez mais frequente travarem-se verdadeiras batalhas internas. A luz era cada vez mais intensa e ainda assim, nas últimas reuniões, algumas das decisões tomadas eram fruto de compromisso e não de completo consenso. O mais importante era fazer-se Lei, uma Lei que todos concordassem em seguir. Quando a reunião era dada por terminada, era tempo de fazer a apresentação ao povo e aos reinos através de todos os seus representantes. Ainda dentro da montanha, num espaço amplo onde uma pequena multidão podia entrar, os representantes formavam um círculo pouco organizado em redor do local onde ficariam os iniciados que, por sua vez, ficariam em redor dos Reis. Quando o regresso destes era sinalizado pela luz, todos tinham de manter silêncio e quietude até que a cerimónia tivesse terminado. Em vestes de azul celeste claro, cada Rei ocupava a sua posição entre duas pontas adjacentes de uma estrela perfeita de dez raios desenhada no chão. No centro desta estrela, um magnificente pilar pentagonal estava fixado ao interior da própria montanha, às raízes que esta colocava na Terra, e nele estava gravada a Lei por que todos se regiam. Também nele os Reis invocavam e 2


Prólogo

concentravam novamente a sua energia. O local, que de início era levemente iluminado por tochas colocadas nas paredes, enchia-se de luz. Inicialmente luz azulada, mas que crescia tanto em intensidade que, aos olhos de todos, se tornava branca, ofuscava por completo as outras fontes de iluminação e forçava muitos a fechar os olhos ou a desviar o olhar para o lado. Neste processo, a lei proveniente do acordo entre os Reis, e a partir de agora vigente, era reafirmada e gravada no Pilar de Lei. O crescente de energia que os Reis conseguiam concentrar tinha, nas últimas reuniões, um outro efeito. A luz penetrava tudo e todos e, embora desvanecesse depois de terminada a cerimónia, os presentes saíam da montanha ainda a brilhar, as paredes interiores emitiam luz por um largo período de tempo e o Pilar de Lei permanecia luminoso durante alguns anos, até próximo da reunião seguinte. Esta reunião tinha decorrido durante quase mais dois dias do que a anterior. Por detrás disso estavam julgamentos, duros e demorados, a decisões individuais que alguns tinham tomado sem consultar os restantes. Decisões que eram consideradas de importância maior para o bem de todos. O confronto de energias dentro da montanha tinha atingido níveis nunca antes experimentados e a cerimónia final reflectiu essa situação tendo sido reescritas mais leis do que alguma vez tinha acontecido na História conhecida. Como habitualmente, todos aclamaram os Reis no final da cerimónia. O sentimento de admiração era grande perante o pilar que ainda pulsava de luz e que muitos ainda não conseguiam encarar directamente. Mas, por baixo deles, a sabedoria da Terra era soberana. A cerimónia permitiu-lhe reconhecer o padrão energético que já tinha sido usado em situações anteriores e que lhe tinha causado prejuízo e desequilíbrio. As mesmas situações que tinham dado origem ao debate energético entre os Reis. Sem uma consciência que pudesse ser entendida, mas com capacidade de actuar, a Terra reagiu a esta energia potencialmente prejudicial. Para obscurecer e evitar os seus efeitos, enviou a sua própria energia, força em bruto contra energia refinada. Ainda os Reis estavam dentro do círculo, mas já rodeados dos iniciados e de todos os representantes, e a montanha tremeu, primeiro levemente sem causar demasiado impacte. Mas depois, um ruído crescente veio do seu interior e foi aumentando de intensidade até ocupar todo 3


Sonhos da Atlântida

o espaço e toda a atenção e consciências que ali estavam. Quando o ruído atingiu o auge, um forte abalo, centrado no Pilar de Lei, deitou todos ao chão. Assim permaneceram até que uns breves segundos de acalmia lhes permitiram levantar a cabeça. O Pilar de Lei brilhava novamente, mais intenso que nunca, mais intenso do que tinha sido conseguido pelos Reis e agora, nem eles conseguiam olhálo. Um novo abalo provocou um estrondo ensurdecedor, desta não vindo da montanha, mas vindo do Pilar. Este pulverizou-se à frente de todos espalhando poeira de luz e pequenas pedras em todas as direcções. Todo o espaço tremia, fendas abriram-se no chão e rochas desprendiam-se do tecto e das paredes. Os gritos de pânico juntavam-se aos gritos de dor e ao murmúrio de lamentos. Mas a violência não permitia a ninguém fugir ou sequer manter-se de pé. Quando finalmente a montanha acalmou, muitos estavam feridos, alguns mortalmente, alguns tapavam os ouvidos, outros os olhos e ouvia-se um gemido geral que não se percebia se era das pessoas ou da montanha em si. Os Reis levantaram-se devagar e desolaram-se com o que viram. Para além das pessoas mortas e feridas, o Pilar de Lei tinha sido obliterado pela raiz, tinha-se desfeito em pó e em milhares de pequenos pedaços que agora iam perdendo a luz rapidamente. Apenas algumas partes um pouco maiores conseguiam manter parte da luminosidade que antes esperavam durasse anos. Tiveram mais uma vez de se reunir, mas desta vez não o puderam fazer dentro da montanha. Boa parte das passagens estavam obstruídas e outras em risco de derrocada. Por fim tomaram a decisão de cada um levar consigo um dos pedaços maiores que sobraram do Pilar, guardá-los como o maior dos tesouros e respeitar a lei que esteve inscrita neles quando eram um todo. A Terra tinha aprendido a reconhecer o que lhe era prejudicial e a cada manifestação dessa energia respondia com a sua própria força. Os reinos foram ficando isolados, em poucos anos alguns Reis deixaram de comparecer às reuniões e estas deixaram de existir. A divisão ditou a decadência, em breve começariam a lutar entre si e não faltaria muito tempo até que a sua influência deixasse de se fazer sentir sobre a Terra. Então esta poderia novamente descansar e sarar as suas feridas. 4


Conflito

I

Conflito

Era reconfortante fazer uma apresentação sobre Arqueologia para uma audiência tão interessada e participativa. Ao contrário das, mais habituais, obrigações nas apresentações para angariação de patrocínios, financiamentos e autorizações, este anfiteatro cheio de jovens resultou numa apresentação dinâmica, gratificante e até divertida. Sara tinha um dom particular para a comunicação e era-lhe fácil trazer a atenção para o assunto que apresentava, mesmo com as audiências mais irrequietas. Fazia-os rir com ela e com o que apresentava, em vez de se rirem sozinhos, dela ou da própria apresentação. – Isto era tudo o que vos queria mostrar, mas como temos ainda algum tempo, podem fazer perguntas que eu tento responder ao que for possível. Depois de meia dúzia de perguntas genuínas uma voz diferente levantou-se numa ponta do anfiteatro. – Doutora... – Sara, por favor. – interrompeu sem prestar muita atenção à origem do som. – Sara – fez-se uma pequena pausa – diga-me, é mesmo isto que quer fazer na sua vida? Sara foi apanhada meio de surpresa com a pergunta fora de contexto e prestou mais atenção a quem a fazia. Abriu um sorriso e respondeu. – As perguntas permitidas são sobre o que estivemos aqui a falar! Mas não é um pouco velho demais para esta audiência... doutor? O riso foi geral durante uns segundos e continuaram depois durante mais algum tempo com as perguntas e respostas. No final, enquanto todos saíam, Victor desceu, Sara dirigiu-se a ele e quase que saltou ao abraçá-lo. – Victor, que estás a fazer aqui? Conseguiste dizer “doutora” sem sotaque! Quase me enganavas! 5


Sonhos da Atlântida

– Vim falar contigo, e com o David, e quando me disseram que estavas aqui a fazer esta apresentação decidi assistir. Como estás? Pareces muito bem! – Olha que este tipo de apresentação é gratificante o suficiente para dar alento a uma vida de trabalho em arqueologia. Posso não precisar de mais nada. – disse em tom de desafio. – É justamente sobre isso que queria falar-vos. Tenho um pouco “mais de nada” que talvez vos interesse. – Sim? Então conta lá. – Cheguei hoje, aliás, cheguei agora mesmo. Tenho as malas no táxi à minha espera e uma série de outros contactos para fazer, não me posso demorar muito. Podes caminhar comigo até ao táxi? – Sim, também não tenho muito mais que fazer aqui. – Estamos a organizar uma expedição de arqueologia subaquática, ao largo dos Açores. – Alguma coisa de novo? – O sítio é sem dúvida novo, foi descoberto há poucos meses por uma equipa de geólogos. Encontraram alguns artefactos que podem indiciar coisas interessantes, mas eu ainda só vi fotografias. Sigo amanhã para lá, para avaliar as descobertas ao vivo. – E eu e o David? – Vocês são cá de perto, dominam o idioma, têm as qualificações que preciso e já vos conheço, sei como trabalham. Por isso, quero ver se vos consigo interessar na expedição. – Sabes que temos outras coisas, outros projectos em mãos, não sabes? – Sei, mas não custa nada falarmos sobre isto. Chegaram junto ao táxi. – Quando voltar, daqui a três dias, vou ficar neste hotel. – entregou um cartão a Sara – Podem aparecer por lá para conversarmos? Sara pensou um pouco. – Terá de ser mais para o final do dia, pode ser? – Sim, pode ser, está aí o meu contacto. – respondeu com um sorriso – Mas agora tenho mesmo de ir, já vou pagar uma fortuna ao taxista com o tempo que estive na tua apresentação! 6


Conflito

Victor entrou no carro e, enquanto este arrancava, abriu o vidro e gritou lá de dentro: – Dá cumprimentos meus ao David! *** Sara tinha tido um dia diferente do habitual e chegou a casa já tarde, quando David estava sentado no sofá a fazer zapping pelos canais de televisão. – Olá! Que estás tu a fazer? Nem gostas de televisão! – exclamou. Atirou com a mochila para cima de um sofá, passou por detrás de David e puxando-lhe a cabeça para cima deu-lhe um beijo na testa. – Humm, que cara de mau... já volto. Passados poucos minutos Sara voltou e David tinha pousado a mão no sofá ao seu lado, ainda com o comando na mão. – Vieste mais tarde hoje! – Sim, hoje foi o dia da minha apresentação em Lisboa e apanhei trânsito à saída. Mas adivinha só quem apareceu por lá! – Quem? – perguntou David em tom seco. – O Victor! De Londres! Apareceu na minha apresentação a fazer perguntas disparatadas. – E o que queria ele? – Bem, hoje estás mesmo mal disposto! David suspirou como que ressentido pela observação. Mas Sara ignorou e continuou: – Está a organizar uma expedição ao largo dos Açores e quer falar connosco para ver se queremos participar. Aliás, parece que está muito interessado em que façamos parte de equipa. – Agora não podemos, eu tenho a escola e tu tens um projecto em mãos na tua empresa, não é? – Sim, disse-lhe isso mesmo, mas ainda assim ele quer falar connosco. Daqui a três dias volta dos Açores e vamos até lá ver o que tem para nos apresentar. – “Vamos” até lá? 7


Sonhos da Atlântida

– Sim, ele quer falar connosco, não é só comigo! – Daqui a três dias é dia de trabalho! Não pensaste nisso? – David começou a levantar a voz – Como é que raio eu vou poder ir a Lisboa? Vais tu, se quiseres! – Mas o que é que te deu? Claro que pensei nisso! – Mas marcaste na mesma! David levantou-se. Apertava o comando na mão com tanta força que parecia que o ia partir. – Pára com isso David... senta-te e acalma-te. O comando voou da mão de David e embateu na parede abrindo-se em dois. – Tu é que vais pagar o comando novo! Eu vou-me embora e quando estiveres em condições falamos. Sara tirou as chaves de casa da mochila e saiu para a rua. David resmungou, desta vez consigo próprio, deu um murro na parede, aleijou-se, agarrou nas suas chaves e saiu também, atrás de Sara. – Espera, espera. – alcançou-a a correr, ofegante – Desculpa, hoje tive um mau dia, isto não é por tua culpa. – “Isto” – marcou Sara com voz triste – tem acontecido vezes demais David! A continuar assim, um dia entramos numa situação sem saída. Olharam brevemente um para o outro enquanto caminhavam ao longo do parque. – E eu pensei em ti, mas o Victor passou por ali directo do aeroporto para o hotel, falámos enquanto ele voltava para o táxi e não dava tempo para mais nada. De qualquer modo, disse-lhe que só podíamos ir falar com ele ao final do dia e deixou-me um contacto, caso não possamos ir de todo. Não foi completamente à toa! Parece que nem me conheces. Uma lágrima escorreu pela face de Sara, mas conteve-se e não chorou mais. – Tens razão, desculpa. Não obteve resposta. Prosseguiu tentando ser mais racional nas palavras. – Num dia normal consigo chegar a casa a tempo de ir a Lisboa ao final do dia. E não tenho nada de especial para esse dia na escola. 8


Conflito

Continuaram a andar em silêncio durante mais uns minutos, até que Sara, com as emoções mais controladas, perguntou: – E afinal o que se passou na escola? – Perdi as estribeiras com um aluno. – fez uma pausa – Estava constantemente a perturbar a aula e eu a mandá-lo calar e ficar quieto. Às tantas abusou de tal modo que foi outro aluno que o mandou calar. E não é que o puto lhe queria bater por causa disso? – E como é que ficou? – Passei-me! Ele é que acabou por apanhar um valente estalo, mas foi de mim. Saiu para a rua, ligou aos pais, levei-o ao conselho directivo, levou outro sermão e lá se controlou até que os pais chegaram. E depois fui eu que ouvi o sermão, primeiro dos pais e depois do director da escola. Acabei por me vir embora e tirar o resto do dia sem dar mais aulas. – Isso já não é a primeira vez que acontece! – Pois não. – confirmou David enquanto baixava os olhos para o passeio e os levantava novamente no meio de um suspiro. – Já tiveste de mudar de escola uma vez por causa dessas confusões. Nem sei como conseguiste lugar noutra escola. Se continuas assim ninguém te quer em lado nenhum! – Não sei porque isto me acontece, parece que as situações vêm ter comigo. – Se calhar já era tempo de perceberes que as situações vão ter com toda a gente, cada um é que decide como as alimenta e como as faz seguir. – olhou para David – Mas não te vou dar outro sermão. Voltaram para casa. – Vamos então falar com o Victor e ver o que ele nos tem a dizer? – Vamos. David estava mais calmo, e arrependido, mas sabia que os problemas não estavam resolvidos. *** Chegaram ao hotel e indicaram na recepção com quem vinham falar. Depois de um telefonema, Victor veio ter com eles. – Ainda bem que chegaram! Estávamos mesmo à vossa espera. 9


Sonhos da Atlântida

– Deixaste crescer a barriga! – disse David. Abraçou Sara e apertou a mão de David sempre com o braço esquerdo caído. – Vamos, vamos por aqui. Temos uma pequena sala reservada. – disse indicando-lhes o caminho. – Que se passa com o teu braço? Está tudo bem? – Esqueci-me que não se pode fumar aqui. – virou a mão esquerda para cima e mostrou, escondido, um cigarro aceso. Olharam em volta e, no corredor, já mais isolados: – Voltaste a fumar Victor? – perguntou Sara. – Pois... o trabalho de escritório aborrece-me, quase me mata de tédio, e acabei por cair outra vez nisto. E depois esta barriga que o David muito bem apontou. Mas já passou muito tempo desde que nos vimos, foi há quanto tempo? – Há quase três anos! Quando nos despedimos em Heathrow, logo depois de chegarmos da América do Sul! – Isso mesmo. Passou muito tempo. Nessa altura estava em forma, mas as coisas mudam. E agora são capazes de mudar novamente. Abriu-lhes a porta para uma pequena sala decorada de modo clássico, com móveis de madeira trabalhada. Atrás de uma pesada secretária ainda viram os pés a pousar no chão e a jovem mulher a que pertenciam levantou-se, esticando o fato e tentando discretamente limpar da secretária uma marca de graxa dos sapatos. – Esta é a Veronica, a minha assistente. Veronica, estes são o David e a Sara. Veronica rodeou a mesa e veio cumprimentá-los com um aperto de mão cordial. – Olá Sara, como está? David, como está? – disse num português quase perfeito. – Bem, estamos bem. Mas podemos ser mais informais e tratarmo-nos por “tu”? – sugeriu Sara. – Sim, claro que sim. Ainda bem que preferem assim. – abriu um sorriso enorme e parecia transformar-se noutra pessoa. – Eu disse-te que eles não eram pessoas de grandes formalidades. – acrescentou Victor. 10


Conflito

Veronica era alta, cabelos lisos escuros, corpo atlético e de formas atraentes que o fato formal e conservador não conseguia esconder. David não dizia palavra, mas também não tirava os olhos dela. – Veronica, como é que o Victor te encontrou? – era uma pergunta de retórica e prosseguiu sem esperar resposta – Somos capazes de ter aqui um pequeno problema, és atraente demais para algumas pessoas! E com isto deu um valente calduço na cabeça de David. Sara e Victor largaram-se a rir e, assim que percebeu a brincadeira, Veronica juntou-se a eles na gargalhada e acabou comentando: – E já percebi o método para tornar a pôr as coisas nos eixos! – Nunca mudas David! Pensei que isso te passasse com a idade. – exclamou Victor. – Haaammm, pois. Desculpem-me... não volta a acontecer. – A Veronica é formada em Arqueologia e está a especializar-se em civilizações antigas. Esteve alguns anos em Portugal e domina muito bem o português, melhor do que eu! Acho que é a pessoa certa para me assistir na organização de toda esta expedição. – Victor, sei que não escolhes as pessoas da tua equipa ao acaso. – Mas há mais, Sara. Ela não só me ajuda na organização, como também vai participar, com a equipa toda, nos trabalhos no sítio arqueológico. – Também mergulhas? – perguntou Sara a Veronica. – Para desgosto de algumas pessoas, fiz uma grande pausa durante o curso e andei a passear pelo mundo. E aproveitei para tirar uns cursos de mergulho e ganhar alguma experiência. Afinal de contas, agora, parece que valeu a pena! – Sim, agora parece bastante adequado. E é igualmente por isso que quero falar convosco. Temos pela frente uma expedição arqueológica subaquática. – disse Victor virando-se para Sara e David – Mas é melhor sentarmo-nos. Veronica voltou para o cadeirão e virou-se lateralmente para ficar de frente para os outros, que se sentaram nos sofás junto à janela. – A viagem que fizemos aos Açores correu muito bem. – iniciou Veronica – Falámos com a equipa de geólogos que deram com o sítio e indicaram-nos que temos uma zona vasta de baixios rochosos, perigosos, e uma zona arenosa. A meio, o fundo desce bastante, mais do que um mergulhador com 11


Sonhos da Atlântida

um curso básico consegue fazer, e a toda a volta é para esquecer, as profundidades chegam a ir aos três mil metros. – E ninguém tinha dado com isso antes? – perguntou David. – Não estava lá há muito tempo. – respondeu Victor apagando o cigarro no cinzeiro da mesinha ao centro dos sofás – Isto é perto da falha média atlântica, umas duzentas e cinquenta milhas a sudoeste de São Miguel. Durante os últimos anos tem havido ali muita actividade à volta de uma das falhas secundárias. E particularmente nos últimos meses, com alguns tremores de terra pelo meio, houve uma zona que se elevou praticamente até à superfície. Foi um desses tremores de terra mais fortes que chamou a atenção da geologia e os levou ao local para aproveitar as condições especiais de observação. Não é todos os dias que se pode observar uma falha quase à superfície, costumam estar a uns quilómetros de profundidade. – E acabaram por encontrar alguma coisa que nos interessa? – Pois, provavelmente muito mais a nós do que a eles. É que, afinal, a zona que se elevou não se revelou assim tão interessante do ponto de vista geológico. Mas encontraram artefactos de cerâmica no fundo de areia. Calculo eu que haja bastantes para se encontrarem tão facilmente sem se procurarem. E também falaram de formações rochosas que não lhes pareceram naturais. Mas, sem calhaus mais interessantes para eles, não foram mais longe. Tivemos sorte em terem mostrado o que encontraram a alguém da nossa área ou nunca chegaríamos a saber. – E viste o que encontraram? – Vi, e fiquei desiludido. Não com os artefactos, mas com o modo como os trataram. Apanharam-nos e meteram-nos dentro de um caixote sem qualquer cuidado. Já deviam ter apanhado alguns meses de sol, chuva, vento e sal até eu os ver. Pareceram-me autênticos, e pareceram-me antigos, mas não estão em condições mínimas para serem analisados. Por isso é que também não posso já dar tudo por garantido. – E porquê nós? – perguntou David. – Várias razões. Já tinha falado um pouco disso à Sara. Mas principalmente porque já mergulham há alguns anos e sei do que são capazes. E depois essa especialização em mergulho de profundidade que tiraram no Mediterrâneo vai provavelmente dar-nos muito jeito. 12


Conflito

– Parece que afinal lês os emails que te mando! Pena é que quase nunca respondes. – Sim, é uma falha minha, mas é para veres que até lhes presto atenção. – respondeu a sorrir. – Pelo menos se te interessar! – Sara fez uma pequena pausa – Mas então é certo que vais organizar uma expedição? – Já estou, aliás, já estamos a organizar. E temos alguma pressa. Aquele local subiu das profundezas relativamente rápido e, pelos mesmos motivos que subiu, pode voltar a desaparecer do nosso alcance. Já temos um barco disponível para fazer prospecção e, se avançarmos, para a expedição em si. Àquela distância de terra tem de ser um live aboard e voltamos aos Açores mais ou menos de duas em duas semanas. – Começamos na próxima semana. – interrompeu Veronica. David franziu o sobrolho. – Então não vejo como podemos entrar. Nem eu nem a Sara temos esse tipo de disponibilidade! – Eu sei David. E eu precisava de vocês já no início para começar a prospecção. Mas também não consigo encontrar mais ninguém com as vossas qualificações rapidamente. Tenho duas outras pessoas experientes quase certas na nossa equipa, e estou a reunir um grupo de estagiários, que são sempre muito empenhados, para eles orientarem. O problema é que eles só podem trabalhar na zona mais próxima da superfície. Não têm qualificação para ir às zonas mais profundas. – Então o que propões? – perguntou Sara intrigada. – Assim que terminar a fase de prospecção teremos uma decisão definitiva de avançar ou não. De quanto tempo precisam para se juntarem a nós? – Eu tenho as aulas e, até terminar o ano lectivo escolar, daqui a mais ou menos um mês, não tenho disponibilidade para uma expedição. – E tu Sara, do que precisas? – O projecto onde estou actualmente não é muito exigente. Talvez possa passá-lo a outra pessoa num prazo de tempo semelhante. – Se quiseres, podemos ajudar-te a encontrar outra pessoa. – Não é preciso, conheço as pessoas certas. David e Sara olharam-se e Sara continuou: 13


Sonhos da Atlântida

– Em menos de um mês não podemos sequer pensar em participar nessa expedição. Desta vez foram Victor e Veronica a olharem-se. – Continuamos interessados. – disse Veronica. – Durante um mês eu e a Veronica podemos orientar a prospecção, reunir o resto da equipa, contratar uma equipa de mergulhadores para trabalhar connosco e já teremos um barco preparado. Vocês evitam toda essa parte inicial e provavelmente começam quando a expedição já estiver no sítio há uma ou duas semanas. – Tu já tinhas planeado isso tudo não é Victor? – perguntou Sara em tom de admiração. Victor e Veronica responderam com um sorriso. – Estás a ver estes dois Sara? – disse David – Isto quase parece uma armadilha! – E então? – perguntou Victor – Podemos contar com a vossa colaboração? Sara e David levantaram-se, igualmente a sorrir, e Sara respondeu: – Mas nós não tínhamos planeado nada... e por isso não te podemos dizer nada agora! O sorriso de Victor desvaneceu-se, mas não o de Veronica. – Vamos pensar nisto e daqui a dois ou três dias ligamos-te a dizer o que decidimos. E com isso dirigiram-se à porta. – Mas... Sara interrompeu Victor: – De qualquer modo tu próprio ainda não tens a certeza se avanças com a expedição, por isso não tens assim tanta pressa na decisão. – Mas se vocês não aceitarem, tenho de procurar outras pessoas! – Veronica, foi um prazer conhecer-te. Até daqui a uns dias Victor. E Sara puxou David pela mão, que não disse mais nada. Apenas encolheu os ombros. Victor ficou de boca aberta a olhar para a porta com Veronica a rir-se da situação. 14


Conflito

*** O regresso a casa foi feito com a noite a cair, mas sem pressas. – Então que achaste da proposta do Victor? – perguntou Sara. – Muito vago! Poucos pormenores sobre o que vamos efectivamente pesquisar, não nos falou de mais nada, não nos falou de pagamento, de condições, de quanto tempo isto pode durar. – “... sobre o que vamos pesquisar” – disse a sorrir. – Não quer dizer que vamos mesmo. Como ele próprio disse, está a fazer tudo um pouco à pressa. – Pelo que já passámos com ele acho que podemos ter uma boa ideia sobre as condições e o dinheiro. O resto, fiquei com a ideia de que ele próprio não sabe ainda. – Sim, tens razão. – fez uma pausa – No geral a ideia agradou-me. Não me agrada muito é a ideia de também ter de fazer tudo à pressa até ao final do ano lectivo. – Do meu lado, o que tenho andado a fazer no último ano não tem assim tanto interesse. É economicamente razoável para mim e bom para a empresa, mas é quase só rotina. Posso facilmente entregar o trabalho a outra pessoa, até porque não há muito trabalho mesmo. E para nós os dois acho que pode ser muito bom . Seguiram por uns minutos sem dizer mais nada até que Sara pegou na conversa num tom mais pessoal e delicado. – A nossa relação está a ficar complicada David, não sei bem porquê. Mas depois de voltarmos da expedição da América do Sul, acabámos por nos instalar na rotina, eu nesta empresa e tu nas aulas, e pode ser também relacionado com isso. – Podes ter razão. Pensando para trás, tenho saudades das aventuras que passámos antes, mesmo antes dessa expedição. – E uma mudança de cenário, de rotinas, lidar com outras pessoas, pode ser muito positivo. David suspirou enquanto conduzia. – E também me dá um objectivo definido até ao final do ano lectivo. Só isso já me pode ajudar bastante. Ando a ficar aborrecido com tudo aquilo. – Então vamos aceitar? 15


Sonhos da Atlântida

David nada respondeu durante uns minutos. – Vamos ter de falar com ele novamente. Se as condições que ele nos der forem minimamente aceitáveis... sim, por mim aceitamos. – Ligamos-lhe então amanhã. – Quantos dias lhe disseste que íamos pensar? – Dois ou três. – Então ligamos-lhe só daqui a três dias. E seguiram viagem a sorrir. Sentiam-se bem com a ideia de uma nova expedição e ainda melhor com a ideia de Victor a desesperar pela decisão deles.

16


A Ilha Verde

II

A Ilha Verde

Com a expedição em vista, os dias passaram bastante melhor entre Sara e David. Melhor ainda depois de terem a confirmação que esta iria mesmo acontecer. Victor não teve oportunidade de falar com eles pessoalmente para discutir mais pormenores, todas as questões que ficaram em aberto acabaram por ser acertadas por email e telefone. E as condições que tinha para lhes oferecer estavam mesmo no limiar do minimamente aceitável, se calhar até um pouco abaixo. Mas já se tinham convencido que a expedição seria boa para eles em vários outros aspectos, para além do financeiro, e acabaram por aceitar. Sara conseguiu preparar a sua ausência calmamente, mas a última semana lectiva de David foi deveras complicada com testes, avaliação e lançamento de notas. Prepararam o equipamento de mergulho com alguns dias de antecedência e enviaram-no para São Miguel ao cuidado de Victor, na quinta onde iriam ficar instalados. A bagagem pessoal ficou preparada na véspera da partida e Sara foi esperar David à porta da escola. Este não conseguiu despachar-se e foi com quase uma hora de atraso que acabou por chegar, a correr, ao carro. Sara já lhe tinha aberto a porta e, já com o motor em funcionamento, arrancou ainda mesmo antes de David a fechar de novo. Tinham combinado passar pela casa de um amigo que morava em Lisboa para deixar lá o carro e depois daí chamarem um táxi para os levar ao aeroporto. – Já não temos tempo para fazer como combinámos! David olhou para o relógio mais uma vez. – Bolas... falta menos de hora e meia para a partida do voo! – Se houver algum problema no trânsito não vamos conseguir chegar a tempo. David fazia contas de cabeça enquanto Sara ultrapassava os limites de velocidade, tentando manter-se dentro dos limites da segurança. 17


Sonhos da Atlântida

– Se houver algum problema não chegamos a tempo mesmo que vamos directos para o aeroporto. – fez uma pequena pausa – Tive uma ideia, vamos mesmo directos para o aeroporto. – Mas... David levantou a mão, puxou pelo telemóvel e marcou o número do amigo. – Jorge? Fez-se uma pausa enquanto esperava pela confirmação da resposta. – Jorge, precisamos de um grande favor teu! Estamos muito atrasados e não vamos conseguir passar por tua casa. Podes apanhar tu um táxi e ir ter connosco ao aeroporto para depois levares o nosso carro? Sara percebeu o que David estava a pensar enquanto Jorge, do outro lado da linha colocava algumas questões. – É isso mesmo, nós pagamos-te o táxi, não te preocupes com isso. David terminou a curta conversa ao telemóvel e desligou com algum alívio. – Ele aceitou? – perguntou Sara. – Sim, felizmente. Assim acho que conseguimos apanhar o avião. Mas ainda estamos atrasados, é melhor continuarmos nesta velocidade. Pararam mesmo em frente ao terminal das partidas, a travar com os pneus a chiar no limite da aderência e num local onde era proibido parar. Assim que viram Jorge a vir na sua direcção saíram do carro, tiraram as malas do porta-bagagens e David correu em direcção ao amigo, que ainda não partilhava o mesmo grau de pressa que eles os dois. – David, há quanto tempo é... – Jorge! – interrompeu David – estamos mesmo muito atrasados... nem sei se o voo já não partiu. Estão aqui as chaves e os documentos estão no porta-luvas! Deu-lhe um aperto de mão rápido ao mesmo tempo que lhe entregava as chaves do carro. Saiu de novo a correr, agarrou na mala e correu atrás de Sara em direcção ao check-in gritando para trás: – Obrigado por tudo! Depois falamos! Jorge ficou parado com as chaves na mão a olhar para David a correr uns bons metros atrás de Sara, o carro com o porta-bagagens ainda aberto... e um 18


A Ilha Verde

polícia a aproximar-se e a gesticular pela paragem em transgressão. Nessa altura sentiu igualmente necessidade de se apressar para tirar o carro daquele local. Chegaram à porta de embarque quando todos os restantes passageiros já tinham passado, os talões de embarque quase lhes foram arrancados das mãos e a porta fechou assim que passaram. Já sentados dentro do avião, estavam ainda a suar de tanta correria, inspiraram profundamente e tentaram acalmar-se por uns momentos. – Agora não há regresso, pelo menos até aqui parece que conseguimos chegar! – exclamou Sara. – Esqueci-me de pagar o táxi ao Jorge!! – respondeu David, enquanto pegava no telemóvel. Sara agarrou-lhe a mão. – Agora não podes usar o telemóvel. Ligas-lhe quando chegarmos aos Açores. David deixou-se afundar no banco, até os joelhos baterem no banco da frente, virou-se para Sara e sorriu. – Sim, até aqui conseguimos chegar. Deu-lhe um beijo e foi interrompido pela hospedeira a exigir-lhes que colocassem o cinto de segurança. *** Chegados ao aeroporto João Paulo II, em Ponta Delgada, ninguém os esperava. David aproveitou para telefonar ao Jorge e pedir-lhe desculpas pela pressa e pela despesa por pagar. Aguardaram mais de trinta minutos e, para além das pessoas que ali trabalhavam, mais ninguém estava no aeroporto. Não tinham com eles a morada da quinta onde iam ficar hospedados e Victor não atendia o telemóvel. Finalmente o telemóvel de Sara tocou. – O barco chegou só agora. O Victor vem directo para aqui, não deve demorar mais de uns vinte minutos. – esclareceu Sara depois de atender a chamada. 19


Sonhos da Atlântida

– Vamo-nos sentar ali dentro? Estou estoirado, e apesar de estarmos aqui parados esta espera não está a ajudar-me nada. David tinha certamente passado por um dia muito stressante, depois a pressão para chegar a tempo ao aeroporto, as coisas mal resolvidas com o amigo e agora esta espera. Sentia-se prestes a explodir e, se o telemóvel não tem tocado com notícias da chegada breve de Victor, isso era bem capaz de acontecer. Sara percebeu-o e concordou em voltarem para dentro do aeroporto para se sentarem enquanto aguardavam. – Victor! Fazes ideia do dia que passámos? E do tempo que estivemos aqui à espera sem saber nada do que fazer ou para onde ir? Ainda se houvesse aqui alguma coisa para passar o tempo! – Desculpem, mas a viagem de barco atrasou-se, não conseguíamos mesmo chegar mais cedo e no mar não tínhamos rede. – Foi realmente um dia complicado. – disse Sara num tom mais calmo, enquanto o abraçava e lhe dava um beijo. Victor estendeu a mão a David. – Mas está tudo bem contigo? Agora já cá estamos! – Sim, estou bem, preciso é de uma boa noite de descanso. – Muito bem. O resto da equipa ficou ainda a desembarcar e seguem directos para a quinta. Fica perto daqui, devemos chegar pouco depois deles. Já jantaram? – Deram-nos um lanche estranho no avião, não sabia lá muito bem e não conseguimos sequer acalmar bem para apreciar a viagem. – Bom, temos com certeza jantar à nossa espera na quinta. Vamos? Seguiram no carro alugado, circulando a cidade, e dois ou três quilómetros depois saíram da via rápida para em breve entrar numa canada, uma estrada estreita entre muros que os levou a uma propriedade igualmente rodeada de muros, já afastada das estradas principais. Um grupo de pessoas agitava-se à volta de alguns carros que pareciam ter acabado de chegar. Veronica veio ter com eles, desta vez com um aspecto muito mais desportivo e com um sorriso contagiante. – Já aqui estão! Correu bem a viagem? – Pensando bem, a viagem acabou por ser o que correu melhor! – respondeu Sara já bem-disposta. – Que grande actividade! 20


A Ilha Verde

– Estamos aqui todos, acabámos de chegar. – esclareceu Veronica. Um grupo mais jovem, com malas e mochilas, passou por eles em direcção a uma casa isolada da quinta e deram-lhes as boas noites. Depois de um dia tão complicado Sara e David deixavam-se agora contagiar por toda esta actividade, fortemente marcada pela boa disposição. – São os estagiários que fazem parte da equipa? – perguntou David. – Sim, são um grupo muito bem-disposto. Já está toda a gente a dispersar para arrumar as malas nos quartos. Acho que vamos ter de deixar as apresentações para o jantar. – Vamos também arrumar a nossa bagagem? – sugeriu Veronica – Victor, as nossas coisas ainda estão ali no jipe. – Jeep?! Não é um Jeep, é... que marca é? – Esquece, percebeste o que quis dizer, não percebeste? – Percebo que estiveste tempo demais em Portugal, agora é tudo Jeep! David e Sara olhavam um para o outro e riam-se enquanto seguiam atrás de Victor e Veronica a discutirem sobre o que seria ou não falar correctamente. O quarto deles era junto aos dos restantes membros da equipa, na casa principal da quinta. O jantar foi servido num alpendre aberto no jardim. A temperatura estava agradável e a noite estrelada e silenciosa. Depois de todos estarem à mesa Victor tomou a palavra para fazer as apresentações. – Estes são o David e a Sara de que já vos falei antes. Já nos teriam dado jeito na expedição, mas só agora é que puderam juntar-se à nossa equipa. E dirigindo-se aos dois esclareceu que, melhor ou pior, todos falavam português e acabaram por eleger esse o idioma oficial da equipa. Depois iniciou por uma ponta a apresentar a restante equipa. – A Dominique e o Michel vêm da Bélgica, já vos tinha falado deles. São quem organizou e tem mantido o sítio arqueológico e até agora assumiram toda a responsabilidade de orientar os nossos estagiários. Temos o François e o Philipe, franceses que vieram recomendados pela Dominique. Depois temos o João e o outro João. São ambos aqui dos Açores, aprenderam a mergulhar cá, mas tiraram o curso de arqueologia em Portugal. – Humm humm – interrompeu Veronica. 21


Sonhos da Atlântida

– Portugal... continental, – completou Victor – desculpem-me. Depois temos a Kathy, a Mary, o Rúben e a Luísa, que vieram todos de Londres. O Rúben e a Luísa são brasileiros. Acenaram com a cabeça em cumprimento enquanto Victor bebia um pouco de água. – E por último temos o Ricardo que é geólogo. Fez parte da equipa que descobriu o sítio em primeiro lugar. A zona não parecia interessante suficiente para a despesa de uma equipa inteira de geólogos, mas depois de decidirmos que íamos fazer uma expedição arqueológica quiseram negociar connosco a presença do Ricardo. É um mergulhador experiente e vai-nos ajudando ao mesmo tempo que vai investigando na sua área de conhecimento. O jantar prosseguiu animado com as conversas que se foram estabelecendo sobre tudo um pouco, desde a expedição em si a assuntos de cariz mais pessoal. Quando Sara e David finalmente se foram deitar já conheciam minimamente as pessoas da equipa e sentiam-se bem. Principalmente, sentiam-se mais confortáveis com esta expedição em que aceitaram participar. *** Na manhã seguinte foram com Dominique e Michel até à praia. Ambos eram louros e de pele muito clara, embora agora tivessem um tom avermelhado. Não pareciam de todo o tipo de arqueólogo que participa em expedições de campo. Sara tinha a tez bastante escura, cabelo liso escuro, cortado ao nível do pescoço e um porte que, não deixando de ser feminino e elegante, era robusto e denotava bastante actividade física. Mesmo David, que era igualmente louro e não tinha uma actividade que o fizesse andar muito ao ar livre, estava muito mais bronzeado que qualquer um dos outros dois. Também ao contrário de Sara e David, que tinham pouca diferença de altura, Michel era muito alto e magro enquanto Dominique era bastante mais baixa que Sara. Os quase trinta minutos de caminho a pé foram suficientes para perceber que, apesar de serem pessoas perfeitamente acessíveis, gostavam de manter alguma distância profissional e alguma formalidade no tratamento. 22


A Ilha Verde

A areia da praia era cinzenta, de origem vulcânica, tal como os morros de basalto escuro que a ladeavam de um e de outro lado. Mas, logo que se habituaram à ideia de uma cor diferente, perceberam que não era menos confortável do que qualquer outra praia de areias brancas. A água estava tão convidativa que não resistiram e foram dar um mergulho, nadar um bocado enquanto Michel e Dominique ficaram na areia a caminhar e a apanhar pequenas conchas e rochas. – Quase parecem umas férias! – disse-lhes Sara quando voltaram e se sentaram na areia. – O Victor e a Veronica tinham de tratar de alguma logística relacionada com o Estela, o nosso barco, e com o museu em Londres. Por isso deixaram-nos este tempo livre. – apontou Dominique com sotaque francês. – Mas da parte da tarde temos uma reunião para fazer um ponto de situação e para vocês ficarem a conhecer melhor as condições da expedição. – completou Michel com um sotaque igualmente carregado – Já não vai parecer tanto que são férias! – Seja como for este pequeno descanso está a saber-nos muito bem! – Ora se está! – disse Sara em tom de resposta e a sorrir para David. Na realidade já há muito tempo que não estavam assim juntos sem terem a cabeça presa a um qualquer assunto profissional ou problema pessoal. Sara voltou-se novamente para Dominique. – Disse que eles tinham alguma coisa a tratar com o museu. É quem nos está a financiar a expedição, não é? – Si si. Victor ainda não tinha tido oportunidade de lhe enviar nenhum dos artefactos que recolhemos. Mas eles querem ver alguns e nós também queremos saber mais alguma coisa sobre eles. Uma datação era muito interessante nesta altura. Conversaram um pouco sobre a expedição e sobre o modo como as coisas tinham funcionado até aí. A conversa até foi agradável, mas foi sobretudo útil e com isso acabou por fazer desvanecer a ideia de férias com que tinham começado o dia. Victor e Veronica só voltaram depois do almoço e juntaram-se à equipa numa sala interior da quinta. Com eles vinha outra pessoa, um homem alto e de porte robusto, que Victor fez questão de apresentar. 23


Sonhos da Atlântida

– Sara, David. Este é o Eduardo, é o chefe do grupo de mergulhadores que contratámos aqui na ilha. A Sara e o David são os dois arqueólogos que faltavam na nossa expedição. – disse, virando-se agora para Eduardo. – Muito prazer. O Victor já tinha falado de vocês. Provavelmente vamos trabalhar bastante em conjunto. – Vamos ver neste briefing o que é que o Victor espera que façamos na expedição, ele não tem sido muito preciso! Mas sim, creio que vamos trabalhar juntos. David apenas apertou a mão de Eduardo, mas não disse mais nada para além do cumprimento circunstancial. – A minha equipa é a responsável pela logística e manutenção do equipamento de mergulho, assistimos todas as operações no sítio arqueológico e ainda cuidamos da segurança de toda a equipa já que conhecemos bastante bem estas águas. Sentaram-se de modo mais ou menos aleatório atrás das mesas, dispostas em U. Ao centro, Victor e Veronica lidavam com um portátil e um projector até que finalmente uma imagem surgiu na parede branca. Veronica foi sentarse numa das extremidades e Victor passou a introduzir o que pretendia apresentar ali. Colocou-se depois numa posição mais lateral e virou-se para a imagem projectada. – Este é o perfil médio do fundo submarino onde estamos a trabalhar. Acendeu um pequeno laser vermelho e apontou para a parede percorrendo rapidamente a linha negra de um lado ao outro, para depois se deter pormenorizadamente sobre cada um dos locais. – Temos aqui uma zona de fundo arenoso pontilhada por poucas rochas. No local mais alto estamos a pouco menos de vinte metros de profundidade. Para um lado e para o outro temos cerca de cinquenta ou sessenta metros de fundo apenas com um ligeiro declive. – Victor acompanhava a sua descrição com o laser – Nesta zona o fundo raramente ultrapassa os trinta metros de profundidade e é onde inicialmente a equipa do Ricardo encontrou artefactos de cerâmica. É também onde temos concentrado até agora os nossos esforços. – Nós também já encontrámos aqui muitas peças de cerâmica, – interrompeu Dominique – muito partidas e sem grandes marcas características, mas em quantidades que superaram as nossas expectativas. 24


A Ilha Verde

– Justamente por isso hoje, finalmente, dediquei algum tempo a enviar para Londres algumas dessas peças. Acondicionámo-las ontem durante a viagem, seguiram de avião para Lisboa e daí vão para o destino. Pode ser que eles nos consigam dizer mais alguma coisa. Victor projectou depois algumas fotografias tiradas no fundo. Viam-se as grelhas e algumas zonas escavadas e alguns dos presentes em plena actividade. Falou disso com a colaboração de Dominique e Michel. David aproveitou a ocasião para observar os presentes. O seu olhar prendeu-se imediatamente em Veronica, igualmente de atenção dispersa. Olhava a toda a volta mas, ainda que por breves momentos, detinha-se frequentemente, com ar sisudo, na direcção do canto oposto, onde estava Eduardo. Durante alguns minutos este simplesmente não tirou os olhos de Veronica e a sua posição recuada permitia-lhe passar despercebido. David começava a perceber a pouca satisfação dela ao ser alvo deste olhar insistente. Haveria alguma coisa entre eles? Por uma fracção de segundo Veronica reparou em David e de imediato a atenção de Eduardo recaiu igualmente sobre ele. As posições inverteram-se e David desviou rapidamente o olhar para o centro, onde Victor continuava agora a falar do fundo oceânico. – Mais para o exterior o declive do fundo vai-se acentuando, ficando cada vez mais distante e com menos areia. Segue sempre assim até profundidades completamente fora do nosso alcance, não sabemos se existe aí alguma coisa de interessante. » Na outra direcção o declive também se acentua, mas não segue para profundidades tão grandes. O sonar indica que o fundo é muito mais irregular, provavelmente rochas e menos areia. Depois temos uma plataforma de quinze ou vinte metros, praticamente plana, à volta dos cinquenta metros de profundidade e a seguir temos um abismo, um desfiladeiro estreito que desce na vertical durante mais uns vinte e cinco ou trinta metros. – Essa é a parte da falha mais próxima da superfície. Foi o que nos trouxe cá e que pensamos foi o centro de toda a actividade sísmica que tem ocorrido. – esclareceu Ricardo. – E esse é um assunto que também quero falar aqui. Não temos sentido abalos sísmicos fortes, aliás, quase não sentimos nenhum, mas não quer dizer que não venham a existir. Temos de prestar atenção a isso. – fez uma pequena 25


Sonhos da Atlântida

pausa – Mas voltando ao abismo... calculamos que tenha um pouco mais de quinze metros de largura média e do lado oposto temos esta parede fenomenal. Victor passeava agora o laser sobre uma linha quase vertical desenhada na parede. – Sobe desde o fundo do desfiladeiro, também quase na vertical, até perto dos vinte metros de profundidade. Aí começa a suavizar a inclinação formando um rebordo arredondado de um enorme planalto subaquático. É uma zona de baixios rochosos, praticamente sem areia ou sedimentos. Na maré baixa, com a ondulação chegam a despontar algumas rochas à superfície. Temos este tipo de fundo numa extensão com uns trezentos metros de comprimento e de forma semi-oval. Victor fez uma pequena pausa para ir buscar uma cadeira e se sentar ao lado da mesa. Veronica continuou entretanto. – Durante estas primeiras duas semanas, aproveitámos algumas ocasiões de maré alta e ondulação fraca para fazermos alguma prospecção aí. Não encontrámos até agora nada de interessante e temos sempre de ter cuidado na aproximação por causa dos baixios. O Estela também não se pode aproximar muito. De resto a toda a volta o fundo desce sempre muito e, pelo menos para já, consideramos importante concentrarmo-nos nas zonas que nos são acessíveis. O sonar mostrou-nos formações menos vulgares no fundo em direcção ao desfiladeiro e, se tudo correr bem, será por aí que vamos andar a fazer prospecção durante a próxima semana. Victor interrompeu: – E por isso vamos amanhã levar a bordo do Estela algum equipamento novo. Também principalmente por isso, estávamos a precisar de vocês. – disse apontando para Sara e David – Para além de mim, que nem sempre posso estar a mergulhar, apenas a Veronica tem conhecimentos de arqueologia e qualificações para mergulhar àquelas profundidades. – Isso quer dizer que vamos andar frequentemente a mergulhar entre os trinta e os cinquenta metros? Eventualmente até aos oitenta? 26


A Ilha Verde

– Calma David, sei o que estás a pensar. Até agora usámos apenas equipamento de mergulho convencional, mas a partir de agora vamos ter rebreathers1 e estou a negociar igualmente um ROV2. – Ah!! Isso é excelente. Não sabia que íamos ter esse tipo de equipamento. – exclamou David. – Eduardo, fala-nos um pouco sobre isto. – pediu Victor. – Como o Victor disse, esta zona não é estável. Sentimos poucos abalos mas houve muitos nos últimos tempos. Sobre a água passam-nos praticamente despercebidos mas o registo sísmico não deixa dúvidas. Por isso a ideia é ponderar sempre os mergulhos mais arriscados e planear muito bem quando decidirmos fazê-los. Idealmente vamos fazer sempre reconhecimento com o ROV e a partir daí fazer um plano de mergulho no sentido de tornar o mais eficiente possível a nossa presença física lá em baixo. – Isso mesmo, não quero ninguém a correr riscos desnecessários. Na zona arenosa não é muito problemático se ocorrer um abalo em plena actividade do sítio arqueológico. Não há rochas para desmoronar e vamos andar a escavar os sedimentos de cima para baixo em áreas grandes para evitar derrocadas de areia. Se for preciso, saímos da água e esperamos que assente tudo para recomeçar, mas até agora não foi preciso. » Mais abaixo, com declives maiores e com rochas por todo o lado, temos de ter outros cuidados. Victor pressionou algumas teclas e surgiram algumas fotografias de um barco projectadas na parede. – Mas agora deixem-me apresentar-vos o Estela, o nosso barco. Trinta e dois metros de comprimento, a popa está preparada para fazer mergulho e mandámos instalar um guincho mais adequado para as necessidades da arqueologia. Temos um refeitório e uma sala ampla perto da popa para reuniões, briefings e para recolher material. E claro, os camarotes, a ponte...

1

Sistema que recircula o ar e retém o dióxido de carbono gerado pela respiração do mergulhador em filtros especiais. Permite maiores permanências no fundo e regular a mistura gasosa com oxigénio de acordo com a pressão/profundidade.

2

Do inglês, Remotely Operated Vehicle. 27


Sonhos da Atlântida

A apresentação passou então por todos os outros aspectos da expedição e recursos que tinham. Já com a participação alargada de todos, menos Eduardo e Ricardo que se ausentaram nesta altura, discutiram questões mais directamente relacionadas com a arqueologia. O modo com o sítio estava organizado, metodologias e como pretendiam prosseguir. Fizeram poucas pausas, mas mesmo assim a apresentação acabou por durar a tarde quase toda. A terminar, Victor indicou que iriam partir no dia seguinte apenas ao final da tarde. Tinham o dia livre para conhecer a ilha e sugeriu uma visita até à zona das Sete Cidades. Com a ajuda dos dois estagiários locais, tinha já feito alguns contactos e apenas precisava de fazer um telefonema para confirmar a utilização de alguns pequenos barcos, para passearem pelas lagoas principais. A possibilidade de conhecer mais a ilha foi muito bem vinda. *** Os dois pequenos automóveis, seguidos pelo todo-o-terreno, subiam por uma estrada secundária, ladeada por inúmeros prados verdes, onde vacas malhadas pastavam calmamente e olhavam com curiosidade todos os que paravam por perto. Aqui e ali, com maior frequência nos pontos mais altos, grupos de árvores quebravam a continuidade das pastagens. Mas não quebravam o verde. Tudo era uma imensidão de verde, até as zonas menos pisadas da estrada tinham musgo verde. Dentro do todo-o-terreno seguiam Victor, Veronica, Sara, David e João, um dos estagiários açorianos. – Estamos a ter sorte com o tempo. – dizia Veronica virando-se para trás – Há duas semanas atrás esta zona estava completamente coberta por um manto de nevoeiro denso e cinzento. Nem as pastagens se conseguiam ver bem. – Hoje estamos só à mercê dos estagiários. Eles é que conhecem isto e nos dizem por onde vamos. Victor estava bem-disposto. – João, disseste que vamos parar num sítio antes de chegarmos à Lagoa das Sete Cidades. Como é que se chama ? – Mata do Canário. Tem um miradouro. E também tem uma pequena lagoa, a Lagoa do Canário. 28


A Ilha Verde

– Sim, é isso. Supostamente temos uma vista espectacular sobre a zona das Sete Cidades. – Se estiver limpo não se vão arrepender. Os automóveis à frente saíram da estrada para um pequeno largo, mesmo em frente a um portão de entrada com a indicação de Lagoa do Canário. Estacionaram e juntaram-se todos. – Não vão um bocado apertados nesse carro? – perguntou Victor aos cinco estagiários que partilhavam o segundo automóvel. – Não há problema, nós ajeitamo-nos. Quando atravessavam a estrada em direcção ao portão, o mesmo João apontou genericamente para nascente onde, à distância, se viam nuvens espessas. – Além fica a Lagoa do Fogo. Como está, não se consegue ver nada por aquelas bandas! Esperemos que a neblina não nos apanhe nesta ponta. Seguiram em dois grupos, estagiários à frente e os outros atrás, por um caminho de terra batida durante perto de um quilómetro até encontrarem umas escadas que saiam da estrada em frente a um pequeno largo. – Vamos por aqui. – disseram do grupo da frente. Assim que subiram as escadas, deram com uma vista para mais uma encosta, completamente verde, que descia até encontrar uma lagoa. Detiveram-se aí a apreciar um pouco a paisagem mas logo foram interrompidos pelos açorianos. Chamavam-nos para um caminho à esquerda que rodeava e subia o monte, com troços bastante íngremes, e que lhes obstruía uma vista mais ampla. – Vamos até ali à frente, é muito melhor. E era mesmo muito melhor. Uma vista espectacular sobre dois vales e uma série de lagoas e caldeiras secas a invocarem ainda a forma dos cones vulcânicos que lhes deram origem. Sempre o verde intenso e forte recortado contra o céu azul e algumas nuvens. Para os que viam esta paisagem pela primeira vez, a beleza que desfrutavam era quase um momento de revelação. Os dois estagiários açorianos sorriam com satisfação a cada interjeição de espanto e admiração. – É mesmo muito bonito. – exclamou Victor – Acho que falo por todos, temos de vos agradecer por nos trazerem aqui. 29


Sonhos da Atlântida

– Não me lembro de ver referências a este local nos mapas! – acrescentou Veronica. Um deles começou a dar nomes às lagoas. – Aquela pequena mais à esquerda é a Lagoa Rasa, depois logo a seguir, a verde, é a Lagoa de Santiago e por trás, que não se vê daqui, fica a Lagoa Verde. – Ainda mais verde que esta? – perguntou David já fascinado pelo verde da Lagoa de Santiago, tão intenso que quase não parecia natural. – Bem, é Verde de nome, se calhar não é mais verde. – respondeu o outro a sorrir. – Depois em cima temos a Caldeira Seca e mais à direita temos a Caldeira do Alferes. Finalmente em baixo temos a Lagoa Azul, a maior de todas aqui. David tentava comparar os tons de verde à frente – A mim continua a parecer-me verde, não entendo porque lhe chamam Azul. – Há uma lenda antiga relacionada com a origem destas duas lagoas, a Verde e a Azul. – Queres contá-la? – pediu Sara. – Posso contar, por passos largos pelo menos, que não sei bem todos os detalhes. Fala sobre o tempo da Atlântida. Victor voltou-se para trás, de sobrolho franzido, para ouvir a lenda. – Uma princesa Atlante passeava frequentemente por estes montes e conheceu nos seus passeios um jovem pastor. Encontravam-se frequentemente e, da convivência, foi crescendo um sentimento forte e acabaram por se apaixonar. Mas o rei tinha a princesa prometida a um príncipe de um reino vizinho e, quando lhe comunicou isso, ela ficou muito triste. Fugiu e veio para aqui, ter com o pastor, e contar-lhe sobre o infortúnio que lhes coube. Os dois choraram sem parar. E choraram tanto que deram origem a estas duas lagoas, a Azul proveniente das lágrimas dos olhos azuis da princesa e a Verde dos olhos verdes do pastor. – Atlântida! – exclamou Sara – Que adequado dado o que vamos fazer! – Não sei se é adequado. – disse Victor sem grande entusiasmo. – Então? – Se soubesses o número de vezes que me atiraram com isso durante a organização desta expedição! Criou mais dificuldades do que outra coisa. 30


A Ilha Verde

Veronica percebeu que esta linha de conversa não ia levar a lado nenhum e interrompeu estrategicamente: – E como segue a história? – Não sei, se calhar acaba aqui! David sorriu com a perspicácia de Veronica e decidiu ajudar. Virou-se para os dois açorianos. – João... – e olharam os dois – é isso mesmo! Como é que vos podemos distinguir? Assim nunca sei quem vou chamar! Um deles respondeu rapidamente. – Chamo-me João Carlos, quase toda a gente me trata por Joca. Podem tratar-me desse modo. – Excelente, então tu ficas Joca e tu ficas João. Evita confusões! Quando voltavam para os carros fizeram ainda um pequeno desvio para ver a Lagoa do Canário, um local calmo e isolado. As árvores desciam mesmo até à margem da água numa boa parte da lagoa. A restante margem era de vegetação baixa, em terreno semi-pantanoso até chegar novamente às árvores. A água em si era opaca e cheia de vegetação subaquática um pouco em contradição com o aspecto bucólico do resto do sítio. De volta à estrada, agora quase sempre a descer, passaram por vários miradouros com perspectivas diferentes, mas menos abrangentes, do que já tinham visto antes. Chegaram finalmente à margem das lagoas, junto a uma ponte de arcos em pedra que as atravessava e funcionava como divisão entre a Verde, à esquerda, e a Azul à direita. Saíram da estrada de alcatrão em direcção a uma pequena península que se prolonga para dentro da Lagoa Azul. Do lado de lá, na pequena baía que esta formava, estavam dois barcos a remos à espera deles. A água junto à margem estava cheia de vegetação e não era muito límpida. Viraram-se novamente para os açorianos e perguntaram se aquilo era normal, nem sequer viam peixes. – Muitas das nossas lagoas estão eutrofizadas. Foi cortada muita floresta nas encostas para dar lugar a pastagens, mas as pastagens não seguram o solo e com a chuva vem tudo parar dentro das lagoas. Depois mais fertilizantes para crescer mais erva e o ciclo foi-se repetindo. É tanta matéria orgânica que 31


Sonhos da Atlântida

as plantas e algas tomaram conta de tudo. Apesar das coisas estarem a melhorar, ainda não convém muito tomar banho aqui. Isto veio tirar um pouco da magia que tinham sentido até então, mas lá seguiram para os barcos e decidiram aproveitar o que havia de bom. Demoraram algum tempo até conseguirem remar com coordenação suficiente para manter os barcos numa linha de movimento mais ou menos linear. Mas depois remaram livremente, mantendo os dois barcos relativamente perto um do outro e dando a volta a quase toda a lagoa. Aventuraramse a atravessar a meio em direcção à ponte de pedra e, passando por baixo desta, entraram na Lagoa Verde. Já de volta à baía onde iam devolver os barcos passaram junto a uma rocha que sobressaia no meio da água. Crescia alguma vegetação em cima dela, mas as zonas junto à água estavam limpas e alguns traços chamaramlhes a atenção. Foram averiguar de mais perto e, gravado na pedra em letras bastante regulares, estava escrito “RAMIREZ”. – Que interessante! – exclamou Kathy – Que navegadores é que andaram por estas ilhas, acham que pode ser de algum deles? O outro barco, onde vinha Veronica, aproximou-se da rocha até ela lhe poder tocar. Usou a parte romba de um canivete para raspar parte da rocha junto à linha de água. A rocha fragmentava-se facilmente. – Provavelmente alguém aqui tem jeito para escrever em pedra! Neste tipo de rocha e mesmo ao pé da linha de água, se tivesse quatrocentos anos já teria desaparecido há muito tempo! – Veronica riu-se – Isto não deve ter mais de dez ou vinte anos, ou mesmo menos. – Grandes arqueólogos! – exclamou Victor. E foi no meio de risos e brincadeiras que, passadas mais de duas horas de passeio de barco, saíram da água. Houve sugestões para irem almoçar o famoso cozido das furnas, mas estavam bastante longe do local e, nesta época de Verão, era necessário reservar com antecedência uma refeição tão requisitada. Tiveram que se contentar com um almoço menos típico num local mais perto. A meio da tarde voltaram à quinta onde estava Ricardo com mais um carro. Arrumaram a bagagem e seguiram em direcção ao porto onde o Estela os esperava. 32


A Ilha Verde

Assim que chegaram Eduardo veio ter com Victor. – Temos um pequeno problema. O ROV ainda não chegou! – Como é que pode ser? Ontem estivemos a vê-lo, porque demora assim tanto tempo? – Perderam o paradeiro do material de manutenção dele. Sabem que está algures no armazém, mas o armazém é muito grande. – Tens o contacto deles? – Sim, é este número, pode ligar daqui. – disse entregando-lhe um telemóvel. Victor falou durante uns minutos ao telefone e, apesar de demonstrar efusivamente o seu desagrado pela situação, não conseguiu progressos. A restante equipa estava fora dos carros à espera do desfecho. – É melhor irmos entrando a bordo e arrumando as nossas coisas, isto vai demorar! – Que se passa? – perguntou David. – Basicamente meteram o material de manutenção do ROV no armazém e foram acumulando outras coisas em cima e à frente e agora não sabem ao certo onde está! Estão a mover tudo de um lado para o outro, e eu vi o armazém, é uma coisa enorme! Se calhar só conseguimos zarpar já de noite. – Podemos fazer alguma coisa? – Só se fôssemos todos para lá mover caixotes de um lado para o outro! – alguns fizeram uma careta perante tal possibilidade. – Não se preocupem, não estou a falar a sério. Seguiram para o Estela e, já acompanhados pelo comandante, foram apresentando a David e Sara os cantos do barco. Em pouco tempo estavam instalados e Victor voltou para o cais impaciente. Dentro do barco, encostado ao corrimão ao lado do comandante, Ricardo deu a sua opinião. – Se fossemos até lá era provável que se despachassem mais depressa. – Achas? – A um Domingo... devem andar todos contrariados por estar a trabalhar e precisam de algum estímulo extra. – Percebo o que queres dizer, queres vir até lá comigo? Victor e Ricardo entraram no todo-o-terreno e saíram apressados do porto. O sol ainda estava relativamente alto no horizonte e alguns tornaram a sair do barco e foram passear à beira-mar. A equipa de mergulhadores juntou-se à 33


Sonhos da Atlântida

conversa no cais, mesmo ao lado do barco mas aos poucos foram-se calando e sentavam-se onde podiam. Sara e David foram até à proa e ficaram empoleirados no corrimão do barco a olhar o mar. Conseguiam ver a silhueta da ilha de Santa Maria à distância e algumas nuvens, mas de resto era apenas o horizonte infinito. Veronica veio de dentro do Estela igualmente até à proa. Vinha de biquíni vermelho vivo, estendeu uma toalha na zona em frente à ponte e deitou-se a apanhar sol. Ninguém ficou indiferente. A equipa inteira de mergulhadores despertou da sua dormência, o comandante, mais acima, esticou-se para ver melhor, e de outros pontos do cais vieram alguns assobios. Sara e David voltaram-se com o burburinho. Veronica sorria com a reacção que provocava mas manteve-se imperturbável até que, à volta, lentamente tudo voltou ao normal. David desta vez controlou-se e não pasmou com a visão, ainda se lembrava do que tinha acontecido no escritório do hotel. Mas não deixou de reparar novamente no olhar insistente de Eduardo sentado na caixa de uma carrinha no cais. Virando-se para David, Sara perguntou discretamente: – Achas que há alguma coisa entre eles? – Não. – disse Veronica sem se mexer – Mas para algumas pessoas basta sorrir e acham que ganham direitos. – Desculpa Veronica, não... – Não faz mal. – interrompeu. Ainda havia luz, mas o sol já tinha desaparecido quando Victor e Ricardo voltaram logo seguidos por uma carrinha com o ROV. – Vamos meter isto a bordo rapidamente. – disse enquanto saía apressado do carro. O ROV e uma caixa foram carregados a bordo e em pouco tempo o comandante estava a dar ordem para soltarem as amarras. Partiram com a noite já a cair. Victor veio juntar-se à proa com Veronica, Sara e David. – Temos mais de doze horas de viagem pela frente, já não conseguimos fazer o turno de mergulho da manhã. – Não podemos ter mais pessoas na água de tarde para compensar? – perguntou David. 34


A Ilha Verde

– Os dois turnos que normalmente organizamos não podem mergulhar o tempo todo. Temos de respeitar tempos de fundo e intervalos de superfície. Isto não veio calhar muito bem. – Victor, – interrompeu Veronica – já é hora de jantar e já devem estar à nossa espera. Vamos entrar? – Vamos. O dia tinha sido tão agradável e agora no fim isto para estragar. – Não podemos fazer nada, e não nos vai atrasar assim tanto. Colocou o braço à volta de Victor guiando-o para dentro do refeitório. *** Já passava das dez horas da manhã quando finalmente se aproximaram do destino. Mesmo sabendo da existência de dispositivos de posicionamento precisos, parecia ainda um mistério como se conseguia encontrar um sítio destes no meio de uma imensidão de água. A analogia de encontrar uma agulha num palheiro ainda parecia ter mais probabilidades de acontecer do que descobrir um ponto no meio deste oceano. Mas lá estavam algumas bóias a sinalizar o local, confirmando a rota correcta que tinham seguido. As manobras para fixar o Estela no local certo demoraram ainda um pouco e, como Victor previra, já não fazia sentido mergulhar antes de almoço. Juntaram-se à popa para conversar um pouco e combinar desde logo como iam organizar a tarde de trabalho. – Faz sentido que vocês mergulhem logo no início. – disse Victor para Sara e David – Assim podem já ficar a conhecer o sítio, conhecer os nossos pontos de referência e ver um pouco do trabalho em curso. E ficam com folga para o caso de se demorarem mais que o tempo de um mergulho normal. – Parece-me adequado. – concordou Sara – E quem nos acompanha? – Quem melhor conhece os limites do sítio arqueológico é a Veronica e o Ricardo. Que dizem de lhes apresentarem os cantos à casa? – Será um prazer guiar-vos lá em baixo. – concordou Veronica com o seu sorriso habitual. 35


Sonhos da Atlântida

Eduardo estava a testar o funcionamento de um regulador3 e falou um pouco sobre como tinham o fundo dividido. – Temos tempos de fundo determinados por zonas. Assim sabemos facilmente quando é que entramos em mergulho descompressivo apenas pelo tempo e pelo local onde estamos. Mas por regra tentamos não ficar tempo suficiente para o mergulho se tornar descompressivo. Seria mais cansativo para todos, teríamos demasiado equipamento em uso durante muito tempo e sem folgas para resolver algum problema que eventualmente aconteça. Por isso é que vai metade da equipa de cada vez lá para baixo. É mais eficiente e mais seguro. *** Debaixo de água Veronica e Ricardo levaram Sara e David numa passagem rápida pelo local onde iriam recomeçar a trabalhar. As grelhas estavam perfeitamente colocadas e o trabalho em curso era evidente apesar de a areia ter novamente ocupado as zonas onde tinham escavado até mais fundo. Rodearam o sítio pelo exterior, perto dos limites de profundidade de mergulho para a maior parte da equipa, e depois seguiram em direcção ao local que descia para o desfiladeiro que o sonar tinha revelado. Todo o fundo que tinham visto era do mesmo tipo. Areia limpa e, com a excepção das linhas delimitadoras das várias zonas de profundidade, aparentemente intocada. A espaços largos, uma ou outra rocha aflorava na areia quase como se de um jardim Zen se tratasse. Subiram depois um pouco e seguiram com o fundo a ficar cada vez mais distante, até deixar de se ver por completo. Eram agora conduzidos por cima da plataforma e do desfiladeiro, bastantes metros mais abaixo e, apesar de não os conseguirem ver, Sara e David conseguiam imaginar como seria lá em baixo. A tempo, a parede tomou forma à frente deles, dobrando para dar lugar ao planalto rochoso subaquático, mais ou menos à mesma profundidade a que nadavam. Seguiram alguns metros por cima deste novo local e aqui tudo era 3

Parte do equipamento que liga a garrafa de ar ao bocal, por onde o mergulhador respira, e que adapta a alta pressão da garrafa à pressão ambiente. 36


A Ilha Verde

diferente. Não havia areia, as rochas eram muito mais irregulares, com saliências e depressões que facilmente constituiriam verdadeiro perigo com mar agitado. Não se demoraram muito. O regresso pareceu mais demorado e quase que se sentiam tentados a descer e fazer uma primeira inspecção ao fundo desconhecido, junto ao desfiladeiro. Quando surgiu novamente a areia seguiram uma zona onde as rochas eram relativamente mais frequentes formando algo parecido com uma coluna vertebral submarina. Chegaram novamente ao local de trabalho onde agora, Michel, parte dos estagiários e dois outros mergulhadores da equipa de Eduardo estavam já a terminar o seu turno. Emergiram com eles ajudando a colocar a bordo mais alguns artefactos recolhidos no fundo. Pouco depois mergulhou Dominique com os restantes estagiários. Victor e Eduardo tinham estado a analisar o ROV e acabaram por descobrir que não era assim tão simples torná-lo operacional. Os cabos de sinal e comando estavam em mau estado e teriam que ser reparados ou substituídos, não estavam etiquetados e não sabiam o que deveria ligar a quê. O cabo para içar o ROV não encaixava com a ligação ao guincho e teriam igualmente de improvisar uma fixação. – Com o trabalho normal dos mergulhos, acho que ainda não é amanhã que conseguimos meter isto na água. – desabafou Victor – Mas contem-me lá o que acharam do local. David ficou ainda a olhar para o ROV surpreso com o mau estado do equipamento, enquanto Sara o puxava e ia respondendo a Victor. – Ficámos a conhecer o que precisamos. Temos muito espaço por onde explorar. – Amanhã mesmo podemos começar a prospecção nas zonas menos fundas. Até o ROV estar funcional creio que por aí não corremos grandes riscos. – completou David – Mas onde é que arranjaste aquele ROV? – Não viste, foi nos Açores. – e seguiu de imediato, fugindo à conversa – Vamos ver o que trouxeram lá de baixo. 37


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.