Pares e Ímpares, Memórias de um Bairro (1952-2013)

Page 1




FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Ex-Libris TÍTULO: Pares e Ímpares. Memórias de um Bairro (1952-2013) AUTOR: Hel ena Abecasis e Miguel Guerreiro PAGINAÇÃO: Paulo Resende CAPA: Patrícia Andrade Detalhe de aguarela de Paulo Ossião, 2011 (especialmente cedida pelo autor) ILUSTRAÇÕES: Paulo Ossião, Eduardo Salavisa, Filipe Leal de Faria (cedidas pelos autores) 1.ª EDIÇÃO LISBOA, JUNHO 2013 ISBN: 978-989-98448-0-3 DEPÓSITO LEGAL: 359533/13 © HELENA ABECASIS E MIGUEL GUERREIRO PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt




Apresentação O Bairro do Restelo está integrado na freguesia de Santa Maria de Belém, que é a freguesia mais ocidental da cidade de Lisboa, junto ao rio Tejo, onde “o rio abraça o mar”, tendo sido inclusive sede do então concelho de Belém (18521885), que teve como ilustres Presidentes o escritor Alexandre Herculano e Pedro Franco (1.º Conde do Restelo). Foi neste Bairro do Restelo onde sempre vivi, cresci e me fiz homem, que tenho as minhas raízes e muito boas recordações de uma vivência feliz e saudável, com muitos e bons amigos, muita brincadeira e desporto, normalmente em plena rua; tenho memória de inúmeras festas (algumas delas em garagens) e permanentes e sãos convívios nos cafés, esplanadas e jardins da zona comercial do Bairro, esta considerada como um dos primeiros centros comerciais ao ar livre construídos no nosso país. Além de tudo isto lembro-me que era um Bairro verdadeiramente inter – classista, onde todos conviviam naturalmente e de forma exemplar independentemente das suas origens sociais, havendo, contudo, senão me atraiçoa a memória, alguma rivalidade entre as ruas pares e as ruas ímpares. A atual freguesia de Santa Maria de Belém foi criada em 1833 e orgulha-se por ser conhecida como a freguesia monumental por excelência e única no mundo com dois monumentos considerados pela UNESCO como Património da Humanidade (Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém), bem como dos grandes espaços verdes e bonitos jardins de Lisboa. Muito em breve, no final do corrente ano, esta freguesia de Santa Maria de Belém irá ser objeto de fusão com a freguesia de São Francisco Xavier, extinguindo-se ambas e criando-se uma mega freguesia, a freguesia de Belém, com novas e acrescidas competências próprias. Na minha qualidade de Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém foi com muito gosto e prazer que recebi esta proposta dos autores para apoiar esta interessante obra e poder de alguma forma contribuir para o registo de algumas memórias do meu Bairro de sempre. Aliás, considero mesmo esta possibilidade de apoio, um autêntico privilégio! 7


A concluir e por uma questão de justiça, quero enaltecer e testemunhar a enorme dedicação, empenho e competência demonstrado pela Helena Abecasis e pelo Miguel Guerreiro, que encabeçaram a execução desta obra sobre o Bairro do Restelo, que é fruto do trabalho de muitas outras pessoas, que para ela contribuíram, com testemunhos únicos de muitos anos de vida, enriquecendo ainda mais todo o vasto conhecimento da atividade sócio – cultural do Bairro do Restelo, perpetuando para as gerações vindouras todas estas memórias vividas e agora relatadas neste livro. Restelo, Junho de 2013 Fernando Ribeiro Rosa (Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria de Belém)


Índice Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . História do Bairro . . . . A Origem do Bairro . . . . . . O Estudo Urbanístico . . . . . O Projecto de Arquitectura . . A Legislação . . . . . . . . . . O Centro Comercial . . . . . . O Cinema Restelo . . . . . . . O Bairro em Números . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

Memórias de um Bairro Factores de Socialização . . . . . As Escolas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Centro Comercial do Restelo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os Escuteiros (1961-1970) . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Bairro no Tempo do Padre Felicidade Alves (1956-1968) . . . . O Desporto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Râguebi no Bairro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . .

. . . . . . .

. . . . . . .

. . . . . . .

35 . . 37 . . 53 . 73 . . 89 . 105 . 117

Memórias de um Bairro Vivências e Histórias . As Brincadeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pequenas Histórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Visita da Rainha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pares e Ímpares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As Festas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . .

. . . . . .

. . . . . .

. . . . . .

. .

. . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . . .

11

. . . . . .

. . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . .

. . . . . . .

17 19 22 22 23 28 30 31

.

127 129 . . 145 . . 159 . . 167 . 173


Mem贸rias de um Bairro Testemunhos . . . . . . . . . . . . . . . .

183

O Bairro Hoje . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

285

Mem贸ria em Imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

297

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

321

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

323

Anexo Invent谩rio das fam铆lias originais do Bairro. . . . . . . . . . . . . . .

325


Introdução Este livro, que não estava propriamente nos meus planos nem na minha trajectória de vida, constituiu um dos maiores desafios que alguma vez tive. A aventura deste projecto acabou por ser uma fonte de experiências, difíceis, e algumas muito críticas, mas determinantes para mim a título pessoal, acreditando que também o terá sido para algumas pessoas que tiveram intervenção activa nesta obra, desde o seu início. Mas também houve momentos muito especiais tendo tido a oportunidade de conhecer pessoas que de outro modo nunca teria conhecido. Hoje, com um outro olhar sobre o Bairro e sobre as pessoas que nele viveram, verifico que se criou um ambiente único determinado por muitos factores, entre eles o local onde foi implantado, o seu aspecto urbanístico, até à própria população que o preencheu que, como sabemos, obedecia a determinados parâmetros. Tudo isto determinou o desenvolvimento de uma vivência, imprevisível à partida, mas de certo modo condicionada. Para alguns especialistas é certamente um case study. Numa outra perspectiva, a da socialização que proporcionou, traduzida no saudosismo que criou na grande maioria da segunda geração do Bairro, aquele laço invisível que une e faz com que hoje ainda se encontrem, tornou-se uma experiência muito especial. Na medida em que há sempre um ou vários motivos subjacentes àquilo a que nos dedicamos, tem aqui cabimento uma explicação quanto ao aparecimento deste livro. O primeiro motivo deve-se à minha inesgotável curiosidade de saber o porquê das coisas. Neste caso, o facto de, ainda hoje, e a sessenta anos de distância, este 11


12

Bairro continuar a ter uma vida muito própria, profundamente ligada ao seu passado. E quem diz passado, diz Memórias. Um outro aspecto fundamental, associado à origem deste livro, foi a oportunidade de ter conhecido nos últimos anos, quando voltei a viver no Bairro, um grupo de pessoas quase todas ainda aqui a viver, as quais surpreendentemente, digo eu, me admitiram no círculo da sua convivência. E digo fundamental, porque foi assim que nasceu esta obra, num desafio que lancei ao Miguel Guerreiro, o co-autor deste livro, em finais de 2010. Apesar de eu ter assumido, a partir de certa altura, a liderança do projecto, a recolha e tratamento dos testemunhos e a autoria de certos capítulos, aquele contou, desde a primeira hora, com a parceria do Miguel. A ele se deve, em grande parte, o inventário das famílias, os contactos de muitas das pessoas, bem como a angariação de alguns dos patrocínios e o título deste livro. Quanto ao âmbito da presente obra e da própria palavra Bairro, importante é realçar que o bairro deste livro é o Bairro Económico do Restelo, um aglomerado de casas económicas, como foi inicialmente denominado, de iniciativa estatal e a que, hoje, por deformação chamamos Bairro do Restelo. Para quem esteja de fora, o Bairro do Restelo engloba também o chamado Bairro residencial. Designações como “Restelo de cima” e “Restelo de baixo”, aparecem frequentemente ao longo deste livro, assinalando a demarcação do espaço. A identidade do nosso Bairro foi-se criando com o tempo. Curiosamente, em anúncios de estabelecimentos da área comercial do Restelo, que datam talvez de 1956, registam-se endereços bem díspares, que vão desde Bairro de Pedrouços a Bairro da Encosta da Ajuda. Essa identidade foi também influenciada por uma vivência de factores comuns. Uma vivência que se passou numa área bem delimitada, quase exclusivamente protagonizada pelas cerca de 450 famílias que aqui viviam. Excepcionalmente juntaram-se outras pessoas, quer por viverem na vizinhança imediata do Bairro, quer pela participação em certas actividades (desporto, actividade paroquial, escolas e outras). São muitas as pessoas que tiveram intervenção nesta obra, começando por aquelas que deram o seu testemunho directa ou indirectamente, por quem emprestou fotografias, pelos que contaram e ilustraram histórias, cederam textos antigos ou os escreveram propositadamente para este livro.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Mas não quero deixar de nomear e, desde já agradecer, pelo papel determinante que tiveram ao longo da execução desta obra, o Tó Zé Carvalho, a Maria do Carmo Vieira e o Quim Zé Afonso que me incentivaram em alturas críticas e que apoiaram incondicionalmente o projecto. Sem a sua contribuição o livro não teria provavelmente chegado a seu termo. O autor das aguarelas é o Paulo Ossião, um menino do Bairro. O livro contou também com a participação do Arqto Carlos da Maia (Calocha), nos aspectos urbanísticos e arquitectónicos do Bairro, do Tó Zé Roberto, autor do texto sobre o Desporto, e do Chico Lopes, que contribuiu com muita informação relativa ao lado Par do Bairro. Algumas fotografias são do João Valério e os desenhos do capítulo “O Centro Comercial” de Eduardo Salavisa e de Filipe Leal de Faria. Só este último não é do Bairro. Dos testemunhos recolhidos, nem todos figuram no capítulo a eles dedicado. Em muitos casos, a informação aparece na forma de citações nos diversos temas abordados no livro, desde “A História do Bairro” até a “As Festas”. Sabendo de antemão que os leitores deste livro constituem um público particularmente difícil, desde já salvaguardo que este é apenas um livro de memórias, com todos os condicionamentos que isso implica. Muita coisa ficou certamente por dizer. Também as imagens estiveram condicionadas às fotografias da época, à sua qualidade inicial e às condições de digitalização. Em muitos casos não foi possível aceder ao original para melhorar a sua definição. O inventário, que faz parte desta obra, e que pretendia apresentar todas as famílias originais do Bairro, acabou por ficar incompleto. No entanto será sempre possível completá-lo em reedições futuras, se as houver. Antes de terminar gostaria de deixar expresso que o livro ultrapassa os seus autores. A partir dos primeiros testemunhos este livro adquiriu, de certo modo, a sua autonomia, quer pela oportunidade de alguns deles, quer pelas coincidências que iam acontecendo e que a mim própria me surpreendiam. O que senti foi que quando começei a falar directamente com as pessoas, o livro deixou de ser meu e passou a ser o da memória de todos nós, memória que está inscrita num tempo e num espaço onde se iam recolhendo, aqui e ali, os pedaços soltos de um passado. O livro é, pois, de todos os que transportam o passado do Bairro dentro de si. Helena Abecasis

13



Aspecto do Plano Geral de Urbanização de Lisboa-Encosta da Ajuda das coleções Estúdio Mário Novais da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (autorizada exclusivamente para publicação neste livro).



História do Bairro A Origem do Bairro O Estudo Urbanístico O Projecto de Arquitectura A Legislação O Centro Comercial O Cinema Restelo O Bairro em Números


Onde se deduz que o Bairro onde vivemos se deve a um feliz conjunto de circunstâncias, entidades, planos e arquitectos e como este Bairro foi inserido num belo e ambicioso plano de urbanização de uma zona privilegiada e limítrofe da cidade, cujo autor foi um conceituado arquitecto urbanista português, João Guilherme Faria da Costa, que viveu no Bairro do Restelo.


A Origem do Bairro Entre os restelenses muitas histórias se contam relativamente ao aparecimento deste Bairro. Uma destas histórias é frequentemente associada à visita da rainha Isabel II de Inglaterra, a tal visita a um Bairro de pescadores. Na medida em que o Bairro Económico do Restelo está integrado no Plano de Urbanização da Encosta da Ajuda, pode dizer-se que a sua génese data de 1938. O que não é inteiramente verdade porque tal plano não previa inicialmente este Bairro. O estudo, elaborado pelo Arquitecto Faria da Costa (1906-1971), considerado um dos maiores urbanistas em Portugal, não teve seguimento imediato. No entanto, quando se iniciou o loteamento da Encosta da Ajuda, este terá começado na zona norte com a consequente ocupação por moradias de luxo, conforme previsto no estudo, continuando intacta a zona sul. O que leva a questionar se já haveria outros planos para essa mesma zona. O facto é que só em 1947 é oficializada a decisão da construção deste Bairro, tendo tal decisão aguardado, porventura, enquadramento legislativo. Como adiante se verá, só em 1945 sai a legislação que viria a permitir um novo modelo de habitação económica. Em 1947, o Ministro das Obras Públicas (MOP), na altura o Engº José Frederico Ulrich, confirma a decisão relativa a um novo Bairro de casas económicas (certamente tomada anteriormente pelas entidades intervenientes, o Ministro das Corporações e Previdência Social e a Presidência do Conselho, além do MOP) designando o Arqt.º Faria da Costa para proceder ao “estudo do projecto do aglomerado de Casas Económicas da Encosta da Ajuda”. Esse ofício data de Julho de 1947 e é dirigido ao Director Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. As referências a seguir apresentadas têm como base o referido projecto. 19


20

Começando pela designação, de registar que o autor lhe atribuíu o nome de “Bairro de Moradias Económicas da Encosta da Ajuda”. Isto vem confirmar a falta de identidade que o nosso Bairro sofreu durante alguns anos. A actual designação de “Bairro do Restelo” viria a pouco e pouco a ser consolidada, abrangendo a totalidade residencial construída do plano da Encosta da Ajuda. O âmbito do projecto dizia respeito não apenas às moradias, como também à localização do Grupo Escolar, Zona Comercial e Centro Cultural. Só este não chegaria a concretizar-se. A planta localiza-o no final da rua Cristóvão da Gama, frente ao futuro Cinema Restelo. A referência à reformulação do projecto, de modo a ser integrado no projecto já elaborado para a Encosta da Ajuda (Zona Residencial de luxo) onde os arruamentos previstos e até adjudicados, atendiam a uma finalidade diferente, prova que este Bairro não tinha sido inicialmente previsto. Diz o autor que seria dada “uma nova utilização a esses arruamentos de modo a permitir criar áreas médias para os lotes, dentro das que estão previstas pelo Decreto, para os Bairros Económicos”1. Faria da Costa viria a ser, pois, o autor do projecto de arquitectura e urbanismo do Bairro de Moradias Económicas da Encosta da Ajuda, um conjunto de habitação económica de promoção pública estatal, elaborado para a Direcção dos Serviços de Construção e Conservação da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) do MOP. Quanto às moradias, o autor do projecto propõe que seja adoptado o projecto das casas económicas unifamiliares que anteriormente tinha elaborado para um outro bairro e que não tinham sido aplicadas (classes C e D). Seria o primeiro Bairro de casas económicas que teria exclusivamente estes dois tipos de classes. O projecto foi apresentado e aprovado em 1948, salvo a parte respeitante a garagens nas ruas pedonais, que foram posteriormente incluídas, mas não construídas. Todas as peças desenhadas consultadas, algumas com pormenores como as vedações e portões e até perfis da zona comercial, estão assinadas pelo Arqt.º Faria da Costa, que já não estava na CML. A empreitada é posta a concurso em 1949, concurso este que foi entretanto anulado e a obra só viria a ser adjudicada em Maio de 1950. Prevendo-se a sua

1

Memória descritiva do projecto “Bairro de Moradias Económicas da Encosta da Ajuda”, Faria da Costa, Arquitecto Urbanista


P A R E S

E

Í M P A R E S

finalização em meados de 1952, é ainda em finais de 1951 que se inicia a promoção da distribuição das casas pela Direcção Geral da Previdência e Habitações Económicas. Em 1952 o Bairro começou a ser habitado. O agrupamento é constituído por 452 moradias unifamiliares. O Bairro de moradias unifamiliares seguia o modelo da arquitectura vigente, inspirada na cidade-jardim inglesa2 ou americana segundo alguns especialistas. O próprio diploma que criou o Programa das Casas Económicas o afirma: «facilitar a construção de habitações independentes e ajardinadas, semelhantes às que em Inglaterra — propriedade das famílias — têm produzido interessantes efeitos.» Talvez esta inspiração arquitectónica e urbanística se relacione com a visita da Rainha ao Bairro, uns anos mais tarde. Sobre as alterações que posteriormente as casas viriam a sofrer, e a que se referirá o Arqt.º Carlos Maia Domingues no tema que se segue, cite-se por curiosidade, um ofício dirigido os Serviços de Construção de Casas Económicas do MOP, no ano de 1954. Nele é emitido um parecer desfavorável relativo a um pedido de alterações para uma casa do Bairro, por representar o primeiro atentado contra a unidade e harmonia do mesmo. Mas, no que nos diz respeito, a nós restelenses, e que veio a revelar-se importante para a história deste livro é que o Bairro usufruiu de uma invejável implantação em anfiteatro, numa zona perto do rio, estando desde o início previsto no projecto uma artéria principal (que atravessa e divide o Bairro sensivelmente a meio), com o objectivo de nela colocar uma zona de serviços (escolas e estabelecimentos comerciais). Esta zona, que viria posteriomente a ser construída já por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa (1952-1954), provou ser determinante na socialização dos seus habitantes. Mas passo a palavra a um especialista na matéria, também restelense, para nos elucidar sobre os aspectos urbanísticos e arquitectónicos, e que mais adiante, neste mesmo capítulo, nos falará do Centro Comercial.

2

Os arquitectos ingleses inspiradores da cidade-jardim foram Sir Ebenezer Howard, Richard Barry Parker e Raymond Unwin. Parker terá desenvolvido estudos para a cidade do Porto.

21


22

O Estudo Urbanístico O Arqtº Faria da Costa, primeiro Urbanista português de formação moderna internacional, diplomado em 1935 pelo prestigiado Instituto de Urbanismo da Universidade de Paris, foi contratado pelo Eng.º Duarte Pacheco, presidente da Câmara, para executar o “Plano Director de Lisboa” (1938-1948). Responsável pelos Planos de Urbanização, elaborou com Étienne de Gröer diversos estudos salientando-se, neste caso, o do Bairro do Restelo “Plano da Encosta da Ajuda” de 1938/40, integrado no “Plano Geral de Urbanização de Lisboa”. Faziam parte do gabinete de estudos Inácio Peres Fernandes e Francisco Keil do Amaral. Este Plano permitiu urbanizar uma vasta área em plano integrado, com cuidada precisão de sistemas de eixos reticulares, impasses e células residências, tendo sido edificada uma extensa área ocidental da cidade, que conserva ainda actualmente uma boa qualidade de vida e um equilíbrio estético, funcional e ambiental. Foi classificada recentemente, zona residencial de excelente qualidade urbana da cidade. Fortemente residencial, o Bairro com uma planta em forma de anfiteatro, implantado equilibradamente no declive natural do terreno, contempla uma baixa densidade populacional. Pela sua implantação verifica-se que as vias de circulação obedecem a um projecto bastante funcional, permitindo que a circulação se processe ordeiramente. A via axial (via central) atravessa-o longitudinalmente, da rua de Pedrouços à Av. do Restelo e as avenidas da Torre de Belém e Vasco da Gama definem os limites do Bairro, a nascente e a poente, respectivamente. Estas vias, com maior largura de faixa de rodagem, pela sua função, são atravessadas transversalmente por quatro artérias rasgadas, estabelecendo a ligação com as vias secundárias interiores do Bairro.

O Projecto de Arquitectura O projecto de arquitectura foi da autoria do Arqtº Faria da Costa e caracteriza-se por um conjunto de moradias unifamiliares geminadas e em banda, formando um conjunto harmoniosamente adaptado ao desnível natural do terreno. Em termos arquitectónicos as seis tipologias obedecem sempre a um eixo de simetria, verificado nas plantas e fachadas, nas moradias em banda e nas moradias geminadas, implantadas intencionalmente, de forma a valorizar o conjunto.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Os diferentes projectos pretendem ver solucionada a monotonia resultante da repetição das fachadas conseguindo desta forma, uma excelente qualidade estética. No entanto, este equilíbrio tem sido sistematicamente violado, devido a ampliações efectuadas a partir dos finais dos anos 70, bem como algumas mais recentes (que parecem não respeitar a volumetria regulamentar do PDM3 e do RGEU4, salvaguardando alguns residentes, cujos projectos cumprem os índices urbanísticos e que pagaram as taxas em vigor. Os projectos do Arqtº Faria da Costa têm nítidas referências à tradicional “casa portuguesa” com uma ampla cobertura em telha cerâmica, com beirado pintado de branco e cores claras, utilização de pedra ou similar nas molduras dos vãos, portadas interiores em madeira, e um alpendre coberto ou avarandado com ou sem cobertura de telha. As seis tipologias dominantes seriam posteriormente atribuídas em concurso público consoante a composição dos agregados familiares.

A Legislação Retomando o assunto das casas económicas, impõe-se agora abordar a legislação que lhes diz respeito. A política da habitação social, que já vinha do tempo da 1ª República, seria objecto de legislação em 1933 (Decreto-Lei nº 33) dando origem a diversos Bairros sociais (Alvito, Quinta do Jacinto, Belém, Caramão da Ajuda, Quinta das Furnas, Quinta da Calçada, Alto da Boa Vista, Alto da Serafina, Encarnação, Madre de Deus, Campolide,...), todos anteriores a 1945. O Estado Novo entra entretanto numa fase estável. O funcionalismo público atrai muita gente à capital e a falta de habitação torna-se crítica, mas agora a um outro nível social. É neste contexto que surgem as casas de renda económica destinadas à classe média citadina. Tornava-se urgente solucionar o problema habitacional dessa classe de cujo apoio o regime precisava. Para compreender o espírito da época, referem-se as palavras de Salazar5:

3 4 5

Plano Director Municipal Regulamento Geral de Edificações Urbanas Discurso proferido em 7 de Novembro de 1948, citado na obra Bairro de Alvalade Um Paradigma no Urbanismo Português, de João Pedro Costa, 2006

23


24

Essa obra, variada e multiforme, de majestosos edifícios ou pequenas habitações graciosas, de largas estradas e caminhos rústicos, de fábricas e de igrejas, de portos e de barragens, de escolas e de hospitais, de castelos e de quartéis, não nasceu por acaso, mas do nosso próprio conceito de Governo e da sociedade portuguesa, ou seja, de uma sociedade hierarquizada sem privilégios, trabalhadora sem servidão, modesta sem miséria, progressiva sem despegar-se do passado de que se orgulha... O Restelo e Alvalade foram projectos estatais de referência na altura, e, como diz, com graça, o Arqt.º Teotónio Pereira, dariam origem aos pequenos “restelos” das casas económicas (de edifícios unifamiliares) e aos pequenos “alvalades” (de pequenos edifícios multifamiliares) disseminados nas cidades do país. Em 1945 sai a legislação específica (Lei nº 2007) para resolver o problema do inquilinato das famílias6 impossibilitadas de converter-se em proprietárias de moradias económicas, criando o Programa de casas de renda económica. O princípio subjacente a este programa era que com rendas compatíveis com os rendimentos mensais das famílias se conseguiria resolver a falta de habitação. No ano seguinte, em 1946, é criada a Federação das Caixas de Previdência – Habitações Económicas (FCP - HE), com o intuito de canalizar os capitais das instituições de previdência (todas as caixas sindicais de previdência ou reforma dependentes do Ministério das Corporações e Previdência Social) para o fomento da habitação económica (Decreto-Lei nº 35 611). Assim, a partir de 1947 surge a primeira fase de construção de Bairros habitacionais pela FCP-HE, através do emprego de fundos da Previdência. As casas podiam ser adquiridas em regime de propriedade resolúvel. Os terrenos eram disponibilizados pelas Câmaras Municipais. Estas tinham também a incubência da infraestruturação da urbanização. Foi assim que no caso do Plano da Encosta da Ajuda se iniciam em 1947 os estudos dos arruamentos de acesso às casas Económicas do Bairro da Encosta da Ajuda. Em 1949 empreende-se a construção das rua V (D. Francisco de Almeida), VIII (Cristóvão da Gama) e XII da Encosta da Ajuda. Note-se que não tinha sido ainda atribuído topónimo a algumas das vias principais. Em 1950 dá-se por concluída a demolição da Fábrica do gás, instalada no terreno frente à Torre de Belém (vai para a Matinha). Nesse mesmo ano começam os trabalhos de iluminação da rua

6

O programa das casas de renda económica era dirigido à classe média, excluída do regime das casas económicas.


P A R E S

E

Í M P A R E S

D. Francisco de Almeida e da rua Duarte Pacheco Pereira e, em 1951, a iluminação e ajardinamento das Praças de Damão e de Goa e da rua Fernão Lopes de Castanheda. Em 1952 continuam os trabalhos de iluminação na D. Francisco de Almeida, na Duarte Pacheco Pereira, na S. Francisco Xavier, na Cristóvão da Gama e nas ruas pares, 2, 4 e 6. Nesse mesmo ano procede-se à rede de distribuição de gás no Bairro Económico, bem como na Av. Vasco da Gama e na rua de Alcolena. Um apontamento breve sobre a zona de implantação do Bairro: O Bairro veio a ser implantado em terreno da propriedade dos Duques de Cadaval, que em tempos abrangia toda a zona de Pedrouços, prolongando-se para além da rua do Alto do Duque. No palácio dos Duques (séc. XVIII) está hoje instalado o Instituto de Altos Estudos Militares, delimitado pelas ruas Soldados da Índia, D. Cristóvão da Gama e Duarte Pacheco Pereira. Partindo da rua de Pedrouços para o lado norte, esteve outrora instalada a Carreira de Tiro, ocupando parcialmente terrenos que pertenciam à Casa Cadaval. Lembro-me que algumas das casas desta zona (ruas pares) terem podido usufruir de antigas instalações da Carreira de Tiro para fazerem caves. Esta área do Bairro tinha sido implantado no local onde aquela anteriormente se situava. (Almirante Joaquim Carvalho Afonso)

Quando as famílias, logo após ocuparem as suas casas do Bairro, começaram a arranjar os espaços de quintal, ao cavar a terra encontravam muitas vezes rocha compacta a apenas um palmo ou pouco mais de profundidade, rocha que se tirava à custa de picareta e escopro e maço de ferro. Quando a rocha partia, libertavam-se umas pedras com um formato curioso que se percebeu que eram fósseis. Dada a forma destas pedras, de início pensou-se que seriam fósseis de dentes ou de chifres, mas não, são fósseis marinhos (de acordo com a confirmação do museu da Faculdade de Ciências) muito comuns no subsolo de Lisboa, da época em que a península estava coberta pelo mar, há mais de 50 milhões de anos. (Fernando Pereira Bastos) A Câmara tinha também a seu cargo a aprovação do trajecto dos transportes. Assim, no ano de 1952 é prolongada a carreira Sapadores-Belém que passa a ir até Algés (o célebre nº12) passando pelas rua dos Jerónimos, Av. do Restelo, rua D. Lourenço de Almeida, rua D. Francisco de Almeida e Av. Vasco da Gama.

25


26

A Atribuição das casas Se a construção dependia do MOP, já a atribuição das casas era da competência da Direcção Geral da Previdência e Habitações Económicas, dependente do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência do Ministério das Corporações e Previdência Social, havendo inicialmente uma ligação com a Presidência do Conselho de Ministros (Secretário da Presidência). Em 1953 são introduzidas algumas alterações à legislação sobre casas económicas pelo Ministério das Corporações e Previdência Social (DL nº 39 288). Essas alterações respeitavam a actualização de rendimentos, a eliminação do abono de família no cômputo desse rendimento, a preferência a casais com filhos, a modificação do regime de suplentes. Pretendia igualmente igualar o sistema de distribuição das casas do contigente destinado aos sócios dos sindicatos ao do adoptado para os funcionários públicos. O mesmo Decreto-Lei oficializa ainda o serviço social dos Bairros económicos. São igualmente contempladas excepções, dependentes da aprovação do Ministro das Corporações e Previdência Social. Por exemplo será permitida a atribuição de casas do tipo 3º (C3 ou D3) aos chefes de família com mais de três filhos. De salientar que, para o caso dos concorrentes dos sindicatos, era tida em conta a sua regularidade no emprego. Segundo a legislação, a atribuição das casas será, sempre que possível, precedida de inquérito do serviço social às condições morais, económicas e habitacionais do agregado familar dos concorrentes, em ordem à classificação destes. Era aberto concurso por um prazo de 30 dias, publicado no Diário do Governo. Os impressos eram fornecidos pela 2ª Repartição da Direcção Geral da Previdência e Habitações Económicas que funcionava na rua da Junqueira. Não tendo sido o Bairro preenchido no primeiro concurso, realizaram-se pelo menos mais dois ou três concursos. Vim para o Bairro por acidente. Vivia em Alvalade, quando soube que estava aberto o 2º concurso para as casas económicas do Bairro do Restelo, ao qual me habilitei. Na altura, desloquei-me a um departamento que dependia da Presidência do Conselho de Ministros, que se situava na Rua da Junqueira7, onde fui recebido por uma assistente social tendo tido a oportunidade de escolher entre as casas da rua Soldados da Índia e as da zona onde fiquei (rua 14). Um dos motivos da minha escolha foi a vista. Nesse tempo, da varanda do quarto conseguia ver, com auxílio de um óculo, as horas na torre da Igreja da Trafaria. Era então possível avistar-se a navegação do Tejo. Quando parti em comissão de

7

A 2ª Repartição da Direcção Geral da Previdência e Habitações Económicas.


P A R E S

E

Í M P A R E S

serviço para a Índia Portuguesa, consegui ver do navio a minha mulher a acenar dessa mesma varanda. (Almirante Joaquim Carvalho Afonso) As condições para admissão eram as que a seguir se resumem, com base no aviso do 1º concurso publicado no Diário do Governo em 19518: Quanto a pretendentes: 1) Funcionários do Estado, civis ou militares, dos corpos e corporações administrativas e operários dos respectivos quadros permanentes. O vencimento ou salário e a composição do agregado familiar e respectivos rendimentos serão atestados pelo director de serviços a cujo quadro o requerente pertença. 2) Empregados, operários ou outros assalariados que sejam sócios dos sindicatos nacionais. Quanto a idade, os candidatos deveriam ter entre 21 e 45 anos à data do concurso. O rendimento era um dos critérios de habilitação e de selecção. As moradias serão distribuídas em correspondência com o salário do agregado familiar dos concorrentes. Classe C, entre 2 200$ e 3 500$ e Classe D, entre 3 100$ e 4 500$. Não poderiam ser admitidos concorrentes cujos salários não atinjissem 2 200$ ou excedessem 4 500$. Os concursos posteriores a este, já incluíam normas quanto aos contigentes para o funcionalismo público e afins e para os sindicatos (80% para funcionários públicos e 20% para sócios dos sindicatos nacionais). No 1º concurso não é referida o modo de distribuição por tipologia das classes, só figurando esta, em concursos posteriores: • do tipo I para famílias com um filho ou com dois do mesmo sexo (no Restelo apenas C1 e D1). Havia uma excepção para casais sem filhos que tivessem casado há pouco tempo. • do tipo II para famílias com filhos do mesmo sexo até um máximo de quatro (C2 e D2). • do tipo III para famílias com filhos de ambos os sexos ou com filhos do mesmo sexo, até seis (C3 e D3). • do tipo IV para famílias com mais de 6 filhos.

8

Houve alterações à legislação já depois deste 1º concurso para a distribuição, em regime de propriedade resolúvel, das moradias que constituem o Bairro de Casas Económicas da Encosta da Ajuda.

27


28

Esta última categoria deveria corresponder às casas geminadas do Bairro e não estava prevista na legislação no ínicio do projecto. Seriam seis conjuntos (duas casas C2) todos situados na rua São Francisco Xavier. Dentro de cada tipo, as condições de preferência eram o número de filhos, a menor idade destes (média dos anos), a maior idade do concorrente, o menor rendimento e outras pessoas do agregado familiar. A minha casa, uma C2, é para famílias de dois filhos e foi a penúltima desta categoria a ser distribuída. Entrámos em 1955. Lembro-me do meu marido (funcionário do Ministério do Ultramar e Engº geógrafo) ter ido falar com o director das Casas Económicas, na rua da Junqueira, para saber da possibilidade de concorrer a uma casa do Bairro. Na altura só tínhamos um filho, mas eu como estava à espera do segundo filho pudemos concorrer. (Maria Eugénia Lourenço)

O Centro Comercial O Centro Comercial da Encosta da Ajuda, situado na artéria principal e axial do Bairro, a rua Duarte Pacheco Pereira, é considerado uma das obras mais significativas do Movimento Moderno Português e foi o primeiro do género a ser construído ao ar livre (1949-1956). Projectado pelo Arqtº Raul Chorão Ramalho, por encomenda da CML, era destinado a preencher as necessidades comerciais de apoio ao Bairro, numa zona que, desde o início da década de 40, estava em franco desenvolvimento urbanístico. A sua construção foi de tal maneira importante, que durante vários anos, os moradores do Bairro e dos arredores usufruíram, de todo o género de bens alimentares frescos do dia, de toda a variedade de comércio, bem como de um serviço prestado ao domicílio, efectuado de madrugada, com a distribuição de leite, pão e jornais do dia. Constituído por quatro blocos simétricos, o Centro conjuga habitação (nos pisos superiores) com galerias comerciais. Uma zona verde ajardinada serve de protecção a conflitos pedonais com o tráfego das vias circundantes, facto inovador que veio a ser adoptado noutras intervenções do género. O Centro, implantado equilibradamente no declive natural do terreno, com os acessos de nível, superou as “Barreiras Arquitectónicas”, acessos que só foram regulamentados meio século depois e que, em muitos dos casos, ainda não se respeitam.


P A R E S

E

Í M P A R E S

O projecto pretende restaurar o sentimento de rua plurifuncional, ladeando-a com pórticos que servem as lojas no r/c, sobre as quais um piso de habitação, com amplos terraços, oferece uma outra versão da ideia que originou o “immeuble-villa” de Le Corbusier. Muros em pedra à vista, o revestimento de azulejo da Fábrica Viúva Lamego, da autoria do artista plástico Querubim Lapa, anima as fachadas utilizando cores suaves (convencionalmente, nessa época, as de Lisboa) reconduzindo o todo a uma localização cultural. Nos dois edifícios virados a Sul (não construídos), o pórtico mais estreito e de frente inteira resolvida com varandas, leva a pensar que a protecção ao sol foi factor decisivo, tal como na Moderna Arquitectura Brasileira. O centro foi recentemente classificado como Monumento de Interesse Público e foi estabelecida uma zona especial de protecção com o objectivo de salvaguardar a sua inserção no Bairro.

29


30

O Cinema Restelo O Cinema Restelo foi construído nos anos 50 e implantado no final da Avenida Torre de Belém, onde termina o Bairro Económico do Restelo e também a zona residencial dessa mesma avenida, perto do cruzamento com a rua de Pedrouços. Serviria assim a população destes dois Bairros (para os residentes do Restelo de cima e do Restelo de baixo) e ainda o público do extinto Cinema Belém – Jardim, que existiu na rua Bartolomeu Dias. Trata-se de um cinema de cerca de 1 300 lugares, com plateia e balcão. O projecto é da autoria dos Arquitectos Carlos Ramos e Carlos Manuel Ramos inserindo-se no Plano de urbanização da Encosta da Ajuda. Rapidamente a população do Bairro Económico do Restelo, muito mais numerosa do que a restante área residencial, passou a incluir o cinema nos seus hábitos de vida.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Nos finais dos anos 50 era já frequentado pela jovem população do Bairro, uma faixa etária que ia dos 6 aos 20 anos e que preenchia, com gosto, tanto as matinés infantis como as noites de sábado, não falando dos adultos. A população mais jovem atacava a plateia (a geral), a rapaziada adolescente dava preferência às filas de trás. Muitas recordações do Bairro estão ligadas a este recinto. Para muitos dos que aqui viveram foi certamente o local da primeira experiência cinéfila. As idas ao Cinema Restelo era outra das incursões colectivas. De regresso passávamos pelo Chile que estava aberto até à 1 h da manhã. O Cinema Restelo tinha a particularidade de passar filmes às 3ªs, 4ªs e 5ªs, diferentes dos do fim de semana. Estreavam no S. Jorge e vinham para o Cinema Restelo. (Tó Boavida) E lembro-me das histórias do Cinema Restelo. O pessoal mais novo, quando o dinheiro era pouco ia para o “piolho” que dava acesso ao palco. O Fechi um dia resolveu levar uma pomba e quando apareceu uma cena apropriada trata de a largar para o palco. (Gagliardini Graça)

Íamos ao Cinema Restelo aos domingos à sessão infantil. Começava com os “Três Estarolas” a que se seguia o filme do dia. E de outros filmes que nos faziam chorar. (Joana Luz)

O Bairro em Números Nas 448 casas do Bairro viveram cerca de 3 800 pessoas, distribuídas quase exclusivamente por duas faixas etárias. Quando do início do Bairro, a idade máxima dos chefes de família raramente ultrapassava os quarenta anos. Os filhos, esses, distribuíam-se entre os recémnascidos e a adolescência. São raríssimas as excepções dos que ultrapassavam os 16 anos quando chegaram ao Bairro. Alguns agregados familiares incluíam também avós e tias. Era condição de admissão às casas, as famílias terem mais de 2 filhos (salvo as casas de filho único, que são trinta, no máximo). As famílias maiores já teriam 4 ou 5 filhos quando vieram para o Bairro. Como se constata, muitas crianças viriam a nascer aqui. O mais novo do Bairro terá hoje 44 anos. A primeira geração totalizou, pois, o dobro do número de casas existentes (há 3 ou 4 casos de viuvez), ou seja cerca de 900 pessoas. Entre a segunda geração, o número ascende num total a cerca de 2 600 jovens. Nesta geração, o grupo

31


32

dos mais velhos que se situa hoje entre os 70 e 80 anos, nascidos portanto entre 1933 e 1943, era relativamente pouco numeroso. A grande maioria da segunda geração do Bairro nasceu entre 1944 e 1953, tendo hoje entre 60 e 69 anos. O grupo seguinte (nascidos entre 1954 e 1962), totaliza também um número significativo. O grupo que ainda não completou os 50 anos de idade é relativamente pouco numeroso. Considerando o ano de 1960 como referência, a oito anos de distância do início do Bairro, e os mesmos grupos de idade, o primeiro andaria entre os 17 e 27 anos, o segundo, entre os 7 e 16 anos, portanto em plena escolaridade, e último grupo constituído por crianças com menos de 7 anos. Por comparação com o ano de 1972, portanto a vinte anos de distância, tem-se o primeiro grupo numa idade entre os 29 e 39 anos e já teriam certamente saído do Bairro; o segundo, entre os 19 e 28 anos, e portanto muitos na tropa ou a casar; finalmente o terceiro e o quarto grupos, de idade inferior a 19 anos. Serão provavelmente os anos entre 1958 e 1972, os de maior concentração de pessoas da segunda geração no Bairro.

As Famílias mais numerosas e os Casamentos No que respeita à distribuição entre Pares e Ímpares (sendo a fronteira a rua Duarte Pacheco Pereira), há 240 famílias nos Pares e 208 nos Ímpares, não significando necessariamente que o povoamento fosse em igual proporção, dado que o maior número de casas D3 e D4 se situam nos Ímpares, e portanto também as famílias mais numerosas. A família mais numerosa (20 filhos) morou na rua Soldados da Índia. Nesta mesma rua houve uma família com dez filhos e duas com nove filhos. Outra rua de grande concentração de famílias numerosas foi a S. Francisco Xavier com uma família de onze filhos, uma de dez e duas famílias de nove filhos. Mas houve uma família de dez filhos e outra de doze filhos nas ruas ímpares. No lado Par, uma de dez filhos, uma de onze e outra de doze filhos. E ainda quatro famílias com nove filhos. À medida que o número de referência (nº de filhos) vai baixando, aumenta consideravelmente o número de famílias. São cerca de cinquenta e três as famílias cujo número de filhos se situa entre os seis e os oito. Portanto, entre as 448 famílias do Bairro, a percentagem de famílias com 6 ou mais filhos atinge quase os 16%. Da totalidade dos 2 600 da segunda geração, o sexo masculino marcou pontos superando em 150 o número de raparigas.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Estes valores não são absolutamente rigorosos, uma vez que existem algumas famílias das quais não foi possível apurar o número total de filhos. Finalmente, e não menos importante, registaram-se, pelo menos 59 casamentos entre restelenses, sendo 19 entre o lado par e o lado ímpar. E, ainda, cerca de 37 casamentos com pessoas da vizinhança do Bairro.

33



Memórias de um Bairro FACTORES DE SOCIALIZAÇÃO As Escolas O Centro Comercial Os Escuteiros (1961-1970) O Bairro no Tempo do P.e Felicidade Alves (1956-1968) O Desporto O Râguebi no Bairro


Embora tenham sido concebidas duas linhas orientadoras relativamente a esta obra, o livro acabou por se fazer a ele próprio, à medida que se iam ouvindo memórias, recolhendo testemunhos ou mesmo lendo documentos. A primeira linha, na qual se enquadra este capítulo, tem como base os factores que promoveram, no tempo e no espaço, a socialização entre as pessoas do Bairro, começando nas escolas para terminar com o desporto, que acabou por demonstrar ter sido o mais transversal de todos eles. Já a segunda, a que respeitam os dois capítulos seguintes, é constituída por testemunhos através de histórias contadas por cada um, da infância e adolescência, dos mitos que continuam a ser ainda tema de conversa, ou das vivências mais generalizadas, como as festas. Finalmente os testemunhos personalizados, alguns deles assinados. Este livro é, pois, um contributo de todos os que aqui vivem ou viveram, mas também dos interlocutores das lojas e de outros intervenientes que fizeram parte desta vivência tão entranhada em nós.


As Escolas Os estabelecimentos de ensino foram um importante elemento de ligação na segunda geração do Bairro, onde ocorreram os primeiros contactos entre Pares e Ímpares e também entre os restelenses e os fihos das famílias das proximidades (Restelo de cima, Pedrouços, Av. Vasco da Gama, etc.). Apesar de muitos desses contactos não terem passado de conhecimento de infância, deixaram no entanto uma marca que a idade não fez esquecer.

A Primeira Escola A primeira escolaridade (infantil e primária) e parte do secundário contaram, no Bairro, com apoios logísticos. Não só o Centro Comercial teve, desde a sua origem (1954), vários externatos e colégios: O Externato do Restelo, o Externato Santa Fé e a Escola S. Francisco Xavier, como fazia parte do equipamento escolar do recente Bairro, a Escola oficial nº 63, transferida da rua de Pedrouços para o edifício, que para o efeito se construíu na Praça de Goa. A grande maioria da segunda geração do Bairro frequentou um ou vários desses estabelecimentos, o que muito contribuíu para o relacionamento que se iria sedimentar entre os jovens. Fiz a instrução primária no Externato do Restelo, quando este se situava ainda na rua D. Francisco de Almeida, onde a minha mãe (D. Maria Silvéria) foi professora e mais tarde directora pedagógica. Este Externato, que depois se instalou na rua Duarte Pacheco Pereira, ocupou todo o primeiro andar do quarteirão que começava nos Gelados Chile e ia até ao jardim que confina com a rua D. Cristovão da Gama. Era uma instituição com secção masculina e secção feminina, com entradas e recreios separados, na altura sob a direcção da D.Teresa Iria. Sendo filha de um oficial, frequentei o Instituto de Odivelas durante todo o liceu, perdendo nessa altura o contacto diário com o Bairro. (Céu Afonso) 37


38

Fiz a 2ª e parte da 3ª classe em Angola tendo regressado para acabar o ano lectivo no externato S. Francisco Xavier. Ainda frequentei a escola nº 63 na rua de Pedrouços, escola que viria nesse mesmo ano (57/58) a transitar para as novas instalações na Praça do Goa. A escola de Pedrouços situava-se no r/c de um palacete conhecido pela casa do Conde, onde no 1º andar viviam umas senhoras que tocavam piano e que alugavam também salas a pessoas necessitadas. Nesta escola conheci pessoas de quem ainda hoje sou amiga. (Cucha Carvalheiro)

Liceus e Colégios Muitos desses primeiros contactos tiveram continuidade nos liceus e colégios da zona. Com excepção dos filhos de militares que frequentaram, quer o Colégio Militar, quer o Instituto de Odivelas, e de um número reduzido de restelenses ter andado em outros estabelecimentos de ensino (liceu francês Charles Lepierre, Salesianos do Estoril e outros), o liceu de Oeiras (misto), o Rainha D. Amélia (só feminino) e o D. João de Castro (misto) concentraram, quase exclusivamente, a frequência dos adolescentes restelenses, sobretudo no que respeita ao grupo masculino. O liceu de Oeiras teve a certa altura uma secção em Algés, o que veio facilitar a vida aos pais mais renitentes em deixar que as filhas fossem para mais longe. Estudei no liceu de Oeiras até 1962. Do liceu, o grupo era o Manuel, meu irmão, o João Solano, a Teresa Campos Silva, a Filomena Machado, o Pedro Amaro, a Teresa e a Gabi Sequeira, o Quim Osório, o Hermínio Baptista, entre outros. Íamos todos juntos apanhar o comboio em Algés. Nessa altura vínhamos a casa almoçar. O regime era misto. Só mais tarde se deu a divisão dos horários e de sexos (manhã e (Tó Zé Roberto) tarde). As meninas contaram ainda com os colégios de S. José (Dominicanas portuguesas), que entretanto tinha aberto ao cimo da Avenida das Descobertas, e o colégio do Bom Sucesso (Dominicanas irlandesas) na rua Bartolomeu Dias, este já de longa tradição. Quando entrei para o 1º ano do liceu fui inscrita no colégio do Bom Sucesso. A minha avó tinha andado no colégio como interna, em 1890, o que era também uma referência.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Depois o colégio tinha uma particularidade fantástica: só falavam inglês. Agora imaginem o que era pessoas que nunca tinha ouvido falar inglês e que eram obrigadas a perceber o que é que as madres diziam. Por exclusão de partes, havia uma frase que toda a gente conhecia “you have to obey” e se não “obey” era terrível. (Luisa Silva Passos) Houve também salas de estudo numa casa do Bairro, que ficou conhecida pela casa X (rua 7, nº 29), e que terá sido uma casa destinada a centro social. Nesse local tiveram lugar várias actividades que contavam com o apoio de voluntários, jovens ou adultos. Entre estas actividades estavam as salas de estudo para os alunos do Bairro com dificuldades a nível escolar, em geral enquadradas na actividade paroquial.

A Escola Americana Uma curiosidade que fica para a história do Bairro é a escola americana, na altura St. Columbans, que começou na rua Duarte Pacheco Pereira. Esta escola contou com a participação de uma professora restelense. Pouco depois de vir para o Bairro do Restelo, dediquei grande parte da minha vida ao ensino. Fui escolhida para leccionar na escola americana fundada, em 1956, pelo irlandês Anthony McKenna, o qual viveu no Restelo num dos andares do Centro Comercial. Esta escola foi a primeira e única escola autorizada de ensino americano em Portugal. Destinava-se na altura à educação dos filhos de embaixadores e de funcionários da Nato, bem como dos filhos de técnicos americanos contratados para o projecto da ponte 25 de Abril. Tendo começado com 9 alunos, a escola teve primeiro a designação de St. Columbans, e depois de American International School of Lisbon. Desde 2001 passou a ser a Carlucci American International School of Lisbon. No entanto, durante os primeiros anos, a escola manteve-se no Bairro, ocupando os andares superiores do quarteirão entre o actual banco e o talho, tendo mudado mais tarde para Carnaxide (finais dos anos 50) e posteriormente para o Estoril. Fui entretanto professora de inglês e de francês de muitos alunos do Restelo, incluindo os meus próprios filhos. Lembro-me de um pormenor curioso relacionado com o facto de ter sido entrevistada na qualidade de ex-professora do cantor, guitarrista e fotógrafo, Brian Adams, quando ele veio a Portugal. Brian frequentou a American International School of Lisbon, quando esta estava já em Carnaxide. (Christina Serrano)

39


40

Externato do Restelo Este externato terá sido o colégio mais antigo do Bairro residencial da encosta da Ajuda, tendo começado na rua D. Francisco de Almeida, cuja imagem aparece num anúncio da época. Nele se pode ler: Duas curiosas fotografias das alunas do Externato Feminino do mesmo nome, ao ar livre, passarinhos garrulas, que um dia as olharão com a saudosa lembrança dos tempos despreocupados da meninice, e talvez as mostrem, como exemplo de bela camaradagem, a camaradagem que tem o sabor raro da igualdade social onde não há ainda artifícios ou reservas de protocolo.

\


P A R E S

E

Í M P A R E S

41


42


P A R E S

E

Í M P A R E S

43


44


P A R E S

E

Í M P A R E S

Escola S. Francisco Xavier A Escola S. Francisco Xavier terá começado não muito tempo depois. Na imagem vê-se a primeira localização desta escola, num primeiro andar do Centro Comercial, do lado dos pares.

45


46


P A R E S

E

Í M P A R E S

Externato Santa Fé Este externato situava-se no mesmo lado da escola anterior, frente ao Externato do Restelo. A bata era em tons de verde e branco, aos quadradinhos. O endereço que figura no anúncio ainda refere a designação Encosta da Ajuda.

47


48

Escola nº 63 (Pedrouços) Esta escola era a única no tempo do início do Bairro e foi frequentada por muitas crianças do Bairro, sobretudo rapazes.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Escola nº 63 (Praça de Goa) A Escola da Praça de Goa veio substituir a de Pedrouços, fazendo parte do equipamento escolar destinado à população do Bairro.

49


50

Liceu de Oeiras Este liceu, que tinha sido recentemente inaugurado, constituíu a opção de muitas famílias do Bairro, apesar de se situar relativamente longe. Uns anos depois abriu uma secção em Algés.


P A R E S

E

Í M P A R E S

51


52


P A R E S

E

Í M P A R E S

O Centro Comercial do Restelo A localização do Centro Comercial, em pleno Bairro de casas económicas, foi determinante na socialização das pessoas nele residentes e também entre estas e as famílias, que não vivendo no Bairro, se situavam nas ruas próximo. A vivência gerada foi sobretudo notória ao nível da segunda geração. O pomposo nome Centro Comercial ao ar livre, como foi designado em tempos mais recentes, era para os restelenses a “rua das Lojas”. Um espaço para onde desciam os residentes do lado ímpar e subiam os do lado par. O Centro Comercial foi e ainda hoje é, o espaço onde as pessoas se encontram. Uma espécie de “passeio público” com comércio. Aqui estavam situados todos os serviços: talhos, mercearias, padaria, drogaria, farmácia, retrosaria, cabeleireiros e barbeiro, leitaria, lugares da hortaliça, tabacaria, ... que foram evoluindo ao longo destes sessenta anos, no âmbito da mesma actividade comercial, ou não. Não menos importante, foram os três estabelecimentos de ensino nele situados, também motivo de socialização, afinal o fio condutor desta narrativa. Mas foi principalmente em torno do “ Chile” e do “Chico Careca“ que se movimentou uma grande parte da população do Restelo. Por eles passaram pais e filhos e, agora, os netos.

Uma Viagem pelas “Lojas” Retomando o caminho, tantas vezes calcorreado quando menina de 7 anos, vestida de bibe azul, em direcção à minha escola, o Externato do Restelo, desço agora a Cristóvão da Gama alcançando em poucos minutos o jardim bem arranjado, já na esquina com a Duarte Pacheco, outrora um desconsolador terreno sem vegetação.

53


54

O passo é agora vagaroso. Apreciando a bela manhã de Primavera, sorrio ao ouvir o som pavões dos Altos Estudos, remetendo-me para o tempo em que se “pavoneavam” sobre o muro a mostrar o colorido da cauda em leque toda aberta. Raramente ia sozinha, além das minhas duas irmãs, juntavam-se a Liliz e a Manelinha e a talvez uma das Pacheco. A rua quase não tinha trânsito e a outra alternativa, a Tristão da Cunha, tinha sempre um cão grande que não era propriamente amigável. Subo as escadas que dão acesso ao primeiro bloco do Centro, do lado esquerdo e preparo-me para tomar um café, aproveitando o sol a bater na esplanada do 2good!. À minha frente as duas portas do colégio, a principal por onde subia para a sala de aula, e a outra, imediatamente antes, que dava acesso a uma sala multifunções, como agora se diz, que servia de ginásio para os rapazes e, para ambos os sexos, as aulas de Canto Coral. Sim, o tal sítio onde ficávamos a saber se éramos da 1ª ou da 2ª voz. Estes dois espaços estão hoje divididos, continuando a funcionar num deles, um colégio e, na dita sala, uma Veterinária. Quando saía, para ir almoçar a casa passava por uma pequena loja de artigos eléctricos, a Sudel, e logo de seguida a Papelaria Restelo, parando junto ao mostruário de revistas, penduradas à porta com pinças, onde os meus olhos se fixavam à procura dos livros de quadradinhos, sobretudo do Bolinha e da Luluzinha. Mais tarde a papelaria estendeu-se, ocupando o local onde esteve uma tinturaria. Passou então a vender livros e discos, acompanhando, sabiamente, os “apetites” da criançada que crescia e se tornava adolescente. Hoje, com o 2good!, que ocupa todo o espaço da antiga Papelaria na sua versão aumentada, o local tornou-se uma animação durante o dia e a noite, que os restelenses rapidamente anexaram ao seu itinerário de encontros, para almoçar, beber uma cervejinha ao fim da tarde ou, simplemente, tomar café. Dali vejo as outras esplanadas dos estabelecimentos que aos poucos foram substituindo o comércio outrora ali instalado, o estofador (o Sr. Evaristo), a casa de Electricidades (do Sr. Américo) e uma sapataria, “A Minhota do Restelo” (Sapataria Modelos Próprios e Alheios) como explicita um antigo anúncio. Neste mesmo espaço está hoje uma Hamburgaria e uma Pizzaria. Nada disto existia, nesse remoto tempo das idas e vindas da escola. Levanto-me para regressar e percorro o caminho que fazia às vezes no regresso a casa, pela Tristão da Cunha. Passo pela “Barbearia Restelo”, também de origem, e pela porta de entrada dos rapazes do Externato, altura em que acelerava o passo para fugir aos encontros com a célebre turma da 4ª classe, do Papi&Companhia, que já nessa altura tinha fama.


P A R E S

E

Í M P A R E S

Mais um passo e estou frente ao moderno cabeleireiro “Manuela Ribeiro”, de uma restelense dos ímpares que o dirige há 40 anos e onde no antigamente esteve o Salão Augusta (O preferido Pelas Clientes Chics, diz o anúncio da época). Chego ao “Gelados Chile”, famosa a cassata da Fábrica dos Gelados Chile, de fabrico próprio, ainda hoje confecionada como há 50 anos. Aqui é quase certo encontrar alguém conhecido, porque este café continua a ser um ponto de encontro dos restelenses, de alguns novos moradores, de uma ou outra mãe. Um local mais calmo para se estar ao final da manhã e gozar de um maior sossego. Quando dou com alguém, lá vai mais um café e oiço as inúmeras histórias do Bairro, algumas delas contadas neste livro. Nos tempos idos e muito de longe em longe, entrava para comprar um gelado de dez tostões em cone de bolacha, que ia saboreando pelo caminho rezando para que não me saltasse o famigerado cão, um leão da Rodésia, se a memória me não falha. Outras vezes atravessava a rua para ir à mercearia Central comprar uns chupachupas compridos às riscas de várias cores. A loja era uma atracção com aquelas doçarias todas, em frascos transparentes, com os rebuçados Heller, os bombons envoltos em papel prata de todas as cores. E as caixas de folha das bolachas. Nesse mesmo local é hoje a “Pressing”, da família Bozaglo, começando aqui o segundo bloco do lado ímpar, mas que foi o primeiro a ser construído e onde se estabeleceram as primeiras lojas, em 1954. Mas continuando este passeio de fim de manhã, hoje com outro à vontade e liberdade que a meninice não permitia nos anos 50, deixo para trás a “Pressing” com a sua montra cheia de curiosas recordações do ofício, lembrando tempos muito mais velhos do que o Bairro e dou com o Talho do “Amílcar”. Ainda lá está e o Sr. Amílcar também, e cumprimento-o da rua. Lembro-me nesse tempo, do meu olhar ser atraído para a indicação de que ali se vendia carne de cavalo. Porquê carne de cavalo? Não demorou muito tempo até que me atrevesse a entrar e tomarmos um café na esplanada ao lado, a conversar sobre o assunto. Hoje sei tudo sobre as particularidades da carne de cavalo e a razão da sua existência aqui no Bairro. Mas remeto o leitor para as palavras do Sr. Amílcar, um dos poucos comerciantes desde, praticamente, o início do Centro. Mesmo ao lado “As Madalenas”, um pronto-a-levar de comida caseira de qualidade onde também se pode almoçar ao ar livre. Foi em tempos uma charcutaria e antes disso o estabelecimento “Hortinha do Restelo” mais conhecido pelo nome “Lugar da Hortaliça”, ou simplesmente “o Lugar”, que pertenceu a uma família do Bairro.

55


56

Continuo e dou uma olhadela na montra do “Pano Branco”, uma loja de roupa de bebé, que consegue manter o estilo antigo, com bom gosto. Neste local esteve instalada a “Bambi”, uma retrosaria que tinha a particularidade de “apanhar as malhas” das meias com um utensílio que parecia uma broca de dentista. Um serviço indispensável para o mundo feminino desde que era chegada a almejada idade de usar meias de vidro. Primeiro as meias de ligas, e só mais tarde os collants. Também me lembro de lá ir comprar linhas e meadas de lã, estas quando foi a fase do tricot. Eis a “Riviera” que lá está também desde 1954. De início uma drogaria à qual, poucos anos mais tarde, se juntou uma perfumaria, e que o Sr. António apetrechou sempre de tudo o que havia de novidades. Vinha gente de fora porque sabiam que ali encontrariam os produtos mais requintados dentro do género. Era aqui que “namorávamos” os lápis para os olhos e o rímel, a primeira ousadia na maquilhagem da adolescência. Hoje o estabelecimento é dirigido pela sua filha Gabriela. Sigo e abrando o passo na exposição de frutas e legumes da nova “Nogal”, agora transformada num mini-mercado mais requintado e que procura sempre ter um ou outro produto mais difícil de encontrar, como o aipo, as alcachofras, ou as alcaparras. Antigamente o dono da mercearia Nogal era o Sr. David e eu, quando lá entrava, tinha a sensação de familiaridade porque já conhecia um ou outro empregado, dos que passavam lá por casa a entregar as compras. Era usual nesse tempo os marçanos irem de casa em casa recolher os pedidos e entregar as encomendas. Em geral dirigiam-se à porta da cozinha e quando havia criadas (era assim que se designava na altura) metiam conversa, o que gerou muito namorico. Depois, a farmácia de sempre, a “Farmácia do Restelo” da Dra. Felripa Sousa Dias, hoje dirigida pelo Nuno Sousa Dias, filho do João “Aspirina” um menino também do Externato do Restelo. Foi também um outro ponto de encontro importante, onde se ouvia sempre alguma novidade. E chego ao famoso “Careca”, de seu nome “Pastelaria Restelo”, que recuperei da minha infância porque era raro lá entrar. Só mesmo para os furos da Regina ou da Favorita, já nem sei bem qual a marca, sempre na esperança de sair a bola dourada. E para já não digo mais nada porque a ele me dedicarei adiante. A viagem vai longa e deixo o outro lado do Centro para outra incursão. É tempo de dar voz aos restelenses, porque isto de memórias tem muito que se lhe diga.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.